Biblio VT
54 d. C. Os soldados do IMPÉRIO ROMANO patrulham um vasto Império onde exercem uma autoridade de ferro que não tolera revoltas.
Mas na HISPÂNIA o domínio de ROMA enfrenta dificuldades. Tumultos irrompem na província e bandos de rebeldes vagueiam pelas estradas.
A temida GUARDA PRETORIANA é enviada para a província para restaurar a paz. O seu comandante é VITÉLIO, um veterano com vasta experiência militar e uma ambição sem limites.
Regressados a Roma após uma campanha catastrófica na BRITÂNIA, o Prefeito CATO e o Centurião MACRO são enviados para a Hispânia numa missão repleta de perigos: por um lado, enfrentar as tribos locais e a população amotinada; por outro lado, conter a intriga dos que procuram minar a autoridade do IMPERADOR CLÁUDIO. Apenas através de uma coragem sem paralelo e a boa fortuna poderão Macro e Cato triunfar...
Província da Hispânia Tarraconense, princípio do verão, 54 d. C.
A piscar os olhos, o prisioneiro estava a ser conduzido para uma área banhada pelo sol brilhante, no fórum que ocupava o coração da cidade de Asturica Augusta, ao mesmo tempo que se ouviam os gritos de
fúria da numerosa multidão. Tinha sido mantido acorrentado numa das escuras e húmidas celas por baixo do edifício do Senado local durante mais de um mês, enquanto esperava que o magistrado romano regressasse
da sua propriedade rural e pronunciasse a sentença. Agora, o magistrado aguardava nos degraus do Senado, pronto a enunciar o julgamento, rodeado pelos outros notáveis da cidade, todos eles envergando
as suas melhores togas e túnicas ornamentadas. Mas nas mentes da turba; e na do prisioneiro, havia poucas dúvidas quanto ao destino que o esperava.
Iskerbeles tinha atacado e matado o funcionário que fora à sua aldeia exigir a entrega de escravos para substituir o pagamento de uma dívida a um tremendamente abastado senador de Roma. Matara o homem
à frente de centenas de testemunhas e dos soldados auxiliares que escoltavam o desafortunado liberto enviado para proceder à cobrança da dívida. Pouco importava que o dito funcionário tivesse acabado
de dar ordens para que fossem arrebanhadas dez das crianças da aldeia, e que o golpe tivesse sido desferido num momento de fúria.
Iskerbeles era um homem de físico poderoso, com olhos escuros e ferozes por baixo de uma testa sólida. Tinha atingido o liberto na face, forçando o homem a tombar para trás, e isso levara-o a rachar o
crânio na esquina de uma calha de pedra, e a perder a vida. Fora uma cruel partida do destino, que ainda mais cruel se tornara quando o oficial que comandava os auxiliares tinha ordenado aos seus homens
que fizessem o chefe da aldeia prisioneiro, e que pegassem nas crianças. Mas enquanto estas iam ser levadas e vendidas como escravas, Iskerbeles tinha como destino o julgamento por assassínio e a condenação
a uma execução pública.
A última visão que tivera da esposa fora a do desespero que tomara conta dela, enquanto abraçava as suas duas jovens filhas e soluçava nas dobras da túnica. Um dia de marcha tinha conduzido os cativos
até Asturica Augusta, onde Iskerbeles fora acorrentado e atirado para uma cela, enquanto as’ crianças tinham sido agrilhoadas e reunidas a uma coluna de condenados que iam ser vendidos no grande mercado
de escravos na capital provincial, em Tarraco. No tempo que passara no calabouço quase tinha morrido de fome, e os pesados anéis de ferro que lhe rodeavam os pulsos haviam-lhe provocado dolorosas nódoas
negras. O cabelo estava empastado, e de tal forma coberto pelos seus próprios excrementos que os dez guardas que o escoltavam se mantinham à distância e lhe davam toques com as pontas das lanças para
o fazer avançar aos trambolhões pelo meio da multidão, até à base das escadas. Os gritos de raiva dos habitantes locais, e dos que tinham vindo dos campos em redor, começaram a diminuir quando viram o
estado lamentável em que se encontrava; quando, por fim, o fizeram parar junto às escadas, um silêncio pesaroso tinha-se instalado no fórum. Até os que ocupavam as bancas de comércio do outro lado do
recinto interromperam os seus afazeres e espreitaram para o Senado, reféns da tensa atmosfera reinante.
— Endireita-te, tu! — instou um dos guardas, enquanto usava a ponta da espada para acertar no fundo das costas do prisioneiro. Iskerbeles cambaleou meio passo para a frente, e depois empertigou-se, numa
pose de desafio, e encarou o magistrado com evidente ódio. O centurião que liderava a escolta limpou a garganta e pronunciou, na sua melhor voz de parada, de forma a que todos os que estavam no fórum
o conseguissem escutar.
— Muito honorável Tito Pelónio Aufídio, magistrado de Asturica Augusta, aqui te apresento Iskerbeles, o chefe da aldeia de Gaupacina, para que pronuncies sobre ele julgamento pela acusação de assassínio
de Gaio Democles, agente do senador Lúcio Eneus, de Roma. O assassínio ocorreu nos idos do mês passado, e foi testemunhado por mim mesmo e pelos homens da escolta designada para a proteção de Democles.
O prisioneiro aguarda o teu julgamento.
O centurião baixou a cabeça num movimento preciso e rápido, e deu um passo ao lado enquanto o magistrado descia alguns degraus de forma a destacar-se dos outros senadores locais e dos funcionários superiores
da cidade, mas a manter-se ainda num plano superior ao da multidão reunida aos seus pés. Aufídio assumiu uma expressão de desdém no rosto, enquanto contemplava as faces da populaça. Não havia como não
perceber a hostilidade que dali provinha. Pelas vestes pouco cuidadas e cabelos desgrenhados de muitos, deduziu que o povo da aldeia do prisioneiro estava espalhado por entre a gente da cidade, e não
receberiam de bom grado o que se ia seguir. Talvez houvesse confusão, decidiu o magistrado, e sentiu-se aliviado por ter tomado a precaução de mandar colocar o resto das tropas auxiliares em estado de
prontidão na rua que ladeava o Senado local. Apesar de o primeiro Imperador, Augusto, ter declarado a Hispânia pacificada havia quase cem anos, essa situação tinha sido alcançada ao fim de dois séculos
de duros conflitos. Havia ainda algumas tribos no Norte que se recusavam a reconhecer o domínio romano, e muitos outros que, na melhor das hipóteses, eram recalcitrantes nessa aceitação, e dificilmente
encontrariam motivos de maior satisfação do que livrarem-se do jugo romano que tamanho peso lhes impunha. De facto, refletiu Aufídio, era surpreendente que um povo tão orgulhoso e tão dado à atividade
guerreira alguma vez tivesse aceitado a Pax Romana. Muito simplesmente, a paz não fazia parte da sua natureza.
E era mesmo por isso que tinham de ser governados com um bastão de ferro. Enrugou as sobrancelhas, o que lhe acentuou o ar severo.
— Não há qualquer dúvida de que cometeste o crime. Houve inúmeras testemunhas do facto. Sou portanto forçado a pronunciar uma sentença capital. Contudo, antes de o fazer, em nome da justiça romana, ofereço-te,
como a todos os condenados, uma última oportunidade de pedires perdão pelas tuas ações, e fazeres a tua paz com o mundo antes de passares para as sombras.
Iskerbeles, tens algumas palavras finais?
A queixada do chefe da aldeia moveu-se, e ele inspirou profundamente antes de responder numa voz clara e distinta:
— Justiça romana? Cuspo na justiça romana! O centurião ergueu o punho e preparou-se para desferir um golpe, mas o magistrado deteve-o com um gesto.
— Não! Deixa-o falar. Deixa-o condenar-se ainda mais aos olhos da lei e perante toda esta gente!
O soldado voltou à sua posição original com evidente relutância, e Iskerbeles retorceu os lábios com desprezo, antes de prosseguir.
— A morte daquele maldito filho da puta do liberto foi apenas justiça natural. Ele veio à nossa aldeia para nos roubar o cereal, o azeite e tudo o que possuíssemos de algum valor. Quando recusámos as
suas exigências, ele ameaçou levar as nossas crianças. Pôs as mãos num filho da nossa aldeia, e portanto eu bati-lhe e matei-o. Por acidente, não por deliberação.
Aufídio abanou a cabeça. — Pouco importa. A vítima estava a agir no quadro dos seus deveres legais. A cobrar uma dívida que era devida ao seu senhor.
— O mesmo senhor que fez um empréstimo à nossa aldeia quando as colheitas falharam, há três anos, e depois aumentou os juros em cada aniversário desse empréstimo, de modo a que nunca lhe pudéssemos pagar
todo o montante.
O magistrado encolheu os ombros. — Pode ser que sim, mas isso é perfeitamente legal. Tinhas um acordo com o senador Eneus, através do seu agente. Conhecias os termos antes de apores o teu selo no documento
em nome do teu povo. Portanto, o senador age dentro dos seus direitos ao exigir o pagamento por completo.
— Completo, mais os juros. Num montante que era metade do empréstimo original. Como podemos nós pagar-lhe? E não estamos sós no papel de vítimas desse miserável cão. — Iskerbeles rodou para se dirigir
à multidão. — Todos vocês conheciam o homem que matei. O vil Democles, que burlou não apenas o povo da minha aldeia, mas praticamente todas as aldeias desta região. Os seus homens já tinham apreendido
centenas de pessoas da nossa tribo quando eles não conseguiram pagar as dívidas ao seu senhor. Muitos foram condenados a trabalhar nas minas, nas colinas. E aí ficarão até morrerem de exaustão, ou ficarem
enterrados vivos nos túneis que são escavados por baixo delas. Ninguém aqui presente precisa que lhe sejam lembrados os horrores dessas minas!
Aufídio sorriu. — E ainda assim, pareces determinado em recordar-lhes essa situação. O destino dos que são condenados às minas é bem conhecido, Iskerbeles. E é uma punição bem merecida para todos aqueles
que violam as leis.
— Ah! Falas de lei. A lei que os nossos senhores romanos nos impõem. A lei que pouco mais é do que uma forma de justificar o roubo do nosso ouro, da nossa prata e das nossas terras, casas e liberdade.
A lei romana é uma afronta à natureza, uma praga que nos afeta até à última fibra da nossa dignidade. — Fez uma pausa para lançar um olhar irado à turba. — Quem aqui é uma criatura tão vil que se sinta
capaz de aguentar esta vergonha? Serão todos cães sarnentos, forçados à baixeza de suplicar por migalhas e lamber as botas daqueles que vos chicoteiam e vos fazem passar fome para vos submeter? Não haverá
aqui quem se erga contra a tirania de Roma...? Ninguém?
— Abaixo Roma! — lançou uma voz no seio da turba. Rostos rodaram e olharam em volta. Outra voz fez seu o mesmo brado, e outras se lhe juntaram.
E então um homem perto da frente da turba agitou o punho e gritou:
— Morte a Aufídio! Era um homem de constituição poderosa, com uma careca no cimo do crânio. Tinha enrolada em volta do corpo uma capa de pastor; ergueu o punho no ar e começou a entoar um cântico a que
os seus vizinhos se juntaram.
O magistrado encolheu-se como que por instinto e recuou meio passo perante o protesto, antes de se virar rapidamente para o centurião.
— Executa a sentença. Leva-o daqui! Imediatamente! O centurião assentiu e limpou a garganta. — Escolta! Cerrar fileiras em torno do prisioneiro! Os auxiliares empunharam escudos e lanças e formaram um
painel compacto em torno de Iskerbeles, enquanto o centurião pegava na ponta solta da corrente que saía do pescoço do prisioneiro e lhe dava um puxão para o conduzir para longe daquela área.
— Vamos lá. Começaram a seguir ao longo dos primeiros degraus na base do Senado e prosseguiram, circundando o fórum até chegarem à via que conduzia ao portão oriental da cidade. Para lá deste, havia uma
colina baixa de encostas suaves, em cuja crista se procedia à execução dos criminosos locais. Ao erguer o olhar por cima dos telhados da povoação, Iskerbeles avistou as diminutas figuras do grupo que
tinha sido enviado previamente para escavar um buraco onde erigir a estrutura de madeira na qual ele seria crucificado. Nesse momento sentiu um novo e brusco puxão na corrente, e foi obrigado a entrar
pela rua estreita que o centurião começara a seguir. Tal como na maior parte das povoações estabelecidas pelos romanos, as vias principais de Asturica Augusta eram ladeadas por pequenas lojas, e por cima
destas existiam andares onde se acomodava a crescente população da cidade.
O centurião soltou uma ordem para que os ocupantes da rua abrissem caminho, e os locais apressaram-se a afastar-se, as mulheres a pegar nas crianças e os mais idosos a saírem do meio da rua para o passeio.
Por trás da escolta e do prisioneiro, a turba meteu também pela mesma rua, e os gritos de revolta ficaram aprisionados entre as paredes que se erguiam dos dois lados e tornaram-se quase ensurdecedores,
enchendo o ar. O centurião lançou um olhar sobre o ombro ao prisioneiro e torceu o nariz.
— Essa tua malta depressa vai perder o pio quando te vir pregado na cruz e espetado ao ar.
Iskerbeles não ripostou à provocação, preferindo concentrar-se em manter-se de pé enquanto era arrastado pela rua de piso irregular. Ao seu lado, os auxiliares negociavam a passagem por entre os mirones
que enchiam os passeios.
— Qual é a história desse? — perguntou um velhote mirrado ao centurião. — Não tens nada a ver com isso — ripostou o centurião, com maus modos. — Saiam da frente!
— É o Iskerbeles — informou uma mulher gorda ao ancião. — Iskerbeles? O chefe Iskerbeles? — Esse mesmo, pobre alma, vai ser executado. Por ter matado um agiota. — Executado? — O velhote escarrou na sarjeta,
aos pés do auxiliar mais próximo. — Isso não é crime algum. Ou pelo menos não devia ser.
A mulher levantou os punhos. — Libertem-no! Cães romanos. Libertem-no! Os que a rodeavam depressa começaram a ecoar-lhe o grito, que se espalhou ao longo da rua e ocupou as gargantas da turba que seguia
o pequeno grupo de soldados. Rapidamente o som ensurdecedor do seu próprio nome chegou aos ouvidos de Iskerbeles e da sua escolta, e o chefe tribal não escondeu um pequeno sorriso satisfeito, apesar de
estar a ser conduzido a uma morte agonizante. Os membros da sua tribo e muitos dos nativos que tinham decidido viver nas cidades continuavam a albergar um espírito de resistência ao invasor que tinham
combatido ao longo de muitas gerações. A paz que os romanos haviam proclamado trazia com ela o preço de se verem esmagados debaixo da bota romana, e Iskerbeles orou à deusa Atecina para que ela libertasse
a sua fúria contra Roma e inspirasse os seus seguidores a matar e queimar os invasores, e a empurrá-los de volta para o mar.
A curta distância mais adiante, vários jovens tinham saído de uma estalagem para ver o que estava a causar os distúrbios. Ao observá-los, Iskerbeles reparou nas suas impecáveis túnicas e rostos bem barbeados,
e identificou-os com facilidade: eram os rebentos das mais abastadas famílias da cidade, que havia muito se tinham aliado aos invasores e adotado ares e graças romanos com todo o entusiasmo. Alguns dos
jovens traziam taças de cerâmica na mão, e o mais próximo da coluna ergueu a sua num brinde, enquanto lançava um brado:
— Morte aos assassinos! Bebo à morte do Iskerbeles! Alguns dos seus companheiros deitaram-lhe um olhar ansioso, mas os outros repetiram o brinde e gozaram com o prisioneiro que se aproximava. Num instante,
a mulher gorda virou-se contra eles e, levantando a bainha da sua saia rasgada, correu pelo pavimento e aplicou com a mão pesada uma forte bofetada no líder do grupo.
— Bêbado idiota.
O homem podia estar inebriado, mas aparou bem o golpe e sacudiu a cabeça para a clarear antes de cerrar o punho direito e desferir um soco na cara da mulher, partindo-lhe o nariz e fazendo com que um
fio de sangue vivo começasse a escorrer-lhe das narinas.
— Cala essa boca, megera. A não ser que prefiras juntar-te ali ao teu amigo quando o crucificarem.
A mulher levou a mão ao nariz, olhou para o sangue na palma da mão e soltou um guincho agudo enquanto se atirava ao jovem, com os punhos a esvoaçar.
— Sacanas! Cabrões! Sugam-nos até ao tutano! Os gritos dela eram tão altos que os mais próximos elementos da turba se calaram e ficaram a olhar para a cena. Num instante adivinharam a natureza do embate,
e houve um movimento geral na direção da estalagem, para se juntarem a ela no ataque aos jovens que se tinham tornado os símbolos das causas da sua miséria. Os punhos agitaram-se, cabelos foram puxados,
os insultos voaram, e os pés desferiram pontapés num frenesim de ira à solta. A confusão espalhou-se e ocupou a rua, à frente do prisioneiro e da sua escolta. O centurião deteve-se e deixou escapar um
suspiro fatigado.
— Ora foda-se... Era mesmo disto que eu precisava agora. — Passou a corrente a um dos seus homens e alçou a sua vareta bem grossa. — Mantenham a formação cerrada enquanto atravessamos esta malta. E não
quero ver ninguém arrastado para a refrega. Deem-lhes uns piparotes se eles se meterem à vossa frente, mas mais nada. Eles já estão muito excitados, e não precisam que um de vocês se arme em esperto e
lhes dê motivo para mais. Entendido? Portanto, mantenham-se juntos, e vamos para a frente.
Apontou para a rua com a vareta e recomeçou a marcha com um passo lento e decidido. Quando o grupo de romanos se aproximou da orla da violenta confusão, o centurião ergueu a vareta e gritou:
— Abram caminho! Um homem só com um braço olhou em volta, nervoso, e esgueirou-se para a berma da rua, mas os outros continuaram a lutar sem lhe dar atenção.
— Muito bem — resmungou o centurião. Levantou a vareta e fê-la descer com toda a força sobre os ombros do mais próximo dos envolvidos na zaragata.
A vítima mergulhou na multidão com um grunhido de dor, enquanto o oficial desferia outra pancada, desta vez batendo com a ponta grossa da vareta no fundo das costas de uma mulher. Ela caiu de joelhos,
e ele afastou-a com uma mão, avançando para o espaço aberto. Só precisou de mais uns golpes para que toda a gente se apercebesse do perigo e se esforçasse por sair do seu caminho.
Os soldados seguiram-no, empregando os escudos para forçar a passagem pelo meio da barafunda; Iskerbeles fazia o possível por se manter de pé enquanto era empurrado de um lado para o outro pela multidão.
Quando se libertaram da confusão, chegaram a um cruzamento, e um movimento súbito de um dos lados chamou a atenção do chefe tribal. Ao olhar para a rua perpendicular, avistou um pequeno grupo de homens
de capas castanhas-escuras a correr pela rua que seguia um curso paralelo àquela em que caminhava. Mas depressa desapareceram.
Um súbito puxão na corrente trouxe-o de volta à realidade, enquanto escutava o grunhido do auxiliar encarregado de o vigiar.
— Mexe-me esse cu.
O soldado falava o dialeto local com um ligeiro sotaque, e Iskerbeles contemplou-o com atenção.
— Tu não és romano. És do Leste da província, não és? O auxiliar encolheu os ombros. — De Barcino. — Portanto, és um de nós. Porque é que serves estes cães romanos? Não queres ser livre?
— Livre para ser o quê? — O soldado largou uma gargalhada sem humor. — Um camponês de cu peludo a arrancar a vida a uma parcela merdosa de terreno? Se é essa a tua liberdade, podes ficar com ela todinha.
Os olhos de Iskerbeles semicerraram-se. — Não tens coração? Não tens orgulho? Nem vergonha? — A única vergonha que sinto é a de ter que ouvir as tuas lamentações merdosas. — O soldado deu outro puxão
à corrente. — Portanto, meu amigo, fecha a cloaca, e poupa-me aos teus sermões.
Depois de se livrar da turba, o centurião acelerou o passo, e quando a rua fez uma curva para a esquerda para circundar um pequeno templo, o portão da cidade surgiu à vista. As sentinelas que o guarneciam
deram sinal de vida assim que avistaram um oficial, e colocaram-se em sentido quando ele se aproximou. Ao contrário dos auxiliares, não eram propriamente soldados, apenas homens recrutados pelo Senado
local para cobrar a portagem de entrada na cidade. Estavam equipados com as armas e armaduras que se podiam arranjar ao preço mais barato, de forma a terem um aspeto militar. O centurião mal lhes prestou
atenção enquanto conduzia o esquadrão pela sombra do portão, saindo para o sol brilhante do terreno no exterior da muralha da cidade. A estrada era pavimentada durante alguns quilómetros, e depois transformava-se
num trilho poeirento que seguia por entre as colinas da região. Havia uma fila de vagões de mercadores e mulas pesadamente carregadas, conduzidas por camponeses, à espera de entrar na povoação; nenhum
deles prestou grande atenção à coluna que conduzia o prisioneiro e passava por eles. Um comerciante de cavalos e os seus companheiros conduziam uma manada no fim da fila, e o centurião deitou um olhar
invejoso aos animais, enquanto os comparava com as montadas de fraca qualidade que a sua coorte se via obrigada a utilizar.
A curta distância do portão, um trilho separava-se da estrada e levava até ao cimo da colina que era usada para as execuções, e o centurião e os seus homens subiram-no, na direção do grupo de trabalho
que os aguardava. A um dos lados, encontravam-se vários habitantes locais, à espera para assistir ao espetáculo, e os que tinham estado sentados levantaram-se ao notarem a aproximação do condenado e da
sua escolta. Iskerbeles sentiu o estômago a contrair-se num nó doloroso quando viu as vigas cruzadas sobre o chão, junto ao pequeno monte de terra e pedras extraídas do solo para lá colocar a base do
poste. Até ali tinha conseguido esconder os seus sentimentos, e agora via-se forçado a cerrar os dentes, determinado a não se deixar desmascarar pelos seus inimigos. Seria bem melhor esconder o medo e
a dor, e mostrar desdém e desprezo por Roma, até ao seu derradeiro suspiro. Que os locais assistissem a isso, e que todos os que continuavam a lutar contra o invasor se sentissem revigorados pelo seu
exemplo.
— Toca a mexer! — gritou o centurião aos trabalhadores, enquanto rodava ligeiramente para indicar Iskerbeles. — Aqui está o vosso cliente. Tratem de o pregar depressa e bem, e podemos todos ir à nossa
vida.
O decurião que comandava o grupo de trabalho acenou à laia de compreensão e virou-se para dar uma ordem aos seus homens, ainda instalados sobre as vigas da cruz, com as ferramentas usadas na preparação
da execução espalhadas pelo chão. Estavam sentados de costas para os auxiliares, e nem se deram ao trabalho de se mexer quando escutaram as botas cardadas a esmagar o solo cozido pelo sol.
— De pé, porra, já disse! — gritou o centurião, enquanto se adiantava, a vareta já levantada para castigar o mais próximo dos homens que tinham desafiado a sua ordem inicial. Nesse momento apercebeu-se
da mancha escura de sangue seco ao lado do poste do crucifixo. Havia outras manchas espalhadas pelo chão. Deteve-se de súbito, um arrepio frio a eriçar-lhe os pelos na base do crânio. Notou então os pés
nus que saíam da base de um afloramento rochoso próximo, e passou imediatamente a vareta para a mão esquerda enquanto desembainhava a espada.
— Emboscada! Às armas! Antes que os seus homens, espantados, pudessem responder, o decurião soltou um brado na língua nativa e os homens do seu grupo levantaram-se de um salto, de espadas e lanças aperradas,
e correram sobre os soldados da escolta. Os mirones que tinham estado de lado a ver também afastaram as capas, revelando mais armas. Também eles se lançaram sobre os auxiliares sem pronunciar uma palavra.
Iskerbeles, que ainda havia pouco se debatia a tentar reunir a coragem para enfrentar sem fraquejar a perspetiva de ter pulsos e tornozelos trespassados por cravos de ferro, sentiu uma euforia súbita
perante a hipótese da salvação.
O homem que tinha estado a fingir ser o decurião que comandava o grupo da execução avançou à frente dos seus homens, procurando atingir o centurião com a espada que descrevia um arco selvagem. Mas o adversário
era um profissional consumado, que tinha treinado muitos anos para momentos daquele género.
Agachou-se e aparou o golpe, e usou de imediato a vareta para atingir o outro na cabeça; apesar de não ter conseguido um golpe em cheio, obrigou-o a recuar. O oficial dos auxiliares olhou para os seus
homens.
— Cerrar fileiras! O choque perante a emboscada dissipou-se rapidamente e os soldados ergueram os escudos e baixaram as pontas das lanças, preparando-se para enfrentar a ameaça que vinha de duas direções.
O homem que fora encarregue de segurar na corrente do prisioneiro hesitou, inseguro sobre se devia largá-la e juntar-se aos camaradas ou continuar a guardar o prisioneiro. Iskerbeles levantou as mãos
num gesto súbito, arrancou a corrente das mãos do auxiliar e fez voar o metal pelo ar, atingindo o capacete do outro. O choque metálico fez o soldado recuar com uma expressão atarantada, embatendo nas
costas de um dos seus camaradas e quase fazendo cair ambos. Abriu-se uma brecha entre dois dos auxiliares, e Iskerbeles cerrou os punhos e correu para a abertura a toda a velocidade que a corrente que
ligava os dois aros que tinha em torno dos tornozelos lhe permitia. Lançou o ombro direito à frente, empurrou para o lado um dos membros da escolta e tentou correr alguns passos, mas a corrente fê-lo
tropeçar, e ele esparramou-se no solo a não mais de três metros dos soldados romanos.
O centurião apontou-o com a vareta. — Não deixem esse cabrão escapar! Um dos seus homens correu e puxou atrás o braço com a lança, pronto a golpear. Iskerbeles rebolou sobre a terra enquanto erguia as
mãos numa vã tentativa de desviar o golpe. Piscou os olhos ao contemplar o recorte do soldado, negro contra o céu brilhantemente iluminado. Nesse momento, outro vulto escuro embateu contra o auxiliar
e lançou-o por terra com um estrondo, provocado pelo embate do escudo do soldado no solo pedregoso. Pelo canto do olho, Iskerbeles viu uma lâmina subir e desferir três golpes, antes de uma mão lhe pegar
no braço e o levantar; contemplou o rosto sorridente do homem que tinha apelado à morte de Aufídio no seio da multidão.
— Bons olhos te vejam, Caleco, meu amigo. — Cumprimentos, depois — soltou o homem, ofegante. — Primeiro, matar os romanos.
Ajudou Iskerbeles a colocar-se a uma distância segura e correu de volta ao grupo envolvido na refrega ao cimo do outeiro. No meio da poeira já havia alguns homens derrubados, e três deles eram soldados.
Os seus camaradas combatiam agora costas com costas, junto ao centurião. Mas estavam em grande desvantagem numérica, e a selvajaria destemida dos atacantes não permitia outro desfecho. Um a um foram separados,
derrubados e aniquilados num frenesim de golpes de espadas e estocadas de lanças, até que só o centurião e dois dos seus homens ainda sobreviviam, agachados e de olhar atento aos homens que os rodeavam,
de armas aperradas, prontos a enfrentar qualquer ataque. Como que de comum acordo, os dois lados afastaram-se ligeiramente, e os vinte e tal assaltantes ainda de pé estabeleceram um anel em torno dos
três auxiliares, mantendo-se a uma distância de duas espadas. Todos estavam esbaforidos, e procuravam recuperar o fôlego para prosseguir a contenda.
— Larguem as armas! — intimou Iskerbeles.
Os lábios do centurião arreganharam-se com desdém mas, antes que pudesse responder, um dos seus homens deixou cair a espada e largou o escudo, que caiu ao lado da lâmina. O seu camarada olhou para o centurião
por momentos, mas resolveu imitá-lo.
O centurião fungou. — Cobardes de merda... — Rende-te! — ordenou Iskerbeles. — Agora mesmo, ou morres! O oficial rangeu os dentes, ainda a rodar lentamente para cobrir todos os ângulos, enquanto os dois
sobreviventes do grupo da escolta se afastavam dele. Suspirou, frustrado, enquanto se endireitava e lançava a espada e a vareta aos pés de Iskerbeles.
— Podes escapar por agora, mas depressa estaremos no teu encalço, e todos vocês serão apanhados como cães.
— A sério? — Iskerbeles sorriu. — Veremos isso. Caleco, tira-me estas correntes.
O outro homem aproximou-se e extraiu os pinos do aro do pescoço e dos das algemas das duas mãos, antes de se dobrar para fazer o mesmo aos aros em volta dos tornozelos do seu chefe. Iskerbeles massajou
com cuidado os vergões vermelhos que se lhe tinham formado na pele, enquanto contemplava os outros homens da sua aldeia.
— São doidos, todos vocês. Os romanos teriam ficado satisfeitos com o meu sangue, em troca da morte do agiota. Agora, vão querer matar-nos a todos.
— Só se tiverem ocasião para isso. — Caleco riu-se. Espetou um dedo na direção dos três auxiliares. — E se todos eles combaterem como estes cobardes de fígados pálidos, não temos nada com que nos preocupar.
Iskerbeles fez uma careta. — Eles têm homens muito melhores do que estes para enviar contra nós. Não se enganem quanto a isso. Se começarmos agora a luta contra Roma, será uma luta até ao fim. Só poderemos
triunfar se conseguirmos sobreviver durante o tempo suficiente para inspirar as outras tribos e conseguir que se unam a nós. — Fez uma pausa para deixar que as suas palavras seguintes produzissem todo
o efeito possível. — As possibilidades estão contra nós. Nós, e todo o nosso povo. Os romanos não se contentarão em perseguir-nos apenas a nós. Virão atrás de toda a gente. Das nossas mulheres e filhos
também. Meus amigos, estão preparados para enfrentar tudo isto? Pensem cuidadosamente nisso.
Caleco lançou a cabeça para trás e riu, antes de responder. — Achas que não falámos disso tudo? Todos e cada um de nós. Fizemos um juramento de que te libertaríamos, chefe Iskerbeles. Tu nos conduzirás
à vitória ou à morte.
Iskerbeles sugou o ar enquanto contemplava os rostos expectantes à espera da sua reação. Só então abanou a cabeça.
— Loucos... Que assim seja, então. Até à vitória, ou até à morte. Caleco lançou o braço com a espada ao ar, e um grito soltou-se dos seus lábios. Os outros imitaram-no, enquanto Iskerbeles rolava o pescoço
e fletia os músculos. Abaixou-se para pegar na espada do centurião e examinou a arma.
Era bem equilibrada, e o punho de marfim estava bem polido pelo uso. A lâmina estava cuidada e tinha um gume afiado, e ele assentiu em aprovação enquanto acenava ao centurião.
— Conheces bem o teu mister. — Conheço, sim. E sei também que daqui a pouco tempo a terei de volta. Por Mitra, juro-o.
— Romano, ele não virá ajudar-te. Os nossos deuses cuidarão disso. E se tal não funcionar, eu e os meus amigos trataremos do assunto.
O centurião fungou, pouco impressionado. — Vocês? Não passam de um bando de camponeses que fedem a merda de cabra e suor. Desta vez apanhaste-nos de surpresa, admito, mas para a próxima estaremos prontos,
e nessa altura verás o que podem realmente os soldados romanos.
— Talvez. — Iskerbeles olhou na direção do portão da cidade e notou que as sentinelas tentavam perceber o que se passava no cimo da colina, pondo as mãos em pala nos olhos. Uma delas virou-se de repente
e correu pelo portão, para dar o alarme.
— Será melhor irmo-nos daqui. Temos de chegar às colinas antes que mandem alguém atrás de nós.
— Já pensei nisso. — Caleco virou-se para a estrada e fez um sinal com a mão, agitando-a de um lado para o outro. De imediato, os homens que tinham estado a fingir que eram comerciantes de cavalos saltaram
para as selas e conduziram os animais pela encosta acima. — Estaremos a quilómetros daqui antes que eles levantem aqueles gordos traseiros de romanos e deem início a uma perseguição.
— Bem pensado. — Iskerbeles sorriu, com ar aprovador. Mas a sua expressão endureceu rapidamente. — Mas depois, o que será de nós? Vão queimar a nossa aldeia de cima a baixo, é certo. Teremos que pegar
nas mulheres e nas crianças e esconder-nos nas montanhas.
O seu camarada encolheu os ombros. — Não será fácil, mas nós conhecemos o território. Sobreviveremos. — Sobreviver? — O sobrolho de Iskerbeles franziu-se, enquanto ele pensava. — Não. Sobreviver não chega.
Não vou permitir que o nosso povo viva a ser constantemente perseguido como um bando de cães famintos. Isso não é digno de nós. Meus amigos, temos que lhes dar uma causa pela qual valha a pena combater.
Temos que levantar o estandarte da tribo e apelar a todo o nosso povo para se erguer e combater Roma. Se não conseguirmos expulsá-los da nossa terra, nunca deixaremos de ser apenas os seus escravos.
— Achas que podemos mesmo enfrentar Roma? — As sobrancelhas de Caleco arquearam-se, denunciando a surpresa perante a aspiração do seu chefe. Baixou a voz para não poder ser ouvido pelos outros homens.
— Perdeste o juízo? Não conseguimos derrotar Roma.
— Porque não? Não seríamos o primeiro povo da Hispânia a tentá-lo. E, se ganharmos, aposto que não seremos o último. Viriato e Sertório estiveram muito perto da vitória. Só falharam por terem sido traídos.
Eu não cometerei o mesmo erro. — Os olhos do chefe brilhavam de fúria. — Além disso, a província está madura para a revolta. O nosso povo não é o único a sentir-se esmagado debaixo da bota do inimigo.
Há uma fome de revolta, e será esse apetite que vamos alimentar, meu amigo. O nosso exemplo dará coragem a todos os que odeiam Roma... Mas não é o momento de discutir este assunto. Mais tarde, depois
de termos conduzido o nosso povo para lugar seguro.
Caleco anuiu, e estava a ponto de se voltar para os cavalos que se aproximavam quando se deteve e fez um gesto na direção dos três sobreviventes da escolta.
— E quanto a estes? Iskerbeles contemplou o centurião e os seus camaradas por momentos, antes de decidir.
— Liquidem os soldados. Quanto ao centurião, seria uma pena não aproveitar a cruz e estes pregos...
Porto de Ostia, a um dia de marcha de Roma
Amigo, o que se passa ali? — indagou Macro o estalajadeiro, enquanto acenava na direção da turba inebriada ao fundo do bar, o qual ostentava o nome de ”O Tesouro de Neptuno”. Vários homens conversavam
em tons excitados, enquanto partilhavam um grande jarro de vinho. Um par de prostitutas do próprio bar tinham-se juntado à festa, e sentavam-se ao colo dos homens, tentando conseguir uns copos e depois
mais algum trabalho, se tivessem sorte.
Sem responder à questão, o homem, um indivíduo de ar gasto, com uma pala sobre um dos olhos, fixou o seu olhar diminuído sobre o novo cliente, e lançou um palpite.
— Acabadinho de sair de um barco, não? Macro anuiu em resposta, e acenou na direção do seu companheiro, alto e desengonçado, que usava a bainha da capa para limpar o assento de um banco junto à entrada.
Cato conseguiu eliminar boa parte da porcaria peganhenta com um gesto rápido e decidido e sentou-se, expondo a silhueta contra a brilhante luz do exterior. A rua estava animada, e os gritos das gaivotas
a voltear em busca de comida pelo brilhante céu azul sobrepunham-se ao burburinho de vozes e gritos dos vendedores ambulantes. Estava-se ainda a meio da manhã, mas o calor já era opressivo, e a sombra
do interior da estalagem fornecia um agradável alívio do sol impiedoso.
— Isso mesmo. Precisamos de uma bebida antes de apanhar um barco que suba o Tibre até Roma.
— Barco? Há de ter muita sorte. Não há espaço nos barcos. Vai haver um feriado na capital, daqui a poucos dias. Por isso, todos os barcos já estão carregados, de vinho, guloseimas e turistas. Terá que
ir pela estrada, meu amigo.
Está sozinho?
— Não. Sou eu e ali o prefeito. — Prefeito? — O olhar do homem arregalou-se, antes de se semicerrar enquanto calculava o lucro que podia obter com estes novos clientes. Não exibiam grandes sinais das
patentes que detinham, nem de terem os bolsos cheios. Os dois homens vestiam túnicas simples e as capas militares por cima. O mais baixo tinha calçadas umas sólidas botas militares, mas o seu companheiro,
o prefeito, usava umas botas de pele de vitela, vermelhas e de aspeto caro. Os dois levavam ao ombro pequenas sacolas, cujas formas arredondadas denunciavam a presença de bolsas bem recheadas. O estalajadeiro
resolveu lançar um sorriso, mostrando uma boca desdentada.
— É sempre um prazer servir senhores de tão elevada categoria. Portanto, ali está um prefeito, e quanto a si? A mesma patente?
— Eu? Não. — Macro devolveu-lhe o sorriso. — Eu trabalho para viver. — Bateu no peito. — Centurião Macro. Ultimamente na Décima Quarta Legião, a servir na Britânia, e antes disso na Segunda Augusta, a
melhor legião de todo o exército. Então, voltando à questão, o que se passa? Toda a cidade parece estar muito animada.
— E porque não haveria de estar, senhor? Devia saber o motivo, como toda a gente, sobretudo estando de regresso da Britânia. É sobre o tal rei Carátaco, que tem dado tantas dores de cabeça aos nossos
generais.
Macro suspirou. — Não preciso que mo digam. O sacana era tão escorregadio como uma enguia, e tão feroz como um leão. Foi muito bom termos finalmente conseguido derrotá-lo. Mas o que há com ele? Da última
vez que ouvi falar do Carátaco, as notícias diziam que ia ser enviado para Roma, bem acorrentado e enjaulado.
— E assim foi, senhor. Ele e a família têm estado presos na Mamertina nos últimos seis meses, enquanto o Imperador decidia o que havia de fazer com ele. Agora já está resolvido. O Cláudio decidiu fazer
uma parada com eles pelas ruas de Roma, e levá-los ao templo de Júpiter, onde serão executados por estrangulamento. Vai ser uma festa e tanto. Sua Senhoria vai oferecer um festim a toda a cidade, e apresentar
cinco dias de combates de gladiadores e corridas de quadrigas no Circo Máximo. — O homem fez uma pausa, e encolheu os ombros. — Evidentemente que Ostia vai ficar tão parada como um túmulo, quando isso
suceder. Mau para o negócio. Portanto, tenho que aproveitar para vender tudo o que puder enquanto posso. O que vai desejar, senhor?
— O que é que tens de melhor? Merecemos uma boa pinga para celebrar o regresso a casa. Nada desse mijo aguado que vendes aos teus clientes habituais quando acabam de sair de um barco, sim?
O outro adotou um ar ofendido e respirou fundo antes de empertigar o pescoço, indignado.
— Senhor, o meu estabelecimento não é desses. Quero que saiba que Lúcio Escabaro serve alguns dos melhores vinhos que se podem encontrar nos bares e similares de toda a Ostia.
O que não é grande coisa, pensou Macro. Aquele bar, tal como todos os outros que se apinhavam nas ruas próximas ao cais, desfrutava de um comércio ininterrupto com os recém-chegados ávidos de uma bebida,
bem como com aqueles que precisavam de um último trago antes de partirem em viagem. E esse género de clientes tendia a preocupar-se mais com os efeitos do que com o sabor dos produtos que lhe eram fornecidos.
— Então — voltou a tentar. — Qual é o melhor que tens? O outro acenou na direção de uma fila de ânforas na prateleira mais alta por trás do balcão.
— No mês passado recebi uma boa pinga que veio de Barcino. — Boa colheita? — Do melhor, senhor. Macro anuiu. — Então venha um jarro e dois copos. Limpos, sim? O prefeito tem as suas exigências.
O estalajadeiro franziu o sobrolho. — Também eu as tenho, senhor. Alguma coisa para comer? — Talvez, mais tarde. Quando o vinho nos tiver acalmado as barrigas, depois desta viagem desde Massília. Apanhámos
uma bela tempestade.
— Muito bem, senhor. Vou mandar uma das raparigas preparar alguma coisa apetecível, se precisarem de comida. E já agora, por falar em raparigas: são limpas, têm apetite, e conhecem todos os truques. A
um preço justo.
— Estou certo disso. Pelo menos quanto às duas últimas qualidades que mencionaste. Não sobrevivi a três campanhas na Britânia para agora ser derrubado por um esquentamento. Portanto, desta vez, vou dar
descanso às tuas meninas, obrigado. Traz a bebida ali para a mesa.
Macro virou-se e dirigiu-se à mesa onde Cato se tinha instalado, as costas apoiadas ao reboco estalado e sujo da parede. A expressão do jovem era sombria, e Macro sentiu alguma pena do amigo. Havia poucos
meses, ainda na Britânia, Cato tinha recebido a notícia da morte da sua esposa. O regresso a casa na capital ia reacender a terrível dor que tinha sofrido. Júlia era uma miúda adorável, refletiu Macro,
e também ele sofria com a sua partida. Mas nem tudo estava perdido. Ela tinha dado à luz um rapaz que podia ainda oferecer algum conforto a Cato, quando visse o filho pela primeira vez. Pelo menos tinha
isso, e algo dela viveria no jovem Lúcio. Obrigou-se a sorrir, enquanto se sentava diante de Cato.
— O vinho já aí vem. O melhor que este antro de pulgas nos pode oferecer. Vai ser bom lavar o sabor do sal da boca. Nunca fui grande adepto de viagens por mar. Sobretudo depois daquela vez em que naufragámos
ao largo de Creta. Lembras-te?
— Como poderia eu esquecer? Macro amaldiçoou-se em silêncio. Nesses tempos, Cato estava a viver os primeiros dias da sua paixão por Júlia. Apressou-se a mudar de assunto.
— Novidades interessantes. Acabo de as receber do estalajadeiro. Diz ele que o Cláudio decidiu liquidar o Carátaco e a família toda. É por isso que aquela malta ali ao fundo está a celebrar. O Imperador
vai oferecer uma festa de arromba para celebrar o momento.
Cato respirou fundo. — Uma execução? Não está de todo certo. Ele merece melhor sorte, mesmo que tenha sido nosso inimigo. Combateu de forma honrada. Executá-lo como se fosse um criminoso não oferece a
Roma qualquer benefício. Quando essa notícia chegar às tribos que ele comandou na Britânia, não vão ficar nada contentes. Teremos muita sorte se não os levar a uma nova revolta declarada.
— Talvez — respondeu Macro. — Mas talvez seja também possível que se tornem mais inteligentes e percebam que não vale a pena desafiar a vontade de Roma. A morte do Carátaco vai demonstrá-lo de forma clara.
Quando souberem do seu destino, ficarão dispostos a manter as cabeças baixas e a fazer aquilo que lhes é ordenado.
Ambos ficaram em silêncio por momentos, até Cato limpar a garganta. — Mas não fico surpreendido, no fim de contas. Com os acontecimentos recentes na Britânia, o Imperador Cláudio e os seus conselheiros
hão de querer aproveitar a ocasião, tanto quanto possível. As derrotas nunca caem muito bem na populaça.
— É verdade — anuiu Macro de forma enfática. — As tribos das montanhas deram-nos uma boa sova. Graças a Fortuna por termos conseguido escapar com tantos homens como conseguimos.
O estalajadeiro apareceu junto a eles com um pequeno jarro de vinho e duas taças de cerâmica, e pousou-os na mesa com força.
— O melhor da casa. Reservado para os clientes de qualidade que frequentam o meu estabelecimento, como os senhores.
Macro pegou na taça mais próxima e inspecionou-a rapidamente. — Portanto, estas não devem ter grande uso.
O outro pareceu disposto a responder, mas pensou melhor e esticou a mão. — Dez sestércios, senhor.
— Dez? — Macro deitou-lhe um olhar inamistoso. — Isso é uma roubalheira descarada.
— Não, senhor. Oferta e procura. Com essa grande festança em Roma, o palácio está a comprar todo o vinho a que consegue deitar a unha, até à última gota.
Cato pigarreou. — Pague lá ao homem. — Não, aguenta lá um minuto. Ele está a tentar aldrabar-nos. — Aqui está. — Cato meteu a mão à bolsa, extraiu umas moedas e colocou-as na palma aberta do homem. —
Podes ir.
Os dedos do estalajadeiro fecharam-se rapidamente em torno da prata, e ele dobrou-se todo a agradecer, recuando para o bar antes que Macro pudesse continuar a protestar. O centurião soprou as bochechas,
mas deixou passar sem comentário a atitude do amigo. Em vez disso pegou no jarro, tirou-lhe a tampa de cortiça com um estalido seco e cheirou o conteúdo.
— Surpreendentemente agradável.
Encheu as taças, empurrou uma com cuidado na direção de Cato e ergueu a sua.
— Aos camaradas ausentes. Cato ergueu a sua taça. — Camaradas ausentes.
Os dois beberam um trago e ficaram em silêncio, enquanto recordavam a mais recente campanha através das montanhas dos deceanglos. Tinham feito parte da coluna que avançara para tentar conquistar a ilha
dos druidas, Mona.
Em vez disso tinham caído numa armadilha e sido forçados a retirar enquanto sucessivas tempestades de neve se abatiam sobre eles. O legado que comandava a coluna e milhares dos seus homens tinham perecido
na luta desesperada para alcançar a segurança da base romana. As unidades de Cato e Macro haviam formado a retaguarda, e só um punhado dos seus homens tinha sobrevivido.
O novo governador da província, Dídio Galo, ordenara-lhes que regressassem a Roma para apresentarem um relatório completo do desastre, enquanto ele tentava manter o controlo da fronteira. Dez anos depois
da invasão da Britânia, muitas das tribos nativas estavam ainda muito longe de se poderem considerar conquistadas. E agora aquele último contratempo ameaçava minar a posição do Imperador, que se tinha
atribuído um triunfo popular pela vitória sobre os bretões, poucos meses depois de as primeiras tropas terem desembarcado na ilha, uma década antes.
Que triunfo tão vazio se revelara aquele, considerou Cato, enquanto sorvia mais um pouco da bebida. Havia muito boas razões para o Imperador e os seus conselheiros terem escolhido aquele momento para
celebrar a derrota e captura de Carátaco. Era a política costumeira: sufocar as más notícias com outras de melhor índole, e esperar que a turba estivesse de ressaca e deixasse passar o embuste. Ou sequer
se preocupasse com isso. Pão, vinho, circo e engano — o método mais que comprovado para manter o povo de Roma distraído ao ponto de se conservar dócil. Ia sem dúvida apreciar e gozar o espetáculo de abertura,
onde os seus inimigos seriam executados. Mas era um fim desadequado e imerecido para Carátaco e a sua família, e tal perspetiva deixava o coração de Cato pesado como chumbo.
Pressentiu alguém a aproximar-se da mesa e levantou o olhar, dando com um dos foliões da outra ponta do bar. Um homem com quarenta e poucos anos, calculou. Envergava uma velha túnica militar, e uma fita
de couro mantinha presa uma espessa massa de cabelo riscado de cinzento. Na mão esquerda tinha uma taça de cerâmica, e a direita não existia; o coto na ponta do antebraço estava coberto por uma dobra
de couro, da qual se projetava um gancho de ferro, à laia de dedos.
Cato engoliu o vinho que tinha na boca. — Sim? — Desculpe-me, senhor. Mas ali o velho Escabaro disse-me que vocês os dois acabam de regressar da Britânia. É verdade?
— Sim. E então? — Pensei que podia vir pedir-vos algumas notícias do que se está a passar por lá. Eu estava na Nona Legião, naquele primeiro ano da invasão. Perdi a mão na batalha travada às portas de
Camulodonum.
Cato assentiu. — Lembro-me bem dessa batalha. Foi apertada. O Carátaco quase nos derrotou nesse dia.
— É bem verdade, senhor. — Como é que te chamas? — Marco Salino, senhor. — O homem colocou-se automaticamente em sentido ao dirigir-se a um superior hierárquico. — Optio, na Sexta Centúria, Primeira Coorte,
Nona Legião... Quero eu dizer, fui, em tempos.
— À vontade, optio. — Cato sorriu. — O centurião e eu mesmo teríamos toda a honra em partilhar um copo de vinho com um antigo camarada da Nona. Senta-te.
Macro remexeu-se para lhe dar espaço, e Salino hesitou um momento, antes de aceitar a oferta. Os seus companheiros mantiveram-se a alguma distância, enquanto Macro enchia a taça ao novo amigo. Salino
acenou um agradecimento, e um fugaz olhar de preocupação passou-lhe pelo rosto enquanto ele olhava em volta da estalagem. Baixou a voz quando perguntou:
— Corre o boato de que sofremos uma pesada derrota. É verdade? Cato manteve-se em silêncio por momentos, deliberando até que ponto devia ser discreto. Mas parecia-lhe pouco provável que houvesse um informador
do palácio num antro tão escondido, a não ser que as coisas tivessem mudado desde a última vez que passara em Ostia. Além disso, ele e Macro já estavam com certeza na lista de alvos do Imperador para
despejar a sua ira quando fossem fazer o seu relatório sobre a situação na Britânia. Duvidava que responder com veracidade à pergunta do veterano tornasse as coisas piores.
— É verdade. Perdemos o equivalente a uma legião, cinco mil homens, mais metade disso de auxiliares, bem como o legado da Décima Quarta. O inimigo empurrou-nos para fora das montanhas, e por esta altura
é bem capaz de já estar a lançar ataques no interior da província.
Salino não conseguiu ocultar o choque, e o mesmo se passou com os seus companheiros. O velho soldado abanou a cabeça.
— Como foi tal coisa possível? — Nunca devia ter acontecido — confirmou Macro. — A estação já ia adiantada, tínhamos pouca informação sobre o inimigo ou sobre o terreno em que avançávamos. Começou a nevar
e depois o inimigo cortou-nos as linhas de abastecimento. Um desastre do caralho, do princípio ao fim.
— Mas então, senhor, porque é que a campanha foi lançada? — A mesma velha razão de sempre. Um graduado decide pôr a posteridade à frente da realidade, e acaba por nos conduzir a todos para um charco repleto
de merda. Neste caso, foi o legado Quintato. Quando o velho governador morreu, o Quintato achou que podia ficar com toda a glória, antes que chegasse um novo governador.
— Esses cabrões lixam-nos sempre — rosnou Salino. — Alguém devia pagar com a cabeça por uma asneira dessas.
— Já aconteceu. O Quintato tombou em combate. No fim até se portou bem, como um verdadeiro soldado. Uma pena que tenha levado com ele tantos dos nossos camaradas. Foi a pior derrota que sofremos desde
que pusemos um pé na Britânia.
— Espera aí — soltou outro dos homens na sala. — Como é que isso pôde acontecer, agora que pusemos as mãos no Carátaco? Pensava que ele era o comandante dos nativos! Têm-nos dito que, agora que ele está
preso, a coisa está praticamente terminada.
Macro sorriu. — Ora, amigo, vamos lá. Acreditas em tudo o que lês na gazeta? — Se o Carátaco ainda estivesse por lá, teria sido muito pior — comentou Cato. — Bem pior. Temos que agradecer esse facto.
Ele manteve-nos em bicos de pés por uns bons dez anos, antes de conseguirmos derrotá-lo. É um inimigo de Roma, sim, mas deu-me todas as razões para merecer o meu respeito.
Os olhos de Salino rebrilharam. — Defrontou-o, senhor? Em batalha? Macro soltou uma valente gargalhada, enquanto voltava a pegar no jarro e enchia a taça.
— Irmão, fomos nós quem o conseguiu capturar. Eu e o prefeito.
Aprisionámo-lo numa batalha, a ele e à família.
Os olhos do veterano arregalaram-se, e depois ele sorriu. — Porra, então vocês são um par de heróis. Ouviram isso, rapazes? Estamos em presença dos homens que apanharam o maior inimigo de Roma! À sua,
centurião, e a si, senhor. — O homem deu uma cacetada na própria cabeça com o gancho de ferro, e piscou o olho. — E nem sequer sei os vossos nomes. Senhor?
— Centurião Lúcio Cornélio Macro, e o prefeito Quinto Licínio Cato, ao teu serviço.
O veterano levantou a taça. — Rapazes, um viva ao centurião Macro e ao prefeito Cato! Ouviu-se um coro ensurdecedor dos seus camaradas, que ergueram também as taças, derramando líquido, antes de entoarem
os nomes dos seus novos heróis e de esvaziarem os recipientes. Macro devolveu-lhes o brinde, enquanto Cato se forçava a sorrir, tendo bem presente o facto de que, embora tivessem de facto capturado o
comandante inimigo, Carátaco tinha escapado à sua custódia, e tivera que ser encontrado e novamente capturado. Um assunto que preferia não ver mencionado. Acenou em agradecimento a Salino e aos outros.
O veterano resolveu dar-lhe atenção, e inclinou-se para ele.
— Então como é ele, esse Carátaco? Já ouvi dizer que é um verdadeiro gigante, e que tem o corpo coberto daquelas tatuagens de merda de que os nativos gostam, e que leva à sela as cabeças dos homens que
derrotou. E que afiou os dentes. Isso, e que tomou parte nos sacrifícios humanos que os cabrões dos druidas fazem. É verdade?
Cato não evitou uma breve gargalhada. — O que é que tu achas? Isso parece-te a descrição de algum dos homens daqueles que combatemos na Britânia? Ou noutra parte qualquer do Império, já que falamos nisso?
O Carátaco é apenas um homem, um soldado, como tu e eu. Não é nenhum gigante, não é um selvagem dos montes, nem sequer se pode dizer que seja um bárbaro. Só um homem, que liderava o seu povo na luta contra
invasores que foram conquistar a sua terra e reduzi-lo à escravatura. No lugar dele, teríamos feito o mesmo... E isto é tudo o que tenho a dizer sobre esse tema — concluiu Cato, e vazou o copo de um trago,
antes de se dedicar a contemplar o depósito no fundo da taça.
Salino fitou-o de boca ligeiramente aberta, e depois virou-se para Macro, que coçou o queixo antes de oferecer uma desculpa.
— Foi uma longa viagem. Adorava ficar à conversa com um velho camarada, mas temos assuntos a tratar em Roma. Portanto, o melhor é acabarmos as bebidas e pormo-nos a andar.
O veterano percebeu a ideia, esvaziou a taça e levantou-se do banco. — Foi uma honra. Espero sinceramente que o Imperador vos dê a recompensa que bem merecem.
— Seria sem dúvida uma agradável mudança — ripostou Macro, de forma vaga. — Mas essa história terá que ficar para outra altura, irmão Salino.
— Nesse caso, se regressarem por Ostia, procurem por mim aqui na estalagem. Ofereço-lhe um jarro de bom vinho, senhor, à sua escolha.
Macro sorriu abertamente. — Sendo assim, podes ter a certeza que volto.
Estendeu a mão e trocou um aperto de antebraço com o veterano, antes de este dobrar o pescoço na direção de Cato.
— Espero voltar a vê-lo, senhor. — O quê? — Cato levantou o olhar, lembrou-se de onde estava e acenou. — Sim, claro.
Enquanto Salino conduzia os seus camaradas de volta ao posto que ocupavam na ponta do bar, numa disposição um tanto mais calma, Macro soltou um profundo suspiro.
— Bom trabalho. Acabaste com a festa num ápice. E eu a pensar que íamos passar a noite a beber à conta de outros.
Cato abanou a cabeça lentamente. — Desculpe. Estava muito longe daqui. Macro suspirou, resignado. — Miúdo, é perfeitamente natural que sintas a falta dela. Eu entendo. — Sim... — Cato aclarou a garganta
e prosseguiu. — E depois, há o Lúcio. Sou um pai que nunca viu o filho. Não sei bem como reagir. Não sei bem o que sinto por ele. — Olhou para cima. — Macro, meu amigo, não tenho ideia de como lidar com
isto. Quando estávamos na Britânia, ansiava por regressar a Roma. Mas agora, que cá estamos, nada me faz pensar que estou em casa. Nada tenho a fazer aqui senão lamentar-me, e o mundo parece um sítio
muito escuro... Desculpe. — Sorriu, sentindo-se culpado. — Devo fazer-lhe lembrar aquele patético recruta que conheceu naquela tarde de frio inverno na fronteira do Reno, que não conseguia parar de tremer.
Macro ergueu uma sobrancelha. — Bom, não ia falar nisso, mas... Olha, deixa-me lá encher-te o copo. Cato suspirou. — Acha que isso vai mesmo ajudar? — Quem sabe? Mas de certeza que não vai piorar as coisas.
Pois não? Cato lá conseguiu soltar uma risada, e beberam mais um pouco antes de Macro prosseguir.
— Miúdo, já te conheço há mais de dez anos. Ao longo desse tempo, foram poucas as coisas que não conseguiste enfrentar. Não houve nenhum desafio que não fosses capaz de enfrentar e ultrapassar. Eu sei
que isto é diferente, e que te parece que algum sacana te rasgou todo por dentro, mas a vida continua. Sempre. A Júlia era uma miúda adorável. E sei que a amaste tanto como a própria vida. Via-se isso,
eu via isso. E, como teu amigo, partilho a tua dor. Mas tens um filho que precisa de ti. E outras campanhas virão, onde eu e os homens que comandas vamos também precisar de ti. Percebes o que estou a
tentar dizer-te? — Macro esfregou a testa enrugada. — Foda-se, não tenho jeito com as palavras. Jeito nenhum, de todo.
Cato sorriu. — Díz aquilo que é preciso dizer. E eu acho que percebo. Embora não tenha a certeza de que você o perceba.
O amigo fez uma careta, não respondeu, e depois soltou um lamento. — Bom, vou ficar-me pelas coisas de soldado, então. Pelo menos disso percebo eu bem.
— Oh, sim. Não há dúvidas quanto a isso. Depois de uma breve pausa, Macro levantou o jarro e agitou-o; lá dentro havia um resto de líquido a dançar de um lado para o outro. Despejou-o na sua taça a esvaziou-a
de um trago, antes de a pousar, enquanto fazia estalar os lábios.
— Ora bem. Acabou o tempo das lamentações. Vamos é fazer-nos ao caminho.
A excitação que reinava na capital era evidente, vários quilómetros antes de
Cato e Macro porem sequer os olhos nas muralhas de Roma. A estrada de Ostia estava cheia de carros, trens de mulas e pessoas a pé, ansiosas por participar nas celebrações que iam ter lugar para marcar
a derrota e captura do rei Carátaco. Apesar de o evento não ter lugar senão daí a três dias, não haveria entretanto falta de diversão no fórum nem nas ruas que o rodeavam. Os mercados cresceriam com novas
bancas a vender comida e guloseimas, artigos de luxo como perfumes e especiarias do Oriente, e lembranças do evento, com a habitual série de artigos militares forjados que os vendedores impingiriam como
armamento celta capturado, ou artefactos de origem druídica. As famílias e indivíduos que se dirigiam à capital procurariam amigos e parentes que os pudessem acomodar, ou então arranjariam um lugar para
dormir na rua até ao fim das festas.
Em tempos normais, Roma já tinha gente a mais e era malcheirosa, e Cato imaginava facilmente a forma como as coisas iam piorar com aquele influxo de visitantes, sobretudo com o calor que se fazia sentir.
Já tinham passado muitos dias desde que a chuva caíra pela última vez. Os dois soldados tinham sofrido com o calor ao longo da maior parte da viagem por mar, e o mesmo estava a suceder-lhes agora em terra
firme. A estrada para a capital encontrava-se rodeada por uma nuvem de poeira fina e leve que se depositava em qualquer superfície e irritava os olhos e as gargantas dos viajantes. Mas mesmo o calor sufocante
e a poeira não eram suficientes para acalmar os espíritos de todos os que percorriam a estrada pavimentada. Cato e Macro haviam deixado instruções a um agente em Ostia para que as suas bagagens fossem
enviadas para a casa do prefeito, e tinham-se feito à estrada a pé. Os longos anos de marchas com armaduras e equipamento faziam com que ultrapassassem facilmente os civis que se arrastavam ao longo do
caminho. Fizeram uma paragem numa estalagem à beira da estrada, a abarrotar de gente, e partilharam um banco à sombra de uns pinheiros com um optio da Guarda Pretoriana que regressava de uma licença.
— Britânia, com que então? — O guarda inchou as bochechas. — Isso é que é um lugar complicado.
— Complicado, podes dizê-lo — anuiu Macro com ênfase, enquanto coçava o tecido esbranquiçado que marcava a cicatriz que tinha por cima do joelho, resultado de um ferimento de flecha que sofrera na campanha
mais recente.
Ainda lhe fazia comichão de vez em quando, com uma sensação quente e irritante. O guarda reparou no gesto e acenou.
— Arranjou essa por lá? — Um fedelho com um arco de caça, que resolveu tentar um tirinho. Quase deu cabo de mim. Não seria exatamente o fim glorioso que um centurião com mais de vinte anos de serviço
tem o direito de esperar. — Macro soltou uma gargalhada. — Mas a verdade é que a maior parte de nós não tem oportunidade de partir para o mundo das sombras numa aura de glória. Dez para um, aposto que
o mais provável é ser uma ferida estúpida, ou uma doença qualquer, ou um esquentamento, a dar cabo de um gajo. E ainda tenho muito tempo para levar com uma delas. Ainda assim, se puder escolher, fico
com o esquentamento.
— E com toda a razão. — O guarda riu-se e ofereceu-lhe a mão. — Gaio Ganico, senhor.
Macro tratou das apresentações, é sorveu um gole de água para limpar a poeira da garganta, antes de a cuspir para o lado.
— Claro, para vocês, pretorianos, a vida é um descanso, e a maior ameaça à vossa existência tranquila é mesmo um esquentamento. Acredita, sei do que falo por experiência própria.
Ganico franziu uma sobrancelha. — Serviu na Guarda? Macro pressentiu Cato a retorcer-se ao seu lado, pouco agradado com o rumo da conversa. Tinham ambos passado algum tempo como pretorianos, numa operação
secreta, havia já alguns anos. O tipo de trabalho que era melhor esquecer depois de cumprido o objetivo. Resolveu acelerar para ultrapassar o deslize.
— Ora, vamos lá! Todos os soldados do Império conhecem perfeitamente o estilo de vida que vocês levam. A passear por Roma nas vossas túnicas e togas brancas, os melhores lugares nos jogos, e os primeiros
na fila para receber quando o Imperador resolve distribuir alguma prata pelas tropas. Não tenho razão?
Ganico teve a boa graça de assentir. — O mais perto que vocês chegam de alguma ação a sério é quando têm que se livrar sem alarde dos que vão parar à lista negra do Imperador, ou da sua mulher, ou até
daqueles libertos que o rodeiam.
— É bem verdade, senhor — respondeu Ganico, pensativo. — E deixe-me que lhe diga, tem havido bastante desse género de trabalho nos últimos meses.
— Oh? — Cato debruçou-se, olhando em redor de Macro. — Então o que tem sucedido?
— São aqueles dois libertos gregos do palácio. O Pallas e o Narciso. Estão os dois a lutar pelo topo desde que me lembro. Costumava ser uma luta sem sangue. Mas com o Imperador a ficar cada dia mais velho,
põe-se a questão de quem virá a seguir. O Pallas quer ver o seu preferido, o Nero, no trono; o Narciso põe as suas esperanças no jovem Britânico. Sabem muito bem que o Cláudio não dura muito mais tempo.
Sobretudo se receber uma ajudinha daquela mulher dele, a Agripina. — O homem olhou em volta, cauteloso, antes de baixar a voz. — Correm rumores de que ela e o Pallas se dão muito bem, e muito apertadinhos.
O facto é que ela aposta na influência que ele tem nos bastidores, e ele precisa dela para ter a certeza de que será o sobrevivente entre os conselheiros do Cláudio quando, como é mais do que provável,
o Nero envergar o púrpura. Mas não foi de mim que ouviu esta história, senhor.
— Compreendo — assinalou Cato. — Portanto, as coisas estão a aquecer? — Pode crer. O Narciso tem usado os seus agentes para liquidar os apoiantes do rival, e os senadores próximos da Agripina. Entretanto,
ela e o Pallas têm feito pressão sobre o velho para favorecer o Nero relativamente ao Britânico, e ao mesmo tempo vão-se livrando de todos os seguidores deste a que conseguem deitar a mão. — O pretoriano
abanou a cabeça. — Tem sido um verdadeiro banho de sangue, acreditem. E portanto, como podem imaginar, toda a gente em Roma anda nervosa. Bem podia ter escolhido melhor ocasião para voltar a casa, senhor.
Pelo menos, sendo soldados, devem estar em relativa segurança. E se querem um conselho, mantenham-se longe de senadores e dos seus esquemas. E, mais importante ainda, não se aproximem sequer de qualquer
um daqueles pulhas, o Pallas e o Narciso.
Cato e Macro trocaram um rápido olhar entendido. Fora Narciso quem os obrigara a servir os seus propósitos em várias ocasiões no passado. Cato tinha boas razões para detestar o liberto imperial, mas ainda
mais razões para odiar e temer Pallas, que em tempos planeara a morte do Imperador, e a dos dois amigos ao mesmo tempo.
Ganico abriu a sacola e extraiu do interior um pão e um naco de carne de porco fria.
— Senhores, querem partilhar estas vitualhas comigo? Não é grande coisa, mas seria uma honra.
— Obrigado. — Cato esticou a mão, e Ganico cortou-lhe uma boa fatia de pão e passou-lha, junto com uma grossa tira de carne. Repetiu o gesto com Macro, e os três mastigaram em silêncio por momentos, enquanto
observavam as pessoas e os carros e carroças puxados por mulas, a passar. Por fim, Ganico limpou a garganta e bebeu do cantil.
— Senhor, se me permite a pergunta, vêm os dois de licença a casa? — Exatamente — retorquiu Cato, a cuidar de não se tornar desnecessariamente um tópico de conversa de Ganico com os seus camaradas. —
Descanso, recuperação, enquanto aguardamos por uma nova colocação.
— Imagino que existem famílias que vos aguardam ansiosamente aos dois. Cato anuiu. — Tenho um filho. Por ironia, a mãe do Macro está na Britânia. — A sério? — O guarda virou a sua atenção para Macro.
— O que anda uma mulher romana decente a fazer num lugar bárbaro como esse?
— É uma longa história — ripostou Macro, com a boca ainda meio cheia.
Engoliu e prosseguiu. — Mas a versão curta é simplesmente que ela é dona de uma taberna em Londinium. Eu sou dono de metade. Portanto, não tenho família em Roma, mas atrevo-me a dizer que vou arranjar
maneira de me sentir em casa.
Acabaram de comer, e enquanto Ganico foi à procura de um sítio fresco para fazer uma sesta, Cato e Macro regressaram à estrada. O calor da tarde era opressivo, e depressa o suor lhes escorria pelas caras,
enquanto eles percorriam quilómetro após quilómetro por entre as quintas bem cuidadas que ladeavam a estrada. Por fim, quando o Sol começou a mergulhar para o horizonte, a estrada descreveu uma curva
em torno de uma colina suave e a poucos quilómetros à sua frente avistaram os arredores de Roma, que se estendiam pela paisagem, cobrindo-a com um vasto manto de telhados avermelhados, sobre os quais
se erguiam as altivas estruturas de templos e palácios. Era um cenário que ambos os homens já tinham contemplado muitas vezes, mas ainda assim continuava a fazer acelerar o pulso de Cato, sempre que admirava
a capital do maior Império do mundo conhecido. Dali, do grande palácio que dominava o fórum, o Imperador e o seu pessoal controlavam terras que se estendiam da infinda extensão do oceano aos desertos
sequiosos do Levante. Povos de todas as cores, de todos os graus de civilização ou barbárie, enviavam o seu tributo para Roma e viviam sob as suas leis.
E era responsabilidade de homens como ele e Macro defender as fronteiras desse vasto território das tribos e reinos do exterior, que olhavam com inveja e hostilidade para o Império.
Cato conduziu o amigo para fora da estrada; pararam para apreciar a vista, enquanto limpavam a testa e bebiam um trago do cantil de Macro. O assombro do momento anterior tinha-se desvanecido, e Cato via-se
agora preso de um sentimento de apreensão. Algures nas entranhas daquela cidade densamente povoada, encontrava-se a casa que ele tanto tinha almejado partilhar com Júlia, o lar onde criariam uma família.
Mas ela estava morta, e os seus restos mortais deviam estar numa pequena urna, arrumada num nicho do frio mausoléu familiar pelo pai dela, o senador Semprónio. Tudo o que restava da animada, inteligente
e corajosa mulher que tinha conquistado o coração de Cato vivia agora no filho de ambos. Fora o nascimento de Lúcio a enfraquecer de forma fatal a mãe — o que lhe tinha acabado por provocar a morte. Essa
era a razão que levava Cato a temer que se viesse a desenrolar um amargo combate no seu coração, entre o ressentimento e o amor paternal, quando pela primeira vez contemplasse o filho, já com mais de
dois anos de idade.
— Vamos, meu irmão — incitou-o Macro, suavemente. — Já falta pouco. Cato não respondeu. — Tens a certeza de que me queres oferecer estadia na tua casa? Se quiseres ter algum tempo a sós, eu entendo. É
altura de conheceres o teu filho, e de fazeres o teu luto pela Júlia.
Cato abanou a cabeça, e tentou exibir uma face decidida. — Não. Já fiz o meu luto. É muito bem-vindo na minha casa. E atrevo-me a dizer que vou precisar da companhia.
— Muito bem, então. Mas aviso-te. O meu apetite tem vindo a crescer e a acumular-se. Sou bem capaz de comer o suficiente para te deixar sem casa e sem lar. Ainda estou com fome. Gaita, e de que maneira.
Quanto mais cedo pousarmos estas mochilas e nos instalarmos para passar a noite, melhor.
Regressaram à estrada; apesar de o entardecer se fechar sobre a paisagem e a última luz do dia banhar as colinas e a cidade num brilho morno, os veículos e os que seguiam a pé não fizeram qualquer pausa,
e prosseguiram, atraídos para a grande urbe que exigia ser alimentada em troca da diversão e das muitas delícias com que tentava os visitantes, que se contavam às dezenas de milhares. Ao longo da muralha
da cidade, à medida que caía a escuridão, surgiu o brilho espaçado de tochas, e viam-se mais luzes no interior da cidade — para lá da série de fogueiras no exterior dos portões, onde alguns viajantes
tinham interrompido a jornada para passar aquela noite. Agrupavam-se em círculos em torno dos fogos, e ouvia-se cantoria e gargalhadas das famílias que aproveitavam o ar fresco da noite.
Cato e Macro fizeram um derradeiro esforço, e quando o sopro de uma trombeta anunciava a passagem da primeira hora da noite, chegaram ao reforçado portão raudusculano, que dava acesso à cidade. Apresentaram
ao optio da guarda os selos militares, o que lhes permitiu evitar o pagamento da portagem, e passaram sob o arco do portão. Tinham decorrido quase três anos desde a última vez em que haviam estado em
Roma, e o cheiro a esgoto, a vegetais em decomposição, e o odor vagamente almiscarado e azedo da populaça deixou-os momentaneamente afetados. A linha da Via Ostiense prosseguia pelo bairro do Aventino,
densamente povoado, onde os blocos de habitação de péssima construção que se erguiam a alturas superiores aos de Ostia se debruçavam quase literalmente para a rua. A única luz provinha de lamparinas dispostas
aqui e ali, e a pouca claridade que se escapava das frestas de portas e janelas iluminava o caminho por onde seguiam os dois militares, no passeio que ladeava as lajes do pavimento da rua.
Ainda havia muita gente por ali, a circular por entre as carroças que seguiam aos solavancos sobre as pedras irregulares, e apesar de Cato, na sua túnica militar, não conseguir evitar sentir-se o alvo
de todos os olhares, a verdade era que ninguém parecia dar-lhe qualquer atenção, e o mesmo se passava com Macro.
Com isso veio uma familiar e ligeira sensação de ressentimento. Na Britânia, ele e Macro tinham comandado centenas de homens que os respeitavam, a eles e às patentes que detinham. Camaradas que haviam
derramado o seu sangue e dado as suas vidas para que o povo de Roma pudesse dormir sem receio de qualquer inimigo, e viver dos frutos das conquistas dos seus soldados. Contudo, as custosas vitórias alcançadas
por Cato e Macro e pelo exército da Britânia eram quase desconhecidas ali em Roma, e não mereciam mais do que uma nota na gazeta da capital, a qual por sua vez raramente era lida pela gente que andava
a cumprir as suas rotinas diárias. Podiam perfeitamente ser invisíveis. O pensamento pouco animador foi-se juntar à dor que lhe tolhia o coração enquanto passavam pela extremidade altaneira do Circo Máximo
e começavam a descer a colina na direção do fórum.
O centro da cidade estava fortemente iluminado por tochas e braseiros, e as ruas e espaços abertos encontravam-se repletos de gente que andava na pândega, de vendilhões, prostitutas e carteiristas, e
o chinfrim que faziam ecoava nas paredes dos templos e dos edifícios cívicos. Cato manteve uma mão firme na aba da mochila e prosseguiu com cautela, enquanto abriam caminho pelo meio do fórum. Ao seu
lado, Macro procedeu da mesma forma, apesar de os seus olhos se passearem famintos pelas mulheres encostadas à entrada dos bordéis. Algumas apregoavam os seus serviços ao notarem a passagem dos dois soldados,
mas a maior parte deixava-se estar de expressão quase anestesiada, fechada, maquilhada; mulheres ébrias ou completamente embrutecidas pelo infindo ritmo maquinal do trabalho que faziam.
— Olá, vocês os dois! — Uma mulher alta e loura, com um queixo pequeno e sorriso fácil, saiu-lhes ao caminho. — Soldados, não é? Ofereço preços especiais aos militares. Preços e serviços especiais. —
Piscou o olho a Cato, que fez menção de a rodear e prosseguir no seu caminho. Ao notar o movimento, ela virou-se para Macro e pegou na mão do centurião, antes que ele pudesse reagir. Tinha apreciado a
companhia de algumas mulheres ao longo do trajeto que o trouxera da Britânia, mas ainda sentia o familiar arrepio nas virilhas, e deteve-se para a examinar de perto.
— Gostas do que vês, é? — Ela sorriu de forma sabedora, segurou-lhe na mão e puxou-a para baixo, antes de a pressionar contra o monte peludo no meio das pernas. — E gostas do que estás a sentir?
— Muito, mesmo. — Macro riu-se, francamente tentado. Mas nesse momento viu Cato a parar e a olhar para ele com ar carrancudo, pelo que retirou a mão. — Terá que ficar para outra ocasião.
— Mas que pena. — A mulher deu-lhe um aperto no braço. — Tens ar de quem é capaz de fazer uma miúda passar um bom bocado. Se voltares para estas bandas, pergunta pela Columnella. Vou deixá-la bem quentinha
só para ti. E o que eu disse dos preços especiais mantém-se.
Macro franziu o sobrolho. — Então e os serviços especiais? — Esses também. — Ela aplicou-lhe um breve beijo nos lábios, e Macro pressentiu o vinho no hálito da mulher.
— Então, até breve. — Macro acelerou o passo para apanhar o amigo, antes de se meterem pela longa e retilínea rua que levava ao bairro do Quirinal.
Depois de deixarem o fórum para trás, Cato fez uma pausa debaixo de uma lamparina pendurada de uma armação no exterior de uma venda, e pegou na carta que Júlia lhe tinha enviado havia mais de um ano,
e na qual detalhava instruções para chegar à casa que adquirira. A casa em que ela tinha aguardado pelo seu regresso. Em campanha, muitas vezes ele imaginara o momento do regresso a casa, e a maravilhosa
perspetiva de voltar a tê-la nos seus braços.
Um sonho que parecia zombar dele naquele momento. Cruelmente. Sentiu o coração falhar uma batida enquanto contemplava as palavras escritas na letra organizada dela, e depois apressou-se a dobrar a carta
e a colocá-la de novo na mochila.
— Não estamos longe. É por aqui. Sem esperar por resposta, seguiu o caminho, e Macro lançou um olhar para trás, apreciando Columnella, que abordava agora um homem esquelético, de cabelo cinzento e grandes
olheiras por baixo das pálpebras. Deixou escapar um longo suspiro e voltou a apressar-se para se juntar ao amigo. Embora o Quirinal fosse um dos melhores bairros de Roma, a rua era estreita e ladeada
por becos de ar sinistro de ambos os lados. O tipo de lugar onde os assaltantes gostavam de se esconder entre as sombras, para se lançarem sobre passantes desprevenidos. Ao cimo da colina, onde o ar era
menos fétido, os blocos habitacionais viam-se substituídos pelas primeiras moradias, que pertenciam a mercadores bem-sucedidos, a membros da classe de cavalaria, como Cato, e aos menos abastados das famílias
senatoriais. Havia ali muitas lojas, de ambos os lados das portadas impressionantes, e algumas vendiam mercadorias dispendiosas: especiarias, tecidos e vinhos e pão da melhor qualidade.
Atravessaram dois cruzamentos, e no terceiro Cato virou à direita. Contou as portadas que passavam, e parou à frente de uma porta bem desenhada e com espigões metálicos, uns cinquenta passos para o interior
da rua. Três degraus gastos levavam à porta, e num encaixe de ferro, colocado na parede a altura suficiente para escapar aos dedos ágeis de algum passante que precisasse de iluminação, ardia uma única
lamparina de azeite. Ficou a encarar a porta, enquanto o dedo e o indicador cofiavam o queixo.
— Cato, está tudo bem? — Não... Nem por isso. Macro aproximou-se e colocou a mão no ombro de Cato. Tinha estado presente no momento em que o amigo encontrara Júlia, e conhecera-a o suficiente para lamentar
por si mesmo a morte da jovem, e não apenas pelo facto de afetar Cato daquela forma. Uma excelente mulher, que teria sido uma magnífica mãe e, mais importante ainda, a pessoa que teria feito de Cato alguém
mais feliz, menos melancólico. Macro conhecia o amigo desde que ele tinha entrado para as legiões, e vira-o combater e subir pelas fileiras até chegar a centurião, e depois a suplantá-lo e tornar-se seu
superior hierárquico. Uma coisa estranha, refletia de tempos a tempos, aquela de ser ao mesmo tempo camarada, amigo e subordinado, mas era no fundo muito mais do que isso; Cato era um irmão de armas,
sim, mas ao mesmo tempo era como um irmão mais novo, ou um filho, e, como qualquer pai, Macro partilhava as alegrias e a dor do amigo.
— A Júlia partiu, mas o teu filho está aí dentro. E ele precisa de ti, agora que não tem mãe.
Cato lançou-lhe um olhar torturado.
— Macro, que sei eu de ser um pai? Nos últimos dez anos, mal passou um momento em que não tenha sido apenas um soldado. Estou manchado pelo sangue dos homens que matei, pelo sangue daqueles que vi morrer
à minha frente. Que sei eu de carinho, e de educar uma criança?
— Miúdo, não estava propriamente a sugerir que o pusesses a mamar ao teu peito. Só quero dizer que ele vai precisar de um homem cujos passos possa seguir, um homem que lhe ensine como são as coisas. Esse
género de ideias. E tu és tão bom como outro qualquer para desempenhar esse papel. Fá-lo como deve ser, e tenho a certeza de que o jovem Lúcio se tornará um homem tão capaz como o seu pai, hã? E agora,
estou cansado. Doem-me os pés, e preciso de comida. Portanto, vamos ficar aqui muito mais tempo, como se fôssemos uns vagabundos, ou vamos entrar?
Cato deixou escapar um sorriso fraco. — Muito bem. Aqui vai.
Respirou fundo, subiu os degraus e bateu duas vezes com a maçaneta, com força. Durante alguns momentos nada se ouviu, e ele estava a pensar em voltar a tentar quando escutaram uma tossidela e, pouco depois,
o som de um ferrolho a deslizar. Uma fenda de inspeção abriu-se por detrás de uma grelha metálica, e um par de olhos contemplou-os com evidente desconfiança.
— Quem é? — inquiriu uma voz maldisposta. — Não estamos à espera de ninguém. Então?
Cato enfrentou o olhar do homem. — Sou o prefeito Quinto Licínio Cato, de regresso das campanhas da Britânia, e esta é a minha casa. O meu lar. Portanto, abre a porta.
O refeito Cato? — O homem do outro lado da porta não escondeu o choque. Os seus olhos semicerraram-se. — O senhor está na Britânia! Desaparece!
Fez menção de fechar a portinhola, e Cato meteu a mão por entre as pequenas barras de ferro para o impedir.
— Espera. Sou quem afirmo ser. Olha para aqui. Procurou o selo militar e mostrou-lho, inclinando-o de forma a que a parca luz da lamparina que o homem empunhava o iluminasse, e ele pudesse ver a inscrição.
Deu-se uma breve pausa enquanto o outro se dedicou a escrutinar o selo, e Cato interrogou-se se ele seria capaz de ler. Então o homem voltou a encarar Cato.
— Se é quem afirma ser, como é que pode estar aqui em Roma, quando devia estar a combater os bárbaros lá pela Britânia?
— O meu camarada e eu fomos enviados a Roma pelo novo governador. — Cato estava fatigado, e a sua paciência encontrava-se a ponto de se esgotar. — Agora, abre a porta e deixa-me entrar.
— E quem é ele, então? Esse seu camarada? — O centurião Macro. Tenho a certeza de que a minha esposa o terá mencionado.
— A senhora falou dele, sim... Muito bem, senhor. Acredito em si. — O homem recuou, e a portinhola fechou-se. Pouco depois ouviu-se o som abafado de uma pesada tranca a ser levantada, e a porta abriu-se
facilmente, numas dobradiças bem oleadas, revelando um indivíduo de aspeto sólido, de feições escuras.
Envergava uma túnica simples de tom castanho, e dobrou as costas profundamente enquanto dava um passo ao lado para deixar Cato e Macro entrar.
— Seja bem-vindo a casa, senhor.
Fechou a porta e trancou-a, antes de prosseguir, num tom apologético: — Perdoe-me, senhor Cato. Tinha que ter a certeza de quem se tratava.
Aqui em casa, de momento, só estou eu e a ama. Além do jovem senhor Lúcio, claro. Portanto, tenho que ser cuidadoso, para mais com as coisas que se têm passado nas ruas nestes últimos meses.
— Tem havido problemas até nesta zona? — Sim, senhor. Os seguidores dos herdeiros do Imperador têm agitado as coisas. A tentar que a turba se coloque por trás do seu candidato, e a usar bandos de malfeitores
para vincar essa posição.
— Isso não é bom — retorquiu Cato, enquanto olhava em torno do modesto átrio de entrada, curioso para saber mais da casa que Júlia tinha escolhido como lar do casal. Uma candeia num suporte, numa pequena
mesa junto à parede, dava iluminação à justa para perceber os detalhes. À esquerda, havia uma alcova com um pequeno santuário e um punhado de figuras que retratavam os espíritos do lar. Na parede oposta
havia outra alcova, no interior da qual brilhava um rosto pálido. Cato sentiu os pelos da nuca a eriçarem-se ao reconhecer aquelas feições. Engoliu em seco e aproximou-se lentamente. A máscara mortuária,
de cera, era iluminada por trás pela chama tremeluzente de uma lamparina de azeite. De perto, via as linhas do rosto com maior nitidez, e sentiu uma tremenda onda de saudade da sua falecida esposa. Esticou
o braço e tateou até tocar a máscara, e qualquer ilusão de semelhança com o rosto dela desapareceu em estilhaços ao sentir a dureza suave da cera. Ainda assim, não conseguiu evitar acariciar a curva da
maçã do rosto por um momento, antes de se voltar para os outros.
— Senhor, lamento imenso a sua perda. — Obrigado — assentiu Cato. — Como te chamas, homem? — Amatapo, senhor. — Há quanto tempo vives aqui? — Toda a minha vida, senhor. Nasci nas acomodações dos escravos.
O meu anterior senhor incluiu-me no preço quando a senhora Júlia comprou a casa. Ela nomeou-me mordomo.
— Estou a ver. E a ama? — A Petronella? Foi comprada como ama de leite. Depois de a senhora falecer, foi o seu sogro que a manteve, para cuidar do senhor Lúcio.
— Muito bem. Gostava de ver o resto da casa. Mas primeiro, queria muito ver o meu filho.
— Com certeza, senhor. — Amatapo esticou os braços. — As vossas capas, por favor?
Cato entregou-lhe a capa e a mochila, e Macro imitou-o. Amatapo pendurou-as nos ganchos ao canto do átrio, e fez-lhes um gesto para que o seguissem por um curto corredor. Havia portas fechadas dos dois
lados da passagem, e Cato calculou que davam entrada para as salas que ladeavam a entrada da casa.
— Há lojas ligadas à casa? — À esquerda há um cesteiro, e à direita um padeiro, senhor. — E quanto pagam de renda? O escravo abanou a cabeça. — Não sei, senhor. Tais assuntos nunca fizeram parte das minhas
tarefas.
O pai da senhora Júlia assumiu essas responsabilidades até ao seu regresso.
— Estou a ver.
Ao fim do corredor, saíram para um átrio. Um pequeno lago com mosaicos a representar peixes abria-se ao céu. A diminuta luz das estrelas fornecia apenas a claridade suficiente para distinguir as formas
que o rodeavam, e Cato notou uma série de portas que se abriam para o átrio, e uma escada apertada a um canto, que dava acesso ao piso superior.
— Muito bonito — comentou Macro, enquanto olhava em volta. — Mesmo muito bonito. Miúdo, aterraste de pé, sem dúvida.
— Lá em cima há quatro quartos, senhor. Todos eles estão, de momento, vazios. A senhora não chegou a ter a oportunidade de os decorar ou de os mobilar. O quarto dela era ali. Depois fica o estúdio que
ela lhe tinha preparado, ao lado uma sala de jantar, e a última porta é a do quarto do senhor Lúcio. Deseja vê-lo neste momento? Ele está por certo a dormir.
Cato insistiu. — Sim, quero vê-lo agora. — Desculpe-me então por momentos, senhor. Vou buscar uma lamparina à cozinha.
Saiu do átrio por outra passagem e escutaram-no a trocar algumas palavras em voz baixa com uma mulher. Macro virou-se para o amigo.
— Como te sentes? — Como me sinto? — Cato pensou por momentos. — Para ser honesto, como um invasor. Nunca tive uma casa antes. Tudo isto é novidade para mim. Não sei bem como me devo comportar face a
tudo isto.
— Miúdo, recebemos aquilo que o destino nos entrega. E não temos escolha sobre a forma de lidar com isso.
Cato sorriu. — O que é isso? Filosofia? — Não, miúdo: experiência. Muito melhor.
Uma claridade reduzida e o som de pés arrastados anunciaram o regresso de Amatapo. Era acompanhado por uma mulher de grande volume numa túnica larga, que lhe caía sobre o corpo como se fosse uma tenda.
O outro acenou-lhe para avançar, e ela fez uma vénia a Cato e Macro.
— Senhor, esta é a Petronella. À luz da lamparina, Cato viu que ela tinha um rosto bonito e rechonchudo, com olhos escuros bem vincados, e cabelo escuro, curto. Parecia ter trinta e poucos anos, embora
fosse difícil de determinar àquela luz quase inexistente.
— Calculo que já te disseram quem sou.
Ela anuiu. — Gostava de ver o meu filho. — Sim, senhor. — Ela pegou na lamparina que Amatapo segurava, e levou-os até à porta do quarto de Lúcio, mas fez uma pausa quando a mão se apoiou no fecho.
— Senhor, será talvez melhor que entremos só nós os dois. Não vale a pena assustar a pobre criança, se acordar e se vir rodeada de crescidos.
— Muito bem. — Cato virou-se para o amigo. — Importa-se? — Não, de todo, é o teu filho. A seu tempo, acabarei por o conhecer. — Obrigado. — Cato virou-se e acenou à ama, que abriu o ferrolho e empurrou
a porta com todo o cuidado. Levantou a lamparina, e entrou para o quarto, um compartimento de dimensões modestas, com pouca mobília. Para lá da cama, havia um banco encostado à parede e uma arca aos pés
da cama.
— Cuidado, senhor — sussurrou Petronella, enquanto apontava para os pés. Cato olhou para o chão e viu que tinha estado a ponto de pisar alguns pequenos bonecos de madeira. Dobrou-se e apanhou um, e percebeu
que era uma representação grosseira de um legionário.
— Ele adora-os — comentou a ama. — Está sempre a brincar com eles, senhor. O problema é conseguir que ele ajude a guardá-los quando vai para a cama.
Cato pousou o boneco e aproximou-se com cuidado do lado da cama. Petronella segurou a lamparina ao alto, e ele viu a criança deitada de barriga, com a cabeça de lado e os braços estendidos sobre o colchão.
Tinha afastado a cobertura, deixando à vista duas pernas bem gorduchas e compridas. O nariz franziu-se e Lúcio murmurou qualquer coisa incoerente, antes de suspirar e a respiração voltar a tornar-se regular.
Cato debruçou-se junto à beira da cama e tocou levemente nos caracóis suaves e escuros, sentindo o coração dar um baque.
Era o seu filho. Lúcio. A sua carne e o seu sangue, bem como os de Júlia. Desejava que o miúdo tivesse herdado o nariz achatado e o queixo fino dela.
O pensamento fez-lhe doer o coração, e mais uma vez sentiu a sua perda. Em silêncio, amaldiçoou os deuses por lha terem tirado.
Endireitou-se e recuou para o átrio. Deixaram a criança a dormir, e fecharam silenciosamente a porta do quarto.
Macro interrogou-o com um gesto da cabeça. — Então? — Está apagado, dorme como um veterano. Macro riu. — Então sai aos seus. Ainda bem. — Depois o seu rosto enrugou-se, e a boca abriu-se num bocejo involuntário.
— Foda-se, estou derreado.
— Bem vejo. Amatapo, arranja uma cama confortável para o centurião. — Sim, senhor. E para si? — Eu vou dormir no quarto principal. — Sim, senhor. — Ótimo, podes então acordar-nos aos dois amanhã, pela
segunda hora.
Suponho que haja cá em casa comida suficiente.
Petronella assentiu. — Bastante, senhor. — Nesse caso, vamos dormir.
O sobrolho de Amatapo franziu-se. — Senhor, não vai querer ver o resto da casa? Cato olhou em redor do átrio. — Há mais? — Oh, sim, senhor. As cozinhas, as acomodações dos escravos, mas sobretudo o jardim
e a área de refeições lá fora. Para a senhora, era a parte favorita da casa. Claro que a esta hora não se conseguirá ver grande coisa.
— Nesse caso, podemos vê-la de manhã — cortou Cato. — Por agora, precisamos de dormir, os dois. Trata por favor do centurião Macro. O melhor será arranjar-lhe outra lamparina, e eu fico com essa. Eu encontro
o meu próprio caminho.
Com a lamparina na mão, Cato virou-se para o amigo. — Durma bem. — Tenho a certeza que sim. — Macro fez um gesto a abarcar o que o rodeava. — Não seria fácil encontrar melhores instalações!
Trocaram um sorriso cansado, e depois Cato rodeou o lago e as colunas até chegar ao quarto que Amatapo lhe tinha indicado antes. Levantou o ferrolho e as dobradiças da porta chiaram ligeiramente enquanto
a porta se abria para dentro. Cato entrou e captou um doce aroma no ar, sem dúvida algo que Júlia tinha colocado no quarto para o tornar mais agradável. O compartimento era um espaço amplo, com arcas
junto a uma das paredes, uma mesa, cadeira e prateleiras com boiões e jarras na parede oposta, e no meio uma cama larga com um colchão espesso e coberturas de fino tecido, bem como duas almofadas altas.
Aos pés da cama viam-se umas pequenas sandálias.
Atravessou o quarto até chegar junto da mesa e viu que sobre ela estavam escovas e um espelho, bem como pequenos boiões com pinturas para o rosto, alguns aromas e uma estrutura de madeira onde se encontravam
pendurados colares e braceletes. A um dos lados via-se um espesso amuleto de prata, e Cato sorriu ao imaginar que ela teria comprado aquilo para lho oferecer quando do seu regresso. Depois virou-se para
a cama.
Pousou a lamparina na pequena mesa ao lado da cama e despiu-se, colocando as roupas dobradas sobre a cadeira. Depois puxou as roupas da cama para trás e subiu para o leito, deitando-se de lado, o nariz
apoiado na fronha, a inalar o quase ausente odor de outro cheiro. Mais subtil este, mais humano.
O inconfundível cheiro a cabelo. O cabelo de Júlia. Fechou os olhos e esticou o braço sobre a cama vazia, fazendo andar os dedos sobre o colchão e traçando o sulco do lugar que ela ocupara. O sono não
vinha, e ele deixou-se ali estar, sem conseguir descansar, a mente repleta de memórias e de um terrível sentimento de perda, e o ainda mais cru sentimento de que ia enfrentar o resto da vida sem Júlia,
sem o seu amor.
Mas havia o seu filho. E havia também Macro. Tentou consolar-se com essa ideia, mas não conseguiu deixar de se sentir mais só do que alguma vez se sentira em toda a sua vida.
Cato ouviu o som de gargalhadas ao emergir do quarto na manhã seguinte. Mal tinha pregado olho. Esfregou os olhos e espreguiçou-se, antes de se dirigir para o som que ecoava pelo corredor e levava às
traseiras da casa, e ao jardim. Passou pelas três diminutas portas das acomodações dos escravos antes de achar a porta da cozinha, aberta. Inspirou um rico aroma de fritos e só então percebeu a fome que
tinha, e fez uma pausa para espreitar para o compartimento.
Petronella deitava carvão num fogo por baixo duma grelha. Por cima desta estava uma grande frigideira onde fritavam e silvavam cebolas e salsichas. A mulher endireitou-se, limpando as mãos num avental
já manchado, e avistou-o.
— Oh, senhor! Assustou-me. — Desculpa. — Não estamos habituados a ter companhia na casa. Desde que a senhora faleceu. — Deitou-lhe um sorriso de compaixão. — Senhor, deseja tomar o pequeno-almoço? O outro
oficial pediu-me para fazer isto, depois de ter acabado com o pão e as carnes frias que tínhamos. Também há vinho morno.
— Isso será excelente. Cato prosseguiu pelo corredor até sair para uma área inundada pelo sol, e piscou os olhos por momentos, antes de conseguir apreciar o que o rodeava. O jardim nas traseiras da casa
não era muito largo, mas estendia-se uns bons quarenta passos até à parede ao fundo, onde outra rua passava, paralela àquela onde se situava a entrada da casa. Havia paredes altas de ambos os lados, que
forneciam privacidade dos olhares dos vizinhos, e do outro lado da rua nas traseiras só se avistavam telhados, o que queria dizer que ninguém podia espreitar para dentro do jardim. Ouviu outra vez as
gargalhadas e avistou uma área coberta, junto à parede, ali perto. Estava uma mesa de pedra sem adornos encostada à parede, e dos outros três lados havia poltronas com almofadas para os comensais. Na
maior delas, Macro encontrava-se deitado de costas e segurava Lúcio no ar, por cima da sua cara. A criança ria, e depois soltou uma gargalhada aguda e estridente quando Macro o fez descer e soltou o ar
contra a barriga do miúdo.
— É isto que dizemos ao primeiro pilo! Cato não evitou uma gargalhada, enquanto se dirigia para junto deles. Macro viu-o, e sorriu. — E cá está o teu papá! Baixou o miúdo para o colo e depois para o chão,
e deu-lhe um ligeiro empurrão.
— Vai dizer olá. Lúcio hesitou, olhando para o pai com alguma desconfiança, enquanto metia os dedos da mão direita na boca. Cato sorriu-lhe calorosamente e agachou-se, de forma a estar ao mesmo nível
da criança. Esticou as mãos.
— Lúcio, vem cá, meu querido.
A criança não se aproximou; baixou a cabeça e continuou a observar Cato por baixo das sobrancelhas, como se assim estivesse escondido.
Cato avançou um passo desengonçado e voltou a tentar. — Vem cá, Lúcio... Olha, não te vou comer. — Obrigou-se a sorrir, no momento em que o seu filho se virava de repente e se ia abraçar ao joelho de
Macro.
— Oh, vamos lá, então! — Macro fez uma careta. — Ele até pode fazer borrar-se de medo algum guerreiro bárbaro de cu peludo, mas tu és muito mais corajoso, soldadinho. Olha. — Macro pegou nele, fê-lo rodar
no ar e olhou para Cato por cima do ombro do miúdo. — Aquele ali é o prefeito Cato, um dos mais valentes homens e dos melhores oficiais de todo o maldito exército. Tens a sorte de o teres como pai. Agora,
miúdo, diz-lhe olá como deve ser.
Lúcio não conseguiu evitar olhar para o pai, e soltou um sorriso tímido. — olá. Cato sentiu uma ponta de mágoa e inveja por Macro ter aproveitado a oportunidade de se dar a conhecer a Lúcio antes dele.
Devia ter evitado essa situação, e deixado Cato apresentar-se ao filho. Aquele pensamento pouco digno foi rapidamente afastado, quando Cato tomou noção de que o amigo nunca teria feito tal coisa de forma
deliberada. Tinha sido uma pena, mas Cato dormira até mais tarde. Por causa disso, agora tinha que recuperar o terreno perdido. E a cicatriz que lhe atravessava o rosto talvez lhe desse um ar ligeiramente
assustador. Sentou-se à frente do filho e foi esticando os braços lentamente, até ter Lúcio nas mãos. Depois, inspirado pelo que vira Macro fazer, levantou Lúcio no ar, esticou os lábios e soprou na macia
pele do estômago do garoto.
Lúcio lançou de imediato um grito de susto, e começou a choramingar, enquanto agitava os minúsculos punhos e dava pontapés com as pernas rechonchudas. Cato deixou-o descer para o chão e olhou para ele,
alarmado.
— O que é que eu fiz? Estás bem? Macro, o que se passa com ele? Macro deu um estalo com a língua, divertido. — Sei lá. Há bocadinho adorou isso. Tu viste. Lúcio chorava de forma inconsolável, as lágrimas
a correrem-lhe pelas bochechas redondas e a boca escancarada, a deixar à vista dois pequenos dentes que faziam lembrar pérolas.
— Que disparate vem a ser este? — inquiriu Petronella, enquanto saía da casa. Trazia a frigideira com as salsichas e cebolas, e apressou-se a colocá-la sobre a mesa antes de pegar em Lúcio e o abraçar.
— O que se passa, pequeno senhor? Os homens grandes estavam a assustá-lo? Que vergonha, não é? Pobrezinho.
— Mas eu não lhe fiz nada — protestou Cato, as mãos esticadas, com ar inocente. — Só lhe estava a dizer olá.
— Soldados. O que é que se podia esperar? — resmungou Petronella. — Está aqui o pequeno-almoço, senhor. Aproveite, enquanto eu acalmo o miúdo e lhe dou a papa.
— Nesse caso, podes dar-lhe a comida aqui — ordenou Cato. — Connosco. Pode muito bem começar a habituar-se a estar ao pé do pai.
— E do tio Macro! — exclamou o centurião. Cato virou-se para o amigo e franziu o sobrolho. — Tio Macro? — Porque não? Sou a coisa mais próxima de um tio que ele alguma vez vai ter. Ora bem, vamos lá obedecer
a esta senhora, e dar cabo destas salsichas tão apetitosas!
Enquanto a ama levava a criança para a cozinha, Macro pegou na adaga, empalou uma salsicha, arrancou-lhe a ponta com os dentes e mastigou, animado.
— Delicioso! Cato, vai-te a elas. Não havia como negar a fome que sentia, pelo que Cato se instalou na poltrona ao lado da de Macro, servindo-se de um prato cheio de comida. Pouco depois, Petronella regressou
com Lúcio num braço e uma malga fumegante na outra mão. Sentou-se no lugar vazio, com o miúdo instalado no seu amplo colo. Alguns minutos depois, Macro deu uma palmada na barriga e arrotou sonoramente.
— Excelente! Os olhos de Lúcio arregalaram-se ao ouvir o som, e ele apontou e riu.
— Mac, Mac! Macro sorriu deliciado, e bateu no peito. — Isso mesmo! O tio Macmac. Cato suspirou. — Pelos deuses... Se os homens que comanda o pudessem ver agora! — Pois, mas não podem. Nem sequer os que
sobreviveram à campanha.
Instalou-se o silêncio depois daquele comentário, enquanto os dois homens relembravam o frio agreste e a terrível fome que tinham sofrido na retirada da ilha de Mona, que havia custado a vida a tantos
dos seus camaradas. Por fim, Macro tossicou e esticou o braço para cravar a adaga noutra salsicha, antes de reparar que era a última. Olhou para Cato e retirou a lâmina.
— Esta é tua. Cato terminou a refeição, enquanto via o filho a comer a papa. Quase no fim, Lúcio cerrou os lábios com firmeza e virou a cabeça para o lado, desafiante.
Petronella tentou convencê-lo. — Vá lá, senhor Lúcio. Só mais umas colheradas.
O miúdo virava a cabeça de cada vez que a colher se aproximava da sua boca.
— Deixa-me tentar — disse Macro, remexendo-se na poltrona. — Parece que tenho algum jeito com o rapazinho.
— Se assim deseja, senhor. — Petronella passou-lhe a tigela. Macro encheu a colher e orientou-a para a boca de Lúcio. Este encolheu o pescoço e manteve a boca fechada enquanto os olhos começavam a brilhar.
— Há sempre um recruta que resolve desafiar o instrutor. — Macro sorriu. — E se achas que vais ter sucesso onde centenas de outros já falharam, meu pequeno amigo, vais ter uma surpresa do caralho.
Cato engoliu em seco, e tossicou de forma audível. — Agradecia-lhe que reduzisse o uso do vocabulário de parada à frente do meu filho, se faz favor. É uma criança.
— Sim, senhor. — Macro fez uma pausa, e depois deu um estalo com os lábios. — Muito bem, vamos lá tentar outra coisa. — Deu outro estalo com a língua no céu da boca. — Cá vai a carruagem, de volta ao
estábulo. Abram os portões. — Abriu a boca, e um momento depois a boca de Lúcio fez o mesmo e a papa entrou sem problemas.
Cato viu a cena com uma mistura de divertimento e inveja a roer-lhe a mente, perante o fácil entendimento entre o seu melhor amigo e o seu filho, quando ouviu um bater na porta distante. Pouco depois,
ouviu a tranca a ser levantada e uma troca de palavras entre Amatapo e outro homem, seguida de passos no corredor. O deslizar das sandálias leves do mordomo e o som mais cru das botas cardadas de um soldado.
Amatapo surgiu no jardim, seguido de perto por um guarda pretoriano de túnica branca, o couro polido do cinto com a espada a rebrilhar como se fosse vidro.
— Desculpe, senhor, mas este homem veio do palácio para lhe falar. Cato assentiu. Estava mais ou menos à espera de uma convocatória para ir apresentar o seu relatório. Mas não esperava que ela surgisse
logo pela manhã.
Acenou ao guarda, que rodeou Amatapo e se aproximou da área de jantar, parando a dois passos da poltrona de Cato.
— É Quinto Licínio Cato? — Sim. — E o senhor? — O guarda virou-se para Macro, que continuava a tentar enganar Lúcio de forma a fazê-lo engolir a colherada seguinte. — Lúcio Cornélio Macro?
Macro olhou para o pretoriano. — Para ti, soldado, sou o centurião Macro. E o prefeito Cato. E põe-te em sentido quando falares connosco.
O guarda empertigou-se rapidamente, e manteve o olhar fixo em frente. — Está melhor assim. Agora, o que nos queres? — Fui enviado para vos notificar de que estão ambos convocados para se apresentarem
no palácio, ao Imperador Cláudio e ao seu conselho. Devem apresentar-se no gabinete do liberto imperial Narciso, imediatamente. Ele conduzir-vos-á até ao Imperador.
Cato e Macro trocaram um olhar, antes de Cato responder: — Narciso? — Sim, senhor.
Os ombros de Macro levantaram-se num suspiro resignado. — Lá vem confusão. — Ele disse porque é que quer que nos apresentemos a ele em primeiro lugar?
— Não, senhor. Isto é tudo o que me foi dito. Isto, e para insistir que me acompanhassem imediatamente.
— Não estamos propriamente vestidos para uma ocasião dessas.
O guarda hesitou por momentos. — Não sei nada disso, senhor. As minhas ordens foram para vos conduzir ao Narciso imediatamente.
Macro cruzou os braços. — E se nós resolvermos não ir antes de estarmos prontos para isso?
O guarda fez um gesto com o polegar sobre o ombro. — Foi por isso que trouxe comigo o meu esquadrão, senhor. Tenho sete rapazes à espera lá fora, na rua. Seria melhor se não me visse obrigado a chamá-los,
sobretudo à frente da esposa e do rapaz aqui presentes.
Macro reagiu com irritação. — Ela não é minha mulher. É uma escrava, porra. Petronella levantou o olhar e murmurou, irritada: — Muito obrigada, senhor. Cato levantou-se do seu assento. — E o miúdo é meu
filho. Entendido? — Sim, senhor... Perdão, senhor. — Muito bem, nós vamos contigo. Espera ali no corredor.
O guarda pareceu um tanto embaraçado. — Algum problema? — Recebi instruções para não vos perder de vista, senhor. Parece que o liberto imperial não estava convencido de que aceitariam ir vê-lo de boa
vontade.
— Imagine-se — disse Macro. — Pergunto-me onde terá ele ido desencantar tal ideia? Uma vez que ao longo dos anos tem sido tão nosso amigo...
Cato não reagiu ao sarcasmo do camarada. — Vamos lá calçar as botas, então. Petronella? — Senhor? — Manda uma mensagem ao senador Semprónio, e informa-o sobre onde fomos. Se houver algumas, hã, consequências,
o Lúcio deverá ser entregue ao senador. Estará mais protegido lá.
— Sim, senhor. — Macro, vamos lá então ver esse nosso velho amigo Narciso.
Oliberto imperial tinha envelhecido de forma visível desde a última vez que
Cato o vira. Parecia impossível, mas a verdade é que estava ainda mais magro e emaciado, e a túnica que vestia parecia estar a cobrir uma armação de madeira. Os olhos escuros e vivos tinham recuado nas
órbitas, e o cabelo estava quase todo cinzento e em recuo pelo crânio cheio de manchas. Estava debruçado sobre a secretária quando os dois visitantes entraram no gabinete e se sentaram em bancos à frente
da mesa, sem esperarem por um convite para o fazerem.
— Façam como se estivessem em vossa casa, porque não? — Nada de mais justo, já que nos fez sair à pressa da minha casa — ripostou Cato. — Estava capaz de pedir qualquer coisa para beber, mas não estou
certo de que seja muito seguro consumi-lo.
Narciso respondeu com um sorriso pouco amigável. — Sabe bem ter dois aliados tão fiéis e confiantes de novo ao meu lado.
Sobretudo nestes tempos difíceis.
— Aliados? — Macro imitou uma valente engasgadela. — Chama-lhe o que quiseres, mas qualquer um de nós jurou servir o Imperador, e essa é uma coisa em que podemos pelo menos concordar: respeitar esse nosso
juramento. O que é mais do que pode ser dito a respeito de muitos outros. Sobretudo daquela víbora fria e calculista, o Pallas. — Narciso cruzou as mãos e fez estalar os nós ossudos dos dedos. — Vocês
os dois arriscaram-se bastante ontem à noite. Entraram na cidade e dirigiram-se à tua casa antes de se virem apresentar ao palácio.
— Queria ver o meu filho — respondeu Cato, sem dar mostras de emoção. — Considerei que a apresentação no palácio podia bem esperar até esta manhã.
— Prefeito Cato, a tua devoção paternal é deveras admirável, mas em termos políticos deves primeiro atender ao teu dever. Foi sorte vossa que o optio que estava no portão fosse um dos homens controlado
por um dos meus agentes, pelo que soube da vossa chegada antes da oposição. O grupo que enviei para vos recolher foi tanto para vossa proteção como para coerção.
— E por isso devemos estar-lhe gratos? Convocados ao palácio sem uma oportunidade para nos lavarmos ou sequer trocarmos de roupa?
— De que vos serviria serem cadáveres bem apresentados? — Narciso fitou-os friamente, sem pestanejar. — Sim, Cato, devias estar-me grato. Agora tens a ocasião de te apresentares diretamente ao Imperador,
em vez de tombares sob a lâmina de um dos agentes do Palias, assim que ele soubesse que vocês estavam aqui em Roma.
— E por que raio se daria ele a tantos esforços para nos liquidar? — indagou Macro. — Temos mantido o nariz longe desses assuntos merdosos, enquanto andámos em campanha na Britânia. Por certo que já não
temos qualquer interesse para ele.
Narciso não evitou um ligeiro fungar divertido. — Em primeiro lugar, não seria para ele um grande esforço despachar-vos.
Uma breve palavra ao ouvido de um dos seus esbirros, e vocês seriam daí a pouco encontrados de rosto no chão, na sarjeta, com a garganta cortada. Em segundo, vocês os dois possuem bastante mais conhecimento
daquilo a que poderíamos chamar os assuntos de Estado do que seria saudável. Pelo menos enquanto o Cláudio estiver vivo. Quando ele desaparecer, as coisas tornar-se-ão muito diferentes. Velhos segredos
morrerão com o Imperador, e coisas cujo conhecimento era perigoso deixarão de ter significado. Claro que haverá ainda muito ressentimento por aí, e temo bem que o Pallas seja precisamente o tipo de homem
para quem a vingança é um prato que se deve servir bem frio. Tão frio como o túmulo.
Aconselho-vos fortemente a manterem-se de guarda, e isso vale para os dois.
— Evidentemente que nos sentimos tocados por tanta preocupação — respondeu Cato, com um ligeiro aceno da cabeça. — Contudo, continuo curioso em saber por que é que fomos obrigados a vir aqui a uma hora
tão precoce, e com tanta pressa.
— Como já vos disse, foi para vosso próprio bem — Narciso fitou-o longamente, e Cato sentiu uma espécie de arrepio de surpresa ao reconhecer na expressão do secretário imperial um ar de piedade.
— Narciso, o que se passa? Qual é o trabalho sujo que tem em mente para nós desta vez?
Narciso recuou, como se tivesse recebido um sopapo. Manteve-se imóvel por momentos, antes de se levantar lentamente da cadeira e se virar para olhar pela janela arqueada que dava para o fórum, onde os
habitantes da cidade se cruzavam, apressados, cada um concentrado nos seus afazeres.
— Sei bem que vocês os dois me desprezam. Quanto a isso, estão longe de ser os únicos.
Macro tossicou. — Quem se atreveria a imaginar tal coisa? Narciso não se dignou responder ao comentário azedo, e cruzou os braços ossudos enquanto refletia por momentos, antes de prosseguir.
— Seja o que for que vocês pensem de mim, faço aquilo que acho necessário para a proteção de Roma. O Império não é perfeito, mas é uma força que pugna pela ordem num mundo bárbaro e cruel. As pessoas
que vivem no interior das suas fronteiras, gostem ou não, são poupadas ao infindável ciclo de conquista e selvajaria que lhes cairia em cima, graças a uma sucessão de déspotas. Roma poupa-os a isso, pelo
menos, de forma a que possam prosseguir com as suas vidas, criar famílias, fazer crescer os seus cereais, e sobreviver sem ter que estar sempre a olhar por cima do ombro, em busca de sinais de algum bando
selvagem determinado a matar, violar e pilhar o que lhes aparecer pela frente. Ao mesmo tempo, tudo o que temos aqui em Roma está dependente da paz e da prosperidade de todo o Império. É como uma intrincada
geringonça, daquelas que são tão apreciadas pelas bandas de Alexandria. Um arranjo complexo de uma série de componentes que trabalham ao mesmo tempo. O meu trabalho, o meu dever, é assegurar que tudo
funciona da forma mais suave possível, e para que tal suceda torna-se por vezes necessário remover e substituir algumas peças de todo o conjunto.
— Uma forma muito interessante de descrever o assassínio. Narciso lançou um rápido olhar carrancudo a Macro, antes de voltar a dirigir o olhar à vista que tinha da capital.
— Acham realmente que sou insensível às injustiças que me vejo obrigado a cometer pelo bem comum? Fui forçado a uma vida sem amigos, porque não posso confiar em ninguém. Dei tudo de mim ao serviço de
Roma, e tem sido uma vida solitária.
— Foi a sua escolha — realçou Macro. — Não tinha que devotar a sua vida a espetar facadas nas costas dos outros.
Narciso franziu uma sobrancelha. — Eu espeto-lhes facas nas costas, tu fazes o mesmo pela frente. No fim de contas, acabam mortos, de uma forma ou de outra. A única diferença é que tu pensas que existe
uma distinção moral, que resulta apenas do local onde a lâmina se crava.
Macro remexeu-se, enquanto considerava as palavras do outro. — Há um mundo de diferenças entre aquilo que eu faço e o que resulta do seu trabalho. Eu assumo os meus riscos, num combate leal, enquanto
outros apunhalam os inimigos pelas costas, revelando a cobardia que os enforma.
— Existem diferentes formas de coragem e de cobardia, meu amigo. — Nunca mais volte a chamar-me isso. Narciso fez uma careta. — Como queiras. Mas o ponto que estou a vincar é que todos servimos Roma de
acordo com os talentos que possuímos. Eu nunca poderia tomar lugar a teu lado numa batalha, Macro. Não duraria um minuto. De que forma poderia isso ser considerado um combate justo? O meu corpo de pouco
uso é para Roma. Quanto à minha mente, é uma arma tão potente como uma série de espadas juntas. Ambos servimos Roma da melhor forma que sabemos, da forma que escolhemos. É esse o nosso dever.
— Dever? — Os lábios de Macro encurvaram-se com desdém. — Tanto quanto posso ver, um dever muito lucrativo. Não é segredo nenhum que é um dos homens mais ricos de Roma. Junto com o Pallas. Portanto, poupe-me
a treta do dever. Está metido nisto para obter ganhos pessoais, tanto como por qualquer outro motivo. Como todos os que se envolvem na política, aliás.
Embrulham-se em palavras caras e nobres sentimentos, enquanto aumentam a sua influência, recebem subornos e conspiram para roubar a riqueza de outros. — Macro espetou o polegar no peito e depois apontou
para Cato. — E homens como nós pagam o preço dos jogos que vocês praticam. Pagamos com o nosso sangue, Narciso.
— Ele está certo — confirmou Cato, num tom menos explosivo. — Já vimos sangue suficiente espalhado pelos campos, florestas e montanhas da Britânia para saber que assim é. Há dez anos que combatemos por
lá, e a ilha só passa por ser uma província no nome. E porque é que a invadimos, para começar? Apenas para que Cláudio pudesse ter um triunfo militar para exibir à populaça. Ainda assim, nenhuma grande
vitória ocorreu, só uma campanha sangrenta atrás de outra. E só continuamos a insistir porque seria uma vergonha para o Imperador se Roma se retirasse da Britânia. — Cato sentiu a ira a crescer, e fez
uma pausa para se acalmar. — Por aquilo que tenho ouvido, há muita gente no Senado que ficaria feliz por nos ver retirar da Britânia. E o Nero, ao que parece, pensa da mesma forma. E é ele quem está mais
bem posicionado para suceder ao Cláudio. As esperanças de o seu candidato chegar ao púrpura estão a esvair-se.
Narciso estremeceu. — O Britânico é o filho natural do Imperador. Cláudio ainda pode vir a favorecê-lo. Mas, de facto, pouco importa quem acabe por triunfar. Roma permanecerá na Britânia. Se o Britânico
tomar o trono, ver-se-á obrigado a prosseguir a política do pai, que lhe deu nome em honra da conquista da ilha.
— Uma conquista e peras — lançou Macro, com azedume.
— E se for o Nero a ficar com o trono, estará rodeado de homens que fizeram grandes investimentos na Britânia. Só o Pallas e o Séneca têm dezenas de milhões de sestércios emprestados aos governantes das
tribos nativas. Duvido muito que estejam preparados para esquecer tais somas e ver as legiões retirarem-se da ilha. — Narciso deixou que as suas palavras penetrassem no espírito dos ouvintes. — Portanto,
estamos na Britânia para ficar... Embora em breve isso vá deixar de me dizer respeito.
Cato viu o olhar pesaroso nos olhos do liberto imperial. — E como é isso? — Os meus dias estão contados. Enquanto o Cláudio viver, eu também vivo. Mas quando ele falecer, não posso esperar qualquer clemência
da parte do Pallas, ou da cabra da Agripina. A primeira coisa que farão, se o Nero alcançar o manto púrpura, será dedicarem-se a uns pequenos ajustes de contas. E eu serei dos primeiros a receber a visita
de um esquadrão da morte de pretorianos.
— Cá se fazem, cá se pagam — enunciou Macro. — A seu tempo, enviou bastantes homens para as suas mortes, Narciso. Não espere qualquer simpatia da minha parte.
O liberto fitou-o com maus modos. — Não peço nem espero simpatia. Sabem os deuses quanto sangue tenho nas minhas mãos. E não foram apenas homens enviados para a morte por minha ordem, também mulheres
e crianças seguiram o mesmo caminho. Ao tempo, considerei tais medidas necessárias, e isso chegou-me e chega-me. E agora a minha morte será o preço que pagarei pelo papel que desempenhei na manutenção
da segurança de Roma face àqueles que lhe queriam mal.
Macro soltou uma gargalhada. — Pelos deuses, está mesmo cheio de si mesmo, não é? — Pensa de mim o que quiseres, Macro, mas ao menos aqui o Cato tem a inteligência suficiente para perceber que aquilo
que faço é para o bem de Roma. — Narciso virou os olhos lacrimosos para Cato. — Não é assim?
Cato manteve-se sentado, imóvel e silencioso, consciente de que os outros dois homens o observavam de perto. Por fim, Narciso suspirou, e passou os dedos ossudos pelo cabelo esparso.
— A questão é, o que vai acontecer depois de eu ter sido liquidado? Poucas dúvidas me restam de que o Pallas vai tomar o meu lugar e tornar-se o real poder por trás do Nero. O meu receio é que os seus
verdadeiros motivos sejam um tanto menos altruístas do que os meus, e que os interesses de Roma sofram em consequência disso. Admito sem reservas que o Nero tem tudo para ser um governante decente. É
inteligente, cativa as pessoas e consegue comunicar com o povo. Porém, é também vaidoso e demasiado dado a aceitar todas as lisonjas, sem cuidar do que se esconde por trás delas. O Pallas poderá controlá-lo
como a um boneco, ou usar o poder que tem sobre a Agripina para puxar os cordelinhos. — Narciso voltou a olhar pela janela, o rosto vincado pela preocupação. — Temo por Roma...
Virou-se de súbito, e foi retomar o lugar atrás da secretária. — E é por isso que é tão importante que faça o que puder para vos proteger aos dois.
— A nós? — Macro soltou uma risada. — Não se preocupe connosco.
Sabemos cuidar de nós. Já passámos por situações mais perigosas do que a maioria dos homens.
— Sem dúvida. Mas é a ameaça que não consegues ver que acaba por te apanhar. Olhem, Macro, Cato, eu sei que ambos prestaram grandes serviços a Roma, e que me serviram a mim a contragosto. E sei que sabem
perfeitamente qual é o vosso dever. Há muitos outros homens tão bons como vocês. E homens bons vão ser necessários, mais do que nunca, nos dias que se avizinham. É por isso que é fundamental que vocês
sobrevivam quando me vierem buscar, e procurarem todos os que me estiverem associados. Foi essa a razão por que tratei de vos ver colocados na Britânia. Mas agora estão outra vez por cá, neste ninho de
víboras, e estão outra vez em perigo. Portanto, oiçam aquilo que tenho para vos dizer.
Inclinou-se para a frente sobre a secretária e baixou a voz, como se existisse o perigo de alguém os ouvir. Força de hábito no mundo em que vivia o secretário imperial, concluiu Cato.
— Convenci o Imperador a condecorar-vos a ambos pelos vossos serviços na Britânia. Especificamente, pelo papel que desempenharam na derrota e captura do Carátaco. Daqui a pouco teremos uma audiência com
o Imperador, na qual vocês farão um relato da mais recente campanha e das condições na nova província. Sugiro fortemente que não pintem um quadro demasiado negro. Digam que as condições são duras, mas
que as legiões enfrentam todos os desafios de peito aberto. O resultado dos confrontos nunca está em dúvida — coisas desse género. Depois, relatem o vosso papel na captura do Carátaco. Após isso, o Cláudio
anunciará as vossas recompensas, e dar-vos-á um lugar proeminente na celebração pública da nossa vitória sobre o inimigo. Roma adora os seus heróis, e isso deve fornecer-vos uma linha de defesa contra
o Pallas. Mas há ainda outra coisa que têm de fazer.
Cato sentiu uma fadiga familiar ao escutar as palavras do secretário imperial, já que anunciavam a entrada coerciva dele mesmo e de Macro noutro dos esquemas de Narciso.
— Assim que as celebrações terminarem, será aconselhável que neguem que alguma vez estiveram ligados a mim.
Macro anuiu de pronto. — Está feito! Cato lançou-lhe um olhar preocupado, e voltou-se para Narciso. — Porquê? — É óbvio. Têm que salvar a vossa pele. Tem que ficar bem claro que já não estão ao meu serviço.
Que as relações entre nós são tudo menos amistosas, e que ficarão muito felizes por ver o fim dos meus esquemas tenebrosos. É necessário que o Pallas pense que vocês me viraram as costas. Melhor ainda,
se ele vos oferecer proteção, aceitem-na. Trabalhem com ele. Ganhem-lhe a confiança, façam-no acreditar em vocês, e ficarão numa excelente posição para lhe conhecer todas as fraquezas, e prontos a fazerem-no
cair quando chegar o momento de ele perder as graças do poder. E esse momento chegará para ele, tal como chegou para mim. Esperemos apenas que surja antes de ele ter tempo de provocar demasiados danos
a Roma — concluiu Narciso. Escrutinou-os de perto. — Mas isso só será possível se vocês sobreviverem. Compreendem agora?
Cato assentiu, enquanto Macro lançou um suspiro de cansaço. — Centurião, tens algum problema com a ideia de continuar a viver? — Não. Gosto muito de estar vivo. É com toda esta história de capa e espada
de trampa que tenho um problema. Desde sempre.
— E é por isso mesmo que farias melhor em esconder os teus sentimentos e deixar que seja o prefeito Cato a tomar as decisões pelos dois. És um bravo, um homem de coragem, com uma admirável capacidade
para atos de violência. Mas aconselho-te a conhecer e aceitar os teus limites.
Foram interrompidos pelas notas de uma trombeta que dava as horas, e Narciso sentou-se direito e adotou um tom mais formal.
— Chegou a altura de comparecermos ao conselho matinal do Imperador.
Há uma história de uma revolta na Hispânia de que tem que se tratar antes de mais, mas depois disso terão a vossa oportunidade de falar da campanha na Britânia. Sigam a linha que vos sugeri, e tudo vai
correr bem. Temos que nos despachar. Mas, primeiro, preciso de dar uma palavra ao Cato. A sós.
A testa de Cato franziu-se. — A sós? — Sim. — Não aceito esconder o que quer que seja do Macro. O que é? — Algo de natureza pessoal. Que não diz respeito ao Macro. Confia em mim.
Cato abanou a cabeça. — Confiança não é uma coisa com que contemos quando se trata de lidar consigo.
— Ainda assim, acho que seria melhor se o que tenho a dizer-te fosse dirigido apenas aos teus ouvidos.
Macro deu uma palmada na própria perna. — Miúdo, isto não é nada comigo. Francamente, já ouvi dele tudo o que queria ouvir. Eu espero lá fora.
Antes que Cato pudesse responder, Macro pôs-se de pé e avançou para a porta. Quando a fechou nas suas costas, Cato voltou-se para o secretário imperial, magoado pela ausência do amigo.
— O que se passa? O que é que pode ser tão pessoal que o meu melhor amigo não possa ouvir?
Narciso cerrou os olhos por momentos. — Diz respeito à tua esposa. — Júlia? — Cato sentiu o coração dar um pulo. — O que há acerca dela? Narciso assumiu uma expressão de simpatia e adiantou a mão para
tocar no ombro do jovem, mas hesitou um momento, e acabou por a recolher.
— Não há forma de dizer aquilo que tenho a dizer sem te causar dor, mas por favor acredita que aquilo que te vou contar é para teu próprio bem.
Cato sentiu a fúria a nascer dentro de si. — Mande-o cá para fora e acabe com isto. O que há com a minha esposa? Narciso recuou para a secretária e sentou-se atrás dela, de forma a ter pelo menos um obstáculo
entre si e o prefeito.
— Nos próximos dias vais começar a descobrir coisas acerca das... atividades da tua esposa, na tua ausência. Sei bem que tu e ela eram muito próximos, e que estavam casados havia muito pouco tempo quando
recebeste ordens para ir ocupar o teu comando na Britânia. Não tenho dúvidas de que ela te amou até ao fim. A morte dela foi uma tragédia, claro, e...
Cato inclinou-se para a frente, os olhos arregalados e a expressão intensa. — O que está a dizer sobre a »lia? — Ela é... era... humana. Todos nós temos as nossas necessidades, Cato. Tenho a certeza de
que não precisas que te pinte um quadro. Tinhas partido para a guerra, e havia boas possibilidades de que ficasses longe durante muito tempo, até mesmo de que nunca voltasses. A Júlia era de carne e osso.
Sem dúvida, de tempos a tempos sentir-se-ia só. Quem sabe? Mas podes realmente condená-la por procurar consolo nos braços de outra pessoa?
As palavras atingiram Cato como um golpe de um pesado martelo no coração e na mente, e uma onda de náusea subiu-lhe à boca, vinda do fundo do estômago.
— Não... É uma mentira. — Sei bem que é nisso que queres acreditar. Bem gostaria que não fosse verdade, de todo o coração.
— Sacana imundo, não tem coração! Não acredito nisso. — Cato bateu a mão com força no tampo da mesa, e Narciso encolheu-se por instinto, mas manteve uma expressão de compostura.
— Não esperava que me acreditasses. Ainda assim, é a verdade. — Não. Narciso recomeçou a falar, mas depois recostou-se na cadeira e cruzou as mãos, pacientemente. A mente de Cato estava em turbilhão,
dividida entre a recusa de acreditar e a necessidade de ouvir mais, de tentar compreender.
— Como sabe disto? — inquiriu. — Como? — Saber disto é a minha função. Claro que a vigiei. Cato abanou a cabeça. — Mas que possível interesse tinha ela para si? Ela nunca foi uma ameaça para ninguém.
Porquê espiá-la?
— Não estava a espiá-la. Era o pai dela que eu mantinha sob observação.
O senador Semprónio não é um dos homens mais ricos, mas tem alguma influência no Senado. É o tipo de pessoa que os outros escutam, e portanto é precisamente o tipo de homem que me faria fazer papel de
parvo se não o vigiasse.
— O que tem tudo isso a ver com a minha mulher? — Nada. Exceto pelo facto de ela ter sido vista a deixar a casa do senador na companhia de outro homem, um que me interessa particularmente. Foram seguidos
até à casa do Quirinal, e o homem foi visto a entrar na casa e sair dela na manhã seguinte.
Cato tentou escapar à única conclusão que podia extrair do relato do liberto. Sentia o peito preso num turbilhão de desespero, fúria e ódio, e a respiração custava-lhe. Como podia ela ter feito aquilo?
Como podia aquilo ser verdade? Como podia ela tê-lo traído? Colocou a palma da mão na testa e fechou os olhos, tentando afastar a ideia. Mas lá dentro, no olho da sua mente, viu Júlia e o estranho a entrarem
no mesmo átrio em que ele tinha entrado pela primeira vez na noite anterior. Imaginou-os a entrar no quarto, Júlia a virar-se para o homem, a abraçá-lo, a beijá-lo e depois... Afastou a imagem da mente,
e abriu os olhos de repente.
— Quem é ele? — Não te diz respeito, Cato.
— Não me diz respeito? Um homem que fode a minha mulher, e você diz que isso não me diz respeito? Eu digo que diz, sim. E agora diga-me o seu nome, antes que me veja obrigado a fazê-lo cuspi-lo, seu cabrão
oleoso.
Cato fez menção de rodear a mesa, e Narciso levantou uma mão. — Para! Se te dissesse o nome dele, tu ias acabar por fazer alguma estupidez. Mesmo que conseguisses aproximar-te dele o suficiente para o
atacar, a resposta cairia não apenas sobre ti, mas também sobre o teu filho e todos os que te são próximos. Lúcio, Macro, o senador Semprónio. Estás disposto a ter também o sangue deles nas tuas mãos,
Cato?
— Não é verdade — murmurou. — É uma mentira. Toda essa história. — Acredita, bem gostaria que as coisas fossem diferentes, Cato. Não é algo fácil para um homem escutar.
Cato olhou para ele com uma expressão derrotada. — Então porquê contar-me? — Mais cedo ou mais tarde, acabarias por descobrir a verdade. É melhor que o saibas por mim do que por ditos e rumores que oiças
a outros. Imagino que prefiras não ter homens a rirem-se de ti nas tuas costas.
Cato teve que refrear a ira que o dominava, e cerrar os dentes. Queria soltar a raiva, bater nalguma coisa, mas sabia que isso de nada serviria. Não afastaria a mágoa nem a súbita e chocante vaga de ódio
por Júlia que o invadia.
— Cato, precisas de te recompor — avisou Narciso. — Daqui a pouco, tens uma audiência com o Imperador. Tens que te apresentar composto, seja lá o que for que te passe pela cabeça. Compreendes? Tens que
afastar tudo isto da mente. Para teu bem, e do Macro também. Temos que ir já. — Narciso levantou-se da secretária e dirigiu-se à porta.
Cato manteve-se no mesmo sítio, atordoado pelo que tinha ouvido. O pouco que restava do seu mundo, depois de saber da morte de Júlia, estava agora reduzido a ruínas. Porém, sabia que tinha de continuar.
Para bem do seu filho, e do seu melhor amigo. Para lá do que pudesse ter acontecido realmente. Podia pensar na Júlia mais tarde, quando estivesse sozinho.
— Pronto? — Narciso franziu uma sobrancelha, mas não esperou pela resposta, e levantou o ferrolho e abriu a porta. Macro estava encostado à parede do corredor ali perto, e dirigiu-se para eles com um
sorriso trocista no rosto.
— Chegou a altura de ir enfrentar o Imperador? Narciso anuiu.
O centurião virou-se para Cato. — Pronto para isto, senhor?
Cato respirou fundo, de novo consciente de que os outros o observavam, e assentiu.
— Nunca estive mais pronto.
O salão de audiências era um espaço de teto alto que já estava cheio quando eles se sujeitaram a uma revista feita por um dos mercenários germânicos que formavam o contingente da guarda pessoal do Imperador.
Como muitos da sua raça, o mercenário era alto e forte, e usava tanto o cabelo como a barba longos. O seu conhecimento do latim era rudimentar, e falava com um forte sotaque; Macro detestou-o de imediato.
— Olha, pá, já mandei para a outra vida mais do que um punhado de sacanas do teu género. Portanto, mantém essas patorras longe de mim, sim?
— Ah — resmungou o germânico. — Eu matar muitos romanos antes de vir fazer isto.
— A sério? Queres experimentar comigo, quando saíres de serviço? — Macro — interveio Cato, tentando acalmar a situação. — Já chega.
Seguiram Narciso pela parte lateral da câmara, passando por trás das filas de senadores, oficiais e apresentadores de petições, e tomaram posição a curta distância do pódio, de onde o Imperador Cláudio
presidia à sessão, do conforto do seu trono acolchoado e almofadado, em tom púrpura. Tal como Narciso, o Imperador tinha envelhecido consideravelmente desde a última vez que Cato o vira, e sentava-se
com a cabeça descaída para o peito e ligeiramente de banda, enquanto se esforçava para escutar o que era dito. A ladeá-lo, em cadeirões menos imponentes, sentavam-se a Imperatriz, Agripina, o seu filho,
Nero, e o mais jovem Britânico. Atrás deles estava Pallas, de pé, e outros libertos imperiais, alguns deles a tomar notas em tábuas enceradas, para registar o evento. A cada canto da plataforma elevada
estava um mercenário germânico, todos eles de mãos nos punhos das longas espadas, a observar todos os que se encontravam no salão, atentos a qualquer sinal de uma ameaça.
À frente do grupo imperial havia um espaço vazio, e nele um jovem tribuno dirigia-se ao Imperador. Estava muito evidentemente nervoso, e Cato viu o brilho do suor na testa do homem, por baixo dos caracóis
muito bem oleados da franja.
— Sua Excelência o governador da Hispânia Tarraconense deu-me instruções para vos assegurar de que a revolta está contida, e que o líder rebelde, Iskerbeles, e os seus seguidores, serão aprisionados e
esmagados antes do fim do ano. Embora ele disponha de forças adequadas em Asturica Augusta, as suficientes para conter o problema, solicita reforços para assegurar uma resolução da situação no menor espaço
de tempo possível.
Cláudio acenou de forma vaga, enquanto Pallas dava um passo em frente para responder ao tribuno.
— Quantos homens pede o governador? O tribuno respirou fundo e tentou responder num tom calmo. — Ele considera que uma legião deverá ser suficiente... Sobretudo se puder ser-lhe atribuída a Terceira Legião.
Levantou-se um burburinho na multidão, antes de Cláudio chamar Pallas e se dedicarem a uma curta troca de impressões enquanto os murmúrios se acalmavam, deixando ouvir de novo o distante barulho de fundo
que provinha do fórum, e que se introduzia pelas janelas junto ao teto. Pallas endireitou-se e voltou a dar atenção ao tribuno.
— Dizes tu, então, que nos é solicitada uma legião completa? — Sim. — Para abafar uma rebelião de um punhado de aldeãos? A expressão do tribuno alterou-se por momentos. — Os rebeldes atuam numa região
vasta e de terreno difícil. Não conseguimos guardar todas as povoações, todas as minas e todas as propriedades, e ao mesmo tempo enviar forças para os encurralar e os forçar a dar-nos batalha. É por isso
que o governador necessita de reforços. Está certo de que, com suficientes homens, pode acabar rapidamente com a rebelião.
Pallas desdenhou da ideia. — Com suficientes homens, tribuno, atrevo-me a pensar que tudo é possível.
O Imperador agitou-se, como se acabasse de acordar de uma sesta, e piscou os olhos.
— Não podemos dar-lhe a le-legião, se ele precisa mesmo dela, P-P-Pallas? O liberto debruçou-se para falar ao ouvido do seu senhor. — Sire, a Terceira Legião é necessária na Hispânia, mas noutro local.
Se a enviarmos para Asturica Augusta, teremos que reduzir as guarnições no resto da província. É um risco demasiado grande.
— Oh... — Cláudio anuiu com ar vago. — Muito bem, a-acho eu. Cato avistou um vulto que se destacava da multidão, um homem corpulento com queixo duplo e uma coroa de cabelo cinzento em redor da careca.
O homem dobrou-se profundamente em frente ao Imperador antes de tomar a palavra.
— Sire, se puder deixar algumas palavras? Cláudio agitou a mão, à laia de permissão. — Como queiras, senador Lúcio Aneu S-Séneca. Séneca virou os seus olhos escuros para Pallas. — Penso que devíamos seguir
a opinião do governador da província. No fim de contas, ele está lá, a enfrentar a ameaça, enquanto nós estamos aqui, muito longe, e sem conhecimento das precisas circunstâncias da situação. Se ele considera
necessário solicitar a assistência da Terceira Legião, devemos respeitar o seu julgamento.
Pallas deu um passo em frente, para se assegurar de que todos o poderiam ver claramente e escutar as suas palavras.
— O teu ponto de vista terá alguma coisa a ver com o facto de possuíres extensas propriedades na região, sem falar de partes de muitas das minas de prata, imagino?
— É bem verdade, liberto — retorquiu Séneca, revestindo a última palavra de desdém. — Mas isso é também verdade para muitos outros senadores, e até para o próprio Imperador. É para defender os seus interesses
que intervenho ao lado do governador neste assunto. Se perdermos o controlo das minas, os rebeldes terão acesso a uma quantidade de prata suficiente para recrutar muitas outras tribos para a sua causa.
E não nos esqueçamos de que é essa mesma prata que paga os legionários e auxiliares que guarnecem toda a Hispânia. Não preciso de te recordar, nem a sua Majestade Imperial, que a lealdade das nossas corajosas
legiões é comprada, e não dada de livre vontade. Só precisamos de ver alguns anos passados, e recordar a tentativa que o legado Escriboniano fez para derrubar o Imperador, para termos provas do que afirmo.
Só a compra das suas legiões com uma boa maquia lhe retirou o apoio e fez com que o golpe falhasse. Não me parece que possamos ter grande confiança nas hipóteses de o governador esmagar a revolta com
o número limitado de tropas que tem presentemente ao seu dispor. — Séneca fez uma pausa para deixar que as suas palavras penetrassem nos espíritos dos ouvintes. Depois deu meio passo na direção do estrado
e baixou a voz, prosseguindo num tom mais suplicante: — Sire, peço-vos, não corramos riscos.
Enviai a Terceira Legião para decidir o assunto de vez. Quanto mais depressa a ordem for restaurada, mais depressa o fluxo de prata pode ser retomado.
Cato percebeu a indecisão que tomara conta do Imperador na sua expressão, mas antes que ele pudesse responder, Pallas voltou a intervir.
— O teu conselho é agradecido, senador. Mas repito: existe um real perigo de já termos as tropas demasiado dispersas pela Hispânia, não nos podemos arriscar a concentrar as nossas forças para suprimir
a revolta.
— Nesse caso, temos que encontrar reforços noutro sítio qualquer — persistiu Séneca.
— E onde vamos nós encontrar esses homens, precisamente? — inquiriu Pallas. — A campanha na Britânia já esgotou as reservas da Gália e da fronteira do Reno. Não podemos muito simplesmente fazer soldados.
— Nesse caso, trazemos outros. — As legiões mais próximas que podem estar disponíveis estão estacionadas ao longo do Danúbio. Seriam necessários meses para as transferir para a Hispânia. — Pallas cruzou
os braços. — O governador terá que se arranjar com os homens que tem. Não é assim, sire? — Pallas deixou ao Imperador a confirmação da decisão.
Mas Séneca ainda não estava derrotado. — Sire, existem outras forças disponíveis de forma mais rápida. Há quase dez mil homens nas coortes da Guarda Pretoriana, que tem pouco com que se ocupar no presente
momento. E foi-me dado a conhecer que duas coortes auxiliares desembarcaram em Ostia há poucos dias, a caminho de se juntarem ao exército na Britânia. Temos portanto homens mais do que suficientes e disponíveis
para serem enviados em auxílio do pressionado governador da Hispânia Tarraconense. Sire, será apenas necessária uma palavra...
— Penso que o bom senador, devido à sua exígua experiência militar, não consegue aperceber-se da situação estratégica global — contrariou Pallas. — As coortes auxiliares são necessárias, e muito, na Britânia.
Não podemos pensar em enviá-las para a Hispânia Tarraconense.
Cato não conseguiu evitar um sorriso, apesar de ter o coração pesado. Séneca era um dos muitos da sua classe que tinham optado por evitar o serviço no exército, no começo das suas carreiras senatoriais.
O liberto imperial tinha tocado num ponto sensível, a julgar pelas expressões divertidas de muitos dos presentes na câmara de audiências. Haveria alguns que se sentiriam de certa forma justificados no
desprezo que nutriam pelo político aperaltado.
Séneca fingiu ignorar o desdém enquanto prosseguia. — Redirecionar essas coortes não seria mais do que adiar ligeiramente a sua transferência para a Britânia. E não me digam que Roma não pode dispensar
os serviços de algumas coortes de pretorianos. Além disso, seria uma excelente oportunidade para que eles mostrassem de novo o seu valor em ação, e provassem que servem mais do que um propósito cerimonial.
Sire, não vejo qualquer razão válida para não enviarmos para a Hispânia as forças que refiro, e pôr fim a esse tal Iskerbeles e aos seus seguidores. Uma vitória rápida e algumas medidas punitivas impiedosas
servirão de boas lições para outros quaisquer que pensem em desafiar a vontade de Roma. E não apenas a vontade de Roma, Sire. Isto representa um desafio à vossa autoridade. É a vós que eles desafiam...
É do vosso nome que troçam com as suas ações. Mal posso imaginar como isso fere o vosso orgulho e vos inspira a tomar ações decididas.
Era um risco dirigir-se ao Imperador de forma tão pessoal, percebeu Cato, e voltou a sua atenção para Cláudio, notando de imediato que aquelas palavras tinham acertado no alvo. O idoso endireitou-se,
empertigou-se, e assumiu uma pose tão imperiosa quanto a sua idade e físico afetado lhe permitiam. Ao seu lado, Pallas lançou um olhar assassino a Séneca, mas antes que conseguisse organizar uma contra-argumentação,
o Imperador tossiu de forma audível e limpou a garganta.
— Esses atrevidos da Hi-Hispânia vão ter o que merecem. Como se atrevem a de-desafiar-me? O Séneca tem razão. Temos os homens necessários para tratar disto. Já é bem t-tempo que os pretorianos façam por
merecer as dádivas de que os tenho coberto. Enviaremos oito coortes para a Hispânia. E também as duas c-c-coortes que estão em Ostia. P-Pallas, trata imediatamente de redigir as ordens para as tropas.
O liberto lançou um olhar à Imperatriz, a implorar uma intervenção, mas esta fez um quase impercetível movimento com a cabeça, a negá-la, e Pallas calou o protesto e baixou a cabeça.
— Será feito como Vossa Majestade Imperial ordena. Séneca não fez qualquer esforço para disfarçar a expressão satisfeita, enquanto ao seu lado o tribuno suspirava, aliviado.
— Isso deixa em aberto a questão de quem deve c-comandar esta força — prosseguiu Cláudio, levando uma mão ao queixo para o coçar, pensativo, enquanto olhava para os rostos dos que o rodeavam. De imediato
a expressão de Pallas tomou um ar calculista, e ele avançou de forma a colocar-se entre Cláudio e Séneca.
— Sire, posso sugerir o nome do senador Vitélio? Tem experiência de pequenos comandos independentes, como neste caso.
Macro soltou um assobio baixo, antes de murmurar: — Esse cabrão de cu gordo era a última pessoa a quem eu confiaria um comando.
Cato anuiu, e deu um toque em Narciso. — Porquê o Vitélio? O que é que o Pallas pretende?
— O Vitélio faz parte da fação do Nero — sussurrou Narciso. — Suponho que será útil criar uma relação de lealdade entre o Vitélio e boa parte da Guarda Pretoriana, quando chegar o momento de decidir quem
sucede a Cláudio.
O Imperador refletiu por momentos, e assentiu. — O Vitélio está cá esta m-manhã? Cato olhou em redor do salão e reparou no movimento que se dava numa área junto à ponta oposta do estrado, onde vários
homens se afastavam para deixar passar alguém. Um homem alto, bem constituído, com cabelo escuro oleado e bem penteado. Avançou até ficar ao lado de Séneca e dobrou-se.
— Foda-se — soltou Macro. — Está em melhor forma do que alguma vez o vi.
Cato assentiu. Era verdade. Tinham servido ao lado de Vitélio anteriormente, e o gosto do aristocrata por boa comida e vinho fizera dele um portento, tanto de corpo como de corrupção. Pior do que corrupto,
como Cato descobrira. O homem tinha uma ambição insaciável, e pouco pejo em manipular quem lhe aparecesse pela frente, desde que servisse para alcançar os seus fins. Como Macro tinha observado, Vitélio
trabalhara muito claramente na melhoria do seu aspeto físico, tendo perdido imenso peso e tonificado o corpo, de tal forma que agora apresentava uma figura de respeito, admitiu Cato.
Cláudio pestanejou quando o viu. — Senador Vitélio, aceitas este comando? Vitélio deixou escapar um sorriso fácil. — Sire, seria uma honra. Como qualquer oportunidade de vos servir.
Macro fungou levemente. — Sacana de lambe-cus. — Sire, posso pedir-vos um favor? — prosseguiu Vitélio. — Para conduzir de forma efetiva esta missão, peço que me seja dada a possibilidade de escolher os
oficiais que me vão auxiliar.
— Claro. Podes então levar oito coortes dos meus p-p-pretorianos, e escolher à tua vontade os oficiais que te acompanharão nesta missão. Estou certo de que me honrarás imenso, a mim, a Roma e ao nome
da tua família.
Vitélio voltou a curvar-se com graciosidade. — Também levarás as d-d-duas coortes acampadas nos arredores de Ostia. Serão enviadas para se juntarem ao exército na B-Br-Britânia assim que este patife do
Iskerbeles seja derrubado.
— Sim, sire. Cláudio ergueu uma mão tremelicante e fez estalar os dedos fracamente.
— Britânia... Isso leva-nos ao próximo a-assunto. Narciso! O secretário imperial fez um gesto a Cato e Macro para que o seguissem, e abriu caminho por entre os que estavam à sua frente, até emergir no
espaço livre diante do estrado. Vitélio olhou para lá, e Cato notou que as sobrancelhas do senador se erguiam em surpresa, antes de lhes lançar um sorriso frio.
— Centuriões Cato e Macro, há muito tempo que não vos via. Tens-te portado bem, Cato. Ouvi dizer que já és prefeito.
Cato acenou em reconhecimento. — E o senhor permanece como sempre foi. Voltou-se para se juntar a Macro e Narciso, e curvar-se perante o Imperador. Cláudio fez um gesto na direção dos dois oficiais.
— São estes os homens? — Sim, sire. Permita-me que lhe apresente o prefeito Quinto Licínio Cato e o centurião Lúcio Cornélio Macro, recém-chegados da campanha na Britânia.
— Excelente, excelente! — O sobrolho de Cláudio franziu-se. — Já nos encontrámos, não foi?
— Sim, sire — retorquiu Narciso, antes que qualquer um dos oficiais pudesse falar. — Já no passado vos prestaram serviços de grande relevância. Mas em tempos mais recentes, são estes os dois heróis responsáveis
pela captura do Carátaco, o líder das tribos que se opuseram a nós na Britânia.
Cato estava bem consciente do escrutínio a que era sujeito, já que todos os olhos na sala de audiências se fixaram neles, de sentido em frente ao Imperador. Cláudio fitava-os com prazer, e bateu as palmas.
— Um brilhante es-esforço! O Narciso leu-me o relatório da captura ocorrida em plena batalha! É verdade que vocês os d-dois tiveram que 1-1-lutar para abrir caminho entre os seus guardas de corpo antes
de o capturar?
Cato fez uma pausa e obrigou-se a pensar rapidamente. Aquele não era o momento de se perder em detalhes, mais dos que eram necessários para aceitar os elogios e pôr fim à sessão o mais depressa possível.
Ainda sentia que precisava desesperadamente de ficar só, para ponderar tudo o que Narciso lhe tinha dito sobre Júlia. Além disso, entrar em detalhes poderia acabar por o levar a admitir que Carátaco lhes
tinha escapado depois da batalha, e necessitara de ser perseguido e recapturado na terra dos brigantes. Respirou fundo.
— Foi uma dura refrega, sire. Tão difícil como qualquer outra em que o centurião Macro e eu tenhamos participado. O inimigo tinha resolvido defender uma íngreme colina na outra margem de um rio. Chovia
fortemente, o que quis dizer que tivemos de lutar contra a lama, para lá dos guerreiros nativos, e durante algum tempo a batalha esteve longe de uma decisão, até que eu e o centurião conduzimos os nossos
homens num ataque pelo flanco.
Apanhámo-los desprevenidos, avançámos com toda a força, e quebrámos-lhes a resistência. Foi nessa altura que capturámos o Carátaco, sire. Ele, e a maior parte da sua família.
— E neste momento, estão ac-aco-acorrentados mesmo por baixo dos nossos pés! — Cláudio soltou uma gargalhada estridente e, seguindo o exemplo de Pallas, muitos outros se lhe juntaram, mesmo sem vontade,
até que o Imperador se interrompeu para continuar a dirigir-se aos dois oficiais. — E daqui a dois dias serão levados pelas ruas de R-Roma para que todos os vejam, antes de serem executados nos degraus
do t-t-templo de Júpiter, o maior e melhor. E tu, meu caro prefeito, e tu, ce-cen-centurião, serão recompensados com a liderança da guarda de honra da pr-procissão.
Cato baixou a cabeça, em sinal de deferência. — Senhores, ganharam o direito à nossa gratidão. Enquanto Roma tiver soldados como vocês, as nossas fronteiras estarão seguras, os nossos inimigos t-t-temer-nos-ão,
e os deuses não deixarão de nos conceder os seus favores. — Cláudio pôs-se de pé desajeitadamente, e ergueu uma mão numa saudação. — Que todos saúdem o prefeito Cato e o centurião M-Macro!
A audiência repetiu as palavras do Imperador e soltou uma aclamação. O ruído encheu a câmara e ecoou nas suas paredes de grande altura. Macro não deixou de sorrir, deliciado com a aclamação. Mas a expressão
de Cato não se animou, já que o momento em que devia estar mais feliz e mais orgulhoso das suas conquistas fora manchado pela perda da esposa e pelo veneno da traição à sua confiança que ela cometera.
A câmara, o barulho e a atenção que todos lhe dedicavam pareceram abafá-lo, e ele nada mais queria do que escapar dali.
Mas não havia forma de fugir aos aplausos e ao bater de pés. Pelo menos até ao momento em que o Imperador erguesse as mãos a pedir silêncio. À medida que o som crescia, Cláudio fez menção de falar, mas
depois exibiu uma careta e levou uma mão ao estômago. A sua expressão era de agonia, e ele deixou-se cair no trono, enquanto Narciso corria pelos degraus do estrado acima e fazia sinais aos escravos pessoais
que estavam atrás do trono.
— Sua Majestade Imperial está fatigada. Levem-no para os seus aposentos.
Os gritos alegres do momento anterior foram substituídos por murmúrios ansiosos, e Cato viu Agripina sentada imóvel na sua cadeira, sem dar sequer uma indicação de que ia ajudar o seu esposo em dificuldades.
Ao seu lado, o filho olhava para a situação, e os cantos da boca levantavam-se num ligeiro sorriso de satisfação, antes de se dar conta do que o rodeava e fazer uma tentativa de parecer preocupado, enquanto
os escravos levantavam o Imperador do trono e o carregavam cuidadosamente na direção de uma pequena porta na parede do fundo da sala. Narciso e Pallas trocaram umas palavras, antes de o último dar uns
passos até à frente do estrado e se dirigir à audiência.
— A sessão está terminada. Quaisquer petições que existam devem ser entregues aos meus escribas. Obrigado... Obrigado. — Acenou na direção dos mercenários germânicos ao fundo da câmara e estes abriram
as portas que davam para o largo corredor. A audiência começou a sair, e Vitélio virou-se para Narciso e os seus companheiros.
— Correu tudo bem para todos nós. Vocês são heróis de guerra, e eu estou prestes a tornar-me também um.
Macro olhou para ele com maus modos. — Um dia que ninguém devia ver chegar. Vitélio riu. — Centurião, não ajudas nada. Cáustico até ao fim. Mas esqueço-me do mais importante. Meu caro Cato... — Encarou
o prefeito e conduziu-o para longe de Macro enquanto adotava uma expressão de piedade. — Gostava de te oferecer as minhas condolências pela tua triste perda. Sei que isso sucedeu há já alguns meses, mas
tendo apenas agora regressado a casa, imagino que a tua dor ainda esteja muito viva. A tua esposa era uma excelente mulher. Muito inteligente, encantadora, e muito bela. Foi uma grande perda para todos
os que a conheciam.
Houve uma ênfase deliberada nas últimas palavras, e Cato sentiu a ira a crescer de imediato.
— O que está a dizer? Narciso apressou-se a chegar junto dele, pegando-lhe no braço e tentando afastá-lo de Vitélio.
— Cato, vem. Este não é o lugar nem o momento. Cato sacudiu-lhe a mão e enfrentou Vitélio. — O que está a querer dizer sobre a Júlia? — Contigo tão longe, e dado o facto de ela ser tão atraente, é muito
compreensível que alguns homens tenham querido aproveitar a oportunidade para conquistar as suas afeições. Imagino que tudo tenha sido bastante inocente...
Na maior parte dos casos. No fim de contas, ela era uma mulher honrada.
— Ele está a provocar-te — avisou Narciso. — Vamos. Podemos cuidar disto depois.
— Não. Podemos cuidar disto agora mesmo — replicou Cato, furioso.
Avançou até se colocar face a face com Vitélio. — Diga-o. Desafio-o, seu sacana arrogante e ranhoso. Diga-o.
— Digo o quê? Que a tua mulher era atraente? Que tinha vários seguidores estilize os homens de Roma?
Cato levantou o punho, mas antes que pudesse desferir o golpe, Narciso agarrou-lhe a mão.
— Cato, aqui não. Não à frente de testemunhas. É isso que ele quer. Se o atacares aqui, no palácio, serás banido de Roma, sem piedade. Enviado provavelmente para o mais longínquo canto do Império. Lá,
não servirás para grande coisa. Ficarás longe do teu filho. Portanto, Cato, recupera o controlo dos teus atos. Agora mesmo!
O sangue pulsava-lhe aos ouvidos, e o ódio e a fúria dilaceravam-lhe o coração, e por momentos Cato foi consumido pela necessidade absoluta de destruir Vitélio. De o desfazer com as mãos nuas, de o fazer
em pedaços. Não havia controlo nenhum. Nada podia detê-lo. E foi isso que acabou por o trazer da borda do precipício do horror de se ver confrontado com um apetite e uma capacidade que vinham do mais
profundo do seu ser, tão perigosa e incontrolável como um animal raivoso. Respirou fundo, o peito a arfar, enquanto obrigava os seus sentimentos a refrearem-se, desfazia os punhos cerrados e deixava os
braços pender ao seu lado. Cato fechou os olhos e baixou a cabeça.
— Tudo bem... Eu estou bem.
Depois de regressarem à casa do Quirinal, Cato explicou a Macro que se sentia fatigado, e que precisava de descansar. Respirou fundo, e entrou no quarto. Estava escuro lá dentro, e a atmosfera era um
tanto sombria, pelo que abriu a janela que dava para o átrio. Um pequeno pássaro tinha acabado de pousar na margem do charco pouco profundo que recolhia a chuva que tombava das telhas. Cato observou a
forma como ele mergulhou, lançando um pequeno repuxo para o ar, e se começou a lavar, mexendo rapidamente a cabeça e as asas. O óbvio deleite do pássaro, a sua inconsciência absoluta dos problemas do
mundo, comoveu-o de uma forma que não conseguiu aguentar, pelo que teve de afastar o olhar rapidamente. À sua frente estava a cama. Na noite anterior tinha dormido ali, e recolhera algum conforto por
se sentir próximo da esposa. Mas agora, enquanto olhava, sentiu a primeira onda de raiva perante a cena da traição. Aquela cama fora partilhada por Júlia e pelo seu amante. Parecia-lhe suja.
O brilho baço do amuleto em que reparara na noite anterior captou-lhe a atenção, e sentiu um nó no estômago. Pegou-lhe e examinou-o de perto. O trabalho era perfeito, um intrincado padrão de parras rodeava
o centro. Seria realmente um presente para ele?, interrogou-se. Ou teria sido deixado ali pelo amante de Júlia? Então reparou em duas letras gravadas no meio das folhas, um C que se sobrepunha a um J.
O coração caiu-lhe para a boca do estômago.
Atirou o amuleto ao chão, e ele rebolou para baixo da cama.
Agachou-se, olhou por baixo do leito e viu o objeto no chão, junto a uma caixinha meio escondida, de forma a não ser vista facilmente por um visitante ocasional. Deitou-se no chão, esticou o braço e conseguiu
agarrar a caixa com a ponta dos dedos. Puxou-a para fora e sentou-se de pernas cruzadas nas lajes do pavimento enquanto tratava da fechadura e abria a tampa.
Lá dentro estava um molho de rolos de papiro, presos por baixo de um retrato de um homem de cabelo claro, pintado num fino pedaço de madeira. Cato franziu o sobrolho. Engoliu em seco e pigarreou, irritado.
Pegou no retrato e contemplou as feições bem torneadas de um homem aproximadamente da mesma idade que ele. Os olhos eram castanhos, e nos lábios dançava-lhe um ligeiro sorriso, como o de alguém que conhecia
um segredo. Ao contrário do rosto de Cato, aquele não tinha qualquer cicatriz, e as feições eram suaves. Era belo... O pensamento agrilhoou-o, ao imaginar Júlia a contemplar aquela mesma imagem com afeição,
e luxúria. A ira correu-lhe pelas veias, e ele voltou a colocar a imagem no fundo da caixa, de rosto para baixo, extraindo os papiros.
Tornou-se instantaneamente clara a sua natureza. Eram cartas de amor, todas escritas pela mesma mão e assinadas ”Cristo”, por vezes numa forma abreviada, ”Gris”. Cato leu-as com olhar firme, enquanto
a agonia e a fúria aumentavam no seu ser. Contavam a história de um amor apaixonado que crescera ao longo do tempo, das dádivas que Júlia tinha oferecido ao seu amante, do prazer físico extraordinário
que tinham partilhado, e depois, o mais doloroso, a forma como poderiam remover o inconveniente obstáculo à sua felicidade que consistia no marido de Júlia. Era possível, esperava Cristo, que ele tivesse
um momento de decência e morresse numa campanha... Se tal não sucedesse, era imperioso confrontá-lo quando regressasse da Britânia. Júlia devia comunicar a situação ao esposo o mais cedo possível, e exigir
um divórcio.
Por fim, Cato acabou a leitura; voltou a colocar as cartas na caixa e fechou-a, de forma cuidadosa e deliberada.
— Porque me fizeste isto? Porquê, Júlia? Não fiz nada de errado... Nada fiz para merecer isto.
Por fim, subiu para a cama, e enrolou-se numa bola, enquanto se deixava levar por uma maré de negra miséria. Mantinha-se imóvel, de olhos fechados mas sem dormir, e o tempo foi passando sem alarde, como
um gato que não queria arriscar-se a acordar o seu dono. Finalmente, ouviu um raspar na porta da rua. Uma pausa, e o mesmo som voltou a fazer-se ouvir. E outra vez. Então, escutou os passos de Amatapo,
que se dirigia sem pressa para a porta, para atender a impaciência evidente do visitante que aguardava na rua. Cato ouviu o remexer da fechadura e o raspar da tranca, e os sons abafados do exterior que
se fizeram ouvir, seguidos de uma troca acesa de palavras. O volume cresceu quando Amatapo e o visitante entraram no átrio.
— Posso garantir-lhe que o meu senhor não está cá, senhor — dizia Amatapo. — Agora saia, por favor, antes que me veja obrigado a chamar os vigilantes.
— Força. Chama-os — contrariou outra voz. — Nada me faria mais feliz do que levar este assunto à atenção das autoridades. Assim podíamos ver o que os magistrados da cidade tinham a dizer sobre isto, hã?
— Senhor, peço-lhe respeitosamente que saia — ripostou Amatapo, pacientemente. — Deixe-me uma mensagem para entregar ao meu senhor, e estou certo de que ele lhe responderá assim que puder.
— O caralho. Fico aqui até que o prefeito regresse. — Senhor, não pode fazer isso. — Não? O que vais fazer acerca disso, então? Cato suspirou, ergueu-se da cama e pôs-se de pé. Abriu a porta do quarto
e saiu para o átrio, onde avistou um homem corpulento de cabeça rapada a enfrentar Amatapo, que continuava a implorar-lhe que saísse. O visitante envergava uma túnica de tom ocre, e em volta do pescoço
grosso usava uma espessa corrente de ouro. Os braços pareciam presuntos, e estavam cruzados sobre o barril que era o peito, e as pernas curtas e grossas surgiam por baixo da bainha da túnica. A aparência
ameaçadora era completada pelas botas militares. Cato franziu o sobrolho enquanto se aproximava.
— Quem és tu, por Hades, e o que queres ao entrar na minha casa sem seres convidado?
O homem virou-se de repente e avaliou Cato rapidamente. — És Quinto Licínio Cato? — Sou o prefeito Quinto Licínio Cato, sim.
O homem encolheu os ombros. — Pois, mas isto aqui não é o exército, pois não? Portanto, vamos esquecer essa trampa toda, para começar.
Cato deteve-se à distância de uma espada e encarou o homem com um olhar gelado.
— Muito bem. Mas vejo que já estiveste no exército. Isso é claro e evidente.
Não tens idade para teres concluído todo o período de alistamento, e também é notório que não passaste à disponibilidade por não estares em boas condições físicas. Diria que eras um optio, ou talvez mesmo
um centurião.
Os lábios do homem franziram-se por momentos, antes de acenar. — Décima Legião. Cheguei a centurião. — Não o deves ter sido por muito tempo. Era capaz de apostar que foste expulso.
O orgulho desapareceu do rosto do homem, e ele olhou para Cato com maus modos.
— Portanto, soldado, quero o teu nome — exigiu Cato. — Imediatamente. — Seja. O meu nome é Marco Tórcio Tauro. — E o que posso então fazer por ti, Tauro? — Pode pagar-me o que me é devido, eis o que pode
fazer por mim.
Cato franziu o sobrolho. — O que te é devido? Nem sequer te conheço. Que história é essa? Tauro deitou a mão à sacola que levava ao ombro e extraiu dela um conjunto de tábuas enceradas. Abriu-as, e leu
em voz alta:
— Conta por pagar do prefeito Quinto Licínio Cato, oitenta e cinco mil, novecentos e cinco denários, sem incluir os juros devidos por mais este mês.
Os olhos de Cato esbugalharam-se. — Estás enganado. Não te pedi nenhum dinheiro emprestado. Nem sequer te conheço.
— Senhor, o empréstimo foi pedido pela sua falecida esposa. Ela pediu-o em seu nome, com a garantia do valor da sua casa.
— A Júlia? Não acredito nisso. — Tenho o registo completo das contas no meu escritório, no fórum. Todas assinadas por ela e seladas pelo seu anel. Nestas tábuas tenho os sumários, se os quiser ver. Mas
asseguro-lhe que tudo é verificável e — mais importante — com valor legal.
Cato estendeu a mão. — Deixa-me ver. Tauro hesitou e depois aproximou-se, mostrando as tábuas a Cato, mas não as largando. Cato passou os olhos pelas longas colunas de números e datas, enquanto sentia
que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Mas o que tinha Júlia andado a fazer na sua ausência? Que estilo de vida tinha ela adotado? Já conhecia parte da resposta, mas por certo que não podia ter despendido
aquela fortuna toda numa vida de fausto? Era impensável. Nesse momento, o seu olhar ficou preso numa soma particularmente grande, perto do fim da lista. Trinta mil denários.
— O que é isto? Tauro espreitou para a tábua. — Isso foi para uma pequena casa que ela queria. Mesmo à saída de Ostia. Conheço o lugar. Pequena, mas mesmo junto ao mar.
— Ela comprou outra casa? — Cato estava assombrado. — Ela nunca me disse nada.
— Acredito que não, senhor. — Tauro encolheu os ombros. — Dado que ouvi dizer que ela a ofereceu a outra pessoa.
— Uma oferta? — Cato sentiu a fúria a crescer de novo. — Uma oferta a quem?
— Ao tribuno Cristo, senhor, por certo. Não era grande segredo. Ela gabava-se abertamente disso pelo fórum, assim que os papéis foram assinados. Mas isso não muda nada, no que lhe diz respeito. A sua
esposa pediu-me dinheiro emprestado, dando como garantia esta casa. Não teve oportunidade de pagar a dívida, e que possa descansar em paz, pelo que os juros se têm vindo a acumular na sua ausência. Tudo
perfeitamente legal. Portanto, vim cá para receber.
Cato abanou a cabeça. — Mas eu não tenho esse dinheiro. Nem sequer uma fração dele. Quase todo o meu salário era entregue à minha esposa, na minha ausência.
— Senhor, quanto a isso, nada posso fazer. Isso era lá entre si e a sua esposa. Ela assinou o empréstimo no seu nome, logo a dívida é sua. Portanto, gostava de saber de que forma tenciona pagar-me, e
se o fizesse agora mesmo, o gesto seria muito apreciado, se faz favor.
A exigência atingiu Cato como um murro. — Foda-se, como é que eu posso pagar essa quantia? Não posso fazer dinheiro. Isto é absurdo. — Fez uma pausa e fungou. — Isto só pode ser um engano, ou um esquema
qualquer. Não havia forma de a Julia poder arranjar uma dívida tamanha.
— Prefeito, este é o resultado da acumulação dos juros. E dos gostos requintados da sua esposa, sem dúvida.
Cato sentiu uma tremenda vontade de o agredir ali mesmo, mas isso não lhe traria nenhuma vantagem, e não teria qualquer utilidade. De qualquer maneira, queria aquele homem longe dali.
— Sei o teu nome — respondeu com toda a calma que conseguiu convocar. — Vou debruçar-me sobre este assunto assim que me for possível e, se o que dizes é verdade, irei visitar-te para negociarmos uma solução.
— Negociar? — Tauro soltou uma gargalhada. — A única coisa que há a negociar, meu amigo, é se vai saldar a dívida em dinheiro ou se me cede esta casa, em vez disso.
— Sai — ordenou Cato. — Sai daqui imediatamente. Enquanto ainda podes, seu pedaço de bosta gananciosa.
A sua expressão devia ser realmente ameaçadora, já que Cato notou um sinal de medo nos olhos do homem, e Tauro recuou um passo.
— Muito bem, prefeito. Se é assim que quer. Deixo a questão nas suas mãos. Se não o vir no meu escritório ou não tiver notícias suas nos próximos três dias, levarei a questão ao tribunal. Herói de guerra
ou não, o magistrado do tribunal de dívidas não costuma ser muito simpático para com os que não pagam aquilo que devem.
— FORA! — Cato esticou o braço na direção da porta. — Como queira, prefeito. Mas não esqueça: três dias. É tudo o que tem. Tauro voltou-se e seguiu pelo corredor que levava à porta da rua, enquanto Amatapo
se apressava para o acompanhar. O agiota abriu a porta, saiu e desapareceu, deixando a porta escancarada até Amatapo tratar dela. Cato ficou encostado à parede junto à janela aberta do quarto, e lançou
a cabeça para trás.
— Oh Júlia... O que me fizeste? O que fizeste ao pobre do Lúcio?
Dois dias depois, na manhã do triunfo, Cato levantou-se antes da alvorada. Comeu um rápido pequeno-almoço de carne fria e pão, empurrado com vinho diluído, antes de pegar na capa e acordar Amatapo para
trancar a porta depois de ele sair. Enquanto passavam pelo átrio, eram bem audíveis no ar imóvel os sons do ressonar de Macro. Cato tinha considerado a possibilidade de levar Macro consigo naquela tarefa,
mas decidira que seria preferível dispor para si mesmo do tempo que ia levar a atravessar a cidade até à prisão Mamertina, de forma a pensar nas suas circunstâncias.
Os primeiros alvores da manhã davam nada mais do que a luz necessária para poder ver o caminho pela rua abaixo. Apesar da lei que proibia o porte de espadas no interior das muralhas de Roma, Cato estava
a usar a bainha por baixo da capa, e o peso da lâmina dava-lhe algum conforto. Sobretudo devido à natureza violenta de alguns bairros da capital, onde havia pequenos grupos de malfeitores acoitados nos
becos escuros, à espera de saltar sobre passantes solitários ou pessoas que tinham estado a festejar e se apresentavam demasiado bêbadas para se conseguirem defender. Já havia muita gente a circular:
comerciantes que se apressavam a conduzir pequenas carroças carregadas de bens para as suas lojas antes que entrasse em vigor a restrição ao tráfego com rodados durante o dia, portadores de urina dobrados
sob o peso das cangas de onde pendiam recipientes de cheiro nauseabundo — o conteúdo a sacolejar, a caminho das tinturarias onde se fazia a limpeza das roupas dos mais abonados habitantes de Roma. E todos
os que tinham famílias que não queriam deixar de garantir um bom ponto de observação para assistir à procissão imperial, pais carregados de comida e bebida a levar os filhos sonolentos pelas ruas.
Cato manteve-se atento, procurando por sinais de perigo, observando com cuidado quaisquer homens que visse a vaguear pelas entradas dos becos estreitos. Seguiu pelo meio das ruas enquanto descia para
o fórum, e manteve uma mão sempre perto do punho da espada. Ao mesmo tempo, tinha a mente ainda fortemente perturbada pela dívida que Júlia lhe tinha deixado como herança.
Não havia ainda contado a Macro os detalhes. Teria tempo para isso, quando o próprio Cato tivesse recuperado o suficiente do choque para lidar com o assunto sem ferver. Mas falara do tema com o seu sogro.
O senador Semprónio tinha-se mostrado embaraçado a princípio, sem saber ao certo o que tinha Cato descoberto acerca do que a esposa havia feito na sua ausência. Embora mostrasse compreensão para com o
problema de Cato, assegurou-lhe que não dispunha de fundos suficientes para o auxiliar com a dívida, mas ofereceu-se para recolher Lúcio na sua casa e educá-lo lá, quando Cato fosse colocado num novo
comando.
De qualquer forma, a perspetiva de perder a casa que mal começara a considerar como lar pesava-lhe imenso no coração. Graças a Júlia, tudo o que lhe restava eram as magras poupanças que trouxera da Britânia.
Com alguma sorte, podia esperar receber alguma oferta do Imperador depois de o triunfo estar concluído, mas depois disso teria que reconstituir a sua fortuna, se quisesse vir a ter uma reforma confortável
quando deixasse o exército, e deixar ao filho uma herança decente. Lúcio teria desde o início o benefício da elevação de Cato à classe equestre, e, com a ajuda do pai de Júlia, talvez viesse a ter a sorte
de um dia entrar para o Senado. Essa possibilidade enchia Cato de orgulho. O seu pai fora apenas um liberto, e a ascensão de tão humilde condição ao assento do Senado de Roma em três gerações era um feito
deveras notável.
Entrou no fórum, onde grupos de escravos limpavam as ruas do lixo e porcarias acumuladas, enquanto outros se ocupavam a ornamentar as estátuas e as colunas dos templos com flores e tiras de tecido colorido.
Cato prosseguiu pela base do Capitolino, onde o palácio imperial dominava o coração da cidade, e aproximou-se da entrada da prisão Mamertina, onde os mais importantes inimigos de Roma eram mantidos à
mercê do Imperador. A maior parte deles destinava-se à execução, como Carátaco e a sua família. Vários pretorianos estavam de guarda no portão reforçado quando Cato se aproximou. O optio de serviço avançou
para o caminho e ergueu uma mão.
— Nome, e o que deseja? — Prefeito Quinto Licínio Cato. Venho ver o prisioneiro Carátaco.
Ao escutar a patente de Cato, o optio colocou-se em sentido e fez uma saudação formal.
— Desculpe, senhor. Mas não tenho ordens respeitantes a qualquer visita. — Optio, vim por minha própria iniciativa. Quero falar com o Carátaco, serei breve.
O optio abanou a cabeça. — Não é possível, sem a respetiva autorização.
Cato já estava à espera de tal resposta. — Sabes quem sou? — Claro, senhor. As histórias têm circulado pelas casernas, acerca de si e do centurião Macro. Porra, excelente trabalho, se assim o posso dizer.
É uma honra conhecê-lo em pessoa, senhor.
— Estou certo disso. — Cato sorriu. — Sabes portanto que sou bem-visto pelo Imperador. O que significa que ele não ficaria agradado se eu tivesse oportunidade de mencionar que tu e os teus rapazes me
tinham impedido o acesso, quando apenas queria uma última ocasião de encarar o Carátaco nos olhos e lhe dizer adeus, antes de ele receber o que o espera. De um soldado para outro. — Cato debruçou-se e
espetou o dedo no peito do optio. — Queres que o teu nome venha à baila quando eu disser ao Imperador que me foi recusada a última oportunidade de falar com o prisioneiro? Pelo que tenho ouvido, o Cláudio
está sempre à procura de carne fresca para lançar para a arena, para manter a populaça satisfeita.
O optio estremeceu. — Senhor, não é caso para isso. Claro que lhe darei entrada. No fim de contas, não posso recusar um pedido a um herói de Roma, não é?
— Assim é melhor.
O optio desviou-se e acenou a Cato para passar pelo portão. — Paulino, escolta o prefeito até junto dos prisioneiros.
Um dos pretorianos fez a saudação e apressou-se a abrir uma porta reforçada e baixa para o visitante entrar. Cato teve que se dobrar para passar, e depois viu um lanço de escadas que descia uma curta
distância. Ao fundo das escadas brilhava um braseiro, e ao seu lado estavam empilhadas várias tochas por usar. Após poucos degraus, o ar tornou-se claramente mais frio e húmido, e Cato sentiu-se feliz
por ter levado a sua capa. Chegou ao fundo da escada e esperou ao pé do braseiro, até o pretoriano acender uma das tochas e a levantar para iluminar a estreita passagem que se abria à sua frente. Cato
notou que havia portas dos dois lados, que davam para as celas para onde os prisioneiros do Imperador tinham sido lançados enquanto aguardavam o destino que os esperava. O ar era pungente com o odor dos
dejetos humanos, e da cela mais afastada veio um tossir abafado.
Ao fim de cerca de vinte passos, o guarda parou à frente de uma das portas e abriu o ferrolho. Empurrou a porta para a abrir, e ela rangeu fortemente ao rodar nas dobradiças. Cato baixou a cabeça e entrou.
A cela tinha cerca de três metros de largo e o dobro de comprido e recebia luz de uma abertura com uma grade ao alto, na parede oposta à porta. O chão estava coberto de palha, e havia vários ganchos de
metal fixos na pedra, de onde os prisioneiros podiam ser pendurados pelos pulsos, se fosse decidido que deviam passar o período de prisão numa posição menos confortável. Foi preciso um momento para que
os olhos de Cato se ajustassem à penumbra, e ele ouviu um som de palha arrastada antes de conseguir distinguir um vulto a pôr-se de pé ao fundo da cela.
— Senhor, deseja que fique aqui consigo? — Não. Espera lá fora. Eu chamo-te quando precisar de ti. — Sim, senhor.
O guarda puxou a porta para a fechar, e as chamas da tocha produziram uma luz que mal se infiltrava pelas frestas entre a porta e a parede. Cato não se mexeu a princípio, tentando esforçar a vista para
descortinar as sombras, enquanto o prisioneiro se aproximava dele.
— Quem é? — A voz com forte sotaque era seca, e sofreu um breve ataque de tosse antes de Carátaco falar de novo, agora com maior facilidade. — Quem está aí?
A abertura no alto lançava um estreito feixe luminoso na direção da porta, e Cato deslocou-se até ficar iluminado, de forma a que o outro o pudesse ver melhor.
— O meu nome é Prefeito Quinto Licínio Cato. Seguiu-se um silêncio, até que o prisioneiro avançou para junto do limite da área iluminada onde Cato se tinha colocado.
— Conheço-te. És o sacana que acabou com a minha vida na Britânia. — Sim, essa honra pertence-me. — E serás sem dúvida amplamente recompensado por isso. Conheço bem a necessidade que Roma tem de festejar
os seus heróis, sobretudo se as notícias que chegam da Britânia são verdadeiras.
— E que notícias seriam essas? — As de que os romanos sofreram uma pesada derrota às mãos dos meus aliados.
Cato hesitou antes de responder, e o prisioneiro lançou uma gargalhada seca.
— Então é mesmo verdade. E ainda há esperança para todos os que resistem à vossa tentativa de roubar as nossas terras.
— Como teve acesso a essas notícias? — Pensas que és o primeiro visitante da minha cela? O primeiro romano a vir vangloriar-se frente ao rei derrotado da mais poderosa tribo de toda a Britânia?
Carátaco avançou para a luz, e por fim Cato pôde vê-lo com clareza. A transformação sofrida pelo formidável guerreiro que tinha enfrentado havia menos de um ano era chocante. Meses de confinamento nas
lamentáveis condições daquela prisão tinham deixado Carátaco com o cabelo longo e empastado, pele suja e nada mais do que os restos andrajosos das finas roupas de um rei celta. A falta de exercício e
a dieta pobre tinham erodido o seu físico imponente, de tal forma que ele nada mais parecia do que um dos pedintes esfomeados que lutavam pela vida nas sarjetas de Roma. As mãos estavam agrilhoadas, e
a pele dos pulsos macerada, com crostas e feridas abertas. Cato não conseguiu evitar uma ponta de pena pelo seu inimigo do passado. E sentiu também alguma vergonha. Vergonha pelo papel que tinha desempenhado
na redução de Carátaco àquela miserável condição. O rei celta defendera o seu povo, como Cato teria feito, e com a mesma resolução, se as suas posições estivessem invertidas.
O rei sorriu de forma desanimada. — Como caem os poderosos, hã? Ai dos vencidos. — Lamento vê-lo neste estado, deveras.
O rei britânico contemplou o seu visitante por breves momentos e assentiu. — Acredito em ti... Uma pena que nos tenhamos encontrado como inimigos, prefeito Cato. Terias sido apreciado como um amigo, se
as coisas tivessem sido diferentes.
— Aceito essas palavras como um cumprimento. — E assim o deves fazer. Não há neste mundo muitos homens por quem eu tenha respeito. — Carátaco indicou uns baldes vazios junto à porta da cela. — Senta-te,
prefeito. Temo bem que essas sejam as melhores acomodações que te posso oferecer.
Trocaram sorrisos forçados, e Cato pegou em dois dos baldes e virou-os ao contrário para servirem de bancos; sentaram-se frente a frente. O comprimento das correntes entre os seus pulsos obrigava Carátaco
a ter que as apoiar nos joelhos, e ele massajou as feridas com suavidade, para tentar aliviar a comichão.
— Pelo menos já não terei que aguentar isto muito mais tempo. Mais umas horas e levar-me-ão daqui para fora, com a minha família, e seremos exibidos pelas ruas até ao local onde seremos executados. Foi-me
dito que nos vão garrotear.
Cato anuiu. — É essa a tradição, nestes casos. — Espero que tudo acabe depressa. Não por mim. Pela minha mulher e pelos meus filhos... Quem me dera que nos tivesse sido permitido permanecer juntos neste
lugar. Mas até isso me negaram. Pelo menos teremos uma oportunidade para nos despedirmos.
— Sim, senhor, assim será. — Senhor? — Carátaco arregalou uma sobrancelha por baixo da cabeleira desgrenhada. — Há muito tempo que ninguém me trata com tamanha deferência. Obrigado... Sabes se me executarão
em primeiro lugar, ou em último?
— Deixá-lo-ão para o fim. Carátaco suspirou. — Uma pena. Esperava ser poupado ao espetáculo de ver toda a minha família a ser executada. Mas calculo que o teu Imperador tenciona extrair tudo o que puder
da minha dor e humilhação. Quanto a isso, não é melhor do que aqueles cabrões de corações tenebrosos, os druidas da seita da Lua Negra.
Cato mostrou-se surpreendido. — Pensei que fossem seus aliados... — Aliados? Não. Era mais um caso de serem inimigos do meu inimigo. Se vocês não tivessem invadido a ilha no momento em que o fizeram,
teria que ter tratado deles, quando surgisse o momento adequado. Não estavam a exercer uma influência saudável nalgumas das tribos. Fanáticos sedentos de sangue, é o que eles são. É uma pequena consolação
saber que Roma os exterminará, depois de acabar comigo.
— Espero bem que sim, senhor — retorquiu Cato com emoção. Tinha encontrado a seita ele mesmo, e sabia bem dos horrores que ela infligira aos seus inimigos romanos, e a quaisquer outros que ousassem desafiar
a sua vontade. Era bom saber que Carátaco partilhava dos seus sentimentos acerca dos druidas. E lá estava outra vez, a piedade. Debruçou-se para o rei bretão e baixou a voz.
— Senhor, existe uma alternativa à execução. Poderá salvar-se, e à sua família, do cumprimento da sentença.
— A sério? E como poderia isso ser possível? — Carátaco ergueu as mãos, e a corrente de ferro fez um barulho claro. — Parece-me que escapar está fora de questão. Mesmo que conseguíssemos libertar-nos
das nossas correntes e sair das celas, acho que enfrentaríamos um tremendo desafio se tentássemos passar despercebidos nas ruas de Roma.
— Não era na fuga que eu estava a pensar. — Oh? Nesse caso, prefeito, em que pensavas? — Quando a procissão terminar, e antes de a execução ser iniciada, será presente, com a sua família, ao Imperador,
que pronunciará a decisão sobre o seu destino. Será essa a oportunidade para se lançar à sua mercê, senhor.
— Não suplicarei pela minha vida ao meu inimigo. — Carátaco fungou. — Nunca. Não me desonraria de tal forma perante o teu Imperador e o teu povo. ?refiro a morte.
— Nesse caso, será o seu destino. E o dos seus irmãos, esposa e filhos. Carátaco assumiu uma expressão distante. — Pois que assim seja. — Mas não tem que ser assim. Podem todos sobreviver. — Se eu suplicar
pelas nossas vidas. — Exatamente. — E se o Cláudio ordenar a nossa execução de qualquer maneira? Nesse caso, morreremos como cobardes. Serias capaz de me negar, e à minha família, uma morte honrosa?
Cato abanou a cabeça. — Não há qualquer honra na morte que vos espera. Só e apenas a morte.
Para si, para a sua família. Mas poderá ainda haver oportunidade para viver, se a solicitar.
— Implorar por ela, queres tu dizer. Cato engoliu a frustração. — Senhor, são apenas palavras. Uma forma de expressão. Não está para lá do saber de um homem da sua dimensão encontrar a forma justa de
se dirigir ao meu Imperador, de forma a jogar com a sua vaidade e o seu sentido de clemência. Faça-o respeitá-lo. Faça-o compreender que lhe proporciona maior honra vivo do que morto. É possível. Preferia
vê-lo cumprir em paz o resto da sua vida do que vê-lo a terminá-la abatido como um cão, para gáudio da turba.
A intensidade das palavras de Cato penetrou no espírito de Carátaco, que encarou o oficial romano com um brilho nos olhos. Mas depois respirou fundo, e deixou que os ombros descaíssem.
— Prefeito, estou farto desta vida. A morte será uma libertação deste buraco escuro e imundo para onde fui lançado. Acolho a morte.
— Lamento ouvi-lo. — Agradecia que me deixasses a sós agora. Quero preparar-me para o fim. Serei altivo e darei um bom exemplo à minha família. Vai, por favor.
Cato ponderou fazer um último apelo ao seu antigo inimigo, mas desistiu. Carátaco tinha razão. Era sua a escolha, era ele quem podia decidir a forma como partiria. Portanto, levantou-se e baixou a cabeça
numa despedida breve, batendo à porta da cela.
— Estou despachado.
Enquanto a tranca no exterior deslizava no encaixe, Carátaco limpou a garganta.
— Prefeito Cato. Cato olhou para trás. — Agradeço-te teres vindo ver-me — disse Carátaco. — Vou pesar aquilo que me disseste. És um bom homem, e um inimigo leal, e lamento profundamente que não possamos
ter sido amigos. O destino decidiu de outra forma.
— Sim, senhor. O destino é de facto um duro mestre... — Cato teve um vislumbre da memória de Júlia, que afastou rapidamente do pensamento. — Adeus.
A porta abriu-se e o brilho da tocha fumegante nas mãos do pretoriano lançou um tom alaranjado sobre Cato e o rei bretão. Carátaco levantou o queixo, orgulhoso.
— Adeus. Espero um dia encontrar-te no outro mundo, prefeito Cato. Darei um festim em tua honra, e na do teu amigo, o centurião Macro, nos salões dos heróis do meu povo.
Cato obrigou-se a sorrir. — Até esse momento, senhor. Até então...
Baixou a cabeça para passar pelo umbral e viu-se no corredor húmido.
A porta fechou-se atrás dele, a tranca voltou a deslizar para o seu lugar e Cato sentiu-se feliz por seguir o pretoriano para fora das profundezas bolorentas da prisão, de regresso ao calor do Sol matinal,
que prometia um dia limpo para as celebrações que se avizinhavam. Mas os seus pensamentos ainda estavam com o prisioneiro, e com a sua família, que definhavam nas celas fedorentas e escuras por baixo
do palácio imperial.
Nada mau, hã? — Macro debruçou-se para Cato, para ter a certeza de que o amigo o ouvia por cima do barulho feito pela multidão entusiasmada. — Pelo menos aqui em Roma ainda conseguem montar um espetáculo
em condições, mesmo que as coisas lá pela Britânia estejam entregues à bicharada.
Cato resmungou e acenou, de acordo. Era estranho pensar que ele e Macro tinham sido enviados da Britânia para explicar a esmagadora derrota do legado Quintato e da sua coluna, e em vez disso estavam os
dois a ser celebrados como os heróis responsáveis pela captura do rei Carátaco e da sua família. O destino praticava os seus jogos, refletiu Cato. De todas as formas e feitios, como as revelações sobre
Júlia tinham deixado dolorosamente claro. Afastou a ideia da mente e concentrou-se no espetáculo que decorria à sua volta.
O céu limpo da alvorada tinha-se mantido sem mácula de qualquer nuvem e apresentava um azul profundo, no seio do qual o Sol brilhava com força e calor. De ambos os lados da via a multidão acotovelava-se,
a gesticular e aclamar aos berros, contida apenas pela fila dupla de pretorianos que garantia que a rua se mantinha desimpedida. Lá muito à frente, Cato mal distinguia os sacerdotes que seguiam à cabeça
do grupo imperial. Usavam togas impecáveis e brilhantes, e conduziam um grupo de cabras sacrificiais, também brancas, que iam ser oferecidas a Júpiter, como agradecimento pela boa fortuna de Roma.
Atrás dos sacerdotes seguiam os magistrados e senadores, e no fim do grupo os dois cônsules e as suas escoltas. A seguir vinham os estandartes dos guardas pretorianos, à cabeça da Primeira Coorte da unidade,
de equipamento completo, as cristas de crina vermelha a erguerem-se sobre os capacetes polidos e as túnicas brancas. Eram seguidos por cinquenta mercenários germânicos da guarda pessoal do Imperador,
que impressionavam a turba devido às suas espessas barbas e aspeto bárbaro. Atrás deles, surgiam os carros que traziam os membros da família imperial. Britânico ocupava o primeiro, uma mão na borda do
carro, a outra a levantar-se de tempos a tempos para corresponder às saudações da multidão. Seguia-o Nero, de sorriso aberto e a acenar continuamente, conseguindo um aplauso ainda maior do que aquele
que era dedicado ao seu irmão de adoção. A mãe, Agripina, vinha a seguir, o cabelo penteado numa intrincada forma de leque. Depois, outros dez germânicos, selecionados pelo físico de grandes dimensões,
antes de surgirem os cavalos de um branco imaculado que puxavam o carro dourado em que seguia o próprio Imperador.
Cláudio dava o seu melhor para não se mostrar encurvado, agarrado à borda do carro, tentando apresentar o ar mais digno que lhe era possível. A coroa de louros dourada que lhe rodeava a cabeça de cabelos
brancos assentava num ligeiro ângulo, e de vez em quando o escravo pessoal que seguia junto a ele tentava endireitá-la com um gesto discreto. Atrás da carruagem imperial vinha o seu séquito; conselheiros
senatoriais, e libertos, incluindo Pallas e Narciso, que envergavam túnicas modestas, como convinha ao seu estatuto social, mesmo que na realidade detivessem tanta influência como qualquer outra pessoa
na procissão. E depois vinham Cato e Macro, à frente de uma pequena coluna de outros soldados que iam receber honras do próprio Imperador. Apesar de o dia estar muito quente, envergavam armadura completa,
mas tinha-lhes sido permitido que levassem os capacetes debaixo dos braços, de forma a poderem ser claramente vistos pelo povo que ladeava a via. Muita gente já estava bem bebida, e algumas das mulheres
faziam ofertas lascivas aos soldados, à medida que estes passavam. Macro tinha preparado um conjunto de pequenas placas de madeira, onde estava inscrito o nome do botequim mais próximo da casa de Cato.
De vez em quando entregava uma a alguma das mais promissoras entre as candidatas que lhe ofereciam favores sexuais.
Reparou no olhar desaprovador de Cato, e encolheu os ombros. — Não se perde nada em aproveitar isto ao máximo. No fim de contas, dei tudo ao serviço de Roma, ao longo de muitos anos. Agora, pode ser ela
a servir-me.
Atrás do pequeno grupo de soldados vinha uma coluna de carros cheios de pão e bolos, a partir dos quais escravos os lançavam para a multidão. Os derradeiros carros traziam cargas de armas e equipamentos
capturados na Britânia, e o último de todos transportava Carátaco e a sua família, lavados, limpos, de túnicas novas, que seguiam num silêncio altivo, mostrando apenas desprezo pela populaça que uivava
ao vê-los passar.
— Centurião! Centurião Macro! Viraram-se e depararam com uma mulher alta e magra, com cabelo escuro, que levantava a bainha da túnica de forma a revelar o cimo das pernas e o triângulo de pelo púbico
entre elas.
— Centurião, sou tua! O nome é Persilla, a melhor foda da Subura. Preço especial, só para ti!
Macro levou a mão à sacola, e Cato abanou a cabeça. — Então, não tinha imenso por onde escolher? Portanto, para quê pagar? — Não se perde nada em descobrir se ela quer regatear. Talvez até tenha uma amiga
para ti. — Macro detetou o olhar de aviso que o amigo lhe lançou. — Ou então... Eu arranjo-me com uma dose dupla.
Macro saiu da linha para entregar o pedaço de madeira à mulher, e voltou a juntar-se à procissão com um sorriso rasgado, perante a perspetiva de mais prazeres carnais.
— Parece-me bem que era capaz de me habituar a esta história de ser um herói.
Seguiram a passo lento pelo coração do fórum, passando pela escadaria que conduzia ao Senado, e depois começaram a íngreme subida pelo Capitolino, na direção do recinto do templo de Júpiter, que rivalizava
com o palácio imperial no domínio da silhueta do centro da cidade. A rua fazia ziguezagues pela encosta acima, e só os carros que continham o armamento inimigo e os prisioneiros continuaram a acompanhar
a procissão. Os que levavam comida desviaram-se, e os que neles seguiam lançaram o resto do conteúdo para a populaça. Entretanto, um grupo de escravos frescos, que tinham estado à espera numa rua lateral,
surgiram em cena para ajudar os carros restantes a subir a colina. Puseram as mãos nos raios das rodas e empenharam-se em manter os veículos em movimento pela rua inclinada. A cabeça da procissão passou
pela entrada do recinto e desapareceu da vista da multidão que enchia o fórum. Os que a compunham colocaram-se em posição dos dois lados da entrada para saudar a família imperial que os seguia, e aclamaram
a quadriga que vinha em último, enquanto ela se detinha. Cláudio desceu e coxeou até à plataforma que se abria para o coração de Roma. Assim que a turba voltou a avistá-lo, levantou-se uma nova aclamação,
que ecoou nas paredes dos edifícios altos que rodeavam o fórum. O Imperador tomou lugar no trono, e a família e os conselheiros mais próximos assumiram as suas posições em redor e por trás dele, à frente
dos senadores.
Quando os que iam ser honrados entraram no recinto, um liberto do palácio com uma expressão ansiosa adiantou-se para lhes falar.
— Senhores! É um enorme prazer conhecer-vos a todos. — Dobrou-se profundamente, antes de voltar a endireitar-se. — Chamo-me Polidoro, e sou o mestre de cerimónias do palácio. Umas poucas palavras sobre
o protocolo, antes de darmos início à parte final deste triunfo. A ordem dos acontecimentos é a seguinte: os sacerdotes farão o sacrifício, consultarão os presságios e informarão o Imperador daquilo que
encontrarem. Depois, será a vossa vez. Estarão à espera ali, junto ao frontão do templo. Quando o vosso nome for chamado, haverá uma breve citação, durante a qual avançarão e se ajoelharão perante o Imperador,
para aguardar a vossa recompensa. Assim que a receberem, apreciaria imenso se deixassem a plataforma o mais depressa possível. Temo que já estejamos atrasados, e ainda há um banquete a seguir, e não queremos
que a comida não esteja no ponto ideal no momento em que os convivas se lançarem a ela. — Polidoro riu nervosamente. — Não queremos de todo que o envenenamento alimentar ajude a aumentar a contagem de
corpos destas festividades. Depois de todos terem estado à frente do Imperador, passaremos à apresentação dos prisioneiros. Haverá uns breves discursos, antes de eles serem entregues ao carrasco.
Deu uma ligeira volta e acenou na direção de uma figura ao fundo do recinto. Cato olhou para lá, e viu um homem numa túnica negra, a examinar um mecanismo de madeira. Um poste robusto erguia-se de uma
estrutura que o suportava. Havia um buraco no poste, e por ele passava uma extensão de corda cujas pontas tinham sido amarradas a um pedaço de madeira no outro lado do buraco. Enquanto viam, dois dos
assistentes do homem conduziram uma figura esquelética e pálida, só de tanga, até à estrutura. Enquanto o prisioneiro se debatia fracamente, as suas mãos foram atadas atrás do poste, e a corda foi-lhe
passada sobre a cabeça, de forma a ficar encostada ao pescoço. O carrasco começou de imediato a fazer rodar o pedaço de madeira, torcendo a corda e fazendo com que ela se apertasse cada vez mais em volta
do pescoço da vítima.
O homem começou a debater-se ferozmente ao sentir a corda a morder-lhe a carne, e os ombros e as pernas agitaram-se de forma selvagem. Contudo, com o pescoço preso ao poste, não havia nada que ele pudesse
fazer para se salvar, e o carrasco continuou a rodar o pedaço de madeira, fazendo os músculos destacarem-se com o esforço. De repente o prisioneiro arqueou o peito, estremeceu violentamente e descaiu,
já morto.
— O que foi aquilo? — inquiriu Cato. — Pensei que todos os prisioneiros fossem executados publicamente.
— Só aqueles que foram exibidos ao longo do triunfo — precisou Polidoro. — Aquilo foi só um teste ao mecanismo.
— Teste? — Evidentemente. Não nos podemos permitir que as execuções esperadas corram mal, se houver algum problema com o garrote, não é? Portanto, usamos um condenado para fazer um teste, para ter a certeza
de que não vai haver problemas que estraguem o espetáculo.
Macro deu um estalo com a língua.
— Bem, isso é que não pode acontecer, pois não? O tom de gozo perdeu-se no mestre de cerimónias, que abanou a cabeça, convicto.
— Absolutamente, não... Ah! Aí vêm os sacerdotes. Os soldados viraram-se e avistaram uma procissão de figuras todas de branco, que saíam do templo de Júpiter e se aproximavam do Imperador.
Alguns tinham sangue salpicado nas togas e espalhado pelas mãos, por terem sido os que haviam cortado as gargantas das cabras. O lider conduziu-os para a plataforma e dobrou-se perante Cláudio, antes
de anunciar num tom calmo e firme os resultados do exame às entranhas da cabra selecionada para o propósito de revelar a vontade dos deuses. O Imperador escutou-o com toda a atenção antes de assentir,
e depois o sacerdote recuou alguns passos antes de se virar, já na borda da plataforma, e lentamente erguer as mãos, a solicitar a atenção da multidão reunida lá em baixo, no fórum. Um silêncio impôs-se
sobre a multidão, e as faces viraram-se para cima, expectantes. O sacerdote prolongou o momento o mais que pôde, para dar solenidade aos procedimentos, e por fim respirou fundo.
— Roma pediu ao todo-poderoso Júpiter, o melhor e maior, a sua bênção para as cerimónias sagradas que partilhamos neste dia. De acordo com os rituais estabelecidos pelo colégio dos sacerdotes do templo
de Júpiter, sacrificámos um animal no altar do templo, e abrimos as suas entranhas para as examinarmos. — Fez uma pausa, para fazer crescer a antecipação da audiência.
- Por vontade do todo-poderoso Júpiter, os presságios são favoráveis!
A turba respondeu de imediato com gritos de celebração, e o Imperador dispensou-lhe um aceno gracioso com a mão. Cato observou a reação da multidão com desdém, antes de sussurrar ao amigo:
— Alguma vez ouviu falar de uma ocasião em que os presságios não fossem bons?
Macro fungou.
— É evidente que Roma é a querida dos deuses. Ou isso, ou então os deuses pouco se importam de quebrar as regras só para poderem apreciar o espetáculo de mais uns tantos bárbaros a serem esganados.
Cláudio permitiu que os gritos se prolongassem mais algum tempo, enquanto acenava a Polidoro. Este apressou-se a ir ter com os soldados que aguardavam.
— Muito bem, é a nossa vez. Mantenham-se em ordem e preparem-se para avançar rapidamente, assim que o vosso nome for chamado. Depois de se despacharem, dirijam-se para o fundo da plataforma e fiquem lá
até ao último dos prisioneiros ser executado e o Imperador e o seu séquito terem deixado a plataforma. Depois disso, dirijam-se ao palácio o mais depressa possível, para tomarem os vossos lugares para
o festim. Um dos meus homens conduzir-vos-á à mesa que vos foi destinada. Alguma pergunta? ótimo. Vamos lá começar. — Consultou a tábua encerada. — Prefeito Cato e centurião Macro.
Cato puxou os ombros para trás e endireitou o pescoço, antes de acenar a Macro e marcharem os dois pela plataforma, até fazerem alto em frente ao pequeno pódio onde o Imperador estava sentado. Polidoro
avançou até à orla da plataforma e levantou uma mão a pedir silêncio à turba. Ao mesmo tempo, um estridente coro de trombetas cruzou o ar da capital. A turba acalmou-se aos poucos, e tornou-se novamente
silenciosa. Um punhado de crianças, tomadas pela excitação, continuou a fazer dançar fitas de pano coloridas no ar, do ponto elevado onde se situavam, aos ombros dos pais.
Polidoro baixou a mão e pigarreou, antes de respirar fundo.
— Sua Majestade Imperial, Tibério Cláudio César Augusto Germânico, comandante supremo das legiões de Roma, conquistador da Britânia, pede-vos que se juntem a ele e honrem estes heróis que serviram o Senado
e o Povo de Roma com inabalável coragem e devoção ao dever... Ele apresenta-vos o prefeito Quinto Licínio Cato e o centurião Lúcio Cornélio Macro, recentemente regressados das campanhas na Britânia, onde
as nossas forças têm estado empenhadas em perseguir e destruir os últimos e desesperados bandos de druidas e seus seguidores, que ainda resistem à paz romana...
Cato sentiu Macro a remexer-se de forma desconfortável; também ele partilhava do incómodo com a forma como a luta de Roma para controlar as tribos britânicas era apresentada em termos tão otimistas. Ao
fim de dez anos de combates árduos, as legiões tinham acabado de sofrer um golpe humilhante, e Roma mantinha o controlo sobre boa parte do território apenas com as pontas dos dedos.
Mais um esforço das tribos que ainda combatiam contra Roma podia muito bem destruir as forças dispersas que guarneciam a ilha, e obrigar a uma humilhante retirada da Britânia. Se Carátaco tivesse conseguido
evitar a captura e continuado a liderar as tribos que enfrentavam Roma, Cato tinha poucas dúvidas de que o destino da nova província estaria já decidido.
— Estamos aqui hoje para celebrar a vitória sobre o rei Carátaco, o nosso maior inimigo na Britânia. Uma vitória tornada possível pela galante ação do prefeito Cato e do centurião Macro, cuja ousadia
em plena batalha levou o medo aos corações dos nossos inimigos, e ofereceu um exemplo inspirado aos seus camaradas. Foi através da sua ação direta que o Carátaco foi derrotado e capturado, e por este
extraordinário feito são eles honrados com a gratidão de Roma e de Sua Majestade Imperial!
Polidoro deu um passo ao lado enquanto fazia rodar o braço, e os dois oficiais aproximaram-se do pódio e dobraram-se perante o Imperador. Cláudio ergueu-se trôpego do seu trono e aproximou-se da orla
do pódio, enquanto dois escravos saíam de trás do trono com almofadas vermelhas, sobre as quais repousavam duas lanças de prata. Os escravos ajoelharam-se de cada lado do Imperador e ofereceram as suas
cargas enquanto baixavam as cabeças, sem se atreverem a cruzar o olhar com o soberano. Cato notou o tremor nervoso nas mãos do Imperador quando os seus dedos enclavinhados se fecharam em torno da haste
da primeira lança. Levantou-a e segurou-a nas duas mãos.
— Roma está-te gr-gr-grata, prefeito. Ofereceu a lança, e Cato deu um passo em frente, enquanto levantava os braços, com as palmas das mãos para cima. A arma cerimonial em mais pesada do que ele esperava,
e de perto percebeu que a ponta ornamental era feita de ouro. Valia uma pequena fortuna, calculou.
— Muito obrigado, Majestade Imperial. Cláudio já estava a pegar na outra lança, e Cato viu Polidoro a fazer-lhe gestos frenéticos para recuar. Mantendo-se de frente para o Imperador, Cato recuou alguns
passos enquanto Macro se adiantava para, por sua vez, receber o prémio.
— Roma está-te grata, centurião — repetiu Cláudio sem emoção, enquanto entregava o prémio a Macro e este respondia com um agradecimento pouco claro, e recuava para a sua posição ao lado de Cato. Os dois
saudaram o Imperador, e uma nova aclamação ergueu-se da multidão no fórum.
Viraram-se para marchar para os lugares que lhes tinham sido indicados, por trás do grupo imperial, enquanto o premiado seguinte se aproximava para receber uma espada que acabava de ser apresentada ao
Imperador para que lha entregasse. Enquanto a cerimónia prosseguia, Cato e Macro examinaram com maior atenção os seus prémios.
— Muito bonita, de facto — referiu Macro, calmamente. — Vai ficar muito bem na parede da casa que vou comprar quando deixar as legiões.
— Pensava eu que ia comprar uma taberna, ou uma vinha, se os fundos lho permitissem, e passar o resto dos seus dias num torpor alcoólico.
— Mesmo assim, preciso de uma casa para onde possa voltar, não é? — Macro piscou um olho. — A tua também vai ficar bem lá na tua casa. Uma coisa que o jovem Lúcio poderá admirar enquanto cresce. Talvez
até lhe sirva de inspiração para seguir os teus passos. E isso será algo de que te poderás orgulhar.
Cato nunca tinha ponderado essa questão, e a ideia apanhou-o de surpresa. Seria aquela a vida que queria para o filho? Com todos os perigos e dificuldades de servir nas fronteiras do Império? Sempre sem
saber quando é que os bárbaros poderiam lançar um ataque, e a suportar a fome e o frio nas províncias do Norte, ou o calor e a sede dos desertos do Oriente? Lúcio era apenas uma criança, e era difícil
naquele momento imaginá-lo a enfrentar uma vida semelhante. E Cato não se sentia muito atraído pela perspetiva de colocar o seu filho em perigo.
Ainda assim, havia muitos aspetos da vida militar que Cato valorizava. A camaradagem, o enfrentar e sobreviver às ameaças, o teste contínuo aos limites da resistência, tanto mental como física. Tinha
sido o exército a transformá-lo naquilo que era naquele momento. Antes disso, fora um jovem mergulhado em livros, que desdenhava das brutais realidades da vida. Se o seu pai não o tivesse enviado para
se juntar às legiões, temia bem que teria acabado como um funcionário menor ao serviço do Imperador, ou, pior ainda, ao serviço de alguém como Narciso ou Pallas. Um daqueles indivíduos da sombra que espiavam
os inimigos do seu senhor e lhes cravavam um punhal nas costas quando era decidido que constituíam uma ameaça à segurança do Imperador ou do Estado romano. O tipo de homem que Cato e Macro desprezavam,
e com bons motivos. O exército tinha de fado feito dele um homem, refletiu Cato. O exército, e o seu amigo Macro. Olhou para ele de relance, e viu-o a admirar o prémio que acabara de receber. Sim, se
o Lúcio se viesse a parecer com Macro, Cato ficaria muito orgulhoso disso.
— És um homem de sorte, Cato — disse Macro, interrompendo-lhe os pensamentos. — Quem me dera ter um filho. A sério. Ter um miúdo como o Lúcio seria uma coisa realmente fantástica.
— Ainda não é demasiado tarde, meu irmão. Só tem que encontrar uma mulher e casar com ela.
— É mais fácil de dizer do que fazer. As mulheres decentes não são fáceis de encontrar.
Ao pensar em Júlia, Cato sentiu como que uma faca a retorcer-se nas suas tripas.
— Pois... Macro reparou no tom pesaroso na voz do amigo, e olhou para Cato com preocupação. Porém, antes que pudesse perguntar qualquer coisa, ouviu-se um ribombar de rodas, e ambos se voltaram para assistir
à chegada do vagão com os prisioneiros ao recinto do templo. Enquanto o último dos soldados a ser homenageado pelo Imperador recebia um colar de ouro, uma secção de pretorianos começou a arrastar os prisioneiros
do veículo e a levá-los para a parte de trás da plataforma, onde Polidoro aguardava pelo momento de voltar a conduzir a ação. O último soldado foi aclamado pela multidão, depois de recuar até uma distância
respeitosa do Imperador e se virar para os espectadores, ao mesmo tempo que remexia o punho no ar.
Os gritos continuaram, num ruído ensurdecedor. Polidoro esperou que o soldado deixasse a frente da plataforma, e depois virou-se para o Imperador. Cláudio permitiu que o clamor continuasse por mais algum
tempo, antes de acenar ao mestre de cerimónias. Polidoro deu uma curta ordem à escolta dos prisioneiros, e os pretorianos empurraram Carátaco e a sua família para a frente. O barulho da turba subiu ainda
mais ao avistarem os inimigos humilhados daquela forma.
— Não sei se quero testemunhar esta parte dos festejos — sussurrou Cato ao amigo.
— Porquê? Isto estava à espera dele desde o primeiro momento em que resolveu pegar em armas contra nós e enfrentar as legiões. Era ele ou nós, Cato.
Além disso, sabes perfeitamente que, se as posições estivessem invertidas, teríamos um fim bem menos rápido. Lembras-te daqueles gigantescos bonecos de vime em que eles costumavam queimar vivos os prisioneiros?
Lembras-te?
— Lembro-me, sim. — Cato estremeceu ao recordar as imagens. — Mas isso eram os druidas, não o Carátaco.
— Pois claro, ele e os seus guerreiros contentavam-se em colecionar as cabeças dos nossos rapazes como troféus. Portanto, desculpa lá, mas não vou verter lágrimas por ele. Se ele tivesse desistido há
uns anos e nos tivesse poupado a todos um enorme derramamento de sangue, talvez reagisse de forma diferente.
Cato não respondeu ao comentário frio do amigo. Perguntou-se se estaria a ser sentimental. Talvez Macro tivesse razão em não sentir remorsos pela morte daquele inimigo de Roma, refletiu. Não havia lugar
a sentimentalismos na guerra, e os que a travavam e perdiam não tinham direito a esperar qualquer clemência às mãos dos vencedores.
Quando os prisioneiros estavam reunidos, à vista de todos os que se acotovelavam no fórum, Polidoro deu sinal ao carrasco e ao seu grupo de ajudantes para tomarem os seus lugares. Ao notarem a estrutura
do garrote, os gritos e exclamações de gozo tornaram-se ainda mais frenéticos e sedentos de sangue, tal como se via na arena quando a turba pedia sangue aos gladiadores e aos condenados à morte. Era o
mesmo apetite selvagem pelo sofrimento e pela morte, e fez Cato sentir uma ponta de desprezo por todos os que mais se destacavam ao exigir o sangue das suas vítimas. Quando o garrote ficou pronto e o
carrasco se mostrou preparado para avançar, Cláudio levantou-se e contemplou a multidão do seu povo com um desdém imperial, enquanto todos se calavam e o fitavam, expectantes. Cláudio abriu os braços
num gesto de abraço enquanto enchia os pulmões e começava a dirigir-se ao povo, a voz fina e esganiçada pelo esforço de tentar fazer-se ouvir por todos.
— Chegou o momento de t-t-testemunharmos todos a destruição final do nosso maior inimigo, Carátaco, rei dos bárbaros da Britânia. Há muito que desafiava as nossas legiões, e m-muitos problemas lhes infligiu,
mas no fim nada pode resistir ao poder de Roma, e ao favor de Júpiter, o m-m-maior e melhor dos deuses! — Recebeu com prazer as aclamações que saudaram as suas palavras. — Mas a-antes de pronunciar o
julgamento sobre este homem, Carátaco, e a sua família, pergunto ao prisioneiro se tem algumas últimas palavras a oferecer aos seus conquistadores — o Se-Se-Senado e o Povo de Roma?
As palavras ecoaram nas basílicas altaneiras, nos templos e no palácio imperial, que rodeavam o fórum, enquanto a turba virava o olhar para a solitária figura de Carátaco, um pouco afastado da sua família.
O bretão pouco fez para esconder o desdém que sentia pelo frágil Imperador e pelos que o rodeavam. Depois, o seu olhar pousou em Cato, e entreolharam-se brevemente antes de ele se virar de forma a dirigir-se
a Cláudio e à multidão ao mesmo tempo.
— Sou vosso prisioneiro, bem como a minha família. O nosso destino pertence-vos, por direito de conquista. — Fez uma breve pausa, antes de se dirigir mais diretamente à multidão. — Que seja este o meu
testamento, pois, antes de me ir reunir com os espíritos dos meus antepassados, os grandes reis e príncipes do meu povo. Sou Carátaco, rei dos catuvelaunos — a mais poderosa tribo de toda a Britânia...
Até ao momento em que as legiões de César desembarcaram nas nossas costas. Éramos um povo orgulhoso, um povo guerreiro, que não tinha igual em batalha. Humilhámos os trinobantes, os cantos e os atrébatos,
e fizemos deles nossos vassalos. Quando Roma nos invadiu, foi para mim que todos olharam quando surgiu a necessidade de um líder... — Ergueu os punhos acorrentados, e sacudiu as correntes.
Macro riu-se.
— Foda-se, ele é mesmo modesto, não é? Um traço de impaciência cruzou a expressão de Cato.
— Macro, o homem está prestes a morrer. Deixe-o ao menos ter um fim decente.
— Seja. Desde que não tente aborrecer-nos até à morte, à laia de vingança.
— Macro já só pensava nos prazeres da carne que contava procurar assim que a cerimónia e o festim terminassem.
Carátaco baixou os punhos, e o seu tom tornou-se claramente menos estridente quando prosseguiu.
— Três vezes vos enfrentámos em batalha — e três derrotas sofremos — até que a nossa capital em Camulodunum tombou. Apesar de sermos mais numerosos, não deixámos de ser derrotados pelas vossas legiões.
É bem verdade que o soldado romano não tem par neste mundo. Tem melhor armamento, melhor treino, mais disciplina do que qualquer outro. O legionário é incomparável no campo de batalha.
— Quanto a isso, tem toda a razão — comentou Macro.
— É verdade — concordou Cato, em voz baixa. — Mas os generais romanos, por vezes, são outra conversa.
Macro grunhiu um enfático apoio à ideia. Carátaco respirou fundo.
— Derrotados no campo de batalha, prosseguimos nos anos seguintes a nossa luta da melhor forma que conseguimos, com algum sucesso. Mas sempre com a honra do nosso povo nos corações, e com o desejo de
vivermos livres. Muito antes de as vossas legiões pousarem o pé nas minhas terras, já tinha ouvido falar da grandeza de Roma. Tinha lido sobre as suas belas cidades e sobre a sua grande riqueza. Porquê,
quando já têm tanto, cobiçar as nossas pobres cabanas? Antes de terem escolhido levar a guerra à Britânia, teria vindo a esta cidade como aliado, ao invés de prisioneiro. Porém, agora aqui estou perante
todos vós, derrotado e humilhado. Em tempos tive muitos cavalos, milhares de seguidores, e grande fortuna. Admiram-se de não ter querido perder tais coisas? Quando o vosso desejo é de tudo governar, será
de esperar que todos aceitem tornar-se vossos escravos? Se eu tivesse escolhido render-me de imediato, nem o meu duradouro desafio a Roma nem a vossa glória ao derrotar-me seriam merecedores deste grande
triunfo que hoje celebram. É também verdade que, se a minha família e eu formos executados aqui hoje, tudo isso morrerá connosco, e será apagado da memória. — Carátaco virou-se, para se dirigir diretamente
ao Imperador. — Por outro lado, se nos for mostrada clemência e nos for permitido viver, seremos um exemplo eterno da clemência, da grandeza e da civilização de Roma. Grande César, eu, Carátaco, o último
dos reis dos catuvelaunos, imploro-te que nos poupes.
Carátaco baixou-se lentamente até ficar de joelhos, esticou os braços na direção do Imperador e baixou a cabeça.
Cláudio olhou para ele de forma severa, enquanto os que rodeavam o Imperador e a multidão no fórum esperavam a resposta, calados e imóveis. Só o longínquo burburinho das ruas distantes e o chilrear dos
andorinhões que dardejavam pelo ar quebravam o silêncio. Cato viu a mão direita do Imperador a tremelicar enquanto repousava no braço almofadado do trono, e depois o polegar começou lentamente a afastar-se
do resto da mão, e Cato sentiu uma náusea na boca do estômago ao aperceber-se de que o pedido de clemência não ia ter sucesso. Tinha apenas um ínfimo momento para reagir, mas nesse período Cato refletiu
que pouco tinha a perder. Já não tinha esposa, nem casa, e em consequência disso o mais provável era que Lúcio tivesse que viver aos cuidados do avô e por ele ser educado. Deu um passo em frente e levantou
ao ar a sua lança prateada, para chamar a atenção da turba, enquanto gritava:
— Vive! Polidoro voltou-se para a origem do grito num salto, com um olhar de alarme, e a maior parte daqueles que rodeavam o Imperador viraram-se, surpresos, para ver quem era o louco que tinha tido a
audácia de se pronunciar contra a iminente execução.
— Vive! — Cato voltou a gritar, esforçando a voz. — Vive! Olhou para Macro com um pedido no olhar, e os largos ombros do amigo sacudiram-se num suspiro, antes de também ele erguer a sua lança e repetir
o grito.
Depois, algures no meio da multidão, outra voz se lhes juntou. Houve um breve burburinho de assobios e gritos contrários, mas mais vozes se ergueram a apoiar Cato, e depressa suplantaram os protestos
daqueles cuja sede de sangue exigia satisfação.
— Vive! Vive! Vive! — O coro espalhou-se pela populaça, e os punhos subiram para demonstrar a força do pedido.
Polidoro apressou-se a correr por trás do trono e a dirigir-se a Cato.
— O que é que pensas que estás a fazer? Para! Cato ignorou-o, e usou a mão livre para ajudar ao apelo. O funcionário do palácio agarrou-lhe o braço e puxou-o para baixo.
— Chega, idiota! Para com isso! Imediatamente, antes que seja tarde de mais. Para!
Cato sacudiu-lhe a mão, e depois aplicou-lhe um murro no ventre, fazendo-lhe o ar sair dos pulmões enquanto se dobrava e recuava, a tentar respirar.
— Já não estás tão inchado agora, hã? — Macro riu-se. À sua volta, os outros soldados que tinham sido condecorados riram-se de Polidoro, e ecoaram o grito de Cato. Ao ouvir o apelo ruidoso que vinha do
grupo de soldados, Cláudio olhou para lá, de sobrolho franzido, e Cato receou que ele desse ordens aos guarda-costas germânicos para que os silenciassem, bem como aos outros. Mas, ao invés disso, viu
que o polegar do Imperador tinha voltado à posição inicial, escondido por baixo dos outros dedos contra a palma, sem ser visto. Pouco a pouco, o Imperador debruçou-se para a frente, e depois ergueu-se
rapidamente, antes de levantar as mãos à multidão. Mas o coro prosseguia, num barulho ensurdecedor, como se fosse a batida de um grande tambor.
— Vive! Vive! Vive! Cato reparou que o queixo do Imperador se agitava, frustrado pelo facto de os seus súbditos ignorarem os gestos a pedir calma. Por fim, Cláudio chamou Pallas e falou-lhe ao ouvido.
O liberto anuiu e correu até ao grupo de soldados que empunhavam longas trombetas de latão. O optio que os comandava fez-lhes sinal para erguerem os instrumentos e eles aprontaram-se para soprar.
As notas estridentes cortaram o canto e desfizeram o ritmo, já que alguns se calaram, enquanto outros perderam a cadência. Pouco a pouco, o fórum aquietou-se de novo, e Pallas ordenou aos trombeteiros
que parassem.
Cláudio deu um passo em frente e olhou para Carátaco, que não se tinha mexido entretanto, nem mostrado qualquer reação ao coro popular que pedia pela sua vida.
— Ergue-te, Carátaco, rei dos ca-cat-catuvelaunos. O bretão levantou-se, e o Imperador pegou-lhe na mão e coxeou até à borda da plataforma.
— Por minha vontade, declaro que o r-rei Carátaco, e a sua família, serão poupados! O facto de viverem será testamento da graciosa c-clemência de Roma. Que ninguém diga que o vosso Imperador, o Se-Senado
e o P-P-Povo de Roma não são capazes de reconhecer um homem honrado quando o veem... Carátaco viverá! Vive!
A multidão rugiu a sua aprovação, e voltou a entoar o canto. Macro deu uma palmada no ombro de Cato.
— Conseguiste! Cato anuiu, pensativo.
— O que me preocupa é o que se vai passar a seguir.
Viu Polidoro ainda a tentar recuperar o fôlego, e a expressão do liberto era de raiva incontida. E poucas dúvidas havia de que o Imperador, que tinha estado à beira de condenar Carátaco e a sua família
à morte, não se mostraria muito satisfeito com o homem que lhe tinha frustrado a intenção.
— Macro, talvez fosse boa ideia se se afastasse de mim. Até isto arrefecer.
— Uma porra. — O centurião sorriu. — Onde tu fores, eu vou, meu amigo.
Será como sempre tem sido desde que nos conhecemos.
Cato deu um estalo com a língua.
— Espero bem que não venha a ter de lamentar que assim seja.
Olhou para o Imperador, e viu que este tinha erguido a mão do bretão, como se tivesse acabado de triunfar num combate de boxe na arena. O Imperador sorria abertamente, e Cato só podia ter esperança de
que a expressão não fosse um mero disfarce. Pelo menos, a turba estava ao lado de Cato e da sua causa. Isso poderia talvez moderar a ira do Imperador e dos seus conselheiros. Pelo menos, assim o esperava.
E se não pelo seu próprio bem, então por Macro.
O salão de festas do palácio imperial estava enfeitado com coroas de flores garridas e tapeçarias que ilustravam as vitórias e conquistas que tinham ocorrido durante o reinado de Cláudio. Cato admirou
quase divertido a sequência que representava a curta visita do Imperador à Britânia. Lá estava Cláudio, de armadura completa, a levar as tropas para terra e a enfrentar as forças hostis que se tinham
disposto nas falésias, numa posição superior, e depois a exortar as tropas enquanto elas combatiam para atravessar o rio Tamisa, e por fim a aceitar a rendição dos reis de doze tribos nativas junto às
ruínas fumegantes da capital de Carátaco, em Camulodunum. Eram belas ilustrações, admitiu Cato. Cheias de cor e ação, e muito detalhadas. As únicas reservas que tinha quanto a elas eram os factos indesmentíveis:
o Imperador não tinha estado presente em nenhuma das duas primeiras ações e, graças à sua interferência, tinha estado perto de provocar uma derrota catastrófica às portas de Camulodunum. Mas a perpétua
disputa entre a verdade e a posteridade tendia a cair para esta última; pelo menos assim indicava a experiência de Cato.
Quando Cato e o grupo em que vinha inserido chegaram, a maior parte dos outros convidados já estava sentada nas longas mesas que se estendiam ao longo de todo o comprimento do salão. Na extremidade, num
nicho curvo de grandes dimensões, ficava a área mais elevada reservada ao Imperador e ao seu séquito mais próximo, que chegariam quando bem lhes apetecesse.
Logo à frente desse estrado elevado ficavam as mesas e poltronas reservadas aos senadores e suas esposas. Depois uma área maior, para os da classe da cavalaria e outras figuras influentes que tinham sido
incluídas na lista de convidados. No total, havia mais de mil lugares, calculou Cato, enquanto pousava o filho e se espreguiçava. Com ele estavam Macro e o sogro de Cato, o senador Semprónio, um indivíduo
baixo, forte, de feições austeras e bem marcadas sob um cabelo branco e escasso, que ele usava para tentar esconder a careca. Cato e Macro tinham regressado à casa do Quirinal depois do triunfo, para
tirarem as armaduras e as vestes militares, antes de envergarem túnicas simples e limpas, e botas de cabedal, mais confortáveis. Semprónio, sendo um tradicionalista, usava a toga com a estreita faixa
vermelha que denotava o seu estatuto aristocrático. Lúcio envergava uma das túnicas que a mãe lhe tinha comprado antes do nascimento. Estava-lhe ligeiramente grande, o que o fazia parecer ainda mais novo
do que os dois anos que tinha realmente. Enquanto encolhia os ombros, para tentar fazer com que o tecido assentasse confortavelmente na sua pequena figura, olhou para cima, para Cato, e esboçou um sorriso
tímido.
Num repente, os olhos claros, acinzentados, e o recorte do cabelo fizeram com que Cato recordasse Júlia, e o seu coração encheu-se de uma terrível mágoa pela ausência da esposa, apesar de ela o ter traído
e magoado de uma forma horrível.
— Parece que esta noite vamos mesmo encher o bandulho! — Macro ria enquanto batia as palmas e esfregava as mãos peludas uma na outra.
De facto, os centros das mesas estavam cobertos de cestos com pequenos pãezinhos, e bandejas de bolos e outras iguarias, bem como taças de fruta, algumas das quais eram para Cato totalmente desconhecidas.
Jarros de prata continham vinho, e muitos dos convidados pareciam já ir adiantados no consumo do mesmo, conversando e rindo de forma animada, deitados junto às mesas.
— Macro, tente deixar alguma coisa para os outros.
— Farei o possível, mas os heróis têm prioridade. E neste momento nós somos os dois maiores heróis de Roma. Tenciono tirar o maior proveito possível desse facto, antes que todos o esqueçam.
Semprónio sorriu.
— Tens razão, centurião. Daqui a um mês já toda a gente terá esquecido tudo isto, e terão voltado às suas discussões e cenas de pancadaria para determinar qual das equipas de quadrigas é melhor.
— Os amarelos — retorquiu Macro, de imediato. — Nem há questão quanto a isso.
— Viva os ama’elos! — soltou Lúcio, lançando os pequenos punhos no ar.
— Viva os ama’elos!
— É assim mesmo! — Macro riu com vontade, deliciado, e passou a mão pelo cabelo do miúdo. — O teu tio Macro há de levar-te às corridas, assim que tiveres idade para isso. Desde que o teu pai autorize,
claro.
— Porque não? — respondeu Cato. — Podemos tratar de afastar alguns maus hábitos logo à partida.
Macro abanou a cabeça e suspirou.
— Desmancha-prazeres.
— De’mancha? — Os olhos de Lúcio arregalaram-se, em choque.
— P’azeres?
Os adultos partilharam uma risada, antes de a expressão do senador se voltar a tornar séria.
— Cato, estás seguro da tua decisão? — Sim, senhor. Tenho a certeza de que o educará da melhor forma. Se eu viver tempo suficiente e os deuses forem generosos, e me proporcionarem as recompensas devidas
pela guerra, poderei então adquirir outra casa. Um sítio para mim e para o Lúcio. Mas, para já, nada posso fazer. Não o posso levar comigo para uma campanha.
— Mas nesta altura não estás em campanha. — Semprónio tocou-lhe levemente no braço. — Cato, acabei por te ganhar tanta afeição que te considero um filho. Porque não vêm os dois viver comigo?
Cato sorriu com tristeza.
— Quem me dera poder fazê-lo. Mas a memória da Júlia já me assombra o suficiente. Tenho que deixar Roma.
— Mas ainda mal chegaste.
— É verdade, mas não foi propriamente o regresso a casa que eu antecipava, e a dor ainda está muito fresca.
Semprónio pensou por momentos, e assentiu.
— Creio que compreendo. Quando é que tens que deixar a casa? — No fim do mês. O Tauro já tem o título de posse. Dei instruções ao Amatapo para leiloar o recheio e lhe entregar o dinheiro, para assegurar
o futuro do Lúcio. O mesmo se aplica à lança de prata, depois de ser vendida.
— Não precisas de fazer isso, eu tenho dinheiro que chegue.
— Senhor, esse é o seu dinheiro — ripostou Cato com firmeza. — Não aceitarei caridade, seja de quem for, para mim ou para o meu filho.
— O Lúcio é também meu neto — lembrou Semprónio, num tom apaziguador. — Minha carne e meu sangue.
Cato viu a mágoa nos olhos do outro homem, e desejou não ter sido tão ríspido. Na realidade, queria cortar todos os laços com Júlia, ou pelo menos todos os que conseguisse. Não era que o senador fosse
de alguma forma culpado pelo comportamento da filha, mas também não deixava de ser, e sê-lo-ia para sempre, um laço a prender-lhe a memória. Como seria Lúcio, admitiu para si mesmo.
— Já está a fazer o suficiente pelo Lúcio — concluiu Cato. — E por isso tem a minha gratidão.
Macro tinha-se mantido a curta distância, e o estômago do centurião roncou de forma bem audível. Semprónio acenou na sua direção.
— Há alguém que precisa de encher o estômago. Vemo-nos mais tarde? — Talvez amanhã, senhor. Os olhos dos dois encontraram-se por momentos, antes de o senador anuir.
— Muito bem, então. Aproveita a festa. E tu, Lúcio, porta-te bem. Senão, não te deixam entrar para o Senado.
Os olhos do miúdo brilharam, marotos, e ele encostou-se à perna de Cato, como que para se proteger. Cato sentiu um enorme prazer perante tal gesto, e acariciou-lhe o cabelo com afeição, enquanto Semprónio
se afastava, a caminho das mesas reservadas aos senadores.
Cato pegou na mão do filho e puxou-a levemente.
— Vamos lá então, Lúcio. O miúdo olhou rapidamente para Macro e enganchou os dedos da mão livre em volta do polegar do centurião. Macro sorriu, deliciado.
— Ora cá estamos! Três amigos, prontos para uma noitada na maior cidade deste mundo! Haverá melhor?
— Um dos amigos, pelo menos, vai para a cama cedo. E talvez fosse uma boa ideia poupá-lo aos prazeres da bebida e das mulheres até ele ser um bocadinho mais velho, não lhe parece?
— Sim, concedo que tens razão. Por agora, podemos limitar-nos a iniciá-lo nas tartes de fruta. Pode experimentar outros tipos de fruta quando tiver idade para isso. Não é, rapaz? — Macro piscou-lhe o
olho.
Lúcio tentou devolver-lhe o gesto, mas só conseguiu piscar os olhos uma e outra vez, antes de assentir.
— F’uta! O pai resmungou, e levantou o olhar aos céus.
— Pelos deuses! Júpiter, o maior e melhor, poupa por favor o meu filho aos vícios dos velhos lúbricos, como aqui o centurião Macro.
Dirigiram-se a uma mesa mais próxima da ponta onde se sentaria o Imperador, e encontraram lugares, com Lúcio sentado de pernas cruzadas entre os dois, confortavelmente reclinados. Não tiveram que esperar
muito tempo pelo Imperador. O som de trombetas anunciou a chegada do séquito imperial, e os convidados levantaram-se de imediato e aguardaram até que Cláudio e a família estivessem sentados. Uma pequena
procissão de figuras desfilou em frente ao estrado e foi tomar lugar junto dos senadores, e Cato reconheceu Carátaco e a família, de ar abatido mas a desempenhar o seu papel, enquanto se iam habituando
à perspetiva de para sempre ficarem longe da sua terra ancestral e de passarem o resto dos seus dias na gaiola dourada de Roma. As trombetas soaram de novo, enquanto o Imperador se servia de um prato
na mesa à sua frente, e por fim os convidados retomaram os seus lugares e começaram a comer.
Macro lançou de imediato a mão a alguns dos doces à sua frente. Colocou vários num prato de bronze e pousou-o diante deles. Lúcio mordiscou uma ponta com ar desconfiado, antes de fazer uma careta e deixar
cair o bolo no prato. Enquanto Macro se atirava à comida com evidente apetite e prazer, e se servia de uma taça cheia de vinho, Cato mastigava pensativo uma iguaria de porco salgado e bem temperado. Ao
olhar em redor, verificou que muitos dos ocupantes da mesa olhavam para ele e para Macro de forma dissimulada, e sussurravam conversas. Dava a ideia de que tinham de facto conquistado uma considerável
porção de fama, como Semprónio dissera. A suficiente para deixar Cato um tanto desconfortável. No fim de contas, ele e Macro haviam-se limitado a cumprir o seu dever. No momento, não tivera o pensamento
em recompensas ou na fama, apenas no frio que o perigo lhe provocava no estômago, na garganta seca, no receio da dor e de qualquer ferimento que o deixasse reduzido a um objeto de piedade. Fortuna tinha
poupado Cato e o seu amigo.
Não fora tão generosa para com todos os camaradas que tinham deixado nos campos de batalha da Britânia, retalhados, dilacerados, abandonados no terreno gelado. E o facto era que haviam recebido todas
aquelas honrarias para ajudar a disfarçar a derrota que as legiões tinham sofrido às mãos dos aliados de Carátaco que ainda não se tinham curvado perante Roma, nem sequer mostrado qualquer intenção de
um dia o virem a fazer. Era uma aldrabice, e ele e Macro faziam parte da história que estava a ser servida ao povo de Roma. Uma aldrabice, tal como fora o seu casamento. Como as afirmações de amor de
Júlia o tinham sido. Ela mentira quando lhe escrevera para a Britânia, falando-lhe do seu amor, do desejo ardente de o ver regressar para junto dela...
Tanto engano. Cato fechou os olhos e desejou estar muito longe de Roma, junto do exército, na Britânia. Pelo menos lá a vida era honesta e clara. Cumprir o seu dever, tratar dos seus homens e derrotar
o inimigo. Isso era tudo o que lhe tinha realmente importado nos dez anos que levava de serviço nas águias. E já lhe sentia a falta, e de forma aguda.
— Cato... Cato, miúdo. Piscou os olhos e virou-se para Macro.
— O que é? — Estavas muito longe. Ia eu perguntar, quais são os teus planos?
— Planos? — Tu sabes. Agora que a casa se fodeu... — Cato tinha contado a Macro a visita do agiota, mas não lhe dissera nada sobre a devastadora traição de Júlia.
— Macro, importa-se? O miúdo...
— Oh, sim. Desculpa. Mas o que é que vais fazer agora? Solicitar outro comando?
Cato suspirou.
— Assim parece. Que mais posso eu fazer? Esperemos que a nossa participação no triunfo de hoje nos abra algumas portas. Francamente, estou disposto a aceitar o que me oferecerem. Só para poder regressar
àquilo que conheço melhor.
E quanto a si? Ainda está decidido a beber e, hã, a outra coisa, até cair para o lado?
— Oh sim! — Macro ergueu a taça. — Bebo a isso.
Bebeu um bom trago e pousou a taça na mesa à sua frente, com um estalo dos lábios. Depois suspirou pesadamente, e adotou um tom mais sério.
— Por agora, isso servirá, sim. Mas nunca deixarei de ser um soldado. Não há neste mundo mais nada para mim. Portanto, se conseguires esse comando, guarda um lugar para mim. Dar-te-á sempre jeito ter
um centurião decente ao teu lado. Em vez de um daqueles merdosos que hoje em dia são nomeados diretamente. Oh! Desculpa, Lúcio. Olha, tens que fechar os ouvidos ao que o tio Macro diz às vezes, está bem?
— Macro, será sempre uma honra tê-lo a servir ao meu lado. — Cato encheu a taça e ergueu-a. — À amizade.
— Ah, o que temos nós aqui? — interrompeu-os uma voz, do outro lado da mesa. — A que se deve esta pequena celebração, meus velhos camaradas de outros tempos?
Cato e Macro viraram-se e depararam-se com Vitélio, que os observava. Tinha-se visto livre da toga de senador e usava agora uma túnica de seda vermelha, ornada com folhas de ouro. O cabelo estava oleado
e penteado em caracóis. Podia passar por uma bela figura de homem, não fosse a expressão fria e calculista que tinha estampada no rosto.
— Se não se importam, juntar-me-ei a vocês. Sorriu levemente, enquanto se metia num espaço entre dois convivas que estavam de costas um para o outro.
— Na verdade, senhor, importamo-nos, sim — replicou Macro.
Vitélio não mostrou qualquer reação ao comentário, e recusou-se a enfrentar o olhar do centurião. Em vez disso, concentrou-se no miúdo e ofereceu-lhe um aceno amigável, e um piscar de olhos.
— E quem será este belo jovem?
Cato rangeu os dentes, antes de ripostar.
— O meu filho.
— O teu filho? — Havia a mais ligeira entoação trocista na segunda palavra, e Cato esforçou-se por não mostrar qualquer sinal de reação.
— Isso mesmo. Lúcio Licínio.
— Não tem último nome? — Ainda não o conheço o suficiente para me decidir por um. Como disse, ele é meu filho, portanto nada tem a ver consigo.
Cato remexeu-se ligeiramente e virou-se, como que para continuar uma conversa privada com Macro.
— É um belo jovem que ele é. Estou certo de que se irá tornar também um homem de valor, pouco importa quem for o pai.
Desta vez, Cato não conseguiu evitar virar-se para o senador.
— O que quer dizer? — Quero dizer que o pai é um guerreiro famoso, e o avô um senador respeitado, mas mesmo com esses fatores, creio que ele será capaz de deixar a sua própria marca na sociedade romana.
Como o pai fez antes dele.
Vitélio continuou a sorrir, enquanto aguardava qualquer resposta às provocações que lançara. Foi preciso a Cato recorrer a toda a sua força de vontade para responder com uma voz normal.
— Não tenho qualquer dúvida sobre o potencial do Lúcio, com a minha mão a guiá-lo. E a do meu amigo, o centurião Macro.
Vitélio acenou brevemente a Macro.
— Portanto, terá o comportamento de um rufião das ruas, mas com o cérebro e a sensibilidade de um filósofo. Desejo-lhe sorte. Vai precisar dela.
Cato já tinha aguentado tudo o que podia. Virou-se de frente para o senador.
— Já se divertiu. Agora, se tem alguma coisa a dizer a algum de nós, diga-o de vez, foda-se. De outro modo, apreciaríamos sobremaneira que fosse outra vez enfiar-se na sarjeta de onde saiu.
Macro tossicou.
— Cato, o miúdo... Cuidado com a língua.
Lúcio olhou para os dois homens com curiosidade. Cato pegou num doce e meteu-o nas mãos do filho.
— Olha, Lúcio, experimenta este. O miúdo lançou-se à guloseima, lambendo o mel que a cobria, antes de lhe enfiar os dentes brancos. Enquanto ele estava assim ocupado, Cato continuou a dirigir-se a Vitélio.
— Diga o que tem a dizer. Depois, desapareça.
— Assim é melhor. Não há qualquer necessidade de adotares a linguagem da Subura quando falas comigo, meu caro prefeito. Temo que tenhas passado demasiado tempo na companhia dos vulgares soldados, e tenhas
perdido todo e qualquer do ar refinado que em tempos tiveste, em resultado de teres crescido no palácio imperial. — Vitélio debruçou-se e pegou num cálice vazio, antes de o apresentar. — Deita-me algum
vinho, por favor, centurião Macro.
Macro cerrou as mandíbulas, e fez o que lhe fora pedido, enchendo o cálice até ao cimo antes de fazer deslizar o bico do jarro o suficiente para continuar a despejar o líquido aquoso e vermelho sobre
a mão e a longa manga da túnica do senador.
— Que merda achas tu que estás a fazer, meu sacana desajeitado? — Vitélio puxou a mão para trás com rispidez, fazendo espalhar-se parte do conteúdo do cálice. Olhou para Macro com maus modos.
Este adotou um ar chocado.
— Senhor, por favor, não estamos na Subura.
Cato não evitou uma risada, e Macro juntou-se a ele, antes de Lúcio se rir também, sem saber porquê.
Vitélio cerrou os lábios com toda a força, antes de recuperar o seu verniz de comportamento social e erguer o cálice.
— Bem jogado, centurião. Espero bem que possas manter tamanha presença de espírito nos dias duros que se aproximam. Estava prestes a propor um brinde, e gostava que se juntassem a mim nessa intenção.
Portanto, meus amigos, vamos beber à campanha que se aproxima. Morte ao inimigo, vitória e honra aos soldados de Roma.
Cato e Macro trocaram um olhar de admiração, antes de Macro inclinar ligeiramente a cabeça já grisalha.
— Diga lá outra vez? — Ah, ao que parece ainda não foram informados. Nesse caso, permitam-me ser o portador de boas novas. Novas que com toda a certeza encherão de alegria os corações de verdadeiros soldados,
como vocês os dois.
— Vitélio levou o cálice aos lábios e beberricou um pouco antes de o pousar de novo. — Aposto que, quando regressarem a casa, vão encontrar as ordens à vossa espera.
— Ordens? — O sobrolho de Cato franziu-se. — Que ordens? — Tu e o centurião Macro foram destacados para a coluna que vai ser enviada para a Hispânia Tarraconense, para suprimir a revolta que por lá se
desenrola. O comboio com um primeiro grupo de tropas já zarpou. O grosso da força chegará antes do fim do mês. A maior parte dos meus oficiais superiores seguirá comigo, de forma a nos reunirmos às primeiras
unidades a chegar ao destino. Isso inclui-vos aos dois.
— Caralho para isso — disse Macro. — Acabámos de regressar da Britânia.
Isso deve ser alguma piada. Sem graça nenhuma, por sinal.
A expressão de Vitélio tornou-se séria.
— Não é piada nenhuma, asseguro-vos.
Ao fim de um momento de silêncio, Cato voltou a falar.
— Porquê nós? — Foi-me dito que podia escolher entre todos os oficiais disponíveis.
Evidentemente, escolhi os melhores. No fim de contas, vocês já provaram de forma admirável o valor que representam para Roma, e em várias ocasiões.
Capturar Carátaco não foi por certo a menos importante delas. Foi fácil persuadir o Imperador de que seria excelente ter-vos a servir no meu novo comando. Têm excelentes folhas militares, e estou seguro
de que será um grande incentivo ao moral dos homens saber que combaterão ao lado de dois oficiais tão ricamente condecorados.
— Estou a ver. — A cicatriz no rosto de Cato fazia-lhe comichão, e ele coçou-a levemente. — E a verdadeira razão para nos escolher?
— Verdadeira? Cato, porquê tanta suspeita? Achas que ainda te guardo algum rancor?
— Talvez não. Mas eu sim, por todas as vezes em que tentou que eu e o Macro acabássemos mortos.
— Isso foi há anos. A situação agora é diferente. Tenho outras prioridades.
— Não tenho dúvidas. Mas os velhos hábitos custam a desaparecer.
— Cato, não sou propriamente um escorpião numa fábula de Esopo. Sou um senador, e uma lição que tirei da política é que os rancores são luxos dispendiosos. Não tenho necessidade de vos prejudicar. Pelo
menos por agora. — Voltou a erguer o cálice. — Vai ser como nos velhos tempos, e será uma honra servir de novo ao vosso lado. Portanto, brindemos aos ”camaradas de armas”, sim?
Os dois oficiais do outro lado da mesa ficaram a olhar para ele, sem se mexerem.
Vitélio encolheu os ombros, pousou o cálice e endireitou-se.
— Façam como quiserem. Tenho que vos deixar por agora. Ainda há algumas pessoas com quem tenho que falar, antes de começar os preparativos finais para a campanha. A primeira das coortes de pretorianos
já seguiu viagem. O resto da minha força está a preparar-se para os seguir. Tratem de estar em Ostia amanhã. Zarpamos pela alvorada do dia seguinte. — Vitélio virou-se e sorriu ao filho de Cato. — Adeus,
jovem Lúcio. Espero que nos voltemos a ver um dia.
Anseio poder conhecer-te melhor.
Lúcio acenou em resposta. Depois, Vitélio levantou-se da poltrona e empertigou-se.
— Até amanhã. Aproveitem a festa.
Tarraco — capital da província da Hispânia Tarraconense
Quando a nave de guerra passou o molhe e entrou no porto, a cidade de Tarraco era banhada pelo sol ardente. Os navios de transporte que traziam o resto da coluna de Vitélio, mais lentos, levariam mais
alguns dias a chegar. Cato estava junto a Macro na torre da proa, e foi de lá que apreciou a vista.
Era a primeira vez que qualquer um deles estava na Hispânia, e a inata curiosidade de Cato mantinha-se atenta à perspetiva de descobrir um novo canto do Império. O porto estava apinhado: os bordos bojudos
de cargueiros ocupavam a maior parte do cais, e as embarcações encontravam-se atracadas lado a lado, três ou quatro juntas, ligadas a terra por pranchas. Grupos de trabalhadores afadigavam-se por entre
elas, a carregar e descarregar, muitos deles vergados ao peso de pesadas ânforas cheias de bom azeite, que seguia para Itália e para as províncias orientais. Entretanto, frutos, tecidos, joalharia e perfumes
eram importados do Egito e da Síria. Na extremidade do cais situava-se o modesto porto e os hangares que eram usados pelo pequeno esquadrão naval que operava a partir de Tarraco. O punhado de velhas birremes
tinha sido arrumado a um dos lados para dar espaço às grandes naves de guerra e transportes de tropas que tinham recentemente chegado, vindos de Ostia.
Por trás dos armazéns, estalagens e pejadas barracas do porto, havia uma muralha que rodeava a cidade original, e para lá dela erguia-se a massa cinzenta das colinas que se prolongavam para o interior
da província. Tarraco, a maior cidade de toda a Hispânia, estava dividida em distritos, o baixo e o alto.
Este último albergava o templo do culto imperial, que dominava o coração da cidade, com altas colunas a erguerem-se acima da confusão de telhados que o rodeava e que suportavam o frontão, em que uma escultura
mostrava Roma e a coroação de uma figura de toga, a representar Cláudio, e antes dele Calígula e Tibério. À volta do templo arrumavam-se outros grandes edifícios, incluindo o fórum principal e o palácio
do governador provincial.
A curta distância da cidade erguia-se uma rampa de terra, encimada por uma paliçada, que rodeava as bem ordenadas filas de tendas de pele de cabra instaladas pela coorte pretoriana que tinha chegado uns
dias antes. Cato e Macro consideraram o campo com um interesse profissional, avaliando em silêncio a qualidade dos homens ao lado dos quais iam combater na campanha que se avizinhava.
— Não está mal — admitiu Macro. — Mas também, seria de esperar que os pretorianos mostrassem as suas capacidades. Não fazem mais nada senão treinar e pavonearem-se perante a populaça.
Cato assentiu, enquanto recordava o tempo em que ele e Macro tinham servido na Guarda, numa operação secreta organizada por Narciso. Os pretorianos consideravam-se o corpo de elite do exército romano,
a quem estava confiada a proteção do Imperador e da sua família. Um antigo comandante dos pretorianos tinha desempenhado um papel de destaque no assassínio do anterior Imperador, e desde então Cláudio
não se tinha esquecido de zelar com todo o cuidado pelos homens daquelas doze coortes. Um pouco de prata fazia maravilhas pela lealdade da Guarda, refletiu Cato. E muita prata conseguia extrair deles
uma lealdade perto do fanatismo.
— Eles sabem combater. Já vimos isso na Britânia.
— É verdade — concedeu Macro, a contragosto. — Mas atrevo-me a dizer que eles amoleceram, nos anos que passaram entretanto. Boa vida a mais, nada de duras marchas ou de combates, e isso arruina até os
melhores soldados. — Virou-se e apoiou os cotovelos no cimo do bordo da torre, enquanto olhava para a popa da embarcação, onde Vitélio e vários dos seus companheiros partilhavam um odre de vinho e conversavam
de forma animada e descontraída. Como era natural os homens fazerem depois de concluírem uma viagem marítima. Por sorte, o tempo tinha sido clemente para os passageiros que seguiam a bordo da trirreme,
e só tinham enfrentado uma ligeira borrasca nos oito dias que haviam levado para alcançar Tarraco. O oscilar do navio fizera Cato enjoar, e ele tinha passado muitas horas agarrado à amurada, ao lado de
outros marinheiros de terra firme, a vomitar sem parar sobre o bordo até nada ter no estômago, para lá da bile. Macro, em contraste, enfrentara a forte brisa e o ar salgado de cabeça bem erguida, e tinha
saído refrescado da experiência. Não se alheara do sofrimento do amigo, mas sabia muito bem que não havia nada a fazer quanto a isso, pelo que deixou Cato tratar das suas náuseas até o mar voltar a acalmar-se.
A miséria que Cato sentira tinha sido acentuada por estar confinado a bordo do navio com Vitélio. Não tinha qualquer confiança na afirmação do outro, de que tinha escolhido Cato e Macro para servirem
com ele apenas pelas qualidades que eles possuíam como combatentes. Um homem como Vitélio estava sempre a preparar o passo seguinte no seu trajeto para o poder.
Cato desviou o olhar da cidade e seguiu a direção em que Macro olhava.
— Não posso dizer que me sinta confortável com a perspetiva de voltar a servir com o nosso amigo Vitélio.
— Nem eu. — Macro fez o ar silvar entre os dentes. — É um cabrão escorregadio, e tem-nos um rancor bem guardado. Temos que andar com muito cuidado ao pé dele. Pelo menos desta vez não teremos que nos
preocupar demasiado com o inimigo. Um bando de bandidos a correr pelas colinas não será grande problema quando aparecermos em cena com os nossos comparsas pretorianos. Dá-me ideia de que estamos a usar
um martelo muito grande para partir uma noz.
— Espero bem que tenha razão... — considerou Cato. Depois sorriu para si mesmo. Estava sempre a pensar o pior possível em cada situação, apesar de se ver mais como um seguidor de Epicuro do que como um
estoico. Resolveu mostrar uma face mais otimista. — Não, estou seguro de que está certo. A Hispânia tem estado em paz na maior parte do século passado. Assim que chegarmos a Asturica Augusta e fizermos
uma demonstração de força, o Iskerbeles e os seus seguidores vão perceber que a brincadeira acabou. Sou capaz de apostar que o Vitélio não se importará nada de queimar umas aldeias até persuadir os locais
a entregar os líderes da revolta. A coisa vai estar acabada antes do inverno. — Cato coçou o pescoço. — A questão é, o que fazemos depois? Não me agrada nada ficar preso à Guarda Pretoriana. Mesmo com
os pagamentos do palácio, serão muitos anos antes de voltar a juntar dinheiro suficiente para comprar outra casa decente. Graças à Júlia.
Macro olhou para ele, preocupado.
— Um mau negócio, com efeito. Pensava que ela era demasiado sensata para se deixar enredar numa dívida dessa maneira. Mas não há nada a fazer quanto a isso. Aquele Tauro é igual aos outros cabrões agiotas.
Um bando de tubarões que vivem às custas de todos nós. Mas tens razão quanto a servir na Guarda. Temos mesmo que sair de Roma. Encontrar um lugar qualquer onde o inimigo queira combater, e onde esteja
carregado de ouro, prata, e outras coisas que valham a pena saquear. Esse é mesmo o meu género de inimigo — concluiu, com entusiasmo.
Depois de mais umas remadas, a trirreme aproximou-se dos outros navios. O capitão deu ordem para recolher os remos, e as longas hastes saíram do mar a pingar água e foram colocadas no interior do navio.
O homem do leme avaliou cuidadosamente a distância para o mais próximo grupo de navios amarrados em conjunto e, à medida que a trirreme rodava, manejou o leme de forma a prosseguir o movimento lentamente,
para acostar suavemente a outra trirreme. Um punhado de marinheiros estava a postos para recolher os cabos que foram lançados através do espaço aberto, e pouco depois o navio estava atracado e uma prancha
de acesso à outra embarcação tinha sido colocada.
Um soldado da infantaria subiu à torre e saudou Cato.
— Os cumprimentos do legado, senhor. Os oficiais devem juntar-se a ele imediatamente, para se dirigirem ao palácio do governador.
— Muito bem. — Cato assentiu, e o homem voltou a descer a escada.
— Não queremos perder tempo, portanto — considerou Macro. — Bom.
Quanto mais depressa isto estiver despachado, melhor.
Apesar de o ritmo da vida nas ruas da capital da província nada ter de excecional, o ambiente no palácio do governador era tenso, e isso fez-se notar a partir do primeiro instante em que Vitélio e o seu
grupo puseram o pé no átrio. Nada de surpreendente, pensou Cato. Já tinham passado quase três meses desde que a rebelião tivera início. Um grande grupo de mercadores e dignitários locais estava a exigir
uma audiência com Públio Balino, e um punhado de escribas tentava a todo o custo mantê-los à distância, enquanto outros anotavam nomes e o assunto que eles queriam discutir com o governador. Os gritos
ecoavam nas paredes e tetos, e Vitélio teve que gritar sobre a confusão para se fazer notar pelo mais próximo dos escribas.
— Legado Aulo Vitélio. Acabado de chegar de Roma. Preciso de ver o governador imediatamente.
O outro pareceu aliviado, e assentiu.
— Senhor, queira seguir-me. Os membros do outro grupo que estavam mais próximos de Vitélio viraram-se para ele, e um adiantou-se para se meter no caminho do legado.
— De Roma, senhor? Veio tratar dos rebeldes? Mais homens se aproximaram, alguns com ar esperançoso, outros a exigir uma ação imediata, e Vitélio viu-se obrigado a aclarar a garganta e a levantar as mãos.
— Senhores! Senhores, um momento de calma, por favor. — Aguardou até que a turba se aquietasse e ficasse a olhar para ele, expectante. — Roma soube dos vossos problemas, e o Imperador decidiu que fará
tudo o que estiver ao seu alcance para esmagar esta revolta e restaurar a paz.
E por isso me enviou, a mim, Aulo Vitélio, para cumprir essa vontade. Posso assegurar-vos a todos de que possuo a experiência necessária, e os homens suficientes, para caçar e destruir o Iskerbeles e
a sua maralha. Podem ficar sossegados quanto a isso, e têm desde já a minha palavra de que será isso que se vai passar. Agora, se me permitem, abram passagem e deixem-me seguir.
À medida que a turba lançava mais questões e exigências ao legado, em vez de o deixar seguir, Macro virou-se para Cato e franziu o sobrolho.
— Fico imensamente feliz por saber que o Imperador mandou um dos seus melhores para resolver a situação. Já me sinto muito mais seguro.
Cato perscrutava as expressões ansiosas dos homens que rodeavam o legado.
— Se as coisas estão neste pé aqui em Tarraco, tão longe da área da revolta, parece-me que a situação é capaz de ser um bocado pior do que aquilo que nos contaram.
— O caraças. Sabes bem como são os civis. Um salpico de crise e desatam a correr de um lado para o outro, atarantados, como uma galinha sem cabeça.
Vitélio avançava decidido por entre a multidão, esforçando-se por seguir o escriba até um corredor que partia de um dos lados do átrio. Dois auxiliares guardavam a entrada da passagem, e brandiram escudos
e lanças quando a turba se aproximou demasiado deles. O escriba e os oficiais romanos entraram para o corredor, e os soldados criaram uma barreira nas suas costas, obrigando os locais a recuar. Enquanto
seguia os outros, Cato espreitava para ambos os lados por todas as portas de gabinetes, e viu que a maior parte dos escribas não pareciam propriamente preocupados enquanto trabalhavam, debruçados sobre
as suas secretárias. Alguns, era verdade, tinham um ar ansioso, e outros corriam de sala em sala com tábuas enceradas nas mãos. Ao fim do corredor, via-se um imponente arco, onde se acoitavam duas grandes
portas de carvalho com rebites metálicos. O escriba acenou a um escravo, e este apressou-se a admitir Vitélio e o seu séquito, colocando-se de lado com o pescoço dobrado, enquanto o grupo de oficiais
romanos passava por ele, de placas peitorais e capacetes brilhantes.
Do outro lado havia uma antecâmara, onde outros dois escribas se afadigavam sobre mesas, repletas de pilhas de tábuas e rolos de pergaminho de diferentes tamanhos. Saltaram das cadeiras e colocaram-se
em sentido assim que viram os oficiais.
— O legado Aulo Vitélio, de Roma — anunciou o homem que escoltava os oficiais. — Solicita uma audiência imediata com o governador.
O mais velho dos dois homens baixou a cabeça calva e foi bater na porta entre as duas mesas. Uma voz abafada respondeu da sala do outro lado:
— Entre! O escriba abriu a porta e anunciou a presença do grupo, enquanto Vitélio se remexia impaciente, empertigando-se todo.
— Manda-os entrar. O homem pôs-se de lado e fez um gesto respeitoso, indicando a entrada para o gabinete do governador. Vitélio liderou os seus oficiais, dez homens de armadura, com botas militares que
faziam um tropel tremendo enquanto martelavam as lajes do piso da câmara de grandes dimensões, até junto de Públio Balino e dos seus conselheiros. O governador estava sentado numa larga cadeira almofadada,
e os seus ajudantes mais chegados ocupavam bancos também acolchoados, dispostos num arco à sua frente. Todos tinham deixado de parte as togas e usavam túnicas, mais confortáveis, sinal da séria discussão
que estava a decorrer antes da chegada do legado e dos seus homens. Os civis levantaram-se, e Balino avançou e trocou um aperto de braços com Vitélio.
— Saudações. Não consigo dizer-te quanto me agrada — a mim e a todos — ver-te.
Vitélio respondeu com um sorriso polido.
— Também nós estamos agradados, por termos desembarcado em segurança. Graças a Neptuno.
— De facto. Vem, legado, senta-te. Tu e os teus oficiais. — Balino apontou para os bancos vazios encostados às paredes, e os conselheiros do governador rearranjaram-se para lhes dar espaço. O governador
voltou a sentar-se, antes de lhe ocorrer a ideia de se mostrar um anfitrião hospitaleiro.
— Peço perdão, tu e os teus homens talvez queiram refrescar-se? — Agradeço-te, mas não. Nos últimos dias tivemos mais do que a nossa dose de líquido.
O comentário dissipou a tensão do ambiente, e a maior parte dos presentes sorriu. Cato viu os olhos do governador a dardejar por entre os seus visitantes, antes de sorrir também. Um homem que preferia
alinhar-se com o sentimento prevalecente em vez de mostrar o que verdadeiramente sentia, refletiu Cato.
— Legado, a tua chegada acontece no momento certo. Estávamos precisamente a discutir a melhor forma de dispor os reforços no terreno.
— Oh? — Vitélio arregalou uma sobrancelha. — Estavam, era? E o que tinham então em mente para mim e para os homens sob o meu comando?
— É bastante óbvio, há que marchar para Asturica imediatamente, e esmagar o coração da revolta. Crucificar todos os rebeldes que forem apanhados com vida, de forma a que ninguém possa esquecer o terrível
preço que se paga quando se desafia Roma.
Os conselheiros acenaram, apoiando a afirmação com todo o coração.
— Estou a ver. Imediatamente, dizes-me tu. Eu, os meus camaradas aqui presentes e a coorte de pretorianos, a única unidade que tenho presentemente ao meu dispor. Contra quantos homens? Sabem quantos homens
seguem o Iskerbeles?
Balino contemplou o vazio por momentos, sem desviar o olhar, antes de ripostar.
— Alguns milhares, talvez mais, mas com certeza que não estão à altura de soldados bem treinados.
Vitélio coçou o nariz.
— O último relatório que me chegou às mãos, antes de deixar Roma, referia que o Iskerbeles tem consigo mais de cinco mil lanças, e que esse número aumenta a cada instante que passa. Atrevo-me a dizer
que, quando marcharmos para Asturica Augusta, as suas forças serão ainda mais poderosas. Meu caro governador, convidas-me a avançar para um desastre. Além disso, não efetuarei qualquer movimento direto
contra o inimigo até que todas as minhas forças tenham desembarcado, estejam bem aprovisionadas e equipadas, e prontas para uma campanha que pode ser longa.
— E quando será isso? — indagou um dos conselheiros, um homem rotundo, com espesso cabelo encaracolado. — Da maneira como as coisas se encontram, estamos a sofrer. O seu dever é avançar e reprimir os
rebeldes. É para isso que pagamos os nossos impostos.
Vitélio virou-se para ele com elegância.
— Peço desculpa, mas não fomos apresentados. O homem mostrou-se irritado, mas depois encheu as bochechas, impaciente.
— Caio Gleco, chefe da guilda dos mercadores de azeitona.
— Muito bem, Gleco, tal como deves saber, um legado imperial tem a autoridade de requisitar todas as provisões necessárias no seu teatro de operações. Mais ainda, tem o poder de alistar todo e qualquer
cidadão, e fazê-lo servir sob as suas ordens durante todo o período que justifique os seus poderes de emergência. Ora bem, se voltas a dirigir-te a mim dessa forma, tratarei de requisitar todas as tuas
propriedades, e depois far-te-ei entrar para as fileiras de uma das minhas coortes, e garantirei que tomarás lugar na primeira das linhas de batalha quando enfrentarmos o inimigo. Só para satisfazer o
teu entusiasmo tão evidente para garantir a derrota do inimigo. Que tal te soa a proposta?
Gleco empalideceu, pareceu encolher-se e resolveu olhar com toda a atenção para as suas sandálias. Macro não conseguiu evitar um ligeiro sorriso perante o desconforto do civil, e uma admiração a contragosto
pela forma subtil que Vitélio tinha escolhido para esmagar a arrogância do homem.
— Em resposta à questão levantada pelo nosso amigo Gleco, aguardo que o resto dos meus homens se junte a mim nos próximos cinco dias. Portanto, devemos estar prontos para marchar daqui a uns dez dias.
O governador deslizou ligeiramente para a frente, para se dirigir ao legado.
— Isso é capaz de ser um bocadito tarde. Dado o que ficámos a saber graças ao último relatório que recebemos dessa área. — Acenou a um sujeito magro, sentado na ponta da fila de conselheiros, e Cato reparou
que ele estava coberto de poeira e sujidade. O homem pareceu despertar e levantou-se, com ar cansado. Balino fez um gesto na sua direção. — Este é Gaio Getelo Cimber. Um dos magistrados da cidade de Lancia,
uma povoação importante, a cerca de quarenta e cinco quilómetros de Asturica Augusta. Escapou de Lancia há dez dias.
— Escapou? — perguntou um dos oficiais.
— Fala, Cimber. Diz ao legado e aos seus oficiais o que já nos disseste.
Cimber respirou fundo enquanto organizava as ideias, e virou-se para Vitélio e o seu séquito. Falou com um sotaque notório, que traiu de imediato as suas origens. Era um filho de uma das tribos locais
que tinha conseguido entrar para a administração romana.
— Os rebeldes tomaram Asturica dois dias antes de eu escapar. Os sobreviventes da guarnição da cidade chegaram à minha povoação pouco antes dos primeiros guerreiros tribais que vinham em sua perseguição.
Contaram o que tinha sucedido. O líder do Senado local tinha anunciado que conduziria ele mesmo uma milícia para as montanhas, e traria Iskerbeles em grilhetas, ou então voltaria só com a sua cabeça.
O Senado assumiu que os rebeldes não constituíam qualquer ameaça, e não foram tomadas precauções extraordinárias para proteger a cidade. Os sobreviventes afirmaram que os guardas dos portões principais
estavam bêbados e foram dominados num instante. Com os portões escancarados, os rebeldes avançaram pelas ruas e começaram a massacrar a guarnição e todos os cidadãos romanos e funcionários associados
com a administração da cidade.
Vitélio limpou a garganta.
— Asturica está então nas mãos deles? Estás certo disso? — Repito apenas aquilo que me foi dito, senhor. Se os rebeldes ainda lá estão ou não, é outra questão. Mas a cidade foi de facto tomada por Iskerbeles.
— Estou a ver. E então, o que tem isso a ver com a fuga que mencionaste? Cimber coçou o queixo, sem esconder a ansiedade.
— Na manhã seguinte à chegada dos sobreviventes de Asturica, os rebeldes cercaram Lancia. Fui enviado para dar o alarme e solicitar que fossem enviadas algumas forças em socorro da cidade. Tinha uma escolta
de seis homens a cavalo. Deixámos a cidade a coberto da noite, mas demos de caras com uma das patrulhas inimigas, e tivemos que abrir caminho à força. Eu, e outro, fomos os únicos a conseguir escapar.
— E agora Lancia está cercada? — Creio que sim, senhor. Nessa noite, os rebeldes estavam a montar um acampamento em frente às muralhas.
Cato debruçou-se de forma a que Cimber o pudesse ver claramente.
— Lancia pode resistir a um cerco desse género? As defesas são suficientes? Cimber pensou um pouco antes de responder.
— Lancia tem boas muralhas, e não fomos apanhados de surpresa como aconteceu com Asturica.
— E quanto à guarnição? Quantos homens capazes consegue a cidade reunir?
— Só existe a milícia, senhor. É cerca de uma centena de rapazes ainda mal treinados. No total, uns quinhentos, diria eu.
— Vês? — interveio Balino. — Perdemos uma cidade, uma segunda está sob ameaça, ou pode também já ter tombado. Temos que agir imediatamente.
Legado, tens que conduzir os teus homens ao confronto com os rebeldes, sem perder tempo.
Vitélio não conseguiu esconder a preocupação perante as novidades, e franziu o sobrolho.
— Preciso de tempo para pensar. Para gizar os meus planos.
— Não temos tempo — insistiu Balino. — E ainda nem sabes o pior.
— Há mais más notícias? — murmurou Macro. — Isto começa a parecer algo muito diferente da limpeza fácil que nos garantiram.
O governador juntou as mãos rechonchudas.
— Existe uma mina imperial, Argentium, a uns trinta quilómetros de Lancia, nas colinas. A maior da região. É o local onde é recolhida toda a prata produzida nas minas em redor. E é mais ou menos por esta
altura do ano que é organizado um comboio para trazer a prata para Tarraco. Se os rebeldes tomarem a mina e aniquilarem o comboio, não haverá nada para o tesouro provincial, e nada para ser remetido para
Roma. A província, e o Imperador, dependem desta prata para pagar às tropas, tanto aqui como em Roma. Se a prata for perdida...
Não precisou de concluir a ideia. O perigo era bem evidente. Soldados sem pagamento começavam a protestar. Pior ainda, podiam sentir-se inclinados a procurar novos patronos que lhes pagassem o devido.
Sobretudo na capital, onde a lealdade das coortes da Guarda Pretoriana podia ser comprada por qualquer homem com fundos suficientes para as subornar. Mas havia outras ameaças ainda, compreendeu Cato.
Com uma fortuna daquela dimensão nas mãos, Iskerbeles podia arregimentar ainda mais homens para a sua causa. A rebelião espalhar-se-ia rapidamente, por toda a Tarraconense, e depois pelas províncias adjacentes,
a Bética e a Lusitânia. Se tal sucedesse, Vitélio e a sua força seriam esmagados, e seria necessário recorrer a um exército vasto e poderoso para derrotar os rebeldes e restaurar a ordem. O problema era
que o exército romano estava espalhado pelas fronteiras do Império. Reunir tropas suficientes para voltar a pacificar a Hispânia implicava retirá-las das fronteiras. Os inimigos de Roma não deixariam
de aproveitar um tal momento de fraqueza.
Embora o exército de Roma fosse muito numeroso, e letal em ação, na realidade o controlo que exercia sobre o Império dependia de um equilíbrio delicado de recursos. Sobretudo com o conflito permanente
na Britânia a esgotar-lhe as reservas. Cato apreendeu toda a situação num momento.
— Não podemos permitir que a mina, e o seu tesouro, caiam nas mãos dos rebeldes — prosseguiu Balino. — Se tal suceder, pagaremos por isso com as nossas cabeças.
Vitélio encarou-o com surpresa.
— Nossas? — Claro. Esta é a minha província. É óbvio que serei tido por responsável.
Mas podes ter a certeza de que o comandante da força enviada para suprimir a revolta será também considerado responsável, se eu tiver a mínima influência na matéria.
— Ah, estou a ver. Balino, isso é chantagem. Direi mesmo que se trata de uma vergonhosa tentativa de chantagem.
— Nada disso, legado. Limito-me a realçar as realidades políticas da situação. — O governador voltou a recostar-se na cadeira e cruzou as mãos.
— Penso que seria aconselhável que cooperássemos para destruir Iskerbeles. Fazê-lo serve os interesses de ambos.
Os lábios de Vitélio cerraram-se com força, enquanto ele lutava para controlar a raiva e reordenar as ideias.
— O que queres tu que eu faça? Que envie os meus homens para uma destruição assegurada? Nada posso fazer até ter comigo todos os meus homens.
— A estratégia é contigo, meu caro Vitélio. Eu não passo de um político.
Vitélio não escondeu o desdém, e abanou a cabeça.
— Cobarde.
Instalou-se um silêncio pesado na sala de audiências, até que Cato tossicou levemente. Vitélio virou-se e olhou para ele.
— Tens alguma coisa a oferecer à discussão, prefeito Cato? — Sim, senhor.
— Porque será que isso não me surpreende? — Vitélio suspirou. — Vá lá, desembucha.
Cato refreou a irritação, e ordenou os pensamentos.
— Se o Iskerbeles tomar a mina, as consequências far-se-ão sentir por todo o Império. Portanto, não podemos adiar uma tentativa de impedir esse facto.
Quaisquer forças que tenhamos devem ser enviadas para garantir a segurança da prata. — Voltou-se para Cimber. — Conheces a mina?
O homem assentiu.
— Sim, já lá estive algumas vezes. Sou o detentor do contrato de fornecimento de cereais para alimentar os escravos.
— Ótimo, então diz-me: a mina tem alguma fortificação? Imagino que deve haver uma muralha para conter os escravos.
— Há um conjunto de edifícios para os escravos, numa cornija acima da mina; esta fica na base das falésias, e tem um rio em frente, e uma muralha do outro lado.
— Quantos escravos vivem lá? Cimber fez um cálculo rápido.
— Cerca de três mil.
— E quantos guardas? — Talvez uns duzentos. Há uma centúria de tropas auxiliares, e o resto são capatazes. E a escolta do comboio já lá chegou, o que quer dizer que está lá outra centúria.
Cato assentiu.
— Homens suficientes para defender o lugar, pelo menos por agora.
Chegam para desencorajar qualquer patrulha rebelde que apareça por lá. Mas não serão os suficientes para aguentar um ataque determinado.
— Que não deixará de surgir — interrompeu Vitélio. — Assim que os rebeldes pensarem em apossar-se da prata. Se é que não tomaram já a mina.
— Isso, senhor, se eles souberem da prata. — Cato virou-se para o governador. — Suponho que a existência desse comboio da prata não seja propriamente anunciada por todo o lado?
Balino fungou.
— De todo. Uma palavrinha sobre ele que fosse ouvida, e podes ter a certeza de que todos os bandos de salteadores das montanhas se atiravam sobre o comboio assim que ele deixasse a mina. Os lingotes são
colocados no fundo das carroças, e depois escondidos debaixo de sacas de cereal e ânforas de azeite.
Assim dá a ideia de que se trata apenas de um vulgar destacamento militar em marcha, e não atrai atenções indesejadas ao longo do trajeto.
— Muito bem, é portanto provável que o Iskerbeles ainda não saiba da prata. — Cato fez uma pausa, já que outro pensamento acabava de lhe cruzar a mente. — Os escravos na mina. Imagino que haja uma constante
necessidade de substitutos. De onde vêm eles?
Cimber encolheu os ombros.
— A maior parte é trazida por mercadores de escravos de Gigia, e são prisioneiros capturados na campanha da Britânia. Depois há os que são da tribo dos astures, que foram vendidos como escravos por não
terem saldado as suas dívidas. Têm sido muitos nos últimos tempos. São a gente do Iskerbeles.
E uma das razões por que a região estava no ponto certo para uma revolta. Graças a essa cambada de sanguessugas agiotas que agem a mando dos seus senhores do Senado em Roma... — Os olhos de Cimber arregalaram-se,
e ele olhou para o governador com ansiedade. — Senhor, não quis ofender ninguém. É só porque os homens do senador Aneu têm andado a cobrar dívidas nos últimos meses, e exigiram pagamentos em várias aldeias.
Foi isso que desencadeou a revolta.
— Isso não serve de desculpa — disparou Balino. — Os locais deviam saber no que se estavam a meter quando receberam os empréstimos.
Cato sabia bem do que se falava. Os agiotas eram hábeis vendedores, peritos em enganar os clientes com promessas de empréstimos a baixo custo que acabavam por os amarrar e os obrigavam a pagar juros pelo
resto das suas vidas. Era isso, ou ver-se forçado a encerrar a dívida em troca de gado, terra, ou até mesmo da própria liberdade. Tinha visto demasiados agiotas a seguirem as legiões na Britânia, e sabia
bem a forma como eles operavam. E a miséria e os problemas que eram capazes de provocar.
— Podemos portanto assumir que o Iskerbeles vai atacar as minas da região, para libertar a gente da sua tribo que foi vendida para a escravatura — comentou Cato. — Há de chegar um momento em que vai atacar
Argentium.
Com alguma sorte, vai tratar das minas de menor dimensão primeiro, de forma a aumentar a sua força graças aos escravos que for libertando.
Vitélio soltou uma gargalhada seca.
— E se não tivermos sorte? — Nesse caso, senhor, estamos atolados na merda. Mas será melhor pensar que temos sorte, dado que não possuímos escolha, e temos que fazer o que pudermos para garantir a segurança
da prata.
— O que é que queres dizer, Cato?
— Que terá de enviar a coorte acampada às portas de Tarraco para a mina, de imediato, senhor. Não se pode permitir perder um único momento. O resto do seu comando pode seguir quando desembarcar.
— Uma coorte de pretorianos contra milhares de rebeldes? Estás doido? Seriam massacrados.
Cato abanou a cabeça.
— Senhor, eles não terão que enfrentar o Iskerbeles. Têm apenas que guarnecer a mina e mantê-la na sua posse até que o resto da coluna alcance Argentium.
— E se os rebeldes derem com a coorte antes de a coluna se juntar a ela? — Nessa altura, defendem a mina enquanto puderem, e se houver perspetivas de os rebeldes conseguirem forçar a entrada, a prata
poderá ser enterrada, ou lançada ao rio. Seja o que for necessário para a manter longe das mãos dos rebeldes. Poderá sempre ser recuperada mais tarde.
Vitélio contemplou o chão, perdido em pensamentos, até que o governador quebrou o silêncio.
— O teu oficial tem razão, legado. Tens que levar os teus homens para a mina, imediatamente. Os outros podem seguir assim que chegarem a Tarraco.
Não temos outra escolha, temos que fazer como ele diz.
Todos os olhares se viraram para Vitélio, à espera de uma decisão, e quando ele levantou o olhar, Cato avistou um brilho frio na sua expressão.
— Muito bem, a coorte pretoriana marchará para Argentium à primeira luz do dia.
Balino pareceu aliviado, e acenou em concordância.
— Excelente. Tratarei de garantir que tu e os teus homens terão todas as provisões que serão necessárias.
— Agradeço-te. Mas eu não seguirei com a coorte. Ficarei aqui a planear a campanha, enquanto espero pela chegada do resto das minhas forças. A coorte terá que ser comandada por alguém com a coragem e
as capacidades intelectuais necessárias para lidar com o inesperado, se alguma coisa correr mal.
Macro respirou fundo e murmurou: — Foda-se, até eu estou a ver onde é que isto vai dar...
O legado rodou ligeiramente no seu banco e virou-se para Cato.
— Prefeito Cato. És o homem mais indicado para este trabalho, na minha opinião. Não consigo pensar noutro oficial que preferisse enviar numa missão tão vital, e tão perigosa. Dados os riscos envolvidos,
insisto em que sejas acompanhado pelo formidável centurião Macro. As tuas ordens são simples. Assume o comando da Segunda Coorte da Guarda. Dirige-te diretamente para a mina de Argentium, o mais depressa
possível. Sugiro que aqui o Cimber, te acompanhe. Conhece a área e os habitantes. Poderá ser-te útil.
Cimber abanou a cabeça.
— Mas eu não sou um soldado.
— Nada temas, meu caro. Nada de mal te acontecerá enquanto estiveres sob a proteção do prefeito Cato e dos seus homens.
— Ainda assim, senhor, preferia ficar aqui em Tarraco.
— Estou certo de que sim, mas preciso dos teus serviços, preciso da tua assistência para derrotar os rebeldes. Portanto, ou segues com a coorte de tua livre vontade, ou então vais acorrentado. — Vitélio
cruzou as mãos e batucou os dedos uns contra os outros. — Se fosse a ti, preferia seguir de minha livre vontade.
Cimber olhou para ele antes de anuir, vencido.
— Bom homem. É como diz o ditado: um voluntário vale bem dez forçados. — Vitélio voltou a dar atenção a Cato. — Ora bem, prefeito, assim que chegares à mina, deverás proteger a prata, e escondê-la, se
existir qualquer risco de ela poder vir a cair em mãos inimigas. Ficarás nesse local até que eu chegue com o resto da coluna. Tens alguma questão?
Cato abanou a cabeça, mas Macro levantou a mão.
— Bem, centurião? — E se o Iskerbeles chegar à mina antes de nós, senhor? Vitélio lançou um sorriso fraco.
— Se tal suceder, centurião Macro, espero bem que o ataquem de imediato e recuperem a mina, sejam quais forem as vossas hipóteses.
Macro franziu o sobrolho.
— Isso, senhor, pode muito bem ser um suicídio.
— Nesse caso, garanto-te que louvarei o teu sacrifício, quando enviar um relatório para Roma. Talvez possa haver outra condecoração a juntar às que ornam a tua lança, mesmo que a título póstumo.
Macro anuiu.
— Muito agrafodido, senhor.
Ouviu-se uma respiração suspensa coletivamente, e muitos dos outros oficiais olharam para o centurião, mas Macro não se descoseu, e Vitélio limitou-se a semicerrar os olhos, antes de respirar profundamente.
— Prefeito Cato, já tens as tuas ordens. Podes assumir imediatamente o comando da coorte.
— Sim, senhor.
— Que os deuses te acompanhem, prefeito. Porque, se falhares, ninguém te mostrará qualquer clemência. Não o fará o Iskerbeles e, se por algum milagre escapares ao inimigo, não esperes nenhuma da minha
parte, nem da do Imperador, nem da do povo de Roma. Portanto, obtém sucesso, ou morre a tentar.
— cabrão lixou-nos bem lixados — resmungou Macro, enquanto marchavam por entre as linhas de tendas da Segunda Coorte Pretoriana, no campo instalado no exterior das muralhas de Tarraco. Os soldados à sua
volta levantavam-se de imediato e trocavam saudações com os oficiais que passavam por entre eles. Havia naquela situação muito mais formalidade do que era habitual com os legionários com que Cato e Macro
tinham servido em campanhas anteriores. As tendas de pele de cabra não tinham manchas nem remendos, como era frequente nas das legiões, e davam a ideia de terem saído diretamente dos armazéns da Guarda,
sem qualquer uso prévio. As armaduras e escudos também tinham a mesma aparência, luzidia, sem o menor sinal de ferrugem em evidência.
— Ordens são ordens, Macro. Não nos cabe discuti-las.
— Oh, vá lá. Sabes muito bem porque é que o Vitélio nos escolheu para isto. O mais provável é que avancemos mesmo de encontro ao exército rebelde, e que sejamos feitos em bocados. Mesmo que consigamos
chegar primeiro à mina, o Iskerbeles saberá disso bem depressa, e virá ter connosco. O resultado final será o mesmo. Vamos para o matadouro, e estes rapazes vão connosco. Foda-se... — Caminharam em silêncio
por momentos, antes de Macro deitar uma olhadela ao amigo. — Não pareces muito chateado com a sorte que nos espera.
— Tal como já disse, são ordens.
Quando se aproximaram do quartel-general, no coração do campo, os dois pretorianos de guarda à entrada da maior das tendas apresentaram as lanças e colocaram-se em sentido para lhes dar passagem. Dobraram-se
para passar por baixo da aba, e vários escribas que estavam a trabalhar, debruçados sobre uma grande mesa de campanha, endireitaram-se imediatamente e puseram-se em sentido.
— À vontade. — Cato olhou em redor. — Quem é o mais antigo oficial da coorte?
— O centurião Gneu Lúculo Pulcher, senhor — replicou um dos homens.
— Também há um tribuno destacado na coorte.
— E quem és tu? — indagou Cato.
O homem pôs-se em sentido de um salto.
— Optio Metelo, Primeira Centúria, Segunda Coorte, senhor.
— Ora muito bem, Metelo, eu sou o prefeito Quinto Licínio Cato. O legado acaba de me nomear para o comando desta coorte. Este é o centurião Macro, meu adjunto no comando. Quero que o Pulcher, o tribuno
e todos os outros centuriões se apresentem no quartel-general imediatamente.
O optio recuperou rapidamente da surpresa perante as novidades.
— Convocar os oficiais, sim, senhor.
Apressou-se a sair da tenda, e Cato virou-se para dois escribas.
— Tu, pega em dois homens e vai lá abaixo ao porto. Está lá uma trirreme que acaba de chegar, vinda de Ostia. Trata de recolher a minha bagagem e a do centurião, e trá-la para aqui. Os outros, podem sair.
Assim que a tenda ficou vazia, Macro sentou-se num dos bancos e pousou o capacete na mesa.
— Os rapazes no campo parecem-me muito mal habituados. Veremos como se vão portar quando tiverem que fazer vários dias de marchas forçadas. Sobretudo porque nos últimos anos não fizeram nada, a não ser
pavonearem-se por Roma.
Cato cruzou os braços.
— Nem todos. Alguns devem ter sido transferidos das legiões. Esses vão marcar o ritmo para os outros. E apesar do que possa pensar, até os pretorianos têm critérios de seleção apertados. Portanto, eles
vão estar à altura... Para seu próprio bem.
— Espero que tenhas razão. — Macro pensou por momentos. — Isto é mesmo tudo aquilo que o Vitélio podia desejar. Trouxe-nos para aqui com ele, e agora pode enviar-nos para o coração da refrega, e, se sobrevivermos,
não se esquecerá de reclamar o crédito por ter tomado uma decisão rápida que permitiu salvar a prata. E se nos virmos numa grande alhada, teremos que fazer o possível para a escondei; e ele também receberá
crédito por isso, claro.
Evidentemente, as nossas cabeças estarão por essa altura a decorar o portão de alguma povoação tribal, mas a vida é uma festa. Caralho que me foda. Se o Imperador nos presentear com outra lança de prata
por oferecermos as nossas vidas por Roma, digo-te já onde é que me apetece enfiá-la.
Cato inclinou a cabeça.
— Postumamente? Boa sorte com essa ideia. Mas tem toda a razão.
Enquanto aqui estivermos, estamos à mercê dele. Não consigo deixar de imaginar a razão para ele ter insistido em nos ver colocados sob o seu comando.
— Ora, Cato, vá lá. É claro como água. O cabrão odeia-nos até ao tutano.
Já cruzámos espadas com ele em muitas ocasiões no passado. Demasiadas ocasiões. E agora ele tem a sua vingança. Escolheu-nos para esta pequena excursão de forma a poder trazer-nos para um canto poeirento
do Império e arranjar um dos seus homens para nos tratar da saúde. Da maneira como estão as coisas, até pode muito bem ser que os rebeldes lhe resolvam o assunto, e ele possa regressar a casa com as mãos
limpas.
— Não acho que seja isso — respondeu Cato. — É muito esforço para se ver livre de nós, coisa de que ele não tem de facto qualquer necessidade. Já tentou liquidar-nos, sim, mas só porque estávamos no caminho
da concretização dos seus planos. Não lhe interessa fazer isso agora.
Macro encolheu os ombros.
— Talvez esteja a limpar o campo para um momento futuro, não se vá dar o caso de voltarmos a ficar no caminho dele.
— Mas podemos vir a ser-lhe úteis vivos, também. — Cato franziu o sobrolho. — Seja como for, há qualquer coisa de estranho com alguns dos outros oficiais que ele escolheu para ter ao seu serviço.
— O que é que queres dizer? — Quando falei com eles durante a viagem desde Ostia, todos estavam espantados por terem sido escolhidos. Não fazem parte do círculo do Vitélio.
Aliás, no passado até se opuseram a ele.
Macro coçou o queixo.
— Isso não faz sentido. Porquê rodear-se de homens em quem não confia? O que é que ele anda a planear?
Cato fechou os olhos e deixou a cabeça descair por momentos. Ainda estava esgotado, devido ao estado em que estivera durante toda a viagem, e tinha que lutar para se concentrar.
— Não tenho a certeza. Talvez isto não seja acerca do Vitélio.
— O que é que isso quer dizer? Cato tentou obrigar a sua mente extenuada a focar-se.
— E se a escolha, a nossa e a dos outros oficiais, tiver mais a ver com a necessidade de nos afastar de Roma, por alguma razão?
— Que razão? Vá lá, Cato, não estás a dizer nada com sentido.
Cato piscou os olhos, abriu-os e encarou Macro.
— Não sei exatamente. Mas tenho a certeza de que o Vitélio está a tramar alguma. Ou, se não ele, alguém a quem ele obedece.
Macro manteve o silêncio por momentos, antes de voltar a falar.
— O Vitélio estava próximo do Pallas no triunfo. Pareceram-me muito amigáveis. Achas que é ele, o Pallas?
— Pode ser. Mas nesse caso, o que estará o Pallas a planear? — Cato esfregou a testa. — Há algo de errado nisto tudo. Muito errado. Mas nada podemos fazer sobre isso aqui, tão longe. Devíamos avisar o
Narciso. Enviar-lhe uma mensagem antes de avançarmos, amanhã.
— Do que é que o poderias avisar? Tudo o que tens são suspeitas. — Macro soltou uma risada seca. — Só para variar. A sério, miúdo, o que é que lhe podes dizer? Que suspeitamos que o Vitélio tem alguma
razão pouco clara para escolher oficiais que não tem propriamente o hábito de convidar para jantar? E se ele nos tiver realmente escolhido porque acontece que somos os melhores homens disponíveis para
esta tarefa? Mesmo que tenhas razão, o que terá isso a ver com o Pallas? — Macro abanou a cabeça, afastando o assunto. — Se queres a minha opinião, isso é uma tempestade num copo de água.
Cato considerou a situação com toda a atenção, durante um instante.
Macro podia ter razão. Talvez houvesse ali menos esquemas do que era aparente à primeira vista. Por outro lado, Vitélio era tão ardiloso como uma serpente, e fosse qual fosse a razão que ele desse em
público para determinada ação, havia com toda a certeza outra, mais profunda e mais pérfida, a pairar sob a superfície do charme frio que emanava da sua pessoa. Se ele quisesse fazer-lhes mal, teria sido
muito fácil contratar algum bando da Subura para os esfaquear algures nas ruas da cidade. Em boa verdade, uma coisa desse género poderia atrair atenções indesejadas, e suspeitas. E se todos os oficiais
escolhidos para a missão tivessem sofrido o mesmo destino? Isso deixaria certamente a capital em polvorosa. Todos os que tivessem razões para temer os seus inimigos políticos ficariam alerta e a suspeitar
de tudo, o que tornaria qualquer conspiração mais profunda ainda mais difícil de esconder.
A aba da tenda restolhou quando Metelo entrou e voltou a saudá-lo.
— Os oficiais que convocou estarão aqui dentro de poucos momentos, senhor.
Cato anuiu, e preparava-se para dispensar o homem, mas depois mudou de ideias e voltou a contemplá-lo.
— És o mais antigo entre o pessoal do quartel-general? — Sim, senhor.
— Nesse caso, deves saber se a coorte está pronta para marchar. O equipamento dos homens já foi todo descarregado?
— Sim, senhor. E instalei uma tenda para fazer de messe. Só estou à espera de couro e segmentos de armadura, que devem chegar com o resto dos navios.
— Não temos tempo para isso. Teremos que nos arranjar com o que os homens trazem consigo. Do que eu preciso agora é de mulas e carroças. Leva cinquenta homens a Tarraco. Requisita uma boa dúzia de carroças
de tamanho decente, e as mulas suficientes para as puxar, e traz mais alguns animais, para termos uma reserva. Depois, quero-as cheias de grão, carne curada, queijo, vinho e água. Podes invocar a autoridade
do governador, e dizer aos fornecedores que se lhe dirijam para receber o pagamento. Quero os carros carregados e prontos para partir assim que nascer o dia. E quero também vinte montadas para os batedores.
Bons animais, ouviste? Não aceites pilecas esgotadas, nem subornos para as trazer. Escolhe os melhores. Percebeste tudo?
Metelo fez uma verificação mental da lista e anuiu.
— Sim, senhor.
Mas depois revelou uma hesitação.
— Senhor, está seguro quanto a isto? Vai fazer chegar a mostarda aos narizes dos locais.
— Esse será o menor dos seus problemas, se não nos derem aquilo de que precisamos. Vai. — Um pensamento cruzou a mente de Cato. — Espera.
Enquanto estiveres na cidade, preciso que vás ao palácio do governador e procures um homem chamado Cimber, de Asturica.
Foi designado para ser nosso guia. Trata de garantir que ele te acompanha quando voltares para o campo, e não aceites quaisquer desculpas.
Metelo sorriu.
— Compreendo, senhor.
Cato avistou o brilho malévolo nos olhos do optio, perante a perspetiva de se impor a Cimber, e resolveu deixar uma nota de simpatia para o homem.
— Não sejas muito bruto com o Cimber. Preferia que ele nos ajudasse de livre vontade. Podes seguir.
Metelo fez uma continência e saiu da tenda.
Macro olhou para Cato com uma expressão divertida.
— Ele tem razão, sabes? Percebo a necessidade de agir rapidamente, mas isto vai criar uma tremenda confusão. Mesmo que o governador deixe passar, podes ter a certeza de que alguém vai enviar uma petição
ao Imperador em Roma, a protestar contra isto.
— Não nos podemos preocupar com isso agora. Além disso, com as hipóteses que temos, pode muito bem dar-se o caso de já não estarmos por cá para enfrentar a tempestade, mesmo que alguém se queixe. Portanto,
o problema não é meu.
— Ora bem, as palavras de um verdadeiro líder! — Macro soltou uma gargalhada.
Um outro oficial surgiu à entrada da tenda, e dobrou o pescoço.
— Centurião Públio Placino, da Quinta Centúria, senhor. Mandou chamar-me?
— Entra, Placino. Onde estão os outros oficiais? — A caminho, senhor.
Os restantes centuriões foram chegando à tenda nas suas túnicas de tom bege, e Cato disse-lhes para tomarem lugar à mesa, ao lado de Macro. Cato contemplou-os, e o seu olhar deteve-se no último a entrar
na tenda. Um veterano de constituição pesada, com feições de pugilista: nariz esborrachado, sobrolhos salientes, lábios e orelhas grossos. O rosto do homem era-lhe familiar, mas Cato não conseguia colocá-lo
no contexto que lhe permitiria reconhecê-lo. Só então se apercebeu de que alguém não estava presente.
— Onde está o tribuno? — Foi a Tarraco, senhor — disse Placino. — Enviei um homem para o chamar.
— Estou a ver. — Cato franziu o sobrolho, frustrado. — Ele tem permissão para se ausentar do campo?
— Permissão? Senhor, tecnicamente ele é o mais antigo oficial da coorte.
— Tecnicamente, sim. Mas deixem-me lá ver, trata-se de um tribuno menor, colocado nesta unidade para cumprir o serviço militar imposto por Roma. Passa mais tempo a beber com os amigos do que a cumprir
os poucos deveres que lhe são atribuídos. Não tenho dúvidas de que sabe bastante mais sobre as últimas tendências da moda do que sobre a vida militar. — Cato fez uma pausa, e reparou nas expressões divertidas
dos centuriões. Era claro que partilhavam a visão de muitos soldados profissionais relativamente aos jovens aristocratas que completavam o seu serviço militar antes de devotarem as vidas a carreiras políticas.
— Todos conhecem o género. Tecnicamente, sim, possuem uma patente elevada, mas na realidade não passam de recrutas verdes que somos obrigados a tratar com todo o respeito e a manter afastados de qualquer
interferência no nosso trabalho. Como é natural, espero que o jovem em questão seja a exceção a esta regra. Dar-lhe-ei a mesma oportunidade para mostrar o seu valor que concedo a todos os homens sob o
meu comando. Mas todos terão que seguir as regras, e aqui não há exceções. A partir deste momento, nenhum homem poderá deixar o campo sem permissão. — Cato prosseguiu num tom mais duro. — Pela autoridade
do legado Vitélio, esta coorte está agora sob o meu comando.
Bateu no peito.
— Eu sou o prefeito Quinto Licínio Cato. Comandei uma coorte auxiliar na Britânia, e antes disso servi no Egito, em Palmira, na Síria e na Judeia, e também na Germânia, ao lado deste meu camarada de rosto
fechado, o centurião Macro.
Macro acenou ao ouvir a menção ao seu nome.
— Alguns de vocês poderão ter sabido que eu e o centurião fomos recentemente condecorados pela captura do rei Carátaco. Devem também ficar com a noção de que isso não foi um mero acaso, um momento de
sorte. Já vimos uma boa dose de ação nas nossas carreiras. E não se deixem enganar pela cicatriz que trago no rosto: o outro ficou em bem pior estado. Eu e o centurião Macro cumprimos o nosso dever, lutamos
com dureza e lideramos à frente das tropas.
Quero que fiquem bem cientes de tudo isto, porque temos ordens para, à primeira luz da manhã, avançar contra os rebeldes e confrontá-los.
Os centuriões remexeram-se perante as novidades. Alguns exibiam um brilho excitado nos olhos, mas dois deles não conseguiram esconder a ansiedade que sentiam, reparou Cato.
— A coorte fará uma série de marchas forçadas até Argentium, para assegurar a posse da mina imperial aí situada. Localiza-se no coração do território controlado pelos rebeldes que nos enviam para derrotar.
Podem portanto avaliar os riscos envolvidos nesta ação. Defender a mina é vital para a sorte desta campanha e do Império. E é por isso que o legado não pode esperar até que as outras unidades cheguem
a Tarraco. Depois de as outras coortes terem desembarcado, o Vitélio avançará para Asturica, e nós juntar-nos-emos à coluna principal quando esta alcançar a mina. Senhores, não vos escondo as ameaças
que vamos enfrentar, mas é a nós que cabe esta tarefa. — Deixou as palavras penetrarem nos espíritos, antes de prosseguir. — Teremos que marchar a toda a velocidade. Portanto, os homens só transportarão
ferramentas, cantis, gamelas, armadura e armas. Todas as roupas excedentárias, equipamentos e bens pessoais ficarão para trás e serão colocados nos armazéns da guarnição de Tarraco.
Sugiro igualmente que os homens deixem aqui os seus testamentos. Também deixaremos o nosso equipamento de cerco e a artilharia. Os únicos veículos que levaremos serão carros, para transportar provisões
e os eventuais feridos...
Há perguntas?
Placino ergueu a mão.
— Quanto tempo falta para as outras coortes chegarem a Tarraco?
— São esperadas a qualquer momento. O legado avançará assim que reunir material de cerco e provisões para a coluna. Levarão mais tempo do que nós a chegar a Asturica. Portanto, seguirão uns sete a dez
dias atrás de nós.
Não houve mais comentários, e Cato tomou assento à cabeceira da mesa.
— Fica portanto a faltar apenas a vossa apresentação, senhores. Já conheço o centurião Placino. Se prestaram serviço nas legiões antes de se juntarem aos pretorianos, digam-no.
Indicou o homem à sua esquerda, alto, magro, de feições bem marcadas e cabelo grisalho.
— Tu primeiro.
— Centurião Árrio Voreno Secundo, da Segunda Centúria, senhor. Estou na Guarda há dez anos, como centurião desde há quatro. Fui transferido da Sexta Legião Ferrata, quando era optio.
— Os ”Homens de Ferro” — comentou Macro. — Bons soldados.
O centurião Secundo inclinou a cabeça em reconhecimento do comentário, enquanto o homem que se lhe seguia pigarreava. Era muito mais novo, de rosto suave, e com algum peso a mais.
— Centurião Gaio Métrico Porcino, da Sexta Centúria, senhor. Entrei para os pretorianos há dois anos.
— Sem qualquer experiência anterior? — indagou Cato.
— Nenhuma, senhor. — O olhar de Porcino vacilou, e ele baixou-o para as mãos cruzadas.
— Nesse caso, centurião, dá-te por feliz por teres esta oportunidade para demonstrar o teu valor. Cumpre o teu dever, lembra-te do treino que recebeste, e estou certo de que te conduzirás a preceito.
— Sim, senhor. Assim farei.
Cato passou ao oficial seguinte, um homem esguio, de trinta e poucos anos, com feições finas, quase esculpidas, espesso cabelo escuro e olhos também escuros. Tinha uma barba cuidadosamente aparada e lábios
delicados, que estavam numa posição levemente recurvada, como se houvesse algo naquela situação que o divertisse ligeiramente. Um sorriso fugaz surgiu, antes de ele se apresentar.
— Centurião Júnio Petílio, da Quarta Centúria. Temo bem que também eu tenha entrado diretamente para os pretorianos, há uns oito anos. Sem qualquer experiência militar prévia. Só com alguns conhecimentos
úteis.
Os olhos de Macro faiscaram, e ele ripostou, irritado: — Farás o favor de te dirigir ao prefeito como ”senhor”, a partir deste preciso momento.
A expressão divertida de Petílio não se alterou nem por um instante, enquanto ele dobrava o pescoço.
— Claro, com certeza. Senhor será.
Cato avaliou rapidamente o oficial. Um pedante, era óbvio. A família pertencia à baixa aristocracia, sem dinheiro suficiente para lhe garantir um lugar no Senado, mas com reputação acumulada suficiente
para lhe arranjar uma comissão na Guarda Pretoriana. Teria por certo uma bela figura na sua armadura de cerimónia toda polida, e usaria o seu aspeto e charme educado para alcançar sucesso nos jogos praticados
nos quartos de cama de Roma. Cato sentiu pelo homem uma antipatia instantânea, e desviou o olhar para o outro lado da mesa, onde estavam sentados os dois últimos oficiais. O primeiro deles podia bem passar
por irmão mais novo de Macro. O mesmo ar sólido, cabelo encaracolado e rosto largo.
— Centurião Marco Horácio Musa, da Terceira Centúria, senhor. Estou na Guarda há seis meses. Antes disso, fui centurião da Primeira Coorte, Vigésima Primeira Legião, a Rapace.
— Porque é que foste transferido? — Não foi por escolha minha, senhor. O legado mencionou o meu nome nos relatórios, depois de alguma ação contra as tribos das montanhas. Quando dei por mim, estava transferido
para a Guarda Pretoriana. Mas não me queixo.
— Imagino bem que não! — Macro riu-se. — O dobro do salário, todos os confortos, e rata abundante e barata em Roma.
Musa teve a graça de anuir.
— Antes morrer com um esquentamento do que ter algum bárbaro fedorento a acertar-me com um machado ferrugento, mil vezes.
Cato virou-se para o último dos homens, aquele que estava agora certo de já ter encontrado, fazia alguns anos.
— Centurião Gneu Lúculo Pulcher, da Primeira Centúria, senhor. Estou na Guarda desde o primeiro momento. Embora já tenha estado envolvido em ação na fronteira da Germânia, e na Britânia. Cheguei a centurião
há nove anos, depois de a Guarda regressar da Britânia.
— Estiveste portanto na batalha às portas de Camulodunum — lançou Macro.
— Sim, senhor. Um combate duro. Pensei que aqueles cabrões celtas nunca mais desistiam.
Macro anuiu, em concordância, e virou-se para Cato, para lhe acenar a sua aprovação. Mas o prefeito olhava para Pulcher com frieza. Cato já se tinha recordado de onde conhecia o sujeito, e uma torrente
de memórias amargas preenchia-lhe o pensamento, enquanto tirava mentalmente os traços dos anos da face do homem e recordava Pulcher, o colega recruta que lhe tinha transformado a vida numa miséria quando
Cato se tinha juntado à Augusta Segunda Legião. Pulcher tinha-o gozado, desdenhado da sua educação, e ter-lhe-ia esmagado o espírito se não tivesse havido a intervenção de Macro. Mas essa não era a única
fonte da raiva gelada que crescia no coração de Cato. Porque Pulcher tinha sido colocado na legião para espiar alguns oficiais suspeitos de conspirarem contra o então recém-coroado Imperador Cláudio.
Depois, na altura da invasão da Britânia, Pulcher tinha interrogado, torturado e por fim executado os líderes de um princípio de motim. E fora sem dúvida essa a causa da sua promoção, depois de ter completado
a missão e regressado às fileiras da Guarda Pretoriana.
Cato engoliu em seco e respirou fundo, para se acalmar.
— Creio que já nos conhecemos, centurião.
O sobrolho de Pulcher franziu-se.
— Não me parece, senhor.
— Garanto-te que é esse o caso. Nessa altura não tinha esta cicatriz. Nos tempos da Segunda Legião, quando eu não passava de um recruta de rosto imberbe.
O centurião pareceu confuso por momentos, antes de o queixo lhe descair e os olhos se arregalarem com o choque.
— Foda-se... O fedelho do palácio.
— Fico muito feliz por te lembrares de mim. E eu nunca te esqueci, Pulcher.
Macro debruçou-se para a frente e encarou o outro centurião com toda a atenção, antes de sacudir a cabeça, espantado.
— É mesmo. É ele. Porra. Portanto foi isto que aconteceu a este cabrão, depois de desaparecer. — Macro voltou-se contra o homem. — Tens muita coisa a explicar, meu amigo. Mataste alguns bons homens. Nossos
camaradas.
Pulcher encostou-se na cadeira, alarmado.
— Eram responsáveis por um motim. Traidores! Limitei-me a cumprir o meu dever.
— Pois claro que sim — rosnou Macro. — Cortar as gargantas a homens amarrados como cães. Em vez de enfrentares guerreiros em batalha, como um verdadeiro soldado.
— Mas eu combati! Em Camulodunum, como já disse.
— Isso é o que tu dizes — repetiu Macro, a desvalorizar as pretensões do outro. — E porque é que havíamos de acreditar na palavra de um espião que apunhala gente pelas costas?
Os olhos de Pulcher pulavam entre Macro e Cato, numa súplica silenciosa.
— Senhor, isso foi há dez anos. Como disse, estava apenas a cumprir o meu dever, e desde esse momento tenho um registo exemplar.
Cato fez uma pausa para considerar se um homem como Pulcher poderia realmente mudar, e decidiu que não podia correr o risco de tentar descobrir.
As apostas eram demasiado altas para isso. Ademais, o tratamento que ia dar a Pulcher podia servir como uma valiosa lição para os outros, para que não se lembrassem sequer de desagradar ao seu novo comandante.
— Centurião Pulcher, deixarás de comandar a Primeira Centúria. Vais passar a comandar o comboio das bagagens. Centurião Macro?
— Senhor? — Substituirá o Pulcher como comandante da Primeira Centúria.
— Sim, senhor.
— Não! — protestou Pulcher, antes de notar a expressão de aviso no rosto de Cato. — Senhor, espere. Não me pode substituir. Fui nomeado pelo Imperador, em Roma. Não pode sobrepor-se a essa decisão. —
Soltou um sorriso ardiloso. — Não se atreveria a tal... Senhor.
— É como dizes, ”em Roma”. Estamos muito longe de Roma, e a ponto de marchar para a guerra, Pulcher. Portanto, poderás apresentar a tua queixa quando a campanha terminar. E boa sorte para ti. Entretanto,
as minhas ordens mantêm-se, e não quero ouvir nem mais uma palavra.
— Mas...
— Mais uma palavra, e serás acusado de insubordinação. E despromovido para as fileiras. Se tratas os teus homens da mesma forma que costumavas tratar-me, atrevo-me a pensar que lhes agradaria particularmente
apanhar-te com a mesma patente deles.
Cato sabia bem como era difícil e perigosa a vida para um centurião reenviado para as fileiras. A dura disciplina que empregavam quando protegidos pela sua patente era-lhes devolvida com juros pelas suas
anteriores vítimas.
Pulcher abriu a boca para voltar a falar, mas arrependeu-se mesmo a tempo.
Fechou a boca e manteve-se sentado, num silêncio preocupado.
— Assim está melhor. — Cato olhou em volta, para os outros oficiais. — Já conhecem as vossas ordens, e sabem o que têm a fazer. Preparem os vossos homens para marchar pela alvorada. Estão dispensados.
Os centuriões ergueram-se, saudaram e saíram da tenda. Todos menos Macro, que esperou até ficar a sós com o amigo, antes de falar.
— Bem, bem. Sempre me interroguei sobre o que teria acontecido àquele nojento monte de esterco.
— Agora já sabe. Foi promovido. Uma bela recompensa por feitos vis, parece ser a ordem ”da pia.
Passou uma batida de coração antes de Macro sorrir perante a piada pouco dissimulada. Olhou para a cortina da tenda antes de baixar a voz.
— Não lhes disseste nada sobre o comboio da prata, reparei agora.
— Ainda não. A última coisa de que preciso é de boatos sobre prata a espalharem-se entre as fileiras. Preciso destes homens concentrados no combate, e não distraídos com tesouros. Vamos manter isso em
segredo, enquanto for necessário.
— Sim, senhor.
— Olá.
Viraram-se os dois rapidamente, e viram que outro homem tinha entrado na tenda. Vestia uma túnica simples de soldado, sem cinto. Parecia ser da mesma idade que Cato, com uma testa alta rodeada por cabelo
claro. Lançou um sorriso incerto.
— Foi-me dito que me devia apresentar ao novo prefeito.
— Sou eu — respondeu Cato. — Prefeito Quinto Licínio Cato. E tu és... ? O recém-chegado fez menção de responder, antes de olhar para Cato, de boca muito aberta, enquanto as palavras lhe morriam na garganta.
Cato estava exausto, e com pouca disposição para brincadeiras.
— Pelos tomates de Júpiter! O que se passa contigo? Diz-me o teu nome, porra, não é nada complicado.
— O meu nome? Eu-Eu... — Engasgou-se, engoliu em seco, nervoso, a maçã de Adão a oscilar. Por fim, obrigou-se a colocar-se em sentido, e respondeu da forma mais clara que conseguiu: — Tribuno Aulo Valério
Cristo, colocado na Segunda Coorte, apresenta-se conforme lhe foi solicitado, senhor.
Cato sentiu o peito apertado, como se tivesse uma faixa de ferro em torno das costelas, enquanto olhava para o homem que tinha sido amante da sua mulher, sem conseguir expressar qualquer emoção. Por breves
momentos, permitiu-se uma ponta de dúvida. Podiam existir dois homens com o mesmo nome. Mas o comportamento nervoso do recém-chegado traía-o. O seu olhar só aguentou o de Cato um ínfimo instante antes
de se desviar, e os seus dedos remexiam-se sem parar, até que ele decidiu que não podia continuar assim e cruzou as mãos atrás das costas, obrigando-se a manter-se hirto e de ombros puxados para trás.
Macro não conseguiu evitar mostrar-se divertido pela reação do homem depois de entrar na tenda. Tentou cruzar o olhar com o de Cato, mas o deste não se desviava um segundo.
— Tribuno Cristo... — começou Cato, da forma mais calma que conseguiu. O coração batia-lhe com força, e toda a raiva que tinha ido e vindo em ondas sucessivas desde que descobrira a infidelidade de Júlia
regressou numa vaga, como uma tempestade violenta e súbita. Sentia uma tremenda necessidade de desembainhar a espada e desfazer o tribuno, e a ideia atormentava-o.
Contudo, os longos anos de serviço militar tinham-no ensinado a controlar a aparência que mostrava aos outros, e a dominar as emoções que lhe corriam no espírito, por muito agitadas que fossem. Ainda
assim, teve que limpar a garganta e recomeçar.
— Tribuno Cristo, pareces perturbado. O que se passa contigo? Cristo mordiscou o lábio inferior e tentou controlar a surpresa e o receio que o tolhiam.
— Eu, eu, hã, não esperava encontrar a coorte com um novo comandante, senhor. É tudo.
— Nem por isso. — Cato deu uns passos lentos pela tenda, dirigindo-se ao tribuno, e detendo-se à distância de uma espada, escrutinando-o com toda a atenção. A agitação de Cristo cresceu, enquanto Cato
o deixava sofrer em silêncio por momentos, antes de prosseguir. — Fui informado de que não te encontravas no campo quando aqui cheguei para assumir o comando. A que se deveu tal falta?
— Estava em Tarraco, senhor.
— E a fazer precisamente o quê? — A adquirir materiais para ilustrações, senhor no fórum.
— Materiais para ilustrações? — Macro inclinou-se sobre a mesa, descansando os peludos antebraços sobre o tampo. — Foda-se, a que propósito?
Cristo deitou uma olhadela ao centurião, mas não fez qualquer comentário por se ver interrogado por um oficial de patente inferior à sua.
— Antes de me tornar tribuno, o meu interesse era em desenhar coisas.
Sempre tive vontade e jeito para isso, mas nunca obtive encomendas suficientes para ter uma vida decente graças a esses trabalhos. O meu pai era amigo de um amigo de um dos conselheiros do Imperador,
que puxou uns cordelinhos para me arranjar este posto de tribuno do estado-maior. Deu-me meios de subsistência independente. Mas não deixei de perseguir o meu interesse original. Ou melhor, fi-lo até
a coorte ser enviada para Tarraco.
Macro fitou-o sem emoção, e depois abanou lentamente a cabeça.
— Mesmo aquilo de que precisávamos, agora que marchamos para o combate...
Cristo empertigou-se.
— Cumpri os meus treinos, com todo o resto da coorte.
— Talvez sim, mas quando avançarmos para defrontar o Iskerbeles e a sua corja, sentir-me-ia bastante mais confortável se soubesse que o homem ao meu lado não estava a pensar em pintar um retrato do inimigo,
em vez de lhe espetar a espada nas tripas.
— Não sou nenhum artista. Já lhe disse, gosto de projetar coisas.
— Coisas? Cristo remexeu-se, indeciso.
— Na realidade, carruagens. É uma paixão minha. Desenho-as, e projetei as que possuo.
— Carruagens... Deuses, dai-me forças. — Macro soltou um suspiro exasperado. — Senhor, parece-me que nos safamos melhor se, quando seguirmos, deixarmos este aqui em Tarraco. Vai-nos ser tão útil como
um trapo velho.
Aquela opinião, exposta de forma tão sincera, acabou por provocar uma resposta do tribuno.
— Centurião, um momento. Sou um tribuno, e portanto tratar-me-ás com o respeito que a minha patente mais elevada justifica.
— Respeitarei todos os superiores que conseguirem ganhar o meu respeito, senhor. Aos outros, limito-me a obedecer. — Macro voltou a cabeça para Cato. — Senhor, o que tenciona fazer quanto a este elemento?
Cato mal tinha estado a escutar a troca de palavras. Estava mais ocupado a tentar compreender como fora possível que a afeição de Júlia se tivesse transferido para aquele indivíduo sem categoria que ali
estava à sua frente. Depois reparou que o queixo do tribuno descaía ligeiramente quando não estava a falar, e que o efeito o fazia parecer longe de possuir todo o senso. Como podia Júlia ter amado aquele
homem? Como podia ter estado pronta a trocar Cato por aquele tolo? Ela tinha por vezes afirmado que não se sentia intelectualmente ao mesmo nível de Cato, e que ele não precisava dela. Cato sempre respondera
que isso não era verdade, embora o pensasse realmente. Talvez Júlia tivesse chegado à conclusão de que queria um homem que precisasse dela mais do que ela precisava dele...
Refletiu rapidamente no que Macro acabara de dizer, e abanou a cabeça.
— Ele segue connosco. Vamos precisar de todos os homens capazes de pegar numa arma. Incluindo os tipos mais criativos. Tribuno Cristo, uma vez que te agradam tanto o estilete e a tábua, vais encarregar-te
do pessoal do quartel-general. Eles responderão perante ti, e tu perante mim, quanto a tudo o que diga respeito aos armazéns, ao efetivo, e a todo e qualquer outro assunto que caiba nesta matéria. Ficou
claro?
Cristo deitou a Cato um olhar calculista, como que a tentar perceber se havia algum sinal evidente de que o seu novo comandante sabia do caso que ele tivera com a sua esposa. Cato devolveu-lhe o olhar,
acabando por forçar o tribuno a desviar o seu.
— Sim, senhor. Tudo claro.
— Excelente. — Cato indicou a entrada da tenda. — Podes esperar lá fora até o optio Metelo regressar de Tarraco. Enviei-o para requisitar carros de transporte e mantimentos. Assim que ele regressar, procederás
a um inventário. Durante a marcha, será teu dever garantir que os mantimentos serão reforçados em cada ocasião que se apresente para tal. Não quero ver-nos com falta de comida ou de materiais quando entrarmos
no território controlado pelo inimigo e se tornar mais difícil recolher abastecimentos. Faz o teu trabalho, e eu farei o que puder para esquecer o facto de que tu és tanto um soldado como a minha falecida
esposa alguma vez o foi.
Cristo deu um pulo ao ouvir a menção a Júlia, mas fez a saudação e retirou-se da tenda. Cato ficou a olhar para as abas da entrada a oscilar antes de ficarem imóveis. Respirou fundo, acalmando-se, e soltou
o ar dos pulmões num longo e lento suspiro.
— Não gostas mesmo daquele tipo — observou Macro. — Para lá do facto de ele não ser mais do que um peso morto. Um inútil. Isso é bem evidente. Há alguma outra razão?
Cato lançou-lhe um olhar frio.
— O homem é um presunçoso incapaz. Não há lugar para ele no exército.
Mas dar-lhe-ei uma oportunidade para me mostrar do que é feito. E se tiver que morrer, ao menos que o faça como um homem.
As palavras saíram-lhe de forma mais áspera do que pretendia, carregadas de toda a mágoa e ódio que Cato sentia por Cristo e pela sua infiel esposa, e as sobrancelhas de Macro arquearam-se ligeiramente
com a surpresa.
— É justo. Sejam quais forem as razões que tens para o levarmos connosco, é contigo. Não voltarei a perguntar.
— Não o faça, por favor. — Cato bocejou e espreguiçou-se, abrindo e fechando os punhos para aliviar a tensão. Quando se recompôs, prosseguiu: — Esqueça o tribuno, o que pensa dos nossos camaradas?
Macro refletiu por momentos.
— Uma boa mistura. O Secundo, o Placino e o Musa parecem-me sólidos e de confiança. O Porcino parece ter vontade, mas tem uma tremenda falta de experiência e de confiança. Vai ser preciso vigiá-lo. Quanto
ao Petílio... Esse está apaixonado por si mesmo, é claro. E quando não tem por perto nenhuma mulher para o admirar, trata disso ele mesmo. Já vi tipos deste género antes. — Macro hesitou. — Posso estar
enganado. Depressa o saberemos. O que nos deixa com aquele monte de merda, o Pulcher. Com toda a franqueza, preferia que o levássemos a dar uma voltinha, daquelas do género de onde não se regressa. Porém,
agora que todos os outros já perceberam que existem contas antigas por resolver entre nós, não seria preciso nenhum Sócrates para perceber que o seu desaparecimento se teria ficado a dever a alguma jogada
pouco clara. Seria na realidade um ato de justiça, mas duvido muito que o Vitélio o visse dessa forma. E se o Vitélio está mesmo decidido a acabar connosco, de uma forma ou de outra, não faz sentido estar
a dar-lhe desculpas para avançar.
Cato não conseguiu evitar uma gargalhada seca.
— Pelos deuses, Macro, bem visto! Não seria capaz de o dizer de melhor forma. Bem gostava que tivéssemos uma melhor seleção de oficiais em que pudéssemos confiar, mas todos eles terão ocasião de provar
que têm valor para ocupar o seu posto antes de isto estar terminado, ou então de morrer a tentá-lo.
— Cato sentou-se novamente. — Estou cansado. Será melhor descansarmos um bocado antes de sairmos. Vá falar com os escribas e diga-lhes para nos trazerem uns colchões e cobertores. E comida e vinho, também.
— Sim, senhor. — Macro pôs-se de pé e deixou Cato a sós na tenda.
Cato cruzou os braços e inclinou-se para a frente, para descansar a cabeça.
Fechou os olhos por um brevíssimo momento e sentiu de imediato uma poderosa vontade de se deixar ir, e mergulhar num sono profundo. Mas antes que isso fosse possível, uma imagem de Cristo e Júlia entrelaçados
impôs-se nos seus pensamentos. Porque é que ela o tinha traído? E porquê escolher Cristo? O que lhe teria ele dado que Cato não conseguira? Tudo o que sempre quisera era cuidar de Júlia, garantir que
nada lhe faltava, envelhecer ao seu lado. E tinha tido a certeza de que ela sentia o mesmo. E agora tudo era revelado como uma mentira. E ele estava dilacerado entre o ódio por ela, o amor a ela, o pesar
pela sua morte.
Mas por Cristo sentia apenas raiva, e ela revolvia-se nas suas entranhas como uma lâmina lá cravada. Ainda não fazia ideia porque não tinha aceitado a sugestão de Macro, de deixar Cristo para trás. O
homem era completamente inútil. Mole e com ar de parvo. Não tinha lugar em nenhum exército que partisse a caminho da guerra. Bem, haveria de sofrer, como Cato e o resto dos homens, enquanto marchassem
através das quentes planícies da província. E se se desse algum combate, derramaria o seu sangue como os outros. Porque haveria ele de viver quando Cato, Macro e os outros homens caminhavam para a morte?
Ele, mais do que qualquer outro, merecia a morte, pelo crime de amar Júlia, e de por ela ser amado. Essa era a verdade, compreendeu Cato. Tinha resolvido manter Cristo por perto de forma a poder punir
o sujeito.
Era a agonia do ciúme, percebeu. Zeno não ficaria orgulhoso dele, considerou. No fim de contas, parecia que ele não era grande coisa, fosse como epicurista ou como estoico. Era tão humano como os outros,
mesmo com todo o seu estudo e adesão confessada à tradição filosófica. Era fraco, e desprezava-se a si mesmo por isso.
Doía-lhe de novo a cabeça, pelo que voltou a fechar os olhos, tentando desta vez não pensar em nada. E, assim, dormia profundamente e ressonava quando Macro voltou a entrar na tenda com os colchões e
mantas embrulhados nos braços. Deteve-se para sorrir com compreensão perante a figura do prefeito, e pousou a sua carga no chão, a um dos lados da tenda. Desenrolou os colchões, pôs sobre um deles uma
manta para si, e depois colocou a outra em torno de Cato com todo o cuidado, antes de lhe dar um ligeiro toque no ombro.
— Dorme, miúdo. Nos próximos dias, vais precisar de estar bem descansado. E todos nós vamos precisar de ti no teu melhor... Vá, dorme.
O optio Metelo tinha feito um bom trabalho, decidiu Cato, enquanto inspecionava os vagões à difusa luz que reinava antes da alvorada. O Sol ainda estava abaixo do horizonte, cuja linha mal se distinguia
junto ao oceano, marcado apenas por uma estreita faixa de céu rosado. As mulas estavam bem alimentadas e tinham um aspeto robusto, os vagões eram de boa construção, e a carga encontrava-se bem acondicionada,
com grandes ânforas, sacas de cereais e presuntos em bom número. Calculou que havia ali comida suficiente para alimentar os homens por uns dez dias. Desde que os vagões fossem mantidos repletos, deviam
ser capazes de aguentar na mina até à chegada de Vitélio e da coluna principal. Desde que fosse possível defender a mina, refletiu Cato. Mas isso só poderia ser determinado quando alcançassem Argentium.
Assentiu para si mesmo, satisfeito, e dirigiu-se à cabeça do pequeno comboio, onde Metelo e os homens designados como condutores o aguardavam. A curta distância a um dos lados estava o centurião Pulcher,
ao lado do tribuno Cristo, e ambos o observavam com cautela.
— Bem feito, optio. Espero que não tenhas tido demasiados problemas a juntar estes abastecimentos.
Metelo sorriu.
— Oh, senhor, nem por isso.
Sobretudo depois de ter feito estalar umas cabeças, para encorajar os outros. Ficaram mansos como cordeiros e ansiosos por cumprir o seu dever patriótico, que os deuses os abençoem.
— Ah! — Cato devolveu-lhe o sorriso, mas depressa as suas feições tomaram um ar sério, e ele baixou a voz. — O centurião Pulcher fica no comando do trem de bagagens, mas se ele te der, ou aos teus homens,
alguma razão para queixa, fala comigo ou com o centurião Macro. Entendido?
— Sim, senhor. E, hã, quanto ao tribuno? — Ele? — Cato virou-se para olhar para o homem com azedume. — Vê se ele não se mete no caminho, e se trata dos seus registos.
— Sim, senhor. Cato devolveu a saudação do optio e seguiu pela coluna de pretorianos que aguardava, disposta ao longo de todo o comprimento da via principal do campo. Cada homem levava apenas uma capa
enrolada, para lá do escudo oval e da lança. Os cantis, pendurados ao ombro, completavam o equipamento de marcha. De ambos os lados da coluna, as tendas estavam vazias, e pequenos montes de objetos pessoais
e equipamento supérfluo viam-se junto a cada tenda, prontos para serem recolhidos e colocados no armazém da guarnição de Tarraco. Tinha havido alguns protestos acerca dessa medida, dissera-lhe Macro.
Os pretorianos tinham muito pouca confiança na honestidade das tropas auxiliares da guarnição. Provavelmente com bons motivos, concedeu Cato. Algumas das suas propriedades iam com toda a certeza acabar
traficadas entre os ocupantes do campo e os habitantes da cidade.
As tendas e o campo eram deixados para serem ocupados por uma das coortes que ainda viajava a caminho da província, por mar. Normalmente, as tendas seriam desmontadas e carregadas em vagões, e o campo
demolido, antes de a coorte prosseguir a marcha. Contudo, não havia tempo para isso. E nem fazia sentido, já que assim se poupava à coorte seguinte muitas horas de trabalhos pesados. Mas também esse seria
um motivo para resmungos por parte dos homens, admitiu Cato com um sorriso para si mesmo. Nenhum soldado apreciava a ideia de suar a fazer trabalho duro para depois outros colherem os benefícios.
À cabeça da coluna erguiam-se os seis estandartes do pelotão de honra. Cada um deles ostentava apenas uma condecoração de batalha, pela vitória que tinham conseguido em conjunto com as legiões, na Britânia,
e Cato perguntou-se se estariam vivos para ver ali outra condecoração, pelo papel desempenhado na derrota dos rebeldes em torno de Asturica. O pequeno contingente montado, sob comando do optio Metelo,
esperava a um dos lados, os homens a segurar as rédeas enquanto as montadas levantavam os focinhos e faziam dançar as orelhas, expectantes. Um dos homens segurava um cavalo a mais para o prefeito. Macro
e os outros cinco centuriões conversavam calmamente entre os estandartes e o portão do campo, já aberto. Cimber mantinha-se sozinho a um dos lados, com um ar absolutamente miserável. Quando notaram a
aproximação do prefeito, todos se colocaram em sentido e o saudaram.
— Tudo pronto, senhor? — indagou Macro.
— Sim. Senhores, podem juntar-se às vossas unidades. Os cinco centuriões afastaram-se, as varetas na mão, enquanto Cato trepava para a sela. Macro acenou ao optio encarregado dos homens escolhidos pela
sua capacidade de montar.
— Contingente de batedores! — gritou Metelo. — Montar! Seguiu-se algum alvoroço, entre relinchos e saltos de cavalo, até que todos os pretorianos se viram confortavelmente instalados nas selas, com as
rédeas nas mãos. Enquanto os sons se acalmavam, Cato virou-se, para contemplar toda a coluna. Quinhentos homens. Aquele era todo o efetivo que podia ser dispensado para assegurar a posse da mina de Argentium,
salvar o comboio da prata e impedir a revolta de se transformar numa rebelião sangrenta e geral. Do outro lado das muralhas do campo, na direção do mar, o Sol nascente surgiu à vista, com um brilho que
fazia lembrar um fogo distante. Cato ergueu o braço.
— Segunda Coorte Pretoriana... Avançar!
Baixou o braço na direção do portão próximo e bateu com os calcanhares no flanco da montada. O cavalo avançou a passo, e Macro seguiu-o, e depois vieram os guardas. Saíram do campo e tomaram pela estrada
que conduzia pelo meio das colinas de cimos rosados, a caminho do coração da província.
Adiminuta coluna de pretorianos manteve um andamento constante enquanto seguia pela estrada que percorria as colinas e subia para o planalto, a uns quatro dias de marcha de Tarraco. Passaram por extensas
herdades onde cresciam oliveiras, cereais e vinhas, e atravessaram bosques de carvalhos e pinheiros, e a princípio os homens ficaram muito satisfeitos por avistarem frequentemente pelo meio das árvores
javalis e veados. Mas não havia tempo para parar e caçar, já que centuriões e optios os mantinham em movimento, e o troar das botas e das rodas dos vagões lhes enchia os ouvidos e levantava para o ar
grandes quantidades de poeira, que depois rodopiava em torno da coluna e dos veículos que a fechavam. No começo da marcha a coorte avançou com boa disposição; os homens conversavam, lançavam piadas, e
de vez em quando elevavam as vozes numa canção, sobretudo se fosse de teor atrevido. Macro aceitou de bom grado a alegria dos homens, enquanto marchava à cabeça da centúria mais adiantada. Sendo o centurião
mais antigo da coorte, esperava-se dele que fornecesse um exemplo para os homens seguirem, pelo que juntou a sua voz às canções com vontade, mas pouco acerto no tom.
A curta distância à frente da infantaria, Cato liderava o contingente montado, oscilando na sela enquanto contemplava a paisagem e, de vez em quando, permitia aos seus pensamentos que vagueassem. O que
mais o preocupava era a perspetiva do que os esperava na região montanhosa ao redor de Asturica, onde se situavam as minas. Era imperativo que aí chegassem o mais depressa possível, mas o corolário dessa
necessidade era que teriam depois que aguentar mais tempo antes da chegada de Vitélio e da coluna principal. Cato tentou imaginar-se no lugar de Iskerbeles. No momento em que o inimigo fosse alertado
para a presença da coorte pretoriana, tentaria por certo alcançar os romanos e destruí-los. A oportunidade era demasiado boa para ser desperdiçada.
Aniquilar uma unidade de elite do exército romano proporcionaria a Iskerbeles um considerável prestígio. E não faltariam homens decididos a juntarem-se ao seu estandarte e a combaterem o Império, cujo
domínio era visto por muitos na região como impiedoso e implacável.
Cato não os podia culpar. Roma impunha cargas sucessivas sobre os ombros dos povos que conquistava. Mesmo que os nativos conseguissem escapar à apropriação das suas terras para passarem a fazer parte
das propriedades imperiais, podiam muito bem ver uma colónia de veteranos a ser fundada na sua vizinhança. Os antigos legionários tinham o hábito de mostrar muito pouco respeito pela terra, pelas propriedades
ou pelas mulheres dos seus vizinhos. Pior ainda, sabiam perfeitamente que o Imperador não ligaria às suas transgressões, a não ser que fossem realmente sérias. Portanto, na realidade, eles tinham licença
para ultrajar os locais com total impunidade. E estes não eram os únicos problemas que afligiam os que viviam sob o jugo romano. Tinham ainda que lidar com coletores de impostos rapinadores, e com os
agiotas que muitas vezes os seguiam de perto, prontos a emprestar o ouro e a prata necessários para pagar os impostos, mas a assustadoras taxas de juro. E para aqueles que não conseguiam pagar as dívidas
o resultado traduzia-se em maior pobreza, seguida da ruína e da escravatura. Era este o preço frequentemente pago pelos que viviam longe das prósperas povoações e cidades do Império.
Havia pelo menos tanto a perder como a ganhar com a imposição do domínio romano, refletiu Cato, cedendo mais uma vez à tentação de questionar a moralidade de servir num exército dedicado à defesa de um
Império daquela índole. Contudo, no fim de contas, Roma representava ordem, prosperidade e paz. Tinha visto a alternativa em primeira mão, e a sua mente revoltava-se perante a selvajaria dos druidas e
dos seus seguidores fanáticos, e dos intermináveis conflitos tribais e ajustes de contas do povo céltico da Britânia. Aquela não era forma de viver. Assim, nunca se criariam condições para que a filosofia,
a literatura, a escultura e a arte pudessem prosperar, e tais coisas eram importantes para Cato, mesmo que não o fossem para a vasta maioria dos soldados que seguiam a seu lado. Para eles, a vida militar
era um fim em si mesmo. Uma forma de vida que nenhum questionava, e para lá da qual nenhum vislumbrava outro futuro.
De vez em quando, os seus pensamentos também se focavam em Júlia e Cristo. Ainda lamentava a sua perda, mas esse sentimento era temperado e arrefecido pela dor que a traição lhe provocava. Uma dor atiçada
de cada vez que os seus olhos pousavam no tribuno Cristo, ou em que a sua figura lhe passava pela mente. Portanto, qual fora o real propósito por trás da decisão de o trazer na marcha? A possibilidade
de Cristo ser morto pelo inimigo e assim aliviar Cato da responsabilidade de se vingar? Talvez fosse apenas arrogância. Talvez sentisse a necessidade de se reafirmar perante si mesmo, de provar que era
o melhor homem dos dois, e que Júlia tinha cometido um erro. Mas isso era algo que ela nunca mais poderia vir a admitir à sua frente, dadas as circunstâncias.
— Orgulho... — murmurou, antes de abanar a cabeça com amargura. — A porra do orgulho.
A cada dia, a coluna marchava uns quarenta quilómetros antes de Cato permitir que os homens fizessem alto para passar a noite. O calor estival abatia-se sobre eles com todo o vigor, forçando-os a semicerrar
os olhos perante a luz brilhante, e a suar tanto que as gotas de suor abriam sulcos na poeira que assentava nas suas peles durante o dia. Os oficiais impunham um estrito racionamento de água, e os pretorianos
não podiam beber mais do que uma golada dos cantis, de muitos em muitos quilómetros. Tanto quanto lhe era possível, Cato cumpria as paragens ao entardecer, junto a povoações onde água e comida podiam
ser obtidas. As centúrias saíam da formação e os pretorianos pousavam as armas e deixavam-se cair sobre a escassa erva que ladeava a estrada. Os vagões avançavam até ficarem no meio das tropas, antes
de os condutores deterem as mulas e as rações vespertinas serem distribuídas aos soldados exaustos. Depois, Cristo levava o contingente montado e prosseguia pela estrada até à povoação mais próxima, onde
eram adquiridos novos suprimentos, colocados à beira da estrada para serem recolhidos pelos carros na manhã seguinte. Se a distância não fosse demasiado grande, ele levava os próprios vagões. A área afetada
pela revolta ainda estava longe, e Cato considerava que era seguro dispor apenas uma linha de sentinelas, em vez de obrigar os homens a construir um acampamento de marcha. À medida que a noite caía sobre
as colinas ondulantes, o ar enchia-se com o canto das cigarras, que crescia até se tornar um silvo estridente, antes de se interromper abruptamente e depois recomeçar.
Para Cato e Macro, acostumados ao clima muito mais frio e húmido da Britânia, o calor era difícil de suportar, mas as noites eram frescas e agradáveis, e acender uma fogueira tornava-se, para eles, perfeitamente
dispensável.
Na quinta noite de marcha, Macro juntou-se ao amigo, sentado de pernas cruzadas, com as costas apoiadas num rochedo, ao brilho das brasas de um pequeno fogo. O centurião pousou a vareta e desapertou as
correias por baixo do queixo antes de tirar o capacete e a proteção de feltro.
— Ah, assim é melhor! — Macro fez girar a cabeça, e por fim sentou-se em frente a Cato. — O primeiro turno de sentinelas está nos seus postos, e os restantes rapazes estão já deitados.
Cato anuiu e passou o olhar pelos vultos escuros enrolados pelo terreno, por entre as árvores que cresciam dos dois lados da estrada. Alguns homens ainda estavam sentados, a conversar, mas o habitual
burburinho de um acampamento fazia-se notar pela ausência, graças ao ritmo extenuante da marcha.
— Quantos ficaram para trás hoje? Macro tirou uma tábua da sacola e debruçou-se sobre as brasas, de forma a conseguir distinguir as marcas gravadas na cera. Os lábios moveram-se enquanto somava os números.
— Oito caíram redondos. E quero com isto dizer que caíram mesmo redondos. O calor deu cabo deles. Tiveram que ser recolhidos e colocados nos carros. Ontem foram doze, e na véspera tinham sido só cinco.
Da maneira que estamos a forçar o passo, nem sequer é muito mau. Mas os números hão de diminuir quando se acostumarem à marcha.
Era bem verdade, e Cato sabia-o. Os homens menos treinados na realização de marchas costumavam achar os primeiros dias mais difíceis, antes de se habituarem à dureza do caminho.
— Parece portanto que os nossos amigos pretorianos sempre tinham falta de um arzinho da verdadeira vida de um soldado.
— Nesse caso, couberam-lhes em sorte os homens certos para lho dar. — Macro fechou a tábua e guardou-a, antes de extrair da sacola uma tira de carne seca, mordê-la para tirar um bocado, e começar a mastigá-la
com toda a força. Cato aguardou que ele engolisse a comida antes de voltar a falar.
— O que acha deles? Macro coçou o cabelo empastado, enquanto considerava a questão.
— Quanto a treino e disciplina, tudo bem. E quanto ao moral, também.
Acreditam firmemente que são a melhor tropa de todo o exército. Têm boas razões para assim pensarem, claro, uma vez que muitos deles foram selecionados de entre as fileiras das legiões, como recompensa
pela coragem que mostraram em combate e por outros bons serviços. Mesmo os que se alistaram diretamente na Guarda foram escolhidos por serem suficientemente grandes e duros para não destoarem. Portanto,
deviam mesmo ser bons.
— Mas... Macro sorriu.
— Mas eu, por mim, preferia estar com os rapazes da Augusta Segunda egião, hoje ou noutro dia qualquer. Sem ação regular, sem enfrentar condições realmente duras como as que temos nas fronteiras, até
os melhores soldados acabam por perder capacidades.
— Verdade.
— Seja como for, depressa terão a sua oportunidade para mostrar o valor que julgam possuir. — Macro arrancou outro naco de carne salgada e deu às mandíbulas furiosamente para amaciar a carne dura, antes
de a engolir. — Não me parece que o nosso amigo Cimber esteja agradado com a ideia de enfrentar os rebeldes. De cada vez que olho para ele, dá-me a ideia de que o homem engoliu um trago de mijo e não
consegue tirar o gosto da boca.
— E pode censurá-lo por isso? A cidade dele foi muito provavelmente saqueada pelos rebeldes, e quando ele achava que estava finalmente longe do perigo, viu-se forçado a marchar para a batalha.
— Se fosse comigo, eu queria era regressar e reclamar a minha casa, e dar uma boa tareia a esses cabrões dos rebeldes.
— Bem, pois, sim. — Cato sorriu, e depois prosseguiu: — E quanto aos oficiais? Tenho andado a avaliá-los, mas o que pensa?
— Os veteranos são bons, como seria de esperar. Sobretudo o Secundo.
Tão duro como os melhores. A maior parte dos outros são também tesos, e sabem o que fazem, e como conseguir o melhor dos homens que lideram. Praticamente nenhum dos que tombaram são das suas centúrias.
A maior parte deles pertence ao Porcino. — Macro deu um estalo com a língua. — Esse está com dificuldades, e muitas. Não está em forma, e por isso mal se consegue manter a par dos homens. Ficarei muito
surpreendido se amanhã não der com ele nos vagões, com o resto dos atrasados.
— Também o temo. — Por momentos, Cato considerou a situação. — Se ele não melhorar fisicamente, e depressa, vou ter que o mandar para o trem das bagagens e entregar a Quinta Centúria ao Pulcher.
Macro encheu as bochechas de ar.
— Achas que isso é sensato? Não nos pode prejudicar muito a tomar conta dos vagões, mas se quiser arranjar alguma confusão, pode fazer muita coisa, se estiver a comandar oitenta pretorianos.
— Ele está connosco, no mesmo barco. Se nos mantivermos unidos, talvez consigamos escapar vivos desta. Até o Pulcher deve perceber isso. Bom, por agora fica onde está. Vamos manter o Porcino debaixo de
olho. Se ele não melhorar, vai para as carroças.
— Seja. Cato pegou no cantil e bebeu. A água estava quente, e pouco refrescava.
Recolocou a tampa.
— E quanto ao Petílio? — Ah, bom, esse é um bocado um enigma. Anda por aí a pavonear-se como se fosse um ator conhecido. Mantém a barba toda linda e aparada, o cabelo aperaltado, e se não soubesse onde
estamos, era capaz de jurar que o sacana pinta os olhos para os realçar.
— A sério? — Cato revelou-se chocado. — Não, isso não pode ser. Soldado algum seria capaz de seguir um homem desse género.
— Nenhum soldado dos verdadeiros, talvez, mas quanto a um pretoriano, já não sei. Quer dizer, eles estão acostumados a ver merdas muito estranhas pelo palácio imperial, que davam a um soldado comum material
para uma vida toda. Calculo que acabem por se habituar. De qualquer maneira, parece que é popular entre os seus homens. Eles gostam realmente dele.
— Macro, Júpiter não criou os centuriões para que os seus homens gostem deles. Criou-os para serem brutos, disciplinadores agressivos, prontos a aplicar a vareta. Respeitá-los, sim. Mas gostar deles?
Quando chegar um aperto desesperado, ser apreciado dessa forma pode tornar-se perigoso.
O sobrolho de Macro enrugou-se.
— Que género de aperto? — Oh, sei lá. Quem poderá adivinhar as brincadeiras que os deuses querem fazer connosco? Estou só a dizer, como uma questão de princípio, que não é necessariamente saudável para
um centurião que os seus homens gostem assim dele. — Cato pegou num seixo e lançou-o para o meio das brasas, onde aterrou e provocou uma pequena explosão de fagulhas.
— Seja como for — prosseguiu Macro —, o Petílio é tão duro como os seus homens. E insiste em carregar o seu próprio equipamento. Espero apenas que ele saiba utilizar uma espada quando chegar o momento
adequado, e que não se preocupe demasiado com a proteção do seu belo aspeto. Sabe-se lá o que fará uma cicatriz feiosa naquela carinha laroca quanto às suas hipóteses com as senhoras de Roma.
Aquelas palavras tinham sido proferidas sem qualquer intenção de ofensa, como Cato bem sabia, mas ainda assim não conseguiu evitar levar a mão à linha de pele rija que marcava a cicatriz que lhe atravessava
a sobrancelha e o rosto. Teria sido isso que tinha afastado Júlia? Antes daquele momento nunca se tinha considerado desfigurado. Mas talvez fosse isso mesmo, e Júlia tivesse preferido a imaculada face
de Cristo. Pigarreou com um grunhido suave.
- E quanto ao tribuno? Macro puxou um escarro para limpar os últimos bocados de carne dos dentes, e cuspiu para o lado.
— Não é de todo um soldado. Muito menos um oficial. É demasiado calado, e embora pareça que consegue encarregar-se da compra de suprimentos aos locais, pessoalmente nunca lhe confiaria o comando de homens
em combate.
Teria sido bem melhor se tivesse ficado em Roma, a fazer os seus desenhos de elegantes carros de viagem. Não percebo porque é que o Vitélio o incluiu nesta expedição.
— Sim, também já me interroguei quanto a isso. — Para Cato, a única razão que fazia algum sentido para a presença de Cristo era que Vitélio tivesse conhecimento do caso que ele tivera com Júlia, e achasse
que assim poderia atormentar Cato. Não punha tal ideia de parte. Levantou o olhar e apanhou Macro a observá-lo com uma expressão curiosa. — O que é?
— Há alguma coisa que eu deva saber sobre o Cristo? — O que é que quer dizer? — Há alguma razão para ele ter vindo connosco? Porque não vejo nenhum propósito nisso, dado até que o podíamos muito bem ter
deixado em Tarraco.
Cato fez uma pausa antes de responder, sem emoção.
— O Cristo está colocado na coorte. Resolvi que ele devia ter oportunidade de se envolver no combate ao lado dos homens.
Macro pareceu pouco convencido.
— É mesmo tudo? — Sim. O centurião continuou a fitá-lo por momentos, mas depois encolheu os ombros.
— Se assim o dizes.
Instalou-se um silêncio desconfortável, até que Macro voltou a falar.
— Miúdo, estás bem? Nos últimos dias tenho-te sentido muito distante. Perdido nos teus próprios pensamentos.
— Estou bem. Muito obrigado, centurião Macro. — Cato pegou na capa e colocou-a sobre o corpo, à medida que se esticava sobre o solo. — Agora, se não se importa, tenho que dormir. Seria boa ideia se o
fizesse também. Boa-noite.
Macro ficou a olhar para ele, momentaneamente surpreso pela rispidez do amigo. Mas já se tinha habituado aos humores de Cato, e sabia bem quando o devia deixar em paz.
— Tem razão. Boa-noite, senhor.
Quando a coorte deixou para trás as colinas que rodeavam a colónia militar de César Augusta, os pretorianos entraram nas planícies áridas que cobriam as terras da tribo dos celtiberos. As túnicas de branco
sujo dos soldados ficaram manchadas pela poeira vinda da terra vermelha, e a pele exposta ficou coberta de pó. Só quando acamparam junto a um rio é que os homens conseguiram voltar a sentir-se asseados,
e a limpar o equipamento, mas ao fim do dia seguinte já estava tudo sujo outra vez. Tal como Cato e Macro esperavam, os homens tinham-se habituado à dureza da marcha, e havia cada vez menos soldados a
ficarem para trás. Alguns dos mais velhos e dos menos capazes fisicamente tinham conseguido chegar à colónia militar mas não conseguiam avançar mais, pelo que lá foram deixados para descansar e se juntarem
depois à coluna principal, quando esta chegasse ao local. Mas até o centurião Porcino se manteve na coluna, revelando o seu caráter ao continuar a liderar a sua centúria com os pés cheios de bolhas, que
rebentaram e os deixaram em sangue.
Havia naquela zona muito menos sinais de habitação, e eram limitados a algumas quintas ocasionais, cujos habitantes arrancavam a existência a uma paisagem difícil, que assava no verão e congelava no inverno.
As povoações por onde passaram pareciam quase desertas durante a maior parte do dia, já que os locais se mantinham nas sombras ou no fresco do interior das suas casas. Cabras agrupavam-se ao abrigo das
pequenas árvores que conseguiam encontrar, e mulas, amarradas a postes, aguentavam estoicamente o calor e as moscas.
Perto do meio-dia do décimo quinto dia depois de deixarem Tarraco, Cato seguia um pouco adiantado à coluna, como era habitual. O Sol brilhava num céu limpo, e o horizonte tremeluzia como se existisse
uma fina camada de água prateada a correr entre o céu e a terra. Nas suas costas, a coorte caminhava num martelar contínuo de botas cardadas, e do chiar das rodas com cintas de ferro e dos eixos das carroças
enquanto negociavam a superfície irregular da estrada. Então Cato avistou à distância uma mancha escura, por cima da neblina devida ao calor. Enquanto protegia os olhos da luz brilhante e tentava divisar
o que ela representava, a mancha começou a separar-se numa linha de vultos, acompanhados por vários cavaleiros de ambos os lados. Por trás deles vinham quatro grandes vagões. Sentiu uma ponta de ansiedade
perante a possibilidade de aqueles homens terem novidades sobre os rebeldes. Ainda havia cento e cinquenta quilómetros a percorrer antes de a coorte chegar à região mineira em volta de Asturica, mas era
possível que os rebeldes se arriscassem para longe dessa área.
Cato refreou a montada e deixou-se alcançar pelo resto do contingente montado, enviando uma mensagem para que Cimber se juntasse a ele antes de continuar a seguir a estrada. À medida que o espaço entre
os dois grupos de homens se reduzia, começou a perceber mais detalhes. O cavaleiro que liderava o outro grupo tinha uma espécie de toldo montado sobre a sela, mas quanto à longa fila de homens em péssimas
condições que o seguiam a custo, acorrentados, não havia qualquer proteção do sol. Os cavaleiros colocados dos lados, a guardar os escravos, usavam chapéus de palha, e de vez em quando vergastavam os
que vigiavam com as suas longas varetas, para os manter em movimento. Na retaguarda seguiam alguns vagões. Como comandante de uma coluna militar, Cato tinha prioridade, pelo que se manteve firme no meio
do caminho. Quando os dois grupos já não estavam separados por mais de uns cem passos, o mercador de escravos ergueu uma mão e mandou os seus homens para a berma. Os guardas detiveram os escravos e conduziram-nos
para fora da estrada.
Certo de que os seus receios anteriores eram infundados, Cato fez o cavalo avançar a trote e aproximou-se do homem que seguia debaixo do toldo.
— Bom-dia, cidadão — saudou Cato. O outro ergueu um abano de afastar moscas em resposta, e acenou quando Cato deteve a montada junto a ele. Era um homem volumoso, com feições sérias, e uma pele tão cheia
de buracos que o rosto parecia uma grande laranja a caminho da podridão.
— Perguntava-me quando é que veria por fim alguns soldados. — O homem falou com o inconfundível sotaque da Subura, em Roma. — Começava a pensar que o governador tinha deixado toda a província à mercê
daqueles cabrões dos rebeldes. Estás a caminho de os enfrentar?
— As minhas ordens não te dizem respeito. Como te chamas? — Mico Esqueleu, de Sportimus, para onde me dirijo neste momento. Para manter o meu inventário o mais longe possível daquela escumalha.
— Inventário? Esqueleu fez um gesto que abarcou a fila de escravos.
— Estes estavam destinados às minas, mas preferi seguir para leste, assim que soube da revolta. Quando vocês tiverem feito o vosso trabalho, levo-os de volta e despacho-os para as minas que tiverem sobrevivido
a esta confusão. — Olhou para lá de Cato, notando a aproximação de Macro e da sua centúria pela estrada. — Pretorianos?
Cato anuiu, olhou em redor, e avistou Cimber também a aproximar-se.
Voltou-se de novo para o comerciante.
— O Imperador enviou as suas melhores tropas para lidar com esta revolta. Esta é a minha coorte, e outras sete seguem-nos, com tropas auxiliares.
Não havia problemas em dar essa informação ao mercador, na esperança de que deixasse bem claro o desejo de Roma de enviar forças poderosas para enfrentar a rebelião. Os mercadores como Esqueleu eram perfeitos
veículos de boatos, notícias e pânico. Seria bem melhor que ele ajudasse a espalhar a notícia de que tinham sido enviados soldados bastantes para destruir Iskerbeles e os seus seguidores. Cato ficou satisfeito
ao ver o ar de alívio na expressão do homem.
— Excelente. Gosto de saber disso. Cimber chegou, a arfar e a suar, depois da corrida debaixo do calor. Cato fez as apresentações, e depois acenou na direção de que Esqueleu e a sua lamentável procissão
humana tinham surgido.
— Não tenho notícias recentes do que se passa em Asturica. Tens alguma noção da área por onde a revolta se espalhou?
O mercador pareceu surpreendido.
— Asturica? Estás a brincar. As últimas que ouvi, há apenas dois dias, punham os rebeldes a pilhar mansões e aldeias a leste, perto de Pallantia. E agora têm recebido reforços, homens das tribos dos váceos
e arévacos.
Cato olhou para Cimber, e reparou que o homem estava horrificado.
— A que distância estamos das terras dessas tribos? — A um dia de marcha — replicou o guia. — Dois no máximo. Podem estar a observar-nos neste preciso momento.
Cimber esticou o pescoço e espreitou ansiosamente para todos os lados, mas não havia qualquer sinal de movimento de ambos os lados da estrada, e numa extensão de vários quilómetros. Olhou para Cato.
— Se a revolta se espalhou até tão longe, senhor, seria uma loucura prosseguir. A estrada passa mesmo pelo coração do território dos arévacos. Os rebeldes saberão que vamos a caminho muitos dias antes
de nos aproximarmos sequer da mina. Caminharíamos para uma armadilha certa. O melhor será voltar a Tarraco — concluiu, à laia de súplica.
— Nada feito — respondeu Cato. — Tenho as minhas ordens. Vamos prosseguir.
Esqueleu enxotou moscas do ombro.
— Ele tem uma certa razão. Quem quer que se dirija a Asturica por esta estrada vai ficar bem à vista de quaisquer vigias que os rebeldes tenham disposto no terreno. Se tinhas planos para surpreender o
Iskerbeles e os seus homens, prefeito, será melhor que os revejas. Da maneira como as coisas estão, corres o risco de que eles te preparem uma emboscada. E, sem qualquer desrespeito pelos melhores homens
do Imperador, a vossa desvantagem numérica deve andar a roda dos dez para um, pelo menos, além de que vão combater na casa deles.
Não me parece que tenham muitas hipóteses.
Cato estava cansado, com calor e sem paciência.
— Isso é um problema meu. Tratarei de o enfrentar. Dado o que dizes, não temos tempo a perder. Que a fortuna te acompanhe, Mico Esqueleu.
Cato puxou pelas rédeas e levou a montada de novo para a estrada, ao mesmo tempo que fazia um gesto aos pretorianos montados, para prosseguirem o avanço. Cimber correu ao seu lado, o rosto ainda afogueado
e ansioso.
— Prefeito, não está com certeza a falar a sério? Não podemos prosseguir. Eles hão de estar à nossa espera. Seremos destroçados.
— Cimber, já chega. Não pedi a tua opinião sobre o assunto. Estás aqui para ajudar, e é tudo. E agora volta para o trem das bagagens, antes que me lembre de te mandar açoitar.
O guia abriu a boca para protestar, mas viu o brilho perigoso nos olhos de Cato e tomou a sábia decisão de se manter em silêncio, deixando-se ficar para trás, na berma, para deixar passar a coluna. Cato
seguiu, passando os olhos sobre a fila de escravos. Eram talvez os mais miseráveis exemplares que alguma vez vira. Magros, quase esqueléticos, praticamente sem roupas, com peles sujas e manchadas. A maior
parte mantinha o olhar perdido algures à sua frente, outros devolviam-lhe o olhar com indisfarçado ódio. Se aqueles indivíduos representavam o tipo de homens que trabalhavam nas minas em torno de Asturica,
teriam todas as razões para combater até ao fim, se fossem libertados por Iskerbeles e tivessem oportunidade de se juntarem à revolta. Estariam a arder de vontade de se vingarem dos seus antigos senhores,
e transformar-se-iam em adversários formidáveis. Cato estremeceu perante tal pensamento, e colocou o cavalo a trote, até deixar para trás a fila de escravos e os pesados vagões que os seguiam. À sua frente,
a paisagem escaldante já não parecia vazia. Algures por ali o inimigo aguardava, e talvez já observasse Cato e os seus homens, de coração repleto de determinação cruel, disposto a aniquilar a coorte de
pretorianos até ao último homem.
Ainda não tinha havido sinal do inimigo quando a coluna fez alto, a dois dias de marcha de Pallantia, por entre colinas suaves e maciços dispersos de carvalhos retorcidos. Todavia, tinham tido vários
encontros com gente que fugia da região afetada pela revolta. Condutores de gado, mercadores e traficantes de escravos, todos eles tentando desesperadamente levar consigo os bens que eram capazes de transportar
e escapar à ameaça da crescente influência de Iskerbeles. Alguns faziam relatos da quebra da autoridade romana nas regiões em torno das povoações que em tempos tinham exercido um apertado controlo sobre
as terras circundantes. Muitos cobradores de impostos tinham sido mortos, e herdades saqueadas, tendo os seus proprietários ou capatazes sido também liquidados. Alguns contavam tenebrosas histórias sobre
a forma como as vítimas dos rebeldes tinham sido horrivelmente torturadas antes de lhes ser concedida a morte.
Cato tinha conversado com os refugiados longe dos ouvidos dos seus homens, e recorrera a Cimber apenas quando os viajantes não falavam latim ou grego. Ainda assim, os boatos sobre o que os esperava não
deixaram de chegar aos ouvidos dos pretorianos, e a disposição dos homens tornou-se marcadamente mais sombria e nervosa. Tinham partido de Roma com a ideia de que iam dar aos rebeldes asturianos uma lição
rápida e dolorosa, mas agora começavam a apreciar a verdadeira dimensão da ameaça que sobre eles pendia.
À medida que o Sol descia cada vez mais no céu, a luz diminuía e dava às árvores um tom alaranjado, produzindo longas e escuras sombras sobre a erva seca. A quilómetro e meio de distância, uma pequena
aldeia coroava uma colina, de onde se podia ter uma visão desimpedida sobre a paisagem circundante. Assim que os pretorianos alcançaram o local escolhido por Cato para instalar o acampamento nessa noite,
cada centúria recebeu permissão para destroçar, e os homens pousaram escudos, lanças e capacetes, e deixaram-se cair no solo para descansar, enquanto os optios marcavam as linhas para os soldados dormirem
e os centuriões designavam homens para o grupo de recolha de abastecimentos. A curta distância, o contingente montado removia as selas e arreios das montadas, e delimitava uma zona com cordas, para deixar
os cavalos pastar em liberdade.
Cato desapertou o lenço que levava ao pescoço e limpou o suor da testa antes de dar atenção às tarefas rotineiras de cada fim de tarde em marcha. Para começar, havia o tribuno Cristo, que lhe apresentava
o documento a indicar que Cato aprovava o uso de quinhentos sestércios do cofre da coorte para adquirir abastecimentos na aldeia próxima. As rações para a refeição vespertina foram descarregadas. Enquanto
os vagões seguiam a trovejar por um trilho lateral a caminho da aldeia, Macro aproximou-se, de bochechas rosadas devido a uma queimadura solar, tábua de cera na mão, pronto a informá-lo do número de retardatários
e doentes, e da quantidade de homens aptos para o serviço em cada secção.
— Não foi um mau dia — comentou, enquanto passava a tábua a Cato, para este a inspecionar. — Cinco de baixa por golpe de calor, dois que estão nos vagões desde ontem e — vais gostar desta — um dos homens
do trem de bagagens que levou um coice de uma mula e ficou sem sentidos. Para ser preciso, o centurião Pulcher.
Cato levantou os olhos da tábua, esperançado.
— Foi grave? — Vai sobreviver, o que é uma pena. Mas ganhou uma dor de cabeça daquelas, e um galo do tamanho de uma maçã; é uma bela recompensa. Nada que não seja capaz de melhorar aquele feitio tão bem-disposto.
Trocaram um sorriso, e depois Cato indicou o mais próximo bosque de carvalhos, a algumas centenas de metros de distância.
— O grupo de recolha pode ir ali buscar lenha. Cinquenta homens devem chegar.
Macro anuiu, e depois contemplou as redondezas, de onde se desprendia um ar bucólico.
— Talvez seja altura de erigirmos um campo a sério? Dormiria muito mais descansado com um fosso e uma muralha à minha volta.
Cato já tinha ponderado a questão, pesando de um lado o estado de exaustão dos homens e a necessidade de conservarem as forças para a marcha do dia seguinte e do outro a possível ameaça de um ataque inimigo.
Os batedores montados que tinha enviado à frente da coluna para examinar os flancos não tinham relatado qualquer sinal da presença dos rebeldes.
— Amanhã por esta noite estamos seguros.
— Ainda assim...
— A decisão está tomada. — Cato saltou para o chão, aterrando com as botas no terreno seco. — E os homens não lhe ficariam de todo agradecidos se os obrigasse a cavar neste terreno para fazer o fosso
e a muralha.
Macro franziu o sobrolho e ofereceu ao amigo um ar de desaprovação.
— Senhor, desde quando é que estamos no negócio de tentar arregimentar agradecimentos dos homens? Dê a ordem, e eu depressa os ponho outra vez de pé, de ferramentas na mão, em menos tempo do que se cozem
os espargos.
— Não duvido. Mas preciso deles em boas condições físicas, quando encontrarmos os rebeldes. Portanto, deixe-os descansar por esta noite. Daqui a pouco hão de precisar de todas as suas forças.
Macro suspirou.
— Como deseja, senhor. Vou então tratar de colocar as sentinelas.
Afastou-se, deixando Cato a sentir-se um tanto culpado pela atitude brusca que tivera para com o centurião. Macro merecia melhor; o cansaço de Cato e a tensão crescente, à medida que se aproximavam de
Asturica, não eram desculpas aceitáveis. Não podia pedir diretamente desculpas a Macro, porque este veria tal atitude como uma mostra de fraqueza, pelo que tinha de encontrar outra forma de o compensar.
Poucos oficiais da sua patente se permitiriam pensar daquela forma, sabia-o bem, mas ele recusava-se a ser como eles, embora não deixasse de querer obter sucesso e de conseguir o seu respeito. Mas teria
que ser nos seus próprios termos.
O troar das rodas de um vagão distraiu-o da linha de pensamento que seguia, e ele olhou para a origem do som; Cristo acenava para que os carros avançassem. Na traseira do último seguia Pulcher, sentado,
de pernas suspensas, uma mão a segurar a cabeça e a outra a segurar o lado do vagão. Cato não conseguiu resistir a um sorriso deliciado perante aquela troca de posições. Como as coisas tinham mudado nos
dez anos que haviam decorrido desde que entrara para o exército. O homem que tinha feito da sua vida um verdadeiro inferno era agora um personagem sem qualquer importância, um monstro que se vira reduzido
a um estado patético e incapaz de representar uma ameaça. Observou por momentos os carros a afastarem-se, e depois chamou Metelo para que trouxesse alguma comida e vinho diluído para ele e para Macro.
Quando o Sol se começou a pôr por trás de uma linha de colinas distante, o acampamento já tinha caído num estado de serenidade e calma. As conversas eram feitas em surdina, o ar estava parado, e as cigarras
não paravam de fazer o seu barulho. Os homens tinham recolhido ervas e arbustos para construírem os seus leitos para a noite, e alguns haviam começado a limpar o terreno para fazer fogueiras, já que a
erva estava completamente seca. Qualquer fogo que fugisse ao controlo depressa se propagaria à vegetação seca e quebradiça e se espalharia se tivesse a ajuda da mais leve das brisas, para consumir tudo
o que aparecesse no seu caminho. À medida que as primeiras fogueiras se acendiam, os homens despejavam as rações de cevada, carne salgada e pão nos pequenos caldeirões suspensos de tripés de ferro, e
um aroma de fumo e cozinhados espalhava-se pelo campo.
Ainda havia um grupo a cortar lenha nas árvores, e o longínquo batuque dos machados chegava aos ouvidos de Cato, sentado num banco desdobrável a escrever um relatório com as parcas informações sobre a
revolta que tinha recolhido junto de todos aqueles com quem se tinha cruzado a caminho de Asturica. A luz quase rasante tornava mais simples seguir as marcas que fazia com todo o cuidado na cera da tábua.
Tencionava entregar o relatório ao primeiro mercador com que se encontrassem no dia seguinte, com instruções estritas para que fosse entregue ao legado o mais cedo possível. Se a coluna não encontrasse
ninguém na estrada até ao meio-dia, Cato resolveu que um dos seus homens montados regressaria com o relatório a Tarraco.
Metelo aproximou-se com um jarro, um pequeno cesto e uma panela de ferro, do qual se evolavam vapores bem cheirosos. Cato levantou um dedo.
— Um momento.
Terminou o relatório e assinou-o, antes de fechar a tábua com força e a depositar sobre o solo, no instante em que Macro se veio juntar a ele, enquanto tirava a cota de malha por cima da cabeça. Deixou
a proteção cair para o chão.
— Porra, que alívio! Não sei qual é que estará mais bem cozinhado, eu ou o jantar. — Debruçou-se sobre a panela que Metelo tinha colocado entre os dois, e assoprou o ar. — Mmmm! Cheira bem. Isso quer
dizer que não é simplesmente a habitual mistura de carne e cevada.
— Juntei-lhe algumas ervas, senhor. Comprei-as em Tarraco. E uma pitada de açafrão. Pensei que apreciariam uma mudança.
— Bem pensado. — Macro deu uma palmada nas costas do optio, e depois sentou-se ao lado de Cato. — Senhor, está tudo preparado para a noite. O Petílio e os seus homens estão de guarda. Só estamos à espera
dos membros do grupo de recolha e do regresso dos vagões para dispor os homens no terreno.
— Muito bem — replicou Cato, enquanto deitava a mão ao prato de estanho que Metelo tinha composto para ele. Nesse momento deteve-se, e virou-se para olhar na direção da aldeia. Cristo já devia estar de
volta, mas não havia sinal dos vagões, nem qualquer movimento vindo daquela direção. Nem sequer o mais pequeno sinal de fumo das cabanas, onde os habitantes também deviam estar a preparar a sua refeição
da noite.
Sentiu um arrepio gelado na espinha, e o cansaço e a fome que sentira no momento anterior desapareceram como que por encanto. Cato levantou-se e deu alguns passos na direção da aldeia, antes de se deter
e perscrutar as sombras, esforçando os olhos e ouvidos para tentar detetar qualquer som que pudesse confirmar os seus receios.
— O que se passa, miúdo? — indagou Macro.
— Calado! — Cato ergueu uma mão, enquanto observava com todo o cuidado a aldeia imóvel. Depois virou-se para o bosque, onde o grupo de recolha de lenha continuava a trabalhar arduamente. Enquanto analisava
o cenário, detetou um ínfimo reflexo de luz do Sol sobre metal nos maciços de arbustos, na encosta por trás do bosque.
— O inimigo está ali. Temos que chamar aquele grupo imediatamente.
— O inimigo? — A testa de Macro franziu-se, enquanto tentava avistar o que Cato notara.
— Por trás das árvores. E, se eu estiver certo, também estão na aldeia. Não quero ver-nos apanhados em terreno aberto. Macro, dê ordens para os homens se aprontarem. Quando a coorte estiver pronta, e
o grupo recolhido, dirija-se para a aldeia.
— Onde vais tu estar, então? Cato apontou para a povoação.
— Ali mesmo. A não ser que esteja muito enganado, o Cristo está metido num grande sarilho. Além disso, precisamos da aldeia. Se a tomarmos, teremos uma posição mais fácil de defender. Tem as suas ordens,
vá tratar disso!
Macro pegou na cota de malha e na espada. Metelo estava imóvel, de ânfora na mão, pronto a encher as taças. Sacudiu-se para afastar o torpor, e pousou a ânfora.
— Tu! — ordenou Macro ao pretoriano mais próximo. — Corre até ao grupo de recolha de lenha. Diz-lhes para deixarem tudo e regressarem ao campo em passo de corrida.
A calma do momento anterior foi desbaratada assim que Macro correu até ao centro do acampamento, e gritou:
— Centuriões! Junto a mim. Cato pegou no capacete e ordenou a Metelo que o acompanhasse, e correram para junto dos cavalos, onde os homens se afadigavam a esfregar os animais com tufos de ervas secas,
antes de tratarem das suas próprias necessidades.
— Metelo, põe-nos em cima das selas e armados, e depressa! Depois de deixar o optio a cumprir as ordens, Cato continuou a correr, aproximando-se da aldeia, e depois parou. O coração batia-lhe com toda
a força contra as costelas. Esforçou-se por escutar sobre o martelar nos seus ouvidos, e por fim ouviu-o, um quase sumido entrechocar de lâminas. Voltou-se para o contingente montado, e colocou a proteção
na cabeça antes de enfiar o capacete, que depois apertou com força, sentindo o couro roçar contra a pele por baixo do queixo. Metelo e os seus homens apressavam-se a recolocar as selas nas montadas e
ajudavam-se uns aos outros a porem as armaduras. O cavalo de Cato foi um dos primeiros a ficar preparado, e ele içou-se para a sela, lançando uma perna primeiro e depois instalando-se sobre o assento.
Levou o animal para longe dos outros e da poeira que estavam a levantar, para ter uma visão mais clara da ameaça sobre a coorte, que se tornava mais precisa.
Avistou então um vagão a sair à desfilada de entre os edifícios da aldeia; o condutor fazia estalar furiosamente o chicote, e as mulas corriam pelo trilho que levava à planície. Tornou-se evidente que
o vagão corria o perigo de atropelar os animais que o puxavam. O condutor apercebeu-se disso no último instante, e largou o chicote para puxar pela alavanca do travão com toda a força. O carro derrapou
e começou a inclinar-se, até vencer a inércia e cair de novo pesadamente sobre as quatro rodas, lançando pelo ar várias ânforas que se estilhaçaram ao cair no solo, enquanto o vagão continuava em grande
velocidade pelo trilho.
Cato virou-se na sela e notou que o homem enviado para avisar o grupo da lenha já o tinha alcançado. Mal se viam os vultos escuros que se perdiam entre os troncos e ramagens dos carvalhos, por trás dos
quais o céu era de um laranja-escuro, tornando tudo ainda mais difícil de distinguir. Mas lá estava o inimigo, recortado contra o céu, na crista por detrás das árvores, uma linha de guerreiros, a maior
parte apeada, que corriam já pela encosta. Atrás de Cato, no acampamento, ouviam-se os gritos dos optios e dos centuriões que apressavam os homens, lançando imprecações contra os que estavam demasiado
exaustos para reagir com rapidez. A voz de Macro erguia-se claramente sobre todas as outras.
— Foda-se, de pé, cães! Vocês consideram-se soldados? Já vi velhas putas todas arrebentadas porem-se de pé mais depressa do que vocês, seus merdosos!
Outro carro saiu da aldeia, seguido por um dos pretorianos, a coxear. A maior parte dos homens já tinha montado, e Cato levou uma mão à boca em concha para garantir que era ouvido sobre os gritos dos
outros oficiais.
— Contingente montado! Comigo! Os que já tinham montado puxaram pelas rédeas e fizeram as montadas cavalgar até junto do prefeito, enquanto os mais atrasados dos seus camaradas acabavam de vestir as armaduras,
pegavam nas armas e subiam para as selas. Cato não esperou pelos retardatários, e lançou o cavalo a galope para atravessar a planície, a caminho da povoação. Os cavaleiros aproximaram-se rapidamente do
primeiro dos vagões, que ainda avançava a toda a velocidade a que as mulas conseguiam correr, com as suas pernas curtas e os cascos a martelar a terra e a levantar pó vermelho. Cato ergueu uma mão para
lhe dar sinal para se deter, e o condutor refreou os animais.
— O que aconteceu? — Uma emboscada, senhor. Em pleno coração da aldeia. — O homem lutava para respirar.
— Quantos? — Não sei, senhor. Estão nos telhados, sobretudo. Estão a usar fundas e pedras. Há dezenas deles.
— Certo, volta para o acampamento. Não percas mais nada da carga. O condutor anuiu, pegou no chicote e fê-lo estalar sobre a equipagem, enquanto incitava os animais a retomarem o andamento. Cato cravou
os calcanhares no flanco do cavalo e acelerou pela estrada, a caminho do outeiro em que se situava a aldeia. Outros vagões tinham conseguido escapar da armadilha, e quando os cavaleiros chegaram à base
da encosta, Cato avistou os primeiros elementos do inimigo, a movimentarem-se pelos telhados na orla da aldeia, flagelando os romanos. Conduziu os seus homens pelo caminho marcado pelos rodados dos vagões,
e refreou os animais ao chegar à entrada da aldeia, onde havia um portão com fortificações de madeira.
— Desmontem! Os primeiros cinco homens ficam com os cavalos. Os outros, venham comigo!
Cato recebeu o escudo de um dos homens que ficavam a guardar os cavalos, desembainhou a espada e esperou que os pretorianos formassem atrás dele.
Depois, de escudo levantado e à frente do corpo, entrou na aldeia. A rua tinha largura à justa para permitir a passagem dos carros, e os edifícios que a ladeavam eram na sua maior parte feitos de pedra
no piso térreo, e prolongavam-se em altura com estruturas de madeira e estuque, depois cobertas por telhados planos. Vozes e gritos, bem como os impactos de armas em escudos e o tilintar das lâminas,
faziam-se ouvir, vindos de curta distância. Cato passou por uma porta aberta e espreitou para o interior escuro, onde viu o corpo de um homem idoso, de borco, sangue seco a formar uma mancha no chão por
baixo dele. Portanto, alguns dos aldeãos tinham resistido, ou pelo menos tinham-se recusado a juntar-se aos rebeldes.
Uma impressão de movimento acima e à esquerda alertou Cato para uma ameaça. Ergueu o olhar e viu um homem de barba com longas tranças, de pé no parapeito do telhado. O rebelde cerrou os dentes e começou
a levantar uma pedra acima da cabeça com ambas as mãos. Cato engoliu ar num repente e gritou:
— Escudos acima! Os pretorianos projetaram os braços esquerdos e fizeram rodar os escudos para cima, de forma a cobrirem as cabeças. Mesmo a tempo. Ouviu-se um forte estrondo, e o homem mais próximo de
Cato grunhiu quando o escudo que segurava lhe foi bater contra o capacete, depois de receber o impacto.
— Continuem! — ordenou Cato. — Comigo! Mais elementos inimigos se tinham apercebido da sua presença, e daí a pouco já havia uma chuva permanente de projéteis lançados dos edifícios dos dois lados da rua.
Mas os pretorianos mantiveram o sangue-frio e seguiram o prefeito ao longo da rua, rodeando uma esquina, até se depararem com um espaço aberto, de forma quadrada, no meio da qual os vagões restantes,
cinco deles, ainda estavam retidos. Várias das mulas já tinham sido atingidas, e ostentavam manchas sangrentas nos seus pelos espessos. Algumas debatiam-se a custo nos seus lugares, e outras gemiam em
agonia. As que ainda estavam de pé, incapazes de se mexer, bramiam em pânico. Cato viu seis pretorianos no solo, quatro deles imóveis, e os outros, incluindo Cristo, a gatinhar por baixo dos vagões, tentando
encontrar refúgio. Três dos vagões estavam mais distantes, e os sobreviventes do trem de bagagens estavam abrigados entre eles, enquanto a metralha a e as pedras se abatiam sobre as estruturas de madeira
dos vagões. Os telhados em volta encontravam-se ocupados pelo inimigo, que gritava ameaças selvagens e maldições, enquanto tentava acertar nos soldados romanos e nas mulas.
— Sigam-me! — ordenou Cato, fazendo-se ouvir acima da cacofonia. Mantendo-se juntos, e cobertos pelos escudos, Cato e os quinze pretorianos atravessaram o espaço aberto até junto dos vagões. Os rebeldes
viraram de imediato a sua atenção para os recém-chegados, lançando sobre eles tudo o que podiam. Os romanos quase tinham alcançado os vagões quando o homem que seguia junto a Cato cambaleou e soltou um
gemido.
— A minha perna... Cato olhou para baixo e viu o sangue a escorrer de uma ferida feita por metralha.
— Metelo, ajuda-o! Rapazes, não parem! O ferido fê-los diminuir o ritmo, mas pouco depois conseguiram chegar à proteção oferecida pelos vagões, agachando-se junto a Cristo e aos outros, enquanto as pedras
e a metralha embatiam e saltavam contra as rodas e as paredes laterais dos veículos.
— Graças aos deuses que está aqui, senhor — disse o tribuno. — Pensei que estávamos acabados.
Cato olhou para os outros sobreviventes: sete pretorianos, incluindo o centurião Pulcher. Alguns estavam severamente abalados, mas outros olharam para ele com expressões determinadas, e aguardaram ordens;
veteranos das legiões, evidentemente, calculou Cato. Virou-se de novo para Cristo.
— Tribuno, se fosse a ti, não contava já com a salvação.
— Não podemos ficar aqui. — Cristo baixou a cabeça quando um pedaço de metralha fez estilhaçar a parede do vagão por cima dele, salpicando-o com fragmentos de madeira.
— Já tinha chegado a essa conclusão por mim mesmo, obrigado — retorquiu Cato secamente, e alguns dos homens em redor esboçaram um sorriso rápido. — Pelo menos alguns dos vagões conseguiram escapar. Salvámos
parte dos suprimentos, valha-nos isso.
— Suprimentos? — Cristo não escondeu a surpresa. — Por Hades, o que é que isso importa agora?
Cato fez um gesto designando as ânforas partidas que estavam espalhadas pelo solo, de onde se tinha derramado vinho e água. Na praça também se viam sacas de cevada, quase todas rebentadas, e o conteúdo
espalhado sobre a terra.
— Tribuno, é isso que faz com que os homens continuem a viver. Se tivermos essa oportunidade, salvaremos tudo o que pudermos. Por agora, estamos aqui presos. Se tentarmos mexer-nos, eles atiram-nos com
tudo o que puderem. Se nos deixarmos estar aqui, eles acabarão por ficar sem munições, e terão que nos enfrentar homem a homem.
— Eles que tentem — grunhiu Metelo, acariciando a bainha da espada. — Verão de que são feitos os pretorianos.
— É esse o espírito — respondeu Cato. Depois preparou-se, e levantou a cabeça, só o suficiente para olhar de relance pela praça. Devia haver pelo menos uns cem rebeldes em redor. Mais do que o suficiente
para esmagar o pequeno grupo de pretorianos preso entre os vagões. Fosse qual fosse a matéria de que estes eram feitos, considerou Cato com ironia. Uma massa escura aproximou-se pelo meio da escuridão,
e ele agachou-se no momento preciso para evitar ser atingido pela rocha que se precipitou sobre o vagão e foi acertar numa ânfora por trás dele.
— Foda-se... Esta passou perto. — Riu-se, tentando esconder os nervos.
— Mas o que é que nós fizemos para os deixar tão chateados? Seja lá o que tiver sido, não será nada comparado com o que vão levar por terem dado cabo do meu jantar.
Era uma bravata, mas era o que os homens precisavam de ouvir, se queria que eles tivessem confiança na capacidade do seu prefeito para os extrair da emboscada letal em que tinham caído.
A despachar! Toca a andar! — gritou Macro, enquanto os últimos dos seus homens se alinhavam e pegavam nos escudos e lanças, prontos
para escutar as ordens. O centurião olhou para a área onde havia poucos momentos a coorte se estivera a aprontar para passar a noite. As seis centúrias tinham formado em retângulo, e no centro do espaço
estavam espalhados os pertences pessoais que tinham trazido consigo de Roma e as rações prestes a consumir. A maior parte das fogueiras tinham sido apagadas, mas ainda havia duas a arder, e Macro resolveu
que trataria disso assim que tivesse oportunidade para as extinguir. As chamas emprestavam à cena uma luz bruxuleante, que se impunha depois de os últimos raios de Sol faiscarem no horizonte e desaparecerem.
A uns oitocentos metros dali, os homens do grupo da lenha corriam para tentarem salvar as suas vidas. Atrás deles irrompiam de entre as árvores vultos escuros, que se lançavam na perseguição dos pretorianos,
tentando a todo o custo apanhá-los e liquidá-los antes que eles alcançassem a segurança da coorte.
Macro calculou a distância entre a posição em que se encontrava, os homens em fuga e o inimigo, e concluiu que os seus camaradas tinham um avanço suficiente para se safarem. Deitou uma olhadela na direção
da aldeia, onde Cato e os seus homens estavam a desmontar e se preparavam para entrar pelo portão. Quaisquer que fossem os problemas que Cristo e o seu grupo tivessem encontrado na povoação, Cato estava
já em cima do acontecimento e trataria de tudo, decidiu. E assim que os homens que vinham do bosque alcançassem o resto da coorte, ele daria ordens para que a formação se fosse juntar ao prefeito na aldeia
e se abrigasse no interior, para aguentar a posição durante a noite. Pela manhã teriam uma visão distinta da planície, e poderiam avaliar com segurança a escala da força inimiga que os tinha surpreendido.
Claro que os homens pouco dormiriam, e estariam cheios de fome, mas essas eram as peripécias de uma vida no exército.
Um novo som chegou-lhe aos ouvidos, sobre os gritos de guerra dos rebeldes que perseguiam o grupo da lenha: o troar de cascos de animais. Macro voltou-se na direção das árvores no preciso momento em que
um grupo numeroso de cavaleiros rodeava os limites do bosque e lançava as montadas numa carga furiosa. Num momento que o deixou nauseado e certo do que se ia passar, Macro compreendeu que o grupo em fuga
ia ser alcançado e destroçado antes de conseguir juntar-se à coorte.
— Mas que porra — resmungou, ao mesmo tempo que segurava com toda a força na pega do escudo e corria para a frente dos seus homens. — As primeiras cinco secções, em coluna de quatro! Sigam-me. Optio Druso!
— Senhor? — Forma os homens numa linha.
— Sim, senhor. Enquanto os quarenta homens assumiam as suas posições atrás de Macro, o centurião desembainhou a espada.
— Mantenham uma formação apertada, até eu dar ordem de formar em linha. Nessa altura, ajam depressa, rapazes. As nossas vidas dependem disso.
Vamos!
Macro lançou-se numa corrida ritmada, as botas a martelarem o solo seco; as hastes das ervas raspavam-lhe as canelas enquanto ele conduzia os seus homens diretamente para os soldados que compunham o grupo
da lenha e os cavaleiros que se aproximavam. Como o Sol já tinha desaparecido, o tom avermelhado que ele dera à paisagem e as longas sombras daí resultantes também se tinham desvanecido, e na planície
reinava a penumbra do crepúsculo. Percorreram mais de duzentos passos antes de serem alcançados pelos mais velozes dos homens em fuga. Sem interromper o passo, Macro berrou-lhes uma ordem rápida para
continuarem e se juntarem à coorte. Cinquenta passos adiante vinha o resto do grupo, a correr a toda a velocidade, mas alguns dos homens menos capazes de acompanhar o passo tinham ficado para trás. Muito
atrasado vinha um homem isolado, a coxear, como se tivesse torcido o tornozelo.
O pretoriano ouviu o som dos cascos a aproximarem-se, e virou-se para ele nos últimos momentos. Um rebelde de peito nu lançou a sua lança de caça contra o alvo, e apanhou o romano em cheio no ventre.
O impacto fê-lo abrir os braços, ao mesmo tempo que se dobrava sobre a folha larga da ponta da lança, um momento antes de esta lhe rasgar as costas da túnica. O pretoriano desapareceu de vista, caindo
no meio das ervas, enquanto o cavaleiro detinha a montada e recuperava a lança com um puxão, antes de a voltar a cravar na sua vítima, para acabar com ela. Por fim levantou ao céu a ponta ensanguentada
e lançou a montada em busca de nova presa.
Embora se sentisse tentado a aumentar a velocidade, Macro sabia perfeitamente quão importante era manter a formação e não chegar junto ao inimigo com os homens tão fatigados que não conseguissem combater
em condições.
Além disso, já tinha percebido que iam ganhar a corrida desesperada para alcançar o grosso do grupo em fuga. À medida que se aproximavam, Macro lançou-lhes uma ordem:
— Formem na retaguarda! À retaguarda! Os primeiros dos homens passaram de um lado e de outro da pequena força de Macro, e ele encheu os pulmões de ar antes de soltar uma nova ordem:
— Alto! Os quarenta homens que o seguiam detiveram-se, e ficaram a aguardar novas indicações, de respirações pesadas.
— Formar cunha! Os homens avançaram de um lado e de outro, colocando os escudos em ângulo contra o inimigo, e baixando as pontas das lanças na direção dos rebeldes que avançavam. O que tinha em mente
era difícil de concretizar, e nada tinha de ortodoxo, mas naquele momento era tudo o que lhe ocorria para se salvar, bem como aos seus homens. Os últimos dos fugitivos arrastaram-se ao longo da formação,
cerca de vinte passos à frente do primeiro dos cavaleiros, debruçado sobre o pescoço do seu cavalo, já preparado para desferir um golpe fulminante com a lança. Macro sentiu uma ponta de desdém profissional
ao ver a cena. Aquela pega na lança denunciava um amador. Ergueu o escudo de forma a que a orla arredondada lhe cobrisse o pescoço e o queixo, e levou atrás o braço com a espada, pronto a executar uma
resposta.
A crista transversal do capacete de Macro, bem como a posição que ocupava na pequena formação romana, precisamente na ponta, identificavam-no claramente, e o cavaleiro puxou pelas rédeas para alterar
a direção da montada, de modo a ir contra ele. Macro firmou o pé direito mais atrás, e preparou-se para absorver o impacto. Passou-lhe pelos olhos um faiscar metálico, e a ponta da lança atingiu-lhe o
escudo num ponto alto, obrigando a orla a embater contra a proteção da testa do capacete de Macro, com um estrondo forte. O golpe não tinha força suficiente para rasgar o escudo, e foi desviado sem perigo
para a esquerda, abrindo-lhe assim imenso espaço para ele poder penetrar na abertura desprotegida do braço da lança do adversário. O cheiro acre do cavalo encheu-lhe as narinas, e o flanco do animal fez
pressão contra o seu ombro, quase o desequilibrando. Mas as capacidades de Macro em combate eram inigualáveis, e ele rapidamente ajustou a postura, colocando todo o peso por trás do braço com que empunhava
a espada e fazendo a lâmina inclinar-se para cima, apanhando o dorso do rebelde que o dominava. Sentiu o impacto brusco, o músculo e ossos a cederem à medida que a ponta da espada rasgava os órgãos vitais
do adversário. Macro torceu o pulso, para um lado e outro, e puxou a lâmina para trás. O inimigo soltou um grunhido de dor e puxou violentamente pelas rédeas para se libertar do romano que o feria. O
cavalo reagiu mal e abanou a cabeça em protesto, antes de sucumbir à pressão do freio e se desviar para o lado. O cavaleiro oscilou na sela, recompôs-se, e trotou para longe, a lança ao lado, mas já sem
capacidade para a manejar.
Macro recuperou a posição de combate e olhou para os dois lados. Havia mais rebeldes montados a aproximarem-se da formação, animados pela perspetiva de defrontar o inimigo, mas a linha eriçada de lanças
que se lhes apresentava fazia com que a coragem da maior parte deles se desvanecesse no último momento. Alguns tentaram realmente carregar sobre a formação dos pretorianos, desferindo golpes sobre as
hastes das lanças, tentando desviá-las de forma a poderem entrar nas linhas romanas, mas tal gesto limitava-se a expô-los aos golpes de lança dos pretorianos dos dois lados. Um dos cavaleiros conseguiu
forçar a montada até à linha, apesar dos protestos do animal, que resfolegou em agonia quando uma lança lhe trespassou o pescoço. Empinou-se e projetou o cavaleiro, que caiu pesadamente sobre as costas
mesmo aos pés de um pretoriano; este aplicou-lhe um pontapé na cabeça antes de lhe rasgar a garganta com um decidido e selvagem golpe.
Um olhar rápido sobre o ombro revelou a Macro que todos os fugitivos já se encontravam a salvo na formação, e que a retaguarda da cunha estava fechada.
— Rapazes, mantenham a formação! E à minha ordem... Recuar! Os pretorianos começaram a recuar na direção do resto da coorte, mantendo escudos e lanças apontados ao inimigo. Os cavaleiros rodeavam-nos
por todos os lados, avançando e tentando atingir os romanos com as suas lanças, mas sem grandes resultados. Macro estava confiante de que as fileiras cerradas dos seus homens eram capazes de evitar com
facilidade os avanços dos homens montados. A verdadeira ameaça provinha dos rebeldes a pé, que rapidamente se aproximavam da formação. Esses teriam a possibilidade de enfrentar os romanos mais de perto,
e ao mesmo tempo fariam diminuir a velocidade da retirada.
A cunha estava a cerca de cem passos da coorte quando os primeiros peões surgiram por entre os cavaleiros e se lançaram contra os escudos romanos. Eram homens de aspeto selvagem, com cabelos longos e
atados. Muitos exibiam barbas, que ajudavam à aparência selvática, reforçada pelos rugidos e gritos de fúria. Atiraram-se aos romanos, com lanças e machados, e alguns até mesmo com espadas recurvas, que
tinham uma lâmina pesada na ponta e provocavam terríveis feridas se atingissem um adversário com força.
Um jovem com uma túnica de xadrez, que nem idade tinha para ser um recruta das legiões, irrompeu entre dois cavalos e lançou-se sobre Macro com uma lança de caça aperrada nas duas mãos. A lâmina em forma
de folha atingiu a orla do escudo do centurião e foi desviada. Este adiantou-se para se aproximar do adversário e o derrubar, como fizera com o cavaleiro. Mas o jovem manejou rapidamente a lança, rodando
os pulsos de forma a prender o escudo num gancho da lança, antes de puxar pela haste com toda a força, fazendo o escudo rodar e Macro perder o equilíbrio, de tal forma que o centurião se viu obrigado
a rodar por instinto para se manter de pé. Ao mesmo tempo respondeu com o braço esquerdo, tentando evitar que o escudo lhe fosse arrancado das mãos. Durante alguns momentos os dois lutaram um contra o
outro, e por fim Macro recorreu à sua maior força e, com um rugido, conseguiu recuperar a posse do escudo, puxando o jovem para a sua frente, antes de lhe dar com a guarda da espada na parte lateral do
crânio.
Tamanho golpe teria deixado um homem comum desacordado, mas o crânio do rebelde era mais espesso do que era costume, e ele limitou-se a cambalear com uma expressão atordoada, abanar a cabeça e voltar
a atacar Macro, golpeando com a lança, com toda a sua força. Desta vez Macro aparou o golpe, fazendo a lança baixar, e usou o gancho para lhe dar vantagem e atirar o escudo contra o peito do jovem, obrigando-o
a recuar. Ele cambaleou alguns passos, e por momentos o instinto de Macro disse-lhe para avançar e acabar com o inimigo. Mas então recordou-se de que estava numa formação, e que era o oficial que a comandava,
e que devia dar o exemplo, pelo que voltou à sua posição, enquanto a cunha continuava a recuar à luz cada vez mais desvanecida.
Os pretorianos viam-se agora obrigados a combater a cada passo, com armas a embaterem nos escudos enquanto trocavam golpes com os rebeldes. O armamento, disciplina e treino davam-lhes uma clara vantagem
sobre os guerreiros tribais de equipamento ligeiro, mas não faziam deles invulneráveis, e o primeiro dos pretorianos tombou depois de receber um golpe de lança na coxa. O soldado coxeou, o sangue a jorrar
da ferida. Enquanto os camaradas fechavam a brecha, ele passou a lança para a mão que segurava o escudo e pressionou a ferida com a outra mão, mas o sangue continuou a correr por entre os dedos e à volta
deles a cada batida do coração, já que a lâmina tinha atingido uma artéria. Dois dos homens do grupo da lenha seguraram-no de pé no centro da formação, enquanto a cunha avançava lentamente pela planície
coberta de erva. Mas antes de terem percorrido dez passos já o homem tinha perdido demasiado sangue, e eles pousaram-no no solo. Um pegou no escudo e avançou para a linha da frente, enquanto o corpo abandonado
era deixado à mercê dos rebeldes, que se concentraram sobre ele, a golpear e cortar o odiado romano, apesar de ele já estar morto.
Outros homens foram feridos e levados para o centro da formação enquanto esta se aproximava do resto da coorte, mas Macro percebeu que ele e os seus homens iam conseguir alcançar o grosso da força. Recuou
e ordenou aos pretorianos que cerrassem as fileiras. Era o momento de avaliar a situação e estar pronto a manobrar assim que se reunisse com o resto da coorte.
— Senhor! — gritou uma voz ali perto. — Olhe para ali! Fogo! Macro virou-se e viu que as fileiras mais próximas da coorte se recortavam a escuro contra o brilho de labaredas por trás delas, na área onde
tinham estado as fogueiras. Algum idiota descuidado deixara cair material combustível ao pé dos fogos quando o alarme tinha sido dado, calculou o centurião. Ou então fora um golpe de vento, ou alguma
fagulha que tinha sido projetada para cima da erva seca. Pouco importava. O incêndio alastrava enquanto ele olhava, e as línguas de fogo amarelo e vermelho subiam a dançar para o céu crepuscular.
— Oh, merda... Era mesmo o que nos faltava.
A cunha alcançou a coorte, e os homens, depois daquele recuo sob permanente ataque dos rebeldes, inseriram-se nas fileiras, e os feridos foram levados para a retaguarda, mais próxima do fogo que progredia
rapidamente. Macro viu o centurião Placino a dirigir duas secções de homens que tentavam apagar as chamas, enquanto o resto dos seus camaradas mantinha os atacantes à distância. Macro correu até junto
dele.
— Por Júpiter, o que é que se passa? Placino fez uma continência rápida.
— Uma das pilhas de lenha pegou fogo, senhor. Quando encontrar o imbecil responsável pela asneira, ele vai desejar nunca ter nascido.
— Esquece isso por agora — ripostou Macro bruscamente. Via o incêndio a espalhar-se rapidamente pela erva seca, e a posição romana já estava envolta em pesados rolos de fumo. — Não podemos ficar aqui,
ou arriscamo-nos a queimar-nos. De qualquer maneira, o prefeito queria que nos recolhêssemos à aldeia. Vamos tentar manter esta formação em caixa enquanto nos movemos. Manda esses homens de volta à linha,
e prepara-te para avançar.
— Sim, senhor. Macro deixou-se ficar ali sozinho, a curta distância da orla do incêndio, a sentir o calor a bater-lhe na pele nua. À sua volta, o combate alastrava para os flancos da coorte, à medida
que os rebeldes se espalhavam como água a rodear uma rocha. Respirou fundo e tossiu de imediato, por ter inalado o fumo acre.
Tossiu de novo e tentou limpar os pulmões e respirar ar mais puro.
— Segunda Coorte! Em formação de caixa, à minha ordem, retirar para a aldeia! — Deu aos homens um momento para se prepararem, e depois gritou: — Em frente!
Foi nesse momento que se apercebeu da loucura que representava aquela ordem. Não havia forma de manobrar sobre as chamas que alastravam a toda a velocidade. Para isso, teriam que romper a formação. Macro
amaldiçoou-se e voltou a encher os pulmões para lançar novas ordens.
— Alto! Por centúrias...! Retirar para a aldeia! O retângulo começou a desfazer-se, à medida que cada uma das seis centúrias desenhava a sua própria formação defensiva em torno do estandarte. Os vagões
ainda em estado de se moverem foram rodeados pelos homens de Petílio, enquanto os condutores se debatiam para controlar as mulas, assustadas pelo barulho e pelas chamas. Macro correu a juntar-se à Primeira
Centúria, no flanco mais próximo da aldeia. Pelo caminho havia uma faixa de ervas em chamas, e ele teve que a rodear, cerrando os olhos perante o calor que lhe queimava a pele. Um vulto surgiu entre ele
e a sua unidade, e Macro levantou o escudo e a espada quando o adversário, um rebelde entroncado com uma túnica manchada de sangue, fez rodar um machado de cabo longo sobre a cabeça, descendo-o na direção
do romano. Macro mal teve tempo para dar um salto para o lado, e a cabeça do machado abateu-se sobre a erva e o solo, fazendo saltar estilhaços para todo o lado. Antes que o homem conseguisse recuperar,
Macro adiantou-se e lançou todo o peso por trás do escudo, embatendo no inimigo e empurrando-o na direção das chamas. Continuou a avançar, até mesmo quando as chamas começaram a lamber-lhe as botas, e
deu um último impulso de forma a fazer o rebelde cair para o meio das labaredas com um grito de pânico. Macro recuou rapidamente, usando o escudo para se proteger do calor até se afastar o suficiente.
O outro homem tinha-se ainda conseguido levantar no meio das labaredas que se erguiam até duas vezes a sua altura, o cabelo e a túnica já a arderem, a boca aberta num grito aflito. Correu até à orla das
chamas e lançou-se para o meio da confusão, aceso como uma tocha.
Macro continuou a correr, e juntou-se aos seus homens, formados em quadrado. Deu de imediato ordem para seguir. Começaram a avançar, afastando-se do incêndio, enquanto o inimigo continuava a lançar-se
sobre eles, usando as lanças, trocando golpes desenfreados, antes de voltar a recuar para longe do alcance das lanças dos pretorianos.
Entretanto, as chamas espalhavam-se ferozmente pelo capim seco, enquanto romanos e rebeldes continuavam a refrega e tentavam manter-se longe do fogo. A centúria de Porcino vira-se obrigada a deter-se,
já que tinha o caminho bloqueado pelas chamas, e os rebeldes a pressionavam e forçavam a encolher-se. Os homens estavam lentamente a ser empurrados para as chamas, e o brilho iluminava-os de forma crua.
Macro observava-os quando a centúria se desagregou, e os homens começaram a tentar rodear as chamas e fugir, individualmente ou em pequenos grupos, tentando cobrir-se uns aos outros. A maior parte do
grupo rodeou o centurião e o estandarte, e tentou abrir caminho por entre as esparsas fileiras do inimigo.
Depressa um novo som se juntou ao crepitar e rugir das chamas: os feridos, espalhados pela erva, começaram a soltar apelos desesperados por ajuda, e gritos atormentados de agonia, quando as labaredas
se aproximaram e ameaçavam queimá-los vivos. Porém, no meio do combate frenético que se travava sob os reflexos avermelhados do incêndio, e por entre os turbilhões de fumo sufocante, não havia qualquer
hipótese de lhes dar atenção. A maior parte dos homens de Porcino conseguiu juntar-se às outras centúrias, e a expressão do centurião era feroz quando levou, por fim, o seu grupo até às linhas da centúria
de Macro.
— Bom trabalho, Porcino! — saudou-o Macro. — Salvaste o estandarte. Grande esforço.
Porcino olhou em volta, viu o porta-estandarte, e assentiu, com ar fatigado e desinteressado.
— O resto dos meus homens? — A maior parte safou-se. Mas ainda não estamos longe do perigo.
Fagulhas dançavam pelo ar no meio da escuridão crescente, e desciam para atear novos focos noutras zonas da erva na planície em redor, de tal forma que toda a área começava a tomar a aparência de um mar
de chamas. Para alívio de Macro, os rebeldes, conscientes da ameaça que partilhavam com o inimigo, começavam a desmobilizar para escapar às chamas. Entretanto, os pretorianos mantiveram a formação e marcharam
a passo regular, afastando-se do fogo e aproximando-se da aldeia situada na colina, já a curta distância. Alguns dos mais persistentes e coriáceos dos rebeldes mantiveram-se a par deles, continuando a
flagelar os romanos com lançamentos de funda ou pedras bem atiradas, mas a maior parte tinha-se já fundido na escuridão reinante.
À medida que a Primeira Centúria começava a subir a encosta que levava ao portão da aldeia, Macro lançou um olhar sobre os fogos que se tinham propagado a partir da zona onde a coorte instalara o acampamento.
Àquela distância, o rugido das chamas já mal se ouvia, mas os gritos estridentes dos feridos, e dos que já tinham sido alcançados pelas chamas, atravessavam a noite e faziam gelar-lhe o coração. Embora
fossem sobretudo gritos vindos de vozes inimigas, Macro sentiu uma tremenda pena deles. Homem algum devia morrer daquela forma. Depois, virou-se para a aldeia e interrogou-se sobre o que teria sucedido
a Cato. Os cavalos continuavam à guarda de alguns homens mesmo à entrada da aldeia, mas não havia sinal do prefeito nem dos outros homens que o tinham acompanhado para o interior da povoação, e Macro
sentiu as tripas torcerem-se com a ansiedade perante as novas ameaças que os fados tinham reservado aos homens da Segunda Coorte de pretorianos.
Por Hades, onde está o resto da coorte? — indagou Cristo, agarrado aos joelhos e a baloiçar para trás e para a frente, lentamente. — Ainda vamos ter que ficar aqui escondidos muito tempo antes de eles
se atirarem àqueles cabrões nos telhados?
Cato estava sentado, de costas apoiadas a uma roda e de joelhos encolhidos. Com uma mão segurava a pega do escudo, que descansava sobre o solo ao seu lado. A outra fechava-se no punho da espada, que fazia
oscilar de um lado para o outro sobre o solo arenoso.
— Senhor, isso não é boa ideia. — Metelo acenou na direção da espada. — Faz a ponta ficar embotada.
— O quê? — Cato ergueu o olhar, e depois assentiu. — Oh, sim, tens razão.
Limpou os grãos de areia da ponta da espada e embainhou-a. O centro da aldeia mantinha-se tranquilo desde havia algum tempo, já que os romanos estavam protegidos e o inimigo tinha concluído que não valia
a pena desperdiçar esforços a lançar metralha e outros projéteis.
— Onde estão os nossos homens? — resmungava Cristo.
— A coorte tem outras questões a resolver — respondeu Cato, com tranquilidade. — Estou seguro de que o centurião Macro nos virá auxiliar assim que tiver recuperado todos os membros do grupo. É só uma
questão de tempo.
Até lá, tribuno, apreciaria que guardasses as tuas preocupações para ti mesmo.
Tenta dar um bom exemplo aos homens.
Cristo virou-se para o encarar.
— Eu nunca quis ser um soldado.
— Seja como for, usas o uniforme, e aceitas o salário que o Imperador te paga. Assim o escolheste. Como tudo o resto na tua vida.
Um esgar nervoso cruzou a expressão do tribuno, e ele engoliu em seco.
— O que quer dizer, senhor? Cato nada lhe disse por momentos. A tentação era grande, de cravar a faca e de a torcer na ferida. O homem bem o merecia. Mas aquele não era o tempo nem o lugar para uma confrontação
que nada tinha a ver com o perigo que os ameaçava de perto. Isso poderia vir mais tarde, quando — se — tivessem escapado daquela armadilha.
— Só aquilo que disse. Todos nós temos que assumir a responsabilidade pelas consequências das nossas escolhas, tribuno. Escolheste tornar-te um soldado. Escolheste aceitar a patente de tribuno. E este
é o preço que tens de pagar por isso. Percebido?
Cristo hesitou, e acabou por anuir com um gesto da cabeça.
— Ótimo, portanto guarda os teus medos para ti e trata de garantir que os homens sob o teu comando têm o líder que merecem.
— Sim, senhor. Cato olhou em volta, para os outros homens. Para lá dele, de Cristo e de Metelo, estava ali também o centurião Pulcher, de rosto fechado e braços cruzados, oito homens do trem de bagagens
e o contingente montado, vinte e oito no total. Três dos condutores de mulas estavam feridos. Todos se acotovelavam entre dois dos vagões, com escudos a cobrir as aberturas nas pontas, e outros escudos
por cima das cabeças para os proteger das rochas e metralha lançadas pelos rebeldes. A luz era escassa, e a praça estava nas trevas. De vez em quando ouviam-se gritos dos rebeldes, mas para lá desses
momentos havia uma calmaria tensa que Cato considerava profundamente perturbadora. Sobretudo porque não tinha ideia de como as coisas estariam a correr a Macro e ao resto da coorte. O bramir de algumas
das mulas, feridas, prosseguia ininterrupto, e começava a afetar os nervos de Cato.
— Estão a ver aquilo? — disse um dos homens. — Além, fumo. Cato ergueu-se apenas o suficiente para espreitar por cima do escudo, pela fresta entre os dois vagões. Acima da linha dos telhados, conseguia
notar uma mancha no céu pálido a ocidente.
— É um incêndio — disse outro dos homens. Metelo fungou.
— Claro que é um incêndio, cretino. O fumo e o fogo andam de mãos dadas. A questão é, o que significa? Será que os rebeldes ainda estão nos telhados? Alguém consegue ver?
O capacete de um dos homens feridos estava sobre o chão, e Cato apontou para ele.
— Passem-me isso. Os pretorianos fizeram-lhe chegar o capacete, e ele voltou a empunhar a espada. Equilibrou o capacete na ponta do gládio e usou a outra mão para colocar as correias de aperto numa posição
que amparasse o capacete, e depois respirou fundo.
— Bom, cá vai.
Levantou-se lentamente, e empunhou o capacete, fazendo-o passar entre dois dos escudos que o protegiam, erguendo-o no ar, de forma a tornar-se claramente visível a quem quer que estivesse nos telhados.
Não houve reação. Cato aguardou um momento, e depois começou a mexê-lo de um lado para o outro, como se estivesse a observar o que se passava na aldeia. No instante seguinte ouviu-se um estrondo, quando
um pedaço de metralha se abateu sobre um dos escudos próximos e saltou sobre a crista do capacete. Cato baixou o braço e encolheu-se sob a parede de escudos.
— Ainda lá está alguém. Portanto, ficamos aqui mais algum tempo.
— Senhor! — gritou um dos homens, na ponta do espaço apertado. — Estou a vê-los. Há um grupo na orla da praça.
— O que estão eles a fazer? O pretoriano observou com cuidado por entre os escudos antes de voltar a falar.
— Nada... Espere, há mais a aparecer, vindos de outra rua.
Metelo deu um toque a Cato.
— Acho que estão a preparar um ataque. Enquanto têm oportunidade de nos varrer, antes que o centurião Macro chegue cá.
— Faz sentido. E se já tiverem esgotado as munições para lançar, terão que vir lidar connosco homem a homem. — Cato pensou furiosamente. — Se assim for, quero três homens em cada vagão. Tu, Metelo, comandas
um e tu, Pulcher, comandas o outro. Os outros cobrem as pontas. Se perdermos algum dos vagões, ou se eles conseguirem penetrar pelas pontas, estamos todos mortos. Não teremos forma de escapar da aldeia,
e não teremos para onde recuar. Ou aguentamos aqui, ou morremos. Resistam o mais que puderem e, se tiverem que tombar, levem convosco o maior número possível destes cabrões. Tão depressa não esquecerão
os pretorianos.
Não havia tempo para mais encorajamento, já que ouviram um grito vindo do canto da praça. Cato agachou-se, avançou até à extremidade de um dos vagões e espreitou cautelosamente sobre os escudos. Um dos
rebeldes tinha-se adiantado a um grupo dos seus camaradas e, à medida que eles entravam na praça, ia-os acicatando, e preparando para o momento de se lançarem sobre o pequeno grupo de romanos. Vestia
uma túnica de xadrez preto e vermelho, e usava um capacete de legionário, ao qual tinha prendido uma vasta crista vermelha. Desferia estocadas com a espada no ar e exortava os seguidores, que lhe devolviam
os gritos, até todos se unirem num urro final, momento em que levantaram as armas ao ar e as exibiram perante o inimigo. As suas vozes ecoaram nos edifícios circundantes, aumentando o barulho. Cato olhou
em redor e viu Cristo a ranger os dentes, os músculos do queixo a trabalhar sem parar. Alguns dos outros homens também demonstravam os nervos que sentiam através de pequenos tiques, e Cato gastou um momento
a refletir na peculiar solidão e intimidade dos soldados no momento anterior à batalha.
O líder rebelde lançou um novo urro com toda a força e virou-se para os vagões, antes de começar a bater com a folha da espada no lado do escudo. Os que empunhavam escudos seguiram o ritmo, e o som que
assaltava os ouvidos de Cato e do seu grupo foi aumentando até se tornar insuportável. Só então o homem se calou, antes de erguer a espada e a fazer descer em arco, apontando para os romanos, ao mesmo
tempo que se lançava em corrida.
Cato levou a mão em concha à boca para garantir que todos o ouviam.
— Aí vêm eles! Todos às vossas posições! Metelo e Pulcher conduziram os homens destacados para os vagões respetivos, treparam pelos lados amolgados e estilhaçados, e prepararam as lanças. Cato tomou o
seu lugar na extremidade mais próxima da massa inimiga, ergueu o escudo e aperrou a espada, a ponta a projetar-se para lá do limite do escudo, o braço fletido e pronto para desferir golpes com toda a
sua força. Ordenou a Cristo que se colocasse ao seu lado, e por trás deles os pretorianos ergueram as lanças, prontos a atacar por cima das cabeças dos dois oficiais.
Cato cuspiu para limpar a garganta, e lançou um novo brado, com toda a calma que conseguiu reunir:
— Rapazes, cumpram o vosso dever! Por Roma! À sua frente, na penumbra da praça da aldeia, avançava uma horda de faces selvagens, olhos raiados de sangue e bocas escancaradas no meio de espessas barbas
hirsutas que lhes davam uma aparência tão bárbara como a de qualquer outro inimigo que já enfrentara. Alguns dos homens, com armamento mais ligeiro e sem armadura, tinham ultrapassado o líder e corriam
para os vagões, ansiosos por colherem a honra de desferir o primeiro golpe. Cato preparou-se para o impacto da carga, forçando as botas contra a terra batida do solo da praça e adiantando ligeiramente
o pé esquerdo. À sua direita, ouviu Cristo a oferecer em voz alta uma rápida prece.
— Ó Júpiter, o maior e melhor, salva-me.
No instante seguinte, o primeiro inimigo tentou golpear Cato com uma espada longa, e ele adiantou o escudo para enfrentar o pesado golpe, a que se seguiu de imediato o torso do rebelde a embater com o
ombro no escudo. Cato recuou, mas tinha treinado muitas vezes aquela situação, e combatera as vezes suficientes para absorver o embate quase por instinto, manter o equilíbrio e depois revidar. Abriu-se
um pequeno espaço entre ele e o seu adversário, e Cato aproveitou para aplicar uma estocada com a espada nas entranhas do homem, com toda a força que encontrou, torcendo a lâmina para garantir que não
ficava presa no corpo do inimigo quando a puxasse de volta. O golpe só serviu para deixar o homem furioso, e ele agarrou a orla do escudo com a mão esquerda, enquanto levantava a espada para desferir
novo golpe, apesar do sangue que corria e da massa cinzenta dos intestinos que ameaçava sair pelo rasgão que tinha no ventre. Cato não lhe deu oportunidade para continuar a lutar; desferiu um empurrão
com o escudo, abalando o homem e partindo-lhe o nariz. Esta lesão menos importante teve mais efeito do que a ferida letal que recebera antes, e o rebelde recuou, com uma mão no nariz, enquanto o sangue
lhe escorria das narinas e se espalhava sobre a túnica.
Cristo cambaleou contra Cato ao dar um passo ao lado, para evitar o golpe de um machado.
— Foda-se, levanta o escudo! — gritou-lhe Cato. — Bloqueia o golpe! Cato empurrou o tribuno para longe e preparou-se para enfrentar novo opositor; uma lança foi atirada diretamente contra os seus olhos.
O instinto fê-lo virar a cabeça e dobrar-se para o lado; a ponta da arma resvalou pela guarda lateral do capacete, e o impacto provocou-lhe uma dor intensa no nariz. Cato rodou a espada para cima, e,
mais por sorte do que por boa decisão, o gume apanhou os nós dos dedos do rebelde, cortando-lhe a pele e esmagando os ossos, de tal forma que ele perdeu a capacidade de segurar a lança e a ponta caiu
para o solo. Um poderoso empurrão com o escudo derrubou o homem, e deu a Cato um momento para recuperar o fôlego.
Os músculos do pescoço doíam-lhe com o mais pequeno movimento da cabeça, e ele debateu-se para se concentrar. Os rebeldes tinham cercado os dois vagões, e o embate e choque das armas, os grunhidos e gritos
dos combatentes enchiam-lhe os ouvidos. O homem cuja mão Cato tinha lacerado tentava recuar da zona na traseira dos vagões, mas os seus camaradas não lhe deram atenção, e pressionaram para avançar, forçando-o
a ir outra vez de encontro a Cato e ao seu escudo. Ao espreitar por cima da orla, Cato viu o rosto do outro a centímetros do seu; alguém aproximadamente da mesma idade que ele, com espessas sobrancelhas
escuras e caracóis gordurosos de cabelo escuro despenteado. Os olhos do homem estavam esbugalhados com uma mistura de terror e raiva, e os lábios mostravam-se arreganhados, revelando dentes estragados
fixos num rosnar selvagem. O rebelde conseguiu libertar a mão ilesa e os dedos fecharam-se em torno da orla do escudo de Cato, e ele tentou arrancá-lo das mãos do romano. Cato aplicou-lhe uma cabeçada
com o capacete, cerrando os dentes para enfrentar a terrível dor no pescoço que o movimento lhe provocou.
A placa metálica da guarda da testa rasgou a pele do rebelde. Cato insistiu, alargando a ferida, e o sangue correu sobre as pálpebras do homem, cegando-o.
Ainda assim, ele não desistiu de puxar o escudo, e conseguiu mesmo expor o rosto de Cato, o suficiente para tentar aplicar-lhe uma dentada. O bafo quente e a cheirar a alho atingiu Cato, e ele baixou
a cabeça e voltou a usar o capacete para castigar o outro, enquanto aplicava estocadas rápidas e decididas no ventre do homem. Cada uma delas provocava um grunhido no adversário, mas ele não tinha forma
de escapar, já que estava preso contra o escudo de Cato e obrigado a receber cada golpe da espada.
Cato fletiu os músculos, deu meio passo atrás e depois lançou todo o peso para a frente, massacrando a vítima com o escudo e obrigando-o a meter-se por entre os homens que o seguiam. Quando Cato recuou
de novo, o rebelde caiu de joelhos. Uma mão agarrou-lhe o colarinho da túnica e empurrou-o para o lado com rudeza, para dar espaço a um novo adversário. A dor no pescoço de Cato era terrível, e a visão
toldou-se-lhe momentaneamente, enquanto ele lutava contra a vontade de vomitar. À sua frente erguia-se um verdadeiro gigante, uma meia cabeça mais alto do que ele, e com uma constituição tão sólida como
a de Macro. Usava um capacete de legionário e uma cota de malha, e apresentou à sua frente um escudo arredondado, enquanto preparava um golpe descendente. A lâmina rebrilhou ligeiramente na fraca luz
reinante, e Cato mal conseguiu colocar o seu escudo em posição de bloquear o corte. Mas o poder brutal por trás daquele golpe foi suficiente para rasgar a orla e estilhaçar a armação de madeira do escudo
ao longo de vários centímetros.
A lâmina ficou alojada na madeira e, quando o rebelde tentou libertá-la, quase arrancou a pega do escudo dos dedos dormentes de Cato. O prefeito mal conseguiu aguentar-se, enquanto sentia todo o braço
a ser puxado. A espada dançava debaixo dos esforços do inimigo para a recuperar. Depois, o homem largou um urro de frustração e carregou sobre Cato, fazendo com que o escudo se abatesse sobre ele com
toda a intensidade; os dedos de Cato perderam a força e ele largou o escudo e tombou por entre os pretorianos que o rodeavam, caindo de costas. O gigante largou a espada, ainda cravada no escudo, e atirou
tudo para o chão, enquanto empunhava uma adaga de lâmina comprida e se debruçava sobre o aturdido oficial romano, para o apunhalar antes que os seus camaradas acorressem a protegê-lo.
— Nem penses nisso, cabrão! — gritou Pulcher, de cima do vagão. O rebelde olhou para cima no preciso momento em que a ponta da lança do centurião se cravava profundamente na carne macia sobre a sua clavícula.
O gigante soltou um urro de choque, fúria e agonia. Cambaleou para o lado, empurrando Cristo contra a parede lateral do vagão, e Pulcher fez a ponta da lança dançar no interior do corpo do homem, como
se estivesse a remexer um líquido viscoso num barril, antes de a puxar e libertar, fazendo sair um tremendo jorro de sangue e carne moída. O rebelde tropeçou enquanto recuava, os membros a tremer, antes
de tombar de joelhos, a curta distância do vagão. O rosto mostrava-se distorcido pela dor, e ele mexeu os lábios grossos, lançando um escarro sangrento contra os rostos dos inimigos, antes de cair de
borco no solo. Em torno do corpo instalou-se um inesperado momento de paz, até que Pulcher gritou:
— Estão à espera de quê? Porra, fechem a brecha! Dois pretorianos avançaram de imediato para substituir Cato e Cristo, e encostaram os escudos, enquanto preparavam as lanças para golpear o inimigo.
A perda do seu gigantesco camarada tinha desanimado os rebeldes das primeiras linhas, mas os que estavam mais atrás e não tinham testemunhado a sua morte forçaram a passagem, empurrando os da frente contra
as aceradas lanças que os esperavam.
Cato apoiou-se nos cotovelos para se levantar. O impacto da queda tinha-lhe tirado o fôlego, e ele debateu-se para respirar, ainda em dificuldades.
Um dos pretorianos baixou a lança e debruçou-se para o ajudar a levantar-se.
— Senhor? Está ferido? Cato abanou a cabeça, e estava a ponto de ordenar ao homem que pegasse na lança e se juntasse ao combate quando o queixo do pretoriano se escancarou de repente, em surpresa. Olhou
para baixo e deparou-se com um tremendo rasgão por cima do calcanhar. Os tendões tinham-lhe sido cortados, e o pretoriano tombou de joelhos. Por trás do romano ferido, na pesada penumbra que reinava por
baixo do vagão, Cato avistou um dos rebeldes que progredia sobre o estômago, a rastejar na sua direção, e a preparar a espada para novo golpe. Cato empunhou a haste da lança e levantou a ponta, dirigiu-a
contra o rebelde e lançou-a com toda a força que conseguiu convocar. A estocada foi aplicada só com uma mão e sem grande poder, mas a ponta trespassou o braço com que o homem empunhava a espada, e ele
recuou rapidamente, rastejando para trás até ficar fora do alcance da lança.
— Sai-me da frente — lançou Cato ao pretoriano ferido, e este fez o que pôde para rebolar para o lado. Isto deu a Cato uma melhor vista do seu alvo, e ele debateu-se para se pôr de joelhos, dobrando-se
e usando ambas as mãos para agarrar o outro. Trocaram golpes e esquivas nas sombras por baixo da galera do vagão, sem que qualquer um deles fosse capaz de ferir o outro.
— Cristo! Aqui. Ajuda-me! O tribuno olhou para baixo com uma expressão admirada perante o pedido do seu superior, que parecia estar a remexer-se por baixo da carroça.
— Agora, porra! — insistiu Cato. Cristo agachou-se e semicerrou os olhos, vendo por fim o inimigo.
Desembainhou a espada, baixou-se e começou a gatinhar na direção do homem.
Apanhado entre duas ameaças, o rebelde aparou o golpe de lança de Cato e virou-se rapidamente para atacar o tribuno, que recuou de imediato; no entanto, o rebelde já não foi a tempo de desviar nova estocada
de Cato, que tinha entretanto aproveitado a ocasião para se aproximar mais. A ponta da lança atingiu-o no lado do queixo e estraçalhou-lhe ossos e dentes, atravessando todo o crânio até ao outro lado
da cabeça. Deixou cair a espada e rebolou para longe, a rastejar por entre as pernas dos rebeldes que combatiam junto às faces laterais dos veículos. Cato acenou um agradecimento a Cristo e fez-lhe sinal
para avançar.
— Ataca-lhes as pernas! O tribuno assentiu e avançou por baixo do veículo, enquanto Cato se esgueirava para baixo do vagão do lado e golpeava os membros que lhe passavam ao alcance, pertencentes a um
rebelde de pernas peludas com uma longa túnica castanha cingida à cintura por uma tira de pano. Cato espetou-lhe a lança na perna e rodou violentamente a haste da arma, antes de a puxar e repetir o gesto,
desta vez nas canelas do homem. O rebelde cambaleou, a sangrar abundantemente, e Cato virou-se de lado e desferiu novo golpe, desta vez nas virilhas de outro inimigo. Foi um golpe superficial, mas o suficiente
para o distrair e permitir ao soldado romano em cima do vagão aplicar um golpe mortal. O homem caiu à frente de Cato, o sangue a espirrar de um rasgão no pescoço.
Ouviu-se um grito furioso e Cato olhou em redor, onde deu com um guerreiro agachado à sua esquerda, um machado já a rodar para vibrar um golpe na sua direção. Cato lançou-se rapidamente para o lado, e
a cabeça cortante assobiou pelo espaço onde ele estivera no momento anterior. Uma vez que tinha sido detetado, já não havia vantagem em manter-se tão escondido para atacar os rebeldes que vinham do flanco,
e Cato recuou, pronto a enfrentar qualquer um que tentasse imitar o homem que ele tinha golpeado na face. Um olhar rápido em redor revelou-lhe que Cristo tinha acabado de abater um homem e cravava a sua
espada nas entranhas do rebelde, que se remexia, impotente, na sombra.
— Olhem! — gritou Metelo. — Os sacanas fogem! E de facto, comprovou Cato, as pernas dos homens ao lado do vagão recuavam, primeiro lentamente e depois mais depressa, em fuga, a correr pela praça escurecida
no centro da aldeia. Rebolou para longe do leito do veículo e levantou-se a custo, apoiado na lança para se suportar melhor. À sua volta os pretorianos respiravam pesadamente, mal conseguindo acreditar
que tinham de facto sobrevivido. Para lá dos que tinham sido feridos na emboscada inicial, mais dois corpos jaziam na outra ponta do vagão que Cato tinha estado a defender. O capacete de um dos homens
estava profundamente retalhado, e da fenda do metal escorregavam sangue e miolos. O outro estava sentado com as costas apoiadas a uma roda, numa poça de sangue, com uma mão a fazer pressão contra o interior
da perna. Cato engoliu em seco e respirou fundo, de forma a conseguir falar em tom calmo.
— Metelo, Pulcher, como estão os vossos homens? — Um ferido — retorquiu Metelo. Pulcher surgiu por cima de Cato, de lança na mão.
— Um morto aqui, senhor.
— O que é que vês daí de cima? Pulcher virou-se e esquadrinhou a praça.
— Eles estão em fuga. Não é grande surpresa, porque aí estão os nossos rapazes.
O som de botas ecoou nos edifícios e cresceu em volume, à medida que os primeiros pretorianos vindos do acampamento entravam a correr na praça, em perseguição próxima aos homens que tinham feito fugir
pelas ruas. Cato abriu caminho pelo meio dos pretorianos na traseira do vagão e avançou para o espaço livre. O terreno em volta dos dois veículos estava pejado de rebeldes mortos e feridos, talvez uns
vinte, e Cato sentiu uma vaga de orgulho profissional pelo comportamento apresentado pelos seus soldados. Fez uma pausa, e olhou para Pulcher.
— Obrigado por me teres salvado a pele há bocado. O centurião manteve o silêncio por instantes, e depois encolheu os ombros.
— Senhor, é um dos nossos. É tudo o que há a dizer. Tão depressa o deixaria morrer a si como a qualquer outro romano.
— Ainda assim, agradeço-te. — Cato fez um ligeiro gesto com a cabeça, e virou-se para outras questões.
Petílio foi o primeiro dos centuriões a chegar à praça, e Cato chamou-o com um gesto.
— Continua atrás deles. Quero a aldeia livre da presença do inimigo.
— Sim, senhor. — Petílio fez uma continência e lançou um sorriso cinzento. — Fico contente por ainda estar entre nós.
— Não tanto como eu. Agora, segue.
Os pretorianos da centúria de Petílio avançaram pelas ruas por onde o inimigo tinha fugido; pouco depois, Macro emergiu de uma abertura entre dois edifícios, à frente dos seus homens. Fez uma pausa enquanto
olhava para a cena da carnificina, que mal se distinguia na escuridão crescente.
— Porra, senhor, que grande confusão em que se meteu aqui.
— Também é bom vê-lo, centurião. Qual é a situação no acampamento? — Já não há acampamento, senhor. Dei ordem para o abandonar pouco depois de o fogo se ter propagado às ervas.
— Fogo? Foi mau? Macro indicou o brilho avermelhado que se via no céu por cima dos telhados no lado sul da aldeia.
— Um incêndio e tanto. Se tivéssemos ficado a tentar combatê-lo, tínhamos ardido todos.
— E o inimigo? — Raspou-se assim que as chamas alastraram. A última vez que os vimos foi quando chegámos à aldeia. Corriam para ocidente. É só limpar a aldeia, e estaremos seguros por esta noite.
— Bom trabalho. — Cato fez um gesto a indicar os vagões e o punhado de mulas que ainda se aguentava sobre as patas. — Mas os danos já foram feitos. Perdemos a maior parte do trem de bagagens e dos abastecimentos
que nele seguiam. Calculo que devemos ter sofrido um bom número de baixas. E perdemos também o elemento da surpresa. Os rebeldes já sabem que estamos a caminho, e sabem quantos somos. — Cato suspirou.
— Macro, meu amigo, temo bem que os nossos problemas estejam apenas a começar.
Tanto quanto posso ver, temos três opções, das quais vou falar daqui
a um momento — anunciou Cato, ao dirigir-se aos seus oficiais e a Cimber, na pequena taberna da praça da aldeia, cerca de duas horas depois de anoitecer, pelo que conseguia calcular. Os vagões ainda em
condições tinham sido trazidos para o interior do portão, e a centúria de Porcino ficara com o primeiro turno de vigia, enquanto o resto da coorte descansava na povoação. A maior parte dos habitantes
locais tinha sido massacrada nas suas próprias casas pelos rebeldes, quando estes tinham chegado, havia duas noites. O punhado de sobreviventes que emergira dos esconderijos depois de os pretorianos terem
expulsado os rebeldes tinha relatado o que sucedera após o ataque inicial. Os locais tinham sido conduzidos à praça e fora-lhes oferecida uma alternativa crua: juntarem-se à revolta, ou morrerem. E assim
as fileiras dos rebeldes tinham aumentado em número, já que alguns se haviam visto forçados a combater os homens de Cato.
O prefeito olhou em volta, avaliando os seus oficiais, antes de continuar.
Sabia que Macro o apoiaria em qualquer circunstância, sem levantar questões.
Nos veteranos também podia confiar. Cato tinha todo o direito de tomar uma decisão sem se preocupar em justificá-la e em explicar o seu raciocínio, mas estava no comando da coorte havia ainda poucos dias,
e precisava que os seus oficiais compreendessem tanto a situação como a sua forma de pensar. Além disso, era mais uma oportunidade para ficar a conhecê-los melhor, ao avaliar a reação de cada um àquela
reunião. Ordenou os pensamentos, e começou.
— O recontro de hoje prova até que ponto a rebelião se espalhou. Até muito mais longe do que antecipávamos. E com a rapidez suficiente para me apanhar de surpresa, razão pela qual não dei ordem para construir
um campo ao fim do dia de marcha. Assumi a ideia de que a necessidade de rapidez justificava tal risco. Estava enganado, e devia ter escutado os conselhos do centurião Macro nessa matéria. Todos sabemos
que Roma mostra pouca clemência relativamente aos que erram por não seguirem os procedimentos quando avançam por território inimigo. A responsabilidade por termos sido surpreendidos pelo inimigo, senhores,
é toda minha. Dou-vos a minha palavra de que eu, e eu apenas, serei o objeto de qualquer reprimenda ou ação disciplinar que surja em consequência da minha falha na construção de um campo fortificado em
face do inimigo. Partindo do princípio de que sobreviveremos para ver tal dia, claro.
A maior parte dos oficiais sorriu secamente, exceto Macro, que se limitou a cerrar os lábios e a encolher os ombros.
— Culpas e responsabilidade de lado, estamos numa situação difícil. As nossas ordens são de proteger a mina e esperar que o legado Vitélio nos alcance.
Essas ordens foram dadas na presunção de que a revolta ainda estava confinada ao território em redor de Asturica. Tal já não é o caso, como é notório. Eles sabem da nossa presença. Saberão também que
marchamos na direção de Asturica Portanto, terão amplas oportunidades para voltar a atacar-nos, muito possivelmente em muito maiores números, e no terreno da sua escolha. As nossas dificuldades aumentam
devido à perda da maior parte do nosso trem de bagagens.
Graças a esta emboscada, ficámos com as mulas suficientes para puxar apenas três vagões. Quatro, se destacarmos alguns homens para ajudar os animais em terrenos mais difíceis. Isto significa que não podemos
contar com muita largueza no que diz respeito às rações dos homens. E depois, há outra coisa. A refrega desta tarde custou-nos algumas baixas. Centurião Macro, tem os números?
— Sim, senhor. — Macro pegou numa tábua encerada da sacola e ergueu-a à luz de uma lamparina, para ver os números com clareza.
— Dezoito mortos, vinte e três feridos, e doze desaparecidos. Ou capturados, ou perdidos no fogo da planície.
— Pois. — Cato tentou não imaginar o destino horrível desses homens, fosse qual fosse o caso. — O problema são os feridos. Se os levarmos connosco, vão atrasar-nos o avanço. Portanto, tal como disse ao
início, temos três opções. Primeira, colocamos os feridos nos vagões, damos meia-volta e marchamos de regresso a Tarraco até estabelecermos contacto com a coluna principal. Podemos recolher abastecimentos
ao longo do caminho, nas povoações que ainda não foram afetadas pela rebelião. Segunda, podemos aguentar aqui nesta aldeia até que o legado Vitélio nos alcance. Deve haver aqui comida adequada a satisfazer
as nossas necessidades, e podemos fortificar a aldeia de forma a resistir a qualquer ataque por uma força muito maior do que aquela que nos emboscou esta noite. — Cato fez uma breve pausa. — O que nos
leva à terceira possibilidade de ação, ou seja, que cumpramos as ordens, marchando até à mina e assegurando a sua posse até que a coluna principal chegue à região.
Fez um gesto na direção dos oficiais.
— Os vossos pensamentos, meus senhores? Depois de uma breve pausa, foi Pulcher quem tomou a palavra.
— Senhor, as ordens são as ordens. Se nos foi dito que devíamos proteger a mina, é isso que temos de fazer, a não ser que recebamos novas ordens. Nem sei porque é que estamos a discutir o assunto.
— Porque eu assim o desejo — ripostou Cato, de forma clara. — Mais alguém?
Porcino olhou para os outros, e depois inclinou-se para a frente para falar.
— Senhor, quaisquer que tenham sido as ordens, a situação alterou-se.
Como disse, o inimigo sabe da nossa aproximação. Não há mais questão de os apanhar de surpresa. Há fortes possibilidades de virmos a cair noutra armadilha. É óbvio o que temos de fazer. Precisamos de
recuar. Não temos qualquer outra escolha.
— Tens razão, nós não temos qualquer escolha na matéria — comentou Macro. — A decisão cabe ao prefeito. Podemos dar uma opinião, e mesmo assim apenas porque tal nos foi pedido.
Porcino fez menção de compreender a precisão, mas insistiu.
— Senhor, se prosseguirmos no avanço, estaremos a marchar para a morte.
Cato assentiu.
— É muito provável. As hipóteses estão contra nós, mas a verdade é que as apostas são altas. Se o Iskerbeles tomar a mina, o Imperador ver-se-á privado do dinheiro de que precisa para pagar aos seus soldados.
E nós podemos impedir que isso venha a suceder.
— Mas é mais do que provável que os rebeldes já tenham capturado a mina, senhor.
— Isso, não sabemos. Saberemos quando lá chegarmos.
— Se lá chegarmos — interveio o tribuno Cristo.
Cato virou-se para ele, enquanto reprimia o aborrecimento que o comentário lhe causara.
— Sim, se lá chegarmos. E o meu trabalho é garantir que tal vai suceder.
E se alguma coisa me acontecer, o dever de cumprir as ordens que recebemos caber-te-á a ti, na qualidade de oficial mais antigo entre os sobreviventes. Se tu fores morto, o trabalho caberá ao homem seguinte,
ao longo de toda a cadeia de comando. É esse o nosso dever. Por isso nos foi confiada a patente que ostentamos. Que nenhum homem aqui presente deixe de ter isso bem gravado no pensamento.
Cristo mordeu o lábio.
— Dá ideia de que já tomou uma decisão.
Cato franziu o sobrolho e inclinou a cabeça, de forma a mostrar a Cristo que havia um erro na sua frase, que devia corrigir de imediato.
— Dá ideia de que já tomou uma decisão, senhor.
— Sim, já a tomei. Mas preciso que todos compreendam por que razão temos de continuar a avançar, para o caso de alguma coisa me suceder. É imperativo que aceitemos todos os riscos envolvidos nesta progressão
para a mina. E isso vale para todos e cada um de nós... — Cato deixou as palavras assentarem, antes de prosseguir. — Portanto, pela alvorada, quero os feridos instalados nos vagões que nos restam, e que
regressarão a Tarraco. Com eles seguirão a maior parte dos cavalos, e o cofre da coorte. É demasiado pesado para o levarmos e, de qualquer forma, prefiro não correr o risco de permitir que ele caia nas
mãos do inimigo. Os vagões vão precisar de uma escolta. Meia centúria deve chegar.
O centurião Placino comandá-la-á.
Placino assentiu.
— Sim, senhor.
— Entregar-te-ei, antes de partires, um relatório, que darás ao legado. O resto da coorte recolherá os suprimentos que encontrarmos na aldeia e prosseguirá o seu avanço. Dado que a nossa presença não
deixará de ser relatada ao Iskerbeles, não podemos arriscar-nos a prosseguir diretamente para Asturica.
— Cato fez uma pausa, já que tinha reparado que Cimber levantara a mão, e dera meio passo à frente, para se assegurar de que a sua intenção de falar não passava despercebida.
Cato soltou um suspiro de impaciência.
— O que se passa? Enquanto falava, o guia não conseguia esconder o nervosismo, nem cruzar o olhar com qualquer outro dos presentes.
— Prefeito, solicito autorização para regressar a Tarraco com os feridos.
Macro virou-se para ele e fitou-o ostensivamente de alto a baixo.
— A mim, não me pareces estar ferido. Por acaso torceste um tornozelo, ou qualquer coisa do género, enquanto os outros combatiam, hoje à tarde?
Cato viu Cimber retorcer-se de vergonha, enquanto pronunciava a sua decisão.
— Vens connosco.
Cimber levantou então o olhar, e abanou a cabeça.
— Não. Não me pode obrigar. Sou um civil. Um cidadão romano. Conheço os meus direitos.
— Podes queixar-te de mim diretamente ao Imperador, depois, se assim o desejares. Mas terás que ir para o fim da fila, claro.
Cimber não partilhou o divertimento que a observação provocou entre os ocupantes da taberna.
— Não me pode ordenar que siga com a coluna. Já lhe dei toda a ajuda que podia. Fiz a minha parte, e sou livre de partir, se assim o desejar. No fim de contas, não sou um soldado. Não estou sujeito à
sua autoridade.
— Nesse caso, terei que tratar desse assunto. Centurião Macro.
— Senhor? — Incorpore aqui o Cimber no efetivo da sua centúria, como soldado.
Pode atribuir-lhe a armadura e o equipamento de um dos feridos. Deste momento em diante, ficará sujeito a todas as normas disciplinares. Entendido?
Macro sorriu.
— Sim, senhor.
Cato voltou-se outra vez para o guia.
— Bem-vindo à Guarda Pretoriana, Cimber. Estou certo de que nos deixarás a todos orgulhosos.
O queixo de Cimber descaiu, e ele abanou a cabeça.
— Não pode fazer isto! Cato avançou até à frente do outro e olhou-o nos olhos.
— Acabo de o fazer. E como és apenas um recruta acabado de incorporar, perdoo-te a quebra de disciplina, por esta única vez. No futuro chamar-me-ás ”senhor”, e não dirigirás a palavra a um oficial superior,
a não ser que tal te seja solicitado.
Cimber fez menção de voltar a protestar, mas Cato ergueu uma mão para o silenciar.
— Qualquer outro comentário da tua parte constituirá um ato de insubordinação. Centurião Macro, quer dizer-nos o que fazemos com soldados insubordinados?
— Chicoteamo-los, senhor.
— Chicoteamo-los... — repetiu Cato, encarando Cimber sem lhe dar espaço para o evitar. — Percebes?
O rosto de Cimber retorceu-se numa careta de frustração e ansiedade, antes de ele anuir.
— Sim. Senhor.
— E nem penses em desertar. Macro, o que faz o exército aos desertores? — São executados, senhor. Lapidados até à morte pelos seus próprios camaradas, ou pior ainda.
— Exatamente... Ora bem, então, pretoriano Cimber, é evidente que seria extremamente perigoso prosseguir num avanço direto pelo presente caminho até Asturica. O que preciso de saber de ti é se existe
alguma rota alternativa.
Uma que nos permita escapar à atenção do inimigo e nos conduza à mina sem grandes atrasos. Conheces algum caminho desse género? — Ocorreu nesse momento a Cato que o homem podia sentir-se tentado a negar
a existência de uma alternativa desse género, na esperança, por pouca que fosse, de que tal pudesse dissuadir Cato de prosseguir o avanço da coorte. — Se ela não existir, teremos que continuar pela mesma
estrada, independentemente dos perigos que tal representa... Fala, homem.
O novo recruta ainda estava siderado perante a mudança na sua fortuna, mas mantinha a presença de espírito necessária para responder antes que Cato o ameaçasse com novas punições.
— Há outra estrada, senhor. Um trilho, na realidade. Através das colinas a norte. Não se adequa ao tráfego de veículos, e existem apenas umas poucas povoações de pequena dimensão ao longo do caminho.
Passa muito perto da mina.
Macro fitou-o com suspeita.
— E como é que sabes dela? — Um tio meu era comerciante de mulas, senhor. Acompanhei-o na rota anual algumas vezes, em pequeno.
— E consegues lembrar-te dela de forma a guiar-nos pelo caminho? — indagou Cato.
— Acho que sim, senhor.
— Cimber, agora és um soldado. Achar não chega. Consegues fazê-lo ou não?
— Sim, senhor.
— Nesse caso, parece que nos vai dar imenso jeito — concluiu Cato, antes de voltar a dar atenção aos seus oficiais. — Marcharemos para as colinas amanhã, senhores. Quero a aldeia vasculhada de uma ponta
à outra para reunir todos os abastecimentos que possamos levar connosco. Teremos que viver da terra enquanto seguirmos pela estrada do Cimber. E, desta vez, não me esquecerei de dar ordens para erigir
um campo fortificado todas as noites.
— E quanto ao inimigo, senhor? — quis saber Petílio. — Não nos vigiarão? Poderão manter o Iskerbeles informado do nosso progresso, e com certeza que não deixarão de nos atacar, e poderão fazê-lo com maior
eficácia em terreno montanhoso.
— Vamos fazer sair o contingente montado à primeira luz da alvorada, e faremos recuar ou aniquilaremos os batedores inimigos antes de a coorte se colocar em movimento. Ao mesmo tempo, o Placino pode prender
arbustos às traseiras dos vagões, levantando poeira suficiente para dar a ideia de que toda a coorte está a retirar para Tarraco. Esperemos que eles engulam o embuste, e que possamos progredir sem mais
problemas. — Cato olhou para os rostos dos outros homens, e ficou aliviado ao ver que nem Porcino nem Cristo levantavam quaisquer objeções. — Ótimo. Portanto, assim que as nossas patrulhas montadas nos
digam que está tudo livre, os feridos podem ser colocados nos vagões e o Placino pode encetar caminho imediatamente. Os outros marcharão para norte. Mais alguma questão...? Não? Estamos portanto todos
elucidados sobre o que se vai seguir. O melhor será que todos repousem o mais que puderem esta noite. O caminho que vamos tomar será muito duro. Dispensados.
Os oficiais e Cimber levantaram-se dos bancos e saíram da taberna para a praça, já mergulhada na escuridão. O céu estava limpo e as estrelas brilhavam aqui e ali por entre o manto escuro da noite. Macro
fez uma pausa no umbral e esperou que os outros estivessem demasiado longe para o poderem escutar.
— Achas que podemos confiar no Cimber? E se ele nos levar por mau caminho quando estivermos nesse trilho de mulas que só ele conhece? De forma a afastar-nos do perigo?
— Se ele se atrever sequer a pensar nisso, fá-lo-ei ser chicoteado até ficar com a vida por um fio. Parece-me que ele já percebeu isso.
— Espero que sim. Esta missão não está propriamente a decorrer como foi planeada, miúdo.
— E quando é que isso acontece? Macro, já sabe como isto é. A primeira baixa na guerra é o plano que foi traçado previamente.
— Não é só o plano. — Macro fez um gesto para a linha de cadáveres ao lado do vagão. — Vou mandar erguer uma pira para eles aqui na aldeia. Não me parece de arriscar fazer outro fogo lá fora, na planície.
— Boa ideia — assentiu Cato. Ao notar que Macro continuava sem se afastar, perguntou: — Há mais alguma coisa?
— Uma coisa, sim. Porque é que estás a enviar o Placino de volta com os feridos? É o tipo de homem que nos dava jeito quando começarem os combates a sério. Porque é que não mandas um dos que podemos dispensar,
como o Pulcher, o Porcino, ou aquele desperdício do Cristo?
— Não confio no Pulcher para entregar o relatório, ou fazer uma descrição realista das coisas ao Vitélio, se ele fizer perguntas. O mesmo vale para o Porcino ou o Cristo, embora por razões distintas.
O mais provável era que lhe dissessem que o Iskerbeles tem uma enorme hoste a segui-lo, e isso poderia fazer com que o legado interrompesse o avanço e pedisse mais reforços.
Um atraso desse género daria aos rebeldes mais tempo para fazer crescer a sua influência. O relatório tem que ser entregue e reforçado por alguém em quem possa confiar. Um soldado profissional, que possa
descrever a situação de forma correta.
— Mas porquê o Placino, e não um dos outros? Ou eu? — Porque ele está no fim da cadeia de comando. Só é mais antigo do que o Porcino. E a si? — Cato sorriu e deu um ligeiro murro no peito do amigo. —
Meu irmão, acha mesmo que alguma vez pensaria em entrar em combate sem o ter ao meu lado?
Oar da madrugada encontrava-se pesado com o cheiro acre do incêndio. Uma vasta área da planície estava pintada de negro, em volta do local onde os romanos tinham tencionado estabelecer campo na noite
anterior.
Dúzias de corpos carbonizados enchiam a área. Os que tinham morrido antes de o fogo consumir os seus corpos jaziam esparramados onde tinham caído.
Os que tinham sido feridos e por causa disso não haviam conseguido escapar tinham ficado em posições encolhidas, por se terem tentado proteger das chamas e do calor. Os pretorianos eram fáceis de identificar,
devido às armaduras, e Cato não conseguiu evitar um estremecimento ao imaginar o horror dos seus momentos finais. Limpou a garganta, e dirigiu-se a Macro.
— Há aqui alguns que podemos riscar da lista dos desaparecidos.
Macro agachou-se ao lado de um dos seus antigos camaradas e apalpou a carne carbonizada e enegrecida em torno do pescoço. Embora a tira de couro tivesse sido consumida, o selo de chumbo estava intacto.
Soltou-o a custo, e esfregou a fuligem escura que tinha coberto as marcas gravadas que identificavam o soldado. Ainda se percebiam algumas das letras, mas o calor fora suficientemente intenso para começar
a derreter o selo, tornando quase impossível ter a certeza sobre o nome. Não fazia grande diferença, refletiu Macro. Se o número dos desaparecidos correspondesse ao número de cadáveres, todos eles seriam
considerados mortos em combate, e as famílias em Roma poderiam vir a beneficiar do respetivo testamento. Deixou cair o selo e levantou-se.
— Vou mandar alguns dos rapazes levarem os corpos para a aldeia.
Cato olhou para a mancha oleosa de fumo que se erguia sobre os telhados da aldeia e se dirigia para o céu. A pira funerária fora acesa assim que os primeiros raios de Sol tinham anunciado o novo dia.
Abanou a cabeça.
— Não temos tempo para isso.>
— Não temos tempo? Não podemos simplesmente deixar os nossos rapazes aqui a apodrecer. Não está certo.
— Macro, eles já estão muito para lá do ponto de se preocuparem.
— Mas eu não estou. Nem tu deverias estar. Não pode ser, deixarmos neste estado os camaradas que aqui tombaram.
— Temos que os deixar.
Macro fez uma careta.>
— Oiça, senhor. Se me der uma meia centúria, podemos tratar do assunto bem depressa e marchar em passo rápido até apanhar o resto da coluna.
— Não vou dividir a coluna, quando tal não é necessário. De qualquer forma, os homens já estão derreados. Não posso perder tempo à espera dos retardatários, quando isso pode ser evitado. Temos que nos
pôr a caminho assim que os batedores nos vierem dar informações.
As patrulhas montadas tinham saído antes da alvorada para varrer a área em redor da aldeia, em busca do inimigo, de modo a afastar quaisquer rebeldes que estivessem a manter a povoação sob vigilância.
Durante a noite eles não tinham provocado quaisquer problemas, e Cato tinha alguma esperança de que o incêndio e as pesadas baixas que haviam sofrido os tivessem encorajado a prosseguir em busca de presas
mais fáceis. Mas era importante ter a certeza de que a coorte os despistava quando prosseguisse a marcha sob a proteção das colinas. O destacamento que ia regressar a Tarraco já tinha formado uma coluna
no exterior da aldeia. Quatro vagões carregados de feridos, sob a proteção do centurião Placino e dos seus homens. Estavam atarefados a atar ramagens de arbusto às traseiras dos veículos.
Macro tinha estado a seguir o olhar do amigo.>
— Estarão prontos a seguir a qualquer momento. Detestaria estar no último dos vagões com aquelas ramagens a levantar pó. Os desgraçados vão sufocar, se as feridas não acabarem com eles, primeiro.
— Nada a fazer. O que importa é que sejam visíveis a muitos quilómetros de distância. Se tivermos sorte, os rebeldes vão pensar que conseguiram assustar-nos e fazer-nos recuar, e hão de ir contar a sua
vitória ao Iskerbeles. E ele vai pensar que conseguiu obter algum alívio, enquanto nós nos dirigimos à mina.
Macro limpou o nariz com o dedo.>
— A não ser que eles já lá estejam. Ou tenham estado e se tenham ido embora, e levado a prata com eles.
— Depressa saberemos. Cato esticou o pescoço, ao escutar o distante som de cascos. — Ah, aí vem o Metelo, por fim.
O optio aproximou-se a trote pela terra calcinada, e deteve a montada junto aos dois oficiais, antes de fazer uma rápida continência a Cato.
— Não vimos sinais seguros do inimigo, senhor. Só um pequeno grupo de cavaleiros a oeste. Fiquei com a impressão de que estavam a vigiar-nos. De qualquer maneira, viraram-se e fugiram assim que puseram
os olhos em cima de nós.
— E nenhum sinal de outras forças? — Não, senhor. Embora haja algumas quintas desertas pela região. Calculo que os habitantes se tenham escondido, à espera que tanto nós como os rebeldes desapareçamos.
— Metelo endireitou-se sobre a sela e apontou para uma baixa elevação a sul. — Cobrimos o terreno desde ali até alguns quilómetros a norte da aldeia, senhor. Está tudo desimpedido.
— Excelente. Nesse caso, vamos pôr-nos a caminho. Vai ter com o Placino e diz-lhe para seguir. Depois avisa o Cristo de que pode trazer o resto da coorte para fora da povoação e formá-los a norte. Nós
já lá vamos ter. Vai.
— Senhor! — Metelo saudou, fez a montada dar meia-volta e incitou-a a seguir na direção dos vagões. Cato e Macro começaram a caminhar na mesma direção.
— Meia centúria para escoltar os vagões? — indagou Macro, como se estivesse a pensar em voz alta.
— Chega, e com as ramagens vai dar a impressão de uma coorte a marchar, para quem a observar à distância. Além disso, se correr tão mal como temo que corra, pelo menos terei salvado algumas vidas.
Macro deitou-lhe um olhar de relance.>
— Eu era capaz de pensar que seria melhor levarmos connosco tantos homens quantos pudéssemos.
— Mais ou menos quarenta não vão fazer grande diferença.>
— Vá lá, miúdo! — Macro riu-se. — Não me digas que pensas mesmo que a coisa está assim tão complicada? Os homens portaram-se bem ontem. Enfrentaram-nos como veteranos e mantiveram a formação como se estivessem
na parada. Tratámos daqueles rebeldes com facilidade e, se for preciso, voltaremos a fazê-lo aos próximos que sejam tão idiotas que pensem que podem deter-nos.
Cato suspirou.>
— Macro, ainda estamos a vários dias de marcha da mina, e ouviu o que o Cimber disse: avançar pela estrada das colinas vai ser complicado. Se, por algum acaso inesperado, conseguirmos aproximar-nos da
mina sem sermos detetados, o mais provável é mesmo que o Iskerbeles tenha lá chegado primeiro. Se formos vistos, ele vai tentar com toda a certeza encurralar-nos e aniquilar-nos antes que o Vitélio surja
em cena. Não me apetece fazer outra retirada como a que vivemos no inverno passado na Britânia. É bem melhor aguentar e defender a nossa posição até ao último homem. Melhor do que ser flagelado constantemente,
ver os retardatários serem apanhados um a um, enquanto a disciplina se desfaz e tudo descamba numa fuga em que cada um trata de si. Pelo menos, defendendo uma posição, podemos mostrar o nosso valor. O
suficiente para os fazer pensar várias vezes antes de atacarem a coluna principal.
Macro deu alguns passos ao seu lado em silêncio.>
— Somos portanto o sacrifício necessário para o bem comum? — Uma coisa do género. Sabe como é... ”Vão dizer aos espartanos...” — Espartanos? — Macro fez uma careta. — O que têm esses mariconços de saias
a ver com isto?
— Se tivermos sorte, muito pouco. — Cato respirou fundo. — Mas chega de palavras. Poupe o fôlego. Vai precisar dele.
Pouco tempo depois, a coorte seguia pela estrada poeirenta que conduzia às colinas; Cato e Cimber avançavam a cavalo à frente da coluna, enquanto Macro marchava à cabeça da infantaria. Pulcher, que já
não tinha de comandar o trem de bagagens, conduzia os homens restantes da centúria de Placino, enquanto Cristo acompanhava o pequeno grupo de pessoal do quartel-general. A frente, dos dois lados, avançavam
as patrulhas montadas, atentas a qualquer sinal da presença do inimigo, enquanto os pretorianos marchavam pela planície ondulada. Ao passarem por uma das cristas, Macro virou-se para contemplar a formação
mais pequena, que seguia para leste. Uma grande nuvem de pó erguia-se dos vagões, quase escondendo os soldados de Placino, que seguiam na retaguarda. Dava realmente a aparência de uma força muito maior,
e Macro ofereceu uma prece aos deuses, para que quaisquer simpatizantes dos rebeldes que por acaso avistassem a coluna de Placino se deixassem enganar tão facilmente como Cato esperava que pudesse suceder.
Pelo meio-dia já tinham chegado aos contrafortes das colinas, e a estrada começou a subir por entre florestas de pinheiros, que emprestavam ao ar estival o seu aroma e forneciam sombra para os soldados
à medida que a tarde se alongava. Passaram por uma pequena povoação, onde a estrada se juntava à rota que seguia de leste para oeste de que Cimber lhes tinha falado. Os habitantes, mais habituados a patrulhas
ocasionais de tropas auxiliares, mostraram-se curiosos perante uma formação tão numerosa, e revelaram-se dispostos a vender-lhes comida e vinho, quando fizeram uma paragem no pequeno fórum. O magistrado
mais importante do conselho da povoação deixou a sua casa para saudar Cato e Macro pessoalmente, à frente de uma pequena procissão de dignitários locais e funcionários da administração da aldeia. Era
uma figura austera, numa túnica de tom ocre, sem enfeites, com uma bolsa pesada pendurada num cinto que rodeava uma barriga proeminente, tudo suportado por duas pernas grossas.
— Gaio Hétio Gordo. — Falava num latim razoável, enquanto se inclinava com dificuldade. — Ao vosso serviço. Como todos os habitantes de Antium Barca.
— Prefeito Quinto Licínio Cato, comandante da Segunda Coorte Pretoriana. Preciso de suprimentos para os meus homens — acrescentou Cato, sem se alongar mais. — Dar-te-ei um recibo que te permitirá recuperar
os custos junto do governador, em Tarraco.
— Ah, claro que ficaremos felizes de poder suprir as vossas necessidades, mas preferiríamos se pudesse pagar com dinheiro.
— Estou certo de que sim, mas neste momento não estou em condições de o fazer. Portanto, podes aceitar o recibo e trazer-me os víveres até aqui, ou posso ordenar aos meus homens que vão aos vossos armazéns
e requisitem tudo aquilo de que necessitamos, e deixamos a teu cargo a forma de resolver isso com o governador. — Enfrentou o olhar ansioso do magistrado com uma expressão fria e implacável. — A escolha
é tua.
Gordo afastou-se ligeiramente, para conferenciar com os que o acompanhavam, antes de dar a sua resposta.
— Aceitamos alegremente o recibo. Estamos seguros de que será honrado, quando for apresentado em Tarraco.
— Ótimo. Nesse caso, vou precisar de duzentas e quarenta medidas de trigo, mil quilos de carnes curadas, e quinhentos odres de água.
A boca de Gordo abriu-se em choque.>
— Isso é um ultraje. Nunca demos quaisquer problemas a Roma. Pagamos os nossos impostos a tempo e oferecemos sacrifícios regulares no templo do culto imperial. É uma afronta à nossa lealdade ao Imperador
que vocês, soldados, nos tratem desta forma e nos façam exigências com tão pouca razoabilidade. Com certeza que não espera que tenhamos disponíveis tais quantidades num prazo tão curto, sem dificuldades
consideráveis?
— Não. Mas esse é um problema vosso. Quero tudo aqui ao anoitecer. Caso contrário, ordenarei às minhas tropas que entrem nas vossas casas e despensas e peguem no que for preciso. Agora, tratem disso.
Gordo apressou-se a distribuir instruções ao grupo que o acompanhava, e os funcionários espalharam-se para dar as ordens necessárias. Quando o magistrado se voltou a virar para ele, Cato aproveitou para
o interrogar sobre outro assunto.
— Imagino que saibas da revolta em Asturica.
Gordo fez rebolar os olhos.>
— Uma região problemática! Um povo de bárbaros... Nunca satisfeitos por viverem sob a paz romana. Mas calculo que Roma vai lidar com eles de forma decidida. Como deve ser.
— Tudo a seu tempo. Ouviste falar de alguma atividade rebelde nesta região?
— Aqui? — Gordo pareceu divertido. — Não, os acontecimentos em Asturica passam-se demasiado longe para representarem alguma ameaça para Antium Barca. Graças aos deuses.
— Parece-me que não ficarás assim tão grato aos deuses quando souberes das notícias — adiantou Macro.
— Que notícias? Macro olhou para o seu superior com uma questão no olhar, e Cato deu um ligeiro aceno de aprovação.
— Os rebeldes saquearam uma aldeia a um dia de marcha a sul daqui.
Levaram o que quiseram, mataram a maior parte dos habitantes e forçaram os outros a juntarem-se à sua causa.
O sangue desapareceu do rosto de Gordo.>
— Assim tão próximo? Mas não soubemos de nada. Ninguém nos disse que eles estavam assim tão perto. Quantos eram? O que aconteceu?
— Pusemo-los em fuga — assegurou-lhe Cato. — O Iskerbeles pode ter enviado este grupo para atacar no coração da província, para provocar o pânico, ou pode ser apenas um grupo de salteadores que se intitulam
de aliados do Iskerbeles. Seja como for, representam uma ameaça concreta. Aconselho-te, e ao teu conselho, a tomar todas as precauções para garantir a segurança da tua aldeia e dos seus habitantes.
— Mas... Mas vocês devem proteger-nos. Nós pagamos impostos.
Temos direito a proteção. Têm que ficar aqui até que a ameaça tenha passado.
Alimentaremos os seus homens. Até pagaremos para nos defenderem, se for necessário.
— Impossível. Tenho as minhas ordens. Deixaremos Antium Barca à primeira luz do dia. Com os nossos abastecimentos — sublinhou Cato.
— E deixa-nos indefesos, com rebeldes a devastar a região? Exijo que nos deixe pelo menos alguns homens.
— Tens muralhas sólidas, um portão bem fortificado, e deves ter uma milícia na povoação.
— Um punhado de velhos e jovens, pois.
— Nesse caso, recruta os homens mais válidos para engrossar as fileiras.
Têm que cuidar de vocês mesmos até que a rebelião seja esmagada.
— E se a rebelião não for esmagada? — Nesse caso, suponho que será melhor apaziguar o Iskerbeles quando ele e a sua horda se apresentarem em frente às vossas muralhas.
Intretanto, façam o que puderem para se defenderem. Cerrem os portões da cidade ao anoitecer, e mantenham uma vigilância apertada enquanto eles estiverem abertos, durante o dia. Acumulem provisões e vigiem
bem os vossos escravos, ou qualquer um que tenha a tentação de simpatizar com os rebeldes.
— É tudo? — Tu e os outros contribuintes podiam escrever uma carta de protesto ao governador, em termos veementes, se achas que isso pode ajudar — sugeriu Macro, no gozo.
— Chega, centurião — avisou Cato, antes de voltar a dirigir-se ao magistrado. — Trata de garantir que nos é fornecido aquilo de que precisamos. A minha coorte ficará instalada no fórum por esta noite.
Preciso de alojamento para os oficiais, aqui perto. Por favor, trata disso, imediatamente.
Gordo anuiu e chamou os colegas, seguindo todos para os salões do conselho, na outra ponta do fórum. Macro sugou o ar enquanto os via a afastarem-se.
— Não estamos propriamente a conquistar os corações e as mentes por aqui.
— Nós somos o menor dos problemas desta gente, se a rebelião se espalhar. Além disso, estou demasiado fatigado para me preocupar em garantir que eles fiquem com boa impressão de nós. Quero estar outra
vez na estrada antes da alvorada. — Cato avistou Cimber ali perto, junto à entrada de um beco. — E mantenha um olho naquele nosso amigo. Para o caso de ele se sentir tentado a desertar.
Macro deitou uma olhadela ao guia e esfregou as mãos.>
— Há inúmeras formas de manter um novo recruta sempre controlado, acredita.
O centurião olhou em redor, contemplando os edifícios que rodeavam o fórum.
— Belo sítio. Próspero, mesmo. É engraçado como protestam quando lhes pedimos alguma coisa, e depois, com o mesmo fôlego, nos pedem para lhes salvarmos o pelo... Já tive o suficiente de civis merdosos
de duas caras.
Cato soltou uma gargalhada seca.>
— Macro, não seja demasiado duro com eles. No fim de contas, são os impostos que eles pagam que garantem o nosso salário.
— Talvez — admitiu Macro, a contragosto. — Mas talvez fosse mais fácil se nos limitássemos a tirar-lhes aquilo de que precisamos.
— Nesse caso, o que nos distinguiria de meros assaltantes? Ou de gente como o Iskerbeles? Macro, nós somos um exército. Não um bando de salteadores. Lutamos para defender algo maior do que nós mesmos.
E é por isso que os deuses estão do lado de Roma.
Macro fungou.>
— Talvez queiras lembrar-lhes isso de vez em quando. Tenho demasiadas vezes a impressão de que os sacanas estão mas é a dormir, e não nos ligam nenhuma.
— Até Júpiter tem que dormitar.>
— Preferia que ele nos ajudasse a dominar.
Cato olhou para ele, surpreso.>
— Caramba, centurião Macro, ao que parece, está a desenvolver um sentido de humor.
Macro desdenhou da ideia e respondeu de uma forma que só os soldados profissionais que partilhavam uma amizade de longos anos, independentemente das patentes, se podiam permitir:
— Ora, vai-te foder, sim?
A estrada a partir de Antium Barca levava para oeste, e corria pelas colinas que se estendiam pelo Norte da província, até Asturica. Como Cimber dissera, só se adequava ao trânsito de homens a pé, a cavalo,
ou de mula. Só as partes que ficavam entre povoações de maior importância é que eram utilizáveis pelo tráfego de veículos com rodas. Longe das planícies marteladas pelo sol, os homens marchavam em maior
conforto, atravessando as encostas florestadas onde o ar era mais fresco, e onde havia sombras e inúmeros ribeiros para matarem a sede e voltarem a encher os cantis e odres. Até havia alguma caça, um
javali ou veado que os batedores conseguiam abater e traziam para o campo ao fim de cada dia de marcha. Se havia uma aldeia ou vila próxima ao entardecer, Cato preferia fazer os homens descansar na povoação.
Quando não era o caso, os dias terminavam com a penosa tarefa de escavar um fosso e amontoar o entulho numa rampa onde eram plantadas estacas afiadas. Só depois disso é que os homens podiam fazer as suas
fogueiras e cozinhar as suas refeições. Todas as manhãs as estacas eram recolhidas, a rampa de terra desfeita e a terra usada para encher o fosso, e depois a coorte prosseguia o avanço.
A ausência de tendas de campanha não era sentida, até que uma noite a chuva caiu. Uma tempestade desencadeou-se sobre as colinas, com relâmpagos faiscantes e fugazes a rasgarem a noite, e os trovões ribombavam
pelas rochas e falésias das altitudes. E, durante todo o tempo, a chuva caiu de forma constante, ensopando homens, cavalos e equipamentos. A coorte levantou-se, mal dormida e encharcada, mas umas horas
de marcha debaixo de um céu limpo depressa levou a que tudo secasse e os espíritos fossem restaurados. Houve inúmeras ocasiões para recolher abastecimentos nas povoações que ficavam no caminho, queijo,
carne e pão feito de bolotas a substituir o cereal que tinha sido consumido antes de entrarem nas colinas. Em cada ocasião, Cato deixava um recibo para cobrir o pagamento do que levavam, e sentia um prazer
culpado perante a perspetiva de ver o governador pagar o rasto de dívidas que marcava o percurso da coorte de pretorianos.
Cimber revelou-se um excelente embora relutante guia, e conduziu-os numa rota mais ou menos direta para a região mineira. A maior preocupação de Cato continuava a ser o receio de ser detetado pelo inimigo,
e de este ter tempo suficiente para lhe bloquear a progressão, ou preparar nova emboscada. Sobretudo naquele género de terreno cerrado, com as florestas das encostas dos dois lados da estrada a permitirem
facilmente esconder um exército. Todavia, Metelo e o seu punhado de batedores montados não assinalavam qualquer traço do inimigo enquanto continuavam a aproximar-se de Asturica e do coração da rebelião.
Então, ao fim de vinte dias depois de deixarem Tarraco, Metelo e Cimber surgiram a galope pela estrada, na direção de Cato e Macro, que marchavam à frente da coluna, debaixo de um céu azul e do Sol do
meio-dia. A coorte tinha alcançado as altas colinas e montanhas da região mineira no dia anterior, e todos os homens, sobretudo o prefeito, contemplavam a paisagem circundante com evidente prudência.
— Senhor, avistámos a mina! — relatou Metelo, ao mesmo tempo que imobilizava o cavalo e fazia a continência. — A não mais de uns oito quilómetros para lá da próxima crista.
Cato olhou para lá do optio e viu que mais adiante a estrada se empinava fortemente para alcançar um colo entre dois picos rochosos, onde só se viam algumas árvores atarracadas.
— Algum sinal do inimigo? — Apenas um punhado de homens, que eu tenha visto.
— E quanto à mina? Ainda está nas nossas mãos? Cimber inclinou a cabeça antes de falar.
— Não consegui perceber, senhor. Há poucos sinais de vida. Nem vislumbre de escravos. Aproximámo-nos tanto quanto pudemos sem denunciar a nossa presença, mas não vimos mais do que um punhado de homens
em torno do portão do complexo. Podiam ser a guarnição da mina, ou rebeldes. Não há forma de saber sem nos aproximarmos mais.
Metelo tomou a palavra.
— Essa decisão foi minha, senhor. Dadas as suas ordens, não queria correr o risco de ser detetado.
— Muito bem — concordou Cato. — Bom trabalho, Cimber. O guia inclinou a cabeça em agradecimento, e depois arriscou-se a voltar a falar.
— Nesse caso, senhor, servi o meu propósito. Suponho que agora esteja livre para regressar a Tarraco.
— Soldado, estás a falar sem que tal te tenha sido solicitado — rosnou Macro, enquanto mostrava a vareta. — Isso é quase uma insubordinação. Senhor, quer que o coloque no seu devido lugar?
Cato entendia perfeitamente o desejo de Cimber de se afastar dos perigos que se adivinhavam. Não era um soldado, e não tinha espírito de combate. Mas, isto dito, aquela era a sua terra. Eram a sua família
e amigos que estavam sob a ameaça dos rebeldes. Devia ao menos estar preparado para lutar por essa causa, e não abandonar o seu dever moral e esperar que o exército agisse em seu lugar.
Além disso, Cato continuava a necessitar do seu conhecimento da região e dos seus habitantes.
— Ainda não. O guarda Cimber provou a sua utilidade. — As palavras eram dirigidas a Macro, mas o comentário destinava-se a Cimber, que se mostrou desapontado mas teve o bom senso de permanecer calado.
— Tenho toda a confiança de que continuará a mostrar-se útil, pelo tempo que os seus serviços forem necessários.
Cato olhou outra vez para a crista e tomou uma decisão. Virou-se e chamou:
— Tribuno Cristo! Vem cá.
Cristo acorreu à chamada.
— Senhor? — Vamos deter a coorte na encosta do outro lado, ali em cima. Metelo, recolhe as tuas patrulhas. Quero os cavalos junto à coluna, e depois manda dois homens para o cimo do pico à esquerda. Devem
relatar de imediato ao tribuno qualquer sinal do inimigo. Cristo, os homens devem estar escondidos. Se algum rebelde se deparar connosco, ou quaisquer habitantes locais, já agora, quero-os aprisionados
de imediato.
— Sim, senhor. Compreendo. — O homem lutou para esconder as suas preocupações. — Mas onde é que vai?
Cato desapertou a fivela no ombro, despiu a capa e passou-a a Metelo.
— O guarda Cimber, o centurião Macro e eu vamos ver a mina mais de perto.
Mmm. — Macro coçou os pelos que lhe nasciam no queixo. Cato e Cimber estavam deitados na erva seca, ao seu lado, à sombra do grande olival que tinha sido plantado em terraços, em torno de uma colina que
descia suavemente até à povoação nascida no exterior da mina, separada desta pelo fosso e pela muralha que guardava a área onde se procedia à exploração propriamente dita.
— Não fazia ideia de que as minas imperiais eram coisas de tão grande dimensão — prosseguiu Macro. — Isto parece ser suficientemente grande para albergar uma legião e mais os penduras todos.
Cato assentiu, enquanto observava o cenário. O comentário de Macro tinha razão de ser, sob muitos pontos de vista. A povoação era similar às que cresciam no exterior de quase todas as bases permanentes
de legionários. Uma junção de estalagens, casas de comércio, bordéis e outros edifícios, agrupados sem qualquer planeamento. A princípio não passavam de estruturas temporárias, mas, a pouco e pouco, davam
lugar a madeiras, pedras e telhas. Aquela povoação, no entanto, era relativamente pequena, e fornecia serviços à guarnição da mina, aos capatazes e escribas que lá trabalhavam, bem como aos comerciantes
que por lá passavam, quer negociassem em escravos, cereais, ou equipamento para a mina, e aos soldados destacados para escoltar os comboios de prata que partiam regularmente do local. Os milhares de escravos
que trabalhavam na mina não tinham qualquer vida para lá disso; lá dentro só tinham a esperar a morte, e nunca lhes era dada oportunidade para gozar os limitados prazeres que eram oferecidos na povoação.
Por trás da muralha, o cenário dava a ideia de que o próprio Júpiter se tinha debruçado sobre a paisagem e lhe tinha feito uma enorme cicatriz que a atravessava, deixando-a num estado de devastação que
demonstrava a sua omnipotência. À esquerda, viam-se altas falésias de terra e rochas vermelhas e laranja, sobre as quais se notava uma espécie de friso verde de arbustos atarracados que se estendia ao
longo da face montanhosa. No cimo da falésia havia um degrau, abaixo do qual a face da montanha tinha todo o aspeto de ser impassável. Na base da falésia o terreno era nu, sem vegetação, e estava coberto
de entulho da mina, material sem qualquer valor que se estendia até à orla de uma ravina pouco profunda, onde corria um rio, por entre mais penedos, que faziam saltar salpicos prateados por todo o lado.
Havia na base da falésia várias entradas para túneis, todas elas reforçadas por estruturas de madeira, e ladeadas por pilhas de material para entivar os túneis. A área onde decorriam os trabalhos mineiros
estendia-se por uns quatrocentos metros, até ao ponto onde a falésia passava a ser constituída por rocha sólida, e na sua extremidade havia uma estrada larga que curvava sobre si mesma para conduzir a
uma vasta cornija protegida pela íngreme encosta da crista montanhosa, estendida ao longo de todo o comprimento da mina. Cato avistou os cantos de alguns telhados na cornija, e apontou-os.
— O que há lá em cima? Cimber seguiu a direção apontada pelo seu superior.
— São os aposentos do procurador e do seu pessoal, senhor, bem como o complexo de habitação dos escravos. O que está a ver são os blocos de casernas.
— Quantos escravos trabalham na mina? Cimber pensou por momentos.
— Nos tempos de grande atividade, talvez tenham chegado a ser uns cinco mil. Mas a maior parte da prata já foi extraída, por isso hoje em dia devem ser perto de três mil. Aquela falésia por baixo da cornija,
em tempos, vinha até à ravina.
Macro deixou escapar um assobio de admiração, quando finalmente tomou consciência de quanto a paisagem tinha sido alterada pela mão humana.
— Isso quer dizer que desfizeram a maior parte da porra da montanha.
— Como é que o fizeram? — indagou Cato.
— Vê aqueles túneis, senhor? Penetram profundamente na montanha, e deles saem outros para os dois lados. Isso enfraquece a base da falésia. Quando tudo fica pronto, deitam fogo aos postes de suporte,
e os túneis acabam por ruir, fazendo abater-se uma secção da falésia. E isso por sua vez expõe uma zona nova dos filões de prata.
— A sério? Pensava que fazer abater todo esse material devia criar uma grandessíssima confusão.
— E cria, senhor. Para isso é que há aqueles tanques ao cimo da cornija. Libertam água suficiente para lavar o solo solto e expor os filões.
Macro assentiu, pensativo.
— Muito espertos. Mas onde é que arranjam a água? Calculo que não a levam lá para cima a partir do rio.
— Em tempos, sim. Há muitos anos, senhor. Mas isso foi antes de ser construído o aqueduto que abastece Asturica e mais algumas cidades da região. Passa a uns quilómetros para lá da crista, e há um ramal
que alimenta os reservatórios da mina. A maior parte deste trabalho de escavação teve lugar desde a construção do aqueduto.
Macro sugou o ar.
— O progresso é realmente admirável. Cato contemplava as pequenas aberturas escuras dos túneis, e tentava imaginar os milhares de escravos que tinham sido forçados a escavar na base da falésia. A trabalhar
em espaços confinados, à luz de tochas ou lamparinas a azeite. O ar parado, o cheiro ainda pior devido aos odores a urina e fezes dos escravos presos. E também seria perigoso, com a ameaça constante do
colapso do túnel, que enterraria os escravos vivos.
— A taxa de desgaste deve ser altíssima — comentou em voz baixa, como que para si mesmo.
— Desgaste, senhor? — Perda de vidas entre os escravos? — Oh, sim. Claro, senhor. Mais de uma centena por semana, diria eu. Por isso é que existe na região uma tamanha procura por escravos. Se o trabalho
não os matar, a fome ou a doença tratarão disso. Ser condenado às minas equivale a uma sentença de morte. Toda a gente sabe disso.
— E agora o Iskerbeles anda a libertar esses escravos — considerou Cato.
— Bestial — resmungou Macro. — E cada um deles preferirá mil vezes lutar até à morte a ter que enfrentar a perspetiva de voltar a ser enviado para as minas.
— Precisamente. — Cato pensou por momentos. — Enquanto existirem lugares como este, e houver homens como o Iskerbeles por aí, estaremos a arranjar lenha para nos queimarmos.
Voltou a atenção para a povoação. Só se via um punhado de vultos na zona do mercado, sentados em bancos em volta do que seria claramente uma estalagem, se se podia confiar no número de ânforas espalhadas
a juncar o chão em redor dos homens. Para lá desses, os únicos rebeldes visíveis eram os indivíduos que guardavam os portões da zona de trabalhos mineiros.
— Uma coisa é bem evidente. Chegámos tarde, senhor — disse Cimber, fazendo um gesto na direção da mina. — O Iskerbeles foi mais rápido. Já tem a prata... Não faz sentido continuarmos. O melhor será recuar
e esperar pelo legado, senhor.
Cato inclinou a cabeça.
— Assim parece. Mas temos que ter a certeza. Cimber lançou-lhe um olhar ansioso, cheio de vontade de se retirar para a segurança da coorte, escondida por trás da crista que se elevava nas costas do pequeno
grupo.
— Senhor, pode com certeza apreender a situação por si mesmo. Devíamos voltar para junto das tropas.
— Iremos quando eu disser, e não antes. Por agora, preciso de mais informação. — Virou-se para Macro. — Precisamos de arranjar alguém com quem ter uma pequena conversa.
Uma hora depois, tinham conseguido introduzir-se na povoação, mantendo-se longe das vistas dos homens que guarneciam o portão da mina. Entraram numa rua estreita no lado oposto da aldeia e seguiram-na
furtivamente até à pequena área aberta no centro da povoação que Cato tinha observado antes. Não havia sinais de vida em nenhum dos edifícios pelos quais passaram, para lá de um cão escanzelado que se
assustou com a sua aparição e fugiu a correr, enquanto lançava olhares ansiosos sobre a espádua. Ouviram os rebeldes a festejar antes de os verem; as conversas de bêbados e as gargalhadas ecoavam nas
paredes da ruela que se abria para a zona do mercado.
Cato fez sinal aos companheiros para pararem e se agacharem, antes de prosseguir, tomando todo o cuidado para fazer pouco barulho com as botas na rua pavimentada. Sentiu o pulso a acelerar quando se aproximava
da esquina, e fez uma pausa. Dos escritos e ilustrações lúbricas por cima de uma porta que abria para a rua, era óbvio que estava junto a um bordel. Cato deduziu que um estabelecimento do género não deixaria
de ter também uma entrada para a praça do mercado, e entrou com toda a cautela. Levou um momento a que os seus olhos se habituassem à penumbra reinante, e depois percebeu que estava num compartimento
de teto baixo, dividido ao meio por um bar com ar pouco íntegro. Numa das paredes abria-se uma série de pequenos cubículos, onde se viam lençóis de aspeto mais do que sujo. Umas cortinas igualmente imundas
forneciam um arremedo de privacidade às mulheres e aos seus clientes. Pelo chão havia taças de barro, e jarras vazias e partidas, bem como pedaços de pano e as túnicas curtas que as prostitutas usavam
normalmente. O ar estava empestado de cheiros, a vinho e perfume barato, mas também se fazia sentir o odor agridoce de sangue derramado havia poucos dias. E depois havia o fedor da carne em decomposição,
e Cato reparou no cadáver de uma jovem, que jazia sob uma mesa. Estava desnuda, e o ventre e pernas manchados de sangue seco.
A curta distância, na sombra do canto do compartimento, havia um monte de roupas sujas. Do outro lado do bar havia outra entrada, fechada por uma cortina amarela, e Cato dirigiu-se para lá; não evitou
uma careta de contrariedade quando um fragmento de uma caneca se desfez debaixo da sola da sua bota, emitindo um barulho que lhe pareceu um verdadeiro estrondo. Imobilizou-se, os ouvidos a tentarem detetar
o perigo, os dedos a fecharem-se em torno do punho da espada, sem se atrever sequer a respirar.
Por fim, ao escutar o tom das vozes no exterior, ficou certo de que ninguém tinha dado por nada, e prosseguiu para a entrada com a cortina, afastando-a cautelosamente; semicerrou os olhos ao deparar-se
com o brilhante Sol da tarde. A trinta passos dali, oito homens estavam sentados a uma mesa, a partilhar um grande jarro de vinho. Dois estavam a dormir debruçados sobre a mesa, as cabeças a descansar
sobre as mãos cruzadas. Os outros continuavam a emborcar o líquido. Apesar da boa qualidade das suas vestes, o cabelo era longo e emaranhado, e todos tinham barbas por fazer e a pele exposta coberta de
sujidade. Nenhum deles apresentava o ar de estar bem alimentado, e Cato calculou que deviam ser escravos da mina, tão intoxicados pela liberdade recém-recebida como pela bebida que iam consumindo. Bêbados
ou não, todos estavam equipados com espadas, e adagas aos cintos. Cato pensou rapidamente. Dois desacordados, mas ainda havia seis deles. O dobro do seu grupo, dois para cada um. Não era promissor. Pior
ainda, já que tinha muito pouca confiança na vontade e na habilidade de Cimber para combater. Sem escudos e capacetes, ele e Macro ainda teriam a vantagem do treino e da experiência, mas, tal como Macro
assinalara, teriam que defrontar homens ainda mais perigosos devido à sua curta experiência de liberdade e à sua determinação de nunca serem forçados a regressar à morte em vida que era a condição de
escravo.
Um repentino som gutural e um movimento de lábios meio resmungado nas suas costas fez com que Cato desse um pulo, enquanto o coração quase lhe saía do peito. Largou a cortina e rodou sobre si mesmo, desembainhando
a espada no mesmo movimento em que se agachava, pronto a desferir um golpe, e o braço esquerdo se elevava para contrabalançar a ação. O que ele tinha pensado que era um monte de trapos dava sinais de
vida, e um braço apalpou o ar antes de se firmar no chão. O homem grunhiu e começou a erguer-se sobre os cotovelos, o rosto repleto de rugas que lhe davam uma expressão magoada, antes de piscar os olhos
e os abrir de vez. Olhou em volta com ar ausente e por fim fixou o olhar no romano especado a uns três metros dele.
Enquanto o queixo do homem descaía e os olhos se lhe arregalavam com a surpresa, Cato saltou pelo interior escuro do compartimento e preparou-se para lhe aplicar um golpe letal com a espada. No último
instante resolveu aproveitar a oportunidade para capturar o homem vivo, e ergueu a espada para lhe dar uma pancada na cabeça com a guarda do gládio. A hesitação deu ao rebelde tempo suficiente para erguer
a mão e fechar os dedos em torno do pulso de Cato. Apesar do aspeto escanzelado, o antigo escravo tinha a força de um fanático, e aguentou o golpe sem ceder. Com os músculos em esforço, os dois homens
cruzaram os olhares, os queixos fechados a demonstrar a determinação que os animava. Então o rebelde fez menção de lançar um brado, mas da sua garganta seca não saiu mais do que um grunhido quase silencioso.
Cato fechou a mão livre num punho e aplicou um potente gancho na mandíbula do homem, obrigando-a a fechar-se e fazendo com que a cabeça fosse embater na parede com estrondo. Os dedos do rebelde perderam
imediatamente a força e escorregaram do pulso de Cato, enquanto o homem deslizava outra vez para o chão do bordel.
Cato ajoelhou-se junto à sua vítima, de respiração pesada. Quando ficou certo de que o homem estava sem sentidos, pegou numa túnica do chão e rasgou-a em tiras com a espada. Embainhou o gládio e atou
as mãos e os tornozelos do outro antes de lhe pôr uma mordaça. Satisfeito com o trabalho, debruçou-se sobre ele, colocou as mãos por baixo das axilas do homem desacordado e puxou-o para a posição de sentado.
Depois apoiou o ombro contra o corpo do homem e levantou-se com um grunhido, fazendo com que o outro ficasse apoiado no seu ombro. Pouco depois, emergiu para a rua das traseiras com o cativo, e Macro
olhou para ele, surpreendido.
— Foda-se, quando queres um prisioneiro, não perdes muito tempo. Como é que o apanhaste?
— Quase tropecei no sacana. Vamos, toca a desaparecer daqui.
— O que vamos fazer com ele? Tencionas levá-lo às costas o caminho todo até à coorte?
— Nem pensar. Vamos procurar um lugar tranquilo na orla da povoação para lhe fazer umas tantas perguntas. Siga à frente. Cimber, cobre a retaguarda.
A pequena procissão afastou-se do mercado, pela mesma rua por onde tinha vindo. Quando já estavam suficientemente longe das vozes roucas dos homens que bebiam no mercado, Macro adiantou-se, para procurar
um bom lugar para conduzir o interrogatório. Cato debatia-se com o peso da sua carga, e não evitou uma espreitadela para trás, para se assegurar de que Cimber fazia o que lhe tinha sido ordenado. O guia
desembainhara a espada e não fazia qualquer esforço para esconder o medo que sentia, como se estivesse à espera de ver os rebeldes a lançarem-se na sua perseguição a qualquer momento.
— Cimber, por Júpiter, homem, controla esses nervos — sussurrou Cato, em tom irado. — Estás a ponto de te aleijares, ou a mim, com essa lâmina. Guarda-a até ao momento em que tenhas realmente necessidade
dela para te defenderes.
— Sim, senhor. — Cimber olhou mais uma vez em volta antes de, com evidente relutância, embainhar a espada.
Ao rodar a esquina seguinte, Cato avistou Macro à entrada de uma casa, já na orla da povoação.
— Esta serve perfeitamente — disse o centurião em voz baixa, quando o prefeito se aproximou. — Há um bom quarto fechado nas traseiras.
Desviou-se para permitir a Cato passar com o prisioneiro, seguido por Cimber. Lançou um rápido olhar para um lado e outro da rua para ter a certeza de que ninguém os ia perturbar, e esgueirou-se para
dentro, tendo o cuidado de fechar a porta e trancá-la. Cato percebeu que estavam numa loja de um mercador de tecidos. Havia rolos de lã e de linho empilhados em prateleiras. Alguns tinham caído ou sido
puxados, e estavam espalhados pelo chão.
— Por aqui. — Macro levou-os por uma porta nas traseiras da loja, que dava para um pequeno pátio com uma abertura para o céu. Pouco maior era do que o compartimento de onde vinham, mas tinha uma disposição
que denunciava o gosto do proprietário pelo estilo romano, e o facto de não ter dinheiro suficiente para o concretizar de forma espaçosa. Uma mesa de madeira sem enfeites, com bancos dos dois lados, estava
colocada por baixo da abertura que dava suficiente luz natural para ver bem. Cato depositou o prisioneiro sobre a mesa, e o impacto fez com que o homem acordasse e piscasse os olhos.
Fechou-os ao notar a luz vinda de cima; depois, à medida que recuperava os sentidos, olhou em volta com ansiedade, viu os romanos e debateu-se brevemente com os nós que o apertavam, antes de se encolher,
a respirar profundamente através da mordaça que tinha na boca.
Cato fez um gesto a Macro.
— Vigie a rua enquanto eu trato disto. O amigo anuiu e saiu. Cato olhou para o prisioneiro.
— Falas latim? O homem não mostrou qualquer reação, pelo que Cato voltou a tentar.
— Latim...? Ou grego? Ao ouvir a palavra ”grego”, o prisioneiro anuiu. Cato virou-se para Cimber.
— Vais traduzir. Diz-lhe que tenho umas perguntas para lhe fazer. Quero respostas honestas. Se ele me tentar enganar, eu perceberei, e fá-lo-ei sofrer.
— Cato puxou da adaga e deixou a luz vinda de cima derramar-se sobre o aço polido da lâmina bem afiada. — Corto-lhe um bocado, de cada vez que achar que ele está a mentir. Se tentar dar o alarme, ou gritar,
volto a colocar-lhe a mordaça, e depois corto-o outra vez.
Cimber repetiu a ameaça, e o homem encolheu-se todo a tentar fugir de Cato, tanto quanto as cordas lhe permitiam. Cato tirou-lhe a mordaça e debruçou-se sobre ele de um lado da mesa, enquanto Cimber ficava
do outro.
— Vamos lá começar. Quero saber precisamente o que se passou por aqui. Há quanto tempo é que os rebeldes tomaram conta das instalações? Quantos eram? Quantos é que deixaram ficar cá?
Cimber traduziu e deu-se uma breve troca de palavras antes de o guia voltar a olhar para Cato.
— Diz que vieram há cinco dias. Durante a noite. Tomaram a povoação, antes de a guarnição da mina se render. Depois libertaram os escravos. Os que assim quiseram juntaram-se à rebelião, os outros puderam
seguir para onde desejaram. Não sabe quantos eram. Diz que era uma hoste.
Cato assentiu. Muitas vezes os camponeses não eram apenas iletrados, também não tinham consciência dos números. Qualquer número maior do que a pequena escala das suas experiências quotidianas era algo
nebuloso. Uma hoste podia querer dizer qualquer coisa entre centenas e vários milhares.
— Eram liderados pelo próprio Iskerbeles — prosseguiu Cimber. — Pôs os escravos a assistir enquanto a maior parte da guarnição era degolada. Eles e as pessoas que viviam na povoação. Só poupou o procurador
e mais uns tantos.
Estão a ser mantidos como reféns, de forma a que o Iskerbeles possa pedir um resgate por eles ao governador em Tarraco.
— Onde é que são mantidos os prisioneiros? — inquiriu Cato.
— No campo. Nos aposentos do procurador, diz ele.
— Onde, exatamente? Cimber interrogou o prisioneiro.
— Nas acomodações dos escravos, nas traseiras da casa.
— Conheces o edifício? Cimber assentiu.
— Lembro-me dele, sim.
— Ótimo. — Cato voltou à anterior linha de questões. — Onde foi o Iskerbeles?
O prisioneiro soltou uma resposta.
— Ele diz que depois de o Iskerbeles e os seus homens terem aquilo que queriam, partiram para libertar os escravos noutras minas. Não sabe para onde foram. Estava bêbado, e deixaram-no ficar para trás.
— Aposto que bêbado tem ele estado desde essa altura. — Cato debruçou-se sobre o homem e observou-o com todo o cuidado. — Pergunta-lhe como se chama.
— Básico, senhor.
— Muito bem, pergunta aqui ao Básico se os rebeldes levaram a prata com eles quando deixaram a mina.
O prisioneiro pareceu genuinamente confuso quando escutou a pergunta. Murmurou qualquer coisa e abanou a cabeça.
— Ele diz que não sabe nada acerca dessa prata. Cato semicerrou os olhos e encarou-o com dureza. O prisioneiro cruzou o olhar com ele por breves momentos, mas desviou os seus olhos rapidamente.
— Não acredito nele... O prefeito pousou a adaga na mesa. Pegou no bocado de pano que tinha servido de mordaça, enrolou-o numa bola e enfiou-o outra vez na boca do prisioneiro, antes de atar as pontas
com força por trás da cabeça de Básico. Depois voltou a pegar na adaga e aproximou-a do rosto do prisioneiro. Básico encolheu-se todo quando Cato o ameaçou.
— Disse-te o que te esperava se me mentisses. Olha bem.
Agarrou nas mãos amarradas de Básico e apertou-as contra a mesa com a mão esquerda. Depois foi baixando o gume da adaga até à pele do dedo mindinho, por baixo do nó, e cortou. De imediato, Básico agitou-se,
e um profundo grito de agonia tentou escapar-se da sua garganta, mas a mordaça transformou-o num gemido abafado. O gume atingiu o osso, e Cato fez mais força, enquanto aplicava um movimento de serra.
O osso partiu-se com um estalido súbito, e o dedo soltou-se. O sangue escorreu sobre a mesa, enquanto os olhos do prisioneiro rebolavam nas órbitas. O peito arfou, e o vómito surgiu a escapar-se em volta
da mordaça.
— Merda — resmungou Cato, pousando a adaga e apressando-se a retirar a mordaça. Da boca do prisioneiro saltavam espuma e bocados de vómito, enquanto o corpo se via possuído por um acesso de tosse e tentava
respirar. Cato deitou-o de lado e esperou que o acesso de vómito parasse e Básico voltasse a respirar por entre os dentes. A imagem da rapariga morta no bordel veio á mente de Cato, e toda a pena que
poderia sentir pelo homem desapareceu.
— Diz-lhe que da próxima vez vai ser o polegar. Depois passarei aos outros dedos, e no fim corto-lhe o caralho.
O rosto do homem estava distorcido pela agonia, mas ainda assim ele conseguiu encarar Cato e respirar fundo antes de ripostar.
— Jura ele que está a dizer a verdade. Não sabe absolutamente nada sobre qualquer prata. Ele trabalhava na mina e nunca teve nada a ver com a equipa da fundição. Nunca soube o que acontecia à prata depois
de ser extraída. O Iskerbeles não levou nada da mina quando se foi embora. Jura que é verdade pelas vidas de toda a família. Pede também que não volte a magoá-lo.
Cato olhou para o homem com atenção, escrutinando a expressão, os olhos, em busca de qualquer sinal de engano.
— Muito bem. Acredito nele... Básico percebeu o significado do que o romano dissera e deixou-se cair descontraído sobre a mesa, claramente aliviado.
— Quantos homens deixou o Iskerbeles para guardar os reféns? — Vinte homens, e mais um número semelhante de escravos que ficaram para trás, para saquear a povoação.
— Homens como ele, não é? Saqueador, violador e assassino. — Cato cuspiu sobre o prisioneiro, e contou a Cimber o que tinha visto. — Podes ficar certo de que o que eles fizeram aqui foi o mesmo que fizeram
a todos os teus amigos e família em Asturica. Talvez queiras pensar nisso, antes de insistires em voltar a correr para Tarraco com o rabo entre as pernas. Se fosse a ti, Cimber, não teria descanso até
me vingar de todos os que massacraram a minha família não teria grande opinião sobre a minha virilidade se fugisse à oportunidade de exercer a minha vingança.
Deixou que as suas palavras penetrassem no espírito do outro, e depois usou a túnica de Básico para limpar o sangue da adaga, antes de voltar a colocá-la ao cinto.
— Por mim, acabei. Ele é todo teu. — Cato pegou na mordaça e forçou-a outra vez para dentro da boca do prisioneiro, antes de sair.
Macro mantinha a porta entreaberta, enquanto vigiava a rua. Virou-se ao escutar o som das botas de Cato no piso de lajes.
— Conseguiste extrair-lhe alguma coisa? Cato anuiu.
— Ao que parece, a prata ainda está por cá. Escondida algures.
— Bem, isso não é grande ajuda. Como é que a vamos encontrar, por Hades?
— Vamos perguntar ao procurador. Ainda está vivo, é mantido como refém com outros, no campo. Deve ter escondido a prata antes de os rebeldes aparecerem. Temos que o encontrar.
— Agora? Nós os três? Cato abanou a cabeça.
— É tempo de sairmos daqui. Voltaremos com a coorte quando começar a escurecer. O problema vai ser chegar à casa do procurador antes que os rebeldes que o guardam percebam o que se está a passar e o matem.
Foram interrompidos por um abafado grito de terror vindo da outra sala.
Voltou a fazer-se ouvir, desta vez intercalado com os sons de golpes de espada a abaterem-se sobre carne e ossos. Macro deu um passo para lá, afastando-se da porta, mas Cato deteve-o.
— Já temos tudo o que queríamos do prisioneiro. Não o podemos levar connosco, e não podemos permitir-lhe que dê o alarme. O Cimber está a tratar do assunto.
— Tratar do assunto? — Macro olhou para o amigo e viu o resquício de um sorriso nos lábios de Cato. Inclinou a cabeça para olhar para além do prefeito. O único som que vinha agora do outro quarto era
o dos golpes finais. Fez-se silêncio, e por fim surgiu Cimber. Tinha o rosto, o corpo e os braços salpicados de sangue, e limpava a lâmina com um trapo, que lançou para o lado antes de fazer deslizar
a espada para a bainha. Macro há muito que se habituara à visão do sangue e de tripas, mas houve algo naquela cena que lhe provocou um pequeno arrepio que lhe percorreu a espinha. Tinha notado uma frieza
crescente no coração do amigo, algo que não estivera lá antes. Era mais do que mera indiferença ao sofrimento, pensou Macro. Era pior do que isso. Aquele sorriso nas feições de Cato. Reconhecia perfeitamente
aquela expressão. Era o rosto de um homem que se tinha tornado cruel, e que sentia prazer na sua crueldade.
— Vamos embora daqui — disse Cato.
Tinha sido um dia longo e quente, e os guardas que vigiavam o portão das instalações da mina mal podiam esperar pelo momento em que seriam substituídos, ao entardecer. Metade da torre era coberta por
um toldo feito de canas entrelaçadas, e dava algum abrigo do impiedoso brilho do Sol, mas o ar era pesado e imóvel, e o tédio de manter a vigilância sobre os acessos à mina só era interrompido de vez
em quando por conversas ou jogos de dados, à medida que iam rodando no posto de vigia. O júbilo com que tinham recebido a libertação quando os rebeldes haviam assaltado a mina e libertado os escravos
fora de curta duração. Iskerbeles tinha-lhes concedido tudo o que haviam pedido, e tinha-lhes dado rédea livre quanto ao campo, a casa do procurador, e a povoação no exterior da mina. Seguira-se uma verdadeira
orgia de saques, violência, violações, assassínios e bebida, enquanto os escravos exerciam as suas vinganças sobre os seus antigos senhores e os que os serviam. Tinha durado dois dias, e depois o líder
dos rebeldes assumira o controlo da situação, e designara um punhado de homens para permanecerem no campo e guardarem os prisioneiros, enquanto a hoste prosseguia caminho para continuar a fomentar a revolta
pela região.
Era bom verem-se livres das cadeias que durante tantos meses ou anos, no caso dos mais antigos, tinham feito parte das suas vidas. Já não tinham que enfrentar o terror diário de serem forçados a descer
aos escuros túneis que corriam por baixo da escarpa. Já não tinham que trabalhar em espaços exíguos, em passagens sem ar e que libertavam odores malsãos, onde cada queda de terra solta, cada ranger dos
postes que suportavam o teto da mina, podia anunciar o colapso de um túnel e a consequente sepultura em vida para todos os que trabalhavam sob o solo. De vez em quando, os escravos encontravam nas suas
escavações os cadáveres decompostos e os ossos dos que tinham morrido em desmoronamentos anteriores, e esses restos eram levados com a terra estéril que era extraída do terreno. A liberdade também tinha
levado ao fim da miserável dieta de papa rala, e dos blocos prisionais apinhados onde eram encerrados todas as noites. As espessas paredes desses edifícios eram feitas de pedras em bruto, sem qualquer
cimento, e os ventos gelados do inverno infiltravam-se por entre elas e iam congelar os ossos dos que jaziam lá dentro; por outro lado, no verão, o ar quente abafava-os, tornando insuportável o cheiro
fétido a suor, urina e dejetos.
Também tinha acabado a necessidade de manter a cabeça baixa e evitar cruzar o olhar com o dos capatazes, que mal necessitavam de desculpa para aplicar um espancamento ou chicoteamento. Eram homens cruéis,
cujo dever único consistia em extrair de cada um dos escravos o máximo do esforço antes da morte, altura em que os seus corpos eram lançados para a vala situada junto ao caminho que levava ao campo de
trabalho. Todos os que se atreviam a desafiar os capatazes, fosse por palavras ou por gestos, recebiam espancamentos selváticos, e os poucos cujo desespero era tanto que ousavam ripostar eram crucificados
e deixados à morte, os seus gritos, lamentos e gemidos a servirem de aviso claro aos que se atreviam a esquecer-se do lugar que ocupavam naquele mundo sem clemência. Era ainda pior para o pequeno número
de mulheres que se viam condenadas às minas. As que eram consideradas mais atraentes pelos capatazes e guardas, ou que estavam por acaso à mão quando lhes surgia a vontade, podiam ser simplesmente levadas
para um canto e violadas, degradadas da forma que mais aprouvesse aos homens, antes de serem devolvidas ao trabalho ou enviadas para os blocos. E mesmo lá não estavam a salvo dos ataques de outros escravos.
Em tais condições, não era grande surpresa que existissem muitos e muitas que não aguentavam, e decidiam acabar com as próprias vidas. Era possível a um escravo enforcar-se usando as correntes e as pesadas
vigas que suportavam os telhados dos blocos prisionais. Ou esmagar a própria cabeça contra uma parede, ou cortar o pescoço ou os pulsos numa pedra afiada ou num pedaço de madeira acerada. Alguns conseguiam
mesmo engolir as próprias línguas. sufocando até à morte numa sucessão de espasmos violentos, até sucumbirem..
Fosse qual fosse o método escolhido, os corpos eram arrastados para fora dos blocos e lançados para cima dos corpos em decomposição na vala, e a carne e órgãos dos seus cadáveres ficavam à disposição
de bicos e garras de aves e outros animais necrófagos.
E tudo para que fossem seguidos os estreitos filões de metal raro para saciar os apetites dos ricos e poderosos que viviam na longínqua Roma. Dinheiro manchado de sangue, que era pago em miséria e crueldade
infligidas nos miseráveis exemplares de mortos-vivos que se arrastavam para dentro e para fora das escuras bocas dos túneis.
Até ao dia em que Iskerbeles tinha surgido e os tinha libertado.
Agora a vida era boa, e o aborrecimento dos deveres de vigilância um luxo que um homem livre nunca poderia realmente apreciar. Era bom ter nas mãos as armas que tinham sido dos seus opressores. Embora
todos soubessem que um dia, em breve, os romanos regressariam, determinados a esmagar a rebelião e a punir duramente os responsáveis por ela. Quando esse dia chegasse, empenhar-se-iam em combater até
à morte de forma determinada, decididos a preservar a liberdade que tinham recebido como a mais preciosa das oferendas. Antes isso do que enfrentar um regresso à tenebrosa e perigosa mera :istência da
vida como escravo, onde a morte não era mais do que um alívio do sofrimento.
O homem que estava de vigia aos acessos à mina apoiava-se na balaustrada de madeira da torre. Envergava uma túnica verde de tecido fino, que tinha encontrado na casa do procurador. Com os dedos da mão
livre, acariciou uma dobra do tecido. As botas, tinha-as tirado a um auxiliar morto; eram as primeiras botas que alguma vez tinha tido. Para lá da lança na mão, tinha ao cinto uma espada, com um punho
ricamente trabalhado a sair da bainha. O estômago encontrava-se bem confortado e, apesar de na véspera se terem esgotado as últimas ânforas de vinho, ele tencionava ir verificar algumas das casas da povoação,
para ver se havia por lá alguma coisa que tivesse escapado à atenção dos saqueadores que por lá tinham passado antes, o último dos quais regressado da aldeia há cerca de uma hora. Atrás dele, três dos
seus camaradas estavam sentados com as costas apoiadas ao parapeito interior, a dormitarem, sem preocupações. O guerreiro asturiano que tinha ficado no comando do campo não faria as suas rondas até à
mudança da guarda, portanto não seriam perturbados ainda durante algum tempo.
Um movimento prendeu-lhe a atenção. Uma pequena nuvem de poeira surgiu a espalhar-se por cima da crista de uma colina, a curta distância da povoação. Apareceu um vulto, a conduzir uma mula. Depois, outras
mulas e um punhado de homens, a conduzi-las. Dirigiam-se diretamente para o campo. O vigia endireitou-se e quase involuntariamente agarrou na lança com mais força. O seu primeiro pensamento foi o de dar
o alarme. No fim de contas, os homens e mulas que se aproximavam eram os primeiros a aparecer por ali desde que Iskerbeles tinha partido. Mas quando viu que eram apenas quatro homens, hesitou. Que ameaça
poderiam eles representar para os que protegiam a mina? Se fizesse soar o sino, o asturiano apressar-se-ia a chegar ali para indagar a causa do alarme. Quando visse os desconhecidos e as suas mulas, ia
com toda a certeza ficar furioso e dar-lhe um raspanete por o fazer perder tempo, tal como tinha feito com qualquer um dos antigos escravos que na sua opinião não tinham cumprido os seus novos deveres
de forma cabal. Portanto, o vigia ficou a ver o pequeno comboio de mulas a aproximar-se, e quando este prosseguiu a caminho da povoação, virou-se para os seus camaradas.
— Rapazes, levantem-se. Temos companhia.
Um deles entreabriu um olho e tossicou.
— O que há, Repha? — Alguns homens com mulas aproximam-se do campo.
— Quantos são? — Quatro. Quem é que achas que podem ser? — Não sei. Também não me preocupa muito. Se eles se aproximarem mais. diz-lhes que a mina está sob nova gerência, e que podem ir bater a outra
porta.
Os outros dois homens encostados à parede tinham acordado com a troca de palavras, e sorriam vagamente perante o comentário.
Repha avançou para eles e deu um toque no mais próximo com a ponta da bota.
— Dá-me ideia que aquelas mulas trazem ânforas. Talvez de vinho.
— Vinho? — O outro pôs-se imediatamente de pé, antes de se espreguiçar — Bom, porque é que não disseste logo? Se eles vierem até ao portão, veremos se os podemos convencer a separarem-se de algum desse
néctar. Que tal,. rapazes?
— Boa — lançou um dos outros, enquanto se juntavam a Repha na frente da torre e olhavam para a povoação, mesmo a tempo de ver a última das mulas a entrar para a rua principal. Os recém-chegados deixaram
de estar à vista durante algum tempo, até voltarem a aparecer por entre os edifícios mais próximos, dirigindo-se diretamente para a entrada da mina. O líder vinha montado numa mula, com as pernas a oscilar
dos dois lados do animal. Vestia uma capa de cinzento-claro, com um capuz lançado para trás, que revelava o cabelo e as feições morenas de um homem da região. Ergueu uma mão à laia de saudaçãoenquanto
conduzia o seu pequeno comboio de mulas até à ponte que se estendia sobre o fosso externo.
— Podes parar aí mesmo! — avisou Repha. O homem puxou pelas rédeas da mula, e o animal deteve-se. Os outros imitaram-no, levando os seus animais a pararem, e Repha pôde verificar que todos vestiam túnicas
simples e botas, e nenhum trazia armas à vista.
— O que querem? — Sou Mânlio Oscorfo, mercador de vinhos, de Palastino, ao seu serviço — veio a resposta, no dialeto local. — Ouvi dizer que tinha havido uma mudança de regime aqui pela mina. Homens com
recém-adquiridas fortunas, que talvez tenham algumas moedas para gastar nos melhores vinhos que podem ser adquiridos em toda a região asturiana. — Fez um gesto a designar as ânforas encaixadas em cestos
de vime nos flancos das mulas. — O suficiente para saciar a sede de uma boa centena de homens. Se o preço for aceitável, claro. Gostaria de experimentar, amigo?
— Porque não? — deixou escapar um dos camaradas de Repha, enquanto se preparava para descer a escada que conduzia ao piso térreo do portão fortificado. Os outros mostraram intenção de o seguir, mas Repha
bloqueou-lhes a passagem.
— Temos as nossas ordens. Ninguém entra ou sai sem autorização.
— Vais deixar que aquele asturiano seja o teu novo senhor, é isso? — gozou um dos companheiros. — Que mal pode ter ir espreitar? Além disso, eles são só quatro, e nem estão armados. Vá lá, Repha. Vamos
só experimentar.
O homem nem esperou por resposta; passou por ele e começou a descer a escada antes de Repha encontrar réplica.
— Então e as ordens? — Ordens? Que se fodam, digo eu. Por mim, nunca mais vou receber ordens, seja de quem for.
Um momento depois, Repha viu-se a sós. Hesitou por instantes, e depois deixou escapar um silvo de frustração, antes de descer para se juntar aos seus camaradas, do lado de dentro do portão. A tranca já
tinha sido retirada dos encaixes, e um dos homens do grupo já abria as portadas. Repha voltou a fincar a pega da lança e conduziu o grupo pela abertura, num esforço derradeiro para tomar o comando.
— Rapazes, vigiem-nos com atenção. Ao primeiro sinal de problemas, espetamo-los para começar, e fazemos perguntas depois. Entendido?
Levou o grupo a atravessar o portão e a ponte, lentamente, as mãos sem largar o cabo da lança. Parou perto do mercador e escrutinou-o. Bem alimentado e com carne a mais no rosto.
Este recebeu os rebeldes com um sorriso, desceu da mula e dobrou-se todo.
— Honráveis clientes, juro por tudo o que é sagrado que não ficarão desapontados com a minha mercadoria. Venham, deixem-me mostrar-vos o que vos trouxe. — Apontou para os recipientes sobre o dorso de
um animal a meio da pequena coluna. — Vamos começar com o meu vinho mais popular.
— Inclinou-se para Repha e deu um toque no nariz, enquanto falava em tom quase conspirativo. — E vamos deixar o melhor para o fim, hã?
Repha deitou um olhar aos homens que acompanhavam o mercador, mas parecia não existir nos seus rostos qualquer expressão, para lá de uma certa ansiedade e atenção ao avanço dos quatro guardas fortemente
armados. O que era perfeitamente natural, dado o risco que estavam a assumir ao vender vinho aos rebeldes. Mas a verdade é que haveria sempre mercadores preparados para tomar esses riscos onde o potencial
para bons lucros fosse o máximo.
— Cá está! — O comerciante avançou alguns passos e deu uma palmada numa ânfora transportada pela mula a cargo do mais próximo dos condutores, um homem baixo e entroncado. — Vinho com mel, de Barcino.
Doce e refrescante. — Tirou a tampa da ânfora e debruçou-se para aspirar o aroma que vinha do interior.
— Ah! Coisa de sonho. Quem quer experimentar? — Porque não? — disse um dos guardas. — E quem sabe, talvez até te compremos algum, em vez de ficarmos com tudo e te mandarmos dar uma volta.
— Vamos lá! — Oscorfo soltou uma risada. — Meus amigos, não há necessidade de ameaças. Sobretudo com um homem decente e honesto como eu. — Fez um gesto aos outros condutores. — Tragam umas taças aqui
para os nossos amigos!
Obediente, o condutor alto e magro que vinha no fim do comboio de mulas prendeu as rédeas ao animal que o precedia, e pôs-se a procurar num cesto preso ao dorso de outra mula. Levantou-se e aproximou-se
do mercador e dos seus clientes. Ao passar por trás do condutor mais adiantado, deu a sensação de tropeçar e deixar cair o cesto. O camarada virou-se para o ajudar a levantar-se, e no instante seguinte
os dois endireitaram-se, de espadas e adagas na mão, e lançaram-se sobre os espantados guardas. O mercador pegou numa moca que trazia na mochila e dirigiu-a com toda a força contra a cabeça do rebelde
mais próximo. O homem caiu como uma rocha.
— Apanhem-nos! — rosnou o condutor mais baixo, enquanto corria na direção do mais próximo dos camaradas de Repha e o atingia com a ponta da espada no ventre, com toda a violência, antes de a fazer dançar
de um lado para o outro, perante os gemidos da sua vítima. O companheiro fez descer a espada num golpe feroz contra a cabeça do homem, e o gume da espada fez-lhe estalar o crânio e mergulhou na matéria
cinzenta contida no interior.
Tinha acontecido tudo tão depressa que o mercador já preparava outro golpe contra o crânio de Repha antes de este pensar sequer em reagir. No último instante conseguiu desviar-se, e o couro pesado assobiou-lhe
aos ouvidos. Repha agachou-se para recuperar o equilíbrio e baixou a ponta da espada, convocando toda a sua força para a fazer trespassar o corpo do comerciante traidor. Pelo canto do olho viu o último
dos seus camaradas a cair, depois de levar um murro nos queixos. Tinha acontecido tudo tão depressa. Aqueles homens não eram condutores de mulas, eram sim assassinos profissionais que tinham iludido os
homens encarregados da proteção ao campo da mina. Iam pagar caro pela sua traição, resolveu Repha, enquanto contraía os músculos e se preparava para empalar o mercador. O homem recuou aos tropeções, o
rosto amigável do vendedor transformado numa máscara de medo.
Um relâmpago metálico atravessou o ar e Repha sentiu a dor a correr-lhe pelos dedos e braços, enquanto via o gume de uma espada profundamente cravado no cabo da sua lança. O golpe fez a ponta da lança
cair para o solo, e antes que Repha percebesse realmente o que tinha acontecido, uma adaga rasgou-lhe a garganta, e o sangue quente precipitou-se sobre a túnica que vestia. Por instinto, largou a lança
e afastou-se a cambalear, com as duas mãos a apertar o pescoço, num esforço vão para deter a torrente vermelha que irrompia dele. Já se sentia pouco consciente quando olhou em redor e verificou que todos
os seus camaradas tinham sido derrubados. Um imóvel, os outros dois a retorcer-se no solo, feridos de morte. Repha tentou falar, gritar, dar o alarme, mas o único som que lhe saía da garganta era um borbulhar
impercetível. A escuridão tomava conta da periferia do seu campo de visão, e começava a sentir-se tonto. O seu quase derradeiro pensamento foi para a culpa que o preenchia por ter falhado no dever de
proteger o resto dos seus camaradas na mina. Por fim, uma mão ainda a segurar a garganta, arrancou a adaga do cinto e cambaleou na direção do condutor mais forte. O homem evitou o ataque com facilidade
e rasteirou Repha, o que fez com que ele se precipitasse sobre o solo, caindo com a cara na poeira. Tentou levantar-se, mas já não tinha forças para isso, e ali ficou a tentar sorver o ar enquanto o seu
sangue e a vida lhe fugiam do corpo.
— Deixa-te estar quietinho, cabrão de rebelde — disse Macro, enquanto punha a bota sobre o pulso do homem e carregava com toda a força, ferindo-o até que os dedos se abriram e a adaga escapou para o solo.
Macro aplicou-lhe um pontapé e recuou um passo, antes de olhar em redor. Metelo estava a recuperar a espada das costas do adversário que abatera, enquanto Cimber aplicava outra mocada na cabeça de um
homem que estava a tentar sentar-se. Em vez disso, apagou-se como uma vela e tombou, inconsciente, sobre o solo. Cato já se afastava a bom passo da cena da breve escaramuça. Levantou a espada o mais alto
que lhe era possível e fê-la oscilar de um lado para o outro, o sinal para o resto da coorte avançar. Do cimo da colina que dominava a povoação veio a resposta, um clarão breve provocado pela luz do Sol
a refletir-se em metal polido. Cato lançou uma prece para que ele não tivesse sido visto por nenhum dos rebeldes ainda no campo, enquanto enfiava a espada na bainha e se virava para os outros.
— Peguem nas lanças. Coloquem os corpos por baixo da ponte e tu, Metelo, leva as mulas para ao pé dos edifícios e deixa-as longe da vista.
Enquanto as suas ordens eram cumpridas, Cato voltou a olhar para a área onde estava a coorte, e ficou satisfeito ao verificar que havia poucos indícios de movimento, já que os pretorianos seguiam o leito
de um rio seco que serpenteava junto à povoação antes de se juntar ao rio que passava pela mina. Só uma ténue nuvem de poeira marcava o progresso das tropas. Não devia ser suficiente para atrair as atenções
de quem quer que estivesse de vigia nas instalações situadas em terreno mais elevado. Virou-se para Cimber, que se apoiava no portão e respirava pesadamente.
— Bom trabalho. Cimber abanou a cabeça.
— Nunca acreditei que isto resultasse. Macro soltou uma gargalhada.
— Oh, amigo, portaste-te muito bem. Mesmo muito bem. Lembra-me de nunca tentar comprar-te uma carroça velha.
Cimber sorriu fracamente e afastou-se do portão, enquanto respirava fundo e tentava acalmar os nervos.
— Assim é melhor. — Cato deu-lhe uma palmada no ombro. — Mas esta foi a parte fácil. Portanto, não percas a cabeça, sim?
— Senhor, farei o meu melhor.
— Não te posso pedir mais.
Assim que Metelo regressou de ter ido esconder as mulas, Cato conduziu o seu pequeno grupo pelos portões e para o interior da área da mina. À esquerda ficava uma longa série de barracas repletas de ferramentas,
sem portas e com extensas filas de pás e picaretas alinhadas. Depois via-se a vasta parede de terra vermelha e a escarpa rochosa que pareciam uma grande ferida infligida na face da crista montanhosa na
qual corriam. A base da escarpa era trespassada por túneis a espaços regulares, cujas aberturas davam para o solo nu que se estendia até à orla da ravina por onde corria o rio. Aqui e ali viam-se montes
de terra que tinha vindo das profundezas dos túneis.
— Mantenham-se junto à escarpa — ordenou Cato, enquanto corria para se colocar à sombra da falésia, antes de prosseguir na direção do trilho que conduzia aos edifícios, a uns quatrocentos passos de distância.
Não havia sinal de vida na área de trabalho, à exceção dos pássaros negros que descreviam círculos preguiçosos ao fundo da área, mas isso não constituía surpresa para Cato. Aquele era um lugar desolado,
e os que tinham sido obrigados a trabalhar ali só pensavam em evitar a área, para não acordar as memórias de tudo o que lá tinham sofrido. Aumentou a velocidade do passo e olhou para trás, para ter a
certeza de que os outros o imitavam. Era vital que encontrassem o procurador antes que o inimigo se apercebesse da presença da coorte. Quando se aproximaram do início do trilho que levava à cornija em
que os edifícios tinham sido construídos, Cato avistou uma linha de grossos postes cravados no solo, do alto dos quais pendiam correntes, fixas em anéis metálicos. Por trás deles, numa área escavada na
falésia, que só se tornou visível quando se aproximaram do trilho, havia outra série de postes, estes mais altos e com traves cruzadas. Em cada um deles estava pregado um homem. Todos estavam mortos,
menos um, e esse limitava-se a rolar a cabeça de um lado para o outro, lentamente, enquanto os lábios secos e estalados se mexiam em silêncio.
Reduziram o andamento ao chegarem ao pé do homem crucificado, e a face de Cimber ficou sem pinga de sangue quando ele parou e contemplou horrorizado os corpos inchados e mutilados.
— Quem são estes? Escravos? — Capatazes, ou soldados da guarnição, mais provavelmente — respondeu Macro. — Desgraçados.
Ao ouvir o som das botas romanas a esmagarem a gravilha, o sobrevivente abriu os olhos e contemplou-os, a boca a mexer-se enquanto ele tentava falar, sem conseguir mais do que emitir um gemido gutural
e arranhado.
— Temos que o ajudar — decidiu Cimber, dando um passo relutante na direção da linha de homens crucificados.
— Não — instou Cato. — Não temos tempo para isso. Temos que seguir.
— Senhor — protestou Metelo. — Temos que... Cato voltou-se para ele, irritado.
— Ele já está morto, é demasiado tarde para tentar salvá-lo. E agora, boca calada e segue as ordens que te foram dadas.
— Espera — disse Macro. — Há uma coisa que podemos fazer por ele.
Avançou até à base do poste e levantou a lança. Apoiou a ponta contra a zona macia por baixo do peito do homem e olhou para cima, detetando nos olhos do outro uma réstia de consciência, antes de ele cerrar
o queixo e anuir de forma percetível. Sem hesitar, Macro aplicou um poderoso golpe, fazendo a ponta da lança avançar até ao coração do supliciado. A cabeça do homem atirou-se para trás, e a boca abriu-se
num grito silencioso, enquanto o corpo se esticava e remexia tanto quanto lhe era possível pelas mãos e pés pregados à cruz, antes de descair e ficar ali dependurado como uma carcaça à espera de ser desmanchada
pelo magarefe. Macro puxou a lança para baixo e deu um passo atrás para escapar à corrente de sangue que jorrou da ferida.
— Está feito — disse Cato, com azedume. — O espetáculo terminou.
Vamos em frente. Cimber, mexe-te!
Prosseguiram em ritmo acelerado, a subir pelo trilho inclinado. No ar lá em cima, os pássaros lançavam gritos estridentes e breves, enquanto vogavam pelo ar quente. Uns cem passos adiante, o caminho dobrava-se
sobre si mesmo para continuar a seguir para o campo, e eles mantiveram-se nas sombras enquanto corriam, a respirar pesadamente devido ao exercício. Já perto da curva Cato detetou um cheiro pestilento,
doentio, azedo, e percebeu de imediato o que era. O odor de corpos em decomposição.
— Foda-se — resmungou Macro, o nariz irritado pelo fedor. — E eu a pensar que este lugar não podia mostrar-nos nada pior.
Cimber cobriu a face com uma mão, apertando o nariz e tentando tapar a boca enquanto corria. Chegaram à curva e só então perceberam a razão para aquele odor insuportável. Na parte de baixo, tinha sido
aberta uma grande vala que se encontrava quase cheia de corpos empilhados. A maior parte estava nua, mas alguns exibiam parcos trapos. Os cadáveres mais antigos dos que eram visíveis estavam inchados
e cobertos de manchas. Alguns tinham mesmo rebentado, abrindo buracos para o interior do corpo, por onde os pássaros e outros necrófagos se tinham metido para alcançar os órgãos e as entranhas. Os corpos
mais recentes jaziam por cima deles, muitos com marcas evidentes de terem sido atingidos por armas cortantes. Cato sentiu-se enjoado ao verificar que havia entre eles muitas mulheres e crianças. Deviam
ser, sem dúvida, os habitantes da povoação e as famílias dos que tinham trabalhado no campo.
Levados até ali, massacrados e lançados para a fossa, para junto dos corpos dos escravos à custa de quem tinham vivido. O maldito círculo sangrento da vingança, a rodar, a rodar sempre, sem parar.
— Cabrões — soltou Cimber.
— Quais deles? Os nossos, ou os outros? — ripostou Cato de imediato. — Vamos, não temos muito tempo. Sabes o caminho, portanto toma a dianteira e conduz-nos.
Cimber ainda estava de rosto pálido, e Cato agarrou-o pelos ombros e abanou-o com força.
— Vá, homem, aguenta-te. Se não conseguires, vamos acabar ali em baixo, ao pé de todos aqueles desgraçados.
Cimber engoliu em seco, anuiu, e voltou as costas ao tenebroso cenário.
Começou a subir a última extensão do trilho até à zona mais larga onde as acomodações tinham sido construídas. Ao avistarem o primeiro dos edifícios, Cato deu uma ordem quase silenciosa para fazerem alto
e avançou agachado com Cimber, mantendo-se ambos juntos às rochas na berma do trilho enquanto este se abria para uma área plana e alargada, à sombra da crista montanhosa.
Ali agachado, Cato avaliou a disposição do campo. À direita ficava a casa do procurador. Paredes caiadas de branco sobre fundações de pedra trabalhada, com telhas por cima. Na parte de trás da casa umas
ramagens denunciavam a presença de um jardim interior. A casa estava separada do resto do campo por uns cinquenta passos, ponto onde começava um conjunto de edifícios mais pequenos. Acomodações para a
guarnição, capatazes e outros trabalhadores da mina, calculou Cato. Por trás deles via-se uma muralha com um portão fortificado. Havia um passadiço que corria ao longo dela, e que permitia vigiar as acomodações
dos escravos que ficavam do outro lado. O portão estava escancarado e todos os postos que em tempos tinham sido ocupados por sentinelas atentas ao que se passava do outro lado estavam abandonados, como
o portão.
A maior parte dos rebeldes que tinham ficado a guardar o campo tinham-se instalado nas casernas da guarnição, e estavam sentados no exterior dos blocos, em bancos, a jogar aos dados, a rir e a conversar,
a celebrar a liberdade que há tão pouco tempo tinham conquistado. Um homem fora colocado de guarda à entrada da casa do procurador, mas estava sentado num banco, de costas apoiadas na parede e a cabeça
descaída sobre o peito, a dormitar.
— Não posso dizer que me sinto impressionado com a forma como os rebeldes guardam o lugar — comentou Cato. — Podem ser muito corajosos, mas, quanto a disciplina, não valem nada. Há outra forma de chegar
aos aposentos do procurador?
Cimber anuiu, e apontou para a face lateral da casa, que se prolongava quase até à saída do trilho.
— Há uma área nas traseiras da casa, que o procurador anterior tinha aberto para fazer dele um terreiro para a instrução das tropas. Há uma porta ao pé das acomodações dos escravos.
Cato olhou para a parede e, apesar de só existir uma passagem estreita entre esta e a orla da falésia, parecia ser fácil de contornar, desde que não fossem vistos. Se tal sucedesse, seria muito fácil
bloquear-lhes a passagem dos dois lados e encurralá-los. Chamou Macro e Metelo com um gesto, e explicou-lhes o plano.
— É por ali que vamos. Depois procuramos o procurador e colocamo-lo em segurança até que a coorte tome o campo. Ao meu sinal.
Havia um espaço aberto entre a posição que ocupavam e o canto do edifício.
Ninguém olhava naquela direção, e a sentinela à entrada da casa parecia continuar no seu sono tranquilo. Se corressem todos juntos, havia um elevado risco de serem detetados. Portanto, Cato deitou-se
de barriga no solo antes de sair de trás de um penedo e rastejou pela gravilha e tufos de relva até chegar ao canto, onde voltou a assumir uma posição agachada, enquanto fazia sinal ao homem seguinte
do grupo. Macro foi seguido por Metelo e depois foi a vez de Cimber. O guia olhou para a esquerda, pôs-se de gatas e começou a atravessar o terreno de quatro, apressando-se e deixando no seu rasto uma
nuvem de pó no ar.
Cato olhou para o grupo de rebeldes e viu um deles a levantar-se do banco e dar alguns passos na direção dos romanos, esforçando a vista para contemplar a casa do procurador.
— Cimber! — soprou. — Abaixa-te! Agora mesmo! O guia interrompeu o percurso e olhou para Cato com um ar surpreso, e por momentos deu ideia de que se preparava para continuar da mesma forma. Cato fez um
gesto violento com a mão para baixo, espalmada, e Cimber por fim deixou-se cair sobre a barriga e encolheu-se contra o solo. Uma ténue nuvem de poeira dançava em seu redor, começando a dispersar-se enquanto
Cato espreitava cuidadosamente à volta da esquina do edifício para observar o rebelde. O homem continuou a olhar preocupado naquela direção por mais uns momentos, antes de se espreguiçar longamente, rodar
os braços sobre a cabeça e regressar para junto dos seus camaradas. Cato deixou escapar um longo suspiro de alívio e fez um gesto a Cimber para prosseguir.
Quando o homem alcançou o canto, Macro espetou-lhe um dedo no peito.
— Porra, meu imbecil, o que é que estavas a fazer? A tentar matar-nos a todos?
Cimber tremia como varas verdes.
— Senhor, desculpe. Eu-Eu-Eu...
— Não importa — interveio Cato. — Fica aqui ao pé de mim.
Levou-os ao longo da parede, escolhendo o caminho com todo o cuidado nos locais onde o limite da falésia chegava quase ao muro. Quando alcançaram a outra ponta, escutaram um grito distante, seguido por
outro. Depois soou pelo campo o tinir de um sino. Cato e os outros detiveram-se e olharam para trás.
Cimber estava tão abalado como se tivesse sido atingido por um golpe.
— Oh, doce Júpiter, já deram por nós! — Não, palerma, o que aconteceu foi que avistaram a coorte. Não a nós.
Vamos.
Ultrapassaram as rochas até chegarem ao fim da parede, e Cato deteve-se o coração aos pulos; depois espreitou pela esquina. Era tal e qual Cimber tinha descrito. Uma área de terreno fora desbravada, e
tinha ali sido erigido um poste para treino de espada, bem como um alvo para os arqueiros e para a prática com os dardos. Era claro que o procurador anterior se considerava uma espécie de guerreiro. Não
havia ninguém à vista, embora agora ouvissem gritos no interior da casa. Cato acenou aos homens para avançarem e prosseguiu ao longo da parede das traseiras na direção da porta em arco que se situava
a meio dela. Havia um pesado ferrolho de ferro, e Cato colocou a orelha contra a porta, mas não detetou qualquer som do outro lado. Pegou na lança com a mão direita, endireitou-se e testou a fechadura.
O ferrolho subiu com um barulho de atrito, e a porta abriu-se com um leve gemido das dobradiças, revelando um pequeno pátio. Dos dois lados havia celas. Em frente a Cato abria-se uma curta passagem que
dava para o tal jardim.
O prefeito mandou os outros entrar, enquanto examinava com a vista as pequenas divisões aos lados do pátio. Estavam quase todas vazias, para lá de alguns trapos ou cobertores ali deixados. Uma delas continha
cestas de telhas sobressalentes e tijolos. Junto à passagem havia duas celas maiores, com portas pesadas e forradas a ferro. Ambas estavam fechadas e tinham pequenas aberturas com grelhas para deixar
entrar a luz. Macro espreitou para a primeira, e na penumbra do interior divisou três homens acorrentados, sentados no chão de pedra. Um deles olhou para ele e escarrou.
— Os cabrões voltaram para nos dar outra carga de porrada, rapazes.
— Elegante — comentou Macro. — Mas se é isso que querem... O prisioneiro deu um salto de surpresa.
— És romano? Romanos! — Deu um empurrão ao homem mais próximo.
— São dos nossos. Foda-se, até que enfim.
— Calados — ordenou Cato, enquanto Macro fazia deslizar a tranca e abria a porta. — Pouco barulho, caraças!
A luz inundou a cela, e Cato conseguiu ver os golpes e nódoas negras nos rostos e braços dos homens, e que eles estavam sentados em cima da sua própria imundície. O primeiro mostrou as correntes e abanou-as.
— Tirem-me isto! — Pouco barulho! — ameaçou Cato. — Algum de vocês é o procurador? — Gaio Nepo? Está na outra cela. Cato recuou para o exterior.
— Metelo, leva estes homens daqui para fora. Dirigiu-se à outra porta, fez deslizar a tranca e entrou. Um homem estava no solo junto à porta, todo encolhido. Estava nu, e a pele, marcada por queimaduras
e cortes, tinha uma cor púrpura devido ao espancamento brutal que sofrera. Cato ajoelhou-se ao seu lado e abanou-lhe suavemente o ombro. O homem estremeceu e deixou escapar um gemido ao toque do prefeito.
— Cimber, arranja qualquer coisa para o procurador vestir, e depois guarda-o com a tua própria vida.
Fora da cela, Macro deu-lhe novas informações, com um ar preocupado.
— Senhor, eles estão num estado miserável. Não podemos mexer-nos muito com eles.
— Nesse caso, teremos que ficar aqui até que a coorte tome o edifício. E...
Foram interrompidos por um grito de alarme, e viraram-se para a passagem do jardim, onde viram um dos rebeldes, que tinha uma mão em concha junto à boca e gritava na direção da frente da casa do procurador.
— Merda! — Cato baixou a lança e correu naquela direção, com Macro logo atrás. Ao som das botas, o rebelde olhou em volta, de boca ainda aberta, e depois virou-se e correu, saltando por cima de um arbusto
ornamental, enquanto galgava o jardim, a caminho do edifício principal. Entretanto, já tinha surgido outro homem de espada na mão, que compreendeu de imediato a situação e gritou por auxílio. Cato e Macro
tinham-se embrenhado uma curta distância pelo jardim. Em gritante contraste com a paisagem árida e seca do resto do campo mineiro, aquela área mostrava linhas de ciprestes e árvores de fruto de vários
tipos. Arbustos cuidados delimitavam uma área de areia fina, e dividiam-na em quadrantes. Ao centro havia um lago quadrado, com uma pequena fonte que esguichava água sobre um golfinho esculpido. Em torno
do jardim, a espaços, havia sólidos bancos de madeira. Era um quadro de serenidade cultivada, longe da realidade penosa da mina imperial; tais pensamentos correram rapidamente pela mente de Cato, enquanto
ele se detinha e olhava para a passagem que se abria do outro lado do jardim. Havia mais homens a emergir da casa, conduzidos por uma figura de grande volume, numa couraça polida. Olhou com raiva para
Cato e lançou uma ordem ríspida aos seus homens, antes de se lançar numa corrida decidida.
Cato empurrou Macro de volta ao pátio mais pequeno.
— Para trás! Correram de novo para a passagem e fecharam a porta reforçada, com toda a força.
— Metelo! Cimber! Aqui, já! — gritou Cato, enquanto largava a lança e encostava o ombro à porta, depois de fincar os pés para absorver o impacto que não tardaria a vir do outro lado. Macro imitou-o, enquanto
os outros corriam para se juntarem a eles.
— São demasiados — avisou Cato. — Usem as lanças contra quem quer que tente passar para este lado.
Anuíram e prepararam as armas, colocando-as em posição de atingir quem pudesse surgir. O som de vozes e dos passos de botas sobre a gravilha veio do outro lado da porta, e no momento imediato sentiu-se
o peso de vários corpos a empurrá-la. Cato e Macro recuaram uns centímetros, e depois voltaram a empurrar com toda a força. Cato era o que estava mais próximo da orla da porta e, quando ela abriu uma
estreita fenda, pegou na adaga e agarrou no punho com toda a força. A porta voltou a mover-se, apesar dos tremendos esforços dos dois oficiais. Começaram a ceder, centímetro a centímetro. Surgiram na
abertura as pontas de dedos, perto do rosto de Cato, e ele respondeu de imediato, usando a adaga para os cortar, rasgando a carne até ao osso. Um urro de dor e fúria veio do outro lado, a mão foi retirada
imediatamente, e por momentos a porta deixou de avançar.
— Força! — pediu Cato, lançando-se de novo contra as tábuas. De repente, a porta veio de encontro a ele com toda a força, e abriu-se um espaço tão largo que Metelo conseguiu avistar o inimigo.
— Eles estão a usar um banco! — avisou, ao mesmo tempo que golpeava com a lança e a recuperava num mesmo movimento.
O improvisado aríete voltou a entrar em ação, e a porta acertou no ombro de Cato; os rebeldes que manejavam o banco aproveitaram para forçar mais um bocado, e obrigar os dois romanos a ceder terreno.
— Miúdo, isto assim não vai dar! — rosnou Macro, à medida que se via entalado no ângulo entre a porta e a parede da passagem. — Não os vamos conseguir aguentar.
Cato percebeu que aquela era uma luta inglória.
— À minha ordem, recuamos. Temos que manter o controlo da situação na passagem.
Macro assentiu. Aguentaram a posição o melhor que conseguiram até que o banco voltou a embater contra a porta.
— Agora! Os dois oficiais recuaram rapidamente, e a porta, sem apoio, saltou para a frente, para dentro da passagem, lançando um espantado rebelde para o chão.
Metelo atacou imediatamente, golpeando o homem entre as omoplatas, de forma a partir-lhe a espinha. O homem caiu no solo em espasmos, enquanto os seus atónitos camaradas largavam o banco e preparavam
as armas. Eram muitos, armados com lanças e espadas, agrupados à volta do guerreiro de elevada estatura que tinha nas mãos um gládio e o usava para desbastar a haste da lança de Metelo, obrigando-a a
embater contra a parede da passagem com tanta força que acabou por se partir. O optio ergueu as sobrancelhas de espanto perante o cabo partido, antes de espetar com toda a força o pedaço estilhaçado no
antebraço do guerreiro inimigo, e se abaixar para pegar na lança que Cato tinha deixado no chão. A ferida só serviu para enraivecer ainda mais o líder dos rebeldes, que arrancou o pedaço de madeira do
braço e o atirou contra a cara de Cato. Atingiu-o na testa, de lado. Foi um golpe brusco, mas só o obrigou a recuar um passo. O homem avançou, empurrando Cato para o lado e deixando Cimber exposto.
A mão do guia tremia, mas ele manteve a posição, e lançou um golpe desesperado com a lança. Não tinha peso suficiente para derrubar o outro, mas a ponta apanhou o rosto do guerreiro asturiano, rasgou-lhe
a pele, ressaltou no osso e cravou-se no olho. O homem soltou um urro de raiva e cambaleou para trás, levando uma mão à órbita destroçada, de onde escorriam sangue e outros fluidos. Os seus homens, abalados
perante o recuo do líder, perderam o ímpeto e detiveram-se à entrada da passagem. Macro aproveitou a ocasião e carregou sobre eles, fazendo a espada descrever arcos para um lado e outro. Os escravos rebeldes
recuaram em desalinho, e alguns viraram-se para fugir, correndo pelo jardim. O guerreiro asturiano recuou também, ainda com a mão no rosto. Manteve-se atento a Macro com o olho são, de espada levantada,
pronto a lidar com qualquer ataque. Mas Cato estava bem consciente do desequilíbrio numérico, e chamou:
— Deixe-o! Aguente a passagem. Metelo, traz aquele banco e fecha a porta.
Antes que os cabrões recuperem o ânimo.
Cato deitou uma olhadela a Cimber.
— Bom trabalho! Ainda vamos fazer de ti um verdadeiro soldado. Agora, vem comigo.
Correram até à arrecadação onde estavam guardados os materiais de construção e regressaram rapidamente com os cestos de telhas e tijolos, colocando-os contra a porta e depois encravando o banco com firmeza
por baixo da tranca, antes de recuarem, de armas a postos, à espera que o inimigo voltasse a tentar forçar a passagem. Ouviram-se gritos no jardim, mas agora já eram as notas das trombetas da coorte que
ecoavam nas paredes do pátio. Cato tinha ordenado a Cristo que fizesse todo o barulho possível assim que entrasse no campo, para distrair os rebeldes da tentativa de recuperar os reféns.
— Já não falta muito — disse Cato com toda a calma, para dar coragem a Cimber e aos prisioneiros. — Só temos que aguentar os sacanas mais um bocadinho.
Do outro lado da porta, uma voz ergueu-se a entoar um ritmo, e logo a porta sofreu um tremendo embate, que a fez tremer, e fez o estuque solto cair do teto da passagem, enquanto o inimigo retomava o assalto
com outro banco.
Cato aprontou a espada e respirou fundo para tentar acalmar o coração, que lhe batia aos saltos no peito.
— Atenção... Chegou o impacto seguinte, e desta vez um dos painéis da porta estalou. Cato sentiu os estilhaços a embaterem-lhe no corpo. Apoiou o seu peso contra o banco, para o manter no lugar, mesmo
antes de a porta estremecer de novo e de uma secção de estuque tombar para o chão da passagem. O painel de madeira foi empurrado para dentro, e quando o novo aríete foi puxado para trás, Cato conseguiu
ver os homens do outro lado, encorajados pelo guerreiro asturiano. No exterior da casa, o som das trombetas romanas crescia de intensidade, e Cato e os seus homens sentiram a esperança a renascer, à medida
que escutavam gritos e o entrechocar das armas. Depois de mais três ataques, outro painel da porta cedeu, antes de o assalto ser interrompido.
Cato e os romanos escutaram gritos angustiados do outro lado da porta, e sobre eles os gritos enfurecidos do guerreiro asturiano, infrutíferos. Pelas fendas irregulares na porta, Cato conseguiu ver os
rebeldes a fugirem pelo jardim.
Mas a sua vista foi bloqueada quando o grande guerreiro pegou no banco e o enfiou na abertura, num derradeiro gesto de desafio e frustração, antes de também ele se afastar. À medida que o som das botas
na areia do jardim diminuía de intensidade, Cato trocou um olhar com Macro.
— Acho que ele se foi embora.
— Esperemos bem que sim, senhor. Mais umas pancadas e aquela porta abrir-se-ia tão depressa como as pernas de uma meretriz.
Cato considerou a analogia com uma careta.
— Não seria bem essa a descrição que eu faria, mas não deixa de ser verdade.
Baixaram as armas, mas mantiveram-nas a postos, os ouvidos a tentar discernir qualquer som que indicasse o regresso do inimigo.
Cimber lambeu os lábios, nervoso.
— Senhor, acha que eles se foram mesmo embora? — Não faço ideia. Mas mantém-te a postos, para o caso de voltarem.
Não tiveram que esperar muito. Sons de movimentos vieram do jardim, e Cato deu ordens para todos se aprontarem. Os seus camaradas prepararam as armas e prenderam os olhares na porta. Logo a seguir, a
ponta do banco começou a remexer-se no painel estourado, depois foi afastada para o lado e uma sombra surgiu na abertura. Por fim, avistaram o rosto do tribuno Cristo, a espreitar com toda a cautela pela
abertura.
— Prefeito Cato, senhor, está aí? — Claro que estou, porra.
Macro deu-lhe um toque amigável.
— Miúdo, estás ferido. Foi quando aquele cabrão te acertou com o cabo da lança partido.
Cato embainhou a espada, e pela primeira vez deu-se conta da dor que lhe vinha da testa. Tocou o sítio dorido com cuidado, e os dedos voltaram quentes e pegajosos. Uma ferida superficial, apercebeu-se,
aliviado. Voltou a olhar para Cristo.
— Nunca pensei que alguma vez o diria, mas fico feliz por te ver. Agora trata de abrir essa porcaria e manda chamar o médico. O procurador não está em grandes condições.
Ele tem um braço e costelas partidas, vários dentes arrancados, e os joelhos foram esmagados. Tem queimaduras nas nádegas e na região genital, para lá de várias feridas e inúmeros golpes pouco importantes
feitos por uma lâmina afiada... — O médico da coorte contou os ferimentos pelos dedos, e por fim fez uma pausa e abanou a cabeça. — Os cabrões dos rebeldes começaram por lhe dar uma valente carga de pancada,
e depois continuaram.
— Será capaz de recuperar? — indagou Cato. O médico ergueu uma sobrancelha.
— Claro que não, senhor. Terá muita sorte se conseguir sobreviver. E mesmo que consiga, nunca voltará a ter a capacidade de usar as pernas, e terá cicatrizzes que lhe durarão para a vida toda.
— Muito bem — aceitou Cato, impaciente. — Mas conseguirá falar daqui a pouco tempo?
— Falar? Senhor, aquele homem precisa de descansar. Fiz por ele tudo o que pude, e dei-lhe uma poção para dormir, de forma a que o corpo possa relaxar e começar a sarar.
— Uma coisa para dormir? — Cato franziu o sobrolho. — Ora porra para ti. Preciso dele acordado. Tenho que falar com ele o mais depressa possível.
Quanto tempo é que ele vai ficar desacordado?
O médico coçou o queixo, pensativo.
— Até amanhã de manhã, se estou a ver bem a coisa. Talvez mais algum tempo.
Cato rangeu os dentes, e por fim anuiu.
— Muito bem. Mas no momento em que ele abra os olhos, mandas-me chamar. Entendido?
— Sim, senhor.
— E quanto às baixas? Quantos homens perdemos? O médico sorriu.
— Bom, desse lado há boas notícias. Nem uma morte. Seis feridos na escaramuça que teve lugar quando assaltámos o campo. Três deles com nada mais do que cortes, dois com fraturas de ossos, e um que perdeu
uma mão. Um sacana grandalhão só com um olho decepou-a com uma espada, antes de os rapazes o conseguirem abater. No fim de contas, safámo-nos com muito poucas perdas, senhor.
— Ótimo. Onde é que estás a cuidar deles? — Na sala de jantar do procurador, senhor. Cato deitou uma olhadela ao oficial adormecido. Nepo tinha recebido cuidados na cela, e depois fora colocado num colchão
que tinham trazido do interior da casa. Era frustrante não poder interrogar o procurador imediatamente, pelo que teria de se contentar com um dos outros reféns. E depois disso, tinha que dar atenção ao
campo e prepará-lo para a defesa. Depressa novas da captura chegariam aos ouvidos de Iskerbeles, e decerto que ele não perderia a oportunidade para tentar esmagar a coorte isolada, se conseguisse. A destruição
de uma unidade de elite do exército romano seria uma tremenda inspiração para os seus seguidores, e provaria que os senhores imperiais da província estavam longe de ser invencíveis.
Os três outros antigos reféns estavam no pátio. Macro tinha-lhes tirado as correntes e, apesar de terem feridas em volta dos tornozelos, pulsos e pescoço, estavam gratos e felizes por poderem esticar
os membros ao ar livre de novo.
Fizeram o melhor que conseguiram para se porem em sentido quando Cato saiu da cela de Nepo. Ainda estavam cobertos de porcaria, e cheiravam tão mal que Cato não conseguiu evitar torcer o nariz.
— A primeira coisa a fazer assim que terminarmos esta conversa é irem lavar-se de alto a baixo.
— Sim, senhor. Pedimos desculpa.
— À vontade. Quem é o mais antigo de entre vós? O mais baixo dos três, um homem de cabelo claro, olhos azuis e pele branca — um celta, calculou Cato — acenou.
— Optio Pasterico, senhor. Comandante da guarnição. Da Terceira Coorte Gaulesa.
— Conta-me o que aconteceu por aqui. Não vi nenhum sinal de combate a caminho do campo, portanto parto do princípio de que o Iskerbeles não teve que se esforçar muito para conquistar a mina.
— Não, senhor. — Pasterico remexeu-se, incomodado. — Não conseguimos montar uma defesa. Eram milhares, eles. Talvez os tivéssemos conseguido aguentar um dia ou dois na muralha, mas o procurador não nos
autorizou a isso. O Iskerbeles enviou-lhe um mensageiro para lhe exigir que entregasse a mina pela alvorada, senão toda a gente que fosse apanhada no campo seria morta, e o próprio Nepo seria esfolado
vivo e crucificado. Para provar que não estava a brincar, trouxe dez homens, romanos, da povoação, e decapitou-os à frente do portão, antes de lançar as cabeças por cima da muralha, para os pés do procurador.
— Hesitou antes de prosseguir. — Para ser honesto, senhor, o Nepo não é propriamente do género de guerreiro temerário. Mas imagino que era bom a gerir a mina. Seja como for, na madrugada do dia seguinte
ele anunciou que entregaria a mina se os rebeldes concedessem passagem livre para Tarraco a toda a guarnição, aos que trabalhavam na mina e às suas famílias. O Iskerbeles deu a sua palavra de que assim
seria. Depois, no momento em que entregámos as nossas armas, os homens dele lançaram-se sobre nós. Conduziram-nos à vala dos mortos e começaram a cortar gargantas e a atirar os corpos lá para dentro.
Eu e estes rapazes só fomos poupados por sermos os guarda-costas do procurador, e o Iskerbeles disse que poderia vir a precisar de umas cabeças para negociar quando pedisse um resgate pelo Nepo.
— Foda-se, bem nos podes agradecer, hã? — comentou Macro.
— O que é que aconteceu a seguir? — quis saber Cato. Pasterico coçou as axilas.
— Não estávamos por perto para ver, senhor. Mas os rebeldes que nos guardavam contaram-nos mais tarde. Ao que parece, o Iskerbeles libertou os escravos e permitiu-lhes fazerem o que quisessem no campo
e na povoação.
Quando os escravos se cansaram de atormentar os locais, os romanos foram mortos e juntaram-se aos outros na fossa.
Cato manteve-se em silêncio por breves momentos, enquanto jurava a si mesmo fazer o líder rebelde e os seus seguidores pagarem bem caro pelas atrocidades que ali tinham cometido. Desde que viesse a ter
realmente ocasião para vingar as vítimas. O que estava longe de estar garantido, naquelas circunstâncias. Pôs o pensamento de lado, e deu atenção a uma questão mais vital.
— O que aconteceu às reservas de prata da mina? O optio abanou a cabeça.
— Não faço ideia, senhor. Calculo que os rebeldes as tenham levado com eles.
Não ouvi uma palavra sobre isso quando nos meteram na cela.
— Tens a certeza? Não houve nenhuma menção? Pasterico pensou por momentos.
— Nada, senhor. Tenho a certeza. Cato pensou que tal era estranho, se realmente fosse assim. Um tesouro daquela dimensão não deixaria de provocar comentários. Mas talvez eles não tivessem chegado aos
ouvidos dos reféns. Talvez o procurador lhe pudesse dar mais detalhes, assim que recuperasse a consciência. Entretanto, havia muita coisa a fazer para proteger o campo. Olhou para o optio com atenção.
— Como te sentes, Pasterico? O homem coçou as costas e fez uma careta.
— Já estive melhor, senhor. Bastante melhor.
— Preciso que nos mostres, a mim e ao centurião Macro, as instalações da mina. Consegues fazê-lo?
— Sim, senhor.
— Excelente; nesse caso, vamos lá tratar disso. Seguiram pela passagem estreita e atravessaram o jardim antes de entrar na casa. O jardim refletia um gosto refinado e tinha sido bem cuidado, e o interior
da casa revelava o mesmo nível de opulência, com finas mobílias e intrincadas pinturas nas paredes, que mostravam cenas mitológicas e de caça; os passos ecoavam claramente enquanto percorriam os aposentos
do procurador. Cato virou-se para o optio e apontou para o chão.
— Hipocausto? — Sim, senhor. Cato cerrou os lábios e olhou para Macro.
— Ao que parece, o Nepo gostava muito dos seus pequenos confortos.
Macro soltou um sorriso de troça.
— Nunca tive ideia de que os procuradores imperiais fossem assim tão bem pagos. Parece-me que afinal nem toda a prata extraída destas montanhas chegava a Roma.
— Assim parece. Saíram da casa, atravessaram o pátio da frente e emergiram no descampado que separava as acomodações do procurador das do resto dos homens que trabalhavam na mina. Centenas de pretorianos
estavam por ali, sentados ou de pé, e os mais próximos apressaram-se a colocar-se em sentido e a fazer a continência quando Cato e os seus dois companheiros passaram por eles. Dirigiu-se para a área onde
os estandartes se erguiam acima dos capacetes dos soldados, e encontrou Cristo e os outos centuriões junto do pelotão de honra. Trocaram saudações antes de Cato abrir a boca.
— Já acabaste de varrer a área, para ver se encontravas mais alguns rebeldes?
— Agora mesmo, senhor. Os últimos estavam escondidos nas barracas dos escravos. A não ser que alguns nos tenham escapado. De qualquer forma, não há prisioneiros.
— Nenhum?
— Recusaram-se a render-se. Dei-lhes essa possibilidade, mas preferiram combater até ao fim, como animais encurralados. — Acenou na direção de uma pilha de corpos sangrentos perto do cimo do trilho que
conduzia à zona dos trabalhos subterrâneos.
Cato olhou para os cadáveres.
— Manda deitá-los na fossa.
— Sim, senhor.
— Quero duas centúrias em permanência na muralha de entrada da mina lá em baixo; que façam turnos para manter uma vigilância constante. Também quero que revistem a povoação e tragam quaisquer provisões
que encontrem antes de fechar o portão. Centurião Pulcher?
O pesado oficial deu um passo em frente.
— Senhor? — Leva quarenta homens. Faz o mesmo no campo. Tudo o que encontrares deve ser requisitado e armazenado na casa do procurador. Trata disso imediatamente.
Pulcher fez uma continência rápida e correu na direção da sua centúria. Cato virou-se para Pasterico e Macro.
— Bom, vamos lá ver este pardieiro infernal. Começamos na ponta lá do fundo. Mostra-nos o caminho.
Passaram para o outro lado da muralha, para as acomodações dos escravos, onde o cheiro a dejetos humanos se agarrava às compridas séries de barracas, construídas tão próximas que um homem podia esticar
os braços e tocar as paredes de duas. A intervalos nas paredes havia pequenos buracos que permitiam ao esgoto correr para as valas que passavam entre os blocos e levavam à escarpa, antes de se precipitarem
para a zona da mina. Felizmente estes canais tinham secado desde a altura em que os escravos haviam sido libertados por Iskerbeles. Do outro lado do conjunto de blocos havia outra muralha, com fosso e
portão, que se abria para uma série de estruturas de pedra, baixas e semienterradas em montes de rochas e terra.
— O que é aquilo? — inquiriu Macro.
— Os tanques de água, senhor — replicou Pasterico, antes de apontar para uma ravina natural que se desenhava na encosta íngreme por trás das estruturas. — São alimentados por um ramo do aqueduto que começa
numa nascente lá em cima nas montanhas e que segue até Asturica. Há lá uma comporta e uma conduta. Mas só se tem acesso a ela indo pelo outro lado da montanha, por causa da escarpa.
Cato trepou para a orla da cisterna mais próxima para avaliar o conjunto.
Era uma vista impressionante. O tanque tinha uns quarenta passos de comprido e vinte de largo, e era selado com cimento. O nível de água estava aí a uns dois terços, calculou, e parecia ter uns três metros
de profundidade. Um considerável volume de água, portanto. Uma comporta encontrava-se instalada no lado que dava para a mina, e alimentava uma vala profunda e feita de cimento que terminava no limite
da falésia. Havia outras seis cisternas dispostas na base da montanha, todas elas a rebrilhar graças à água que continham. Era um impressionante feito de engenharia, fosse qual fosse o ângulo por que
fosse admirado, mais uma prova da escala das tarefas que os romanos se obrigavam a cumprir habitualmente. Cato não conseguiu resistir a um arrepio de orgulho na civilização a que pertencia. Era um feito
que os bárbaros nem sonhar conseguiam. Mas então recordou o lado mais tenebroso daquele lugar, e lançou um olhar sombrio na direção das acomodações dos escravos. Havia sempre um preço, que era pago por
muitos, pelas realizações de alguns.
— Bem, sede não vamos ter — comentou Macro. — Mas teremos que nos contentar com água, uma vez que os cabrões dos rebeldes deixaram o lugar sem pinga de vinho.
Cato desceu a encosta até à escarpa, onde a terminação da vala se esfarelava. A uns sessenta metros mais abaixo, estendia-se a aridez desolada da entrada da mina, semeada de pretorianos atarracados pela
perspetiva e que percorriam cautelosamente a área que não conheciam. Era um bom ponto para observar a mina, a povoação e a paisagem para lá dela, que se estendia por uma série de colinas ondulantes até
ser obscurecida pela neblina, à distância.
— Quero um posto de sentinela nesta posição, a partir deste momento.
Macro anuiu.
— Sim, senhor. Cato focou a sua atenção na povoação.
— Os edifícios estão demasiado perto do fosso. Teremos que os derrubar.
Vamos queimar tudo até ao fórum, e o que ficar em pé será arrasado. Assim teremos uma extensão decente de espaço livre à frente das defesas.
— Destruir a povoação? — Pasterico sugou profundamente o ar por entre os dentes. — Senhor, essa será uma decisão muito pouco popular.
— Atrevo-me a imaginar que a larga maioria dos donos das propriedades em causa estão muito para lá dessa preocupação — ripostou Cato, secamente.
— Se mais alguém achar nociva a minha decisão, podem levar a questão ao governador.
Contemplou o fosso e a muralha. Ambos tinham sido erigidos mais para fins de vigilância dos escravos do que para aguentar um assalto determinado. O fosso não era suficientemente profundo, a muralha não
tinha nem altura nem espessura suficientes.
— Teremos que fazer o que pudermos para fortificar a primeira linha de defesa. E depois vamos precisar de outra linha... Além, onde a ravina curva para a falésia. Nada de muito complicado, só o suficiente
para nos dar tempo de recuar em boa ordem. A nossa última linha de defesa vai ficar ao cimo do trilho.
O inimigo terá feito uma subida penosa e terá que lançar o assalto numa frente estreita, o que nos favorece.
— E se os rebeldes conseguirem ultrapassar essa linha? — indagou Macro.
— Nesse caso, podemos fortificar a casa do procurador, ou então defendemo-nos na muralha à frente das acomodações dos escravos.
— E lutamos até ao fim.
— Sim — concluiu Cato. — Mas vamos partir do princípio de que não chegamos a esse ponto.
— Estás à vontade para partir de onde quiseres. — Macro sorriu brevemente, antes de voltar a adotar uma expressão sombria. — A alternativa não me agrada por aí além, dado o que já vimos.
Cato anuiu com ênfase, enquanto virava o olhar para a íngreme encosta do outro lado do campo. No cimo havia penedos, e a encosta era de rocha nua, e vertical em muitos pontos.
— Ao que parece, não há acesso ao campo daquela direção. Sabes de alguns caminhos ou trilhos que levem lá acima, Pasterico? — Não há nenhum, senhor. Nem as cabras se arriscam a subir muito por aquela
encosta.
— Bom, então é menos uma coisa com que nos preocuparmos, a não ser que o inimigo ocupe o cimo e se divirta a atirar rochas para cima do campo.
Mas mesmo isso seria mais um aborrecimento do que uma ameaça, na maior parte dos casos. — Cato considerou a crista rochosa que se via lá no alto. — Mas podem tentar usar cordas para descer homens pelas
falésias. Portanto, teremos que colocar ali em baixo alguns homens de piquete, só para o caso... Há mais alguma coisa de que eu deva ser informado, optio? Mais alguma forma de chegar à mina ou ao campo?
Algum ponto vulnerável? Alguma coisa acerca da ravina por baixo da mina?
Pasterico abanou a cabeça.
— É uma face a pique, senhor. Não são mais de uns quinze metros, mas o rio é agitado, com rápidos. Não há forma de o atravessar. Era preciso ser tolo para tentar levar um barco para ali e pensar em escalar
aquela ravina.
— Vou examinar isso com mais atenção, assim que puder. — Cato deitou um último olhar em redor, para se assegurar de que tinha pensado em todas as ameaças mais óbvias, e por fim bateu com a mão na perna.
— Muito bem.
Ainda temos uma hora de luz. Vamos lá começar.
Os montes de entulho recolhidos dos túneis forneceram material mais do que suficiente para fortalecer a primeira muralha. Enquanto duas centúrias se mantinham a postos para o combate, o resto da coorte
pousou as armas e tirou as armaduras, antes de utilizar ferramentas e carros de mão dos armazéns da mina para levar rochas e terra para as traseiras da muralha, onde eram compactadas camada a camada.
Era um trabalho extenuante, que se seguia ao dia de marcha e à captura da mina, mas Cato obrigou-os a trabalhar no duro até a luz do dia se extinguir. Só nessa altura é que os homens foram dispensados
para irem comer as suas rações e procurar alojamento nas casernas que tinham sido da guarnição, dos capatazes e de outro pessoal. Não havia espaço para todos, pelo que a centúria de Macro acabou por ficar
com os oficiais na casa do procurador.
Havia uma última tarefa a cumprir, e Cato conduziu uma das centúrias que tinham estado na muralha numa surtida à povoação. Começaram nos edifícios mais próximos e prosseguiram, empilhando mobílias, cestas,
roupas e tudo o que ardesse antes de lançar azeite sobre as diferentes pilhas. Quando chegaram à orla do fórum, Cato deu ordens para preparar os materiais incendiários, e mandou toda a gente menos uma
secção de volta à mina. Depois, com os homens que tinham ficado, usou uma acendalha para dar ignição a tochas, que foram usadas para atear os fogos nos edifícios mais próximos da muralha. As chamas já
se erguiam no céu noturno quando Cato se juntou a Macro na torre por cima do portão, para ver o espetáculo. Várias das casas mais próximas ardiam livremente, e as labaredas vermelhas e alaranjadas soltavam-se
das portas e janelas. A luz dançava por baixo das telhas, até que as vigas que as suportavam ardiam e tombavam, abrindo buracos nos telhados, por onde outras chamas se libertavam para lamber a escuridão
e se espalharem de edifício em edifício. Havia pouco vento para avivar as chamas, e o progresso do incêndio era lento enquanto consumia tudo no seu caminho.
Ainda assim, o calor era tanto que queimava os rostos dos homens na muralha e na torre, e eles viram-se obrigados a recuar e procurar proteção para continuar a assistir à destruição.
— Isto vai ser visto de muito longe — disse Macro.
— Nada a fazer. Se pegássemos fogo à povoação durante o dia, o inimigo veria o fumo, de qualquer maneira. Tinha que ser feito agora, para nos dar tempo para demolir o que ficar de pé, assim que o calor
diminuir. Não queremos oferecer ao inimigo nenhuma proteção, quando aqui chegar.
Macro olhou para as chamas, o rosto iluminado por um brilho avermelhado e oscilante.
— Achas que o Iskerbeles nos virá atacar? — Sem dúvida, e com todos os homens que conseguir reunir.
— Pareces estar muito certo disso, miúdo.
— Era o que eu faria, se estivesse no lugar dele. Por duas razões. Primeiro, o prestígio que seria conseguido se aniquilasse uma coorte de pretorianos. Daria brilho à sua reputação, na mesma proporção
em que envergonharia o Imperador. Segundo, não deixará de se interrogar porque é que o Vitélio enviou uma única coorte à frente da coluna principal, e mais importante ainda, porque é que ela foi enviada
para assumir o controlo desta mina em particular. Pelo que o Pasterico nos disse, dá ideia de que ele não conseguiu pôr as mãos na prata. Mas agora que aqui estamos, não levará muito tempo a perceber
que nós achamos que há aqui alguma coisa muito valiosa.
Macro encarou-o.
— Se a prata ainda cá está, onde se encontra então, por Hades? Cato pensou por momentos.
— Espero bem que o procurador nos possa dizer isso, amanhã.
— Então e se o sacana resolve ir desta para melhor? Cato sorriu.
— A frase ”procurar uma agulha no palheiro” vem-me à cabeça. Só mais um desafio que os deuses nos lançam, na esperança de nos lixar, meu irmão.
— Foda-se — ripostou Macro. — Preocupa-me bastante mais a perspetiva de dar com a ponta ensanguentada de uma lança nas minhas entranhas quando o Iskerbeles nos vier fazer essa visita... E se os rebeldes
já têm o tesouro?
— Pode ser que sim — admitiu Cato, com ar de dúvida. — Mas isso não será um fator que o Iskerbeles tenha em conta na sua determinação de nos destruir. Disso, parece-me bem, podemos estar certos. Há, porém,
outro pensamento que me ocorre. E se o Iskerbeles já soube que existe uma fortuna em prata escondida numa das minas? Nesse caso, a nossa presença aqui vai dizer-lhe precisamente aonde é que deve procurar.
Macro inchou as bochechas.
— Nestas alturas, Cato, é realmente reconfortante ter-te por perto.
O fogo continuou a lavrar durante toda a noite, espalhando-se a pouco e
pouco na direção do fórum, continuando a consumir cada edifício no seu caminho, de tal forma que pouco depois da meia-noite toda a povoação tinha o ar de um mar de chamas, e o brilho iluminava as colinas
próximas. sendo com toda a certeza visível a quaisquer olhos que se dirigissem naquela direção, por longe que estivessem. O rugir das labaredas era pontuado pelo crepitar e pelo estalar das madeiras que
rebentavam, e pelo estrondo dos rebocos e dos telhados que caíam quando os edifícios ruíam. Pouco a pouco, as chamas começaram a amainar, como animais selvagens que se aquietassem para descansar depois
de uma caçada. Nos escombros dos edifícios brilhavam brasas vermelhas, e de vez em quando o fogo descobria um pedaço fresco de madeira para devorar, e por isso crescia momentaneamente. Quando a alvorada
chegou o incêndio estava reduzido a umas bolsas aqui e ali por entre as ruínas calcinadas e fumegantes da aldeia. Só o santuário do culto imperial permanecia intacto, erguendo-se sobre a desolação que
o rodeava, graças ao facto de ter sido edificado apenas com material rochoso.
Cato e Macro contemplaram as ruínas da ponta do campo, junto aos tanques de água. Apesar de estarem a alguma distância e acima da cena, o ar ainda dava a sensação de estar repleto do cheiro acre do incêndio.
Muitos dos edifícios tinham ardido por completo. Os que tinham blocos de pedra na base das paredes, ou que por acaso haviam escapado à atenção das chamas, erguiam-se no meio das madeiras queimadas que
os rodeavam.
— Quando fazes uma coisa, não estás com meias-medidas — comentou.
Macro, com um estalido da língua, divertido. — Se conseguirmos sobreviver a tentativa que o Iskerbeles vai fazer para nos eliminar, vais ter alguns proprietários furiosos a quem explicar umas coisas.
Parece que estamos a deixar um rasto de cinzas atrás de nós nesta província.
— Proprietários de terras e edifícios com vontade de litigar são a última coisa que me passa pela cabeça nesta altura. Temos que completar as nossas defesas antes que os rebeldes apareçam por aqui. Quero
aquela segunda muralha tão alta como a primeira, e com um fosso mais fundo à frente.
— Achas que vamos perder a primeira muralha, é? — Talvez. Mas fá-los-emos pagar um bom preço por isso. Depois, se eles conseguirem ultrapassá-la, quero que se deparem com uma segunda linha que seja um
obstáculo ainda mais difícil. Isso vai dar-lhes uma boa cacetada no moral.
Macro riu-se.
— Miúdo, tens mesmo uma mente retorcida. Devias ter ido para a política. Cato fungou.
— Aí está um insulto baixo, mesmo vindo de um irmão. Só estou a tentar pensar como os rebeldes. São uma mistura de camponeses das montanhas e de escravos. Não duvido da força do desejo que têm de punir
Roma por tudo aquilo que foram obrigados a suportar. Não duvido da sua coragem, nem da sua determinação, nem sequer do seu desespero. Mas estão longe de serem soldados treinados. Não estão habituados
à disciplina, nem a cumprir ordens a qualquer preço. Ou seja, não lhes falta espírito, mas o que têm é frágil. E a nossa melhor hipótese de os derrotar é precisamente quebrar-lhes esse espírito.
Há muita coisa em jogo aqui, Macro. Se eles triunfarem, constituirão uma tremenda inspiração para que o desafio a Roma se espalhe por toda a Hispânia. Se lhes mostrarmos que não nos podem derrotar, então
cortaremos as raízes desta revolta, e ela secará e acabará por morrer. Nessa altura voltaremos a ter paz e ordem. Mesmo que eles continuem a odiar Roma com todas e cada uma das fibras dos seus seres.
— Bom, não se pode ter tudo — concluiu Macro, sem dar grande importância ao assunto. — Eles que nos odeiem à vontade, desde que nos temam, não é?
Cato olhou para ele, mantendo o silêncio por momentos.
— É como diz. É o preço de possuir um Império.
Uma trombeta soou a anunciar a formatura matinal, e Cato e Macro atravessaram as acomodações dos escravos e passaram pela muralha, no momento em que os últimos dos pretorianos emergiam das casernas e
formavam no descampado à frente da casa do procurador. Porcino e os seus homens ainda estavam de serviço na muralha que dava para a povoação, e seriam rendidos depois da formatura. Cato aguardou à frente
do pelotão de honra enquanto os centuriões entregavam a Macro os registos de efetivos. Depois, este apresentou-os a Cato. Rabiscou uma assinatura na tábua encerada que Macro lhe apresentou e avançou a
passo firme para o centro, para se dirigir aos seus homens.
Apesar da longa marcha e do combate que tinham tido de travar, os pretorianos estavam bem alinhados e ataviados, depois de se terem empenhado na limpeza do equipamento na noite anterior. Cato sentiu uma
certa admiração, a contragosto, pelo profissionalismo meticuloso dos guardas. Apesar de tudo o que os homens das legiões diziam sobre as unidades de pretorianos, estes não eram apenas um bando de vaidosos
obcecados com o brilho das armaduras.
Tinham espírito de luta, e uma reputação a manter. Eram de facto bons homens, admitiu. Tão bons como os melhores do exército, até mesmo como os veteranos da adorada Segunda Legião de Macro.
Cato pigarreou e respirou fundo.
— Senhores, conseguimos alcançar o objetivo que o legado Vitélio nos atribuiu. Foi uma marcha dura, e perdemos alguns bons camaradas ao longo da estrada. Mas cumprimos com sucesso a primeira parte das
nossas ordens, na melhor tradição da Guarda Pretoriana. — Deixou que o elogio que lançara lhes penetrasse nas mentes, antes de prosseguir. — Agora, enfrentamos o verdadeiro desafio. A mina está nas nossas
mãos, e o inimigo quererá por certo destruir-nos e retomá-la. Mas nós não lho vamos permitir... Podem perguntar-se porque temos nós que defender este lugar. Porquê aqui? A resposta é. como sempre, esta:
porque é aqui que estamos. Cabe-nos a nós mostrar a estes rebeldes que Roma não pode ser desafiada. Que Roma nunca poderá ser humilhada. Que Roma nunca poderá ser derrotada. Que a Guarda Pretoriana não
tem igual em todo o Império, e que provará, perante os deuses, que os pretorianos podem enfrentar forças muitas vezes mais numerosas do que as suas no campo de batalha. E nenhuns mais do que os homens
da Segunda Coorte. — Cato lançou o punho ao ar. — Viva o Imperador Cláudio! Vitória para Roma!
Os pretorianos brandiram as lanças e repetiram o grito, que ecoou pelas encostas das montanhas em redor, aumentando de tal forma o nível de ruído que mais pareciam as vozes de milhares de homens, ao invés
de centenas. Cato deixou-os continuar por um bocado antes de acenar na direção do trombeteiro que fez soar várias notas estridentes para impor o silêncio, antes de o comandante poder prosseguir.
— Há muito trabalho a fazer antes que o inimigo nos alcance. Trabalho duro, mas vital. Que cada homem aceite a tarefa que lhe couber, e que dê o seu melhor para a levar a cabo. Quando a hoste dos rebeldes
deixou este lugar, ele nada mais era do que uma mina. Quando regressarem, que o encontrem transformado numa fortaleza, contra a qual em vão lançarão todo o seu poder. — Esticou o braço na direção do estandarte
da coorte, já ornado com uma coroa prateada, para lá do disco que mostrava o retrato do Imperador, por cima do símbolo do escorpião que representava a Guarda Pretoriana. — E quando regressarmos a Roma
em triunfo, o próprio Imperador colocará no nosso estandarte mais uma condecoração. E recompensar-nos-á com ouro, e seremos os heróis de toda a cidade, e alvo de inveja de todos os pretorianos que não
estão aqui para partilhar a nossa hora de glória! — Fez uma pausa para recuperar o fôlego, e voltou a erguer o punho enquanto gritava: — Toda a glória à Segunda Coorte!
Os homens voltaram a juntar as suas vozes ao coro, vitoriando-se a si mesmos e ao seu comandante, até que os gritos começaram a diminuir e Cato considerou que era o momento de voltar a impor a ordem e
de enviar os homens para realizar o trabalho que lhes fora atribuído.
À medida que as centúrias marchavam em ordem pelo trilho que levava à mina, Macro cruzou os braços.
— Os melhores soldados do exército? Melhores ainda do que a nossa velha legião? Um bocadinho de exagero, não te parece?
— Talvez sim. Mas é uma velha tradição, a de elevar o espírito das tropas antes de elas entrarem em ação. Não vejo razões para a abandonar, sobretudo num momento destes.
— Pela maneira como falavas, dava a sensação de que acreditavas no que dizias.
— Aquilo em que eu acredito não tem a mínima importância. O que importa é aquilo em que eles acreditam. E se acharem que são a personificação dos filhos do próprio Marte, isso dá-me muito jeito. Passa
a ser um caso de ver ideia que podem eles transmitir ao inimigo sobre os soldados de Roma. Se triunfarmos, os rebeldes ficarão com a impressão de que somos invencíveis. Se perdermos, verão que combatemos
até à derradeira gota de suor, até ao último suspiro, saberão que somos indómitos. De qualquer das formas, pensarão duas vezes antes de voltarem a provocar Roma.
— Miúdo, espero bem que tenhas razão.
— Depressa o saberemos; ou então, não saberemos. — Cato deixou escapar um sorriso sincero. — Venha, é tempo de fazermos uma visita ao procurador. O Nepo tem algumas respostas a fornecer-nos.
O médico da coorte tinha transferido o procurador para o seu quarto privado, e ele estava sentado, apoiado num almofadão, quando Cato e Macro entraram no compartimento. Nepo estava coberto de nódoas negras,
e o médico tinha-lhe colocado talas nas pernas. Um dos enfermeiros encontrava-se sentado num banco ao seu lado, alimentando-o com uma papa. Quando se virou e avistou o prefeito, o homem baixou de imediato
a tigela e colocou-se em sentido.
— Espera lá fora — ordenou Cato. Depois da porta fechada, Cato procedeu às apresentações.
— Sou o prefeito Quinto Licínio Cato, comandante da Segunda Coorte Pretoriana. Este é o centurião Macro, o meu adjunto.
Nepo tentou colocar-se numa posição mais digna, mas o rosto torceu-se em agonia, e ele desistiu. Engoliu em seco e assentiu.
— Devo-te portanto muitos agradecimentos, prefeito. Já soube que tu e os teus homens me salvaram a vida. E as dos meus guarda-costas também.
— Se fosse a ti, guardava os agradecimentos. Pelo que sei, foi permitido aos rebeldes apossarem-se do campo sem qualquer resistência. Por ordens tuas.. Se nos safarmos desta, poderei muito bem ter que
depor contra ti quando o Imperador quiser saber as razões de uma mina de prata de tamanha importância ter caído dessa forma nas mãos dos rebeldes.
Nepo estremeceu.
— Que mais podia eu fazer? — Podia ter feito o que era seu dever, senhor — ripostou Macro, em tom duro.
— Fiz o que me pareceu melhor. Não havia qualquer possibilidade de resistirmos a um assalto em forma. Decidi que qualquer tentativa de resistência conduziria a uma perda de vidas sem qualquer sentido.
Era melhor aceitar a oferta de salvo-conduto e permitir que os meus homens vivessem para combater noutro dia.
Macro fungou.
— Exceto que essa oferta era um embuste. Confiou num criminoso comum e, em resultado disso, quase todos os homens sob o seu comando foram massacrados. E as suas famílias seguiram o mesmo caminho.
Nepo olhou para ele com cara de poucos amigos.
— Porra, não tenho que me justificar perante um mero centurião.
— Mas fazias bem em te habituares à situação — adiantou Cato. — Ninguém vai aceitar essa pobre desculpa, quando te pedirem contas sobre este desastre. Terás muita sorte se fores apenas banido de Roma
para o resto dos teus dias. O Imperador confiscará as tuas possessões, e o nome da tua família ficará para sempre arruinado. A não ser, claro, que tenhas amigos poderosos.
Mas depois de as notícias deste massacre chegarem à capital, duvido que haja muitos que sequer admitam que te conhecem.
Nepo sorriu lentamente.
— Por acaso, possuo de facto alguns amigos com grande poder político.
Talvez queiras ter isso em consideração antes de pensares em testemunhar contra mim, prefeito Cato.
Noutros tempos, Cato poderia ter sentido alguma ansiedade perante tal ameaça. Mas já não tinha uma família a quem proteger. A sua esposa estava morta, o filho a ser criado pelo seu sogro. Cato debruçou-se
sobre o homem e espetou-lhe um dedo no peito, enquanto respondia num tom frio e calmo:
— Vai-te foder. Os teus amigos que se fodam. Ninguém pode trair a confiança dos homens postos sob o seu comando da forma que tu fizeste e safar-se sem castigo. E se o Imperador não te pendurar pelos tomates,
eu próprio me encarregarei disso. E atrevo-me a pensar que haverá muitos familiares e amigos daqueles que jazem naquela vala ao lado do caminho que farão fila para me ajudar nessa tarefa. Por Júpiter,
o maior e melhor dos deuses, o juro, e o centurião Macro é minha testemunha.
— Sim, senhor. — Macro sorriu. — É só dar a ordem.
Nepo encolheu-se contra a almofada que o suportava, tentando colocar alguma distância, por pequena que fosse, entre si e o rosto daquele prefeito desfigurado por uma cicatriz, cujos lábios se tinham arrepelado
num ricto de profundo desdém.
Cato deixou que o homem se remexesse com receio, e por fim endireitou-se e olhou de cima para o procurador.
— Sabes porque é que eu e os meus homens fomos para aqui enviados? — Posso imaginar. Foram enviados para tomar conta da prata. Embora não possa deixar de me sentir surpreso por te terem dado apenas uma
coorte para essa tarefa.
— Era tudo o que estava disponível. O legado Vitélio teve que ficar à espera que o resto da sua força chegasse a Tarraco antes de marchar para Asturica.
— Vitélio? Aqui na província? — A surpresa que Nepo mostrou traiu-o.
— Há alguma razão para que ele não devesse estar cá? — indagou Cato, enquanto a primeira nota de suspeita lhe fazia eriçar os pelos da nuca.
Nepo deitou um olhar à janela, para disfarçar, e soltou um comentário inócuo.
— Não, não há qualquer razão. É só porque ele é conhecido como um homem que gosta de se divertir. Fico espantado por saber que foi escolhido para comandar as forças enviadas para tratar desta revolta.
É tudo.
Cato olhou para Macro, e este escarrou para o chão.
— O caralho.
Os olhos de Nepo saltaram como dardos na direção do centurião.
— Se fosse a ti, prefeito Cato, aconselhava o teu homem a ter cuidado com a língua. Não sou um homem que esqueça ou perdoe com facilidade.
— O mundo é mesmo pequeno — ripostou Macro. — Também eu não o sou. Talvez queira ter essa ideia presente quando responder às perguntas do prefeito. Era muito fácil para nós regressar a Roma e anunciar
que o procurador tinha sucumbido aos ferimentos recebidos, e que o tínhamos sepultado com todas aquelas pobres criaturas que enchem a fossa. Quem poderia desdizer-nos?
Cato cerrou os lábios, enquanto mantinha o olhar fixo no procurador.
— Ele tem uma certa razão.
Os olhos de Nepo arregalaram-se de medo por instantes, mas ele respondeu com desprezo:
— Estão apenas a fazer ameaças vãs. Cato esticou a mão e fez pressão na perna do procurador. A boca de Nepo abriu-se de imediato, e dela saiu um grito de dor. Depois ele cerrou o queixo e fez ranger os
dentes, enquanto lutava contra uma onda de agonia. Cato removeu a mão, e por momentos Nepo ficou de olhos fechados, o suor a brilhar-lhe na testa. Ouviu-se um toque na porta e, sem esperar por resposta,
o médico entrou e ficou parado, incerto quanto ao que observava.
— O que é que está a perturbar o meu paciente? Procurador, há alguma coisa de que precise?
Nepo olhou para um e depois para o outro dos oficiais que o rodeavam, um de cada lado do leito, e abanou a cabeça.
— Não. Nada. Está tudo bem.
— Ora muito bem — concluiu Macro. — Está tudo bem. Podes sair.
O médico olhou para Cato, à espera de confirmação da ordem.
— Estou certo de que tens outros pacientes que precisam de ti.
— Sim, senhor. — O homem recuou, e fechou a porta ao sair. Cato cruzou as mãos e fez estalar os nós dos dedos.
— Posso portanto concluir que te sentes agora mais disposto a colaborar? — Sim, sacana, digo-te tudo o que puder.
Macro lançou-lhe um olhar de aviso, e acenou na direção das pernas.
— Cuidado com a língua...
Ao olhar em redor, Cato descobriu um banco, pelo que pegou nele e se sentou ao lado do procurador. Perdeu uns momentos a organizar os pensamentos, antes de começar.
— Vamos lá começar com a prata. Estava a ser reunida aqui, pronta a ser levada para Tarraco num comboio, quando a revolta começou. Correto?
— Sim. Não há aí grande mistério. Acontece com regularidade ao longo do ano. Só que desta vez foi numa má ocasião. Resolvi que não era seguro enviar o comboio com os rebeldes à solta pelo território.
Julguei que o Iskerbeles e os seus seguidores depressa seriam derrotados, e que depois a prata podia seguir o seu caminho. Mas já sabes o resto. A rebelião cresceu mais depressa do que alguém podia ter
imaginado, e tornou-se impossível tentar sequer levar a prata para longe da região. Quando o cabrão do Iskerbeles e a sua ralé nos apareceram à porta, já sabia que não podia permitir que a prata lhe caísse
nas mãos.
Tivemos sorte por ele me ter dado aquele tempo para ponderar os termos da rendição. Portanto esperei pelo meio da noite, convoquei um punhado de homens em quem sabia que podia confiar, levei as arcas
para um dos túneis e depois deitei fogo aos suportes. Quando arderam, o túnel ruiu, e a prata ficou a salvo do Iskerbeles. Os que me ajudaram foram mortos pelos rebeldes antes mesmo de terem ocasião de
tentar usar esse conhecimento para salvar a vida.
Mesmo que o tivessem tentado, estou certo de que o Iskerbeles os teria executado de qualquer forma. Só eu sei onde está a prata, e agora vocês os dois. Portanto, o que tencionas fazer quanto a isso?
Olhou para os dois oficiais, à espera de resposta.
— Quanta prata é? — indagou Macro.
— O equivalente a cerca de dez milhões de sestércios, uns milhares a mais ou a menos. Tudo guardado em baús bem construídos, vinte no total.
O queixo de Macro descaiu.
— Dez milhões... Foda-se.
— Pouco importa o montante — disse Cato. — Tem que continuar longe das mãos dos rebeldes. Portanto, fica onde está. Quanto menos gente souber, melhor. Se conseguirmos manter o Iskerbeles à distância até
à chegada do Vitélio, poderá ser desenterrada nessa altura. Se os rebeldes voltarem a tomar o campo, não terão possibilidade de encontrar a prata. A não ser por acaso.
Quando a revolta for derrotada, a mina voltará a ser ocupada e a prata acabará por ser descoberta, julgo. Portanto, a prata fica onde está, e nenhum de nós volta a mencionar o assunto. Fica entendido?
Nepo anuiu, e o mesmo fez Macro, com um suspiro de lamento.
— Seria engraçado ver toda essa soma junta no mesmo lugar.
— Vê-la-á, se nos safarmos desta.
— Espero bem que sim. — Macro pensou por momentos. — Senhor, há uma coisa que me preocupa. Nós levaremos este segredo para o túmulo, mas o que poderá impedir aqui o rapaz de dar corda à língua se o Iskerbeles
voltar a tomar o campo? Não seria a primeira vez.
— É verdade. Mas se o tratamento que sofreu no passado serve para alguma coisa, atrevo-me a acreditar que o nosso caro procurador preferirá não correr o risco de voltar a cair vivo nas mãos do inimigo.
Da próxima vez, o Iskerbeles já fará uma boa ideia do que lhe está a ser escondido. Não haverá limites para as torturas que poderá infligir aqui ao Nepo. No lugar dele, preferiria suicidar-me.
— Mas não está no seu lugar — ripostou Macro. — O senhor tem a coragem de fazer o que for preciso. Ele já demonstrou que não a possui.
Nepo tossicou.
— Sabem bem que eu estou aqui, não sabem? Senhores, posso falar por mim. Dou-vos a minha palavra de que me assegurarei de que os rebeldes nada poderão extrair-me, se voltarem a tomar o campo.
Macro deitou-lhe um olhar, sem esconder as dúvidas.
— Pois...
Cato levantou-se.
— Nepo, vamos tornar as coisas mais fáceis. Se o campo for tomado, eu ou o centurião poupar-te-emos à necessidade de tomar essa decisão. Não te preocupes, faremos a coisa de forma rápida e indolor.
Macro encolheu os ombros.
— Pelo menos rápida. Não tenho lá muito jeito para essa coisa do indolor.
O procurador empalideceu, e Cato teve que se voltar antes que o homem o visse a sorrir. Fez um gesto a Macro para que o seguisse, e dirigiram-se à porta Antes que a alcançassem, porém, a porta escancarou-se,
e um pretoriano sem fôlego apresentou uma continência despachada.
— O centurião Petílio envia-lhe cumprimentos, senhor. E diz que deve dirigir-se ao posto de vigia o mais depressa possível. É o inimigo, senhor.
Quando Cato e Macro se aproximaram em corrida, uma secção de homens começava a erigir uma pequena torre de vigia junto às cisternas. Petílio saudou-os com um rápido aceno e apontou para um grupo de cavaleiros
que se aproximavam da povoação destruída, vindos de sudoeste. Cato calculou que eram pelo menos uns cinquenta homens a cavalo. Os raios do Sol refletiam-se ocasionalmente nos capacetes polidos e nas pontas
das lanças, enquanto eles observavam as ruínas fumegantes e os pretorianos que trabalhavam no aprofundamento do fosso à frente da entrada da mina.
— Deles ou nossos, pergunto-me — lançou Petílio, em tom calmo.
Passou um momento enquanto Cato esforçava a vista para distinguir melhor os vultos distantes.
— Se fossem dos nossos, seria de esperar uma coluna mais ordeira. Acho que é seguro assumir que se trata do inimigo.
— Senhor, quais são as suas ordens? Acha que devemos enviar um contingente para os afastar?
Os cavaleiros fizeram alto numa crista baixa, da qual podiam vigiar os acessos à povoação e à mina por trás dela. Cato abanou a cabeça.
— Não. Além disso, eles não se vão aproximar o suficiente para descobrirem o que quer que seja de útil. Deixa-os espreitar uns tempos e depois irem contar o que viram ao Iskerbeles. A não ser que ele
próprio esteja ali entre eles.
— Acha? Isso seria um grande risco para ele.
— Ele já está bem embrenhado nesse caminho, Petílio. Quando deu início à revolta, assumiu o maior risco que alguma vez correu na sua vida. E desde esse momento, tem apostado na sorte, e as coisas têm-lhe
corrido bem. Ele não tem medo de nós.
— Ainda assim... — comentou Macro. — Se ele estiver ali e mandarmos uma força contra aquele grupo, podemos ter a sorte de o caçar e pôr fim a tudo isto.
— Podíamos fazer isso, sim. Mas não vale a pena arriscar os nossos homens por uma hipótese tão remota. Por agora, vamos esperar. — Cato olhou para os escombros calcinados da povoação. — Calculo que tenham
avistado o brilho do incêndio da noite passada. Anunciámos a nossa presença ao inimigo.
Agora, temos que ter a certeza de que estamos prontos, quando eles nos vierem desafiar em força.
A notícia de que o inimigo tinha sido avistado espalhou-se rapidamente pelas fileiras, e deu nova urgência aos esforços dos homens para preparar as defesas da mina para o ataque que era fácil de antecipar.
Porcino e Secundo levaram os seus homens para o exterior, para derrubar o mais que puderam dos escombros calcinados da povoação, fazendo levantar uma nuvem de poeira e cinza sufocante, que obrigou os
homens a colocarem os lenços sobre as bocas e narizes enquanto trabalhavam debaixo de um calor opressivo. A centúria de Petílio colocou estacas e outros obstáculos no fosso à frente da muralha, antes
de acumular rochas e terra na parte de dentro da rampa. Depois empilharam mais rochas junto ao portão, prontas para reforçar a entrada assim que os últimos homens regressassem da povoação. Os que tinham
estado envolvidos na demolição da aldeia foram depois imediatamente deslocados para trabalhar junto de Pulcher, encarregado da construção da segunda muralha na zona mais estreita dos trabalhos mineiros.
Tinha sido uma sorte que lhes tivessem dado a tarefa de defender uma mina, refletiu Cato. Todas as ferramentas necessárias estavam ali mesmo à mão de semear, e os homens puderam escavar um fosso à frente
da segunda linha de defesa com rapidez. Havia no campo um resto de blocos de pedra talhados, que tinham sobrado da construção dos blocos de casernas, e que foram empregues na construção de fundações sólidas
para um portão e na maior parte da muralha que se estendia para os dois lados. A entrada fortificada foi equipada com uma estrutura em madeira, e as pedras e terra serviram para elevar uma espessa rampa
onde se construiu uma paliçada com as vigas que seriam destinadas ao suporte dos túneis da mina.
— Bom trabalho. — Macro afagou a paliçada, com ar de aprovação, quando ele e Cato inspecionaram a muralha quase terminada, ao fim da tarde. — Não me agradaria ter que fazer um assalto frontal a esta estrutura.
— Nem a mim — confirmou Cato. — Mas só servirá os nossos propósitos enquanto tivermos homens suficientes para a guarnecer. Se as nossas baixas forem demasiado numerosas, não teremos outra escolha a não
ser recuar para a última linha de defesa no campo.
Havia anos que Macro se tinha habituado às permanentes ideias pessimistas do amigo, por isso não fez qualquer comentário, enquanto continuava a avaliar as defesas que os homens de Pulcher tinham construído.
O fosso apresentava uns três metros de fundo, e a face próxima da muralha estava coberta de estacas aceradas. A rampa de terra era tão alta como o fosso era profundo, e depois ainda tinha o passadiço
e a paliçada, da qual se projetavam também pequenas estacas, para dificultar o trabalho de a trepar. Sem engenhos de cerco apropriados, os rebeldes tinham tantas hipóteses de romper aquela segunda linha
como os gauleses tinham tido em Alésia, havia mais de cem anos. Era bem verdade, considerou Macro, que as armas mais eficazes no arsenal de Roma eram as pás e picaretas que os seus soldados utilizavam.
O centurião Pulcher aproximou-se, vindo do portão, a túnica manchada de terra e pó vermelho, e o rosto afogueado e ensopado em suor. Trocou uma saudação com o prefeito.
— Senhor, está praticamente terminado. Só falta colocar as portadas no sítio.
Apesar da desconfiança inicial que tivera para com o centurião, e toda a história prévia de inimizade entre eles, Cato via-se forçado a admitir que Pulcher era um soldado de primeira água, e que merecia
ser reconhecido como tal.
— Tu e os teus homens fizeram um excelente trabalho.
Um breve lampejo de surpresa passou pela expressão do duro veterano, antes de responder.
— Obrigado, senhor. Calculo que os rapazes combaterão como leões para garantir que mantêm a posse da muralha, depois de todo o suor que gastaram a pôr de pé esta porra.
Cato não evitou um sorriso.
— Agrada-me ouvi-lo. Quando acabarem isto, quero que os teus homens comecem a trabalhar noutra muralha ao cimo do caminho.
Pulcher rangeu os dentes.
— Acho que os rapazes merecem um pequeno descanso antes disso, senhor. Senão, vão começar a cair que nem moscas.
Cato ponderou a sugestão rapidamente, e assentiu.
— Muito bem. Arranja-lhes alguma comida e vinho, no campo. Ainda há umas ânforas de vinho que sobraram do que trouxemos connosco na marcha. Mas junta-lhe água. Quero-os satisfeitos, mas não bêbados.
— Sim, senhor. Eu aviso-os de que quem não conseguir aguentar a bebida será esfolado vivo pelo prefeito.
— Disso podem estar certos. É tudo, Pulcher. — Voltaram a trocar uma continência, e o centurião virou-se e afastou-se a passo firme. Macro ficou a olhar para ele, e abanou a cabeça.
— Não confio nele.
— Até agora, cumpriu os seus deveres sem falha.
— Até agora... Cato encostou-se ao parapeito.
— Oiça, o que aconteceu entre nós foi há uns dez anos. O Pulcher estava a obedecer a ordens. Não o vimos desde então, e agora voltamos a encontrar-nosEle já provou o seu valor. Parece-me que merece que
lhe seja dada uma oportunidade para esquecer as diferenças que em tempos nos separaram.
— Diferenças? O sacana tinha-nos liquidado, se lhe tivéssemos dado um resquício de oportunidade. Quanto às ordens, vamos pôr as coisas assim: ha soldados que cumprem ordens cruéis, e soldados a quem agrada
cumprir ordens cruéis. O nosso homem Pulcher gosta de fazer mal às pessoas. Gosta de as torturar. Se quiseres esquecer o que aconteceu no passado, estás à vontade, mas eu não vou fazer o mesmo. Não lhe
vou oferecer a ocasião de me espetar uma faca nas costas quando estiver distraído. E aconselho-te a usares dos mesmos cuidados, miúdo. Acredita em mim.
— Acredito sempre em si, Macro. Nunca tive razão para não o fazer. Mas...
— Cato, não me venhas com ”mas”. Só não te deixes cair em palermices. Cato endireitou-se e olhou para Macro com irritação. Apesar da proximidade que a sua longa amizade permitia, eram soldados, e a diferença
entre as patentes que ostentavam nunca se apagava.
— Centurião, tenha presente a quem fala. Macro empertigou-se também, e encarou Cato, enquanto respondia num tom duro:
— Nunca o esqueço. E também nunca esqueço aqueles que constituem uma ameaça à minha vida e à dos meus amigos. Senhor, faria bem em seguir este princípio.
— Aceitarei os seus conselhos quando deles tiver necessidade. — Cato detestava francamente aqueles momentos de tensão que os dividiam, e decidiu mudar o foco da conversa, o mais depressa possível. — Nós...
Eu tenho que decidir onde colocar aquela última muralha. Venha.
Desceu aos tropeções a íngreme encosta da rampa e dirigiu-se ao trilho que conduzia ao campo, furioso consigo mesmo por ter usado o plural quando devia obviamente ter assumido que a decisão era apenas
dele. O amigo tinha tido razão ao avisá-lo para não confiar demasiado em Pulcher. Porém, a situação exigia que Cato se concentrasse na condução da defesa da mina. Todos os homens eram necessários e, numa
situação tão perigosa, um veterano com as qualidades de Pulcher era mais do que necessário. As suspeitas de Macro não podiam servir para corroer as relações profissionais entre os oficiais da coorte,
e muito menos a autoridade do seu comandante. Tinha custado imenso a Cato impor-se ao amigo daquela forma, mas fora necessário, tentou convencer-se. Mais uma vez não conseguiu afastar da ideia quais teriam
sido os motivos que haviam levado Vitélio a escolher certos oficiais para o acompanharem naquela missão à Hispânia Tarraconense. O legado sabia do conflito entre Cato e Pulcher, acontecido havia tantos
anos. Teria sido por isso que haviam sido escolhidos? Nesse caso, devia haver algum plano secreto conhecido de Pulcher, e Vitélio puxava os fios, mas se era esse o caso, o plano escapava por completo
a Cato, pelo menos até àquele momento. Já tinha o cérebro mais do que carregado. E havia coisas muito mais urgentes a considerar.
Macro seguiu-o fielmente, embora profundamente perturbado pela recusa do amigo em se preocupar com Pulcher. Embora o homem tivesse desempenhado o seu papel sem razão para reparos, Macro não conseguia
levar-se a acreditar que Pulcher mudara nos anos que tinham passado desde o seu último encontro. Alguns homens eram assim, de caráter fixo, imutável, para o bem ou para o mal. Pulcher era um desses, e
Macro estava certo disso. E portanto, continuava a ser um perigo para ele e para Cato, enquanto lhe fosse permitido continuar a viver.
Cato percorreu a largura do trilho no ponto em que este abria para a cornija onde fora construído o campo mineiro, de mãos na ilharga.
— Uns seis metros, diria eu. Está bem. Uma frente bem estreita. — Deu meia-volta, para indicar o terreno que se estendia até à esquina da casa do procurador. — Se prolongarmos a muralha por ali, podemos
lançar dardos e pedras para cima do flanco direito dos rebeldes.
Macro anuiu. Era uma posição ideal. O inimigo teria que subir o trilho e suportar a barragem sobre o seu flanco desprotegido, e depois não conseguiria lançar na refrega mais de uns oito homens ao mesmo
tempo. E os que esperavam a sua vez continuariam a sofrer a chuva de projéteis vinda de cima. Era o tipo de posição que podia ser mantida por um número pequeno de homens determinados face a um exército.
Pelo menos durante algum tempo. Como os espartanos tinham descoberto em Termópilas.
— O importante nisto é assegurar que temos tempo de retirar de uma muralha para a seguinte em boa ordem — prosseguiu Cato. — A escolha dos momentos certos será vital.
— Se alguém pode fazê-lo, são os guardas, senhor. São bons soldados. Cato deitou-lhe uma olhadela de lado.
— Tão bons como os homens da Segunda Legião? — Os homens da Segunda Legião não são simplesmente alguém, senhor. Cato soltou uma risada.
— Bem respondido. E até é bem capaz de ser verdade.
As sombras estendiam-se pelo campo, à medida que o Sol mergulhava para as colinas. Daí a menos de uma hora estaria escuro, calculou Cato.
— Bom, é tempo de preparar o esquema de sentinelas e as senhas para esta noite. A sua centúria fará o primeiro turno, portanto tire-os do trabalho pesado e vá dar-lhes de comer. Vejo-o mais tarde.
— Sim, senhor. — Macro saudou-o e seguiu pelo trilho abaixo, enquanto Cato se dirigia ao átrio da casa do procurador, que servia agora como quartel-general da coorte. No ritmo habitual das coisas haveria
à sua espera o monte quotidiano de assuntos burocráticos a tratar, desde listas de efetivos, questões disciplinares, relatórios de inventário, pedidos de licença, recomendações para promoções e toda a
miríade de outros assuntos que pediam a atenção de um comandante de coorte. Estar numa situação de perigo tinha a virtude de afastar algumas dessas questões, pelo menos. Ao sentar-se à secretária, Cato
pediu comida e vinho diluído, e depois dedicou-se à tarefa de dispor as sentinelas para a noite que se aproximava, bem como criar as senhas. Fez uma pausa, procurando inspiração por entre tudo o que tinha
acumulado no cérebro, e por fim inscreveu uma frase na tábua encerada: ”Não passarão”. Parecia-lhe adequada, e capaz de lembrar aos homens qual era o seu dever nos dias que se aproximavam. Depois, quando
Metelo lhe trouxe uma refeição ligeira de pão, carne de porco curada e um cálice de vinho, Cato pôs de lado a tábua e o estilete e atirou-se à comida com apetite. Repleto dirigiu-se a um dos quartos que
davam para o jardim. A noite já caíra, e o céu apresentava-se sem nuvens, e Cato deteve-se à porta, contemplando a fria serenidade das estrelas.
Tinha havido noites como aquela que partilhara com Júlia em Palmira, quando a cidade estivera cercada. Depressa estaria de novo sitiado, mas desta vez não havia nenhuma Júlia para partilhar a agridoce
sensação de estar vivo e apaixonado em face da morte iminente. Ao invés, tinha o coração frio, e na mente apenas as preocupações devidas à responsabilidade e à solidão do comando.
Fizera todos os preparativos necessários para a defesa da mina. Partilhava da confiança renitente de Macro na qualidade dos pretorianos, e sabia que eles estariam à altura dos acontecimentos, no combate
que se aproximava.
Cato entrou no quarto, sentou-se na esquina da cama, e desapertou e tirou as botas, antes de se deixar cair no colchão repleto de pelo de cavalo. As dores dos músculos começaram a amainar, e foram substituídas
por uma impressão quente e cansada que depressa o conduziu ao sono, antes mesmo de se aperceber de tal. No momento seguinte ressonava. E foi assim que Macro o encontrou, depois de o sinal do primeiro
turno soar sobre a mina. A princípio, Macro sentiu-se tentado a acordá-lo, mas não havia nada a relatar. Tudo estava tranquilo na muralha que dava para a povoação arruinada. Era melhor deixar o jovem
descansar, decidiu Macro. Nos dias seguintes, a coorte ia precisar do seu comandante em boa forma, atento e capaz de tomar decisões. As vidas dos homens iam depender do bom julgamento de Cato. Portanto,
deixou-o a dormir, e dirigiu-se ao seu próprio leito, no quarto que partilhava com os outros centuriões. Os que não estavam de serviço já dormiam, e ressonavam a vários tons. Macro despiu-se na escuridão
e deitou-se, por fim. Dobrou os braços por baixo da cabeça, e por uns tempos pensou na escuridão que parecia ter-se abatido sobre o espírito do amigo, provocada pela perda da esposa. Os pensamentos começaram
a diluir-se, a esconder-se, a misturarem-se uns com os outros, e pouco depois também Macro dormia, juntando o seu ressonar profundo à cacofonia sem qualquer ritmo feita pelos outros.
— Senhor! Acorde!
Cato sentiu uma mão a abanar-lhe o ombro, a princípio devagar, depois com mais força, dado que ele não dava sinal de despertar. Piscou os olhos, abriu-os, e logo desejou não o ter feito, já que uma luz
brilhante entrava no quarto pela janela que abria para o jardim. Semicerrou os olhos, e conseguiu discernir o rosto do médico, cinzento e preocupado.
— O que... O que é? — O paciente, senhor. O procurador Nepo.
— O que há com ele? — Está morto, senhor. Completamente morto, foi como fui dar com ele ainda agora.
— Morto? — Cato sentou-se de imediato, e fez rodar as pernas para fora da cama. Estava furioso consigo mesmo por ter adormecido sem deixar ordens para que o acordassem antes da alvorada. Temia que tal
desse uma impressão de fraqueza e preguiça, e que desmentisse a noção que se esforçava por transmitir a todo o momento, a de ser um oficial duro, de cabeça fria, um asceta que dava o melhor exemplo aos
homens que conduzia. Esfregou os olhos.
— O que aconteceu? O médico abanou a cabeça.
— Ele estava fino quando o fui ver ontem à noite. Dormia sossegadamente. Não havia razão para pensar que havia algum problema. E agora...
— Vamos. — Cato dirigiu-se à porta e seguiu pelo corredor de pés descalços, conduzindo o médico para o quarto do procurador. A porta estava aberta. e Cato viu um dos enfermeiros de pé, desalentado, junto
à cama. Nepo jazia de costas, um braço esticado ao lado do corpo, o outro dobrado sobre o estômago. Os olhos estavam muito abertos, fixos no teto, e a boca escancarada com a língua de fora. Cato absorveu
a situação, depois inclinou-se de forma a colocar a orelha junto à boca do procurador, mas não detetou qualquer sinal de respiração. Encostou a orelha ao peito do homem, mas também não escutou bater do
coração. A pele estava fria, denunciando que a morte ocorrera havia já várias horas.
Cato recuou.
— Quando foi a última vez que o vieste ver? — Uma hora antes da meia-noite. Foi a última coisa que fiz no fim da ronda, antes me ir deitar, senhor.
— Estou a ver. — Cato olhou para o enfermeiro. — Vai procurar o centurião Macro, e trá-lo aqui imediatamente.
O homem respondeu com uma continência, e saiu do quarto.
— Na tua opinião, qual foi a causa da morte? — indagou Cato. — Morreu em consequência dos ferimentos?
O médico esfregou uma bochecha.
— Não vejo como, senhor. Tinha melhorado imenso desde que o salvámos. Recoloquei-lhe os ossos em posição, tratei-lhe das feridas. Não há sinais de hemorragia. Pelo menos, não o suficiente para lhe causar
a morte. Não tinha febre. Fiz tudo o que podia por ele, e diria que tinha todas as hipóteses de recuperar satisfatoriamente. Fora os danos que tinha sofrido nas pernas, claro. Não vejo que o que fiz possa
ter contribuído para a sua morte, senhor.
— Tem calma, não te estou a acusar de nada. Só quero saber a tua opinião sobre as possíveis causas da morte.
— Por vezes as pessoas morrem, apesar dos meus esforços, senhor. Sem qualquer razão aparente. Os corações não aguentam. No fim de contas, depois de tudo por que o Nepo passou, essa possibilidade não pode
ser posta de lado.
Cato pensou por momentos, e abanou a cabeça.
— Não me parece. Quando falei com ele, pareceu-me estar em boas condições. E tenho plena confiança na forma como tratas dos teus pacientes.
Portanto...
O médico olhou para ele, e mordeu o lábio por um instante.
— Portanto, senhor, o que está a sugerir? Que ele foi morto? Quem poderia ter feito tal coisa?
— De facto, quem? — Cato suspirou. Os mais óbvios candidatos seriam aqueles que o procurador tinha traído quando entregara a mina a Iskerbeles. Mas esses estavam todos mortos, à exceção dos três guardas
pessoais do procurador. Pasterico não tinha feito segredo do desprezo que sentia pelas ações do homem, mas não dera qualquer sinal de uma vontade assassina.
— Senhor? Mandou-me chamar. Cato virou-se enquanto Macro entrava no quarto, já vestido e de armadura. Cato fez um gesto na direção do cadáver, e disse apenas:
— O Nepo está morto. Macro aproximou-se e contemplou o corpo, antes de olhar para o médico.
— Belo trabalho, meu amigo.
— Eu? — O médico levou a mão ao peito. — Não. Eu não tive nada a ver com isto, juro-o.
Macro fez rolar os olhos.
— Foi só uma piada de soldado. Pobre Nepo — continuou, sem qualquer emoção, e depois fez uma pausa para analisar o corpo. — Acreditar na palavra do Iskerbeles acabou afinal por lhe custar o mesmo preço
que aos outros pobres desgraçados. Não correrão muitas lágrimas por causa dele, parece-me.
— Talvez não — concordou Cato. — Mas não está a pôr a pergunta mais óbvia.
— Seja. Como é que ele morreu? — O médico não consegue explicá-lo. Por enquanto.
— Fico feliz por verificar que o exército continua a sua política de recrutamento dos melhores e mais capazes no campo da medicina. — Macro agachou-se ao lado da cama e examinou o cadáver. Havia inúmeras
nódoas negras no peito, braços e rosto, algumas delas com um ar lívido, em tons de amarelo e púrpura. A cabeça do procurador estava apoiada na almofada de seda, e Macro levantou-a, de forma a expor as
orelhas e o pescoço. Pegou no queixo do homem, rodou-o com firmeza para o lado, e deu um estalo com a língua. — Veem ali?
Apontou para um grupo de marcas vermelhas que mal se via, por baixo da penugem do pescoço. Obrigou os músculos já duros do pescoço a rodar, e revelou marcas similares do outro lado.
— O que acha? — indagou Cato.
— Dá ideia de que alguém o estrangulou. — Macro virou-se para o médico. — Fico espantado por não teres notado isso.
— Mas porque o faria? — lançou o médico. — Por que razão quereria alguém matar um dos meus pacientes?
— Não importa — respondeu Cato. — Não há mais nada que possas fazer aqui agora. Vai tratar dos feridos. Fecha a porta quando saíres.
O médico baixou a cabeça e saiu do quarto. Uma vez a sós, Cato dirigiu-se ao outro lado da cama e agachou-se, para examinar melhor as marcas. Eram fáceis de distinguir, e estavam distribuídas de uma forma
que apoiava a tese de Macro.
— Sufocado, portanto.
— Era a melhor maneira — adiantou Macro. — Dada a quantidade de marcas, até podia passar despercebido. Uma garganta cortada não deixaria dúvidas. Estrangulá-lo seria rápido e não faria barulho. Seria
isso que eu faria.
— E fê-lo? — lançou Cato, com um sorriso.
— Tenho mais que fazer do que gastar o meu tempo a liquidar um tipo cobardolas como o Nepo. E muito obrigado pela calúnia lançada sobre o meu caráter.
— Bem, alguém o estrangulou. Macro fungou.
— Ah, Cato, vá lá. Não nos vamos pôr com rodeios. É bem óbvio. Isto é trabalho do Pulcher.
— Porquê o Pulcher? — Porque isto é precisamente o que ele faz. É a ele que os poderosos recorrem quando querem alguém morto. Foi assim na Gália, e aposto que tem sido sempre assim. Só os deuses sabem
quantas pessoas já terão morrido às mãos daquele cabrão.
— Macro, isso são tudo suposições. Não temos qualquer prova.
— Acredita no que te digo, foi o Pulcher quem fez isto. Se não foi ele, então quem? Diz-me.
Cato considerou a ideia. De facto, parecia razoável. Pulcher podia muito bem estar a agir em função das ordens de outra pessoa. De alguém que queria ver o procurador morto. Por outro lado, também era
possível que algum dos soldados tivesse entrado de mansinho no quarto, na esperança de roubar alguma coisa de valor, e tivesse acordado o procurador. Mas nesse caso, estaria escuro, e o homem poderia
escapar sem correr o risco de ser identificado. Não, quem matara Nepo fizera-o de forma perfeitamente deliberada. Por uma razão.
E talvez Macro tivesse razão e Pulcher tivesse cometido o crime por ordem de alguém. Mas então, quem quereria o procurador morto? E porquê?
Macro tinha estado a observá-lo, enquanto seguia a sua própria linha de pensamento.
— O Pulcher foi enviado para o liquidar. Por isso é que o Pulcher tem estado connosco. Por isso é que foi escolhido para esta expedição. E quem é que o escolheu? Aquela víbora do Vitélio, eis quem. Estás
mesmo a sugerir que não há nenhuma ligação? Para mim, a questão é: porque é que o Vitélio queria o Nepo calado?
Cato pensou por momentos.
— O que sabia ele que fosse tão importante, que valesse a pena matá-lo para impedir que o divulgasse? Tem estado aqui na mina, no fim do mundo da província. Muito longe dos assentos do poder em Roma...
Portanto, deve ser alguma coisa a ver com a mina. Mas o quê?
Macro contemplou Nepo por momentos e encolheu os ombros.
— Não faço ideia. Mas tem que ser alguma coisa relacionada com a prata.
No fim de contas, o que mais há neste buraco esquecido pelos deuses?
Foram interrompidos por um grito e o som de botas a correr pelo corredor no exterior do quarto. Alguém bateu à porta antes de a abrir de par em par, e um pretoriano ofegante entrou e fez uma rápida continência.
— O que é isto? — inquiriu Cato, irritado pela intrusão que perturbava o inquérito que conduzia.
— O inimigo, senhor... Venho do posto de observação... O optio diz para lhe dizer que o exército rebelde vem aí.
— Foda-se, não querem perder tempo — resmungou Macro. Cato já se dirigia à porta.
— A minha saudação ao teu optio. Diz-lhe que estamos a caminho.
— Sim, senhor! — O pretoriano voltou a saudar, virou-se e desapareceu em corrida pelo corredor.
Cato correu ao seu quarto e calçou as botas apressadamente. Deixou uma mensagem para que Metelo o seguisse com a armadura e armas, e saiu da casa do procurador, correndo à frente de Macro enquanto atravessavam
as acomodações dos escravos, passavam pelos tanques de água e chegavam à torre de observação ali colocada. O optio de serviço estava na pequena plataforma e chegou-se a um dos lados quando os dois oficiais
subiram a escada para se juntarem a ele. Não houve necessidade de o optio apontar a localização do inimigo. Uma grande nuvem de pó marcava a sua passagem pela planície, a caminho da mina. Pequenos grupos
de homens eram visíveis na orla da nuvem, e a luz do Sol faiscava nas armas e no equipamento que ostentavam, fazendo lembrar a ondulação num rio distante. À frente da coluna inimiga seguia um grupo de
batedores a cavalo. Cato calculou que os mais próximos já não estavam a mais de uns seis quilómetros dali. Chegariam junto da mina em menos de uma hora, e o resto do exército devia chegar pouco depois
do meio-dia. O tempo era curto.
— Optio, vai ao quartel-general. Diz aos oficiais que o inimigo lançará um ataque à mina provavelmente ainda antes do fim do dia. Quero as nossas defesas terminadas antes disso. O centurião Musa deve
levar os seus homens para começarem de imediato o trabalho na muralha mais recuada. Vai.
Enquanto o optio descia a escada e corria por entre as cisternas, Macro debruçou-se sobre a força inimiga que se aproximava, tentando calcular-lhe o número.
— O que achas? Cinco, não... Dez mil? — É difícil dizer com toda aquela poeira. Podem ser mais. — Cato observou mais um momento antes de se virar e olhar para leste. — Não me parece que possamos depositar
qualquer esperança na chegada rápida do Vitélio. É connosco, Macro. A Segunda Coorte vai ter que aguentar isto tudo sozinha.
Macro assentiu, e cuspiu no solo.
— Ou morrer a tentá-lo.
O que é que achas que eles vão fazer primeiro? — indagou Macro.
Ao seu lado, Cato observava o exército dos rebeldes enquanto este montava o acampamento a umas centenas de metros para lá das escurecidas ruínas da povoação. A estimativa que Macro tinha feito da força
inimiga estava mais ou menos correta, na sua opinião. Mais de dez mil, muitos dos quais eram mulheres e crianças que acompanhavam as tropas, isto numa primeira inspeção. Ainda assim, eram consideravelmente
mais numerosos do que os pretorianos, e o sucesso da rebelião devia estar a inspirá-los. O moral devia ser elevado, e o medo das consequências de uma derrota era mais do que suficiente para os motivar
a combater com um espírito fanático. Mas enquanto montavam o campo, não demonstravam qualquer urgência nas suas ações. Dividiram-se em grupos, cada um com as suas carroças e veículos, e abrigos; Cato
calculou que representavam diferentes grupos tribais. O coração do campo era dominado por um conjunto de tendas militares romanas, sem qualquer dúvida saqueadas nos armazéns de algum posto avançado tomado
pelos rebeldes. As tendas definiam um quadrado em torno de um terreno vazio, ao centro do qual se via a maior de todas, o quartel-general de Iskerbeles.
Cato limpou a garganta.
— Aposto que ele vai tentar fazer-nos a mesma oferta que fez ao Nepo. Só que, desta vez, temo bem que tenhamos de o desapontar.
Macro riu.
— Foda-se, podes crer mesmo. Os rapazes estão mortinhos por um bom combate.
Cato olhou ao longo da muralha, para a esquerda e para direita. Desse lado, os homens da centúria de Macro aguardavam, ombro a ombro, escudos e lanças apoiados no solo. Nas suas feições não havia qualquer
sinal de nervosismo. À esquerda, a Segunda Centúria mantinha-se em prontidão, e os homens de Petílio e Musa estavam de reserva a curta distância por trás da muralha, de ambos os lados do pelotão de honra,
onde o estandarte da coorte se erguia bem alto no ar sereno. Por trás deles estava a centúria de Porcino, a defender a segunda muralha, e como reserva encontrava-se a meia centúria de Placino, sob o comando
de Pulcher. Cato sentia-se confiante com os seus preparativos. e voltou-se para prosseguir a sua inspeção às forças inimigas.
— Não têm quaisquer engenhos de cerco, pelo menos não há sinais deles — comentou Macro.
— Isso não é de todo surpreendente. Há mais de cem anos que eles não têm sido necessários na Hispânia. Se os quiserem, terão que começar do zero. E tudo o que lhes custar tempo joga a nosso favor. Temos
comida para vinte dias. e água suficiente. Mais do que o que precisamos para durar até que o legado chegue cá.
— Nunca pensei ver chegar o dia em que desejei ardentemente voltar a pôr os olhos no estupor do Vitélio.
Os dois homens mantiveram-se em silêncio por momentos, até que Macro prosseguiu:
— Pergunto-me se ele terá alguma coisa a ver com a morte do Nepo.
— Se tiver, tem um braço muito longo.
— O que não é muito de admirar. Lembra-te de que até no cu do mundo, nos confins da Britânia, não conseguimos escapar às questões e combates políticos de Roma. Digo-te eu, a confusão entre o Narciso e
o Pallas ainda vai ser o nosso fim. — Macro deixou passar alguns momentos, enquanto usava a língua para limpar os dentes. — E é por isso que temos de ter muito cuidado com o Pulcher.
— Já discutimos isso — ripostou Cato, um tanto irritado. — Ele não nos deu qualquer razão para que suspeitássemos de algum objetivo sinistro, ao longo do tempo que estamos com a coorte.
— Pois, mas agora o Nepo está morto. Alguém assassinou o procurador. E eu era capaz de apostar a minha vida que foi o Pulcher.
— Investigarei a morte do Nepo assim que tiver oportunidade para isso. Neste momento, temos ambos preocupações mais urgentes. Olhe para ali. — Cato levantou a mão e apontou para um cavaleiro que avançava
por entre as ruínas, a caminho do portão. O homem parou quando alcançou o limite da povoação e levantou um corno, de onde extraiu três notas estridentes, antes de prosseguir na direção do portão.
— Portanto, o Iskerbeles quer parlamentar — disse Macro. — Se ele pensa que pode usar o mesmo truque duas vezes, deve julgar que somos tão burros como as tábuas do portão. Dê a ordem, senhor, e direi
a um dos meus homens para o abater assim que ficar ao nosso alcance.
— Não. Vamos ouvir o que ele tem a dizer. Tudo o que nos puder dar mais tempo, Macro. É esse o jogo que temos de praticar com os rebeldes.
— Como queira, senhor.
O arauto emergiu da povoação, parou a cinquenta passos do portão e fez soar o corno mais uma vez, antes de manejar as rédeas. Não tinha percorrido mais de uns passos quando Cato levou a mão em concha
à boca e gritou:
— Para aí mesmo! O arauto diminuiu o passo do cavalo, mas continuou a avançar.
— Para aí, disse eu! Ou serás derrubado! Desta vez o homem deteve a montada e ficou parado. Olhou com ar de desdém para os rostos que ocupavam a muralha, e por fim apontou para os oficiais no torreão.
— Vocês, romanos! Iskerbeles comunica que deseja falar com o oficial que comanda a mina.
O latim do homem era fluente. Era alto e bem constituído, e envergava uma couraça de couro. Os anéis escuros do cabelo estavam presos na testa com uma tira larga, também de couro.
— Sou eu o comandante — ripostou Cato. — Diz ao teu líder que se apresente em pessoa, se quer parlamentar comigo.
— Ele considera que deves ser tu a ir visitá-lo. Oferece-te salvo-conduto através das suas linhas.
— Não me parece. Já soube o que sucede aos que confiam na palavra do Iskerbeles. Diz-lhe que, se quiser falar comigo, terá que vir aqui até este torreão.
Falarei com ele ali. — Cato apontou para o espaço vazio entre o fosso e o limite da povoação.
— E por que razão haverá Iskerbeles de confiar na tua palavra, romano? — Porque eu sou um romano — ripostou Cato com simplicidade. — Um soldado romano, e um oficial. E a minha palavra deve chegar para
qualquer homem, até para o teu Iskerbeles.
O arauto dos rebeldes largou uma gargalhada.
— Muito bem, transmitirei a tua mensagem ao meu líder.
Puxou pelas rédeas e fez a montada dar meia-volta, fazendo-a seguir a trote por entre as ruínas. Macro assentiu, satisfeito.
— Muito bem dito, senhor. Estes cabrões destes rebeldes têm que aprender o significado da honra.
Cato observou o rebelde a regressar até ao limite do acampamento inimigo e a conferenciar com um pequeno grupo de cavaleiros que o aguardavam ali.
Um punhado deles abandonou o grupo e galopou para o interior do campo.
Pouco depois, ao calor do Sol do meio da tarde, uma coluna de cerca de cinquenta homens deixou o campo, seguida pelos cavaleiros. À medida que se aproximavam, Macro trocou um olhar com Cato, admirado.
— O que terá ele na cabeça? A não ser que goste de conduzir as suas conversas rodeado pelos seus esbirros.
— Deve ser a sua guarda pessoal, calculo — sugeriu Cato. — E se está assim tão preocupado com a sua segurança pessoal, talvez seja sinal de que existem divisões entre os seus seguidores. Aí está um fator
que poderemos utilizar a nosso favor, se tivermos ocasião para isso.
A coluna serpenteou por entre os escombros e, quando se aproximou, Cato e Macro conseguiram ver que só os homens da frente e da retaguarda estavam armados. Os que seguiam no meio da coluna, cerca de trinta,
vestiam farrapos e estavam acorrentados.
— Que brincadeira é esta? — inquiriu Macro. Cato abanou a cabeça. Ao mesmo tempo, sentiu um arrepio na espinha, ao tentar perceber o destino dos prisioneiros que eram forçados a acompanhar a escolta do
líder rebelde. Teria Iskerbeles a intenção de os usar para provar que era implacável? Para vincar a ideia de que os inimigos dos rebeldes não podiam esperar qualquer clemência?
Quando os homens armados que compunham a cabeça da coluna alcançaram o limite das ruínas, fizeram os prisioneiros passar para a frente e compor uma linha, que foi forçada a avançar para o portão a ponta
de lança, detendo-se a não mais de dez passos da ponte levadiça sobre o fosso. O arauto e outro homem detiveram as montadas e desmontaram. O homem que acompanhava o mensageiro era fisicamente ainda maior
do que ele, e vestia uma armadura de placas e um capacete de centurião, com longas plumas vermelhas no lugar de crista de crina que o proprietário original usava. Caminharam para junto da linha de prisioneiros
que serviam de escudos humanos e pararam atrás deles antes de o arauto se dirigir novamente a Cato.
— Iskerbeles fez o que lhe solicitaste. Agora é a vez de ele te pedir que desças da tua torre e venhas discutir os termos com ele, aqui em baixo.
— Termos? — espantou-se Macro, em voz baixa. — De rendição, quer ele dizer.
— Calculo que sim. Mas vamos lá ouvi-lo. Venha, Macro.
Desceram as escadas, e Cato acenou a Musa. O centurião aproximou-se.
— Senhor? — Quero quatro secções da tua centúria em formação cerrada por trás do portão, para o caso de o inimigo tentar surpreender-nos. E manda o Cimber vir cá ter. Como escutaste, eu e o Macro vamos
sair para negociar com os rebeldes. Se houver confusão, não quero gestos heroicos. Fechem o portão o mais depressa possível.
— Sim, senhor.
— Bom, vamos lá ver o que querem estes sacanas. — Cato tomou a iniciativa, passando por baixo do torreão, e Macro ajudou-o a levantar a tranca, o suficiente para abrir a portada direita. Esperaram até
que Musa e os seus homens estivessem formados mesmo atrás deles, e que Cimber se fosse juntar ao grupo.
— Cimber, preciso que escutes. Não digas nada e não reajas a nada, seja o que for que oiças. Entendido?
— Sim, senhor.
— Ótimo. — Cato respirou fundo. — Cá vamos nós.
Abriu o portão para dentro, só o suficiente para permitir a um homem passar pela abertura, e saiu da sombra do torreão para a luz do brilhante Sol da tarde. Com Macro ao seu lado, e Cimber dois passos
atrás, aproximou-se lentamente da linha de prisioneiros, que se afastaram com um retinir de correntes.
Um pressentimento fez com que Cato parasse meio passo adiante, enquanto o líder rebelde e o seu arauto os aguardavam a curta distância.
— Não vamos mais longe — anunciou Cato. — Só para o caso de estarem a pensar em nos trair.
O arauto adotou uma expressão magoada, enquanto digeria a acusação.
— Romano, estes homens são prisioneiros. Servem apenas de escudo humano, para o caso de os teus homens na muralha tentarem utilizar dardos, fundas ou arcos contra nós. Vejo que suspeitas que não sejam
exatamente aquilo que aparentam ser. Olha, deixa-me provar-te a nossa boa-fé. — O homem empunhou uma adaga que retirou do cinto e deu alguns passos para se aproximar de um dos esqueléticos homens acorrentados.
— Cuidado, miúdo — soltou Macro, enquanto os dedos da sua mão direita se enrolavam em volta do punho do gládio. — Prepara-te para correr de volta à muralha.
Cato anuiu discretamente.
— À minha ordem... se se tornar necessário.
O arauto puxou o braço atrás e depois cravou a lâmina com toda a força entre as omoplatas do prisioneiro. A cabeça do homem saltou para trás e o queixo abriu-se, quando o fôlego lhe foi tirado pelo impacto.
Tossiu violentamente, e salpicos de sangue saltaram pelo ar, antes de ele cair de joelhos, a tentar respirar. Lutou para engolir ar, enquanto estremecia, a sufocar no sangue que lhe enchia a boca e que
não conseguia afastar da garganta.
O arauto olhou para baixo, sem qualquer expressão.
— Vês? Se este homem representasse alguma coisa para mim, não teria feito isto. Mas não passava de um inimigo, um romano, e portanto nada significava. Matei-o com tanta facilidade como o faria a qualquer
outra criatura desprezível. Portanto, como podes ver, isto não é nenhuma armadilha. Porém. se tentarem ferir-me, a mim ou aos meus camaradas, antes de termos retirado para longe do alcance dos vossos
arcos, os teus compatriotas serão os primeiros a morrer. Compreendes, romano?
— Sim. — Cato recusou-se a olhar para o moribundo. A sua voz manteve-se fria e calma, enquanto retorquia: — Compreendo que vocês não passam de bárbaros criminosos e impiedosos. Não podem desafiar Roma.
No fim disto.
ver-se-ão sujeitos à nossa justiça.
— É pela justiça que lutamos. Não somos criminosos — corrigiu-o o arauto. — Lutamos para nos libertarmos dos romanos, que nos escravizaram e que nos tratam como cães.
— Qual é o vosso propósito aqui? — quis saber Cato. — Pede ao teu senhor que nos diga o que quer.
O arauto limpou o sangue da adaga com o cabelo do homem que tinha acabado de apunhalar, e depois deu-lhe um pontapé nas costas, fazendo-o tombar no solo. O prisioneiro jazia de lado, a gemer baixinho,
enquanto o sangue corria da ferida e lhe sujava os lábios e a barba.
— Ao meu senhor? — inclinou a cabeça de lado, com um olhar divertido — Tão típico de um romano. Eu escolhi servir esta causa. Nenhum homem é
meu senhor.
Cato fez um gesto na direção da figura com o capacete de plumas, que se tinha mantido em silêncio, assistindo à troca de palavras sem se manifestar.
— Prefiro discutir o assunto com Iskerbeles, e não com quem transmite as suas palavras.
O arauto sorriu.
— É com Iskerbeles que tens estado a discutir... Cato cerrou os lábios, comprimindo-os, furioso consigo mesmo por ter assumido as posições com tanta facilidade. Um homem que podia ser tão facilmente enganado
era um perigo para si mesmo e, pior, para aqueles que comandava. O líder rebelde observava-o com atenção, tentando adivinhar-lhe os pensamentos.
— Um pequeno embuste, só para o caso de teres considerado a possibilidade de mandar os teus homens tratar de mim, quando nos aproximámo - Mas uma vez que mostraste ter coragem suficiente para deixares
o abrigo e a muralha, posso pôr de parte a máscara. Sou Iskerbeles, sim, o líder desta revolta. E tu és?
— O meu nome não é contigo, rebelde. Sou o prefeito que comanda a Segunda Coorte Pretoriana. E tenho coragem suficiente para ambos. O que tens tu a dizer-me?
— Ah, a habitual combinação romana de arrogância e discurso direto. Muito bem, vamos ao ponto. Exijo que me entregues a mina e que a tua coorte se renda. Se fizeres isso, poupar-te-ei a vida, bem como
aos teus homens.
— Poupas-nos? Tal como fizeste com a guarnição da mina? Da forma que trataste o Nepo?
— Isso foi diferente. O Nepo era o procurador encarregue de dirigir a mina. Suponho que tenhas visto por ti mesmo as condições que aí reinavam. É um lugar que nenhum homem deve ter que aguentar. Quantos
milhares do meu povo foram escravizados e levados para aí, para morrer às mãos do procurador e dos seus homens? Havia muito tempo que tinham perdido o direito a qualquer mostra de clemência. Tu e os teus
homens são soldados. A cumprir o vosso dever. Compreendo isso. E, por isso mesmo, estou preparado para vos permitir que deixem a mina em paz, e que regressem a Tarraco.
— Com as nossas armas? Iskerbeles abanou a cabeça.
— Preciso das vossas armas e equipamento, para os meus seguidores. Tens a minha palavra de que tu e os teus homens terão passagem livre, sob minha proteção, até Clunia, pelo menos.
— Estou a ver.
— A tua palavra? — Macro soltou uma gargalhada amarga. — A tua palavra não passa de merda.
— Macro...
— avisou Cato, enquanto se virava para o fitar com irritação.
— Vejo que o teu centurião não tem confiança. Uma pena. Então, ele que acredite naquilo que lhe vou dizer. A escolha é entre a rendição ou a aniquilação, e todos os que se deixarem capturar vivos, por
pura estupidez, morrerão lentamente e em grande sofrimento.
— Pfffff... — silvou Macro. Cato fez uma pausa, como que a considerar a opção, e por fim respondeu: — Mesmo que me decidisse pela rendição, não poderia aceitar tais termos.
Os meus homens e eu manteremos as nossas armas. Não tas entregaria em nenhumas circunstâncias.
— Não estás em posição de fazer tais exigências, prefeito.
— Parece-me bem que tenho uma posição de negociação bastante mais forte do que tu pensas. Tenho à minha disposição uma coorte completa das melhores tropas que se podem encontrar em todo o Império. As
nossas defesas são formidáveis, e tu dispões apenas de uma turba desorganizada e nenhuns engenhos de cerco. Tenho comida e água para vários meses. Porque haveria eu sequer de considerar a possibilidade
de me render? — Cato adotou um tom mais duro, ao prosseguir: — Portanto, Iskerbeles, estes são os meus termos. Tu e os teus seguidores render-se-ão a mim. A todos será permitido que regressem às suas
aldeias, exceto a ti e aos teus ajudantes mais próximos. E dou a todos a minha palavra de que não haverá repercussões futuras. Todos os que eram escravos serão devolvidos aos seus senhores. Dou-te até
amanhã de manhã para me dares uma resposta. Depois disso, não posso garantir que aqueles que forem suficientemente tolos para te seguir venham a ser poupados.
O líder rebelde olhou para Cato como se olhasse para um louco.
— A tua bravata é pouco oportuna, prefeito. Todavia, eu sou um chefe entre os asturos. A nossa é uma tribo orgulhosa, e os nossos homens são os melhores guerreiros de toda a Hispânia. Admiramos a bravura,
portanto estou pronto a deixar-te partir com as tuas armas. Mas não podem levar mais nada das minas. Incluindo o procurador, partindo do princípio de que ainda está vivo.
Cato esforçou-se por manter uma expressão neutra.
— Porque é que queres que deixe o Nepo para trás? — Porque esse homem tem as mãos manchadas de sangue — replicou Iskerbeles, sem qualquer hesitação. — Desde que ele foi nomeado para dirigir a mina, milhares
de escravos pereceram aqui. Muitos dos que combatem agora a meu lado foram libertados de Argentium. E eles querem a cabeça do seu verdugo.
— Nesse caso, porque é que não lhes deste aquilo que queriam quando tomaste a mina da primeira vez?, pergunto-me.
O líder rebelde semicerrou ligeiramente os olhos.
— Ele teria tido algum valor se conseguíssemos um resgate por ele. Mas agora já saqueei o suficiente, e não tenho necessidade de um resgate. Portanto, oferecê-lo-ei aos seus antigos escravos, e permitir-lhes-ei
que tenham a sua vingança.
— Primeiro, terás que passar por mim e pelos meus homens — respondeu Cato com firmeza.
Encararam-se por momentos, antes de Iskerbeles voltar a falar.
— Como disse, prefeito, admiro a bravura. Contudo, desprezo a estupidez. Sabes bem que não conseguirás manter a mina na tua posse. Portanto, e por respeito à tua coragem, concedo-te até à alvorada para
considerares os meus termos. Sugiro que faças uma escolha acertada.
Virou-se repentinamente e o seu enorme adjunto caminhou a seu lado.
Falaram em voz baixa enquanto se dirigiam aos cavalos, montaram e regressaram a trote para o acampamento rebelde. Os homens armados organizaram os prisioneiros em coluna e afastaram-se também. Cato aguardou
que ficassem fora do alcance do ouvido antes de falar com Macro em voz baixa.
— Ele deve saber da prata. Ou alguém lhe disse, ou descobriu por si mesmo. É por isso que quer o Nepo. Para acabar de lhe extrair a verdade à pancada.
— Nesse caso, atrasou-se.
— Sim, mas isso não sabe ele. E fará tudo o que puder para tomara mina, e
conseguir que o Nepo lhe diga onde está escondida a prata. O que serve muito bem os nossos propósitos.
Macro arqueou as sobrancelhas.
— Serve? — Claro. Enquanto os rebeldes estiverem empenhados em recapturar a mina, não estarão a alargar a área da rebelião. E estarão a dar tempo ao Vitélio para nos alcançar. Temo-lo onde o queremos.
Engraçado. A mim, parece-me que é mais ao contrário. Cato sorriu.
— E eu a pensar que era eu quem via sempre a ânfora meio vazia? Vamos, ficarei mais tranquilo quando tivermos o portão fechado entre nós e os rebeldes.
Enquanto cruzavam a ponte sobre o fosso, Cimber pigarreou.
— Senhor...
— O que há?
— Uma coisa que ouvi quando o Iskerbeles e o amigo se encaminhavam para os cavalos.
— Então?
Só apanhei umas palavras, senhor. O grandalhão perguntou qualquer coisa, e o Iskerbeles respondeu, eles vão descobrir isso, logo à noite:
Cato respirou fundo e anuiu, enquanto deitava uma olhadela para trás, vendo o líder rebelde a cavalgar para longe.
— Muito bem então, meu amigo, esta noite será. Faz o teu melhor. - Nós cá estaremos à tua espera.
Não posso dizer que me sinta muito impressionado pelo sentido de honra do nosso amigo — proclamou Macro, ao lado de Cato, na torre por cima do portão. — Diz-nos que nos dá até pela manhã para ponderar
a oferta, e depois vai e tenta lixar-nos enquanto estamos a pensar... Achas que haverá nele algum sangue grego?
Cato sorriu.
— Talvez. E se os deuses assim quiserem, depressa descobriremos de que é feito o sangue dele.
— Ou então ele descobrirá de que é feito o nosso.
— Hmm-hmm — concordou Cato, à laia de resposta. Em resultado do aviso de Cimber, Cato tinha dado ordens para que toda a coorte estivesse a postos para repelir qualquer ataque que surgisse durante a noite.
Apenas dez homens estavam à vista do inimigo, enquanto os seus camaradas se albergavam sob o parapeito, escondidos. Na muralha estavam dispostas duas centúrias, e o resto das tropas formava a reserva
na base da rampa. O prefeito tinha dado ordens estritas para que não se fizesse barulho, e os homens estavam sentados ou deitados no solo. Os veteranos aproveitavam a ocasião para descansar, ou mesmo
dormir, enquanto os menos experientes dos seus camaradas olhavam para a distância ou atarefavam-se com fivelas ou outras partes do equipamento, tentando encontrar qualquer distração que lhes afastasse
a mente do ataque iminente. Molhos de ramos tinham sido enrolados em trapos velhos e embebidos em azeite, e os projéteis incendiários improvisados estavam arrumados em pilhas ao longo da muralha. A uma
distância segura tinham sido dispostos braseiros, com as chamas tão baixas quanto possível, de forma a não libertarem brilho que pudesse denunciar a presença dos homens por trás da muralha e da rampa.
O cheiro acre do piche aquecido manteve-se a pairar sobre o portão, vindo do caldeirão fumegante que se via por cima de outro braseiro na parte de trás da torre.
— Uma pena que não tenhamos por aqui uns estrepes — considerou Macro. — Não há nada como eles para proporcionar uma surpresa desagradável a quem quer que tente um ataque durante a noite.
— Estamos tão prontos como podemos estar. — Cato mantinha-se de costas direitas, tentando alardear uma calma resoluta perante os outros homens na torre. Ao mesmo tempo, a sua mão direita abria-se e fechava-se
ritmicamente em torno do punho da espada; ele franziu o sobrolho assim que tomou consciência desse movimento, e forçou a mão a ficar quieta, ao lado do corpo. Apesar da qualidade dos homens que comandava,
havia alguns aspetos do equipamento dos pretorianos que os colocavam em desvantagem numa situação daquelas. Enquanto as legiões usavam dardos e combatiam com espadas curtas, os pretorianos estavam armados
com lanças, para lá das espadas. Eram mais pesadas do que os dardos, e não se aprestavam tão bem a perfurar escudos e os homens por trás deles, e só se tornavam realmente úteis quando o inimigo se aproximava.
Mas todos os dardos, arcos e outras armas que a guarnição da mina tinha tido ao seu dispor haviam sido pilhados pelos rebeldes. Alguns dos homens tinham fundas de sua propriedade, que usavam para a caça,
e os outros meios a que podiam recorrer eram as pequenas pilhas de pedras e rochas ao longo da rampa. Ia haver muito pouco com que impedir o inimigo de se aproximar da muralha sem sofrer pesadas baixas.
— Neste altura, devemos estar na sexta hora da noite — comentou Macro.
— Se aqueles sacanas deixarem passar muito mais tempo, será madrugada antes de se aproximarem sequer das muralhas.
Cato olhou para o amigo à fraca luz das estrelas e de um fino crescente de Lua, que parecia uma incisão no firmamento.
— Se não o conhecesse, era capaz de dizer que estava um tanto nervoso.
— Foda-se — sussurrou Macro, irritado. — Estou simplesmente impaciente. Quanto mais cedo eles lançarem o assalto, melhor, no que me diz respeito. Preciso mesmo de lhes dar umas boas cacetadas.
Se viesse de quase qualquer outro homem, Cato teria considerado aquele comentário como uma afirmação presunçosa. Mas Macro estava a falar a sério, e os seus olhos e ouvidos esforçavam-se por detetar a
primeira indicação da aproximação do inimigo. Mas os rebeldes não pareciam ter qualquer pressa. À medida que a noite caíra, o seu acampamento tinha ressoado com pedaços de canções e gritos de aclamação,
enquanto alguns homens praticavam luta ou boxe, rodeados por densos grupos dos seus pares. Só quando as fogueiras tinham começado a diminuir de intensidade é que os sons também haviam amainado, e o ruído
das cigarras tomara conta do ar noturno.
— Ali! — Cato arriscou-se a inclinar-se sobre o parapeito, e virou a cabeça na direção do som que os seus apurados ouvidos tinham detetado: o leve murmúrio de pés descalços a avançar sobre as cinzas da
povoação. E logo a seguir teve a confirmação, ao julgar distinguir vultos escuros a esgueirarem-se pelos escassos esconderijos que existiam entre as ruínas. Esperou mais um momento, para ter a certeza
e não correr o risco da humilhação que sofreria ao ficar assustado por qualquer ruído de nada em frente dos seus homens. Virou-se então para um dos soldados na retaguarda da torre, cujo rosto mal se distinguia
à luz oscilante de uma pequena lamparina a azeite que ardia num suporte de ferro pregado a uma das vigas da estrutura.
— Faz o sinal.
O pretoriano pegou na tocha que tinha aos pés e levou-a à pequena chama da lamparina. Os trapos embebidos em azeite que estavam enrolados à volta da tocha pegaram fogo rapidamente. Assim que a chama se
ateou, o pretoriano debruçou-se sobre o parapeito das traseiras da torre e mostrou a tocha, fazendo-a oscilar de um lado para o outro. De imediato, os centuriões e optios começaram a percorrer as linhas
das suas centúrias, a abanar, pontapear e sacudir os homens que estavam adormecidos. Outros começaram a atiçar as chamas dos braseiros e a juntar-lhes mais combustível, fazendo com que no ar escuro se
elevassem nuvens de fagulhas. Os homens escondidos por trás do parapeito pegaram nas armas e prepararam-se para defender as muralhas.
Cato e Macro continuavam a escutar com toda a atenção quando se ouviu uma voz no meio da escuridão, o som dos passos se tornou um tropel, e figuras em corrida emergiram subitamente das trevas, como se
nascessem do próprio solo. Avançaram ao longo de toda a muralha, de armas aperradas.
— Aí vêm eles! — avisou Cato. — Trombeteiros, façam soar o alarme! Trocou um breve aceno com Macro antes de este se precipitar pela escada abaixo, para se ir juntar aos seus homens.
O trombeteiro humedeceu os lábios, encheu as bochechas e soprou com força no bocal. Uma nota simples soltou-se do instrumento de metal e foi ecoar na montanha. De imediato, os homens dissimulados por
trás do parapeito encostaram as lanças ao passadiço e levantaram-se, de escudos prontos e pedras nas mãos, para as lançar contra a vaga de rebeldes que se aproximava. Aos que tinham fundas foi concedido
o espaço necessário para fazer rodar as suas armas antes de projetarem os braços para a frente e libertarem os projéteis contra a massa densa de homens que irrompia da noite. Era impossível perceber onde
caía a metralha, ou se atingia alguém, mas era difícil a Cato acreditar que fosse possível falhar um alvo no meio da densa horda em constante movimento que corria na sua direção.
— Lancem os feixes! — gritou Cato aos pretorianos por trás da muralha.
Os homens prenderam os fardos nas pontas das lanças e incendiaram-nos nos braseiros, antes de os levarem até ao cimo da muralha. Depois puxaram-nos para trás e, fletindo os músculos, lançaram-nos por
cima da muralha, já em ignição. Os feixes desenhavam breves arcos de fogo por cima do fosso antes de caírem e, quando atingiam o solo, rebentavam, lançando material em chamas por cima das cabeças e ombros
dos mais próximos dos assaltantes, enquanto iluminavam a cena junto à frente da muralha. O brilho avermelhado fez sobressair os rebeldes, a mistura de armas e equipamentos que usavam, as suas expressões
selvagens, prontas para a batalha, e o atónito horror dos que se viam alvo das primeiras ações da refrega.
Cato colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou: — Pedras! No momento seguinte, os defensores fizeram cair sobre os atacantes uma chuva de projéteis. Alguns tombaram sem causar danos, outros
estilhaçaram escudos e resvalaram sobre capacetes, mas outros conseguiram o seu fito, rasgando carne, partindo ossos ou aplicando pancadas debilitantes no inimigo.
Os que tombaram desapareceram simplesmente por baixo da maré de corpos que se dirigiam à muralha. Cato já conseguia ver que transportavam escadas de assalto.
As setas e metralha lançadas pelos rebeldes abateram-se sobre os defensores antes que estes se apercebessem delas. Estilhaços soltaram-se do parapeito junto à mão de Cato, e ele sentiu o impacto da metralha
quando esta lhe bateu no capacete e escorregou pelo ombro. Outros não tiveram tanta sorte, e as primeiras baixas entre os pretorianos caíram da muralha, alguns com as hastes de flechas a saírem dos corpos,
outros trespassados por elas em braços e pescoços.
O ar encheu-se com os estalidos secos dos impactos e o assobiar de projéteis a passar sobre as cabeças dos defensores e a tombar a alguma distância por trás da muralha.
— Escudos! — avisou Cato. — Escudos para cima! Pegou no seu próprio escudo, cobrindo o peito e tanto do rosto como podia para não deixar de ver o que se estava a passar. À sua volta, ao longo de toda
a muralha, os pretorianos levantavam os seus escudos ovais e continuavam a bombardear o inimigo com pedras. Enquanto prosseguia o furioso duelo de projéteis, os rebeldes passaram pela borda do fosso e
desceram a face externa, a caminho dos obstáculos colocados ao fundo da descida. Partes do fosso estavam iluminadas por feixes que não tinham sido lançados com força suficiente, e forneciam aos atacantes
luz bastante para escolherem o caminho por entre as estacas afiadas. Noutras áreas, os atacantes não tinham tido a mesma sorte e precipitaram-se contra elas, ou foram empalados ao verem-se empurrados
pelos que vinham atrás deles. Os rebeldes continuaram a avançar, arrancando os obstáculos e lançando-os por terra antes de se defrontarem com a face mais íngreme do fosso, na base da muralha. Tinham agora
pela frente mais obstáculos. Estacas cravadas no solo, com as pontas inclinadas para baixo, de forma a não poderem ser usadas como auxílio na subida da muralha. Os homens que transportavam as escadas
de assalto alcançaram a base do fosso e começaram a colocar as suas cargas em posição, apoiando os cimos contra as madeiras da muralha. De imediato houve homens a treparem por elas acima, ultrapassando
com maior ou menor dificuldade as estacas que surgiam entre os degraus, e depois aperrando os escudos ao aproximarem-se do cimo da defesa, onde os romanos os esperavam.
O contínuo fragor da metralha e das setas interrompeu-se, já que os rebeldes não podiam prosseguir a barragem sem correr o risco de atingir os seus próprios homens. Apesar dessa interrupção, Cato manteve
o escudo bem levantado, enquanto observava o progresso do assalto do cimo da torre. Era a vez de os pretorianos aproveitarem a vantagem que as suas longas lanças lhes davam. Inclinavam-se por entre as
vigas e golpeavam os inimigos que trepavam as suas escadas.
Macro recebeu o escudo e a lança das mãos do optio, e arranjou espaço entre dois dos seus homens, mesmo à frente do porta-estandarte da centúria. A muralha tinha sido erigida em primeiro lugar para manter
assaltantes longe da mina e para evitar a fuga de escravos, e as ameias eram mais baixas e espaçadas do que seriam normalmente num forte militar. O empreiteiro tinha-a construído assim para poupar nos
custos e aumentar a sua margem de lucro, sem dúvida. Em resultado desse facto, Macro e os outros soldados viam-se expostos a maiores perigos. Três dos seus homens já tinham tombado, dois atingidos na
cara por metralha, um deles morto, e o terceiro por uma flecha na base do pescoço. Os três estavam já dispostos no fundo da rampa interna, onde o médico e os seus ajudantes cuidavam dos ferimentos dos
sobreviventes da melhor forma que lhes era possível.
— Rapazes, já sabem o que quero ver! — gritou Macro com toda a força.
— Não deixem nem um desses cabrões pôr o pé na nossa muralha!
Alguns dos homens encontraram tempo para responder com uma aclamação, precisamente quando a primeira das escadas se ergueu e se apoiou nas tábuas. Os pretorianos prepararam as lanças e manejaram-nas de
forma a apresentar as pontas aceradas para atingir os rebeldes que trepavam ao seu encontro. Ouviu-se um raspar de madeira ali perto, e a cabeça de Macro virou-se para a direita. As pontas de uma escada
de assalto projetavam-se ligeiramente acima do parapeito, e já tremiam, devido ao peso dos primeiros rebeldes que as escalavam. Macro apoiou o escudo na muralha e passou a lança para as mãos do homem
à sua esquerda.
— Agarra aqui! Depois pegou na ponta das escadas e empurrou-a, mas o ângulo e o peso eram demasiado grandes para conseguir afastá-la. Em vez disso, Macro empurrou o cimo da escada para o lado, fazendo-o
deslizar, e olhou para baixo, para contemplar a expressão de pânico nos olhos de um rebelde a cerca de metro e oitenta do cimo. O impulso era suficiente para que a escada continuasse na sua trajetória,
e ela precipitou-se lateralmente, levando consigo dois homens, fazendo-os cair sobre os seus camaradas e arrastando todos para o fundo do fosso.
— Ah! — Macro lançou um sorriso satisfeito, enquanto pegava novamente no escudo e na lança. Um olhar para os dois lados revelou-lhe que os seus homens estavam a conseguir repelir algumas das escadas,
e que enfrentavam os rebeldes que subiam as escadas ainda em posição. A curta distância, um dos pretorianos cravou a arma no ombro nu de um jovem guerreiro, e o homem soltou a mão e arqueou as costas,
até que perdeu a sustentação e se precipitou para o fosso lá em baixo. O homem que o seguia na escada não hesitou em prosseguir a ascensão, tomando o lugar do camarada caído. Ao aproximar-se do parapeito,
colocou o escudo sobre a cabeça, e o pretoriano tentou várias vezes perfurá-lo, mas sem êxito.
Macro abriu caminho pela muralha e, empunhando a sua lança com firmeza, aplicou uma estocada num ângulo que lhe permitiu passar por baixo do escudo, atingindo o rebelde na axila exposta; sentiu o ceder
de uma costela como um solavanco, antes de a ponta trespassar o pulmão do homem. Macro puxou a lança para si, fazendo o sangue saltar e, à luz do facho que ardia lá embaixo, viu o rosto do inimigo torcido
em agonia. Ainda assim, o homem obrigou-se a subir os últimos degraus e atirou-se por cima do parapeito, aterrando no passadiço e conseguindo derrubar o pretoriano que o tinha tentado alcançar. Os soldados
que o rodeavam desferiram sobre ele inúmeros golpes enquanto ele tentava colocar-se de pé, e depois lançaram-no pela rampa interna abaixo, onde um dos homens da reserva acabou com ele. Um relance rápido
revelou vultos escuros, recortados a vermelho pelo brilho dos materiais que ardiam lá em baixo, a combater ao longo da muralha, mas ainda nenhum dos inimigos tinha conseguido ultrapassá-la. Romanos e
rebeldes trocavam golpes num combate desigual, já que os primeiros tinham todas as vantagens: a posição dominante, e a proteção da muralha. Corpos tombavam com regularidade das escadas, precipitando-se
sobre os seus camaradas ou sobre o solo, antes de rolarem para o fosso. Havia já um punhado de baixas romanas, feridos por uma arma ou atingidos por pedras lançadas lá de baixo. Mas Macro estava seguro
de que a refrega corria a favor dos romanos. A muralha seria defendida e o humor do inimigo afetado, e depois este acabaria por retirar. O mais provável era que aquela noite não visse mais confrontos.
— Mantenham esses cabrões lá em baixo, rapazes! Depois reparou num grupo de homens que se movia em uníssono, e que emergia da escura massa das ruínas, abrindo caminho por entre os seus camaradas e aproximando-se
do torreão. Poucos momentos depois, percebeu que traziam com eles um comprido poste escuro e reforçado. Abriu caminho pela parte de trás do passadiço, encostou a lança ao ombro e levou uma mão em concha
à boca.
— Prefeito Cato! Chamou duas vezes antes que um dos homens na torre o ouvisse e chamasse a atenção a Cato. Assim que o prefeito chegou ao pé dele, Macro esticou o braço na direção da ameaça que se aproximava
rapidamente.
— Eles trazem um aríete! Cato apressou-se a adiantar-se até ao parapeito na frente da torre, e depressa localizou o grupo de homens, ainda a uns vinte metros do portão.
— Senhor! — gritou-lhe Metelo. — Porra, mantenha a cabeça baixa! Cato levou um breve instante a reagir ao aviso, e já levantava o escudo quando uma flecha veio atingir a orla do mesmo, desfazendo-a em
mil pedaços mesmo à frente do seu rosto. Sentiu uma pontada e uma sensação de queimadura no olho esquerdo, e tentou piscá-lo, enquanto recuava por instinto e se afastava do parapeito em passos atabalhoados.
A pálpebra bateu em qualquer coisa que se projetava da órbita. Cato levantou a mão e avançou com os dedos devagarinho pela face acima, até encontrar sangue e sentir uma farpa, com uns bons cinco centímetros
de comprimento. Ao tocá-la, o olho explodiu-lhe numa dor intensa, e ele cerrou os dentes e gemeu profundamente.
Depois lembrou-se do aríete e baixou a mão, ao mesmo tempo que rodava nos calcanhares.
— Tragam o piche para a frente da torre! Vocês os dois. Depressa.
Os pretorianos que designara pousaram escudos e lanças e colocaram as mãos nas pegas de madeira nas extremidades das barras de ferro que ladeavam o caldeirão, onde borbulhava lentamente um líquido escuro.
Quando os dois ficaram prontos, levantaram o caldeirão de cima do braseiro e avançaram cautelosamente, atravessando a torre enquanto Cato e os outros se mantinham longe do caminho, para o caso de algum
deles tropeçar e espalhar o piche fervente, o que provocaria terríveis ferimentos em quem fosse atingido. Quase cego pela dor, Cato abrigou-se por trás do escudo enquanto regressava à face frontal da
torre. Uma vez que não havia qualquer tentativa de escalar o torreão, aquele era o único alvo a que os rebeldes se podiam dirigir sem atingir os seus camaradas. Entretanto, os homens com o aríete alcançaram
a ponte sobre o fosso e dirigiram-se deliberadamente para o portão, claramente imbuídos do desejo de o derrubar.
Cato esticou uma mão na direção dos homens que transportavam o piche.
— Deem-lhes cobertura! Imediatamente! Os soldados juntaram-se em volta dos camaradas, colocando os escudos num ângulo abrupto e de lado, para maximizar a cobertura, enquanto o grupo tomava posição no
melhor local da torre. Cato arriscou uma nova espreitadela sobre o parapeito, e um pedaço de metralha veio imediatamente embater-lhe na armadura. Uns seis metros mais abaixo, os homens que transportavam
o aríete tinham um aspeto atarracado, e agora conseguia perceber que todos eles usavam capacetes romanos e armaduras. Ao lado deles seguia um guerreiro imponente, que os incitava a avançar. Olhou para
cima nesse preciso momento e encontrou o olhar de Cato, soltando de imediato uma imprecação na sua própria língua. Cato reconheceu-o: era o homem que tinha estado ao lado de Iskerbeles nas conversações
da tarde anterior. Nesse momento, a dor provocada pelo estilhaço voltou a afetá-lo, como se fosse um alfinete em brasa cravado no olho. Cada vez que piscava os olhos, parecia que a dor se tornava pior,
e sentia-se de cabeça zonza.
— Não! — assobiou para si mesmo, combatendo a apetência para desmaiar. Não naquele momento. Não quando os seus homens precisavam dele. Rugindo de fúria e agonia, Cato arrancou uma lança das mãos do pretoriano
mais próximo e ergueu-a rapidamente, fazendo pontaria ao guerreiro nativo.
Atirou-a com toda a força, e com boa direção. Mas as reações do outro foram rápidas, e ele lançou-se contra o portão, deixando que a ponta da lança se fosse cravar profundamente nas espessas vigas da
ponte, onde ficou a tremer. Cato recuou rapidamente para trás do parapeito, enquanto duas flechas se precipitavam pelo espaço onde estivera momentos antes.
— Preparem-se para lançar o piche, à minha ordem! Os dois pretorianos agacharam-se junto à muralha, enquanto os seus camaradas continuavam a fornecer-lhes uma cobertura com os escudos. Nesse momento,
toda a torre tremeu debaixo das botas de Cato. Depois de uma curta pausa, o impacto voltou a fazer-se sentir, e desta vez Cato ouviu o estrondo do aríete a bater no portão. Era tempo de agir. Afastou
o tormento que a ferida lhe provocava e forçou a mente a pensar de forma clara. Respirou fundo e apontou para os homens que tinham transportado o piche.
— Preparem-se.
Os dois fletiram os músculos e firmaram as botas, enquanto se aprontavam para fazer mais um esforço.
— Os outros, oiçam. Assim que o piche for lançado, todos de pé, e usem lanças, pedras, seja o que for que arranjarem, e atirem-nos sobre os homens que ainda estiverem junto ao aríete. Matem-nos a todos.
Entendido?
Houve alguns acenos de concordância. Alguns dos rostos estavam mergulhados na escuridão, mas Cato pressentiu a prontidão de todos. Ergueu o escudo, espreitou e viu o guerreiro asturiano a rodar lentamente
o braço, enquanto marcava o ritmo. O aríete voltou a avançar, embatendo contra as tábuas do portão.
— Agora! Os pretorianos ergueram-se num instante, aproveitando o balanço para projetar o pequeno mas pesado caldeirão com os braços esticados, até que puderam baixar uma das barras de transporte, a que
estava mais próxima do parapeito, e o espesso líquido fumegante escorreu para baixo, para cima dos homens na ponte. Cato não o viu a atingi-los, mas todos os homens num arco de cinquenta passos em redor
ouviram os uivos que se ergueram acima do clamor da batalha. A frente do aríete caiu para o solo, e os que ocupavam postos mais atrás aguentaram-no, enquanto os seus camaradas queimados cambaleavam e
recuavam, lançando gritos de agonia. Mas mesmo os feridos não tiveram qualquer descanso, já que os pretorianos lançaram de imediato as suas lanças, pedras e outros projéteis. Dois homens caíram de imediato,
trespassados pelos dardos, outro foi atingido na cabeça por uma pedra e caiu inanimado na ponte. Alguns foram feridos por outra metralha, e os que estavam mais atrás largaram o aríete e viraram-se para
fugir.
O líder não tinha sido atingido pelo piche fervente, e rugiu frustrado, antes de correr pela ponte para tentar deter alguns dos homens e forçá-los a voltar ao assalto. Mas os projéteis que não paravam
de chover do alto da torre minavam a coragem dos rebeldes. Ainda assim, tal era o receio que o homem impunha que depressa reuniu um grupo e recomeçou a aproximar-se do aríete. Na base da torre, a parte
da frente do aríete e a ponte estavam ainda cobertos pelo fluido fumegante.
Cato lançou o escudo para o lado e correu para o braseiro que tinha sido usado para aquecer o piche. Arrancou do pescoço o lenço, enrolou o material em torno da base do braseiro, e pegou nele em peso.
Com cuidado para não o inclinar, avançou a passo firme para a frente da torre, e lançou-o sobre o parapeito. As brasas brilharam em cores vivas, laranja e branco, enquanto caíam, e aterraram sobre a parte
frontal do aríete. As chamas irromperam no piche e rapidamente se espalharam pelo aríete e pela ponte. Um dos feridos, que se remexia sobre as tábuas, pegou fogo, já que as fibras das suas roupas estavam
ensopadas em piche, e ele tornou-se uma tocha humana. Lutou para se pôr de pé e correu para longe, enquanto soltava um uivo inumano, atravessando a ponte, como uma figura de um terrível pesadelo, os braços
a agitarem-se enquanto abria caminho por entre os seus camaradas e desaparecia pelo meio das ruínas.
O ímpeto do assalto esmoreceu, à medida que todos os olhares se voltavam para o fogo na ponte, e nenhuns homens frescos se apresentavam para trepar as escadas. O medo espalhou-se pelas fileiras e, quase
como se fossem um único homem, os rebeldes começaram a recuar, trepando para fora do fosso e retirando para longe dos molhos de feixes em chamas, e depois para as sombras e a escuridão, deixando os corpos
de mortos e feridos espalhados pelo fosso à frente da muralha. Um dos pretorianos soltou um brado de júbilo, e os seus camaradas imitaram-no, e logo se fizeram ouvir insultos e comentários de desprezo
dirigidos aos rebeldes. Até que uma chuva de setas e metralha se abateu sobre o cimo da muralha, obrigando os pretorianos a procurar refúgio por trás da paliçada.
Assim que Cato ficou certo de que o ataque tinha terminado, cambaleou para a retaguarda da torre, e chamou Metelo com um gesto.
— Mantém a vigilância. Podem voltar a tentar mais tarde. Embora duvide que o façam.
— Sim, senhor. — Não havia como esconder a preocupação na expressão do optio. — Senhor, quer que mande chamar o médico?
— Não, não é preciso. Eu aguento-me. Cato firmou-se para descer a escada, e depois caminhou com o passo tão firme como pôde até ao posto de tratamento que o médico tinha instalado a curta distância do
portão.
— Senhor! Voltou-se e viu Macro a dirigir-se para ele da base da rampa, com um sorriso largo estampado no rosto.
— Viu-os a correr? Como se fossem umas ovelhas de merda com um lobo nos calcanhares, caramba! — Depois, ao verificar o estado do rosto de Cato à luz do braseiro mais próximo, Macro quase tropeçou, ao
concentrar-se no que via. — Oh... Foda-se.
— Está assim tão bonito, hã? — Cato forçou-se a sorrir. — Ao que parece não será a minha esbelta aparência que me fará famoso quando regressarmos a Roma. Macro, venha comigo.
Enquanto se dirigiam para junto do médico, Cato fez o melhor que podia para disfarçar a dor que o afligia.
— Tenho que ver se isto é tratado. Assuma o comando por agora. Mantenha o inimigo longe das muralhas, e apague aquele fogo, antes que se propague ao torreão. Depois venha-me apresentar o relatório das
baixas. Entendido?
— Sim, senhor.
Macro hesitou, e Cato deu-lhe uma palmada nas costas.
— Eu fico bem. Não é a primeira vez que me entra uma coisa chata para olho. Centurião, já tem as suas ordens.
Macro anuiu e virou-se na direção do torreão, chamando Petílio e os seus homens para formarem e se prepararem para apagar o fogo.
Cato continuou a caminho do posto médico, e esperou que o médico acabasse de extrair uma seta do braço de um pretoriano. Passou-a para um dos enfermeiros, limpou o sangue das mãos num pano e virou-se
para Cato.
— E o que temos então... Oh, senhor, é você. — Avaliou com um olhar entendido os membros de Cato, antes de se voltar a focar no rosto do prefeito. — O que é? Ah, já estou a ver. Venha para aqui, onde
há mais luz.
Conduziu Cato para junto de um braseiro e fê-lo sentar-se num banco antes de se debruçar para inspecionar a ferida de perto.
— Mau... Muito mau. Dói? Cato suspirou.
— O que é que achas? Extrai-me esta porcaria, e põe-lhe um penso.
O médico inclinou a cabeça.
— Senhor, isto vai doer. Farei o meu melhor para não lhe provocar mais danos. — Virou-se para a fila de instrumentos espalhados numa mesa de campanha, e selecionou umas pinças de latão e um escalpelo.
Usou os dedos para posicionar gentilmente a cabeça de Cato, de forma a iluminar da melhor forma a zona da ferida, e avançou com a pinça.
— Mantenha-se quieto e olhe sempre em frente. Está pronto, senhor? — Nunca estarei mais pronto.
— Então vamos lá começar...
Como está o olho, senhor? — indagou Macro, enquanto entrava no —
gabinete do procurador. O espampanante gosto do falecido Nepo era
tão evidente ali como no resto da casa. A secretária era feita de nogueira polida, e a cadeira por trás dela fora forrada, para proporcionar o maior conforto. Uma estante cheia de rolos ocupava a maior
parte de uma parede, e as outras estavam pintadas de forma a dar a impressão de que o compartimento se encontrava no meio da luxuriante paisagem da Campânia, com o Vesúvio altaneiro ao fundo. Dado o verdadeiro
ambiente em que a casa estava implantada, aquele panorama oferecia um muito necessário alívio do duro espetáculo da mina e do campo por cima dela.
Depois de a farpa ter sido extraída e a ferida tratada, Cato tinha ignorado o conselho do médico, que sugerira descanso, até ter ido avaliar os danos provocados à torre e à ponte pelo piche em chamas.
Algumas das madeiras haviam sofrido uma certa calcinação, mas era superficial, e não havia danos estruturais visíveis. O aríete foi arrastado para o interior da muralha e serrado em quatro pedaços que
foram usados para reforçar o interior dos portões. Cato regressou à torre e manteve os homens na muralha até à alvorada, quando surgiu a luz suficiente para verificar que o inimigo não se tinha acoitado
entre as ruínas, pronto a lançar novo assalto à muralha. Só depois disso é que Cato deixou o comando nas mãos de Macro, de forma a poder dormitar umas horas e descansar o olho. Deixara ordens para ser
acordado à quarta hora, mas a dor na órbita ocular tornara-lhe o sono impossível, e depois de passar algum tempo deitado mas sem conseguir sossegar, tinha desistido, pelo que se dirigira ao gabinete e
ordenara que lhe trouxessem comida e vinho, este último na esperança de que pudesse contribuir para amainar a terrível dor que sentia no olho.
— Está ótimo, obrigado — replicou Cato. — Alguma movimentação do inimigo?
— Nem por isso. Só uns grupos pouco numerosos a tentar recuperar os feridos. Deixei-os concluir a tarefa. Não me pareceu que valesse o risco de mandar homens numa surtida para os apoquentar.
— Bem pensado — assentiu Cato. — Mais nada? Macro pensou por momentos.
— Nada que eu tenha visto. Eles também enviaram alguns grupos para reunir abastecimentos, e algumas patrulhas. Há uma a bater o terreno na outra ponta da ravina, mas tenho uma secção dos nossos rapazes
a vigiarem-lhes cada passo. Se eles descobrirem alguma coisa que lhes possa ser útil, também nós o descobriremos, e assim poderemos bloquear qualquer plano que eles elaborem para tentar apanhar-nos de
surpresa. — Macro fez uma pausa, com uma expressão de preocupação no rosto ao avaliar a ligadura que rodeava a cabeça de Cato e cobria o penso que o médico tinha aplicado depois de remover a farpa e limpar
a ferida.
— O que disse o médico acerca do olho? Algum dano permanente?
Cato recordou o momento em que olhara para a sangrenta farpa de madeira nos dedos do médico, algumas horas antes. A extração tinha-lhe provocado uma agonia maior do que qualquer outra que já tivesse suportado
em toda a vida. Quase tinha desmaiado ao escutar o som que o estilhaço fizera ao sair do globo ocular, e outra vez quando fora retirado da inchada e dorida dobra de pele por baixo do olho. Quase tão dolorosa
tinha também sido a sensação de queimadura, quando o médico aplicara vinagre para limpar a ferida e ensopar o penso. O inchaço tinha praticamente forçado o olho a fechar-se, e pela estreita fenda que
lhe restava tudo parecia cinzento e pouco nítido. Depois disso, tinha sido tapado pela ligadura.
— O médico disse que acabaria por se curar. Quando o inchaço diminuir diz que poderá ter uma ideia mais precisa. Entretanto, é suposto descansar tanto quanto me for possível. Contudo, tenho a impressão
de que o Iskerbeles é capaz de não ser tão compreensivo como o médico gostaria.
— Não há grande surpresa nisso. — Macro lançou um breve sorriso. — Típico... O sacripanta do médico deve pensar que estamos de volta a Roma e que os seus pacientes podem tirar uns dias de férias para
recuperar.
— Suspeito que essa ideia se lhe varreria da mente se tivesse bem em conta os acontecimentos da noite passada. Tem as contas das baixas?
Macro anuiu e extraiu da sacola uma tábua encerada, antes de a abrir.
— Oito mortos, vinte feridos, oito dos quais estão prontos a prosseguir em combate. A maior parte deles foi atingida por metralha e flechas. Os rebeldes não tiveram grandes hipóteses de chegar ao combate
corpo a corpo.
— Desta vez, não — refletiu Cato. — Parece-me que nos safámos bem.
O Iskerbeles deve ter pensado que seríamos uma presa fácil, depois dos seus encontros com as tropas que faziam a guarnição da província. Senão, nunca teria tentado um assalto frontal como o que fez. Da
próxima vez tomará maiores precauções.
— Ele que venha. Estaremos prontos para ele. E ele e os seus amigos receberão o mesmo tratamento.
— Alguma estimativa quanto às perdas do inimigo? — Sim. Fiz uma contagem rápida, assim que houve luz suficiente para isso.
Quase cem mortos, e outro tanto de feridos. A maior parte foi recolhida pelos rebeldes, mas uma boa parte deles está definitivamente fora de combate.
Cato comparou os números das perdas.
— Os homens portaram-se bem. Pode passar a mensagem e dizer que fui eu quem o afirmou. E que as duas primeiras centúrias recebam uma ração extra de vinho. Isso deve ser suficiente para dar a toda a gente
um pequeno incentivo para querer ser dos primeiros na muralha quando chegar a altura do segundo ataque. Partindo do princípio que os pretorianos gostam tanto das suas bebidas como o resto dos soldados.
— Parece-me bem que sim — respondeu Macro, de forma algo seca.
Olhou em volta, por momentos, para as paredes pintadas antes de o seu olhar se voltar a dedicar a Cato.
— Mais alguma ideia cerca do Nepo? — Esse assunto tem-me passado pela cabeça, sim. Sobretudo depois da veemência com que o Iskerbeles exigiu que nós lho entregássemos. Deve atribuir um grande valor ao
procurador, para se dizer preparado para nos permitir sair daqui e nos garantir salvo-conduto.
— Embora depois não hesitasse em quebrar a promessa. O mais provável era que acabássemos na vala como os outros todos.
— Talvez, mas tenho a sensação de que ele desta vez manteria a palavra.
O que ele quer realmente é o Nepo. Ou melhor, ele anda atrás daquilo que o procurador sabia.
— Acerca da prata, queres tu dizer? — Claro. O Iskerbeles deve ter percebido que o Nepo a escondeu. Por isso é que, quando nos ofereceu termos de rendição, insistiu para que lhe entregássemos o procurador.
— Nesse caso, vai ficar mesmo de trombas quando descobrir que o Nepo já partiu para outras paragens. E quando souber disso, lá se vai qualquer possibilidade de nos deixar seguir cantando e rindo. Vai
pensar que nós sabemos onde está a prata, e depois vai-nos proporcionar o mesmo tratamento que deu ao Nepo. A começar por ti.
— Exatamente. — Cato cruzou as mãos. — Não estou particularmente empenhado em ter que aguentar tudo aquilo. Portanto, a rendição está fora de questão. Não temos nada com que possamos negociar, à parte
sabermos que a prata está enterrada num túnel que ruiu. Podíamos dizer isso ao Iskerbeles, mas há poucas possibilidades de que ele nos deixe partir até verificar que a prata está mesmo onde nós dizemos.
De qualquer maneira, as nossas ordens são para garantirmos que os rebeldes não põem as mãos na prata, seja qual for o custo.
Entreolharam-se por momentos, antes de Macro encolher os ombros.
— Portanto, de uma forma ou de outra, estamos fodidos.
— É uma maneira de ver a coisa. Pessoalmente, prefiro a mais pomposa ”Vitória ou Morte”.
Macro bateu com a mão na perna e deixou escapar uma sonora gargalhada.
— Sempre disse que tu tinhas mais jeito com essa língua do que a melhor das putas da Subura.
— Essa não é propriamente uma comparação lisonjeira, mas ainda assim agradeço-lhe, meu irmão. — Cato sorriu, mas depressa desistiu, e cedeu ao riso a bandeiras despregadas com o amigo. À medida que o
riso esmorecia, Cato respirou fundo. — Precisava mesmo disto.
— Já há muito que não te via a desfrutar assim de alguma coisa. Desde que chegámos a Roma, aliás. — Macro fez um gesto na direção de uma das cadeiras em frente de Cato. — Posso?
— Faça favor. Mas poupe-me a sermões sobre mágoas e pesares.
Macro hesitou, antes de se sentar.
— Não quero pregar-te nenhum sermão. Quero apenas dizer-te que percebo a grande perda que sofreste com a Júlia. Uma miúda do melhor. Linda, e esperta como tudo. Teria sido uma excelente mãe, e uma esposa
tão boa como um homem podia...
— Pare! — Cato soltou um brado irado. — Está a ver tudo ao contrário... Não podia dizer mais. O que é que poderia dizer a Macro? A verdade? Nunca na totalidade. Não enquanto Cristo estivesse na mesma
unidade que eles. Seria uma carga demasiado grande para Macro, como já era para ele mesmo.
— O que é que queres dizer? — Macro estava confuso. — Cato, miúdo, o que se passa?
Havia algo dentro de Cato que se revoltava com a ideia de partilhar a dor. Não era apenas orgulho, tinha também a ver com a patente e a responsabilidade que lhe cabia. Comandava uma coorte. Quinhentos
homens olhavam para ele e obedeciam-lhe. Não tinha o direito de revelar qualquer fraqueza. Não podia alijar aquela carga. Nem sequer com Macro, que tinha conhecido e de quem se tinha tornado amigo quando
chegara à fortaleza da Augusta Segunda, um miúdo magro e enregelado, que adorava livros e nunca tinha brandido uma espada em toda a sua vida. Haviam sido amigos chegados ao longo de muitos anos, primeiro
quando Cato não passava de um optio, depois como centuriões, antes de Cato ser promovido a uma patente mais elevada. Tinha perfeita consciência de tudo o que devia ao melhor amigo que alguma vez tivera.
Mas, ainda assim, sentia-se relutante em admitir um ponto fraco, fosse ele qual fosse, em frente a Macro.
— Não lamento a Júlia. Já passou. Passou no instante em que descobri que ela estava com outro homem enquanto eu, nós, nos encontrávamos em campanha na Britânia.
O queixo de Macro descaiu visivelmente, e ele abanou a cabeça.
— Eu sabia que havia qualquer coisa. Mas isso? Não posso acreditar, miúdo. A Júlia, não.
— A Júlia, sim — respondeu Cato, de forma lenta e deliberada. — Não há dúvidas. Vi a evidência com os meus próprios olhos. Ela amava outra pessoa, e ter-mo-ia dito se tivesse sobrevivido até ao momento
do meu regresso.
Sim, Macro, fui traído pela Júlia. Agora já sabe tudo. Ou, pelo menos, sabe o suficiente.
— Tenho imensa pena. Não fazia ideia. Devias ter-me dito.
— O que podia eu dizer? — respondeu Cato, fatigado. — Fiquei em choque. Senti-me como se alguém tivesse feito um buraco no meu peito e me tivesse arrancado o coração e as entranhas. E sentia-me envergonhado.
Humilhado. Consegue perceber porque é que não podia dizer-lhe nada nessa altura? Era demasiado doloroso falar disso. Até a si, meu amigo.
— Calculo que sim. — Macro pensou por momentos. — Mas eu teria sabido exatamente o que havia a fazer. Precisavas de ser levado para uma noite de bebida capaz de afogar qualquer ideia da Júlia. Eu teria
tratado disso. E tinha-te posto logo no caminho certo.
— O que não nos mata dá-nos uma ressaca capaz de nos levar à cova...
Macro riu-se.
— Porra, é isso mesmo! Só os deuses sabem o miserável emplastro que tens sido desde que voltámos da Britânia, e agora finalmente percebo porquê.
Meu pobre sacana. E daqui para a frente as coisas só pioram.
— Como é isso? — Já tinhas essa cicatriz a atravessar-te a cara. Agora és muito capaz de acabar com uma pala em cima desse olho. Cato, digo-te já que da próxima vez será melhor deitares o olho a uma mulher
cega, se me perdoas a graçola. Mais ninguém te vai querer, a não ser que lhes pagues bem.
— Muito obrigado por essas palavras de conforto.
— Oh, vá lá. Estamos aqui encurralados, com um bando de rebeldes sedentos de sangue do outro lado daquela muralha, ansiosos por nos cortarem as cabeças e as espetarem na ponta de uma lança, para as mostrarem
a todos.
Talvez nos safemos. Provavelmente, não. Portanto, um pouco de perspetiva.
A Júlia já foi. De qualquer modo, ia abandonar-te. O melhor é atirar para trás das costas as coisas que não podem ser mudadas, e enfrentar o que está à tua frente, digo eu.
Cato encarou-o.
— E é suposto ficar animado com essa ideia? — Não, a ideia é que deixes de te comportar como um cornudo numa daquelas comédias baratas que levam ao palco em Roma. Miúdo, atina, e esquece essas merdas.
Os homens precisam de ti. — Macro levantou-se da cadeira. — Devíamos ir ver o que andam os rebeldes a preparar. Se achar que está em condições de o fazer, senhor.
Cato empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Atravessou a sala até aos cabides junto à porta e passou o cinto com a espada por cima do ombro.
— Centurião, vamos.
Enquanto seguia o amigo para fora do gabinete, Macro permitiu-se um pequeno sorriso de satisfação. Tinham sido palavras duras. Não fora fácil dizê-las, mas eram as necessárias naquela situação e, mais
importante ainda, aquelas de que o amigo tinha realmente falta. O sorriso desvaneceu-se quando refletiu na tortura que Cato sofrera desde o momento em que descobrira a verdade. Nenhum homem devia ser
obrigado a suportar tamanho peso. E havia o desapontamento que sentia relativamente a Júlia. Macro julgava tê-la avaliado corretamente, e não a reconhecia. O que só servia para mostrar que nunca se podia
estar certo acerca do que se passava no íntimo de outra pessoa. Olhou para as costas de Cato que caminhava à sua frente, atravessando o pátio da casa do procurador. Bem, concluiu, de quase todas as outras
pessoas.
A manhã já ia adiantada quando concluíram a inspeção das defesas, que tinha incluído uma caminhada ao longo da ravina que corria paralelamente às escavações. A profundidade e a força do rio, que corria
por cima e em volta dos penedos quase vinte metros abaixo, frustrava qualquer hipótese de uma travessia naquele ponto. E as falésias íngremes em ambas as margens ajudavam. Ainda assim, avistaram uma patrulha
inimiga a procurar um caminho pela margem do rio na ponta da ravina, a tentar encontrar um vau.
— Muito boa sorte com isso — comentou Macro. Cato assentiu, e ficou a observar os rebeldes durante algum tempo. Então um deles olhou para cima e descortinou os romanos. Chamou a atenção dos camaradas
para os observadores, e todos gritaram alguma coisa que se perdeu no trovejar e rugir da corrente. Porém, os gestos que acompanharam os gritos eram indesmentivelmente hostis.
Apesar da aparência formidável da torrente que se precipitava pela ravina, Cato não queria deixar nada ao acaso.
— Quero alguém de vigia à ravina, a todos os momentos.
Macro deitou-lhe um olhar inquisidor, antes de responder.
— Como queira, senhor. Dois homens devem bastar. Não levarão muito tempo a percorrer toda a extensão do terreno.
— Não. Uma secção, disposta a intervalos regulares.
— Sim, senhor. Cato lançou um último olhar aos rebeldes, que continuavam a gesticular, e voltou-se para seguir para a muralha, onde as reservas de Pulcher vigiavam, enquanto as outras centúrias descansavam.
Os três oficiais trocaram uma saudação quando Cato e Macro se juntaram a Pulcher na torre.
— Algum sinal de problemas? — quis Cato saber.
— Não, senhor. Calmos como carneirinhos. Acho que, depois da tareia que levaram ontem à noite, ficaram sem estômago para outra luta. Não se vão atrever a tentar outra do mesmo género tão cedo.
— Esperemos bem que não. — Cato atravessou a torre até ao parapeito frontal e olhou para o descampado onde antes estivera a povoação. Embora o inimigo tivesse recolhido os feridos, os mortos tinham ficado
onde haviam caído, no fosso, e o ar quente já estava pleno do zumbir de moscas. No ar circulavam vários abutres, e outros já avançavam sobre os cadáveres, usando os bicos aguçados para arrancar pedaços
de carne.
— Senhor, quer que mande os homens remover os cadáveres? — indagou Macro.
— Não. Deixe-os ali. Assim o inimigo sabe o que o espera, se voltar a tentar um assalto.
— Sim, senhor. Mas, com este calor, eles vão ficar um bocado passados.
Mais uns dias, e isto vai ficar com um pivete pior do que o de uma fábrica de curtumes.
— Esperemos então que a brisa sopre para o outro lado. O cheiro vai ajudar a minar-lhes o espírito.
Para lá das ruínas, o acampamento inimigo espalhava-se pela paisagem, e avistava-se uma nova coluna que se juntava a eles vinda de sul, e que levantava uma névoa poeirenta à sua passagem.
— O que acha que eles vão fazer agora, senhor? — indagou Pulcher. Cato ponderou a situação por momentos.
— Podem tentar vencer-nos pela fome. Mas isso calha-nos bem. O tempo está do nosso lado, não do deles. Quanto mais tempo eles ficarem ali parados, mais cedem a iniciativa ao legado Vitélio e às outras
forças que temos na Hispânia. O Iskerbeles deve estar consciente disso. Duvido que tenhamos de esperar muito tempo antes de ele tentar outra coisa qualquer. No lugar dele tentaria usar outro aríete, mas
desta vez coberto. Se o fizer, nós destruiremos a ponte. O que fará com que ele tenha que entulhar o fosso antes de poder usar o aríete contra o portão. Medidas e contramedidas, centurião. É assim que
se joga o jogo do cerco. Já vi os suficientes para saber disso.
Macro deitou uma olhadela ao outro centurião.
— Mas tu não saberias muito acerca destas coisas, pois não? Uma vez que serviste sempre na Guarda, à exceção daquele curto período em que estiveste na Gália como espião e assassino.
Pulcher manteve o olhar fixo em frente, sem dar mostras de qualquer emoção.
— Cumpria o meu dever e obedecia a ordens, como outro soldado qualquer.
— Contudo, os teus deveres não eram exatamente como os da maior parte dos outros soldados, pois não? — Macro virou-se ligeiramente para o outro. — Estou curioso, quais são as ordens que tens nesta altura?
Pulcher cerrou os lábios e fungou.
— O que é que quer dizer? — Quero dizer, pergunto-me o que sabes tu sobre a morte de Gaio Nepo? Pulcher encarou Macro diretamente.
— Está a acusar-me de estar envolvido nisso? Macro não se acanhou.
— De facto, não de estares envolvido; antes, de seres responsável por tal desfecho.
— Estou a ver. E tem provas que permitam apoiar essa acusação? Nãonão tem. Portanto, faça-me o favor de guardar essas especulações sem pés nem cabeça para si mesmo... Senhor.
— Pulcher, eu conheço-te. Sei bem que tipo de homem és, e do que és capaz. E estamos muito longe de qualquer sítio onde as coisas tenham que correr em termos processuais.
Os lábios de Pulcher torceram-se numa careta de desdém.
— Senhor, se realmente acredita no que diz, e eu sou verdadeiramente capaz do género de coisas que me atribui, não seria então mais prudente deixar-me em paz?
Cato respirou fundo.
— Chega dessa conversa, senhores. Teremos tempo à vontade para investigar a morte do procurador depois de nos livrarmos do inimigo. O qual, enquanto vocês têm estado entretidos com o vosso lindo debate,
se colocou em movimento.
Os três viraram-se para espreitar na direção do campo inimigo. Uma coluna de homens a pé dirigia-se às ruínas, acompanhada por várias carroças. Não havia qualquer sinal de pressa, nem sinais de escadas
de assalto ou de outro aríete.
— O que estão eles a preparar? — indagou Macro.
— Depressa saberemos. A coluna passou pelo que restava da povoação e parou, fora do alcance dos projéteis romanos. Enquanto um punhado de homens marcava um quadrado no solo, com uns quarenta passos de
lado, e colocava postes a marcar os vértices, os outros depositaram no solo as ferramentas que traziam e regressaram para a povoação. Depressa alguns começaram a regressar com pedras talhadas, e começaram
a edificar os lados do quadrado, construindo fundações para torres no lado mais próximo do portão da mina. O som das serras e o estrondo ocasional de escombros a cair vinham da povoação, e mais homens
emergiram de entre os edifícios para empilhar madeira.
— Estão a erigir obras de proteção — decidiu Cato. — A questão é, para proteger o quê? Uma torre de cerco, talvez?
— Ou uma catapulta — adiantou Pulcher. — Ou uma cobertura para outro aríete.
Enquanto continuavam a observar, outros homens da coorte subiram à torre para ver o inimigo a trabalhar. Lentamente, um muro foi surgindo em torno do quadrado, com pedras na base e terra calcada por cima
delas. Outro grupo de rebeldes começou a escavar um fosso a rodear a pequena fortificação, enquanto outros ainda construíam um grande abrigo de madeira no centro do local.
Os três oficiais continuaram a apreciar os progressos do trabalho ao longo da tarde, até que o dia começou a desvanecer-se. Foi nessa altura que Pasterico subiu à torre e se aproximou de Cato, fazendo
a continência.
— Senhor, se me permite? — O que se passa? — Sei o que o inimigo está a preparar. Já vi aquilo antes. Muitas vezes. Aqui mesmo.
Cato franziu uma sobrancelha.
— Então? — Estão a começar a fazer um túnel. Aquele abrigo, no meio do quadrado é onde fica a entrada, senhor.
Cato e os dois centuriões viraram-se para avaliar o trabalho. E de facto havia homens a emergir de detrás do abrigo com cestos de vime com material para juntar às muralhas de terra. Cato sentiu-se irritado
por não ter notado tão óbvio detalhe mais cedo. Tinha pensado que o solo estava a ser escavado apenas para alargar as fortificações.
— Ele tem razão — disse Macro. — Portanto, é isso que eles preparam. E porque não, uma vez que têm entre eles uns milhares de escravos com experiência de minas? Merda, devíamos ter pensado nisto.
Cato assentiu. Já imaginava o que o inimigo tinha planeado. O túnel seria escavado na direção do portão, e por baixo das fundações. Assim que estivessem prontos, deitariam fogo aos poços por baixo delas,
e a estrutura acabaria por colapsar, abrindo uma vasta brecha por onde os rebeldes entrariam aos milhares.
Estava uma noite sem Lua, três dias depois de os rebeldes terem começado a escavar o seu túnel, e Cato dava uma última olhadela à fortificação inimiga, a menos de cem passos da muralha. Na face virada
para o portão notava-se claramente o recorte da muralha, contra o brilho das fogueiras do acampamento do exército rebelde, que ficava a umas centenas de metros dali. Havia uma sentinela em cada torre
nos cantos, e mais duas na muralha, e patrulhas regulares à frente da mina. O tom suave de alguns braseiros, colocados à entrada do túnel, iluminava os trabalhos dos que laboravam durante a noite, enquanto
o túnel progredia no subsolo, a caminho do torreão dos romanos. O som de vozes atravessava o espaço vazio enquanto os escravos trabalhavam, em conjunto com os sons de serragem e outras vozes por entre
as ruínas à esquerda, onde os rebeldes pareciam estar a acumular a maior parte da madeira que usavam para suportar o túnel. O cheiro adocicado e nauseabundo da putrefação que se evolava dos corpos inchados
no fosso fazia-se felizmente notar menos durante as horas frescas da noite. Ainda assim, o nariz de Cato não evitou um torcer quando uma brisa fez levantar o ar da base do torreão. Afastou o pensamento
da lembrança dos mortos que jaziam no exterior da muralha.
Segundo Pasterico, os trabalhadores da mina eram capazes de escavar uns quinze metros de túnel por dia. Nesse caso, já deviam estar a meio caminho do seu alvo. Dado que o mais provável era que ainda faltassem
talvez uns dez dias para a chegada de Vitélio, era o momento de acabar com aquilo, decidiu Cato. Tinha resistido à tentação de atacar mais cedo. Era melhor deixar o inimigo esforçar-se alguns dias antes
de lhe destruir a obra e o obrigar a começar de novo.
Fez uma careta quando sentiu uma pontada de dor no olho. O médico tinha inspecionado a ferida todas as tardes, e declarara que se sentia satisfeito com o progresso. A descarga de pus era perfeitamente
normal, dissera, e a ausência de qualquer cheiro na ligadura era um bom sinal, indicando que a ferida não se tornara ruim.
— Uma bela ferida, limpa — tinha dito o médico com um sorriso nessa noite, enquanto examinava com todo o cuidado o olho de Cato. — E, se o posso dizer, uma extração da farpa como manda o manual, provocando
o mínimo de trauma.
— É fácil para ti dizer isso — fungou Cato. — Do meu lado, posso garantir que foi um tanto traumático.
O médico pôs um ar magoado.
— Senhor, desafio-o a encontrar quem procedesse a uma extração menos dolorosa à luz de um braseiro.
— Dá-me tempo. — Quando o penso era removido, Cato não conseguia ver com nitidez do olho esquerdo. Parecia que lhe caía por cima um pesado véu cinzento que obscurecia a maior parte dos detalhes do mundo
à sua volta, e, quando pestanejava, parecia que tinha uma pequena pedra de ângulos bem marcados por baixo da pálpebra. — Achas que recuperarei o suficiente para voltar a ter uma visão normal?
O médico endireitou-se e coçou o rosto.
— É possível. É difícil de dizer. A maior parte das feridas no olho como a sua conduzem à cegueira. Mas o facto de conseguir ver alguma coisa com esse olho já é um bom sinal. Podem existir ainda assim
alguns danos permanentes.
Acho que teve muita sorte, senhor.
— Sorte? — Claro. Se a farpa o tivesse atingido na pupila, ou até na íris, o mais provável era que tivesse perdido a vista desse olho para sempre. Da maneira que foi, penetrou pela carne por baixo da
órbita antes de trespassar o músculo na base do olho.
— Sinto-me realmente muito afortunado. O médico ignorou o sarcasmo enquanto preparava um novo penso, e colocou-o cuidadosamente sobre o olho antes de o envolver numa nova ligadura em torno da cabeça do
prefeito.
— Claro que continuo a aconselhar muito descanso, senhor. Mas compreendo que isso não é possível nestas circunstâncias. Portanto, tente apenas não irritar o olho, não o esfregue, e não exija demasiado
de si próprio.
Cato encarou-o com o olho são.
— Estamos debaixo de cerco, sabes? — Sim, senhor. Mas no papel de médico, sou obrigado a oferecer-lhe a minha opinião. Se ignorar os meus conselhos, é consigo, mas a minha responsabilidade termina aí.
— Quem me dera ter o teu trabalho.
O médico recuou um passo e revelou o avental cheio de manchas de sangue que tinha por cima da túnica.
— Tem a certeza disso, senhor?
Estavam perto da meia-noite, pelos cálculos de Cato, e era o momento de colocar em andamento o seu plano. Desceu da torre e aproximou-se do grupo de homens que esperavam em silêncio, a curta distância
do portão.
Por trás deles erguia-se a curva da muralha interior que os pretorianos se tinham afadigado a construir, num arco que acompanhava a parte de dentro do portão. Era uma medida habitual quando se esperava
uma brecha na defesa principal. Se o inimigo conseguisse romper a primeira defesa, passaria sobre as ruínas para dar de caras com nova muralha. Quando estivesse terminada, conseguiria contê-lo pelo menos
durante mais algum tempo, esperava Cato, embora não fosse tão sólida como a muralha previamente existente. E o tempo era curto. As pedras talhadas disponíveis já tinham sido todas usadas na construção,
e fora necessário recorrer aos pedregulhos irregulares e a blocos ainda disformes que juncavam a base da falésia que dava para o campo mineiro. Trazê-los para a zona de trabalhos tinha obrigado a grandes
esforços, e por enquanto a muralha pouco passava de um muro à altura do peito. Se nada fosse feito para perturbar o progresso do túnel inimigo, aquela muralha só os conteria por pouco tempo, e depressa
seria ultrapassada.
Macro aguardava alguns passos à frente dos homens. Tinha tirado a armadura, e usava apenas uma túnica, botas, e o cinto da espada. O rosto e membros estavam enegrecidos com uma mistura de cinza e gordura,
de tal forma que as suas feições quase não se distinguiam.
— Centurião Macro — murmurou Cato. — Se não soubesse que estava aí, nunca daria pela sua presença.
— É essa a ideia, senhor. — Macro sorriu, e os dentes sobressaíram na oval escurecida que era a sua cara.
— Os homens estão prontos? Macro acenou na direção de um grupo de vinte homens, ligeiramente afastados dos outros. Também eles usavam apenas túnicas e espadas.
— Estão prontos, senhor.
— Centurião Secundo? — Senhor? — Outro vulto adiantou-se e fez continência ao prefeito.
— Sabes o que tens a fazer no momento em que o sinal for dado? — Sim, senhor.
Havia outro vulto junto ao centurião. Cato inclinou-se para a frente, até reconhecer o tribuno Cristo.
— Tribuno, o que é que isto quer dizer? — Senhor, queria voluntariar-me. Agora que os meus serviços de encarregado dos suprimentos já não são necessários.
Cato não evitou um pequeno sorriso perante o azedume do homem.
— Tribuno, nunca subestimes a importância desse papel. Isto dito, atrevo-me a reconhecer que tais deveres te podem ser poupados por agora.
— Sim, senhor.
— Podes combater com a Segunda Centúria até ao fim do cerco. Cumpre o teu dever, e faz o que o centurião Secundo te indicar.
— Sim, senhor.
Cato olhou em redor, para as figuras escuras que estavam à sua frente. Muita coisa dependia do sucesso do empreendimento que iam levar a cabo naquela noite. Todos os oficiais se haviam debruçado sobre
os detalhes do plano, e os homens tinham todo o equipamento de que necessitavam: machados, cordas, ânforas com azeite e pederneiras. Ao contrário do grupo de Macro, os homens da Segunda Centúria exibiam
armadura completa, e o equipamento extra estava empilhado em vários dos carros de mão da mina. Os homens exibiam uma calma tensa, e Cato reconheceu que um pequeno encorajamento lhes faria bem. Limpou
a garganta e começou, num tom baixo:
— Rapazes, nem um som. Esperem até entrar em ação. Quando a refrega começar, podem fazer todo o barulho que quiserem. Mais ainda. Tudo o que puderem fazer para os abalar e os fazer entrar em pânico. Vão-se
a eles como se fossem as próprias Fúrias, e façam os rebeldes lamentar o dia em que sonharam desafiar Roma e o nosso Imperador... Mas não falhem. Não me desiludam, nem ao resto da coorte. O túnel está
a poucos dias de alcançar a muralha. Se não tiverem sucesso esta noite, vamos perder a primeira e mais importante das nossas linhas de defesa. — Fez uma pausa, para os deixar refletir na importância da
tarefa que tinham pela frente. — Portanto, entrem a matar. Destruam tudo o que puderem, e regressem para aqui o mais depressa possível, assim que ouvirem o sinal de recuo. Já são heróis. Não têm que tentar
prová-lo fazendo-se matar por Roma sem qualquer ganho. Qualquer homem que desobedeça à ordem de retirada ficará sujeito ao regulamento disciplinar, e ficará de faxina até ao fim do cerco. Faço-me entender?
Detetou alguns sorrisos tímidos nos rostos escuros dos mais próximos dos homens.
— Senhor, não se preocupe — afirmou Secundo, com toda a ênfase. — Vamos desempenhar o nosso papel sem problemas.
— Ótimo. — Cato apertou-lhe o antebraço. — Que os deuses vos acompanhem.
— Obrigado, senhor.
Cato virou-se para Macro, um tanto incerto quanto ao que havia de dizer, já que estava preocupado com a segurança do amigo. Macro poupou-o ao embaraço, ao dar-lhe um curto aceno de despedida e virar-se
para os homens.
— Vamos lá, rapazes, todos comigo, e tudo de bico fechado. Seguiram ao longo da muralha e depressa foram engolidos pela escuridão.
Cato ficou a vê-los afastarem-se, antes de voltar ao torreão e subir ao cimo, com o olho são a esforçar-se para encontrar qualquer sinal de perigo que pudesse ameaçar Macro ou os outros homens. Mas não
havia qualquer sinal de que o inimigo estivesse atento a uma potencial ameaça. No acampamento conseguia avistar pequenas figuras debruçadas sobre as centenas de pequenos fogos para cozinhar, e um grupo
maior à volta de uma grande fogueira junto às tendas de Iskerbeles e dos seus mais próximos seguidores. Cato sorriu para si mesmo. Se tudo corresse bem, o líder dos rebeldes depressa estaria a maldizer
a sua sorte, e os seus seguidores começariam a questionar a sua capacidade de servir como líder.
Macro testou a corda uma última vez. A ponta estava presa com toda a segurança a uma estaca e profundamente cravada na rampa por trás da muralha.
A corda não cedeu, e ele agarrou no baraço e espreitou por entre as ameias na ponta da muralha mais próxima da falésia. As rochas erguiam-se à sua direita e cresciam para cima na noite, prontas a ecoarem
qualquer barulho. Razão para Macro se mover com todo o cuidado e com uma lentidão deliberada. Olhou para o descampado que se estendia até ao limite das ruínas, mas o único sinal de movimento vinha de
longe, de perto da entrada para o túnel dos rebeldes.
Vários homens seguiam ao longo da muralha, fora do alcance de quaisquer projéteis que os romanos pudessem lançar contra eles.
— Cá vamos nós — sussurrou Macro aos seus homens. Deixou cair a corda ao longo da face exterior da muralha, mantendo-a esticada. Passou as pernas sobre o parapeito, agarrou a corda com ambas as mãos e
começou a lenta descida para o fosso. O ataque à mina, feito havia já alguns dias, tinha-se concentrado no torreão e na zona das muralhas que lhe era adjacente. Macro agradeceu aos deuses o facto de não
existirem cadáveres na extremidade da muralha junto à ravina ou ali, ao pé da falésia. A última coisa que lhe apetecia era pisar as tripas putrefactas de alguém e ficar besuntado com malcheirosas substâncias
que podiam muito bem acabar por denunciar a posição em que se encontrava quando se dirigisse às fortificações inimigas junto à entrada para o túnel. Sentiu as solas das botas a alcançarem o solo e endireitou-se
com toda a calma. O coração batia-lhe com muita força enquanto olhava em redor, para se certificar de que não havia mais ninguém naquela zona do fosso. Por fim, certo de que era seguro para os outros
seguirem-no, deu dois puxões fortes na corda e desviou-se alguns passos para o lado, enquanto a corda serpenteava na escuridão e o primeiro dos homens do seu grupo se juntava a ele. Macro enviou-o de
imediato para o cimo da face do fosso, para vigiar os arredores, e deu sinal para o homem seguinte descer.
Quando todos se juntaram na base do fosso, Macro deu um puxão final à corda, e a sentinela na muralha recolheu-a para cima do passadiço.
— Rapazes, não se espalhem — murmurou Macro. — Não quero ninguém perdido no meio da escuridão. Mantenham-se atentos ao homem à vossa frente, e nunca o percam de vista. Por agora, esperem aqui. Quando
receberem a ordem, sigam em fila.
Trepou pela face exterior do fosso e agachou-se ao pé do homem que mandara vigiar a área.
— Viste alguma coisa? — Não, senhor. Nenhum movimento. Pelo menos nesta área que nos separa do túnel.
Macro esforçou a vista e perscrutou o terreno que se abria à sua frente. Esperou uns momentos para se certificar de que não havia qualquer sinal do inimigo na área, e virou-se para chamar em voz baixa
os homens ainda no fosso.
— Vamos.
Avançou agachado alguns passos antes de olhar para trás, para se assegurar de que os outros o seguiam de perto. Apesar de se movimentarem no maior dos silêncios, Macro estava perfeitamente consciente
do tropel das botas e do restolhar da erva seca que provocavam ao avançar pelo descampado, na direção da mais próxima das ruínas calcinadas. Temia que a qualquer instante fossem notados, o alarme lançado
e eles se vissem sem alternativa que não fosse correr para trás, de volta à muralha, e trepar por ela acima até à segurança. Seria o fim de qualquer tentativa de fazer alguma coisa acerca do túnel naquela
noite. E a partir daí o inimigo não deixaria de tomar medidas para garantir que os defensores ficavam acantonados por trás das suas defesas.
Quando alcançou a parede semiarruinada do primeiro edifício, Macro encostou-se a ela e acenou aos homens para tomarem posições à sua esquerda. Quando todos estavam prontos, prosseguiu, fazendo pausas
nas aberturas entre os edifícios para espreitar pelas esquinas e avançando apenas quando estava certo de que ninguém os via. Cobriram a maior parte da distância sem qualquer problema. Depois, a já menos
de cinquenta passos da parte de trás da fortificação dos rebeldes, Macro ouviu vozes próximas e deteve imediatamente os homens, fazendo-lhes sinal para se deitarem. Todos lhe obedeceram rapidamente e
se mantiveram imóveis e em silêncio, quase perfeitamente invisíveis entre os edifícios escuros, em plena noite. Dois rebeldes armados com lanças surgiram por entre as ruínas a menos de dois metros de
Macro. Conversavam despreocupados, e Macro quase nem se atrevia a respirar enquanto extraía a espada da bainha e indicava ao homem que o seguia de mais perto que fizesse o mesmo, antes de apontar para
um dos homens, designando-o como alvo. De músculos fletidos, Macro preparava-se para saltar sobre os inimigos, mas os homens prosseguiram na direção oposta, sem qualquer suspeita da presença dos soldados
romanos nas suas costas. Macro deixou-os ir, observando com atenção enquanto eles passavam pelas traseiras da fortificação e prosseguiam pelo meio das ruínas.
A pequena coluna romana voltou a avançar, aproximando-se lentamente da muralha traseira, onde se via um portão aberto e guardado por dois homens. Não havia qualquer fosso naquela face da fortificação.
Muito provavelmente porque era o lado mais próximo do acampamento rebelde, e estes só tinham considerado a possibilidade de um assalto frontal por parte dos romanos. O brilho de uma fogueira realçava
os contornos de dois montes de escombros próximos e, ao espreitar mais uma vez, Macro deparou-se com um numeroso grupo de homens, talvez uns cinquenta, calculou. Estavam sentados à roda de uma fogueira,
uns cinquenta passos mais abaixo no caminho. Tinham as armas à mão de semear e havia indícios luminosos de outras fogueiras noutras áreas da povoação. Um de cada vez, os romanos atravessaram o espaço
aberto e continuaram a aproximar-se. Macro avançou até onde se atreveu e deteve-se, ao reparar num pequeno grupo de homens só de tanga que saíam pelo portão a puxar um carrinho de mão cheio de terra.
Levaram a carga para um dos lados, onde já se via um monte de entulho de boas dimensões, e começaram a atirar pazadas de material para cima dele.
Tinham as costas viradas para Macro enquanto trabalhavam, e este percebeu que havia ali uma breve oportunidade para agir, antes que eles despejassem o carro e voltassem para o túnel.
Virou-se para o homem mais próximo e sussurrou
— Espiro, vens comigo, e espera que eu ataque antes de fazeres o mesmo. Entendido?
— Senhor.
Macro esgueirou-se para fora da proteção do edifício e fez um gesto ao pretoriano para o acompanhar. Aproximaram-se dos homens no portão num passo natural, sem cuidados. Estavam quase em cima das sentinelas
quando foram avistados, e um dos rebeldes preparou a lança, segurando-a com ambas as mãos enquanto os interpelava. Macro ergueu o cantil na mão esquerda e fingiu beber dele antes de o oferecer ao mais
próximo dos rebeldes, enquanto se ria. A sentinela apoiou de novo a lança no chão com um sorriso nervoso. e deitou a mão à bebida que lhe era oferecida. Macro simulou um tropeção e precipitou-se contra
o homem como se estivesse desequilibrado, aproveitando para lhe cravar a espada nas entranhas, fazendo-a subir por baixo das costelas.
Ao mesmo tempo deixou cair o cantil e colocou a mão livre sobre a boca do homem, enquanto os dois tombavam sobre a pequena rampa da fortificação.
A violência extrema do ataque repentino surpreendeu a outra sentinela, que hesitou um momento, o que lhe foi fatal, já que Espiro a atacou de imediato, empurrando o gládio por baixo do queixo do homem
e fazendo a lâmina penetrar-lhe no crânio. Ouviu-se um soluço surpreso e depois um ligeiro gemido, antes de também ele ser silenciado para sempre.
Uma rápida espreitadela garantiu a Macro que os homens a trabalhar ali perto não tinham tomado consciência da presença dos atacantes, e ele chamou o resto do grupo para o portão.
— Levem os corpos para dentro. — Designou dois homens para o fazer, e conduziu os outros pelo portão, para o interior da fortificação. Mesmo à frente depararam-se com a entrada do túnel, bem protegida
por uma armação de madeira, e com uma lamparina a azeite pendurada de um suporte cravado numa das vigas. Havia pilhas de rochas a um lado, bem como outro monte de terra.
As brasas de um fogo moribundo brilhavam a um canto, iluminando vários homens que dormiam por ali. No lado virado para o campo mineiro viam-se quatro vultos, e outros dois nas torres. Macro virou-se para
os seus homens.
- Vocês os quatro ficam aqui. Se os tipos com o carro voltarem, fechem o portão e ponham-lhe a tranca. Espiro, leva dez homens e trata dos que estão a dormir ao pé do fogo, e da sentinela na torre mais
longe. O resto vem comigo.
Macro manteve-se nas sombras projetadas pela rampa enquanto se deslocava cautelosamente para a torre de vigia no canto esquerdo da fortificação. Espiro e o seu grupo faziam o mesmo do outro lado. Quando
alcançaram a rampa de terra que levava ao parapeito, Macro destacou quatro dos seus homens para tratarem das sentinelas na muralha, e começou a trepar a escada para a torre de vigia, testando cada degrau
para ver se este aguentava o seu peso. A cabeça tinha acabado de alcançar o nível do chão da torre quando se ouviu um grito na muralha, rapidamente silenciado. A torre rangeu quando a sentinela se dirigiu
para aquele lado da muralha, para ver o que se passava, e chamou.
Macro preparou-se e lançou-se pelos últimos degraus, atirando-se sobre o rebelde no preciso momento em que este se virava. O grito de alarme morreu-lhe na garganta quando Macro o atingiu em cheio e o
projetou contra o poste da esquina. Sem fôlego, o rebelde tentou respirar e tirar um punhal do cinto. Mas Macro já se tinha reequilibrado; agarrou no homem pelas pernas e levantou-o no ar, lançando-o
sobre o parapeito. No último instante ele tentou agarrar-se aos braços de Macro, mas foi demasiado tarde, e os dedos limitaram-se a escorregar ao longo da pele do centurião antes de ele se precipitar
de pernas para o ar no fosso que dava para o portão da mina, onde aterrou com um pesado baque, e rebolou para o fundo da vala em silêncio. Um rápido olhar ao longo da muralha mostrou ao centurião que
as outras sentinelas também tinham já sido eliminadas. Só então Macro viu que Espiro e os seus homens ainda não tinham completado a sua tarefa, e só naquele momento chegavam junto dos homens que dormiam
ao pé do fogo. A sentinela na outra torre ainda estava no seu posto, mas ainda assim não se tinha mexido em resposta à comoção que ocorrera na muralha. Macro adivinhou a razão da imobilidade, e sorriu
cruelmente para si mesmo.
— O sacana está a dormir...
Tratava-se de uma falta que levava à pena capital no exército romano, e compreendia-se bem a razão para tal. Um homem que estava de sentinela carregava a responsabilidade pela segurança das vidas dos
camaradas. Era porém evidente que um código disciplinar desse teor não existia entre os seguidores de Iskerbeles. Enviou de imediato um dos seus homens para a torre, e pouco depois a sentinela adormecida
pagou com a vida a infração ao seu dever, e o corpo foi juntar-se ao do seu camarada no fosso. Ao mesmo tempo, Espiro e o resto dos seus homens lançaram-se sobre os rebeldes adormecidos, degolando-os
e trespassando-os num esforço frenético para os liquidar antes que pudessem emitir algum som que alertasse os seus camaradas no exterior da fortificação.
Do ponto vantajoso na torre de vigia, Macro viu que os mineiros já tinham esvaziado e virado o carro para regressar para o túnel. Era o momento de pôr em movimento o resto do plano traçado pelo prefeito.
Levou a mão em concha à boca e lançou um brado:
— Fechem o portão!
De imediato os quatro homens saíram das sombras dos dois lados do portão e fecharam-no rapidamente, colocando no lugar a pesada tranca, de modo a garantir a segurança da passagem. Lá fora, os rebeldes
com o carro detiveram-se, e ficaram a olhar para a fortificação, espantados. Macro voltou-se para o torreão da muralha romana e gritou:
— Secundo! É a tua vez! No momento seguinte escutou o gemer dos portões da mina a abrirem-se, e o brado curto da ordem para avançar. Uma escura massa de homens passou pela ponte sobre o fosso e avançou
em passo acelerado pelo terreno aberto. Só nessa altura é que os rebeldes com o carro perceberam que havia algo de profundamente errado, e alguns correram para o portão, gritando enquanto se aproximavam.
Os outros correram pelas ruínas, a pedir ajuda.
— Todos para a muralha! — ordenou Macro ao seu grupo. — Temos que aguentar a posição até o trabalho estar concluído!
Secundo e os seus homens alcançaram o fosso e começaram a colocar as suas escadas até ao cimo da paliçada, enquanto metade da centúria assumia posições dos dois lados para cobrir os flancos da força.
Os primeiros dos homens, carregados com as suas ferramentas e materiais incendiários, subiram rapidamente as escadas e saltaram para o interior. Macro desceu da torre para se encontrar com eles e conduzi-los
à entrada do túnel. Os rebeldes tinham colocado pequenas lamparinas em suportes presos aos postes de apoio, e à luz delas Macro e os outros correram por uma rampa inclinada até que o túnel se tornou plano
e tomou a direção do torreão. O túnel pouco mais alto era do que Macro, e os homens mais altos tinham que progredir de cabeças baixas. Não foram muito longe antes de depararem com o fim do túnel, e Macro
encarou a parede de terra e pedras sem esconder a surpresa.
— Segundo o Pasterico, deviam ter avançado o dobro disto. Secundo manteve-se à margem enquanto os seus homens começavam a trabalhar com as suas picaretas nas fendas por trás dos postes de sustentação.
— Ao que parece, a liberdade não ajuda à produtividade. O Iskerbeles deve estar a pensar que talvez não tivesse sido má ideia não libertar todos os mineiros.
Macro inspecionou rapidamente o túnel.
— Toma conta das coisas por aqui. Façam abater tudo o que conseguirem, e depois queimem o material de entivação que está lá fora. Assim que acabarem, leva os teus homens de volta ao torreão. Nós seguiremos
logo atrás de ti.
— Sim, senhor. Enquanto corria pelo túnel, Macro escutou o primeiro baque de tábuas de entivação a serem derrubadas, e depois o barulho surdo do teto e paredes do túnel em derrocada. Saiu para a noite
e correu para a rampa das traseiras, onde trepou até à paliçada. Os mineiros tinham-se reunido junto ao portão, e estavam a tentar abri-lo à força. Era um esforço fútil, que lhes custou duas baixas, quando
dois homens foram atingidos por pedras lançadas do parapeito. Quando uma terceira baixa recuou com as mãos na cabeça, os outros resolveram recuar também e levar os feridos para o abrigo do caminho situado
entre os edifícios mais próximos.
Mais para o interior das ruínas, o alarme já tinha sido dado. Ouviram-se as notas de um corno a romperem a noite, e depressa tiveram resposta de outro no acampamento rebelde. Homens saíram em catadupa
das tendas no centro do campo, onde Iskerbeles tinha assentado o quartel-general, e depressa corriam por entre as fogueiras, na direção da povoação e do fortim. Não levariam muito tempo a ter naquela
posição um número suficiente de homens para se imporem aos atacantes. Mas havia outro perigo mais imediato, já que um grupo de homens com lanças surgiu na rua para onde dava o portão do fortim.
Carregaram na direção de Macro com gritos ferozes, e outros homens vinham atrás deles.
Um rápido olhar em volta mostrou a Macro que ainda não havia nenhuma ameaça às paredes laterais, e o centurião respirou rapidamente e gritou:
— Comigo! E tragam pedras! Os outros homens de Espiro acorreram a pegar nas pedras empilhadas e depois subiram à paliçada para guarnecer as defesas, enquanto Macro agitava a espada na direção dos rebeldes
que atacavam.
— Rapazes, deem-lhes com força! Os homens mal precisavam de encorajamento, e depressa lançaram uma verdadeira saraivada de metralha contra os assaltantes, derrubando um e ferindo outros com os projéteis
bem apontados. A carga rebelde perdeu ímpeto, e os homens pararam e agacharam-se, com os braços por cima das cabeças para se protegerem, antes de procurarem abrigo por entre os edifícios. Alguns deles
ainda se deram ao trabalho de recolher algumas das pedras e lançá-las de volta a Macro e aos seus homens. A maior parte embateu nos postes da paliçada, mas um dos romanos teve a infelicidade de ser atingido
em cheio na testa e caiu redondo da paliçada, escorregando ao longo da rampa, inconsciente.
— Chega por agora! — ordenou Macro.
Da boca do túnel vinham sons de madeira a ser cortada e despedaçada, o gemido das tábuas e o deslizar de solo e pedras. Depois, o centurião Secundo surgiu à luz de uma das lamparinas. Alçou a mão e pegou
nela, e ele e Cristo conduziram alguns homens até à pilha de madeira acumulada num dos cantos do fortim. Também havia ali algumas ânforas de azeite para as lamparinas, que foram partidas por cima das
vigas.
— Embebam bem essa madeira, e levem as acendalhas para ao pé do braseiro!
Enquanto os homens de Secundo preparavam o fogo, a atenção de Macro voltou a ser atraída para o que se passava no exterior do portão. Tinham surgido mais rebeldes ao fundo do caminho, sendo desta vez
liderados por homens com escudos, levantados e prontos a defletir quaisquer dos projéteis lançados pelos pretorianos que defendiam a retaguarda do fortim. Um movimento no limite do seu campo de visão
atraiu o olhar de Macro para o carro que os mineiros tinham levado pouco tempo antes. Alguns homens haviam regressado para junto dele e tinham-no levado para próximo da pilha de terra. Atiravam terra
lá para dentro apressadamente, à luz do fogo que ainda ardia ali perto.
Macro adivinhou o propósito que os animava pouco depois, quando um rebelde lançou um brado e apontou para o portão. Já não tinham muito tempo para concluir o trabalho, percebeu Macro. Virou-se para a
zona onde Secundo e os seus homens empilhavam porções de lenha sobre as tábuas saturadas de piche.
— Acendam esse fogo. Depressa! — gritou Macro. Secundo anuiu e agachou-se com a sua lamparina, antes de aplicar cuidadosamente a pequena chama que ardia na ponta do pavio a uma pilha de raspas de madeira.
A pequena labareda lambeu os pedaços de combustível fino e depressa se prolongou a caminho da pilha de madeira, e as chamas espalharam-se pelo piche com um suave e quase frio fluxo de línguas de fogo
fantasmagóricas.
As labaredas sugaram o ar e espalharam-se mais rapidamente, e a madeira começou a ficar chamuscada no exterior quando o fogo lavrou mais fortemente, lançando um clarão que iluminava todo o interior do
fortim. Daí a pouco, o estalar e rugir das chamas subiu de tom.
Os rebeldes com o carro trouxeram-no para junto do portão a toda a velocidade, até serem alvo de uma nova barragem de pedras e se virem obrigados a parar e esperar por camaradas equipados com escudos
que os pudessem cobrir nos últimos metros que os separavam do portão. Lá chegados, deram meia-volta ao veículo e, depois de lhe darem impulso, empurraram-no com toda a violência contra o portão, fazendo
com que a tranca quase saltasse para fora do encaixe.
Macro percebeu de imediato o perigo, e correu para lá de forma a aguentá-la no lugar quando o carro embateu de novo e lhe fez estremecer os braços poderosos.
— Secundo! Tira os teus homens do túnel. Faz desmoronar a entrada e leva-os daqui para fora!
O centurião correu até à boca do túnel e gritou lá para baixo, e pouco depois os seus homens começaram a sair, de respiração ofegante, e sujos pela poeira e pela terra. Lançaram-se sobre as vigas da entrada
e fizeram cair uma, e depois a outra, fazendo aluir os lados e deixando uma pequena cratera no meio do fortim.
— Excelente, vamo-nos embora! — Secundo mandou-os avançar com um gesto, na direção da face frontal do fortim, onde as escadas aguardavam. — Deixem as coisas. Corram!
Os pretorianos largaram as ferramentas e deixaram os baldes de piche onde estavam, recuando à pressa. Um por um, desceram as escadas, atravessaram o fosso e dirigiram-se para o portão da mina, cujas portadas
se abriram e deixaram ver Cato a chamá-los.
No interior do fortim, Macro aguentou a tranca no lugar quando o carro voltou a ser atirado contra o portão, mas desta vez surgiu uma fenda entre duas das tábuas. Já não ia resistir muito mais tempo,
e Macro conseguia ouvir o som feito pela chegada constante de mais homens ao local, a incitar os camaradas e a bater com as armas na orla dos escudos, numa cacofonia crescente. Virou-se à procura de Espiro,
e viu-o na rampa, à luz avermelhada das chamas, a atirar pedras aos atacantes.
— Espiro! Espiro! Aqui em baixo, com dois homens, imediatamente. Quando os outros se juntaram a ele, Macro apontou para a barra.
— Mantenham aquilo no lugar. Temos que aguentar o portão mais algum tempo.
— Sim, senhor.
Macro correu para o balde de piche mais próximo, mas este estava vazio, tal como o seguinte; o terceiro e último ainda tinha metade do conteúdo. Pegou nele e correu para a beira das chamas que consumiam
a pilha de madeiras prontas para o túnel. O calor mordeu-lhe a pele exposta, como se acabasse de receber um golpe de tremenda força. Macro cerrou os dentes, agarrou num fino pau em chamas e saltou para
longe, os pelos dos braços chamuscados. Correu de volta ao portão e espalhou o piche pelas tábuas do mesmo, antes de cravar a espada entre a tranca e o encaixe, para a manter presa. O portão estremeceu
mais uma vez sob o impacto do carro, e a fenda entre as duas tábuas alargou-se o suficiente para lhe permitir ver os rostos dos homens do outro lado. Estes, ao verem Macro, soltaram um urro de triunfo
e puxaram o carro para trás, para novamente o lançarem contra o portão.
Macro encostou o ramo em chamas às tábuas ensopadas em piche, até que as labaredas pegaram e começaram a lamber a madeira e a alastrar rapidamente.
— Muito bem, está feito! Recuem. — Levou as mãos em concha à boca e lançou um brado a todos os homens que o tinham acompanhado. — Recuar!
Os homens na paliçada lançaram as últimas pedras sobre o inimigo e viraram-se para seguir Secundo e o seu grupo, levando consigo o camarada inconsciente. Macro deteve um dos companheiros de Espiro e ficou-lhe
com a espada antes de o mandar seguir. Deixou que o resto dos seus homens lhe ganhassem algum avanço e olhou em redor do perímetro, verificando o incêndio, a entrada tapada para o túnel e os corpos dos
rebeldes que jaziam junto ao outro fogo a arder no canto oposto. Macro assentiu para si mesmo, satisfeito. Tinham conseguido concretizar tudo aquilo a que se tinham proposto.
O carro embateu mais uma vez no portão, ampliando a fenda de tal forma que um homem já podia tentar alcançar o outro lado. E de facto surgiu logo na abertura um braço, que tentou remover a espada que
prendia a tranca no lugar.
Mas, em vez disso, foi atingido pelas chamas e retirado rapidamente, com uma longa imprecação.
Macro virou-se e encaminhou-se para a muralha da frente, onde os últimos membros do seu grupo desciam as escadas para seguir os outros a caminho da mina. Secundo tinha-se juntado à meia centúria que protegia
os flancos e formara os homens numa caixa, com as fileiras cerradas, de forma a apresentar uma muralha de escudos em todas as direções. Era uma precaução bem pensada, já que os primeiros dos rebeldes
começavam a rodear o fortim para tentar cortar a retirada aos atacantes. Na altura em que Macro chegou à escada de fuga, o portão cedeu quando o carro atravessou as chamas e percorreu uma curta distância,
e os homens entraram pela brecha, a correr para escapar às chamas que consumiam as tábuas e os estilhaços do portão. Macro respirou fundo e lançou-lhes uma despedida.
— Isto é o que recebem quando tentam foder Roma! Depois embainhou a espada e lançou-se pela escada, descendo o mais depressa possível. Já havia grupos pouco organizados de rebeldes a tentarem cortar o
caminho a Secundo e aos seus homens, e o centurião deu ordem para seguir assim que Macro entrou na formação e as fileiras foram de novo cerradas. Secundo marcou o ritmo, e foram seguindo em passo cadenciado
a caminho do portão. Os mais próximos dos rebeldes atacaram-nos, lançando-se sobre eles e desferindo golpes a torto e a direito, que embatiam nos escudos e mais nada conseguiam, num espetáculo de frustração.
Os que se aproximavam demasiado convidavam os pretorianos a lançar rápidos contra-ataques, e estes não se faziam rogados em espetar as lanças onde quer que pudessem.
Macro ouviu a voz de Cato na escuridão, a dar ordens aos homens que já tinham chegado à mina, para que formassem do outro lado da ponte levadiça, de forma a que o portão pudesse ser mantido aberto para
dar guarida aos últimos soldados a regressar da surtida. Entretanto, mais rebeldes surgiam da escuridão para atacarem Secundo e a sua meia centúria. Estes viram-se obrigados a reduzir o andamento, mas
mantiveram-se em movimento, até que por fim se juntaram a Cato e aos seus homens, atravessaram a ponte e recuaram para o interior do portão fortificado. Os rebeldes fizeram um último esforço desesperado
para manter o portão aberto, e Macro abriu caminho até à frente de combate e enfrentou-os, desferindo golpes frenéticos com a espada. A presença do belicoso centurião fez hesitar os assaltantes mais próximos,
e Macro lançou um incoerente grito de guerra na sua direção antes de recuar num pulo quando os pretorianos empurraram os portões para o lugar e cerraram a pesada tranca.
De imediato as tábuas estremeceram perante o empurrão da massa de rebeldes, que batiam no portão com armas e punhos cerrados. Pulcher deu ordens aos homens na muralha para lançarem pedras sobre os atacantes,
e em poucos momentos estes recuaram e refugiaram-se de novo na escuridão distante.
Cato procurou o amigo e sorriu ao avistar-lhe a face escurecida, o cabelo chamuscado e a túnica rasgada, à luz da tocha que ardia num suporte ao lado do portão.
— Que tal correu? Macro lambeu os lábios e engoliu em seco, enquanto lutava para recuperar o fôlego.
— Tão bem como poderíamos esperar. O túnel está destruído, e queimámos os materiais de entivação.
— Isso quer dizer que ganhámos mais alguns dias. Bom trabalho, Macro.
— Cato riu, aliviado, tanto por ver o amigo de regresso sem ferimentos como pelos danos que tinham sido provocados ao inimigo. — Agora diga-me que não se divertiu lá fora.
— Diversão? — Macro abanou a cabeça. — Meu amigo, tens um peculiar sentido de humor.
— Se assim o diz. Olhe, aqui está uma coisa para si. — Cato passou-lhe um odre de vinho para as mãos. O centurião apressou-se a tirar-lhe a tampa e levantou-o, fazendo jorrar o vinho para a boca aberta.
Como estava escuro, não acertou à primeira, e o líquido foi bater-lhe no rosto. Mas depressa ajustou a pontaria e bebeu um bom trago, enquanto se perguntava se alguma vez tinha bebido vinho que lhe soubesse
tão bem, ou que tivesse sido tão bem merecido.
Nos dias que se seguiram, os romanos gozaram os seus momentos de satisfação, bem como um sentimento de segurança, enquanto os rebeldes se dedicavam às reparações dos danos sofridos. Os sons de serragem
vindos dos escombros da povoação voltaram a fazer-se ouvir, enquanto eles reuniam mais madeira e materiais para substituir os que tinham sido perdidos durante o ataque. Macro apresentou um relatório detalhado
na manhã seguinte, e Cato ficou surpreendido perante o lento progresso que os rebeldes tinham feito no túnel original, dada a estimativa feita por Pasterico. Mas ainda bem que era assim, concluiu. Quanto
mais lentamente avançassem, mais tempo davam a Vitélio para chegar ao local com a coluna principal. Mas não conseguia ficar satisfeito a esperar sem fazer nada, e a pensar que a chegada do legado era
um dado adquirido. Os trabalhos na muralha interior, pouco atrás do portão, continuavam, enquanto a defesa se erguia até chegar à altura da muralha externa.
Desta forma, havia um plano de contingência pronto para o caso de o túnel dos rebeldes conseguir mesmo alcançar as defesas.
Cato resolveu adotar outra e mais agressiva abordagem para prejudicar os esforços do inimigo. Dois dias depois da surtida, desenhou um quadrado no chão, na área entre o portão e a muralha interna, e foi
explicando a Macro.
— Vamos fazer uma contramina. Começamos aqui e descemos uns seis metros a direito, antes de orientarmos o túnel contra o do inimigo. Se começarmos agora, devemos chegar ao túnel deles antes de eles chegarem
ao fosso lá fora, e poderemos destruir os trabalhos. Isso deve chegar para os desencorajar de continuarem a fazer buracos por baixo de nós.
Macro fez uma careta, e arqueou as sobrancelhas.
— Vai ser um trabalho duro, senhor. Os pretorianos têm zero de experiência na escavação de minas; o trabalho é extenuante, e muito perigoso.
— O perigo pode ser mitigado, tanto quanto possível, se garantirmos que o poço e o túnel são amparados por tantas tábuas quantas conseguirmos aplicar.
Não há falta de madeira nos armazéns, já pronta para esse efeito, e podemos tirar mais dos túneis das minas, se for precisa.
— É verdade — admitiu Macro. — Mas será mesmo necessário? Se os tipos do Iskerbeles escavarem ao mesmo ritmo lento que usaram antes, o Vitélio deve chegar cá muito antes de eles estarem em condições de
derrubar o torreão. Nesse caso, os homens estarão apenas a perder tempo, e a colocarem-se em perigo.
— Vamos tomar o menor risco possível — contrariou Cato. — O Iskerbeles vai fazer com que os seus homens se esforcem a sério para nos atacar. Era capaz de apostar que de agora em diante eles vão progredir
ao ritmo que o Pasterico calculou. De qualquer maneira, assim os pretorianos têm alguma coisa que fazer enquanto esperam pela coluna de socorro.
— Hummm.
— É você quem o diz. O lazer não é bom para os soldados. E se nunca fizeram nada deste género, será uma experiência útil. Pense nisto como um treino para o trabalho futuro. Será bom para eles, e quem
sabe? Também será uma precaução necessária para o caso de o Vitélio se atrasar, seja por boas ou más razões.
— Achas então que ele tenta prejudicar-nos? — E você não acha? Ele sairá bem desta história, seja qual for o resultado. Se nos alcançar a tempo de nos ajudar antes que o Iskerbeles possa reconquistar
a mina, poderá dizer que salvou a coorte. Se a coorte for aniquilada, vingar-nos-á, e ganhará fama por isso. Preferia não lhes entregar a iniciativa, nem a ele nem ao Iskerbeles. Vamos mantê-la na nossa
mão, e uma contramina é a melhor forma de o fazer. Preciso é de uma série de equipas de escavação.
Digamos cinco homens a escavar e quinze a remover a terra em cada turno. O que for tirado do solo pode ser usado para reforçar a muralha interna. Claro que vamos ter que fazer isto com cuidado. Não vale
a pena alertar o inimigo de que estamos a enfrentá-lo no mesmo jogo. Além disso, temos todas as ferramentas que são necessárias aqui mesmo na mina.
— Sim, senhor. Vou tratar dos preparativos.
Cato assentiu, agradado com o plano que traçara. Era sensato cobrir todas as possibilidades, refletiu. Vitélio devia ser capaz de chegar junto deles antes que o túnel estivesse pronto. Mesmo que o inimigo
conseguisse derrubar o torreão, teria que se haver com o resto da muralha. E se ela fosse ultrapassada, havia ainda a segunda muralha, e por fim a barricada ao cimo do caminho que levava à zona de entrada
das acomodações. Entretanto, havia boas hipóteses de que a contramina acabasse com a nova tentativa dos rebeldes. Sim, considerou Cato, tinha todas as razões para estar satisfeito com a forma como estava
a conduzir a defesa da mina.
Tal como Macro antecipara, as ordens do prefeito foram recebidas com desânimo e irritação pelos pretorianos, mas a disciplina depressa se impôs, e os homens dedicaram-se à nova tarefa com eficiência,
embora sem grande entusiasmo. Só de tanga, os homens pegaram em picaretas e pás em turnos de duas horas, antes de serem substituídos. À medida que desciam, a luz do Sol deixou de chegar ao fundo do buraco,
e passaram a trabalhar à fraca luz das lamparinas. Os que eram substituídos trepavam a escada até à superfície, cobertos de poeira e suor, desesperados por água para matar a sede. Enquanto a questão foi
descer, não houve problemas, e os lados do poço foram reforçados com tábuas adequadas.
Assim que atingiram a profundidade desejada traçaram um rumo ao encontro do túnel original construído pelos rebeldes. O trabalho era penoso, feito em más condições de iluminação e com ar gasto. Cato tratou
de garantir que o túnel dos pretorianos era escorado de forma muito mais cuidadosa do que os que penetravam pela falésia, na mina. A terra extraída era transportada à noite, para garantir que, se houvesse
algum rebelde a observar de uma das colinas próximas, não conseguisse perceber o que os defensores estavam a preparar.
Os dois lados continuaram a vigiar-se mutuamente, enquanto os dias passavam e os respetivos túneis progrediam. A rampa da muralha dos rebeldes tinha sido aumentada, e haviam sido colocadas novas defesas
para garantir que não se repetiria a surtida que tinha arrasado o primeiro esforço. De dia e de noite, as patrulhas rebeldes tinham sido reforçadas e aumentado de número, e pouco depois começaram a estender-se
ao longo de toda a muralha de proteção da mina. Entretanto, a putrefação dos cadáveres no fosso prosseguia, e alguns dos pretorianos começaram a usar tiras de pano sobre os narizes quando estavam de serviço
como sentinelas, e borrifavam o pano com óleos e perfumes encontrados na casa do procurador. Pouca diferença fazia, e os romanos não tinham outra opção que não fosse aguentar o cheiro e a presença de
abutres e outros animais a alimentarem-se dos tecidos moles dos corpos que apodreciam à sombra da muralha.
Todas as manhãs e ao escurecer, Cato sujeitava-se aos tratamentos do médico da coorte, que lhe mudava o penso, limpava qualquer descarga de pus e depois examinava a ferida. Pronunciou-se muito satisfeito
com a recuperação da carne que tinha sido trespassada, e com o pequeno buraco na base do globo ocular. Estava menos preocupado do que Cato acerca da inabilidade deste para ver melhor com aquele olho.
Ao fim de cinco dias, a ligadura deixou de ser usada, e Cato colocou uma pala para manter o penso no lugar. Isto divertiu imenso Macro, e o centurião sugeriu que Cato podia talvez mudar de carreira e
tentar ser transferido para a marinha imperial, ou até mesmo lançar-se por conta própria como pirata.
Depois, ao entardecer do quinto dia após a surtida, Cato e Macro procediam à sua habitual inspeção das defesas antes da chegada da noite, e atravessavam a área de trabalho das minas quando um grito de
um dos pretorianos lhes chamou a atenção para a arriba. Uma corrente de água prateada precipitava-se do cimo e corria pela face da falésia, arrastando consigo terra e rochas.
— Por Hades, o que se passa ali? — indagou Macro, enquanto via a corrente a precipitar-se na base da escarpa e começar a seguir a linha de menor resistência pelo meio do terreno até à ravina.
— Só há uma forma de descobrir — retorquiu Cato, voltando-se e começando a correr de regresso ao caminho que subia para a cornija. Pela altura em que passaram pelas casas dos escravos e chegaram aos tanques
de água, a torrente tinha diminuído de intensidade, e limitava-se a um contínuo fluir, que atravessava a cornija até à falésia. O centurião Porcino estava junto ao tanque mais próximo no terreno alagado,
e com ele estava Pasterico, enquanto os outros chapinhavam na lama. Estavam a conversar, mas o optio interrompeu-se para fazer a continência.
— O que é que aconteceu? — perguntou Cato.
— Houve uma rutura num tanque, senhor.
— Parece-me que éramos capazes de adivinhar isso — replicou Macro, dando um pontapé na lama e salpicando Pasterico, de modo a dar ênfase ao ponto.
— Mostra-me — ordenou Cato, e Porcino conduziu-o até ao canto do tanque onde parte da parede de terra tinha sido arrastada. O estuque por detrás dela tinha ruído, e ainda se escapava dali um constante
fio de água. Porcino apontou para a brecha.
— O Pasterico diz que é a cobertura do cimento, senhor. Às vezes o calor faz com que abra fendas. Normalmente isso não é um grande problema, porque os tanques são inspecionados todos os dias e as reparações
feitas de imediato. Mas como isso não tem acontecido nos últimos tempos... — Acenou na direção da larga extensão de lama, e dos canais que se espalhavam pela cornija até chegarem à arriba.
Cato avaliou os danos, sem se preocupar muito com a perda de água, já que o tanque ainda estava meio cheio, e de qualquer forma ainda havia muita água nos outros tanques, intactos. Mesmo assim, considerou
que seria aconselhável procurar saber mais.
— Pasterico, com que frequência é que os tanques precisam de reparações? É provável que isto volte a acontecer no próximo mês, ou por volta disso?
O optio abanou a cabeça.
— Senhor, esta não é propriamente a minha área de ação. Mas só vi isto acontecer uma vez. Provoca uma certa confusão, e era por isso que eles usavam aquelas valas já preparadas quando davam início ao
processo de varrimento.
Claro que só usavam um tanque de cada vez.
— Varrimento? — Macro franziu o sobrolho. — Queres explicar isso? — É quando eles libertam a água para expor os veios de prata na face da colina, senhor.
Macro assentiu.
— Varrimento? Que nome tão estúpido.
— Não tenho culpa disso, senhor. Eu limito-me a trabalhar aqui.
Cato trepou para o rebordo do tanque e contemplou os danos na base.
— Bom, vamos tentar evitar que isto se repita. Porcino, de agora em diante ficas com a função de inspetor de tanques. Quero-os todos verificados pela manhã e ao entardecer, para ver se há fugas. Se deres
com alguma coisa, deve haver materiais para reparar essas fugas nos armazéns da mina. Manda um grupo tratar disto imediatamente.
— Sim, senhor. Mas não seria aqui o Pasterico o mais indicado para essa tarefa? Ele conhece o lugar melhor do que eu.
— Centurião, foi a ti que atribuí a tarefa. Fim da discussão.
— Sim, senhor.
— Portanto, arranja uns homens, procura aquilo de que vais precisar e trata do assunto.
— Sim, senhor.
Trocaram uma saudação, antes de Cato e Macro encetarem o caminho de regresso pelo meio da lama. O centurião não conseguiu evitar um sorriso divertido.
— Aquilo vai deixar o Porcino na berlinda, e vai ajudar a queimar alguma daquela gordura.
— Calculo que sim — retorquiu Cato num tom ausente, antes de se deter e olhar para os tanques. Não havia em nenhum dos outros qualquer sinal de uma fuga, e mais uma vez se maravilhou perante o saber dos
engenheiros que tinham construído a mina. Havia um enorme volume de água ali armazenado.
Mais do que suficiente para as necessidades da guarnição e dos escravos que em tempos tinham labutado sob a falésia, e ainda chegava para fornecer os meios de desbastar a face da arriba de forma a alcançar
os minerais valiosos escondidos sob a terra.
— Varrimento — fungou. — Tem toda a razão, é um nome muito estúpido. Pode ter a certeza de que não foi inventado por nenhum soldado.
Macro olhou para o céu do entardecer, onde a luz desaparecia rapidamente.
— Senhor, será melhor despacharmos a inspeção. Daqui a pouco estará escuro. E ainda não há sinais do Vitélio...
Cato foi acordado por Metelo uma hora depois da meia-noite. O optio segurava uma lamparina sobre a cama, enquanto abanava com firmeza os ombros do seu superior. O rosto de Cato vincou-se numa careta quando
ele se agitou.
Tinha estado em pleno pesadelo, onde regressara a casa e a Júlia estava viva. A princípio tinha ficado empolgado ao vê-la, mas depois ela falara-lhe de Cristo, e preparara uma arca com roupas para abandonar
Cato e o filho e ir viver com o seu amante. Cato estava a suplicar-lhe que ficasse, no momento em que o optio o despertara, e teve que deixar passar um momento para afastar a agonia do sonho e se ajustar
à realidade.
— O que há? O que aconteceu? — Cumprimentos do centurião Musa, senhor. Ele pede que se junte a ele no átrio. Imediatamente, senhor.
— Porquê? — Não disse, senhor. Só revelou que era urgente.
A mente de Cato desanuviou-se.
— Que horas são? — Pouco falta para a quinta hora da noite, senhor. O turno de vigia ia mudar daí a pouco, mas Musa ainda devia estar com os seus homens na muralha. Cato levantou-se de forma abrupta e
passou as pernas sobre o bordo da cama, apoiando os pés nas botas. Apertou-as rapidamente e vestiu uma túnica, antes de acompanhar Metelo para fora do quarto e pelo corredor que levava ao átrio principal,
a entrada da casa do procurador.
Havia várias lamparinas a iluminar os homens que o aguardavam. O centurião Pulcher e o seu optio estavam prestes a entrar de serviço, e ajudavam-se mutuamente a envergar as cotas de malha. Também lá estavam
Musa e quatro dos seus pretorianos, e com eles estava outro homem, vestido como um dos rebeldes, mas com o inimitável corte de cabelo curto dos soldados romanos. Estava numa condição lamentável, com cortes
e arranhões em toda a pele exposta. Cato estava a ponto de perguntar a razão para ter sido perturbado no seu descanso, e a castigar Musa por ter abandonado o seu posto antes de ser substituído por Pulcher,
mas a sua atenção foi atraída para o homem que os acompanhava.
— Quem é este? Musa fez uma continência rápida.
— Proclama que é o optio Coleno da Quarta Coorte da Guarda, senhor.
Diz que foi enviado pelo legado Vitélio para lhe entregar isto. — O centurião apresentou-lhe um fino tubo de couro, selado nas duas extremidades com a crista que Cato reconheceu como a marca de Vitélio.
Cato pegou-lhe e encarou o homem com severidade, usando o seu olho bom.
— O que estás aqui a fazer? Mais precisamente, como é que conseguiste cá chegar? E onde está o Vitélio?
O homem que dizia chamar-se Coleno estava claramente a ponto de desfalecer de exaustão, mas arranjou forças para se colocar em sentido antes de responder ao superior.
— O legado está nas colinas, a não mais de trinta e poucos quilómetros daqui, senhor. Tenciona atacar o acampamento rebelde pela alvorada, depois de amanhã, e envia-lhe as suas ordens. Escolheu-me para
ser o portador das mesmas. Deixei o campo há um dia, e consegui introduzir-me nas linhas dos rebeldes para alcançar a mina. Foi necessária alguma capacidade de persuasão para que o centurião me deixasse
entrar, senhor.
— Ainda bem — respondeu Cato. — Arranjem de comer e beber para este homem.
Musa anuiu, e enviou um dos seus homens à cozinha, enquanto Cato quebrava o selo e extraía do tubo um rolo pouco espesso. Aproximou-se da luz de uma das lamparinas, desenrolou o pergaminho e começou a
ler. As instruções do legado eram bastante curtas. Lançaria o seu ataque no momento que Coleno já tinha indicado. Cato e a sua coorte recebiam instruções para fazer uma surtida e lançar um primeiro ataque
ao campo rebelde. Quando o inimigo estivesse ocupado e seguro de que estava a ponto de esmagar a coorte, Vitélio lançaria um ataque devastador com todas as suas forças, e os rebeldes seriam apanhados
entre as duas forças romanas. O plano era ousado, admitiu Cato, enquanto voltava a colocar o rolo no estojo, mas era precisamente essa ousadia que o deixava imediatamente de pé atrás. E se o ataque de
Vitélio chegasse demasiado tarde para salvar a Segunda Coorte? Uma outra possibilidade ainda mais tenebrosa ocorreu-lhe. E se fosse esse o verdadeiro plano? A destruição de Cato e Macro pelos rebeldes,
antes de estes serem por sua vez destruídos pelas forças de Vitélio. Isso arrumaria todas as pontas soltas para o legado. Custar-lhe-ia uma coorte, porém. Era difícil acreditar que até mesmo Vitélio pudesse
ser assim tão calculista e insensível. Por outro lado, considerou Cato, e se aquela mensagem não fosse realmente do Vitélio? E se fosse uma artimanha de Iskerbeles, para atrair a coorte para longe da
segurança das suas defesas? Coleno, se era mesmo esse o seu nome, falava latim, mas havia uma infinidade de formas de o explicar. Podia ser um criminoso, um antigo soldado talvez, condenado às minas.
O corte de cabelo era um pormenor bem pensado, se o inimigo queria mesmo fazê-lo passar por soldado romano.
Cato virou-se para Musa.
— Reconheces este homem? — Não, senhor. Nunca o vi antes. Mas é verdade que há milhares de homens na Guarda.
— Eu conheço-o — anunciou Pulcher. Aproximou-se para o inspecionar de perto. — É mesmo o Coleno. Tive que lhe aplicar um castigo por causa de uma zaragata nas casernas quando eu estava de serviço, há
uns meses. É um dos nossos.
Cato pesou a indicação e assentiu.
— Seja, é ele. Portanto, Coleno, diz-me, como é que o legado conseguiu chegar aqui tão depressa? Não estava à espera que ele chegasse nos próximos dias.
— Avançámos a marchas forçadas, senhor. Depois deixámos o trem das máquinas de cerco para trás, para vir ao seu próprio ritmo, e a infantaria e a cavalaria adiantaram-se. Não posso dizer que tenha sido
fácil, senhor.
Os outros homens na sala trocaram um sorriso conhecedor, e Pulcher soltou um comentário.
— Olha, querido, nem sabes da história a metade. O soldado que tinha sido enviado à procura de comida regressou com meio pão seco, um naco de carne de porco salgada e um odre de vinho, e colocou-os sobre
uma mesa para Coleno. Este olhou para a comida e lambeu os lábios; Cato acenou-lhe.
— Atira-te a ela. Bem o mereceste.
Coleno não precisou de mais incentivos, e sorveu vários tragos de água antes de começar a partir o pão.
— Centurião Musa.
— Senhor? — Agradecia-te que não voltasses a abandonar o teu posto antes de concluíres o teu turno de vigia, por qualquer razão que seja. Envia um dos teus homens. Mas nunca mais voltes a abandonar o
teu posto.
— Sim, senhor. — O centurião ficou de crista baixa.
— Estarei no gabinete do procurador, se for preciso. Enquanto Cato se virava e começava a percorrer o corredor, Pulcher dirigiu-se ao recém-chegado e deu-lhe umas palmadas nas costas, antes de lhe oferecer
algumas palavras de felicitações pelo seu esforço; depois, afastou-se para levar os seus homens para a muralha, onde substituiriam Musa e a sua centúria.
Bem, a mim não me agrada — comentou Macro, na manhã seguinte, enquanto conduziam a revista matinal em torno da mina e inspecionavam as defesas. — Não temos qualquer razão para confiar no Vitélio. Sobretudo
com as experiências que tivemos com ele no passado. O homem é um cabrão manipulador. Seja o que for que faz ou diz, a única coisa de que podemos estar certos é de que é do seu próprio interesse, e normalmente
a pesado custo para outros. E por mim, estou farto de ser um desses outros. Se formarmos a coorte e marcharmos para a batalha, que garantia temos nós de que ele vai fazer a sua parte? Nenhuma. Nada de
nada. O mais provável é marcharmos para a morte, e depois, quando as nossas cabeças estiverem a servir de decoração à lança de algum daqueles filhos da puta, só então é que ele fará a sua aparição em
cena.
— Tem toda a razão — concordou Cato. — A sua observação traduz exatamente o que eu penso.
— Então, o que vais fazer? Ficar no forte e esperar que ele se mexa para atacar os rebeldes? Era o que eu faria.
Cato sugou o ar.
— Isso é precisamente o que eu devia fazer. Mas as ordens que ele me enviou são muito explícitas. Tenho que atacar primeiro, de forma a atrair o Iskerbeles para longe do acampamento, e distraí-lo o tempo
suficiente para que o Vitélio possa fechar a armadilha. Se virem o Vitélio em primeiro lugar, os rebeldes terão tempo para alcançar a planície e fugir. E se isso suceder, serei tido como responsável.
— Portanto, e mais uma vez, estamos fodidos de uma maneira e fodidos de outra.
— Mais ou menos isso, sim.
— Merda... — Macro fez ranger os dentes. — Porque é que isto nunca pode ser apenas sobre as questões militares? Porque é que tem sempre que haver um sacana qualquer a inventar um esquema turvo nas sombras?
— É sempre assim que as coisas são, Macro. O que sucede é que passamos a ter uma mais clara visão da situação, à medida que subimos na cadeia de comando.
— Para isso, antes preferia ter ficado nas fileiras. Fazia o meu dever, e tentava ser um bom soldado. A vida era bem mais simples nessa altura.
— Não. Parecia-lhe assim. Além disso, nasceu para ser um centurião, e Roma ficou a ganhar muito mais quando o elevou ao centurionato. Roma, o exército, e os homens que comanda. Todos eles precisam de
si. E eu também.
Avançar para uma batalha sem o ter ao meu lado seria impensável.
Macro abanou a cabeça e riu-se, embaraçado.
— O caralho. Tu safas-te bem, comigo ou sem mim.
— Consigo é bem melhor. Acredite no que lhe digo — concluiu Cato, no momento em que chegavam ao cimo do poço de onde partia a contramina.
Dois homens faziam funcionar um grande fole ligado a uma mangueira de couro que bombeava ar fresco para o túnel, para permitir aos homens que lá trabalhavam respirar, e para evitar que as lamparinas se
apagassem. Um guindaste improvisado tinha sido montado sobre a abertura, e da penumbra erguia-se um cesto de entulho. Foi puxado para o lado e esvaziado sobre um carrinho de mão, antes de a terra e as
pedras serem levadas para serem colocadas na rampa por trás da muralha, para lhe aumentar a espessura. O centurião Petílio tinha acabado de subir a escada e ainda estava a limpar a testa com o lenço do
pescoço. Mesmo coberto de terra e suor, ainda conseguia ter uma bela aparência, e lançou um sorriso animado ao prefeito ao ver Cato e Macro a aproximarem-se.
— Como vai a progressão do túnel? Petílio atou o lenço ao pescoço enquanto retorquia: — Tanto quanto consigo calcular, já escavámos mais de seis metros para lá do torreão e do fosso. Não vamos com certeza
ganhar prémios pela rapidez do trabalho, mas estamos bem lançados para intercetar a mina deles antes de conseguirem chegar às nossas defesas. Isso pode acontecer a qualquer momento.
— Nesse caso, temos que estar prontos para a ocasião. Macro, tome uma nota. Destaque uma meia centúria para ficar a postos. Entrarão no túnel no momento em que detetarmos o inimigo.
— Sim, senhor. — Macro pegou numa tábua encerada e no estilete da sacola, e escreveu a ordem.
— Agora, vamos à parte divertida — murmurou Cato sem humor, enquanto se agarrava à escada e começava a descer para o poço. Já conseguia sentir a ansiedade a pesar-lhe, só de pensar no acanhado túnel lá
em baixo. Não havia necessidade de se submeter àquela prova, mas era importante mostrar aos homens que ele também fazia aquilo que lhes pedia. Ver-se naquele apertado corredor enchia-lhe o coração de
um terror mortal de que o teto ruísse e o enterrasse vivo. Apesar dos cuidados com que a contramina tinha sido escavada, e do facto de terem usado mais entivação do que seria necessária, nas ocasiões
em que Cato tinha ido inspecionar o trabalho com os seus próprios olhos estivera sempre à espera de que o túnel ruísse a qualquer momento. Era irracional, dizia a si mesmo. E portanto tinha que se impor
ao medo, em nome da razão e para provar a si mesmo que conseguia ultrapassar tamanho receio.
Teve que fazer uma pausa a meio caminho, já que o cesto vazio passou por ele, pronto para que a carga seguinte de entulho fosse trazida para a superfície. Espreitou para baixo e avistou o espaço mal iluminado
ao fundo do poço. Dois pretorianos aguardavam a chegada do cesto, com um balde de entulho em cada mão. Fizeram espaço para que o comandante passasse, assim que Cato saltou do último degrau de escada para
o espaço apertado. Macro começou também a descer, enquanto resmungava, aborrecido, a proclamar que não se tinha alistado para se tornar uma toupeira. O ar era pesado e abafado, e Cato espreitou por entre
os sólidos postes que enquadravam o túnel, que descia na direção da muralha. Lamparinas de azeite presas às tábuas alinhavam-se ao longo do caminho, mas mal davam luz que chegasse para iluminar o que
as rodeava. O túnel tinha largura suficiente para permitir que dois carros de mão se cruzassem, mas a altura pouco mais era do que metro e meio, pelo que toda a gente tinha que baixar a cabeça e caminhar
encurvado.
Macro chegou ao fundo, os dois oficiais rodearam os homens com os baldes e Cato adiantou-se pela rampa. Ao fim de curta distância, o túnel tornava-se plano, e o ar era quente, húmido e cheirava a terra.
— Não posso dizer que vá sentir saudades deste lugar quando isto estiver terminado — disse Macro. — Não é natural para um homem andar debaixo do chão.
Cato não respondeu, e manteve o queixo cerrado enquanto lutava para controlar o medo que o tolhia. Estava determinado a não o deixar à vista. À frente havia movimento, e surgiram outros dois homens com
baldes, com tiras de pano atadas à testa para manter o suor longe dos olhos. Ofereceram um breve aceno à laia de saudação, e passaram pelos dois oficiais. Ao aproximarem-se do fim do túnel, estes sentiram
uma ligeira melhoria do ar, e o som do bater das picaretas subiu de intensidade. Havia por ali muitas madeiras, prontas a serem enviadas para a frente e colocadas em posição ao redor da área de trabalho,
antes de mais uns cinquenta centímetros de terra e pedras serem extraídas; o processo era repetido à medida que o túnel avançava lentamente. Depois, mesmo à sua frente, Cato descortinou o pequeno grupo
que escavava, os corpos a reluzir de suor enquanto manejavam as ferramentas da melhor forma possível naquele espaço confinado. Três equipas de dois homens escavavam à vez, trocando de lugar quando ficavam
demasiado cansados. Ao som da aproximação dos oficiais, um dos homens olhou para trás e lançou um grito aos outros:
— Atenção ao prefeito! Os pretorianos tentaram colocar-se em sentido, no que Cato pensou que era uma tentativa ridícula de preservar a formalidade de uma visita do comandante.
— À vontade — lançou Cato. — Sentíaco, dá um descanso aos teus homens. O optio de Petílio assentiu.
— Obrigado, senhor. Ouviram o que o prefeito disse, rapazes, pousem as ferramentas e aproveitem para descansar.
Os pretorianos apoiaram as picaretas contra os lados do túnel e sentaram-se, enquanto Cato falava com o optio.
— Como vai a progressão? — Muito bem, senhor. Pelos meus cálculos... Mais de três metros no nosso turno. Bastante mais do que o grupo do Porcino fez antes de nós.
— Isso é bom. — Cato estava satisfeito por ver o espírito de competição dos homens, o que era costume entre os soldados, mesmo nas piores circunstâncias. Cada desafio era visto como uma oportunidade de
provarem o seu valor. — Bom esforço, rapazes. Se conseguirem avançar mais uns cinquenta centímetros antes de a vossa centúria ser substituída, há uma ração extra de vinho a ganharem.
Os pretorianos exaustos acenaram, gratos pela oferta, e Cato avançou até à frente de trabalho, para a examinar de perto. Havia mais pedras misturadas com a terra do que tinha notado no dia anterior, e
isso tornava o avanço mais difícil, calculou. Sentíaco e os seus homens tinham de facto feito um bom trabalho.
— Calados! — Macro interrompeu a conversa em surdina dos pretorianos que descansavam. — Escutem.
Cato virou-se rapidamente para o amigo.
—O que...
— Chhh. Mantenham-se quietos e escutem.
Cato imobilizou-se, como fizeram todos, os ouvidos a esforçarem-se, a tentar ignorar os sons da sua própria respiração, e o silvo rítmico e quase impercetível da mangueira de couro. Cato estava a ponto
de desistir e pedir uma explicação a Macro quando deu por ele, o quase inaudível som de ferramentas a perfurar a terra e as pedras, e depois pedaços de vozes abafadas. Os pretorianos pegaram nas ferramentas,
e Cato e Macro extraíram as espadas das bainhas.
— É o inimigo, mas de onde vêm os sons? — sussurrou Cato. Os homens puseram-se de novo à escuta, e Sentíaco apontou para a frente de trabalho.
— Deviam vir dali.
Cato escutou de novo e abanou a cabeça.
— Acho que vêm mais deste lado.
Tocou a parede do lado esquerdo do túnel, como que para tentar detetar vibrações com as pontas dos dedos, mas não sentiu nada. Os ruídos eram agora mais claros, e o som das picaretas a rasgar a terra
mais pronunciado.
— Merda... — soltou um dos pretorianos em voz baixa.
— Cala a boca — instou Macro. — Todos vocês.
A curta distância ao longo do túnel, deu-se um pequeno deslizamento de solo, e depois ouviu-se o som de metal a bater em madeira.
— Recuem — ordenou Cato. — Depressa! Sentíaco fez os homens levantarem-se e empurrou-os à sua frente, na direção do poço. Cato e Macro seguiram-nos. Tinham acabado de passar por um dos postes quando a
terra explodiu da face lateral do túnel, e um torrão foi atingir Cato na cabeça. A ponta metálica de uma picareta surgiu momentaneamente por entre a terra, antes de ser puxada para trás e deixar um buraco
por onde passava uma pálida luz alaranjada. Mais terra caiu no túnel, à medida que a abertura crescia, e depressa esta tinha largura suficiente para deixar passar um braço. Mais alguns golpes vindos do
outro lado, e a parede ruiu entre dois postes, pondo à vista um grupo de homens magros e secos, iluminados por velas montadas em pequenos pratos sobre ganchos de metal fixos às madeiras.
Cato percebeu que eles trabalhavam num túnel maior e mais largo do que o dos romanos, e que cruzava este em ângulo reto, a uma profundidade ligeiramente superior. Naquele momento todos se entreolhavam
chocados, enquanto o solo que separava os dois túneis se esboroava.
Deu-se um momento de indecisão nos dois grupos, e Cato percebeu de imediato que estavam em inferioridade numérica. Apontou para o mais próximo dos pretorianos.
— Vai buscar ajuda! Corre! Enquanto o homem corria pelo túnel, na direção do poço, os mineiros rebeldes lançaram-se apressadamente à tarefa de eliminar os últimos obstáculos entre os dois túneis, de forma
a terem espaço para atacar os romanos. Depressa o primeiro deles tentou passar pelo espaço entre dois postes. Sentíaco deu um passo à frente enquanto baloiçava a picareta, e a ponta romba apanhou o rebelde
por baixo do esterno, rasgando os tecidos moles e os órgãos. Sentíaco encostou a bota contra a virilha do homem e libertou a ferramenta, antes de acertar de lado no rosto do adversário, deixando-o inconsciente
e fazendo-o cair e bloquear a passagem entre os postes. Os rebeldes perceberam de imediato o que tinham a fazer, e começaram a escavar o solo na base dos postes, lançando-se contra eles, num esforço para
os deslocar. O solo solto começou a cair em cima dos romanos, quando a viga que protegia o teto do túnel deixou de ter apoio lateral.
— Afastem-se daí! — avisou Sentíaco, e tanto oficiais como homens recuaram, mantendo as armas a postos. Cato ouvia os gritos urgentes do homem que tinha enviado para a saída do túnel.
— Rapazes, temos que os manter à distância enquanto pudermos. Um dos postes caiu para o túnel romano, e a viga abateu-se, libertando algum do solo e rochas pela fenda que se abriu para as vigas mais próximas.
Os romanos sacudiram os torrões das cabeças enquanto os rebeldes voltavam a forçar a passagem pela abertura, agora já mais larga, entre os dois túneis.
Agachados, a respirar ar pesado e viciado, à pouca luz de lamparinas e velas, os dois lados defrontaram-se com toda a brutalidade, numa tentativa de controlar o espaço apertado. Por momentos, Cato sentiu-se
gelado perante o pesadelo em que estava apanhado. Mas depressa o encanto se quebrou, ao ver os pretorianos seminus e os rebeldes a lançarem-se uns contra os outros. Não havia espaço para brandir armas
em condições, e viam-se forçados a usar as picaretas como varapaus, lançando as pontas metálicas e as hastes de madeira contra membros, troncos e cabeças, enquanto tentavam respirar e o suor reluzia nas
suas peles sujas. Alguns deitaram fora as ferramentas e preferiram usar as mãos, para esganar os adversários e atacar-lhes os olhos.
Apesar de os escravos serem mais numerosos, não conseguiam enviar ao mesmo tempo através da brecha mais do que alguns homens, sobre os quais os romanos se lançavam, numa luta sem regras pela sobrevivência.
Não havia tempo para refletir no horror selvagem da cena, e Cato lançou-se também para a frente, desferindo um golpe de espada na perna de um homem que emergia da abertura.
A ponta cortou-lhe o músculo e raspou no osso, e Cato torceu-a para um lado e outro enquanto a puxava. O outro atirou-se a ele, cambaleando entre Cato e a lamparina mais próxima, pelo que as suas feições
eram invisíveis. Ainda assim, Cato ouviu o grunhido selvagem que o rebelde soltou quando brandiu a picareta e saltou para colocar o seu peso por trás da ferramenta. O cabo atingiu Cato no peito e fê-lo
cambalear para trás, prendendo-se o calcanhar numa das tábuas que estavam no solo. Caiu no chão do túnel, com o rebelde em cima dele. Sentiu a respiração do homem no rosto, e a pressão da haste da picareta
a subir-lhe pelo peito, a caminho do pescoço, quando o adversário tentou esmagar-lhe a traqueia Não havia espaço para usar a espada de forma eficiente, pelo que Cato lançou o punho contra as costelas
do rebelde, mas sem grandes resultados. Em desespero, Cato tentou dar-lhe uma cabeçada, mas não conseguiu imprimir ímpeto suficiente ao golpe para produzir efeito. Ainda assim, tinha uma ideia clara da
posição das feições do homem relativamente ao seu próprio rosto, no meio da escuridão. Cato abriu a boca, arreganhou os lábios e cravou os dentes no nariz do inimigo, mordendo com toda a força, atravessando
a carne e atingindo a cartilagem, e sentindo o sangue quente a pingar-lhe para a boca e a escorregar-lhe pela língua, para a garganta. Sacudiu violentamente a cabeça e sentiu algo a ceder, e a cabeça
descaiu-lhe para trás, ainda com um bom bocado de carne quente presa aos dentes, que se apressou a cuspir para longe. O rebelde lançou um uivo de agonia e soltou uma das mãos do cabo da picareta para
apalpar a face arruinada.
Cato aproveitou para lhe dar uma joelhada e o fazer rebolar para longe, e usou de pronto a espada, desferindo uma rápida série de curtos golpes que deixaram o opositor fora de combate.
Combalido, Cato voltou a pôr-se de pé e reparou em três outros corpos a debaterem-se no chão do túnel; o mais próximo estava dominado por Macro, que se ajoelhara sobre o ventre do adversário e lhe espetava
a espada no peito com as duas mãos e todo o seu o peso. Os movimentos do rebelde tornaram-se quase inexistentes, e Macro levantou-se, apoiou uma bota no corpo do outro, junto à ferida, e libertou a espada
com um puxão, antes de se voltar de novo para a brecha. Tornou-se evidente para Cato que não conseguiriam aguentar muito mais tempo. Tinha que se fazer alguma coisa.
— Sentíaco! Aguenta-os. Quando eu der a ordem, tu e os teus homens recuam de imediato.
O optio acenou em concordância, antes de usar a picareta para enfrentar outro adversário. Cato recuou uns metros para trás no túnel e testou com a mão livre um dos postes menos grossos de entre os que
suportavam as paredes.
— Este serve. Macro, ajude-me aqui. O centurião aproximou-se.
— Serve para quê? — Para arrancar. Temos que fazer o túnel aluir, aqui. Antes de perdermos o controlo da situação.
— Mas, e os rapazes? — Vamos dar-lhes tempo para sair. Ajude-me.
Cato lançou-se furiosamente à terra junto ao cimo do poste, enquanto Macro escavava na base. Enquanto o faziam, os gritos e grunhidos da refrega próxima tornavam os seus esforços ainda mais urgentes.
Cato encostou o corpo à madeira, e sentiu-a a ceder.
— Chega de escavar. Empurre! Macro levantou-se e apoiou o ombro na madeira, enquanto Cato empurrava mais acima.
— Força. O poste cedeu mais um pouco, e o cimo deslocou-se contra a ponta da viga do teto.
— Pare aí! — ordenou Cato. — Vamos ao próximo! Repetiram o processo, e depois voltaram para junto do primeiro poste, enquanto Cato dava uma ordem aos homens que combatiam.
— Recuar! Agora! O primeiro dos pretorianos passou a correr, e depois outro, com uma mão por cima de uma ferida no lado do tronco, e com um terceiro homem a cobrir-lhe a retirada. Só faltavam o optio
e outro pretoriano. À fraca luz que reinava no ambiente, Cato percebeu que ambos estavam feridos. O braço esquerdo de Sentíaco tinha sido esmagado, e viam-se ossos a projetarem-se do seu antebraço, enquanto
ele manejava a picareta com a mão que lhe restava, fazendo-a rodar junto aos rostos dos rebeldes que o enfrentavam no túnel. O outro pretoriano virou-se para fugir, e coxeou alguns passos, até que um
rebelde o alcançou, o empurrou para o chão forçando-lhe o rosto na poeira e lhe cravou a picareta nas costas com uma força brutal.
— Sentíaco! Corre! Enquanto gritava, Cato percebeu que já era demasiado tarde. Dois dos rebeldes já tinham passado para o outro lado do optio e subiam o túnel, e outros preparavam-se para os seguir. Sentíaco
ergueu o olhar, viu os dois oficiais prontos para fazer ruir o túnel, e gritou:
— Avance, senhor! Não havia tempo para deliberar, só para agir, e Cato lançou o seu peso contra o poste. Este soltou-se da viga, que se abateu de imediato à frente de Cato e Macro, provocando uma avalanche
de terra e pedras que soterrou os dois rebeldes que se aproximavam, e fez desaparecer de vista Sentíaco, no preciso momento em que o optio se lançava contra o inimigo, abandonando toda a prudência.
— Recue! — ordenou Cato, e os dois retiraram para junto do segundo poste, enquanto o mais próximo dos rebeldes se levantava, se libertava da terra e se tentava pôr de pé, ao mesmo tempo que abanava a
cabeça. A segunda derrocada teve um efeito muito maior, e fez ruir por completo uma grande secção do túnel, e a terra e as pedras caíram em cima do rebelde, esmagando-o e soterrando-o em vida. Cato puxou
Macro para trás vários passos, até ficarem fora do alcance da derrocada. O ar encheu-se de poeira sufocante, e todos os sons da refrega do outro lado da zona que aluíra deixaram de se ouvir. O único som
era o tossir dos romanos enquanto cambaleavam pelo túnel acima, na direção da luz do Sol que se projetava pelo poço.
Ao aproximarem-se da saída, deram com Petílio e um grupo dos seus homens, que começavam a descer.
— Demasiado tarde — soltou Cato, entre golfadas de ar. — Tivemos que fazer ruir o túnel... Antes de o perdermos... Leva os teus homens até lá abaixo.
Trata de garantir que eles não escavam outra passagem.
— Sim, senhor.
Cato, Macro e os sobreviventes do grupo que tinha estado a trabalhar no fundo espalmaram-se contra a parede do túnel, para deixar passar os pretorianos pesadamente equipados. Quando o caminho ficou livre,
avançaram até ao fundo do poço, e Cato deixou passar outros dez homens de Petílio antes de dar ordem aos homens de Sentíaco para subirem, seguidos por ele e Macro. O ar à superfície era quente, seco,
e doce de respirar, e os homens cobertos de poeira sentaram-se ou dobraram-se sobre si mesmos, os peitos a arfar, enquanto lutavam para recuperar o fôlego.
Assim que a sua respiração voltou ao normal, Cato obrigou-se a endireitar-se. Macro virou a cabeça para olhar para ele.
— Ao que parece, demos mesmo com a mina deles, em cheio.
— Não, eles é que deram com a nossa — ripostou Cato, com amargura. — Devia ter adivinhado que eles previram que nós íamos fazer isto. Não voltarei a subestimar o Iskerbeles.
— O que é que estás para aí a dizer? — Macro endireitou-se e arqueou as costas, massajando a base da espinha. — Foi apenas azar. Porra, que desta vez eles trabalharam depressa.
— Não... Não, não me parece. — Cato fez uma careta de esforço, enquanto recordava os detalhes da ação de havia poucos minutos. — Eles apareceram da direção errada. Da esquerda, dali. — Fez um gesto para
a muralha ao lado da torre. — Como se tivessem toda a intenção de se cruzarem com a nossa contramina. Ou então passar-lhe por cima, ou por baixo, para chegar ao portão.
Macro considerou brevemente a hipótese.
— É possível. Mas, por agora, bloqueámo-los. O tempo suficiente para os deixar empatados até que o Vitélio lance finalmente o seu ataque.
Cato fez menção de passar a mão pelo cabelo, mas deu com ele ainda coberto de poeira, e tentou sacudi-la, enquanto continuava na mesma linha de pensamento. Quando o inimigo tinha irrompido pela parede,
ele vira o túnel deles, iluminado por lamparinas e velas, e a prolongar-se por uma longa extensão numa direção paralela à muralha. Não fazia sentido dar início a um novo túnel na direção da muralha e
depois desviá-lo a meio para ir direito ao torreão. Se o Iskerbeles tinha tido a intenção de intercetar a contramina pelo lado, podia ter escolhido uma rota muito mais direta. De qualquer forma, o inimigo
tinha tido que pôr os homens a trabalhar como demónios para ter aquele novo túnel daquela forma... A não ser... Sentiu um véu frio a cobrir-lhe o pensamento, ao perceber que tinha sido iludido pelo inimigo.
Completamente enganado e humilhado.
— Senhor! Cato olhou na direção do grito, e viu um pretoriano no torreão, a mexer os braços para lhe chamar a atenção.
— O que se passa? — O inimigo, senhor. Está a movimentar-se para fora do acampamento.
— Quantos homens? Ao fim de uma curta pausa, a sentinela abanou a cabeça.
— Não sei, senhor. Parece-me que são todos.
Cato correu para a escada e subiu à torre, seguido de perto por Macro.
Apressou-se a chegar à paliçada e a espreitar sobre as ruínas, e viu uma larga faixa da paisagem para além da povoação destruída coberta por vultos que vinham do acampamento para a mina. Muitos milhares
deles.
Macro surgiu ao seu lado, ainda de respiração pesada.
— Ao que parece, eles não vão esperar pela chegada do Vitélio. Pelo menos isso poupa-nos a ter que decidir sobre confiar nele ou não. Só espero que ainda estejamos por cá quando o resto dos pretorianos
se juntar à batalha.
Cato anuiu e virou-se para a sentinela que tinha dado o alarme.
— Faz soar a chamada às armas. O homem anuiu e pegou na trombeta de latão que estava a um canto da torre. Levou o instrumento à boca e respirou fundo, apoiou os lábios no bocal e soprou três notas graves
e curtas; fez uma pausa e repetiu o toque, várias vezes. Os homens da centúria de piquete, que estavam a repousar por trás da muralha, pegaram no equipamento e correram a tomar os seus lugares no passadiço,
enquanto os primeiros homens das outras centúrias surgiam a correr pelo caminho, vindos das casernas, alguns já completamente equipados, outros a tentar acabar de se vestir enquanto entravam para a formação.
— Nem posso acreditar que o Iskerbeles vai tentar outro assalto frontal — comentou Macro. — E em plena luz do dia. E sem fazer ruir o portão antes.
Cato não disse nada, mas manteve-se atento à aproximação da horda rebelde. Tal como Macro afirmara, não fazia sentido atacar naquele momento.
Como podiam sequer esperar obter sucesso, quando tinham sido tão facilmente repelidos quando da primeira tentativa?
Os homens da coorte estavam todos nos seus postos muito antes de o primeiro rebelde surgir das ruínas e tomar posição em frente à muralha, fora do alcance das fundas. A coorte adotou o mesmo dispositivo
anterior, com as duas primeiras centúrias a guarnecer a muralha, a Terceira por trás do portão e a Quarta e a Sexta em reserva por trás da muralha, enquanto Pulcher e os homens que restavam da Quinta
ficavam na retaguarda como reserva de último recurso. Petílio e os seus homens tinham sido retirados do túnel, e a escada puxada para cima, deixando o poço sem acesso à superfície, só para o caso de o
inimigo voltar a abrir a passagem subterrânea.
À medida que os rebeldes formavam, Cato reparou que havia poucas escadas de assalto, e que muitos dos homens levavam feixes de lenha, ramos e arbustos bem apertados, para encher o fosso e criar pontos
de passagem segura através dele. O maior peso da linha inimiga parecia estar do lado esquerdo dos defensores, diante da secção de muralha ocupada por Secundo com os seus homens.
Metelo subiu à torre para entregar a Cato a proteção do crânio, o capacete e o escudo.
— Obrigado. Enquanto Cato apertava a fivela, Metelo murmurou: — Mas do que é que eles estão à espera? Cato ignorou a questão. Podia haver inúmeras explicações. Então soou um corno no seio da hoste inimiga,
e dois cavaleiros adiantaram-se. Cato reconheceu de imediato Iskerbeles e o seu enorme ajudante. Este último levou o corno à boca e voltou a soprar, enquanto eles levavam os cavalos a passo para a frente.
Os dois homens empunhavam escudos, prontos para os usarem para se defenderem, no caso de os romanos resolverem tentar um disparo de longe, de arco ou funda.
Cato permitiu-lhes aproximar-se um pouco mais, antes de colocar as mãos em concha e gritar:
— Parem aí! Os cavaleiros detiveram as montadas, obedientemente.
— O que querem? — inquiriu Cato.
Iskerbeles empertigou-se na sela e respondeu, num latim bem claro: — Romanos. Esta é a vossa última oportunidade para se renderem.
Façam-no agora, e serei clemente. Serão poupados e enviados para Tarraco.
A escolha é vossa. Rendam-se imediatamente, ou morrerão... Qual é a vossa resposta?
Macro fungou, desdenhoso.
— Ele está a brincar? Ou estará bêbado? Ou é simplesmente louco? Cato abanou a cabeça.
— Não sei...
Fez-se uma longa pausa, até que Iskerbeles voltou a chamar: — Romanos, então? Cato voltou a colocar as mãos em concha para dar a sua resposta.
— Preciso de tempo para ponderar a questão. Dar-te-ei a minha resposta amanhã, pelo meio-dia.
Iskerbeles abanou a cabeça.
— Prefeito, já me deste a tua resposta. Escolheste a morte. Pois que assim seja.
Iskerbeles gesticulou para o companheiro, e os dois fizeram os cavalos rodar e regressaram a trote para as suas linhas. Os defensores aguardaram num silêncio tenso, à espera que começasse o ataque, mas
não houve qualquer movimento do lado rebelde. Os homens mantinham-se imóveis, debaixo do Sol, também à espera... E à espera.
— Foda-se, mas o que é que estes querem agora? — perguntou Macro, por fim.
— Estarão a tentar aborrecer-nos até à morte?
Foi um leve ribombar que primeiro revelou a jogada do inimigo. Um som abafado, como um rufar de tambores pesadamente disfarçado, para a esquerda, e Cato e Macro foram para esse lado da torre para tentar
perceber o que se passava. Na muralha, os pretorianos agitavam-se, ansiosos, e contemplavam o solo por baixo dos seus pés. De repente, uma secção do passadiço e da rampa pareceram tremer e começaram a
ruir, levando consigo os homens. Uma brecha abria-se na muralha, e crescia a cada instante, e depois a mesma coisa começou a suceder mais à frente, e depois ainda mais perto da torre. Os homens nas áreas
não afetadas começaram a recuar da muralha, em pânico.
— Por Hades, o que se passa? — indagou Macro, assombrado.
Cato já tinha adivinhado.
— Queridos deuses... Havia outro túnel, desde o princípio! O que destruímos foi apenas uma diversão. Por isso é que não tinha avançado quase nada.
Aquele cabrão levou-me bem à certa. Eles estavam a escavar para minar a muralha, e não o torreão.
Antes que acabasse a frase, o corno voltou a fazer-se ouvir no seio das densas fileiras do inimigo, uma nota longa, clara, desafiadora. E, desta vez, os rebeldes responderam com um terrível e ensurdecedor
urro de triunfo, antes de se lançarem numa furiosa carga pelo terreno que se estendia à frente da muralha desmoronada e dos homens atordoados que tinham sobrevivido ao colapso das três secções, onde se
viam agora três vastas brechas por onde o inimigo se preparava para irromper aos milhares.
Cato correu para a parte de trás da torre, e gritou lá para baixo:
— Porcino! Petílio! Avancem com as vossas centúrias para cobrir as brechas! Em passo de corrida!
Virou-se para Macro.
— Ao que parece, não se vão preocupar com a sua parte da muralha, por isso pegue em metade dos seus homens e apoie os outros.
— Sim, senhor. — Macro lançou-se pela escada abaixo, e seguiu rapidamente pelo passadiço.
Cato pensou rapidamente. Iskerbeles tinha agido de forma brilhante no cerco, enganando os romanos e destruindo num golpe audaz a melhor linha de defesa que estes possuíam. A muralha principal, em torno
do torreão, tinha estado praticamente impune, e agora dela só restavam escombros, um tributo mudo e inútil à ardilosa estratégia dos rebeldes. As três brechas ocupavam mais de trinta metros da muralha,
e as áreas entre elas estavam cheias de fendas, e a esboroarem-se. Metade dos homens que defendiam aquele setor da muralha tinham tombado com ela, e os sobreviventes ainda se debatiam para saírem do entulho,
enquanto os camaradas que tinham escapado à derrocada andavam a custo sobre as montanhas de destroços, terra e rochas, para os ir ajudar. Era óbvio para Cato que qualquer tentativa de defender a muralha
exterior estava condenada ao fracasso. A coorte tinha que recuar para a segunda muralha, e o recuo precisava de ser gerido com todo o cuidado, para não se transformar numa debandada, a qual resultaria
na completa aniquilação dos pretorianos.
Os primeiros rebeldes já tinham chegado ao fosso à frente das brechas, e lançavam os seus molhos de material para cima do entulho, de forma a obter uma superfície mais nivelada. O inimigo concentrava-se
nas áreas das brechas, lançando gritos entusiasmados, cheirando a vitória ao seu alcance. Depressa teriam passagens seguras sobre o fosso, e nessa altura lançar-se-iam numa enorme vaga sobre as aberturas.
E então, por muito bem que os pretorianos combatessem, a enorme desigualdade dos números acabaria por decidir o embate. Cato virou-se, para chamar o comandante da última reserva.
— Centurião Pulcher! Pulcher! O corpulento oficial olhou para cima.
— Senhor? — Leva os teus homens, coloca-os na segunda muralha e mantém o portão aberto para o resto do pessoal.
O ruído criado pelos gritos e aclamações do inimigo subia e descia como uma onda, e Pulcher levou uma mão à orelha e abanou a cabeça, demonstrando que não tinha percebido as instruções.
— Foda-se — resmungou Cato para si mesmo, antes de encher os pulmões de ar, levar as mãos em concha à boca e voltar a tentar. — Eu disse para pegares nos teus homens e recuares para a segunda muralha!
Desta vez Pulcher ouviu a ordem e anuiu, antes de se virar para a transmitir aos seus homens.
— Recuem! — gritou outra voz, e a cabeça de Cato rodou na direção de uma das secções da muralha arruinada, onde o centurião Musa erguia a espada, a apontar para a retaguarda, e repetia a ordem. — Recuem!
— Não! — gritou Cato, mas o barulho era já demasiado. Havia inúmeras vozes a pedir ajuda, a dar ordens, a encorajar os camaradas, e a sua própria voz foi engolida pelo burburinho. Os pretorianos da Terceira
Centúria davam as costas ao inimigo e atravessavam o monte de entulho, esbarrando assim contra os primeiros dos homens de Macro, que acorriam a reforçar os que deviam estar a defender as brechas.
A defesa da mina estava a esboroar-se à frente dos olhos de Cato, e ele tinha que fazer alguma coisa imediatamente, antes que os rebeldes começassem a atravessar as pontes improvisadas e se lançassem
sobre a completamente desorganizada coorte pretoriana. Virou-se para os outros homens na torre.
— Saiam! Recuem para a segunda muralha. Uma espreitadela sobre o parapeito revelou-lhe que o inimigo não fazia qualquer tentativa de atacar a muralha à direita do torreão. Cato voltou-se para um dos homens
ainda junto de si.
— Vai dizer ao Petílio e ao Porcino que quero os homens deles formados para batalha a meio caminho entre esta torre e a segunda muralha. Vai!
Ordenou ao trombeteiro que o seguisse. Desceu a escada a dois degraus de cada vez, antes de saltar para o chão. Correu para a brecha mais próxima enquanto os homens de Musa continuavam a recuar, atravessando
o espaço aberto para se irem acolher atrás da segunda muralha. Já era demasiado tarde para deter os que tinham recuado primeiro, e Cato apercebeu-se de que até seria boa ideia ter um largo número de homens
a ocupar a segunda linha de defesa, pronto a receber os que sobrevivessem ao primeiro avanço do inimigo pelas brechas. O centurião Musa continuava a berrar aos seus homens para recuarem, quando Cato o
agarrou pelos ombros e o fez rodar para o enfrentar.
— Foda-se, meu imbecil, o que estás tu a fazer? — Senhor? — Musa não escondeu o choque. — Mas deu a ordem para recuar...
— Essa ordem era para o Pulcher. — Cato apontou para os homens que continuavam a atravessar o monte de entulho. — Leva-os outra vez para a brecha.
Musa apontou para os homens que já se aproximavam da segunda muralha.
— E o resto? — Já é tarde. Leva os homens que te restam para a frente, antes que consigas matar-nos a todos! — Cato empurrou-o na direção da mais próxima das secções de muralha arruinada. — Aguenta aquela
brecha.
Musa recuperou a noção das coisas e assentiu, antes de se dirigir para a posição designada, gritando aos homens para o seguirem. Cato continuou a correr, e deu com Macro a formar a sua meia centúria.
— Ocupe o centro. Aguente o mais que puder. Temos que arranjar tempo para restaurar alguma ordem nas tropas. Quando ouvir a trombeta, recue para junto do Petílio, com o resto dos homens. Assim que a coorte
estiver toda junta, retiramos para a segunda muralha. Entendido?
— Sim, senhor. Que os deuses nos protejam.
Cato anuiu e lançou-se em nova correria, seguido pelo trombeteiro, a caminho da última brecha, onde a maior parte dos sobreviventes da Segunda Centúria, cerca de cinquenta homens, se tinham reunido em
torno do estandarte. Cristo estava com eles, coberto de pó e quase irreconhecível.
— Onde está o centurião Secundo? Cristo designou a muralha destruída.
— Foi-se, senhor. Está algures no meio daquilo.
— Onde está o optio? — Também desaparecido, senhor.
— Merda... — soltou Cato em voz baixa. Era preciso que alguém assumisse o controlo da centúria. E era óbvio que Cristo estava demasiado abalado para tomar esse lugar. Cato pegou no estandarte da centúria.
— Passa-me isso, e vai procurar uma arma para ti.
Cato empunhou o estandarte com firmeza e levantou-o no ar, bem alto, enquanto se dirigia para a frente dos homens da centúria.
— Sigam-me! Começaram a subir o monte de entulho, avançando com cuidado por entre as pedras soltas e a terra mole. Pouco adiante ficava a linha mal desenhada dos escombros da muralha, e mais à frente
Cato avistou as pontas das lanças e espadas inimigas e depois, à medida que subia a pilha de entulho, as cristas dos capacetes que tinham sido tirados às tropas romanas mortas. Por fim, conseguiu ver
os próprios rebeldes, uma massa agitada de homens a berrar, a brandir as suas armas, enquanto aguardavam que fossem lançados para o fosso os últimos molhos de material. Os gritos e urros alcançaram um
tom ainda mais elevado quando viram os pretorianos a avançar sobre o entulho e a formarem uma linha dupla que ocupava toda a largura da brecha. Cato tomou lugar ao centro da linha, no ponto mais elevado,
e cravou a ponta aguçada na base da haste do estandarte com toda a força no solo, antes de desembainhar a espada e dar uma ordem.
— Escudos à frente! Os pretorianos avançaram os braços esquerdos e cerraram fileiras, de forma a apresentar ao inimigo uma parede ininterrupta de escudos, enquanto ao mesmo tempo mantinham as lanças ao
nível dos olhos, prontas a desferir as suas estocadas letais. Uma pedra desenhou um arco pelo ar, vinda da frente da horda inimiga, e foi embater no escudo do homem mesmo à frente de Cato, e outras se
lhe seguiram; Cato percebeu que o estandarte o transformava no alvo mais óbvio para o inimigo. Agachou-se ligeiramente. Não demasiado, para não perder a dignidade, mas o suficiente para esconder a maior
parte da cara por trás do escudo dos pretorianos. Não tiveram que suportar a barragem durante muito mais tempo, já que um corno se fez ouvir e os rebeldes avançaram em massa, com um tremendo rugido. A
corrente adelgaçou-se ao atravessar o fosso, mas a densidade voltou a aumentar assim que o ultrapassaram, e a mole humana carregou sobre os defensores romanos. Felizmente, a superfície irregular do monte
de destroços ajudou a fazer diminuir o ímpeto da carga, e os atacantes acabaram por se lançar sobre os escudos numa série desconexa de duelos homem a homem.
— Calma, rapazes! — gritou Cato, com toda a frieza que conseguiu reunir.
— Por Roma e pelo Imperador!
O ar à sua volta ficou cheio dos choques de armas e dos estrondos dos impactos nos escudos. Os pretorianos estavam em posição superior, tinham armas com maior alcance e muito melhor equipamento, já que
a maior parte dos opositores não usavam qualquer armadura e tinham sido camponeses ou escravos antes de a rebelião os ter transformado em guerreiros improvisados.
Contudo, os rebeldes lutavam com a coragem fanática dos seus antepassados, que tinham desafiado Roma ao longo de quase duzentos anos. Ainda assim, a coragem não tornava ninguém imune aos ferimentos, e
eles tombavam perante as estocadas precisas dos pretorianos, treinados e disciplinados. Os corpos empilharam-se à frente da linha romana, muitos ainda vivos, mas depressa pisoteados pelos próprios camaradas,
que se adiantavam para enfrentar o inimigo. Os rebeldes tentavam desviar as lanças com golpes de espada, ou agarrar as hastes e puxá-las para desarmar os romanos, enquanto não deixavam de ser empurrados
pelos que vinham atrás deles, de tal modo que as duas linhas estavam concentradas numa frente apertada.
— Primeira linha, baixar lanças! — gritou Cato. — Desembainhar espadas! A primeira linha de pretorianos passou rapidamente as lanças para os camaradas nas suas costas, enquanto mantinham os escudos apresentados
ao inimigo. Depois sacaram das suas espadas curtas, uma arma mais adequada para um combate de proximidade, e continuaram a distribuir estocadas e golpes rápidos com as lâminas na massa densa dos rebeldes
à sua frente. A estes era praticamente impossível evitar as espadas, e os inimigos continuaram a cair às dúzias à frente dos escudos romanos, apesar de a força da carga rebelde começar a obrigar os pretorianos
a recuar, pouco a pouco.
Cato olhou para a direita e confirmou que Macro e Musa estavam a aguentar firmemente até àquele momento. A pouco mais de cem passos atrás da primeira muralha, os homens de Petílio e de Porcino ainda estavam
a acabar de formar uma linha, ao longo do espaço entre a falésia e a ravina. Por trás deles, Pulcher conduzia os seus homens em corrida para a segunda muralha. Cato sabia que os homens à sua volta tinham
que conseguir manter o controlo sobre aquela brecha durante mais algum tempo. Se cedessem, o inimigo entraria pela mina como uma torrente humana, e atacaria Macro e Musa pela retaguarda. Os homens da
Segunda Centúria não podiam ceder mais terreno. Precisavam de qualquer coisa que fortalecesse a sua decisão. Havia algo que resultava de certeza, percebeu Cato. Uma forma de encorajar os homens a resistir
a todo o custo.
Preparou a espada e, fazendo força com o ombro contra a haste do estandarte, libertou-o do solo e abriu caminho entre os soldados à sua frente, de forma a tomar lugar a meio da linha de combate. A resposta
inimiga foi imediata, e os mais próximos dos rebeldes tentaram alcançá-lo com expressões raivosas e ansiosas, determinados a conseguir para si mesmos a glória de tomar o estandarte sagrado dos pretorianos,
que fora entregue pelo próprio Imperador.
Cato ergueu a espada e desferiu um golpe contra a cabeça do mais próximo dos inimigos, cortando-lhe a orelha e fazendo-lhe um profundo corte no queixo. Recuperou a lâmina no momento exato de espetar a
ponta na garganta de outro que se lhe dirigia com um machado a voltear pelo ar. Lançou um brado desesperado, a voz quase a quebrar com o esforço:
— Pretorianos! Defendam o estandarte! Todos comigo! Os homens da Segunda Centúria firmaram os pés no entulho e encostaram os corpos aos escudos amolgados e salpicados de sangue, enquanto continuavam a
destroçar o inimigo. Os dois lados combatiam com uma selvajaria vinda do desespero e da fome de glória, enquanto procuravam conquistar o terreno que rodeava o estandarte romano. Cato, incomodado pelo
penso e pala sobre o olho, não parava de olhar para a direita e para a esquerda, para evitar ser apanhado de surpresa. A sua espada não parava um segundo, avançando na direção de qualquer inimigo que
se aproximasse, por vezes falhando o golpe, outras vezes provocando apenas um ferimento superficial, mas também desferindo ataques devastadores que detinham e derrubavam um dos rebeldes, ou o obrigavam
a cambalear de volta ao seio da turba. A dado momento, um grande guerreiro com uma longa espada de cavalaria abriu caminho por entre a massa agitada. O homem levantou a espada acima da cabeça ao aproximar-se
de Cato, e fê-la descer num arco mal-intencionado. Cato ergueu a sua própria espada por instinto, para aparar o golpe, mas o peso da arma do adversário obrigou-lhe o braço a descer, e ele mal teve a presença
de espírito para rodar o pulso e assim desviar o golpe. A espada do outro raspou ao longo da lâmina de Cato com um terrível rinchar, até se abater sobre o punho e fazer a arma saltar da mão do prefeito.
O rebelde soltou um urro triunfante e tentou agarrar a haste do estandarte com a mão livre. Desarmado, Cato agarrou-se desesperadamente à haste, com as duas mãos. Os dois homens lutaram pela posse do
símbolo por momentos, até que Cato soltou a mão direita, arrancou a adaga do cinto e usou-a para rasgar os dedos do rebelde, lacerando a carne e mordendo os ossos. Cato ergueu a pequena arma e cravou-a
com força no antebraço do opositor. Este soltou um berro de fúria e dor, e puxou o braço para trás, libertando o estandarte mas arrancando também a adaga das mãos de Cato. Depois de recuperar o equilíbrio,
o rebelde levantou a espada para lançar novo golpe, com um brilho cruel no olhar, perante a perspetiva de abater o indefeso oficial romano.
Cato voltou a pegar rapidamente no estandarte com as duas mãos, e fê-lo rodar, de forma a atingir o adversário com a ponta na região genital. O queixo do homem descaiu num grunhido, e a espada vacilou
nas suas mãos. Cato aproveitou para manejar a haste e fazer a ponta atingir o pescoço do homem, voltando a desequilibrá-lo e fazendo-o recuar aos trambolhões contra um grupo dos seus camaradas, que caíram
com o embate. Antes que Cato pudesse fazer mais, Cristo e um dos pretorianos avançaram e fecharam as fileiras na proteção do estandarte da unidade. Cato voltou a erguê-lo no ar e a fazê-lo oscilar de
um lado para o outro, enquanto os romanos mantinham a posição, em desafio ao inimigo. Nesse momento, como que por mudo consentimento mútuo, deu-se uma breve pausa no combate, e os rebeldes reagruparam-se.
Os combatentes dos dois lados respiravam com dificuldade, e procuraram recuperar algum fôlego enquanto observavam desconfiados o inimigo, à espera de um sinal para retomar o confronto.
Cato aproveitou para espreitar por cima do ombro e viu que Pulcher tinha alcançado a segunda muralha, e que já alinhara os homens à frente do portão.
Mais perto, as centúrias de Petílio e Porcino também já tinham assumido as suas posições. Nas outras brechas do que restava da muralha, os homens de Macro aguentavam firme, mas mais adiante Musa fora
forçado a recuar, e o inimigo ameaçava flanqueá-lo a qualquer momento. Era altura de retirar, decidiu Cato. Antes que os homens ainda na muralha se vissem rodeados e fossem destruídos.
Lançou um brado ao trombeteiro: — Faz soar a retirada. O soldado levou o brilhante instrumento aos lábios e soprou uma nota pífia. Tentou de novo, mas o resultado foi o mesmo.
— Pelos deuses, homem, cospe! — irritou-se Cato. — Cospe! O pretoriano anuiu, limpou a garganta, cuspiu para o lado e voltou a tentar. Desta vez as notas soaram claramente, límpidas. O trombeteiro repetiu
o sinal três vezes, antes de pousar o instrumento. Cato respirou fundo e fez erguer a voz acima do clamor da batalha.
— Segunda Centúria! Abandonar o combate! Recuem para junto do estandarte!
Ao longo da linha de combate, os pretorianos afastaram-se do inimigo, deixando no espaço entre os dois lados os corpos empilhados dos mortos e moribundos. Os romanos já tinham recuado ao longo de cerca
de metade da encosta quando um grito se ergueu nas fileiras dos rebeldes. O grito foi retomado, ecoado e transformou-se num rugido, enquanto os homens trepavam sobre os cadáveres e avançavam para retomar
a refrega, fazendo breves pausas apenas para pôr fim à vida de alguns romanos que estavam demasiado feridos para conseguir acompanhar a retirada. Nada havia a fazer por eles, aceitou Cato com azedume,
enquanto via os seus homens a serem mortos. Nada, exceto jurar vingança, e cumpri-la assim que a oportunidade surgisse. O que restava da centúria, já menos de quarenta homens, chegou ao sopé do declive
feito de entulho, e os flancos recolheram para formar uma caixa bem fechada em volta do estandarte, com escudos apresentados em todas as faces. Mais adiante, na linha da muralha, Macro e Musa tinham feito
o mesmo, tendo combinado as suas centúrias e incorporando também a outra metade da centúria de Macro, que tinha deixado a muralha à direita do torreão e corrido a reunir-se aos seus camaradas. Com os
oficiais a marcarem o ritmo, as duas caixas defensivas recuaram sem parar para a segunda muralha, enquanto os rebeldes ocupavam os escombros do que fora a primeira muralha, rejubilando com o sucesso obtido,
aclamando-se e gozando com os romanos, como se tivessem acabado de obter uma grande vitória.
Cato avaliou a distância entre os seus homens e a formação maior em cerca de quarenta passos. Todos juntos, teriam mais possibilidades de sobrevivência do que separados, calculou.
— À minha ordem, desfaçam a formação e juntem-se à outra caixa. — Cato olhou para os rebeldes mais uma vez, e não notou neles qualquer urgência em lançar uma perseguição aos romanos. Tinham com certeza
ficado abalados com as perdas sofridas para conseguirem controlar as brechas.
— Desfaçam a formação! Os pretorianos viraram-se num repente e correram pelo descampado, e Cato apoiou o estandarte no ombro para que a longa haste não o prejudicasse enquanto corria.
O inimigo reagiu de imediato e saudou o súbito movimento com uma ensurdecedora pateada, mostrando o seu desprezo. Um punhado deles adiantou-se aos seus camaradas e incitou-os a lançar-se em nova investida.
Outros os imitaram, e depois, como se empurrada por uma gigantesca mão invisível, toda a horda se lançou em corrida, numa carga selvática.
Cato notou que a outra formação, que seguia um pouco à frente, se tinha detido, e abrira as fileiras na face mais próxima, para admitir os homens que corriam na sua direção. Com as suas pesadas armaduras
e escudos, os pretorianos não conseguiam correr tão depressa como os rebeldes que os perseguiam, mas tinham um bom avanço, e os mais rápidos lançaram-se para a abertura que lhes era destinada, enquanto
Cato abrandava ligeiramente o passo para olhar sobre o ombro. Atrás dele havia um punhado de homens, e os mais próximos dos inimigos estavam a cerca de vinte passos.
— Corram, seus tolos! Corram pelas vossas vidas!
No instante seguinte estava a passar pela abertura na formação, e quase derrubou um dos homens que se tinha detido de forma abrupta mesmo à sua frente. Cato recuperou o equilíbrio, voltou a erguer o estandarte
e virou-se, para verificar a posição do mais atrasado dos seus homens, que corria tão depressa como podia, em desespero, de dentes cerrados. Mas o pé do soldado pousou sobre uma pequena pedra, com o tamanho
exato para lhe torcer o tornozelo, e o homem caiu para o lado, levantando uma pequena nuvem de cascalho e poeira. Por puro instinto, Cato deu um passo na direção do homem, mas, antes que avançasse mais,
os pretorianos fecharam as fileiras e barraram-lhe a passagem. De qualquer forma, era demasiado tarde para salvar o soldado. Três rebeldes estavam em cima dele antes que se pudesse pôr de joelhos. O primeiro
aplicou-lhe um pontapé que o derrubou de novo, e os seus dois companheiros debruçaram-se sobre o romano, retalhando-o, um com uma espada curta, o outro com um machado, fazendo o sangue explodir no ar
e salpicá-los.
— Senhor, está tudo bem? — Macro agarrou-lhe o ombro enquanto Cato tentava recuperar o fôlego e assentia.
— Ponha a formação em movimento.
— Sim, senhor. — Macro levantou a cabeça e gritou: — Avançar! Os homens cerraram fileiras, escudo contra escudo, e marcharam em passo lento, com Cato e os sobreviventes da Segunda Centúria a acompanhar
o ritmo no meio da caixa. Os mais rápidos de entre os rebeldes carregaram sobre a retaguarda da formação, desferindo golpes sobre os escudos e tentando abrir caminho por entre as fileiras dos pretorianos.
Mas os guardas mantiveram as suas posições com firmeza, derrubando friamente os mais impetuosos dos seus opositores. Outros correram ao longo das faces da caixa romana, e daí a pouco muitos já a tinham
alcançado e rodeado, num mar de lâminas em movimento, tremeluzentes, e o ar abafado encheu-se com os choques das armas e os gritos de guerra dos rebeldes. Os romanos mantinham-se em silêncio. De faces
fechadas e dentes cerrados, continuavam a mover-se, sob as ordens e ocasionais palavras de encorajamento dos seus oficiais. Cato, ao lado dos porta-estandartes das outras centúrias, mantinha o símbolo
bem erguido. Macro assumiu a sua posição no centro da frente da caixa, movendo o escudo ligeiramente para cima, para o manter na mesma linha das proteções erguidas pelos homens que o ladeavam, mais altos
do que ele, e dedicou um momento a amaldiçoar silenciosamente quem procedia ao recrutamento dos guardas com base na altura.
Tal como sucedera antes, no combate pelas brechas da muralha, o equipamento e treino dos romanos dava-lhes uma clara vantagem, e eles conseguiram provocar inúmeros ferimentos ao inimigo, sofrendo poucos
em troca. O trajeto que tinham seguido era marcado pelo rasto de corpos de inimigos que deixavam para trás. Contudo, à medida que o número dos que os cercavam aumentava rapidamente, o seu ritmo de avanço
diminuía, já que se viam obrigados a abrir caminho por entre os homens à sua frente. Por outro lado, os rebeldes tornavam-se cada vez mais audazes, pressentindo a vitória se conseguissem romper a formação
inimiga, ou pelo menos obrigá-la a parar até que o cansaço dos defensores e o ímpeto dos atacantes acabasse por se impor, e o número de pretorianos fosse diminuindo a pouco e pouco. Cato viu um dos homens
de Musa ser arrastado para fora da formação, quando dois dos rebeldes lhe agarraram no escudo e o puxaram para eles. Antes que o guarda pudesse reagir e recuperar o escudo das mãos dos adversários, um
machado abateu-se sobre ele e praticamente decepou-lhe o braço, deixando-o pendurado e inútil. Um inimigo agarrou-o pelo arnês e puxou-o para fora da linha, e ele desapareceu de vista, enquanto os seus
camaradas cerravam de novo as fileiras e prosseguiam no seu caminho.
A pouco mais de cem passos, as centúrias de Petílio e Porcino formavam também uma caixa, cujas faces se mostravam eriçadas de lanças. Mantendo um ritmo constante, começaram a recuar na direção dos homens
de Pulcher. Cato sentiu-se aliviado ao verificar que eles tinham tomado a iniciativa de adotar uma formação de cariz defensivo antes mesmo que o inimigo os alcançasse.
Todo e cada um dos homens que tinham sobrevivido ao desastre do colapso da primeira muralha ia ser desesperadamente necessário para aguentar a posse da segunda linha de defesa.
Não havia tempo para mais reflexões, já que uma nova vaga de tropas inimigas se lançara sobre a retaguarda da formação de Macro. Cato ouviu os gritos de alarme e virou-se rapidamente, deparando-se com
o enorme guerreiro que servia de adjunto a Iskerbeles a desferir um potente golpe de espada no ombro do centurião Musa, rasgando-lhe a cota de malha e prosseguindo, retalhando-lhe profundamente o peito
e obrigando-o a cair de joelhos. O guerreiro aplicou um pontapé no oficial, deixando-o por terra, e libertou a espada do corpo inerte, lançando de imediato um ataque ao romano à sua direita, lacerando-lhe
o braço que empunhava a espada, antes de o empurrar brutalmente contra o homem que seguia ao seu lado na linha. Abriu-se uma brecha na caixa romana, e mais rebeldes avançaram, pressionando e forçando-a
a alargar-se, até que um primeiro homem conseguiu penetrar no interior da formação e se dirigiu diretamente a Cato.
— Segunda Centúria! Comigo! — ordenou Cato, enquanto firmava os pés e usava a ponta da haste do estandarte para manter o inimigo à distância. Os seus homens rodearam-no imediatamente. — Para a frente!
Um rebelde carregou sobre Cato. Empunhava um escudo redondo e um machado de cabo comprido, que ergueu sobre a cabeça. Levou o braço atrás para desferir o golpe, enquanto soltava o seu grito de guerra.
Cato avançou para o defrontar, e no último momento baixou a ponta do estandarte e cravou-a na perna direita do homem. Apesar de a ponta ser mais decorativa do que funcional, revelou-se tão eficaz como
qualquer lança, e o impacto fez o homem, lançado em corrida, perder o apoio, rodar e cair pesadamente no solo. Cato puxou a ponta e voltou a espetá-la, desta vez nas costelas do rebelde. Fez a haste dançar
de forma rápida, enquanto a ponta abria caminho por entre os pulmões e coração do inimigo, e depois retirou-a e voltou a erguer ao ar o estandarte agora sangrento, continuando a incentivar os pretorianos
a avançar e a obrigar o inimigo a recuar e fechar a brecha na formação.
O líder dos rebeldes viu o perigo e chamou os seus seguidores mais próximos, para que formassem ao seu lado. Os romanos lançaram todo o seu peso sobre os escudos quando embateram contra os rebeldes. Só
o gigante asturiano se aguentou a pé firme, e depois rosnou, enquanto empurrava o romano que tinha tido a audácia de o enfrentar, fazendo com que o homem caísse de costas. Cato não teve tempo de evitar
o soldado caído. A sua bota prendeu-se no ombro do pretoriano, e ele tropeçou. Apoiou de imediato a ponta da haste no solo e conseguiu cair apenas de joelhos, mesmo à frente do guerreiro inimigo.
Com um urro de gozo, o asturiano arrancou o símbolo das mãos de Cato com a mão livre, e levantou-o bem alto, agitando-o, para que os seus seguidores o vissem bem.
O triunfalismo de que deu mostras foi o seu fim, já que os ultrajados pretorianos se viraram contra ele quase como se fossem um só homem, em desespero para evitar a desonra de ver o seu estandarte capturado.
Quatro deles rodearam o asturiano, golpeando e estocando num tal frenesim que não lhe deram qualquer possibilidade de se defender, enquanto recuava dois passos para tentar chegar junto dos seus seguidores,
e o gigante tombou, o sangue a irromper-lhe dos lábios. Mas nem assim os adversários refrearam os seus ataques e continuaram a cravar as espadas profundamente no seu corpo, obrigando-o a cair de joelhos.
Cato aproximou-se dele, retirou-lhe os dedos da haste e recuperou o estandarte. Com a perda do seu líder, os rebeldes hesitaram e, antes que conseguissem reagir, foram varridos da área, e a brecha foi
selada.
A caixa continuou a combater enquanto progredia na direção da muralha interna, onde o resto da coorte a aguardava, por trás de uma parede de pontas de lança. Os homens de Pulcher tinham avançado para
a rampa, e alguns deles já usavam as suas fundas para arremessar metralha contra a massa de rebeldes que rodeavam Cato e os seus homens. Antes que alcançassem a muralha, porém, soaram vários cornos vindos
do torreão, agora ocupado pelo inimigo.
De imediato os rebeldes começaram a recuar, e a debilitada formação romana pôde acelerar o passo para se reunir às unidades ainda intactas da coorte. Os homens de Porcino foram os primeiros a passar para
o lado de dentro da muralha, seguidos por Petílio e a sua centúria. Os pretorianos ensanguentados que tinham defendido as brechas da primeira muralha e combatido no regresso por entre a horda inimiga
foram os últimos a entrar, mas por fim o portão foi encerrado e protegido, com toda a gente a salvo. Cato entregou o estandarte a um dos homens da Segunda Centúria e, ao lado de Macro e dos outros oficiais,
subiu para a frente da muralha.
Os rebeldes não faziam qualquer tentativa de dar continuidade ao assalto, e descansavam calmamente, apoiados nas armas, enquanto os seus feridos eram recolhidos e levados para a retaguarda.
— O que estarão eles a preparar agora? — interrogou-se Petílio. — Porque é que pararam?
— Talvez tenham perdido a coragem — sugeriu Porcino.
— Está-se mesmo a ver — ripostou Macro. — Garanto-vos é que o Iskerbeles tem mais alguma surpresa reservada.
Cato sentiu os membros começarem a tremer, da exaustão e da tensão da batalha. Agarrou-se com força ao parapeito de madeira para esconder a tremura dos braços enquanto tentava adivinhar as intenções do
inimigo. Enquanto observava as linhas inimigas, aproximou-se um cavaleiro vindo do torreão, e os rebeldes abriram-lhe passagem. Cato reconheceu Iskerbeles. O líder inimigo desmontou e caminhou alguns
passos por entre os cadáveres dos seus homens e os dos romanos. Parou e ajoelhou-se, segurando num homem por baixo dos braços, e apoiando-o nos joelhos. Apesar de estarem a pelo menos uns cem passos de
distância, Cato estava certo de que o cadáver pertencia ao gigante asturiano. Era portanto um amigo de Iskerbeles, alguém por quem ele agora sofria. Apesar da situação em que ele e os seus homens se viam,
Cato sentiu-se comovido e levado a um momento de piedade pelo seu inimigo.
— O que é aquilo que vem a entrar pelo portão? — Macro protegeu a vista, para tentar distinguir o artefacto.
Cato desviou o olhar do líder inimigo e avistou um trem de mulas a puxar uma estrutura longa e baixa, com um telhado abaulado. À medida que passava pelo portão, Cato viu as rodas dos dois lados com mais
clareza, e suspirou pesadamente, antes de responder.
— É um mantelete. E a seguir virá com certeza um aríete, aposto. E de facto surgiu a seguir uma pequena coluna de homens, que usavam cordas para transportar o aríete suspenso no meio deles. Mas havia
mais.
Carros carregados de molhos de lenha miúda, e por fim mais vagões com outras estruturas de madeira.
— Têm andado muito ocupados — comentou Macro. — Muito mais do que aquilo que nós podíamos pensar.
Cato soltou uma gargalhada curta e sem humor.
— Justamente quando eu tinha prometido a mim mesmo que não voltaria a subestimar o Iskerbeles. É uma verdadeira pena que aquele homem seja nosso inimigo. Muito jeito nos dariam mais alguns como ele nas
legiões.
— Ou uns tantos como ele a menos entre os que nos vemos obrigados a enfrentar — contrariou Macro.
— Bom, pois, é isso. — Cato revirou o pescoço para combater a tensão que sentia. — Centurião Petílio.
— Senhor? — Os teus homens ainda não entraram em combate. Quero-os na muralha. Os outros podem recuar, pelo menos por agora. Porcino, a tua centúria que empilhe umas pedras por trás do portão. Façam uma
espécie de muro, bem firme e robusto.
— Sim, senhor.
Depois de os dois oficiais terem descido da muralha, Macro falou num tom sussurrado:
— Achas que isso vai servir de muito? — De alguma coisa. Qualquer coisa que nos dê mais tempo é bem-vinda. Se ao menos conseguirmos aguentar até que o Vitélio chegue...
O inimigo não perdeu tempo na preparação da fase seguinte do ataque, e tornou-se evidente para Cato que Iskerbeles era dono e senhor da situação. Sabia perfeitamente o que estava a fazer, e tinha planeado
o assalto final à mina até aos mais pequenos detalhes. O mantelete, um abrigo que consistia numa estrutura de madeira coberta de peles ensopadas em água, foi posicionado precisamente à frente do portão,
a cerca de cem passos de distância. Assim que ficou em posição, o aríete foi colocado no lugar, pendurado da viga que fazia de suporte do teto. A ponta projetava-se cerca de um metro e oitenta para a
frente da barreira, e Cato notou que era revestida de placas de ferro. O portão da segunda muralha não ia conseguir resistir muito tempo ao assalto de um engenho tão poderoso. E, depois de o portão ser
destruído, o inimigo voltaria a atacar em força, trepando também pelas muralhas dos dois lados, assim que tivessem enchido o fosso com os feixes de lenha. A última peça no plano do líder rebelde tornou-se
clara assim que as estruturas de madeira começaram a ser montadas. Iskerbeles tinha tirado o máximo proveito dos saberes daqueles que comandava. E alguns deles tinham por certo aprendido noções de engenharia
nas minas de que tinham sido libertados.
— Catapultas... — observou Macro. — Isto não está nada agradável.
Pouco depois do meio-dia, os preparativos dos rebeldes foram terminados. A equipa designada para o aríete aguardava no exterior da barreira móvel.
Junto às seis catapultas, erguiam-se pelo ar penachos de fumo, vindos de pequenas fogueiras acendidas pelas equipagens de cada uma. O próprio Iskerbeles foi até à frente para dar o sinal para que começasse
o ataque. De imediato, as equipagens das catapultas lançaram os seus pesos contra os mecanismos, e as rodas dentadas rodaram com os seus estalidos típicos, à medida que os braços de lançamento das armas
eram puxados para trás e os cabos, feitos de tendões torcidos, que guardavam a energia necessária para lançar rochas pesadas e outros projéteis ao longo de grandes distâncias no campo de batalha, acumulavam
tensão. Quando todas as máquinas de cerco ficaram a postos, as equipagens colocaram ânforas nas pás de lançamento. O gargalo de cada uma delas estava rodeado de panos. Os rebeldes pegaram em tochas, acesas
nas fogueiras, e atearam-lhes o fogo. Iskerbeles ergueu a espada e levantou-a bem no ar, de forma a que todos os homens junto às catapultas o vissem.
— Graças aos deuses por aquilo que estamos prestes a receber — comentou Macro, antes de lançar um aviso aos defensores. — Atenção. Projéteis incendiários!
Iskerbeles baixou o braço num movimento decidido e as equipagens empurraram as alavancas que libertavam os braços de lançamento, e estes projetaram-se para cima, contra os amortecedores de couro, num
coro desafinado de estalos bem audíveis. As pás soltaram os seus projéteis e as ânforas atravessaram o ar em arcos preguiçosos, marcados por finos rastos de fumo, atingindo o ponto culminante antes de
se precipitarem sobre a muralha interna, e os desesperados pretorianos que a defendiam.
A primeira ânfora abateu-se sobre a muralha, atingindo-a mesmo abaixo o parapeito. O conteúdo espalhou-se sobre a pedra nua, e o fogo cobriu o piche salpicado. Outros três projéteis foram parar mais longe,
desenhando arcos incandescentes, e as duas últimas acertaram em cheio. Uma no cimo do parapeito, estilhaçando as tábuas e lançando piche em chamas sobre Cimber, que não tinha seguido a queda do projétil
e não imitara os seus camaradas, que se tinham afastado apressadamente. Ao ver-se engolido numa torrente de chamas, o homem gritou e cambaleou para trás, caindo pela rampa a rebolar e agitando-se freneticamente
antes de os seus camaradas o rodearem e apagarem as chamas com as mãos nuas e os lenços que usavam ao pescoço.
Mas foi o último projétil que provocou maiores danos, rebentando em plena enfermaria e queimando o médico, dois dos enfermeiros e os homens de cujas feridas tinham estado a tratar. Todos sofreram horríveis
queimaduras antes de serem arrastados para fora das chamas e regados com baldes de água tirada de um dos bebedouros anteriormente usados pelos escravos. O resto dos pretorianos assistiu à cena com horror,
antes de se voltar para enfrentar o inimigo e escutar o som ritmado das rodas dentadas, enquanto as equipagens das catapultas preparavam uma nova rajada. Dos pontos de impacto erguiam-se colunas de fumo
gorduroso, e espalhou-se sobre a coorte um murmúrio, enquanto os homens dirigiam preces aos deuses para que fossem poupados ao cruel destino do médico e dos outros.
— Levem os feridos para mais longe! — Cato deu a ordem aos enfermeiros sobreviventes. — Depressa, malditos!
Enquanto os homens se apressavam a pegar nos feridos e a conduzi-los para a retaguarda, Macro abanou a cabeça.
— Se não fizermos nada quanto àquelas catapultas, estamos fritos.
Cato anuiu, sem ripostar, e depois empertigou-se para não se encolher quando a primeira catapulta a ficar novamente pronta soltou o seu projétil com um estalido bem audível. Ao que parecia, Iskerbeles
tinha alterado o conceito da barragem e permitira às equipagens disparar à vontade. Assim, o bombardeamento tornava-se constante, e não dava descanso aos nervos dos pretorianos, ao contrário do que se
passaria se insistissem nas rajadas simultâneas. Mais homens foram imolados, e novos incêndios se declararam ao longo da muralha, envolvendo quase todo o parapeito. Noutros pontos, os homens atropelavam-se
para fugir da trajetória das ânforas incendiárias e muitos tiveram que ser forçados a regressar às suas posições debaixo dos golpes das varetas empunhadas pelos seus oficiais.
— Não conseguimos aguentar isto muito tempo — decidiu Cato.
— Que escolha temos, senhor? Se ficarmos, enfrentamos este fogo, e não temos água suficiente a postos para apagar todos os focos. Se fizermos uma surtida e tentarmos destruir as catapultas, seremos aniquilados
antes de chegarmos a meio do caminho. E se recuarmos para a mina, só conseguimos adiar as coisas por algumas horas.
Cato sabia que o amigo tinha toda a razão.
— A nossa prioridade tem que ser apagar aqueles fogos. Temos muita água nos tanques lá em cima. Podemos lá mandar uns homens para a trazerem para baixo se precisarmos mesmo... — Cato fez uma pausa, e
depois bateu com a mão na perna, furioso e frustrado. — Que estúpido que eu sou!
Virou-se para Macro.
— Assuma o comando aqui. Prepare-se para atacar, quando chegar o momento.
Cato afastou-se da muralha a passo largo, e Macro lançou uma pergunta: — O quê? O que é que quer dizer, senhor? Cato lançou-lhe um sorriso fatigado.
— Já vai ver.
Depois lançou-se em corrida, enquanto chamava Cristo e os sobreviventes da Segunda Centúria, para que o seguissem em passo rápido. Macro ficou a vê-lo afastar-se, aborrecido com o amigo por o deixar ali
sem lhe dar uma explicação adequada. Depois, quando outra catapulta lançou o seu projétil em fogo, a atenção de Macro regressou de imediato ao perigo iminente e ele seguiu o arco do mesmo, sentindo-se
aliviado quando verificou que não ia aterrar na secção da muralha em que se encontrava. Em vez disso, desfez-se ao pé do bebedouro e envolveu-o em chamas, fazendo afastar os homens que estavam a combater
os focos de incêndio.
— Era mesmo do que estávamos a precisar — rosnou Macro.
O íngreme declive do trilho que levava ao campo mineiro fez sentir o seu peso sobre Cato, que já estava exausto antes mesmo de começar a subida, e Cristo e os seus homens apanharam o prefeito quando este
chegava à abertura na muralha incompleta que vedava o cimo do trilho.
— Senhor, as suas ordens? — indagou Cristo.
Cato estava demasiado ofegante para conseguir explicar e fez simplesmente um gesto para que o acompanhassem enquanto seguia através das casernas da guarnição e depois pelas acomodações dos escravos, até
chegar junto da linha de tanques de água que ficava por trás delas. Subiu ao bordo do primeiro, o mesmo que tinha vertido água uns dias antes, e expeliu a poeira dos pulmões antes de explicar o seu plano
a Cristo e aos seus homens.
— Quero quatro homens nas comportas de cada tanque. Quando der a ordem, quero-as abertas e depressa. Em todos os tanques menos neste. Ou damos ao Macro e aos outros um banho, ao mesmo tempo que aos rebeldes,
e não queremos que o centurião Macro venha por aí acima com a ideia de nos castigar pela brincadeira, pois não, rapazes?
Alguns sorriram, outros anuíram com ênfase, uma vez que já se tinham habituado ao uso liberal que o centurião fazia dos insultos e ameaças.
— Assim que os tanques se esvaziarem, fechem as comportas e regressem à segunda muralha. Não parem por nada. Com um bocadinho de sorte, por essa altura a maré da batalha já terá virado a nosso favor.
Perguntas? Não? Então, aos vossos lugares. E depressa.
Cristo correu pela linha de tanques, distribuindo os homens rapidamente. O mecanismo de abertura era simples. Havia uma roda dentada ao cimo de cada tanque, ao pé da comporta. Enquanto todos se preparavam,
Cato correu até à borda da falésia. O espetáculo do ataque à segunda muralha abria-se aos seus pés, uns sessenta metros abaixo. O fumo erguia-se de vários fogos ao longo da muralha, e a diminuta e atarracada
figura de um soldado a arder e a cambalear para fora de um mar de chamas prendeu a atenção do prefeito por um momento, antes de ele virar o olhar para o inimigo. Vista de cima, era fácil apreender realmente
a escala da horda que esmagava em termos numéricos a coorte pretoriana. Pelo menos dez mil homens se viam apinhados por trás das catapultas, um mar de humanidade enraivecida e fanatizada, que mal continha
a impaciência de se lançar sobre os romanos que defendiam a mina e varrer cada um deles da face do mundo. À direita de Cato ficava a muralha ultrapassada, e mais longe havia um rasto de pequenos grupos
que se moviam lentamente a caminho do campo rebelde; os feridos das refregas anteriores. No campo propriamente dito estavam talvez mais uns dois ou três mil dos seguidores de Iskerbeles, sobretudo mulheres,
crianças e os que eram já demasiado idosos ou doentes para combater.
Uma série de estrondos atraiu de novo a atenção de Cato para o assalto à segunda muralha, e ele viu três projéteis incendiários a atingirem o ponto mais alto do seu trajeto pelo ar, uns vinte metros abaixo
do local onde se encontrava, o que lhe permitia ver com clareza as chamas que rodeavam o gargalo de cada ânfora. No ponto mais alto pareceram ficar suspensas, antes de se precipitarem sobre a muralha,
duas delas caindo para lá dela e fazendo dispersar os homens que as viram a cair. A terceira atingiu o portão e espalhou labaredas sobre ele, envolvendo a torre sobranceira em fumo, o que fez os rebeldes
soltarem uma enorme aclamação e brandir as armas.
Cato correu de volta aos tanques, subiu à orla do segundo e virou-se para Cristo e os outros.
— À minha ordem... Os homens agarraram firmemente nas rodas dentadas e prepararam-se.
— AGORA! As rodas giraram com estalidos que foram rapidamente abafados pelo som da água a correr e a escapar-se por baixo das comportas. A princípio, seguiu pelos canais já existentes, enquanto se aproximava
da beira da falésia; depois, como as comportas continuaram a subir acima do ponto habitual nos procedimento mineiros, a corrente engrossou e transformou-se numa torrente raivosa que saiu dos canais e
escavou o terreno em volta, levando consigo o solo superficial e as rochas, tornando-se uma maré borbulhante que rugia à medida que se precipitava para a orla do precipício e sobre o inimigo lá em baixo.
A frente da torre já estava rodeada de chamas e envolta no fumo do incêndio que consumia o portão por baixo dela. Macro e os outros homens no cimo da estrutura tinham-se visto obrigados a recuar, e o
centurião precisara de usar o braço para proteger o rosto do calor asfixiante.
— Saiam daqui! — gritou aos outros. — Abandonem a torre. Vão! Os pretorianos não precisavam de mais encorajamento, e desapareceram pelas escadas abaixo o mais depressa que puderam, afastando-se do inferno
crescente. Macro foi o último a deixar a estrutura, com os olhos quase cerrados perante o calor que lhe chamuscava a cabeça e as áreas de pele expostas. Assim que desceu abaixo do piso do torreão, a estrutura
protegeu-o das chamas e ele pôs-se rapidamente a uma distância segura, enquanto via as labaredas a engolirem o portão, ao lado de outros pretorianos.
— Agora é que estamos mesmo fodidos — comentou Pulcher. — Quando aquilo ali amainar, não deve sobrar grande coisa para eles destruírem.
— É esse mesmo o espírito — ripostou Macro, num tom seco.
Pulcher mordeu o lábio.
— Talvez seja altura de pensar numa rendição.
— Rendição? — Macro arqueou uma sobrancelha. — Àquela maralha lá fora? Não me parece. Duvido muito que essa ideia lhes interessasse sequer...
Seja como for, tinha a impressão de que a Guarda morre, mas nunca se rende.
Pulcher cuspiu para o lado.
— Isso é conversa da treta, nada mais. Nesse momento, Macro deu conta de uma alteração no ruído da batalha.
As chamas ainda rugiam, mas havia outro som. Um gemido coletivo e o som de alguma coisa a correr do outro lado da muralha. Franziu o sobrolho e trepou à muralha para se juntar aos homens por trás da paliçada,
todos com o olhar preso à falésia à direita.
A princípio, Macro não conseguiu perceber bem o que estava a ver. A água precipitava-se em cascata de vários pontos na beira da falésia, e tombava por ela abaixo. Mas de repente a corrente espalhou-se
por todo o comprimento da falésia, como se o próprio mar se tivesse erguido para afogar a mina. Grandes pedaços de solo e rocha saltaram da cornija e precipitaram-se pelo meio da enxurrada. As torrentes
de água lamacenta espalharam salpicos por todo o lado ao embaterem na base da falésia, e depois prosseguiram na direção da ravina, inundando o terreno onde os rebeldes estavam, a contemplar a cena, como
que hipnotizados pelo choque, os queixos tombados perante o espetáculo da catástrofe que se abatia sobre eles. O poder aterrador da inundação atingiu-os antes de terem tempo de se virarem e fugirem, derrubando
grandes números de homens e levando-os de encontro a outros, que eram também arrastados. Corpos rebolavam sem se conseguirem equilibrar. Os que estavam nos flancos da horda largaram as armas e correram.
Alguns na direção da segunda muralha, outros para a muralha que tinham tomado antes, e muitos outros tentaram correr à frente da água que continuava a subir, na direção da ravina, só muito tarde se apercebendo
de que naquela direção apenas podiam encontrar a morte.
Macro ficou a ver como os rebeldes desesperados tentavam deter-se à beira da ravina, mas eram empurrados para o precipício pelos que os seguiam e tentavam manter-se à frente da inundação. Centenas deles
tombaram, e os seus gritos e uivos conseguiam fazer-se ouvir sobre o rugido da água e o crepitar das chamas que continuavam a devorar o torreão. Grandes bocados da falésia ruíam a todo o instante e escorregavam
pela face da montanha, arrastando enormes blocos que rebolavam como se fossem pedaços de cortiça num riacho. A água alcançou as catapultas, rodeou-as, subiu por cima das estruturas de madeira e depois
acabou por arrastá-las, a rodar vagarosamente, embatendo umas nas outras e esmagando alguns membros das equipagens que não tinham conseguido escapar. Grandes nuvens de vapor ergueram-se por momentos dos
fogos que tinham sido usados para acender os projéteis, mas depressa desapareceram.
Do seu ponto de observação privilegiado, na sua sela, Iskerbeles via tudo o que estava a acontecer, e percebeu que a sua rebelião estava condenada, esmagada num único golpe, no preciso momento em que
estivera à beira de uma tremenda vitória. Macro notou-o na postura do corpo do inimigo, antes de ele pressionar com os calcanhares e incitar o cavalo na direção da segunda muralha. Estava já a meio caminho
quando a onda alcançou a montada, e no momento seguinte os cascos do animal chapinhavam na água, levantando salpicos, até que o nível da água subiu e obrigou o animal a reduzir o andamento. O líder rebelde
quase tinha chegado ao fosso quando a altura da água se tornou demasiado grande, e o cavalo perdeu tração e começou a escorregar e a ser arrastado pela insuperável corrente, soltando relinchos assustados.
Iskerbeles saltou da sela e tentou nadar na direção do fosso, sendo apanhado na corrente que descia por aquele lado, que o fez rodar. Foi arrastado ao longo de alguma distância pela outra face do fosso
e agarrou-se a uma das estacas cravadas nas fundações rochosas da muralha. Segurou-se com toda a determinação, enquanto o corpo era castigado pela torrente. O cavalo mantinha-se à tona, a crina revolta
e os cascos a pontapear a água, até chegar à borda da ravina e ser levado também para longe da vista.
A tudo isto Macro assistiu com uma sensação de assombro e cruel satisfação, mas também piedade. Piedade por todos aqueles que momentos antes vira como inimigos que tinha de destruir e morrer a combater,
se tal fosse necessário. Naquele momento eram apenas seres humanos, apanhados num desastre terrível, numa escala que nenhum deles podia alguma vez ter sequer imaginado. E que nunca poderiam relatar, à
parte os poucos que talvez conseguissem sobreviver-lhe. A parte mais forte da corrente dirigia-se à ravina, numa torrente lamacenta de homens, rochas e vegetação arrancada. Nada se podia opor à sua passagem,
e Macro viu como os que tinham conseguido refúgio na orla da ravina se viravam e esperavam impotentes até serem engolidos pela onda e arrastados para o fundo, para serem feitos em pedaços pelas fragas
lá em baixo.
A pouco e pouco, a torrente que descia pela falésia arruinada começou a diminuir, e o fluxo reduziu-se até restar apenas uma fina cortina de água de um vermelho-acastanhado, que depois passou a uma série
de pequenos fios que desciam a encosta e escavavam os seus canais. Tanto material tinha entrado em derrocada na falésia que Macro conseguia avistar a borda de um dos tanques lá em cima. Vários vultos
se viam a comprovar a devastação que tinham provocado, e um deles usava o capacete com a crista de prefeito, o que deixou Macro aliviado.
Pulcher, junto a Macro, deixou escapar um comentário enquanto abanava a cabeça, aterrado.
— Doce Júpiter...
Macro assentiu, e depois apontou para o torreão.
— E conseguiu apagar o fogo. Excelente trabalho, Cato.
Depois espreitou por cima da muralha e viu que Iskerbeles ainda ali estava, agarrado à estaca.
— Bom, primeiro o mais importante. Vamos lá acorrentar aquele cabrão.
Cato apressou-se a reunir os homens da Segunda Centúria e a conduzi-los desde o campo para se juntarem ao resto da coorte. Enquanto marchavam, olhou de relance para Cristo. O tribuno ainda estava coberto
de pó, e sangrava de uma dúzia de cortes e ferimentos menores. O ar de espanto que tinha exibido depois do colapso da muralha exterior desaparecera, e fora substituído por uma expressão fechada de fria
determinação. Já não era o folgazão vindo da capital, e tinha-se por fim transformado num soldado, experimentado em combate. Embora Cato se sentisse certo de que nunca poderia encontrar no seu coração
o perdão para o homem que tivera um caso com Júlia, tinha, para sua própria surpresa, descoberto um certo respeito por Cristo. A seu tempo, o homem até se poderia vir a tornar num oficial decente. Se
não se fizesse matar antes, nalguma zaragata com um marido ciumento, concluiu Cato.
Assim que regressou à muralha interna, Cato deu ordens para que os homens que restavam à coorte formassem e se preparassem para avançar pela área da mina, para recolher e eliminar os sobreviventes dos
rebeldes.
Iskerbeles, completamente ensopado, todas as suas esperanças destroçadas, estava sentado num silêncio atordoado, de mãos fechadas sobre o rosto. Quatro homens foram destacados para ficar a guardá-lo,
enquanto a coorte saía pelo torreão semicalcinado e atravessava o fosso, enveredando pela paisagem que sofrera uma enorme transformação desde que o Sol tinha nascido sobre ela, havia poucas horas. A falésia
tinha desaparecido, e soterrado inúmeros túneis, ao mesmo tempo que pusera outros a descoberto. O terreno à frente da mina era agora um cenário lamacento, repleto de charcos, ligados por pequenos fios
de água. Muita da orla da ravina tinha sido também varrida pela torrente, e por todo o lado se viam escudos e armas semienterrados no solo revolto. Também havia corpos, alguns ainda vivos, a tentarem
libertar-se da lama e a vaguearem por ali, completamente atarantados. Duas ou talvez três centenas de homens tinham conseguido escapar à inundação e haviam alcançado o porto seguro da primeira muralha.
Sem líder e ainda assombrados, ficaram a ver a coluna romana a sair do portão distante, antes de se voltarem, se esgueirarem pelas brechas e desaparecerem.
Para Cato, o que mais impressionava naquele cenário de pesadelo era o sossego. O ruído ensurdecedor das aclamações dos rebeldes tinha sido apagado, bem como o rugir das chamas e os estalos das catapultas.
Atrás dele, as botas dos pretorianos chapinhavam na lama e nos charcos, mas nenhum homem soltava mais do que um murmúrio. Cato deteve a coluna uns cem metros para lá da muralha, e deu ordens a Petílio
e Porcino para levarem os seus homens e perseguirem o inimigo até ao acampamento, antes de recuarem para a muralha arruinada e manterem essa posição. Pulcher e o resto dos homens receberam indicações
para varrer o terreno em busca de sobreviventes inimigos e conduzirem-nos às acomodações dos escravos. Os pretorianos dispersaram em grupos de um e dois, avançando cautelosamente pelo mar de lama e detritos.
Macro manteve-se ao lado de Cato, e o prefeito avançou até ao limite da ravina, onde o terreno se mostrava precário.
Antes, a largura da ravina tinha sido, nalguns pontos, de perto de cinquenta passos. Agora a distância até ao outro lado era o dobro do que fora, e os dois oficiais contemplaram uma cena com um extraordinário
grau de destruição.
Milhares de corpos retorcidos jaziam por entre as rochas e penhascos espalhados pelo curso do rio. Alguns, muito poucos, ainda viviam, e outros tentavam progredir a custo sobre as pilhas de cadáveres
dos seus camaradas mortos, seguindo para jusante, para a saída da garganta.
— Quase desejava não o ter feito — murmurou Cato.
Macro fungou, afastando qualquer remorso.
— Bem, por mim estou muito feliz por o teres feito, e imagino que o resto dos rapazes partilha a minha opinião. Eram eles ou nós, Cato. Como é sempre.
E chegados a esse ponto, seja como for, prefiro que sejam eles.
— Mesmo neste caso? — Cato fez um gesto abarcando a cena aos seus pés.
Macro anuiu.
— Evidentemente.
Cato não estava tão certo. Uma vitória no campo de batalha era uma coisa.
A aniquilação de um inimigo àquela escala era outra, muito diferente.
— Macro, encarregue-se dos prisioneiros que possam ser capturados.
Veja se não são maltratados. E garanta que são alimentados antes de serem aprisionados.
— Sim, senhor. Será feito como deseja.
Cato voltou-se, tirou o capacete e caminhou lentamente na direção das falésias, incapaz de sacudir aquela melancolia que o prendia. Então, ao olhar para o que restava das encostas lamacentas, parou a
meio de um passo. Embora a paisagem estivesse completamente alterada, ainda era possível calcular a localização de alguns dos túneis. Seguiu caminho, a passo acelerado desta vez, enquanto se dirigia para
os montes de terra e pedras soltas que marcavam a linha onde estivera antes a base da falésia. Avançou cautelosamente sobre montes de solo escorregadio e por entre blocos que tinham deslizado da falésia.
Aqui e ali deparou-se com escoras e vigas de teto, nas zonas dos túneis que haviam sido expostos pela torrente.
E daí a pouco deu com aquilo que procurava. O canto de um baú reforçado surgiu por entre a lama, coberto por pó. A curta distância via-se a face superior de outro. Cato debruçou-se sobre ele, limpando
rapidamente o solo solto, até avistar uma pega. Pousou o capacete e puxou por ela, uma e outra vez, com toda a força, mas o cofre não se mexeu. Soltou uma imprecação em voz baixa, e depois pegou na espada
e começou a escavar ao redor do baú, até expor a maior parte dele. Voltou a puxar, e desta vez conseguiu soltá-lo, com um som de sucção gelatinosa e com uma reação que o fez cair de costas, aterrando
com o rabo num charco e levantando salpicos.
O coração batia-lhe com força, na excitação da descoberta, e riu-se perante a sua queda atrapalhada, antes de se levantar e examinar o cofre. Encontrava-se fechado, mas um dos cantos tinha sofrido o impacto
de um rochedo, e estava estilhaçado. Cato voltou a empunhar a espada, conseguiu enfiar a ponta da lâmina na fenda da tampa e desfez um bocado de madeira. Ao libertá-la, obteve espaço para trabalhar noutro
pedaço, e continuou até conseguir abrir um buraco suficientemente grande para meter por lá a mão. Embainhou a arma e começou a apalpar o interior; os seus dedos fecharam-se em torno das formas irregulares
do que lhe pareceram ser pedras. Retirou a mão e abriu-a, para revelar precisamente isso: pedras. Nada de prata.
Uma sombra surgiu na lama reluzente ao seu lado, mas antes que Cato pudesse reagir, recebeu uma forte pancada na cabeça. Viu um clarão branco e sentiu o ar a sair-lhe dos pulmões, enquanto caía no solo.
Gemeu e piscou os olhos, rebolou até ficar de costas, e viu um vulto que se interpunha entre ele e o céu de um azul brilhante. Voltou a fechar o olho e virou o rosto para o lado, para evitar o brilho
do céu.
— Quem é? Uma mão adiantou-se para lhe retirar a espada da bainha, e só depois o homem que o tinha atacado se agachou a uma distância segura. Era Pulcher.
— Quem mais pensaste tu que podia ser? — O centurião lançou um sorriso frio.
— Porquê? — Porque agora sabes uma coisa que nunca devias ter sabido.
— Sobre a prata que o Nepo escondeu dos rebeldes? — Só que ele não o fez. São só pedras. Ele retirou a prata antes de mandar os homens enfiar os cofres na mina e fazer desabar os túneis.
— Onde está? — A prata? — Pulcher coçou o queixo, quase sem dar por isso. — A esta hora já deve ter chegado a Tarraco e estar a seguir para Roma.
Cato franziu o sobrolho sem compreender, e Pulcher soltou uma risada.
— Ora, prefeito, já vais perceber tudo. Lembras-te do mercador de escravos que encontrámos pelo caminho? As carroças que ele levava? Era nelas que estava escondida a prata. Soube isso pelo Nepo, antes
mesmo de o despachar.
Antes que ele te contasse isso tudo.
— Não percebo — disse Cato. — O que é que o Nepo andava a preparar? — Estava a trabalhar para o Pallas, mas para quê preocupares-te com isso, rapaz? Daqui a pouco estarás morto. Vou esconder o teu corpo
e, quando for encontrado, já as coisas terão seguido o seu caminho, e ninguém se preocupará com o teu desaparecimento.
— Matar-me? Porquê? — Ordens do legado, rapaz.
— Do Vitélio? Mas antes salvaste-me a vida.
— Nessa altura não tinha ordens para te matar. Eras um camarada, e faria o mesmo por outro homem qualquer que estivesse a combater ao meu lado.
Mas ordens são ordens. Assim que o Coleno me passou a palavra, era como se já estivesses morto. Adeus. Senhor.
Pulcher pegou na espada de Cato e ergueu-se.
— Não! — gritou Cato sem grande força, com a cabeça ainda a zunir da pancada. — Espera!
— Desculpa. Isto já estava para acontecer há muito. Não passavas de um optio ranhoso quando nos cruzámos há tantos anos. Se tivesse tido ocasião nessa altura, tinha-te despachado logo. Só posso concluir
que quem espera sempre alcança, afinal.
Cato rolou até ficar de costas, e levantou os braços para se tentar proteger.
Mas Pulcher dominava-o, e puxou o braço atrás, preparando-se para cravar a ponta da espada no pescoço de Cato. Porém, em vez disso, vacilou de repente, abriu a boca num grunhido de surpresa e deixou pender
o braço que empunhava a espada. Um longo e baixo gemido escapou-se-lhe dos lábios, à medida que caía de joelhos, revelando a presença de Macro nas suas costas. O centurião colocou a mão esquerda com firmeza
no ombro de Pulcher e depois libertou a espada do pescoço do homem, do ponto onde a tinha cravado em diagonal, direta ao coração. O sangue jorrou da ferida.
— Se tencionas matar um homem, meu estupor, então mata-o. Não te ponhas à conversa com ele.
Pulcher tombou sobre a lama ao lado de Cato, os olhos arregalados e fixos, a boca a abrir e a fechar lentamente, como a de um peixe fora de água, a expirar.
Macro ajudou o amigo a sentar-se, e soprou baixinho.
— Grande galo que aí tens. Para juntar à cicatriz e ao penso por cima do olho. Cato, estás um destroço. A sério.
Cato sorriu sem grande vontade.
— Devia ver o estado em que ficou o outro tipo...
À primeira luz da manhã seguinte, uma coluna de cavalaria aproximou-se do que restava da primeira muralha e atravessou os portões, entrando para a área dos trabalhos mineiros, completamente arruinada.
Cato tinha sido alertado pelas sentinelas, e estava lá para receber o legado e os oficiais do seu estado-maior. Os últimos dos rebeldes tinham abandonado o acampamento durante a noite, deixando para trás
abrigos e tudo o que não tinham conseguido transportar, por muito valor que tivesse.
Vitélio olhou em redor, sem disfarçar o choque perante a escala da devastação, antes de se dirigir a Cato. O prefeito manteve-se firme, ainda sujo pela terra devido à derrocada da contramina, manchado
de suor e sangue, uma ligadura imunda e uma pala sobre o olho ferido, para lá de um novo penso no corte que recebera no crânio às mãos de Pulcher.
— Pelos deuses, prefeito Cato! Nem te reconhecia. Nem sequer esperava encontrar-te vivo.
— A sério, senhor? A expressão de Vitélio ficou estagnada por momentos.
— Sim, com toda esta destruição na povoação e depois de avistar as brechas na muralha quando passámos a crista esta manhã. E por Hades, o que aconteceu à mina? Parece que não sobrou nada.
— Por vezes é preciso destruir uma coisa para conseguir salvá-la, senhor.
— Estás a tentar ser engraçado? — Não, senhor. A mim, parece-me uma descrição perfeitamente correta. — Para Cato, a perspetiva de ver a mina encerrada para sempre, ao invés de continuar a ser um lugar
de indescritível sofrimento, era muito tentadora.
Claro que havia outras minas, tão más ou se calhar piores do que aquela tinha sido. Mas pelo menos haveria uma a menos.
— Quantos dos teus homens perdeste, prefeito? — Pelo menos um terço da coorte, senhor. Tal como o Cimber, e os centuriões Secundo, Musa e Pulcher.
— O Pulcher? Como? Cato preparava uma resposta quando Macro se antecipou.
— Morto em combate, senhor.
— Estou a ver. — Vitélio assentiu e instalou-se um breve silêncio, como se ele esperasse mais detalhes. Depois olhou de novo em volta das instalações da mina. — Bem, parece que cumpriste as tuas ordens
com sucesso. A prata?
— Não está cá, senhor — retorquiu Cato. — Ao que parece, foi retirada daqui antes da chegada da minha coorte.
— Retirada? — Sim.
— Pelo Nepo? — Ao que tudo indica, sim, senhor.
— Sabes o que lhe aconteceu? Cato olhou para ele sem pestanejar.
— Creio que o seu palpite será tão bom como qualquer um dos meus. Os lábios de Vitélio remexeram-se, denunciando o que se passava no interior da sua mente, mas ele optou por mudar de assunto.
— E quanto aos rebeldes? Onde estão? Cato apontou para a ravina.
— A maior parte deles jaz por ali, senhor. Mortos.
— Mortos? Quantos? — Vários milhares, pelo menos. Os oficiais murmuraram entre eles, incrédulos. Vitélio abanou a cabeça e soltou uma gargalhada.
— Estás a brincar. Não é?
— Veja por si mesmo. Os que não morreram, fugiram de volta às suas aldeias.
— E resolveste não os perseguir? — Com tão poucos homens, resolvi, senhor. Além disso, estávamos demasiado cansados para conduzir uma perseguição. A revolta foi esmagada.
Acabou. Será melhor concentrarmo-nos em reconstruir a região e permitir que todos ponham o passado para trás das costas. O que sobrou dos rebeldes espalhou-se pelas colinas. Não faria sentido tentar persegui-los,
senhor.
— Isso é a mim que compete decidir.
— Há uma outra coisa. Fizemos o líder da revolta prisioneiro.
— O Iskerbeles? Excelente! — Vitélio mostrou-se satisfeito. — Terei um enorme orgulho em apresentá-lo ao povo romano quando regressarmos à capital para celebrarmos esta nossa vitória.
— Nossa vitória? — murmurou Macro em voz baixa.
Vitélio deitou-lhe um olhar ameaçador.
— Disseste alguma coisa, centurião Macro? — Disse, ”Nossa, a vitória!”, senhor. — Macro deu um jeito à cabeça e lançou um movimento pouco entusiasmado com o punho no ar. — Não há nada de que o público
romano mais goste do que de uma vitória. Ficaria muito surpreso se o Imperador não lhe concedesse um triunfo, senhor.
Vitélio voltou a contemplá-lo, e sorriu.
— Também eu ficaria surpreso, centurião Macro. Também eu. No fim, tudo se resolveu melhor do que alguém alguma vez poderia ter esperado...
EPÍLOGO
Porto de Ostia, 54 d. C., princípio do outono
O comboio de transportes de tropas e navios de guerra vindos de Tarraco passou pelo molhe e entrou nas calmas águas do porto pouco depois do meio-dia, aproveitando o vento fresco que soprava de ocidente.
O ano já ia adiantado, e uma viagem direta da Hispânia para a península era arriscada, pelo que capitães e tripulações estavam mais do que aliviados por terem tido a sorte de evitar tempestades ou borrascas
durante os dez dias que tinham passado no mar. O vento caíra por completo no dia a seguir a terem zarpado de Tarraco, e durante os primeiros três dias da viagem quase não tinham feito qualquer progresso,
até que por fim o vento mudara. Também não tinham avistado quaisquer outras velas desde que haviam deixado a província. A comida e a água tinham começado a escassear, e tanto as tripulações como os pretorianos
que seguiam na pequena frota aguardavam ansiosamente o momento da chegada e do desembarque, para poderem finalmente embebedar-se e arranjar companhia feminina nas casas da especialidade em Ostia.
Macro debruçava-se sobre a amurada da proa da birreme que transportava os oficiais sobreviventes e alguns dos homens da Segunda Coorte Pretoriana. Já estava mais do que farto do ar salgado do oceano e
tentava identificar os cheiros mais familiares e reconfortantes que denunciavam a aproximação a terra. Naquele caso, o odor acre da madeira queimada e o aroma almiscarado que se desprendia de uma cidade,
e que parecia, à distância, denunciar uma mistura de suor e vegetais cozinhados.
Cato aproximou-se, vindo da ré do navio. A ferida no olho estava a recuperar bem, segundo o médico de uma das outras coortes, que tinha tratado do caso depois da substituição da guarnição da mina. Tinha
uma bem vincada cicatriz por baixo do olho, e na parte de baixo do seu campo de visão sentia uma permanente neblina. Para lá disso, o médico declarara que tinha recuperado, e que tivera muita sorte por
não ter perdido a visão daquele olho. Era esquisita a forma como os médicos do exército pareciam acreditar que todos aqueles que tratavam eram pessoas de sorte, considerou Cato. Teria preferido ter uma
experiência da boa fortuna um tanto ou quanto mais convencional.
— E cá estamos de novo em Ostia. Mal posso esperar por uma bebida decente — pronunciou Macro, enquanto esfregava as mãos uma na outra. — E poder sentar-me à frente de um belo fogo quente, com uma boa
refeição à minha espera, e uma bela fêmea de formas redondas ao meu colo.
— Parece-me que recordo que da última vez que aqui estivemos estava decidido a não correr o risco de um esquentamento.
— Depois de todos os riscos que enfrentei nos últimos meses? Acho que já tenho direito a um momento de boa sorte.
— Talvez. De qualquer forma, os prazeres mais simples são sempre os melhores — replicou Cato.
— Não há nada de simples no que planeio, depois de despachar a comida.
— Macro piscou um olho. — E tu, o que planeias?
— Eu? — Cato encolheu os ombros. — Vou voltar a Roma. Gostava de ver o Lúcio. E depois tirar algum tempo para pensar seriamente no que se segue.
— O que se segue? — Macro franziu o sobrolho. — Ora, vamos ser recolocados algures, os dois. Outra campanha. Ou isso ou um posto numa guarnição tranquila, num lugar quente e exótico. É isso que se segue,
meu irmão. Desde que haja justiça. Já fizemos a nossa parte, e dava-nos jeito um pouco de paz e sossego.
— Sim, um pouco de descanso saber-me-ia bem. Mas acho que gostava de ver o Lúcio a crescer durante algum tempo. Lançar raízes, talvez. Se o Semprónio me conseguir arranjar um posto na administração, ou
emprestar-me dinheiro para começar um pequeno negócio.
Macro abanou a cabeça.
— Mas o que sabes tu de gerir um negócio? Sim, tens jeito para comandar uma coorte, mas um negócio? Isso, meu amigo, exige um grau de astúcia impiedosa que é raro encontrar neste mundo. Sobretudo em Roma.
Um antro de ladrões e vigaristas, que te cravariam um punhal nas costas com a mesma facilidade com que te apertariam os braços pela frente. Comiam-te vivo.
— Talvez...
— Não há nenhum talvez. Estarás muito mais seguro se continuares a carreira militar. E em termos financeiros, isso é certo, com o teu salário.
— Isso é verdade, realmente.
Foram interrompidos pelos gritos do trierarca, que ordenava à tripulação que recolhesse a vela e se preparasse para lançar os remos. Os marinheiros treparam apressadamente ao cordame e espalharam-se pela
verga, soltaram os cabos e deixaram o pesado pano a esvoaçar ao vento. À medida que a vela ia sendo recolhida, os remos surgiam dos dois bordos do casco, e um tambor começou a fazer-se ouvir, para marcar
o ritmo a que as pás avançavam, desciam para a água e depois faziam a embarcação deslizar pela superfície líquida.
O cais principal do novo porto ficava a curta distância do outro lado da enseada, e o navio foi orientado para um espaço entre duas birremes que já tinham atracado. Quando se aproximou, surgiu a ordem
de recolher os remos, e foi lançada a pá do leme, para fazer o navio rodar e encostar-se lentamente ao cais, enquanto perdia velocidade. Os cabos de atracação serpentearam pelo ar até chegarem às mãos
dos que os esperavam nas outras birremes, e o navio foi puxado e preso na posição indicada.
Pouco depois, Macro foi o primeiro a desembarcar. Assim que pôs o pé nas pedras do cais, sentiu a peculiar sensação de continuar no mar, e foi com um passo pouco firme que se dirigiu à porta aberta do
Tesouro de Neptuno. Os movimentos de Cato não eram mais coordenados, e os dois homens sentaram-se num banco com evidente alívio, antes de chamarem uma das criadas.
— Meu amor, um jarro de vinho — solicitou Macro, de bom humor. — Duas taças, e serve-nos com o teu melhor sorriso, desde que isso não faça o preço subir.
Ela deitou-lhe um olhar desconfiado, e foi buscar o pedido. Macro olhou em redor do bar e reparou que a disposição dos outros frequentadores era menos exuberante do que ele esperava num estabelecimento
tão bem situado.
— Deuses, o que aconteceu a esta espelunca? Toda a gente parece que perdeu uma fortuna.
Cato assentiu.
— Sim, o ambiente está estranho, é verdade.
A rapariga regressou com o jarro e as taças e pousou-os na mesa. Macro acenou um obrigado e sorriu-lhe com vontade.
— Alegra-te, pode ser que isso que temes não venha a acontecer.
Ela fez uma careta.
— O senhor está a tentar ser engraçado? — Engraçado? Não. Feliz, sim. Portanto, explica-nos lá o que é que se passa aqui? O que é que aconteceu a toda a gente?
— Onde é que passou o último mês? — No mar, por acaso. Acabo de desembarcar.
— Oh... — Ela arregalou as sobrancelhas. — Nesse caso, ainda não soube das notícias.
— Que notícias? — indagou Cato.
Ela encheu-lhes as taças.
— Temos um novo Imperador. Cláudio morreu.
— Morreu? — Cato ficou assombrado. — Como? — Da idade... Intoxicação alimentar. Quem sabe? Seja como for, o Imperador agora é aquele filho dele.
— O Britânico? — Não, o que ele adotou. O Ahenobarbo. Ou Nero. Seja lá qual for o nome que ele usa hoje em dia. É esse. Diz que vai tomar conta do seu irmão de adoção mais novo, e não duvido. Os dias
do pobre miúdo estão contados. Vai levar o mesmo destino dos outros todos. Pelo que ouvi, foi uma verdadeira limpeza no palácio. Um bom número deles teve um mau fim.
Incluindo aquele liberto do velho Imperador, o Narciso. Foi para o outro mundo ainda antes do seu senhor. E a todo o momento há outros a juntarem-se-lhe. E é por isso... — Fez um gesto a designar os outros
clientes. — Ninguém quer chamar a atenção dos vigilantes aqui em Ostia. E o mesmo se passa em Roma, onde as coortes urbanas e os pretorianos andam a apanhar todos os que levantam problemas.
Cato passou a mão pelo cabelo, enquanto absorvia a noção de que o regime tinha mesmo mudado.
— Então houve muita oposição ao facto de o Nero ter ficado com o púrpura?
A rapariga abanou a cabeça.
— Nem por isso. A maior parte dos que podiam ter apoiado o Britânico estavam longe de Roma quando o pai dele morreu. E quando a Guarda se pronunciou a favor do Nero, ficou tudo resolvido de vez. Mas também,
com o tamanho do donativo que o Nero entregou aos pretorianos, não havia muitas dúvidas sobre quem iriam eles escolher servir. Nem mais nem menos do que dez milhões de denários.
— Dez milhões? — Macro espantou-se. — Mas isso não é...
Cato agarrou-lhe o braço rapidamente, e começou a falar à pressa por cima do que o amigo dizia.
— Dez milhões? Tens a certeza? Ela assentiu.
— Não é um grande segredo. Toda a Roma sabe disso.
A rapariga pousou o jarro.
— Querem que vos traga mais alguma coisa? — Não. Por agora é tudo. Obrigado. — Cato deu-lhe um sestércio de gorjeta, e ela sorriu agradecida, antes de voltar para o balcão, circulando por entre as mesas.
Cato encostou-se à parede e cruzou os braços, enquanto pesava as implicações de tudo o que sucedera em Roma durante a sua ausência. Quanto mais pensava, mais se apercebia da complexidade dos planos que
Pallas traçara para se assegurar de que o seu jovem protegido ascendia ao trono.
Macro sorveu um bom trago de vinho e fê-lo rolar no interior da boca antes de o engolir.
— Miúdo, estás a pensar o mesmo que eu? — Não consigo pensar noutra coisa. Fomos bem usados. Todos nós. Desde o Imperador Cláudio e o Narciso, por aí abaixo até chegar a si e a mim, na ponta do cu do
Império... Foda-se. Por isso é que fomos escolhidos para esta campanha. Nós, e os outros todos. Os oficiais que eles não queriam por perto quando fizessem a sua jogada. Incluindo aqueles a que o Narciso
poderia recorrer se resolvesse mesmo tentar forçar a candidatura do Britânico ao trono.
Macro fungou.
— E por isso é que o Vitélio nos escolheu para ir para a mina. Devia ter sido uma viagem sem regresso para ambos... O Iskerbeles ou o Pulcher haveriam de garantir que nós nunca mais voltávamos a ver Roma.
E depois há a questão da prata. O Nepo deve ter estado metido no assunto. Por isso é que a despachou, enquanto fingia que estava a reunir a quantidade suficiente para um comboio. E por isso é que teve
de ser silenciado.
Cato coçou o queixo, ansioso.
— Precisamente. Agora, tudo faz sentido. — Ficou em silêncio por momentos, antes de voltar a falar, desta vez num tom tão baixo que só Macro o conseguia escutar. — Estamos metidos num grande sarilho.
O Narciso está morto, e o Pallas sabe muito bem que trabalhámos para ele, de tempos a tempos. Somos homens marcados.
— Mas não tivemos escolha — protestou Macro. — O Narciso obrigou-nos a isso.
— Duvido que isso interesse muito ao Pallas... Foda-se.
Macro bebeu mais um trago, e suspirou.
— É como dizes, foda-se. Bem, miúdo, o que é que vamos fazer? Cato pensou por momentos e depois abanou a cabeça.
— O que é que podemos fazer? Temos que regressar a Roma, e depois ver o que vai acontecer. Meu irmão, o melhor será fazermos algumas oferendas aos deuses. Alguma coisa de valor suficiente para que eles
não a possam ignorar.
— Cato pegou na taça e esvaziou-a de um trago, antes de voltar a pousá-la na mesa com um gesto brusco. — A nossa vida está a ponto de se tornar muito interessante. Mesmo muito interessante.
— Queres tu dizer perigosa, caralho.
— Com toda a certeza. Mas também, parece que é assim que os dados rolam para nós... E nunca falham.
NOTA DO AUTOR SOBRE A GUARDA PRETORIANA
Apesar da notória reputação que a Guarda Pretoriana construiu ao longo dos anos, as origens daquela que veio a tornar-se a formação de elite do exército romano foram bastante mais humildes, e de ordem
prática. No tempo da República, a designação dada a um cônsul que comandava uma campanha militar era ”pretor”. Os que o acompanhavam, fossem amigos, pessoal ou guarda-costas, eram conhecidos coletivamente
como a sua ”Guarda Pretoriana”.
É provável que nos primeiros dias da República Romana tais formações fossem temporárias, e de reduzida dimensão. Porém, dada a rápida expansão da influência romana antes, durante e depois das guerras
com Cartago, o exército romano foi adquirindo cada vez maior identidade permanente e profissional. Nele foram incluídas as guardas pessoais dos ambiciosos generais da fase tardia da República. Ao tempo
do confronto final entre Octaviano e António, ambos os líderes contavam com guardas pessoais organizadas em coortes, que os acompanhavam nas campanhas e participavam nas batalhas, muitas vezes com distinção.
Depois da derrota de António, Octaviano assumiu o título de Augusto e tornou-se o primeiro Imperador, embora se esforçasse para preservar a ilusão de que Roma ainda funcionava como uma República. Num
esforço para unir as tropas que se combatiam havia vários anos, uma das medidas tomadas por Augusto foi a junção das suas unidades pretorianas com as de António, criando assim aquilo que se tornou conhecido
como Guarda Pretoriana.
Os deveres da Guarda prendiam-se com a proteção da pessoa do Imperador, quer em Roma, quer quando este se deslocava ou estava em campanha. Também podiam ser enviados para as ruas de Roma para controlar
a populaça, se necessário, bem como reprimir conspiradores e dissidentes. Além disso, agiam como esquadrões da morte imperiais, quando tal lhes era solicitado. Nos primeiros dias, Augusto fez o que podia
para esconder a verdadeira dimensão do seu poder. Por isso se referia a si mesmo como ”primeiro cidadão”, em vez de qualquer outro título mais pomposo. A mesma ideia se aplicava à Guarda. Só havia três
coortes baseadas em Roma, albergadas separadamente pela cidade, em vez de numa grandiosa instalação central. As outras coortes guarneciam cidades próximas, prontas a serem chamadas a Roma se tal fosse
necessário.
Esta abordagem pouco ostensiva pode ter agradado a Augusto, mas, quando da sua morte, tornou-se evidente para todos que a República já não existia, e que Roma seria governada por Imperadores. A Augusto
sucedeu o seu enteado, Tibério, que favorecia e acabou por se tornar dependente do prefeito da Guarda, Sejano. Foi Sejano o responsável pelo papel pouco recomendável que a Guarda passou a desempenhar.
Uma das suas primeiras ”conquistas” foi persuadir o novo Imperador a concentrar as coortes da Guarda em Roma, e a construir-lhes um campo no monte Viminal, grande parte do qual ainda hoje pode ser apreciado.
Não havia limites para a ambição de Sejano, que traçou um plano cauteloso para alcançar o objetivo final de se tornar o herdeiro de Tibério. Quaisquer rivais ou ameaças possíveis eram eliminados sem piedade.
Só no ano de 31 d. C. é que Tibério por fim reconheceu a ameaça, e mandou executar Sejano.
Por esse tempo já era reconhecido o considerável poder da Guarda, e a necessidade de os Imperadores lidarem com ela com todo o cuidado. Infelizmente, o sucessor de Tibério — o tresloucado Calígula — não
percebeu a ideia, e cometeu o erro de ridicularizar um oficial superior da Guarda, a tal ponto que o indivíduo em questão, Quereia, conspirou para assassinar Calígula e a sua família mais chegada. Porém,
como muitos outros conspiradores, Quereia não estabeleceu planos claros para depois da morte do Imperador, e estabeleceu-se uma tremenda confusão em Roma nos momentos subsequentes. O Senado reuniu-se
para debater a necessidade de regressar aos tempos da República, enquanto a Guarda saqueava o palácio imperial, perante a perspetiva de ser desmantelada, dado que os seus serviços não continuariam a ser
necessários.
Contudo, alguns guardas deram com um sobrevivente da família imperial que se tinha escondido, e levaram-no para o campo da Guarda. Era Cláudio, que teve (ele, ou mais provavelmente um dos seus conselheiros
— uma vénia a Narciso, por favor) a oportuna intuição de sugerir que, se os pretorianos apoiassem a sua pretensão a suceder a Calígula, trataria de garantir que eles receberiam uma choruda recompensa.
E assim aconteceu. Na forma de um suborno que representava cinco anos de salário para cada membro da Guarda. Não era sequer a primeira vez que a sua lealdade era comprada. Tibério oferecera a cada homem
mil denários depois da morte de Sejano, para que lhes custasse menos a engolir a execução do seu comandante. Mas foi o suborno de Cláudio que estabeleceu firmemente o precedente, e a partir daí os homens
da Guarda Pretoriana tornaram-se os seus mais leais apoiantes... entre os que podiam ser comprados.
A vida na Guarda Pretoriana era a mais confortável que se podia ter no exército romano. Os guardas recebiam de salário o triplo dos legionários, cumpriam menos anos de serviço, e eram compensados com
um bónus de maior valor quando se reformavam. Dispunham de boas acomodações e tinham lugares privilegiados para assistir a corridas e combates de gladiadores. Embora os oficiais mais graduados se vissem
tentados a jogar com a sua influência política, os homens das fileiras contentavam-se com a neutralidade, desde que esta não comprometesse os seus mais diretos interesses. E era essa a razão que levava
os Imperadores a atribuir-lhes frequentes recompensas.
Para se juntar à Guarda, um homem tinha que estar em boa forma e possuir um caráter honesto. Alguns homens eram transferidos das legiões para a Guarda como recompensa por bons serviços prestados. Tal
como acontecia com as legiões, a Guarda treinava arduamente e era capaz de combater ferozmente quando a tal era chamada. Por exemplo, desempenharam um breve papel na campanha da Britânia em 43 d. C.
Há alguma discussão em torno da dimensão das coortes pretorianas, mas parece-me razoável assumir que teriam o mesmo efetivo que as do resto do exército. Cada uma das coortes era comandada por um tribuno,
em vez do mais antigo centurião da unidade. A maior diferença de pormenor era o facto de usarem túnicas de branco sujo, em vez do vermelho ou castanho das legiões.
Existe ampla evidência que sugere que usavam escudos ovais e não retangulares como os das legiões. Para os fins deste livro, adotei uma representação dos guardas equipados com lanças em vez de dardos,
já que as lanças seriam mais eficazes no controlo das turbas em Roma, e essa era uma das funções primordiais da Guarda.
Embora este romance se passe no período inicial do Império, por essa altura a posição central da Guarda Pretoriana no mundo político de Roma estava firmemente estabelecida, e coitado do Imperador que não se preocupasse em manter os homens da Guarda do seu lado.
Simon Scarrow
O melhor da literatura para todos os gostos e idades