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Series & Trilogias Literarias
Roma, fevereiro de 52 d. C.
As ruas da capital estavam repletas de gente que aproveitava o calor pouco habitual naquela época do ano. Pouco passava do meio-dia, e o Sol brilhava num céu límpido.
Musa pressentiu que alguém o seguia, muito antes sequer de avistar de relance o seu perseguidor. Fora esse instinto que primeiro atraíra sobre si a atenção do seu amo: um jeito inato para farejar o perigo. Uma qualidade inestimável no seu ramo de atividade. Desde que fora levado para longe das ruas do Aventino, tinha sido gasta uma pequena fortuna a treiná-lo, de forma a aguçar-lhe os sentidos e aperfeiçoar-lhe os reflexos.
Era um dos melhores agentes ao serviço de um dos mais influentes habitantes do palácio imperial. Sabia como perseguir e eliminar um inimigo em absoluto silêncio.
Como proceder para desfigurar um corpo e se livrar dele, de forma a tornar muito difícil encontrar uma das suas vítimas, mais ainda reconhecê-la. Sabia codificar e descodificar mensagens, quais os melhores venenos a utilizar para não deixar traços. Sabia também, e perfeitamente, como seguir alguém pelo meio das multidões ou pelos becos menos frequentados, sem denunciar a sua presença.
E tinha sido também ensinado a perceber quando era ele a presa. Um momento antes, quando parara junto a uma banca de pão na orla do fórum, dando a todos os que o rodeavam o ar de ser apenas mais um potencial cliente que apreciava a disposição dos bolos e pãezinhos sobre a banca, tinha identificado o homem: magro, de cabelo escuro, com uma simples túnica castanha, e também parado à frente de outra banca, esta de fruta e a uns quinze passos mais atrás, aparentemente ocupado a avaliar cuidadosamente o aspeto de uma pera em que tinha pegado.
Musa manteve-o bem à vista pelo canto do olho, absorvendo todos os detalhes da sua aparência cuidadosamente calculada para manter o anonimato. Ao fim de um instante,
recordou-se de o ter visto na rua
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junto à casa aonde o seu amo o tinha mandado entregar uma mensagem, logo pela manhã. Informação demasiado importante para ser confiada ao papel, pelo que fora obrigado
a memorizá-la antes de se fazer ao caminho. O perseguidor tinha estado num grupo de homens entretido num jogo de dados e limitara-se a levantar-se e espreguiçar-se
e a deixar casualmente o grupo, seguindo pela rua na mesma direção de Musa, embrenhando-se sem mais na multidão. Apenas um pormenor em que tinha reparado na altura,
sem lhe dar grande importância. Mas isso agora mudara. Era coincidência a mais para ser apenas obra do acaso.
Sorriu para si mesmo, determinado. Muito bem, o jogo começara. Conhecia inúmeros truques que lhe permitiriam despistar o homem. Porém, se ele fosse bom naquilo,
depressa os notaria, e facilmente ultrapassaria o contratempo. Ainda assim, Musa tinha a seu favor uma outra vantagem que lhe dava uma maior hipótese de sucesso
na batalha de astúcias que se aproximava: nascera precisamente naquelas ruas, crescera a correr pelas suas sarjetas, e ali passara a maior parte da juventude, somente
mais um órfão maltrapilho que encontrara refúgio no seio de um dos bandos de miúdos que percorriam as vielas. Conhecia cada curva e atalho das ruas e ruelas da imensa
cidade espalhada pelas sete colinas que rodeavam as velozes correntes do rio Tibre.
Pelas feições escuras do homem da túnica castanha, Musa calculou que não se tratava de um nativo da cidade, antes de alguém que provinha de algures na parte oriental
do Império, ou mesmo de fora deste. Não teria qualquer possibilidade de seguir Musa quando este se embrenhasse no labirinto de becos escuros e malcheirosos da Subura,
o bairro dos mais miseráveis habitantes da cidade, que se estendia por trás do fórum. Depressa o perderia de vista, e que os deuses o ajudassem se ele se perdesse
ao tentar segui-lo. Os habitantes da Subura eram terrivelmente bairristas, e farejavam um estranho à distância, nem que fosse por não cheirar tão mal como eles.
Seria uma presa fácil para o primeiro bando que resolvesse atirar-se a ele.
Um lampejo de simpatia atravessou-lhe o pensamento, e Musa afastou-o de imediato. Naquele jogo não havia lugar para o sentimento. O amo do outro seria por certo
tão implacável como aquele a quem servia, e o tipo estaria seguramente disposto a cortar-lhe a garganta por nenhuma razão que não fosse tal ter-lhe sido ordenado.
A mão de Musa escorregou até à cintura, e os dedos acariciaram levemente o alto que a faca
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escondida por baixo do largo cinto de cabedal provocava. Confortado, afastou-se de súbito da banca e dirigiu-se a passo rápido na direção do arco que levava ao exterior
do fórum. Não precisou de olhar para trás para saber que o outro o seguira de imediato. Virara-se para ele no preciso instante em que Musa se começara a mover.
Ao abrir caminho pela turba, provocando comentários irritados e olhares furibundos de alguns daqueles que afastava sem cerimónia, Musa sentiu o coração a acelerar.
Uma bizarra mistura de excitação, medo e entusiasmo corria-lhe pelas entranhas. Passou sob o arco, cuja abóbada fazia ecoar os passos de sandálias e as curtas trocas
de palavras, dando-lhes maior nitidez do que o barulho de fundo da cidade que se abria de ambos os lados. Virou à esquerda e apressou-se a entrar num beco que rumava
ao coração da Subura. Um pouco adiante, avistou um miúdo com uma túnica sebenta e um par de sandálias gasto e preso com trapos, agachado contra a parede imunda e
repleta de escritos pouco recomendáveis, a observar os passantes. Um ladrãozito, decidiu Musa. Conhecia perfeitamente o género, e extraiu da bolsa uma moeda de bronze.
- Rapaz, vem aí um tipo de túnica castanha, que me está a seguir. Se ele vier por aqui, diz-lhe que fui por outro lado, por aquele beco além.
- Apontou para uma via inclinada que seguia noutro rumo. Lançou a moeda na direção do miúdo, que a apanhou no ar, enquanto acenava uma rápida concordância com o
plano. Apressou-se então a meter pela travessa que penetrava na Subura. A ruela era escura e estreita, e o lixo acumulava-se em pilhas junto às paredes. Havia por
ali muito menos pessoas e Musa acelerou o passo, começando a correr, ansioso por colocar entre ele e o perseguidor a maior distância possível.
Com um mínimo de sorte, tê-lo-ia despistado no arco. Mas, se o outro fosse realmente bom, perceberia que Musa o ia tentar despistar nas ruelas sinuosas da Subura
e podia muito bem interrogar o miúdo ali sentado a observar os passantes. Talvez acreditasse na história que o miúdo lhe contasse, mas, mesmo que tal não sucedesse,
o tempo perdido a hesitar atrasaria a perseguição e deixá-lo-ia sem pistas claras quando chegasse ao interior do bairro. Musa continuou a correr mais algumas centenas
de passos, virando à direita e depois à esquerda por entre os blocos de alojamentos que se erguiam desconjuntados para o céu, como se tivessem a intenção de esmagar
a fina fatia de claridade que se avistava lá em cima, a bordejar a escura e irregular orla dos prédios. Por fim,
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refreou o andamento e aplicou-se a recuperar o fôlego, torcendo o nariz ao odor pestilento de comida a apodrecer, a excrementos, a urina e suor, que noutros tempos
tinha achado a coisa mais natural do mundo.
Musa admirou-se por, em pequeno, ter tido capacidade de aguentar a miséria em que tinha crescido. Desde essa altura, tinha-se habituado aos aromas agradáveis do
mundo dos ricos e poderosos, apesar de viver na sua periferia e trabalhar nas sombras. Ainda assim, recordava-se perfeitamente daquelas ruas e vielas estreitas,
e sabia exatamente onde se encontrava e que caminho seguir para atravessar o bairro e voltar a dirigir-se para a casa no Quirinal onde o seu amo o aguardava. Porém,
ali na Subura havia outros perigos que exigiam atenção, e Musa prosseguiu com cautela, avaliando cada homem ou grupo que se aproximava dele ao longo da rua, tentando
perceber se representavam uma ameaça. Contudo, para lá de algumas olhadelas hostis, todos o deixaram em paz, e acabou por chegar à pequena praça que marcava o coração
da Subura, dominada por uma fonte de grandes dimensões que fornecia água aos habitantes da área, graças a um ramal que saía do aqueduto Juliano.
Como era habitual, a praça estava repleta de mulheres e crianças carregadas de pesadas ânforas, que tinham sido enviadas para recolherem água para toda a família.
Muitas ficavam a trocar as últimas novidades. Por entre elas viam-se grupos de homens, jovens e adultos, que partilhavam odres de vinho enquanto conversavam ou jogavam
aos dados. Musa envergava uma túnica preta sem adornos e, para lá do cuidado corte do cabelo e da barba, não se destacava no meio deles. Sentiu alguma da tensão
a desaparecer-lhe do corpo e aproximou-se da fonte. Debruçou-se sobre a pedra do rebordo, pôs as mãos em concha na água e bebeu o suficiente para saciar a sede que
lhe surgira enquanto empreendia a fuga ao perseguidor. Salpicou a cara com água, voltou a erguer-se e fletiu os músculos dos ombros, satisfeito por mais uma vez
os seus pequenos truques terem demonstrado a sua utilidade.
Voltou as costas à fonte e parou, gelado.
O homem da túnica castanha esperava-o, a não mais de quinze metros, do outro lado da turba que se acotovelava em redor da fonte. Já não tentava disfarçar a sua presença;
pelo contrário, olhava diretamente para ele e sorria. A expressão no seu rosto enregelou o sangue de Musa, enquanto as questões lhe percorriam a mente. Como era
aquilo possível? Como é que aquele tipo conseguira segui-lo? Como é que soubera
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onde o encontrar? Talvez, afinal de contas, fosse natural da cidade. Musa amaldiçoou-se em silêncio por ter tão completamente subestimado o opositor.
A mão deslizou-lhe mais uma vez até ao cinto, procurando a segurança da lâmina, agora que as apostas se tinham tornado sérias. Já não se tratava apenas de enganar
o outro. O confronto era muito provável, e essa perspetiva era claramente preocupante. Musa sabia que havia uma via que levava da praça diretamente à rua que subia
o Quirinal, e começou a dirigir-se para lá, preparando o corpo para se lançar numa corrida sem aviso. Se não tinha tido a argúcia necessária para escapar ao seu
perseguidor, teria simplesmente de ser mais rápido do que ele.
O homem manteve-se a par dele enquanto abria caminho pela turba; então, quando as intenções de Musa se tornaram óbvias, o outro sorriu e apontou-lhe um dedo. Pela
primeira vez sentiu verdadeiro receio, um nó gelado que lhe tomou conta da nuca. O outro acenou na direção da rua que Musa tencionava seguir e ao olhar para lá avistou
duas figuras de grande envergadura que deixavam as sombras e lhe bloqueavam a passagem.
- Foda-se... - murmurou para si mesmo. Já eram três os adversários. Talvez mais. Não conseguiria abrir caminho pela força. Escapar da armadilha dependia agora, mais
do que nunca, da sua velocidade. Recuou para o meio da multidão, procurando um abrigo momentâneo, e olhou em redor da praça. Havia quatro outras possibilidades de
fuga. Escolheu uma viela no lado oposto aos dois homens e também distante do primeiro perseguidor. Recordou-se de que seguia mais ou menos paralelamente à outra
rua que se dirigia ao Quirinal. Se fosse por ali e a percorresse por tempo suficiente, acabaria por poder cortar para a casa do seu senhor, e acolher-se à segurança
que esta lhe proporcionaria. Preparou-se, respirou fundo e lançou-se em corrida, empurrando todos os que encontrava no caminho. O ar encheu-se de imprecações furiosas
dos que tinha perturbado, mas não lhes prestou qualquer atenção. Emergiu de entre a multidão e saltou sobre as lajes imundas, dirigindo-se à entrada da ruela. Ouviu
outro grito sobre o clamor da multidão.
- Vão! Atrás dele!
Entrou pela boca da rua e mergulhou na penumbra. Durante alguns instantes, o contraste com a área bem iluminada da praça tornou-lhe difícil ver o caminho, mas continuou
a correr na mesma, na esperança
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de não tropeçar nem embater contra alguém, e de não escorregar, o que facilmente sucederia se as suas botas se fossem apoiar numa zona mais gordurenta do pavimento.
Os olhos ajustavam-se à luz reinante, e começou a discernir os detalhes da via. As entradas arqueadas dos prédios, as portas das pequenas lojas que tentavam sobreviver
com o diminuto lucro que lhes sobrava depois de pagarem os devidos tributos aos bandos que dominavam a Subura. Um punhado de maltrapilhos, tanto mulheres como homens,
estendiam as mãos e murmuravam pedidos de comida ou dinheiro, e ele evitou-os, enquanto escutava o som dos passos dos seus perseguidores a avançarem pela rua. Cerrou
os dentes e forçou as pernas a prosseguirem, enquanto o desespero crescia no seu espírito.
Cinquenta passos à frente, um raio de luz rasgava a penumbra, num cruzamento com a rua mais larga que dava acesso ao Quirinal e, ao avistar a interseção, Musa sentiu
um lampejo de esperança. Se conseguisse manter-se à frente dos outros mais uns quatrocentos metros, estaria a salvo. O cruzamento estava cada vez mais próximo, e
ele regozijou-se perante o brilho da luz solar que extinguia o mundo escuro da miséria que o rodeava. Estava a não mais de dez passos da esquina quando sentiu uma
pancada nas canelas e se viu a voar pelo ar. Lançou as mãos para a frente e tombou pesadamente no estreito canal que percorria o centro do beco, no qual se acumulavam
pilhas de esterco. O impacto fê-lo perder o fôlego e por momentos deixou-se ficar imóvel, só a tentar respirar e ignorar a dor que lhe corria pelas costelas. Sabia
que tinha de se levantar, pelo que se obrigou a pôr-se de joelhos. O som pesado das botas rasgava o ar, e ele pegou na faca enquanto cambaleava, aturdido, e tentava
respirar. Já de lâmina bem à vista, começou a virar-se para enfrentar os inimigos.
Recebeu um potente pontapé na mão, o que fez com que a faca lhe saltasse dos dedos dormentes. Outra bota atingiu-o de lado, derrubando-o de novo e deixando-o sem
qualquer ar nos pulmões, depois de soltar um grunhido de dor. Ficou no solo, dobrado sobre si mesmo, de boca aberta, tentando engolir ar, enquanto olhava para os
agressores. Lá estava o homem da túnica castanha, com um brutamontes de cada lado, todos eles exibindo uma atitude agressiva e de punhos cerrados. Musa ainda não
percebera o que o tinha feito cair, e o olhar de confusão magoada no seu rosto fez o outro sorrir.
- Uma pena, Musa, meu galifão. Deste luta. Mas estás acabado, percebes?
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- Olhou por cima de Musa e sorriu. - Bom trabalho, Pétulo. Já podes aparecer, miúdo.
Uma sombra destacou-se duma ombreira num dos lados da rua e colocou-se sob a luz: Musa avistou um rapaz que segurava nas mãos um pedaço de madeira sólida. Reconheceu-o
de imediato. Era o gaiato a quem atirara uma moeda para que ele enganasse o seu perseguidor. Afinal, era parte do grupo que o caçava. E, mais ainda, Musa percebeu
por fim que tinha sido conduzido precisamente para aquele beco, onde o rapaz esperava emboscado. Tinha sido uma armadilha bem montada. Como ele a teria planeado.
Não, melhor ainda. Abanou a cabeça e rebolou, até ficar de costas.
- Rapazes, levantem-no.
Mãos rudes pegaram-lhe nos braços e puseram-no de pé. Outra mão aproximou-se e ergueu-lhe o queixo com brusquidão. Viu-se a enfrentar o homem da túnica castanha,
especado à sua frente.
- Alguém quer trocar umas palavrinhas contigo, Musa.
Musa encarou-o, de dentes cerrados. Depois, sem aviso, cuspiu no rosto do outro.
- Vai-te foder - rosnou. - E o mesmo para aquele pedaço de merda grega para quem trabalhas!
Um brilho de fúria perpassou pelo rosto do outro, mas ele acalmou-se e sorriu friamente.
- A mesma matéria-prima de que é feito o teu senhor, meu caro.
Fez um gesto curto, e um saco escuro caiu sobre a cabeça de Musa.
Sentiu brevemente um odor a azeitonas, mas logo se viu envolvido por uma súbita explosão de luz branca acompanhada de uma dor lancinante, e tudo ficou escuro.
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Foi uma pancada e tanto. - Uma voz penetrou-lhe a mente atordoada. - Espero bem que não tenhas desfeito os miolos a este
sacana.
Musa gemeu e deixou descair a cabeça. Entreabriu os olhos e percebeu que estava numa cela de pedra, alumiada pela luz pálida e amarelada de algumas lamparinas de
azeite. A cabeça latejava-lhe, e qualquer movimento provocava uma onda de náusea que lhe percorria as entranhas. Estava de costas, deitado numa mesa de madeira,
a crer no que lhe diziam os dedos. Tentou mexer a mão, mas sentiu de imediato as cordas que o prendiam. A outra mão estava igualmente presa, bem como os pés, e ele
deixou-se estar quieto, fingindo-se ainda desacordado, enquanto lutava para ordenar alguns pensamentos coerentes no meio da dor que lhe esmagava o crânio. Também
lhe doíam as canelas, e lembrou-se do miúdo a quem atirara uma moeda, sentindo-se de alguma forma traído; mas a ideia que realmente o dominava era a de desprezo
por si mesmo, por se ter deixado enganar daquela forma tão simples.
- Foi só uma cacetada na cabeça, nada mais - protestou outra voz, que Musa reconheceu como pertencente ao homem que comandava o grupo que o capturara. - Assim que
acordar, vai estar pronto para outra.
- Está a mexer-se. O nosso bom Musa já está acordado.
Ouviu passos a aproximarem-se, e um par de mãos agarrou-lhe o colarinho da túnica e sacudiu-o.
- Abre os olhos, Musa. É tempo de conversarmos.
Ignorou a vontade de responder e fingiu-se adormecido. O homem voltou a sacudi-lo, e por fim aplicou-lhe uma bofetada. Musa piscou os olhos e encolheu-se involuntariamente.
Viu que o homem que se debruçava sobre ele acenava, satisfeito.
- Está pronto.
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- Nesse caso, não vamos perder mais tempo. Vai buscar o Anco.
- Muito bem, chefe. - O homem afastou-se e Musa voltou a escutar passos, uma porta a abrir-se, e o som de sandálias a subir umas escadas. Virou a cabeça e pela primeira
vez contemplou a extensão do compartimento em que se encontrava. Era uma câmara de teto baixo, subterrânea, calculou, a julgar pela humidade bafienta do ar, a falta
de luz natural e o silêncio envolvente. Havia dois candelabros suspensos do teto, cada um deles com duas lamparinas que davam luz ao espaço. Para lá da mesa em que
se encontrava parecia haver apenas mais um móvel: um pequeno balcão, sobre o qual se viam alguns instrumentos a rebrilhar à luz. Ao lado da mesa, a cara envolta
em escuridão, estava um homem magro e insignificante, numa túnica branca imaculada, e com botas de cabedal que lhe subiam até meio da canela. O homem manteve-se
em silêncio por momentos, até que começou a falar numa voz suave e seca, em tom tão baixo que Musa não conseguiu identificá-lo.
- Antes mesmo que penses nisso, devo avisar-te de que qualquer grito ou lamento que lances nunca será escutado por vivalma para lá destas paredes. Estamos na cave
de uma casa perfeitamente anónima.
Musa sentiu um arrepio de medo a percorrer-lhe a espinha. Havia apenas uma razão para alguém garantir o acesso a um lugar daquele género. Olhou outra vez para o
balcão e percebeu qual o uso dos instrumentos que via.
- Ótimo - disse o outro. - Já percebeste o que te espera. Não vou insultar a tua óbvia inteligência com aquela lengalenga de que no fim acabarás por nos dizeres
aquilo que queremos saber. Se o teu senhor te treinou tão bem como eu treino os meus homens, quebrar-te a resistência vai com certeza ser um verdadeiro desafio.
Aviso-te porém que o Anco é do melhor que há neste ramo. Se lhe dessem tempo suficiente, seria capaz de fazer uma pedra falar. E tu, Musa, não és nenhum rochedo.
Apenas uma criatura de carne e osso. Fraca. Como qualquer outro homem, tens os teus pontos vulneráveis. O Anco acabará por os descobrir, tão certo como o dia suceder
à noite. Portanto, sim, dir-nos-ás o que queremos saber. A única questão que importa é até quando é que vais tu aguentar. Mas para isso temos todo o tempo de que
precisarmos. A não ser que queiras falar já, e poupar-nos a todos uma experiência com o seu quê de desagradável.
Musa abriu ligeiramente a boca, com a intenção de insultar o homem,
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mas preferiu voltar a cerrar os lábios. Uma das primeiras coisas que aprendera acerca daquele tipo de situações era a importância de não pronunciar uma única palavra.
Assim que falasse, abriria a porta a novas trocas de palavras; para lá do perigo de deixar escapar preciosos fragmentos de informação, isso dava ao interrogador
uma oportunidade de estabelecer uma ligação, de arranjar uma forma de entrar nos seus pensamentos e aproveitar as suas fraquezas. Melhor seria nada dizer de todo.
- Estou a ver - concluiu o outro. - Bom, será preciso proceder como previsto.
No silêncio tenso que se estabeleceu entre os dois homens, o único som que se escutava era o das gotas de água que pingavam algures na cela improvisada. O outro
homem não se mexeu; manteve-se imóvel, o rosto oculto pela sombra. Por fim, Musa escutou passos distantes que se aproximavam e depois o matraquear das sandálias
nos degraus. A porta abriu-se e entraram dois homens; um, o que já conhecia, e outro, um tipo atarracado e de braços grossos, de cabelo curto e com várias cicatrizes
a decorarem-lhe o rosto. A princípio Musa tomou-o por um antigo gladiador, mas ao avistar a marca de Mitra na testa do homem, percebeu que era um ex-soldado.
- Anco, ele é todo teu - anunciou o homem nas sombras.
O designado coçou o nariz e olhou para Musa de alto a baixo.
- Senhor, o que deseja dele?
- Quero saber porque é que ele foi visitar o Vespasiano. E quero saber que desígnios alberga o nosso bom amigo Pallas relativamente à campanha na Britânia. Quero
também os nomes de quaisquer agentes que o Pallas tenha nessa província, e que ordens têm.
Anco anuiu.
- Mais alguma coisa?
- Por agora será o suficiente.
Anco anuiu de novo, aproximou-se da mesa e debruçou-se sobre Musa.
- Suponho que estás familiarizado com o processo. Orgulho-me de seguir todas as normas, portanto vamos começar com o habitual, está bem?
Dirigiu-se ao balcão, contemplou os instrumentos lá dispostos, selecionou alguns e regressou para junto da mesa, onde os colocou bem à vista de Musa.
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- Ora cá estamos. O melhor parece-me ser começar pelos pés e ir subindo. - Exibiu umas pinças de ferro e piscou um olho. - Isto é para os dedos. Depois vou esfolar-te
os pés até aos tornozelos. - Mostrou uma faca de cirurgia e um par de ganchos finos. - Depois então vou partir-te as pernas. Para os joelhos tenho isto. - Exibiu
a Musa uma pesada barra de ferro. - Se isso não chegar para te soltar a língua, meu caro amigo, então lá teremos de fazer saltar o pendericalho, mais os tomates.
Mas quase que te garanto que antes disso hás de querer falar e contar-nos tudo.
Musa obrigou-se a controlar a expressão facial e a olhar para o outro com ar impassível. Contudo, não conseguiu evitar que uma gota de suor se soltasse do couro
cabeludo e lhe corresse pela testa. O verdugo usou um dedo rechonchudo para a limpar delicadamente da pele de Musa.
- Não somos assim tão corajosos como queremos dar a impressão, não é? - Riu-se, e lambeu a gota de suor do dedo antes de voltar a pegar nas pinças e se dirigir para
a ponta da mesa, para junto dos pés de Musa. Este cerrou os dentes e fletiu todos os músculos do corpo, enquanto tentava controlar o pavor que se apossava dele perante
o que se ia passar. Sentiu então uma mão pegar-lhe no pé e segurá-lo firmemente. Torceu-se todo, tentando mexer o pé para um lado e para o outro, e forçar as amarras
que o prendiam.
- Ei, Sétimo, torna-te útil. Mantém-no quieto.
O homem da túnica castanha aproximou-se, agarrou-lhe no pé e obrigou-o a ficar imóvel. Musa sentiu o metal frio a apertar-lhe o dedo grande e a pressionar a carne
e o osso. Anco respirou fundo e fez força nas pegas da pinça. Um estalo súbito sobrepôs-se aos grunhidos de esforço de Sétimo, e a face de Musa contorceu-se numa
máscara de agonia.
- Avisem-me quando ele estiver disposto a falar - anunciou o homem que se mantivera nas sombras. - Eu estou lá em cima.
Moveu-se do seu canto, e Musa afastou as lágrimas que lhe enchiam os olhos para melhor contemplar o homem; ao confirmar as suas suspeitas, qualquer esperança que
lhe pudesse ainda restar se esvaiu: eram as feições escuras e macilentas do secretário do Imperador Cláudio. Narciso, que há tanto tempo era o verdadeiro poder por
trás do trono, e que era agora desafiado pelo seu rival, Pallas, o homem que empregava Musa. E que tinha o objetivo de eliminar Narciso no momento em que o Imperador
morresse e o poder passasse para as mãos do seu filho adotivo, Nero. Pallas já tinha aberto caminho até ao leito da mãe
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de Nero. Era uma questão de tempo até conseguir ter sobre Agripina o mesmo controlo que Narciso em tempos tivera sobre Cláudio. Os dois homens eram rivais amargos,
como Musa bem sabia, e isso significava que nenhum tormento lhe seria poupado até revelar o que Narciso queria tanto saber. Sentiu a pinça a aproximar-se do dedo
seguinte, e avistou Narciso a deitar-lhe um olhar desgostoso enquanto deixava a cela, no preciso instante em que um segundo osso se quebrava entre as garras de ferro
da pinça manejada por Anco.
O Sol já se pusera quando por fim Sétimo subiu as escadas para chamar o seu patrão. Limpava as mãos numa tira de tecido arrancada à túnica de Musa, enquanto entrava
na pequena cozinha no piso acima da cave. Narciso estava só, sentado num banco simples, junto a uma mesa, um prato vazio e uma caneca de barro à sua frente, os restos
de uma refeição que fora comprar num mercado próximo quando os gritos que vinham lá de baixo se tinham tornado demasiado difíceis de suportar.
- Está pronto para falar.
- Já era tempo, não? Começava a perder confiança nas capacidades de Anco.
- Pai, não é caso para tanto. Ele fez o seu melhor. A verdade é que Musa era mesmo um tipo teso, difícil de quebrar.
Narciso anuiu.
- Ainda bem. Se conseguirmos dar-lhe a volta, pode vir a tornar-se um trunfo precioso, a seu tempo.
- E se não conseguirmos?
- Nesse caso, será apenas mais uma baixa no conflito entre mim e aquele cabrão do Pallas. Esperemos ser capazes de convencer Musa a escolher o lado correto. Vamos
lá.
Narciso conduziu o filho pelas escadas abaixo, até chegar à cela onde Anco esperava com a sua vítima. Narciso desviou o olhar do destroço ensanguentado que eram
as pernas de Musa e soltou um protesto.
- Tapa-me essa porcaria!
Anco fez uma careta, mas procedeu conforme indicado; pegou nos restos da túnica de Musa e dispô-los sobre as pernas do homem da melhor forma que conseguiu. Quando
terminou, Narciso aproximou-se da mesa, tentando abstrair-se do sangue esparramado sobre o tampo e que pingava para o solo, bem como dos nacos de carne e tiras de
pele.
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Esforçou-se por conter a sua frustração. Musa estava num estado lastimável, de olhos arregalados e fixos no teto, o corpo a tremer sem cessar. Já nada o poderia
salvar. Qualquer ideia de o convencer a mudar de campo era simplesmente inútil. Musa murmurava uma prece quando Narciso se debruçou sobre ele.
- Disseram-me que estás disposto a falar.
Musa não pareceu dar por ele, pelo que Narciso se debruçou mais e lhe pegou gentilmente no queixo, virando-lhe o rosto para o olhar diretamente nos olhos.
- Musa, quero ter respostas às minhas questões. Estás pronto?
Nos olhos do homem havia um enorme vazio, até que veio o reconhecimento e uma luta para recuperar alguma concentração; por fim ele anuiu, engoliu em seco e respondeu:
- Sim.
Narciso sorriu.
- Ainda bem. Ora então, esta manhã saíste do palácio assim que rompeu a alvorada, e foste visitar uma casa no Aventino.
- Isso foi... esta manhã?
- Sim - replicou Narciso, com toda a paciência. - Foste seguido aqui pelo Sétimo, que conseguiu vigiar os teus passos sem que o percebesses. Desta vez, pelo menos.
- Deitou uma olhadela ao agente que era também seu filho, e Sétimo teve o bom gosto de se mostrar embaraçado.
- Apesar de teres tomado todas as precauções habituais, alterar o passo, voltar para trás e tudo o resto, o Sétimo seguiu-te, e viu-te entrar na casa do senador
Vespasiano. Ora, sei muito bem que o bom do senador tem passado os últimos meses na sua casa em Stabiae. Ouvem-se rumores de que nem tudo está bem entre ele e a
esposa, lamentavelmente. Assumo portanto que o motivo da tua visita foi encontrares-te com Flávia, a sua esposa, não foi?
Musa fitou-o por momentos e concordou.
- Espero portanto que me digas que essa visita não se deveu a teres decidido imitar o teu senhor e saltar para cima de alguém bem acima da tua posição social.
Anco riu-se, até que o secretário imperial lhe lançou um olhar furibundo; calou-se, e concentrou-se na limpeza dos seus instrumentos, numa bacia com água já bem
avermelhada. Narciso voltou a dar atenção ao homem deitado na mesa.
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- Então, que assunto tinhas a tratar com a Flávia?
- Uma... mensagem, de Pallas.
- Estou a ver; e em que consistia essa mensagem?
- O meu amo solicitava-lhe apoio... para quando Nero chegar ao trono.
- Isso é mais uma questão de se do que de quando, meu caro. O teu amo está a enganar-se a si mesmo, se julga que pode contar com o apoio da Flávia e do seu grupo
de associados. Ao contrário daquilo que tão cuidadosamente demonstra em público, a mulher é uma republicana fervorosa. Mais depressa devorava os seus próprios filhos
do que apoiava essa víbora traiçoeira que te dá emprego. A adorável Flávia tem sido de grande utilidade a fazer sair traidores das sombras para se juntarem à sua
conspiração, sem imaginar que eu vigio todos os seus movimentos.
- Fez uma pausa e coçou o rosto. - Diz-me, o que prometeu Pallas à Flávia, em troca do seu apoio?
- Tratamento preferencial... para o seu marido. Assim que Nero chegar... ao poder.
- O Imperador poeta e o soldado profissional. Duvido que arranjassem assunto que desse para uma conversa entre os dois. Além disso, dá-me ideia que Vespasiano prefere
trilhar o seu próprio caminho neste mundo. Um homem admirável em muitos sentidos, mas parece-me também que há nele mais do que um leve traço de ambição. Será preciso
vigiá-lo, e até tenho o agente ideal para essa tarefa. Não há homem vivo capaz de resistir aos encantos da jovem Caenis. Meu caro Musa, temo bem que a tua visita
a casa do Vespasiano tenha sido uma perda de tempo. O teu amo, Pallas, colocou-te nesta triste situação para nada. Provocou-te toda esta agonia por nada mais do
que um capricho especulativo. Tudo o que aqui sofreste hoje pode ser-lhe atribuído. A sua falta de senso. Percebes isso, não é?
Narciso perscrutou as feições de Musa, à procura de qualquer sinal da dúvida que estava a tentar plantar. Aquela história com Flávia era apenas um detalhe, a falha
na armadura do inimigo que queria explorar e escancarar, para ter acesso aos segredos que realmente procurava.
A expressão de Musa alterou-se repentinamente, e ele rangeu os dentes enquanto lutava para conter uma nova vaga de agonia. O secretário imperial deixou-o recuperar,
esperando pacientemente que a dor amainasse antes de voltar a pressioná-lo.
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- Musa, estás a ser usado pelo Pallas. Para ele, não passas de uma ferramenta sem valor, que pode ser atirada fora numa vã tentativa de garantir a boa vontade da
Flávia. Pensa bem nisso. Na pouca consideração em que ele te tem. És um homem valioso, vejo-o bem. Tão capaz como o melhor dos meus agentes. Haverá um lugar para
ti ao meu lado quando recuperares. Juro-to. Serve-me, e serás tratado com respeito, e bem recompensado. - Afagou o rosto de Musa. - Percebes?
Musa fitou-o, e uma lágrima escapou-se-lhe pelo canto do olho. Engoliu em seco e anuiu fracamente.
- Muito bem - consolou-o Narciso. - Fico feliz por te teres apercebido disso. Entristece-me ver o que te fizeram. Depois de conversarmos, levar-te-ei para um quarto
confortável na minha própria casa, e os teus ferimentos serão tratados. Quando tiveres recuperado, falaremos sobre o lugar que vais ocupar na minha organização.
Musa cerrou os olhos e anuiu, com as poucas forças que lhe restavam.
- Só mais uma coisa, antes de nos irmos embora - prosseguiu Narciso. - Preciso de saber o que está o Pallas a planear na Britânia. Ele falou-te dos seus planos para
a nova província?
- Sim...
- Acho que mos devias contar - instou Narciso, calmamente. - Se vais trabalhar para mim, não pode haver segredos entre nós, meu amigo. Diz-me.
Musa nada disse por momentos, enquanto tentava controlar a dor que o invadia. Não abriu os olhos, mas começou a falar, respirando levemente e tentando manter o corpo
imóvel, para evitar novas vagas de agonia.
- Pallas quer que a campanha falhe... Quer que Roma se retire da Britânia.
- Porquê? - interrompeu Sétimo.
- Chhiu! - silenciou-o Narciso. - Deixa-te estar aí atrás, e calado.
- Voltou-se de novo para Musa. - Continua, meu amigo. Porque quer o Pallas que deixemos a ilha?
- Quer prejudicar Cláudio... Se as legiões retirarem da Britânia, será um embaraço para o Imperador e para o seu filho legítimo, Britânico.
- E também me afetará a mim, claro.
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- Sim.
Narciso sorriu. Era aquela a verdadeira razão do esquema de Pallas. Pouco tinha a ver com o Imperador, que estava velho e morreria numa questão de anos, ou até mesmo
de meses. E tinha tudo a ver com a necessidade de eliminar qualquer rival à posição de conselheiro mais próximo do Imperador, quando Nero tomasse o trono. Uma vez
que Narciso tinha apoiado a invasão, e trabalhara arduamente para convencer os senadores que tinham mostrado dúvidas quanto à utilidade de conquistar a Britânia,
uma retirada da ilha destruiria a reputação e influência que ainda detinha na corte imperial. E também afetaria o príncipe Britânico, que recebera aquele nome para
celebrar a conquista da ilha. Quem apoiaria a causa de um Imperador batizado em nome de uma ilha que tinha afinal de contas desafiado a vontade de Roma?
Narciso respirou fundo antes de continuar o interrogatório.
- E como tenciona o Pallas atingir esse objetivo?
- Enviou um agente... para conspirar com Carátaco... e um poderoso nobre das tribos do Norte... Se Carátaco conseguir uni-las... as nossas legiões não conseguirão
derrotá-las... A província cairá.
- O nome do agente? Como se chama? Fala.
Musa abanou a cabeça e encolheu-se.
- Não sei. Pallas nunca mo disse.
Narciso silvou, frustrado, e ergueu-se com uma expressão exasperada.
- Há mais... mais uma coisa que deves ficar a saber - murmurou Musa.
- O que é?
- O agente tem ainda outro propósito... Eliminar dois dos teus homens.
- Meus homens? - Narciso franziu o sobrolho. - Não tenho agentes na Britânia.
- Pallas tem outra ideia... Quer eliminar dois oficiais que sabe que estão ligados a ti.
- Quem?
Musa lutou para se concentrar antes de voltar a falar.
- Quinto Licínio Cato... e Lúcio Cornélio Macro.
- Esses dois? - Narciso mal conseguiu reprimir uma gargalhada.
- Há já algum tempo que não trabalham para mim. O Pallas desperdiça
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o seu tempo se acha que as suas mortes me afetariam. Além disso, tenho é pena dos agentes que pensem em enfrentar esses dois. É tudo? Tens mais alguma coisa a dizer-me?
Musa lambeu os lábios e abanou ligeiramente a cabeça.
- Não, é tudo.
- Portaste-te bem, meu amigo. - Narciso afagou-lhe a mão. - Agora é tempo de descansar. E de recuperar.
Os cantos da boca de Musa arreganharam-se num fugaz sorriso de alívio, e o corpo relaxou. Narciso largou-lhe a mão e afastou-se para junto da porta, fazendo um gesto
a Sétimo para se aproximar.
- Bom, agora já sabemos tudo.
- E o que vais fazer quanto a isto? - perguntou-lhe o filho, quase em surdina. - Temos de avisar o general Ostório.
- Não me parece. Melhor será que ele nem saiba de nada. Este assunto tem de ser tratado pela calada. Temos de enviar um dos nossos homens para tratar do agente de
Pallas. Encontrá-lo, e acabar-lhe com a espécie. Ao mesmo tempo, pode avisar o Cato e o Macro. - Soltou um sorriso sardónico. - Imagino que nada os alegrará ter
notícias minhas, mas é justo que fiquem a saber do perigo que correm. Além disso, posso vir a precisar dos seus serviços ainda mais alguma vez. Veremos.
Sétimo encolheu os ombros, antes de perguntar:
- E quem queres mandar?
Narciso virou-se para ele e fitou-o de alto a baixo.
- Sugiro que vás comprar roupas quentes, meu rapaz. Pelo que tenho ouvido, o clima na Britânia é inclemente, mesmo nos melhores períodos.
- Eu? Não estás a falar a sério.
- Em quem mais posso eu confiar? - Narciso falou num tom conspiratório. - Estou a aguentar-me na posição ao lado do Imperador pelas pontas dos dedos. Meu filho,
eu não sou tolo. Sei perfeitamente que alguns dos meus agentes já se passaram para o Pallas, e que outros consideram essa hipótese neste preciso momento. És o melhor
dos meus homens e o único em que posso confiar totalmente, já que és também meu filho. Tens de ser tu a ir. Se pudesse enviar outro, acredita que o faria. Compreendes?
Olhou pesadamente para os olhos de Sétimo, quase a suplicar a sua compreensão, e o homem mais novo acabou por aceder, embora sem esconder a relutância.
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- Sim, pai.
Narciso apertou-lhe ligeiramente o ombro, afetuosamente.
- Ótimo. Agora, tenho de regressar ao palácio. O Imperador espera ver-me ao jantar. Toma conta das coisas por aqui. Limpa a casa, e paga ao Anco.
Sétimo esticou o polegar para trás das costas, designando o destroço humano que aguardava na mesa.
- E quanto a ele?
Narciso deitou um último olhar ao estropiado agente do seu inimigo.
- Já de nada nos pode servir. Nem a ninguém. Corta-lhe as goelas, deixa-o irreconhecível, e deita o corpo ao Tibre. O mais provável é que o Pallas já saiba que ele
desapareceu. Prefiro que nunca seja encontrado. Isso ao menos deve provocar algum desconforto àquele cabrão. Trata disso.
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3
Britânia, julho
- Por quem sou, nota-se que esta foi bem usada e abusada. - O sírio assobiou baixinho enquanto examinava a couraça de Cato, passando os dedos sobre as mossas e pela
ferrugem acumulada nas ranhuras da proteção articulada. Virou-a, para melhor observar a placa dorsal. - Nesta zona está melhor. Como seria de esperar, pertencendo,
como é o caso, a um dos mais destemidos oficiais do Imperador. Os feitos do prefeito Quinto Licínio Cato são já lendários.
Cato trocou um olhar sardónico com o seu amigo, o centurião Macro, antes de responder.
- Pelo menos entre o bando dos mercadores de armaduras.
O sírio inclinou a cabeça num modesto reconhecimento, pousou a couraça e virou-se para Cato com uma expressão apologética.
- Lamentavelmente, senhor, parece-me claro que seria mais dispendioso recuperar esta armadura do que aquilo que ela vale. Claro que nada me agradaria mais do que
poder oferecer-lhe um preço justo por uma nova, se acaso desejasse trocá-la.
- Preço justo, estou mesmo a ver que sim - lançou Macro, do conforto da cadeira onde se sentava, as pernas esticadas e os braços cruzados. - Cato, não lhe dês ouvidos.
De certeza que consigo que um dos rapazes da forja a endireite, por uma fração do preço que este patife quer levar por uma troca.
- Claro que o poderia fazer, nobre centurião - ripostou o sírio, em tom melífluo. - Mas cada pancada que for dada a esta armadura para a endireitar, como sugere,
mais não fará do que enfraquecê-la. Vai é torná-la quebradiça, num ponto e noutro. - Voltou-se para Cato com ar solícito. - Meu caro senhor, nunca mais conseguiria
eu dormir descansado, sabendo que tinha partido para a guerra contra os selvagens guerreiros desta ilha envergando uma armadura que poderia colocar a
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sua vida em risco, e assim privar Roma dos serviços de um dos seus mais capazes oficiais.
Macro, sentado junto à parede oposta da tenda, deixou escapar uma risada de escárnio.
- Não te deixes levar pelas falinhas mansas deste tratante; essa armadura não tem nenhum problema que não possa ser remendado com um bocadito de esforço. Talvez
depois não fique a parecer a mais impressionante da parada, mas pelo menos servirá para o trabalho.
Cato assentiu, mas reconheceu também, enquanto contemplava a couraça estendida sobre a mesa, que era demasiado óbvio que esta já conhecera melhores dias. Tinha-a
adquirido, com o resto do equipamento e das armas, nos armazéns da guarnição de Londres quando tinham regressado à Britânia, havia alguns meses. Fora uma compra
apressada mas barata, e o responsável pelos armazéns garantira-lhe que a armadura tinha tido apenas um dono anterior, um cuidadoso tribuno da Nona Legião, que a
envergara apenas em ocasiões cerimoniais, preferindo uma cota de malha sempre que estava de serviço. Só quando o verniz e o polimento tinham começado a ficar gastos
é que a mentira fora exposta em toda a sua extensão. Como Macro comentara, era bastante mais provável que aquela couraça tivesse sido bem usada, e que isso até tivesse
acontecido nos tempos de Júlio César.
Cato inspirou profundamente, e resolveu-se.
- Quanto é que isto vale?
Um sorriso fugaz iluminou as feições do sírio.
- Nobre senhor, antes de combinarmos o preço, será talvez melhor considerar que tipo de material deseja em substituição desta velha armadura.
Virou-se para a arca que os seus escravos tinham trazido para a tenda do prefeito. Com um gesto hábil, que incluiu uma rápida torção dos pulsos, desapertou os fechos
e ergueu a tampa. Lá dentro viam-se vários fardos de lã espessa. O mercador investigou alguns antes de selecionar dois e os colocar sobre a mesa, ao lado da velha
couraça de Cato. Abriu então as dobras dos fardos, revelando uma cota de malha e outra armadura, de placas reluzentes. Afastou-se, de maneira a que o cliente pudesse
apreciar devidamente as peças, e agitou a mão sobre o produto que assim oferecia.
- Senhor, aqui coloco ao seu dispor as melhores armaduras que
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podem ser encontradas em todo o Império, e aos mais acessíveis preços que alguma vez lhe serão propostos. Palavra de Ciro de Palmira. - Colocou a mão sobre o coração.
Macro acenou.
- Bom, sendo assim, já fico sossegado. Cato, podes ter a certeza que vais fazer o negócio da tua vida.
O mercador resolveu ignorar o cínico amigo do seu cliente e convidou o prefeito para se aproximar da mesa. Cato debruçou-se sobre as armaduras, considerando o seu
aspeto, e por fim pegou num canto da cota de malha, sentindo-lhe o peso.
- É mais leve do que pensava, não é? - O mercador passou o dedo sobre os elos metálicos. - A maior parte das cotas de malha são feitas de ferro barato, mas esta
é diferente. O fabricante é um primo meu, Patólumo de Damasco. Já ouviu falar do seu trabalho, com certeza.
- Sim, quem não ouviu? - comentou Macro, secamente.
- Este meu primo aperfeiçoou um novo metal, que contém mais cobre, de forma a ser mais leve, mas sem comprometer a integridade da peça. Porque não a experimenta,
para ver como lhe assenta, nobre prefeito? Não é de forma alguma obrigado a comprá-la.
Cato passou as pontas dos dedos sobre a armadura, e acabou por concordar.
- E porque não?
- Senhor, permita-me. - O sírio pegou na cota de malha e, com um jeito vindo da prática, colocou-a em posição, e manteve-a suspensa no ar para que Cato a vestisse.
Este inclinou o pescoço para o meter pela abertura e encolheu os polegares para melhor enfiar os braços pelas curtas mangas da veste de proteção. O mercador ajustou
a malha enquanto a deixava escorregar ao longo do torso do prefeito, dando-lhe um toque final, como que a alisar uma imaginária dobra, antes de se afastar um passo
e cruzar os dedos por baixo da barba fina e bicuda. - Apesar de não passar de uma humilde cota de malha, senhor, assenta-lhe como a mais elegante luva de pele de
cabra! Elegante! Muito elegante.
Cato voltou-se para a pequena mesa de campanha onde tinha um espelho, escovas, raspadores, e um pequeno pote de cerâmica com óleo aromático, que empregava nas suas
abluções. Segurou o espelho de metal polido com o braço esticado e examinou a sua própria figura com todo o cuidado. A malha metálica era rematada com uma pequena
serrilha,
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e assentava realmente bem à sua figura esguia. O tom do metal era mais pálido do que o habitual, e brilhava discretamente sob a luz que penetrava na tenda pelas
abas abertas.
- Confortável, não é? - aliciou o sírio. - Podia marchar com ela todo o dia, depois travar uma batalha, e não sentiria metade do cansaço que teria se usasse a sua
velha couraça. E também não lhe prende tanto os movimentos. Um guerreiro tem de ser capaz de gestos fáceis e rápidos, não é? Esta armadura dar-lhe-á a agilidade
de um Aquiles, nobre senhor.
Cato rodou o torso e tentou alguns movimentos com os braços. Era verdade que aquela malha parecia menos pesada e o atrapalhava menos que outras que usara no passado.
Virou-se para o amigo.
- O que acha?
Macro dobrou o pescoço ligeiramente enquanto olhava para Cato de alto a baixo.
- Bem, miúdo, parece que te cai bem, de facto, mas o que interessa realmente é se presta para alguma coisa quando se trata de aparar os golpes dos inimigos. A malha
é boa para evitar os cortes, embora uma boa estocada consiga partir ossos mesmo sem ferir. O verdadeiro perigo está na ponta. Um dardo bem lançado, ou uma flecha,
facilmente atravessam a malha.
- Não neste caso - interveio o mercador, enquanto pegava numa dobra da malha. - Senhor, se me permite. Veja isto, há rebites nas ligações dos elos. O que não só
aumenta a resistência, como ajuda a manter as pontas aceradas das armas dos vossos bárbaros inimigos do lado de fora. O seu ilustre companheiro, o formidável centurião
Macro, sabe com toda a certeza que uma malha rebitada é muito, muito superior às que têm elos simplesmente martelados ou sobrepostos. Além disso, como pode observar,
os elos são mais pequenos, o que torna ainda mais difícil romper este magnífico exemplo do trabalho cuidado do meu primo.
Cato virou a cabeça para apreciar a malha que lhe cobria o ombro. Era como afirmara o mercador: cada elo estava selado com um minúsculo rebite, um processo demorado
que significava que aquela veste tinha levado muito mais tempo a produzir do que as que se viam nos corpos da maioria dos soldados das legiões e das unidades auxiliares.
E isso não deixaria de se refletir no preço que lhe ia ser pedido, ponderou, enquanto mordia o lábio. Havia pouco que recebera o seu primeiro
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pagamento desde que desembarcara na Britânia, já fazia quatro meses. E tinham entretanto passado seis meses desde que fora oficialmente nomeado para a patente de
prefeito, com um salário anual de vinte mil denários. Tinha solicitado um adiantamento de cinco mil para cobrir as despesas do modesto festim que oferecera depois
do seu casamento com Júlia, e para pagar o equipamento e depois a viagem que se vira obrigado a encetar para ir ocupar o seu posto. Parte do dote pago pelo pai de
Júlia, o senador Semprónio, tinha ficado nas mãos dela, para que pudesse comprar uma casa razoável em Roma, a mobilasse e arranjasse o pessoal necessário para a
manter; o restante tinha tido por destino um banqueiro de confiança, de maneira a que a jovem pudesse viver dos juros, até que Cato regressasse ou a mandasse buscar.
Entretanto, este recebera por fim o segundo pagamento trimestral, e podia portanto comprar novo equipamento.
Não tendo por si o benefício de provir de uma família de posses, como era comum para os homens da sua patente no exército, Cato estava a cada dia mais consciente
da simplicidade do seu guarda-roupa e da pobreza da armadura que usava. Não lhe escapavam os olhares altivos que alguns dos outros oficiais lhe lançavam de cada
vez que o general Ostório convocava os subordinados para as reuniões diárias na tenda do estado-maior. Apesar da sua brilhante folha militar, não havia lugar a dúvidas
quanto ao desdém nas vozes dos que atribuíam maior valor a uma linhagem aristocrática do que à capacidade pura e comprovada no campo de batalha. O próprio general
não fizera grande esforço para esconder que não tinha muito apreço pelo mais jovem comandante de uma coorte auxiliar no seu exército.
E era essa a razão, com toda a certeza, que tinha levado o general a dar-lhe a responsabilidade pela caravana das bagagens do exército. A escolta desta era composta
pelos sobreviventes da guarnição do forte de Bruccium, um esquadrão de cavalaria trácia a que fora anexada uma coorte de legionários da Décima Quarta, comandada
por Macro. As duas unidades tinham sofrido pesadas baixas durante o cerco ao forte, e poucas hipóteses havia de receberem outras missões até ao fim da época de campanha,
altura em que o exército se aquartelaria para esperar a passagem do inverno. E até esse momento, Cato, Macro e os seus homens marchariam penosamente ao lado dos
vagões e carroças, pouco à frente da turba de seguidores civis onde se escondiam todos os aproveitadores
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dos soldos dos legionários, no fim da coluna que o general Ostório conduzia lentamente pelo coração das montanhosas terras dos siluros.
Perseguiam o comandante inimigo, Carátaco, e o seu exército de guerreiros siluros e ordovicos, a que se tinham juntado pequenos bandos de combatentes de outras tribos,
que tinham escolhido continuar a lutar contra a presença romana na ilha. A intenção do general era encurralar Carátaco e forçá-lo a dar-lhe batalha. Quando tal sucedesse,
os nativos, bravos como eram, não tinham qualquer hipótese de conseguir estar ao mesmo nível dos soldados profissionais do exército romano. O inimigo seria esmagado,
o seu líder morto ou capturado, e a nova província romana da Britânia poderia finalmente ser considerada pacificada, quase nove anos depois do primeiro passo das
legiões de Cláudio nas praias da ilha.
- Bem, nobre senhor? - O mercador sírio interrompeu-lhe os pensamentos. - Aprecia a cota de malha?
- Está-me muito bem - admitiu Cato. - Quanto custa?
- Normalmente não pediria por tão perfeita peça de equipamento menos de três mil sestércios, senhor. Mas, tendo em consideração a sua fama, e a honra que me concede
ao permitir-me servi-lo, seria capaz de aceitar dois mil e oitocentos.
Era bastante mais do que Cato antecipara. Mais de três anos da paga de um legionário. Mas a verdade é que o equipamento que lhe restava já não estava em condições
de ser usado em combate, e na multidão de comerciantes que seguia o exército não havia mais do que um punhado de especialistas em equipamento; e com tão pouca competição,
podiam pedir os preços que lhes apetecessem.
Macro quase se engasgou.
- Dois mil e oitocentos? Vai-te mas é foder!
O mercador ergueu as mãos, tentando acalmar a situação.
- Senhor, não há outra cota de malha tão eficiente em toda a província. Vale bem o dobro do modesto preço que estou a pedir.
Macro virou-se para o amigo.
- Não dês ouvidos a este sacana ganancioso. A veste não vale metade disso.
Cato limpou a garganta.
- Centurião, se não se importa, eu mesmo trato do assunto.
Macro abriu a boca para protestar, mas o pesado sentido de disciplina
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que tantos anos na legião lhe tinham incutido no espírito triunfou, e ele limitou-se a assentir.
- Como desejares... senhor.
Cato tirou a cota de malha por cima da cabeça, com a ajuda do mercador, e pousou-a junto à armadura que este também lhe propusera.
- E quanto a esta?
- Ah, o seu olho conhecedor descortinou, sem qualquer sombra de dúvida, que também este é um trabalho do meu primo. - Ciro pegou na armadura e levantou-a, para que
o cliente em perspetiva a pudesse apreciar devidamente, antes de prosseguir. - Pelo mesmíssimo e modesto preço da cota de malha, senhor, esta peça oferecer-lhe-á
ainda melhor proteção, com a vantagem inegável de que provocará nos seus adversários um terror acrescido, graças ao brilho resplandecente que não deixará de ostentar.
- Em resposta às palavras do vendedor, a luz refulgiu nas placas polidas, fazendo lembrar a Cato a pele de um peixe acabado de fisgar. Era fácil imaginar-se em plena
batalha, envolto por inimigos, mas destacado, bem à vista dos seus homens. E aí é que estava realmente o problema: seria também facilmente notado por qualquer combatente
inimigo decidido a tentar abater um oficial romano. Ao mesmo tempo, porém, dar-lhe-ia um aspeto realmente impressionante quando estivesse ao pé dos outros oficiais
superiores do exército, considerou.
- Hum... - Foi a vez de Macro limpar a garganta. - Senhor, aceitas um conselho?
Cato afastou o olhar da armadura polida.
- Sim?
Macro avançou para o mercador que ainda segurava a armadura de forma a que a luz lhe batesse e lhe desse todo o brilho. O centurião levantou a bainha, e bateu com
um dedo no espesso revestimento interior de couro a que as placas tinham sido cosidas.
- Aqui está o problema. Uma armadura de placas é uma boa peça de equipamento, num clima seco. Como afirma aqui o nosso amigo sírio, dá mais proteção, claro, mas
quando chove, o que é que acontece, hã? O couro absorve a água, e vai acabar por fazer a armadura pesar o dobro. Antes que te apercebas do que se está a passar,
já um inimigo mais ágil o deitou abaixo.
- Mas vem aí o verão - lembrou Cato.
- Pois, pois, estou mesmo a ver que isso quer dizer que não vai
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chover mais. - Macro abanou a cabeça. - Sabes muito bem como é o tempo nesta ilha miserável. Mais húmido do que a rata duma puta da Subura por altura dos jogos.
Cato não evitou um sorriso.
- Dir-se-ia que anda outra vez a ler o Ovídio.
Macro abanou a cabeça.
- Para quê ir aprender a teoria quando se conhece tão bem a prática? E isto vale para tudo na vida.
- Aí está uma frase digna de um soldado.
Macro inclinou a cabeça.
- Agradeço, senhor.
Cato voltou a dar atenção à armadura de placas. Estava francamente tentado a comprá-la, sobretudo devido ao aspeto distinto, que entraria pelos olhos adentro dos
oficiais que o contemplavam com desdém. Contudo, temia que pudesse muito bem acabar por causar-lhes um aumento do ressentimento. Ostentar uma bela armadura nova
dar-lhes-ia motivos renovados para torcer o nariz perante aquele que no fundo viam como um mero soldado que tinha conseguido trepar muito acima daquela que devia
ser a sua posição social. Com pena, fez um gesto a apontar a cota de malha.
- Vou ficar com esta.
O mercador sorriu, voltou a embrulhar a armadura no fardo de lã e devolveu-a à arca.
- Meu caro prefeito, são então dois mil e oitocentos.
- Dois mil e quinhentos.
Ciro adotou um olhar magoado, e as suas escuras sobrancelhas juntaram-se numa breve careta.
- Senhor, vejamos, está a gozar comigo. Sou um honesto comerciante. Tenho uma família para alimentar, e uma reputação a manter. Não existe proteção que possa comprar
por este preço com a mesma qualidade que esta bela peça do meu primo. Senhor, pense bem. Se aceitasse o preço que sugere, teria de reconhecer que o fazia por saber
perfeitamente que tudo aquilo que elogiei nesta peça não correspondia à realidade. Como o sabe também, senhor. O facto de que nunca me passaria pela cabeça vendê-la
por menos de, digamos, dois mil e setecentos, é uma eloquente prova da fé que tenho na superior qualidade dos produtos que vendo.
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Cato envergou uma expressão implacável e ripostou:
- Dois mil e seiscentos.
O sírio suspirou.
- O coração pesa-me deveras, ao ver como sou tratado... - Fez uma pausa, como que toldado pela agonia da indecisão, e prosseguiu, em tom sofrido. - Todavia, honrado
prefeito, não poderia suportar a ideia de o ver partir para a batalha com uma proteção que não lhe oferecesse todas as garantias. Por essa razão, a única, disponho-me
então a aceitar dois mil, seiscentos e setenta e cinco.
- Dois mil, seiscentos e cinquenta, e nem mais um sestércio.
O homem sorriu.
- Negócio fechado. Será então esse o preço, a que se junta a sua velha placa peitoral. Que não possui qualquer valor, como já determinámos.
Cato abanou a cabeça.
- Não, o dinheiro e nada mais. Além disso, quero uma proteção para o ombro, com os fechos adequados.
Ciro fez uma pausa antes de estender a mão.
- Prefeito, é difícil negociar consigo. Está numa posição mais favorável do que eu. Mas enfim, aceito os termos.
Cato pegou-lhe no braço e trocaram um breve aperto; o mercador voltou-se para a arca e extraiu do interior uma pequena peça de malha metálica, cujos elos eram feitos
de ferro de menor qualidade, embora também rebitados, observou Cato, aliviado. Pensou se valeria a pena insistir em que a proteção para o ombro fosse da mesma qualidade
que o resto da veste, mas acabou por decidir que não. Nunca se sentia muito confortável quando regateava uma compra, e naquele momento queria apenas dar a transação
por terminada.
Atravessou a tenda até chegar junto da arca reforçada com faixas de ferro que tinha por baixo da cama de campanha, retirou a chave que usava em torno do pescoço,
e abriu-a. Tinha recebido o pagamento numa mistura de moedas de ouro, prata e bronze, e contou o necessário para efetuar o pagamento, que colocou numa bolsa de couro.
Entretanto, o mercador tinha chamado os seus escravos para levarem o baú das mercadorias. Depois de verificar as moedas que recebeu e contabilizar o valor, o comerciante
fez uma vénia profunda e recuou, atravessando assim as abas da entrada da tenda.
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- Foi uma enorme honra ter negociado consigo, senhor. Se por acaso algum dos seus irmãos oficiais tiver necessidade de novo equipamento, não se esqueça de lhes falar
de mim, Ciro de Palmira, orgulhoso fornecedor da melhor proteção que os heróis do Império podem encontrar. Que os deuses o protejam.
Com um último salamaleque, desapareceu, e Macro soprou as bochechas enquanto contemplava a nova veste do amigo.
- Espero que valha o que pagaste.
- Só o tempo o dirá. - Cato respirou fundo e chamou: - Thraxis! Vem cá!
De imediato acorreu um soldado auxiliar, baixo e entroncado, que entrou na tenda e fez a saudação regulamentar. Embora se tivesse juntado a uma unidade trácia, o
servidor pessoal de Cato era da Macedónia, e exibia os traços escuros e os olhos estreitos típicos dos habitantes dessa área. Não tinha experiência no desempenho
das funções de criado, mas tinha uma folha limpa, e o decurião garantira que o homem era honesto e entendia perfeitamente o latim. Tinha de servir, pelo menos naquela
altura, decidira Cato, mas resolvera também que assim que a época de campanha terminasse, iria ao mercado em Londinium para adquirir um escravo de boa qualidade,
que pudesse desempenhar as tarefas de Thraxis e lhe permitisse assim regressar ao seu esquadrão.
Cato apontou para a velha placa peitoral.
- Vou reservá-la apenas para uso cerimonial. Vai até ao mercado dos civis e procura quem trate dela. Quero-a bem limpa, envernizada e polida até rebrilhar como se
fosse nova.
- Sim, prefeito.
- E já que lá vais, há falta de alguma coisa nas minhas provisões pessoais?
Thraxis baixou a cabeça e pensou por momentos.
- Vinho e queijo, prefeito. Está quase sem nenhuns. - Lançou um olhar sibilino na direção de Macro. - Dado o consumo que têm tido ultimamente.
- Ainda tens dinheiro para isso? - inquiriu Cato.
- Sim, prefeito. Mas lá para o fim do mês vão ser necessários mais fundos.
- Muito bem, vê se desta vez consegues comprar um vinho decente. As duas últimas ânforas quase que sabiam a mijo.
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- A sério? - comentou Macro, surpreso. - Não dei por nada.
Cato suspirou, e continuou a dirigir-se ao criado.
- Vinho de jeito, percebes?
- Sim, prefeito. Um mercador novo chegou ontem ao campo. Deve ter material diferente do anterior. Vou ver.
- Faz isso, sim. Estás dispensado.
O homem dobrou-se ligeiramente e deixou a tenda. Macro esperou que ele estivesse suficientemente longe para não conseguir ouvir, e coçou o rosto.
- Não sei bem o que pensar deste tipo.
- Do Thraxis? Está a servir para o lugar. Além disso, é um bom soldado.
- É isso mesmo. Não me dá nada ar de soldado auxiliar. Parece-me mais um daqueles gregos armados em espertos.
- Parece-me que está a falar de filósofos.
Macro encolheu os ombros.
- Acho que a minha descrição lhes faz muito maior justiça. Além disso, sabes bem do que eu estou a falar.
Cato suspirou.
- Macro, tem de haver gente de todos os feitios neste mundo.
- Não, miúdo, no exército não tem. O nosso trabalho é matar gente. Não é pormo-nos a conversar com elas. E por falar em conversas...
- Procurou na sacola e pegou numa tábua encerada. Abriu-a e contemplou as notas apressadas que tomara anteriormente, e quase automaticamente assumiu uma postura
mais formal. Também a voz sofreu uma subtil alteração, reparou Cato. O tom fácil da camaradagem voltou a desaparecer, e Macro transformou-se apenas no centurião
mais antigo da Quarta Coorte da Décima Quarta Legião.
- O relatório diário de ontem, senhor. O efetivo. Primeira centúria: sessenta e dois aptos, oito doentes, e um destacado para o quartel-general.
- A que propósito?
- Interrogatório, senhor. As capacidades do legionário Pulónio foram solicitadas para auxiliar nos interrogatórios à nova leva de prisioneiros.
- Muito bem. Prossiga.
Macro voltou a olhar para as notas.
- Segunda centúria: cinquenta e oito em condições, dez de baixa.
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O médico diz-me que acha que nenhum deles aguenta mais um dia que seja.
Cato anuiu, enquanto procedia a alguns rápidos cálculos mentais. A coorte de Macro tinha sido fortemente castigada no forte e, em vez de apresentar seis centúrias
quase sem pessoal, Cato ordenara que os sobreviventes formassem duas unidades com um efetivo mais razoável, que lhes permitisse operar como unidades táticas com
um mínimo de eficácia. O mesmo se passava com a sua própria coorte, a Segunda Trácia de Cavalaria. Só lhe restavam perto de noventa homens, o que mal dava para completar
o efetivo de três esquadrões. Portanto, o seu comando, encarregue da escolta das bagagens e dos seguidores civis do exército, era composto por duzentos e dez homens.
Se Carátaco conseguisse fazer passar um grupo de combate pelo espaço entre a coluna principal do general Ostório e a retaguarda, poderia causar grandes danos antes
de se conseguir reunir uma força suficiente para o rechaçar. E se essa calamidade viesse a ocorrer, era mais do que certo que o general apontasse Cato como responsável,
apesar da falta de homens de que dispunha. E assim era a ingrata vida de um oficial, refletiu Cato, com um azedume reforçado pela fadiga.
- Que mais?
- As reservas de cereais estão a ficar curtas. Só temos quatro dias de rações completas. Além disso, o armeiro queixa-se do couro que tem sido obrigado a usar para
fazer as reparações das armaduras segmentadas dos homens.
- O que tem de errado?
- A humidade deu cabo dele. A maior parte do material não se pode usar. As tiras de substituição partem-se assim que são postas.
- Ele que vá buscar mais às reservas da legião.
Macro deu um estalo com a língua.
- Aí é que está o problema. Ele não consegue obter material das reservas da Décima Quarta, porque o intendente não lho permite.
Cato cerrou os olhos.
- Porquê?
- Porque considera que a minha coorte está em destacamento, e portanto devia obter material das reservas da própria escolta.
- Mas nós não temos couro.
- Isso, diz ele, não é problema seu.
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Cato silvou e voltou a abrir os olhos.
- Já falou com ele, então?
- Oh, sim. Nada feito. Ele sugeriu que eu falasse com o meu superior hierárquico, e portanto cá estamos.
- Obrigadinho.
Macro sorriu.
- Senhor, a patente não significa só o pagamento...
- Bom, vou ver o que se pode fazer no quartel-general, depois de a reunião com o general acabar. - Cato cruzou os braços. - É tudo?
- Por agora, senhor.
- Então acabámos. Obrigado, centurião.
Macro saudou-o e saiu, deixando Cato a sós para dar largas às suas frustrações. Ergueu o olhar e lançou uma breve prece a Júpiter, o maior e melhor dos deuses, para
que o fardo de escoltar as bagagens não fosse seu por muito mais tempo. Já chegava que as suas duas unidades estivessem quase sem pessoal, quase sem reservas alimentares
e que os seus pedidos fossem ignorados. Pior ainda era a natureza do próprio trabalho, que implicava passar o tempo a alternar entre ameaças e lisonjas aos condutores
das mulas para pôr as carroças em movimento, e manter na ordem os mercadores, os vendedores, as prostitutas e os traficantes de escravos que seguiam em matilha na
esteira do corpo principal do exército. Ou seja, ter de resolver as frequentes altercações entre eles, partindo umas cabeças aqui e acolá, controlando tudo o que
ameaçasse interromper o avanço ao longo do lamacento caminho remexido pelas botas dos legionários que marchavam na cabeça da grande coluna.
Saiu da tenda e contemplou a cena que se abria aos seus olhos. A penumbra descia sobre as montanhas siluras, dando ao céu um tom que lembrava o violeta. O exército
interrompera a marcha pela tarde, para construir o campo fortificado, e agora que as últimas defesas tinham ficado prontas, os homens preparavam-se para passar mais
uma noite em campanha. Dada a estreiteza do vale que percorriam, os soldados tinham sido obrigados a erguer um recinto estreito e comprido, em vez do retângulo usual.
Em resultado disso, o comboio das bagagens e o amontoado caótico de tendas e abrigos dos seguidores civis estendiam-se para ambos os lados das linhas regulares das
tendas dos homens da escolta. Os cavalos dos trácios mastigavam tranquilamente as suas rações num curral improvisado com cordas.
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À direita, a uns duzentos passos, avistavam-se outras linhas regulares de tendas, que marcavam a posição das duas coortes da retaguarda da coluna militar. À mesma
distância, mas na direção oposta, ficavam as tendas do corpo principal do exército, tão bem implantadas quanto o terreno o permitia, e dispostas em torno da tenda
do comandante. A maior tenda que Cato avistava situava-se num alto, a mais de oitocentos metros dali: o quartel-general do general Ostório. Dúzias de fogueiras tinham
sido acesas, e o brilho das chamas trespassava a cortina de escuridão que descia sobre o vale. Ao olhar para cima, sobre o parapeito que percorria a linha de estacas
que marcava a muralha do campo, Cato avistou pequenos bandos de cavaleiros de outra unidade de cavalaria a ocuparem as encostas em volta do acampamento; alguns deles
recortavam-se contra o céu ainda luminoso na direção do poente. E para lá deles, algures em pleno cenário selvagem das montanhas, estava o exército de Carátaco,
que os romanos perseguiam - pelo menos naquele momento, lembrou-se Cato. Já tinha combatido o rei catuvelauno antes, e aprendera a respeitá-lo. Carátaco ainda era
bem capaz de lhes fazer uma surpresa. Cato sorriu, pensativo. O que seria realmente surpreendente era que ele não o fizesse.
O som metálico de uma trombeta fez-se ouvir sobre o burburinho de ordens, conversas a meia-voz e sons dos animais. Cato escutou com atenção, e reconheceu o sinal
que convocava os comandantes das diferentes unidades ao quartel-general. Voltou à tenda, vestiu e apertou um colete de cabedal com tiras de proteção sobre o ombro
e sobre as pernas. Passou o cinturão do gládio sobre o pescoço e pegou na capa de lã. Quando voltasse à tenda, já estaria muito escuro, e conhecia aqueles vales
o suficiente para saber que à noite se tornavam extremamente frios, mesmo durante aquilo que passava por verão na Britânia. Ao sair da tenda apertou o alfinete no
ombro e ajustou a capa, enquanto esperava por Macro, que se aproximava vindo das tendas. Seguiram então os dois, atravessando o acampamento até ao quartel-general.
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- Agora que já cá estamos todos, posso enfim começar. - O general Ostório lançou um olhar de reprovação a Cato e Macro, antes de contemplar os rostos dos oficiais
sentados em bancos corridos à sua frente. Tendo sido os últimos a chegar, Cato e Macro sentaram-se atrás, na ponta de um banco, junto aos outros comandantes de unidades
auxiliares. Cato era de longe o mais jovem deles, e a maior parte dos outros prefeitos tinham cabelo salpicado de cinzento, ou até já tinham perdido uma boa quantidade
dele. Alguns exibiam cicatrizes, mas quanto a isso Cato não era exceção, já que o seu rosto era dividido por uma linha branca irregular, resultado de uma espadeirada
que recebera em tempos, no Egito. À frente deles sentavam-se os oficiais superiores das duas legiões que compunham a coluna de Ostório, a Décima Quarta e a Vigésima:
os centuriões que lideravam as coortes, os tribunos e os aristocratas que estavam destinados a um dia comandarem as suas próprias legiões, desde que mostrassem potencial
para tanto; e por fim os dois legados, veteranos a quem tinha sido confiado o comando de uma das formações de combate de elite do Império.
O general Ostório estava de pé, de frente para os seus subordinados, um aristocrata magro e ossudo, de idade já avançada, de rosto profundamente vincado e coberto
por cabelo branco, curto. Tinha reputação de ser um oficial experiente e duro, com um profundo entendimento estratégico, mas a Cato dava a nítida sensação de ser
apenas um homem frágil e fatigado. E as suas decisões eram também questionáveis. Antes de Cato e Macro terem regressado à província, o general tinha dado motivo
a uma revolta generalizada da tribo dos icenos. Ao preparar uma campanha contra siluros e ordovicos, e para se certificar de que o resto da província ficava em segurança,
tinha ordenado aos icenos que depusessem as armas.
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Uma ideia infeliz e desprovida de qualquer tato, que se traduzira numa grave ofensa à casta guerreira da tribo, que tinha preferido combater os romanos a entregar-lhes
as suas armas. A revolta que se seguira tinha sido facilmente esmagada, mas provocara um atraso no começo da campanha e dado a Carátaco o precioso tempo de que necessitava
para organizar os seus novos aliados. Tinha também humilhado os icenos e os seus apaniguados, que agora olhavam para os romanos com mal disfarçada hostilidade. Aquele
era precisamente o tipo de ferida no orgulho da tribo que havia de ficar a germinar e a sangrar nos corações dos guerreiros nativos, refletiu Cato. Duvidava que
aquela tivesse sido a última vez que os icenos desafiavam Roma. Ainda por cima, a batalha final da breve revolta tinha sido ganha por tropas tribais comandadas por
oficiais romanos. As divisões entre as tribos britânicas provocavam mais danos à causa dos que se opunham à presença romana do que as espadas das legiões. Enquanto
as mais poderosas das tribos continuassem a alimentar as suas rivalidades ancestrais, Roma teria caminho livre. Mas se algum dia os celtas se unissem realmente,
Cato temia que os soldados do Imperador se vissem varridos da ilha numa maré de carnificinas e humilhações.
Ostório levantou a mão e começou a sua preleção.
- Senhores, como sabem, temos passado o último mês a perseguir Carátaco por estas malditas montanhas acima e abaixo. A nossa cavalaria tem feito o impossível para
manter o contacto com o inimigo, mas o terreno favorece-o. Há demasiadas passagens estreitas onde a retaguarda silura nos pode fazer frente e atrasar o nosso progresso
enquanto o grosso do exército se escapa. Até agora temos conseguido manter esse contacto. Contudo, as neblinas que prevaleceram nos últimos dias permitiram a Carátaco
esfumar-se e desaparecer-nos da vista.
Não havia forma de esconder o desapontamento na voz do general, e Ostório passou os dedos crispados pelo cabelo antes de prosseguir.
- Os batedores informam-nos de que há duas vias que o inimigo pode ter tomado. Tribuno Petílio, o mapa, por favor.
Um dos tribunos subalternos apressou-se a avançar com um rolo de pergaminho e a colocá-lo sobre um estirador de madeira ao lado da secretária do general. A noite
já caíra lá fora, e o mapa era iluminado apenas pelas lamparinas de azeite dispostas pela tenda, o que obrigou Cato a semicerrar os olhos para perceber os pormenores
da carta. As
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indicações no mapa denunciavam uma das grandes dificuldades daquela campanha. Embora a linha de costa estivesse delineada com todo o detalhe, graças ao trabalho
do esquadrão naval que operava a partir de Abona, as zonas do interior quase não mostravam qualquer informação, e a pouca que tinham era referente às zonas do território
por onde o exército tinha já passado. Era tal a lealdade dos habitantes da região à causa comum que nem um se tinha mostrado disposto a servir de guia às forças
romanas, mesmo a troco de uma pequena fortuna em prata.
Ostório aproximou-se do mapa e batucou com o dedo sobre o pergaminho.
- Este é o vale onde estamos agora instalados. Uns quinze quilómetros mais à frente divide-se... Aqui. Um dos ramos parece dirigir-se para o interior do território
dos siluros. O outro orienta-se para norte, para a terra dos ordovicos. Se seguirmos para sul, assumindo que Carátaco foi nessa direção, ele continuará a levar-nos
neste belo passeio pelas montanhas, sempre atrás dele mas sem o apanhar. Dito isto, a verdade é que quanto mais tempo isto durar, maior será a dificuldade que ele
enfrentará para se manter abastecido. Os siluros já aguentaram muito, entre alimentar o exército e sofrer os ataques que temos feito às suas povoações. Podemos continuar
a perseguição até ao fim da época de campanha, mas o mais provável é que Carátaco continue a escapar-se-nos, o que quer dizer que para o ano teremos de começar tudo
outra vez.
Escutaram-se alguns murmúrios de descontentamento por entre os oficiais e Ostório cerrou momentaneamente os lábios, irritado.
- Senhores, silêncio! Sei perfeitamente como se sentem perante a perspetiva de passar ainda mais tempo nestas montanhas de merda. Mas resmungar não nos vai levar
ao resultado que procuramos. Temos de forçar o inimigo a dar-nos batalha. Só nesse caso poderemos ter a certeza que o destruiremos de uma vez por todas. E é por
isso que desejo fortemente que Carátaco tenha seguido para norte. Se, tal como suspeito, tenciona manter o seu exército junto, sem correr o risco de o deixar exaurido
e acabar por perder grande parte do efetivo, entre atrasos e desistências, então deve ir a caminho dos seus bastiões no território ordovico para beneficiar dos abundantes
recursos que tem ao seu dispor por lá. Ele sabe perfeitamente que corre o risco de se ver obrigado a defender aquele terreno se nós o perseguirmos até lá, mas ao
mesmo tempo isso permite-lhe manter abertas as linhas de comunicação com os brigantes.
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- Ostório virou-se para o mapa que não mostrava a localização da tribo que referira, de modo que se limitou a agitar a mão no ar, sobre o canto superior direito
do mapa. - Por estas bandas.
Cato e alguns dos outros oficiais sorriram perante o gesto do general, que baixou o braço e continuou:
- Como poderão saber, há entre os brigantes quem seja um tanto mais do que um simples simpatizante de Carátaco. Já tivemos de intervir uma vez para manter a rainha
Cartimandua no poder. A decisão que ela tomou de se aliar a Roma não caiu bem com muitos dos nobres mas, segundo as últimas informações que recebemos, ela tem a
situação controlada. É gratificante verificar que ela continua a demonstrar lealdade ao Imperador. Bem, não faz mais do que devia, dada a quantidade de ouro que
o Imperador lhe pagou por essa lealdade. Agradeço aos deuses que haja mulheres que se deixam comprar por muito menos, embora tenha ouvido dizer que, quanto mais
nos embrenhamos nas montanhas, mais as damas de virtude fácil que seguem entre a coluna civil que nos acompanha sobem os seus preços. Será bom apanharmos Carátaco
depressa, ou o exército vai acabar na bancarrota.
Desta vez o comentário do general provocou um coro de gargalhadas, e até Cato esboçou um sorriso.
- É bem verdade - resmungou Macro a meia-voz. - Vacas gananciosas.
O ambiente na tenda tinha-se tornado menos formal e, ao analisar a expressão do general, Cato notou o brilho astuto no olhar do ancião, e percebeu que aquele momento
de leviandade tinha sido um truque pensado para aproximar os oficiais do seu comandante. Uma artimanha bem urdida, decidiu Cato, e tomou uma nota mental para a usar
da próxima vez que se dirigisse aos seus subordinados.
- Portanto, senhores, se queremos evitar a ruína financeira dos nossos homens, temos de voltar a encontrar e terminar a tarefa de destruir Carátaco. O homem tem
sido uma faca cravada na nossa carne desde que pusemos o pé nestas terras. - A expressão de Ostório tornou-se séria. - É um nobre inimigo. O melhor de todos os que
tive a honra de enfrentar, e há muito a aprender com um comandante do seu calibre. Por essa razão, solicito que, quando chegar o momento, todos envidem esforços
no sentido de o capturar vivo. A sua morte seria verdadeiramente lamentável. Se o homem puder ser domado, estou certo de que se
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poderia tornar um poderoso aliado. Mas estou a divagar. - Regressou ao mapa. - Enviei batedores pelos dois vales, com ordens para localizar o inimigo. Assim que
soubermos em que direção seguiu Carátaco, retomaremos o avanço. Até que chegue esse momento, o exército poderá aproveitar para descansar no campo. Empreguem o tempo
de forma adequada. Ponham os homens a tratar do equipamento, a cuidar das feridas e a recuperar o sono. Para os oficiais, tratei de arranjar uma forma mais adequada
de passar o tempo. - Voltou a apontar para o mapa, para um ponto próximo do local onde o exército tinha edificado o campo. - Passámos por este vale esta manhã. Segundo
a patrulha que o explorou, não tem saída. Porém, é rico em caça. Veados e porcos selvagens. Seria uma pena desperdiçar esta ocasião enquanto esperamos por novas
dos movimentos do Carátaco. Portanto, convido-vos a todos para uma caçada. Arranjem um cavalo decente, uma lança resistente, e juntem-se a mim amanhã pela alvorada,
no portão das traseiras... Quem virá comigo?
Macro levantou-se como se tivesse uma mola.
- Eu, senhor!
Os outros imitaram-no de imediato; Cato entre eles, todos ansiosos por se verem livres das tarefas de rotina no campo e se perderem na excitação da caça. A comoção
geral depressa amainou, à medida que Ostório deixava a face abrir-se num sorriso e acalmava os espíritos com gestos amplos das mãos.
- Ótimo! Excelente. Bem, antes de vos deixar ir, talvez alguns tenham notado a chegada de um novo rosto para se juntar à nossa alegre irmandade. Marco, levanta-te,
por favor.
Um tribuno, sentado na fila da frente, pôs-se de pé e virou-se para se apresentar aos seus camaradas. Cato notou que era um homem alto, de ombros largos, com talvez
uns vinte anos de idade. Usava uma placa peitoral polida com um desenho simples, e a capa e trajes estavam salpicados de lama, o que indicava a sua chegada recente.
O cabelo alourado já começava a escassear, e estava arranjado em pequenos caracóis bem oleados sobre o escalpe. Acenou com a cabeça à laia de saudação geral e sorriu
agradavelmente enquanto deixava o olhar percorrer as faces à sua frente. O general deu-lhe uma amigável palmada no ombro.
- Este é então o tribuno-chefe Marco Silvano Otho, da Nona Legião. Está no comando de um destacamento que mandei vir de Lindum. Adiantou-se para nos vir anunciar
a chegada da coluna, amanhã. Mais
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quatro coortes para reforçar o nosso efetivo, mais do que suficientes para garantir que esmagaremos o inimigo quando este finalmente arranjar a coragem para fazer
meia-volta e nos enfrentar. Calculo que queiras juntar-te à caçada de amanhã, tribuno Otho?
O sorriso do jovem apagou-se por momentos.
- Senhor, nada me daria mais prazer. Todavia, considero ser meu dever estar aqui quando os meus homens chegarem ao campo.
- Disparate, disparate! - bradou Ostório. - O prefeito do campo pode muito bem dizer-lhes onde colocar as tendas, já que estará no comando, na minha ausência. Não
é assim, Marcelo? - O general apontou para um veterano de aspeto grisalho sentado na fila da frente.
Este encolheu os ombros.
- É como diz, senhor.
- Ora aí está, os teus homens já têm quem trate deles.
O tribuno baixou a cabeça, fatigado.
- Agradeço-lhe, senhor.
Ostório, radiante, voltou a dar-lhe um toque no ombro, antes de lhe indicar que retomasse o assento. Virou-se para os outros.
- É tradição que, antes de uma caçada, se celebre com um festim. Contudo, e infelizmente, as míseras rações que nos são atribuídas para uma marcha não se adequam
a tal fim. Ainda assim, o meu cozinheiro fez o seu melhor... - O general bateu as palmas, e as abas da traseira da tenda foram abertas de par em par por dois soldados,
que se afastaram para revelar uma área coberta por um toldo na continuação do posto de comando do general. Várias mesas de campanha tinham sido dispostas lado a
lado para criar uma longa mesa de jantar, ladeada por bancos corridos. Jarras de vinho e suportes para lamparinas de azeite estavam colocados a intervalos regulares,
e sobre a mesa havia taças de prata, pratos e travessas com pães. Uma leve corrente de ar quente trouxe às narinas dos oficiais na tenda um ligeiro aroma a carne
assada, e Macro estalou os lábios.
- Porco, se não estou enganado. Deuses, por favor, façam com que seja porco!
Embora sentisse que devia aparentar o ar de impassibilidade que se adequava à sua patente, Cato não conseguiu evitar que o seu próprio estômago soltasse um pequeno
ronco perante a perspetiva iminente de boa comida e vinho. Entretanto, o general sorria perante as expressões
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faciais dos seus oficiais e gozava o momento, até se virar para a mesa e lhes fazer sinal para o seguirem.
- Senhores, aos vossos lugares.
Os oficiais levantaram-se e seguiram o seu comandante sem hesitar. Todos eles estavam familiarizados com a estrita ordem pela qual se deviam sentar naquelas circunstâncias;
depois de Ostório ocupar a sua posição à cabeceira, os legados das duas legiões sentaram-se cada um do seu lado. Seguiram-se os tribunos de mais elevado estatuto,
o prefeito do campo, e depois os prefeitos das unidades auxiliares, por ordem de antiguidade. Desta forma, Cato acabou a meio da mesa, perto dos centuriões que comandavam
as coortes de legionários. Macro ficou do outro lado da mesa, e lançou-se de imediato para o recipiente mais próximo, espreitou lá para dentro para se assegurar
de que continha vinho e encheu a sua taça até cima. Nessa altura deitou um olhar culpado a Cato e exibiu a jarra, enquanto lançava uma inquirição silenciosa com
uma sobrancelha arqueada.
- Obrigado. - Cato pegou também numa taça e aproximou-a para que Macro a enchesse.
- Importas-te de abrir um lugar?
Cato olhou em redor e viu Horácio, o prefeito de uma coorte da Hispânia, uma unidade mista de infantaria e cavalaria. Tal como Cato, tinha assumido o posto recentemente
e fora colocado no exército de Ostório havia poucos meses. Era um veterano cheio de cicatrizes, que tinha alcançado aquele comando da forma mais difícil, depois
de já ter ocupado a cobiçada posição de Primeira Lança da Vigésima Legião. Em condições normais, o facto de Cato deter o comando de uma unidade montada dar-lhe-ia
maior antiguidade, mas a verdade é que ser o encarregado da caravana das bagagens correspondia ao mais baixo estatuto entre os prefeitos. Levantou-se, e os centuriões
sentados à sua direita apertaram-se mais um bocado para lhe arranjar espaço. Horácio acenou em agradecimento enquanto se sentava no lugar que Cato lhe deixara. Acomodou-se
e virou-se para o jovem prefeito com uma expressão de curiosidade no rosto.
- Os teus trácios não são lá grande coisa, pois não?
- Senhor?
- Têm o aspeto de um bando de rufiões, com aquelas barbas e as túnicas e capas negras, e aquela parafernália toda. Não dão nada ar de
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uma unidade regular do exército. Cato, devias insistir em padrões mais altos quanto à apresentação dos teus homens.
- Combatem tão bem ou melhor do que outros.
- Pode ser que sim, mas dão mau aspeto ao exército.
Cato sorriu.
- Era esse o efeito que o meu antecessor no cargo queria produzir. E é também por isso que têm um estandarte próprio. O inimigo conhece-os e teme-os.
- Pois, já ouvi dizer. Os Corvos Sangrentos.
Cato assentiu.
- Parece-me que corvos sarnentos seria mais apropriado... - Horácio acenou a Macro e apontou para o copo. - Se não te importas.
Macro mostrou uma careta mas fez o que lhe era pedido, antes de pousar a jarra com evidente má vontade e pegar na sua taça. Sorveu um bom trago e sorriu.
- Bela pinga. É bom ver que o general trata bem dos seus oficiais.
Horácio sorriu sem vontade.
- Se fosse a ti, não tirava conclusões precipitadas. É a primeira vez que nos oferece um festim em meses. O velhote está a cheirar o momento do abate. Talvez tenha
sido isso que lhe deu a ideia para esta caçada. Num dia um veado, no outro o Carátaco, não vos parece?
- Bebo a isso! - Macro ergueu o copo e engoliu o líquido de uma
vez.
Cato imitou-o e provou o vinho, sabendo perfeitamente que o amigo não era muito esquisito quanto a motivos para beber. A qualidade refinada do vinho surpreendeu-o.
Um travo rico, suave, levemente almiscarado, muito diferente do sabor acre da maior parte do vinho barato que era importado para a ilha, onde podia ser vendido com
um lucro substancial, qualquer que fosse a sua qualidade. Os seus pensamentos voltaram-se de novo para os comentários do outro prefeito.
- Será melhor não cozinharmos o veado antes de o apanharmos. Duvido muito que o inimigo nos faculte um exercício tão simples como as presas que vamos abater na caçada
de amanhã.
Horácio coçou o queixo.
- Espero que estejas enganado. Não apenas porque já estou farto de andar atrás daqueles malditos bárbaros por estas montanhas. Não, quem me preocupa é o Ostório.
- Baixou a voz e lançou uma olhadela
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rápida para a cabeceira da mesa. Cato seguiu-lhe o olhar e viu o general a contemplar um cálice de prata enquanto escutava a conversa dos dois legados. Toda a vivacidade
do homem que tinha acabado de se dirigir com tanta decisão aos seus oficiais tinha desaparecido. Naquele momento, o general parecia cansado, e a face enrugada inclinava-se
para a frente, como se a cabeça lhe pesasse sobre os ombros ossudos. Horácio deixou escapar um suspiro. - Pobre desgraçado, está completamente gasto. Estou cá para
mim a pensar que esta deve ser a sua última campanha. E ele sabe-o. Por isso é que está tão determinado em apanhar Carátaco antes que seja tarde de mais para ele.
A sua carreira militar vai terminar aqui nestas montanhas. Vitória ou derrota, ou a humilhação de ficar sentadinho em Roma enquanto o seu sucessor termina o trabalho
e recolhe todas as recompensas... - Beberricou o vinho. - Uma pena, isso, depois de todo o trabalho que o Ostório já teve. - O prefeito sorriu a Macro e Cato. -
Bom, ainda há grandes possibilidades de encurralarmos o inimigo daqui a poucos dias, não é?
- Espero bem que sim. - Cato obrigou-se a lançar um sorriso de encorajamento. - Mesmo que não tenhamos grande vista para os acontecimentos, lá na retaguarda, ou
mais atrás ainda.
Horácio soltou um grunhido de simpatia.
- Meu rapaz, tens de fazer o teu caminho. Comandar a escolta do comboio de bagagens não te vai pôr medalhas ao peito, claro, mas não deixa de ser um trabalho necessário.
Desempenha-o bem, e hás de ter ocasião de ilustrar o teu nome, a seu devido tempo.
Cato sufocou a vontade de explicar ao outro oficial que já tinha tido a sua dose de combates ao longo dos anos que já levava de serviço no exército. Ao lado de Macro
tinha enfrentado e ultrapassado situações mais perigosas do que a maior parte dos soldados de Roma tinha ocasião de enfrentar ao longo de toda a sua carreira. Fizera
o seu caminho, sim, e de que maneira. Mas a experiência ensinara-lhe que a vida raramente distribuía recompensas proporcionalmente aos esforços a que os homens se
davam para as alcançar. E também lhe ensinara a nunca subestimar o inimigo. Mesmo naquelas circunstâncias, com todo o poder do exército romano a respirar-lhe ao
pescoço, Carátaco seria bem capaz de subtrair a Ostório a possibilidade de obter um triunfo final numa longa e gloriosa carreira.
Os seus pensamentos foram interrompidos pela entrada na tenda
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de dois criados do general que carregavam um porco assado, bem tostado e ainda a estalar. Estava espetado numa forte vara, cujas pontas assentavam nos ombros dos
dois homens. Encaminharam-se com algum esforço para uma pequena mesa lateral onde pousaram a carga. A tenda encheu-se do rico aroma da carne assada, e os oficiais
lançaram olhos apreciativos sobre o prato principal do festim. Um dos criados olhou para o general, à espera de permissão para prosseguir, e Ostório concedeu-a com
um movimento rápido da mão. O homem tirou uma faca bem afiada do cinto e começou a trinchar a carcaça, cortando pedaços de carne que depositava em travessas para
que o seu companheiro as fosse distribuir pelos oficiais, começando pela cabeceira da mesa. Enquanto os outros oficiais superiores devoravam a carne, esfaimados,
Ostório limitou-se a remexer no prato e a debicar uns pedaços, reparou Cato.
Depois de ter sido servido, Cato pegou na adaga e cortou o seu naco de porco em pedaços mais fáceis de deglutir. Do outro lado da mesa, Macro atirou-se à sua dose,
as mandíbulas a trabalhar a toda a velocidade. Cruzou olhares com Cato e riu, o molho a escorrer-lhe dos cantos da boca. Cato devolveu-lhe o sorriso, antes de se
voltar de novo para o seu vizinho.
- Sabe alguma coisa acerca do novo camarada?
Horácio apontou para o cimo da mesa com a ponta da faca.
- O tribuno Otho? - Fez uma breve pausa para pensar. - Nem por isso. Só o que me contou um amigo que chegou de Lindum há uns dias. O nosso rapaz veio de Roma há
menos de dois meses, com a tinta ainda húmida na carta de nomeação. Um tipo popular, embora ainda tenha muito a aprender acerca do exército. Como acontece com a
maior parte desses aristocratas. É dar-lhes uns anitos disto, e deixarão de fazer asneiras. É o melhor que podemos esperar.
Fez outra pausa para encher a boca de comida e por fim, quando ele não continuou, foi Cato quem limpou a garganta e deu nova alma à conversa.
- Mais nada? Era tudo o que o seu amigo tinha a dizer do Otho?
- Quase tudo. Havia mais uma coisinha, sim. - Horácio baixou a voz e inclinou-se para o jovem. - Havia um rumor que mencionava a razão por que ele acabou aqui nesta
ilha miserável.
- Oh?
- Sabes como é, Cato. Um criado diz uma coisa a outro, e antes que
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se perceba o que aconteceu, já estão a afirmar que dois e dois são cinco. Neste caso, parece que o nosso amigo Otho veio cá parar por ordem expressa do Imperador,
como punição. E se vais punir alguém, não há melhor maneira, de facto... é mandá-lo para a Britânia.
A curiosidade de Cato estava agora plenamente desperta, e ele engoliu rapidamente para poder incitar o veterano a revelar mais informações.
- E qual a razão para essa punição imperial?
Horácio piscou o olho.
- Qualquer coisa que tem a ver com a mulher dele. Que, aliás, insistiu em acompanhá-lo. Pensa disto o que quiseres. Segundo o meu amigo, é uma brasa.
Cato sugou o ar por entre os dentes. Também ele considerara a hipótese de trazer consigo a esposa, Júlia, mas tinha-se decidido em contrário, dados os perigos que
uma província ainda por dominar podia colocar, já que pululava de inimigos do Imperador Cláudio. Se Otho escolhera permitir que a esposa o acompanhasse, era bem
possível que julgasse que ela correria ainda maior perigo se ficasse em Roma. Ou isso, ou o tribuno era dominado pelos ciúmes e não se tinha atrevido a deixar a
mulher sozinha na capital.
Um pensamento daquela espécie despertou em Cato um ataque de ciúmes, e as imagens e ansiedades que conjurava sobre a fidelidade de Júlia percorreram-lhe a mente,
sem brida. Ela fazia parte do mundo social dos aristocratas; havia inúmeros homens ricos e poderosos, de boa aparência, que podiam bem atrair-lhe o olhar, e a sua
própria beleza permitir-lhe-ia escolher à vontade entre eles. Obrigou-se a afastar aqueles receios, furioso e envergonhado por se atrever sequer a duvidar dela.
Afinal, não dispunha ele das mesmas oportunidades para se satisfazer, nas povoações e nas tendas do acampamento dos seguidores civis, embora nesses casos a companhia
fosse menos seleta e exibisse considerável menos respeito por si mesma? E Cato não traíra os seus votos, a tudo resistira. Tinha de acreditar que Júlia lhe fazia
a mesma honra. Que mais poderia fazer?, perguntava-se. Se se atormentasse com medos daquele género, eles tornar-se-iam uma distração perigosa - para ele mesmo e,
ainda mais importante, para os seus homens.
Tentou desanuviar a mente enquanto mastigava alguma carne e a fazia escorregar com algum vinho.
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- Não sabe mais nada sobre o tribuno?
Horácio olhou para ele com irritação.
- Pois, é tudo. Não sou propriamente a coscuvilheira cá do burgo. E, com toda a franqueza, estou-me a cagar para o tipo novo e a sua mulher.
- Está certo.
Mas o outro prefeito não se deu por satisfeito, e virou-se para o outro lado da mesa.
- Ei, centurião Macro!
Macro levantou o olhar do prato.
- Já serves com o Cato há uma boa temporada, não é? Ele é sempre assim intrometido?
- Senhor?
- Sabes como é, sempre a fazer perguntas?
Macro soltou uma risada, o efeito do vinho bebido já a fazer-se notar pelo tom arrastado das palavras que proferia.
- Não faz ideia. Se acontece qualquer coisa, o prefeito quer saber porquê. E eu sempre a dizer-lhe que é a vontade dos deuses. É tudo o que um homem precisa de saber.
Não no caso dele. Tem a mente de um grego.
- A sério? - Horácio remexeu-se no banco, como se quisesse afastar-se do jovem. - Espero bem que essa semelhança não se estenda até à apreciação de outros costumes
dos gregos.
Macro largou uma gargalhada.
- Oh, quanto a isso, é tão certo como o voo dum dardo. E tem boas razões para isso. Devia conhecer a esposa dele. A mais bonita jovem de Roma.
Cato fez uma careta e rangeu os dentes, enquanto apontava um dedo firme a Macro.
- Centurião, já chega. Percebido?
O tom agreste da voz do amigo trespassou a névoa etílica que ameaçava tomar conta da consciência de Macro, e ele baixou o olhar, sentindo-se culpado.
- Senhor, peço desculpa. Disse mais do que devia.
Cato assentiu.
- Exatamente. E agradecia que se recordasse disso.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo de oficiais que tinham ouvido a ríspida troca de palavras, mas o burburinho no resto da tenda não
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tinha amainado, e depressa os homens que ladeavam Cato e Macro se voltaram a deixar envolver nas conversas animadas que os rodeavam. Contudo, o ar entre os dois
amigos continuou azedo durante o resto do tempo que durou o festim.
Quando por fim os últimos pratos foram levados e os oficiais começaram a levantar-se e a sair da tenda, Cato dirigiu-se até junto do tribuno subalterno que era responsável
pelos suprimentos gerais.
- Gaio Pórcio, uma palavra.
Um jovem oficial, baixo e com um rosto redondo encabeçado por cabelo escuro encaracolado e desalinhado afastou o olhar dos amigos e sorriu a Cato, com ar estúpido.
- Sim? Pr-prefeito Cato, não é?
Cato fitou-o sem simpatia. Tinha-se limitado a beber um copo de vinho, já que não apreciava a sensação de estar bêbado, ou melhor, as consequências dessa sensação.
Estava portanto perfeitamente sóbrio.
- Gostava de te falar acerca da situação de alguns suprimentos.
- Com certeza, senhor. Amanhã. Logo pela ma-manhã. Oh, espere aí. Há a caçada. Então, depois disso, senhor. A-assim que for possível.
- Pórcio, quero falar contigo agora, não é depois.
O oficial mais novo hesitou por momentos, como se estivesse a considerar um protesto, mas a dura expressão que Cato adotara mostrava claramente que não estava com
disposição para ser desafiado, e o tribuno acabou por se virar para os amigos.
- Rapazes, continuem. Já vou ter convosco à messe.
Os seus camaradas trocaram olhares de compreensão, e deram-lhe umas palmadas no ombro à laia de despedida enquanto se arrastavam para fora da tenda. Pórcio virou-se
de novo para Cato e fez um notório esforço para se concentrar.
- Senhor, sou todo seu.
- Ótimo. Como me parece que tiveste alguma dificuldade para te lembrares do meu nome, vou refrescar-te a memória. Quinto Licínio Cato, prefeito da Segunda Trácia
de Cavalaria e, por agora, comandante da escolta do comboio das bagagens. Quer dizer, já devias ter isso bem presente, dada a quantidade de requisições que mandei
ao quartel-general no último mês, a pedir com urgência as rações e os equipamentos necessários para as minhas duas unidades. Mas não tenho tido respostas. E isso
não é propriamente aceitável, pois não, tribuno Pórcio?
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O outro levantou uma mão para protestar.
- Senhor, compreendo perfeitamente a sua situação. Todavia, o seu comando não está posicionado na frente. As provisões são escassas, e há outras unidades com maior
pri-prioridade.
- O caralho - ripostou Cato, furibundo. - Os auxiliares e legionários sob o meu comando são tropas de combate. Não é a ti que temos de provar o nosso valor. E de
qualquer forma, o general confiou-nos a guarda do comboio das bagagens. Se não cumpríssemos a nossa tarefa a contento, não havia era suprimentos para ninguém. Se
os meus homens e as suas montadas forem obrigados a viver sem as rações adequadas, dificilmente estarão em boas condições para enfrentar o inimigo, se este se lembrar
de atacar os vagões e as pessoas que protejo. E os meus homens serão ainda menos eficientes se não conseguirem reparar os equipamentos por falta dos materiais necessários
para os remendar. Já temos falta de pessoal. Se formos atacados e o inimigo conseguir romper a nossa defesa, a tua parte da responsabilidade não será pequena, tribuno
Pórcio. E tratarei de garantir que toda a gente fica ciente desse facto, desde o mais raso dos soldados ao general, e ao Imperador lá em Roma. - Inclinou-se de tal
forma que os dois rostos ficaram separados por escassos centímetros, e espetou o dedo firmemente no peito do jovem. - Pensa no que isso fará às tuas perspetivas
de carreira. Terás muita sorte se conseguires ser colocado como supervisor de esgotos nalguma espelunca merdosa no meio do deserto, algures nos confins do mundo
conhecido.
Pórcio recuou e abanou a cabeça.
- Senhor, não está a compreender. Se pudesse dar-lhe tudo o que me pede, fá-lo-ia. Mas é meu dever de-decidir quais os pedidos dos comandantes das diversas unidades
é que são realmente justificados.
- E eu acabo de te dizer as razões pelas quais os meus pedidos o são. Daqui em diante, tratarás de garantir que os meus trácios e os legionários do centurião Macro
recebem tudo o que merecem e precisam. Se não o fizeres, juro que vou à tua procura no quartel-general ou onde quer que estejas a beber com os teus amigos, e dou-te
uma descasca à frente deles, daquelas que nem tu nem eles vão esquecer tão depressa. Estás a perceber?
Pórcio anuiu, nervoso.
- P-perfeitamente, senhor.
- Excelente. Portanto, vê lá se as nossas provisões são distribuídas
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a tempo, e na quantidade requerida, e trata disso amanhã de manhã. O mesmo quanto ao couro e ao outro material que já requisitei.
- Sim, senhor.
Cato continuou a encarar o tribuno, para aproveitar ao máximo o evidente desconforto do jovem oficial. Prosseguiu em tom ameaçador:
- Não me dês motivos para ter de repetir esta cena...
- Não, senhor. Nunca mais. Juro-o por todos os deuses.
- Os deuses são a última das tuas preocupações. Se não fizeres o que te digo, e se por causa disso eu não conseguir cumprir o meu dever, algum guerreiro inimigo
vai acabar por ter ocasião de te retalhar todinho. E se ele não o fizer, eu próprio me encarregarei disso.
- Senhor, está a ameaçar-me?
- Não, que ideia; estou apenas a fazer-te uma promessa. - Cato semicerrou os olhos e falou devagar. - E agora, desaparece da minha vista, antes que eu me esqueça
dos procedimentos legais e te torça esse maldito pescoço agora mesmo.
Pórcio recuou alguns passos titubeantes, antes de se atrever a virar as costas e sair em passo acelerado da tenda, debaixo do olhar furioso de Cato. Depois de o
tribuno desaparecer, Cato relaxou e até sorriu brevemente. Tinha-lhe sabido bem intimidar o jovem. E tinha sido bom para o outro, também. Talvez lhe permitisse começar
a desempenhar o seu papel como devia ser. Ao mesmo tempo, porém, o facto de ter intimidado e amedrontado outra pessoa, e isso lhe ter agradado, perturbava Cato.
Ao longo da sua carreira tinha visto suficientes cenas daquele género para saber que, embora pudessem ser úteis para levar a que uma tarefa fosse realizada rapidamente,
a longo prazo acabavam por diminuir aqueles que eram humilhados. E para além disso, tinha-se observado a ser a causa direta e a apreciar o desconforto que provocava
noutra pessoa. Não era uma experiência edificante, e sentiu o peso da vergonha a cair-lhe sobre os ombros enquanto se preparava para deixar a tenda.
- Bravo, prefeito Cato.
Virou-se rapidamente, e percebeu que afinal não era o último oficial a deixar a tenda, como pensara. Uma figura destacou-se das sombras na parte lateral da tenda
e tornou-se visível à luz das lamparinas. Era o legado da Décima Quarta, Quintato, o homem que Cato suspeitava ter sido o responsável pela sua nomeação para o comando
do forte em Bruccium, uma tarefa que quase lhe custara a vida, bem como a Macro.
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Quintato sorriu.
- Bela esfregadela. Aquele verme patético bem a mereceu. Há demasiados destes tribunos subalternos que vêm para o exército a pensar que isto é uma brincadeira. Uma
oportunidade para estarem longe da família mas continuarem a comportar-se como os outros bêbados seus amigos que ficaram em Roma. É de disciplina que eles precisam,
e é isso que o exército tem de lhes enfiar nos cornos.
Cato respirou fundo.
- Senhor, estava apenas a relembrar-lhe os seus deveres.
- Evidentemente, e fizeste um bom trabalho.
O legado contemplou-o por momentos, os olhos frios a piscar enquanto avaliava Cato.
- Achas que terem-te posto no comando da escolta da caravana das bagagens é uma forma de punição, não é?
- Alguém tem de o fazer - retorquiu Cato, sem deixar transparecer qualquer emoção.
- É bem verdade. Mas porquê tu? É isso que perguntas a ti mesmo.
- O que eu penso, senhor, é cá comigo.
- Pode ser que sim. Mas talvez estejas certo quando pensas que há uma razão para isso, Cato. Estás marcado como um dos homens de Narciso, faças o que fizeres. Narciso
não é o único a possuir uma organização privada de agentes a trabalhar para si. Pallas faz o mesmo. Outro cabrão de um liberto imperial com grandes ambições. E tão
manhoso e perigoso como o rival, o Narciso. Se há coisa de que podes estar certo, é de que Pallas tem agentes entre o pessoal do general Ostório. E que eles não
hesitarão em tentar tramar-te.
- Já reparei - ripostou Cato, observando Quintato com toda a atenção. - Não terei um deles na minha frente?
- Eu? - Quintato riu-se. - Afortunadamente, não. Nasci na aristocracia, muito acima desse nível. E aqueles libertos gregos preferem não se meter com figuras públicas,
desde que o consigam evitar. É-lhes mais útil usar gente que não pode almejar aos mais altos postos do Império, e que por isso não pode constituir ameaça a gente
da laia do Pallas e do Narciso. Portanto, quanto a isso, podes ficar descansado.
- Porém, está bem ciente dos planos que o Pallas me destinou.
- Foi-me indicado que te tornasse a vida difícil, sim.
- Parece-me que foi mais do que isso. Acho que lhe foi dito que
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tornasse difícil que eu pudesse sobreviver ao comando que me foi destinado.
Quintato encolheu os ombros.
- Podia ter acontecido. Felizmente, não foi assim. Ultrapassaste as tuas experiências em Bruccium, e ficaste a saber que és demasiado bom oficial para seres desperdiçado
por causa dos caprichos dum liberto em Roma. Cato, não tens nada a temer de mim.
Cato deixou escapar um sorriso amarelo.
- Diz isso agora...
O outro franziu o sobrolho.
- Pensa o que quiseres. Só quis deixar-te descansado quanto à minha pessoa. O perigo que te ameaça vem de outro lado.
Cato sentiu um arrepio frio de medo a eriçar-lhe os pelos da nuca.
- De quem? Do general?
- Do Ostório? Nem pensar. Nunca se meteria em esquemas tortuosos. Achas que foi por isso que te foi atribuído o comando da escolta das bagagens?
- Já me tinha passado pela ideia - admitiu Cato.
- Foram outras as razões para teres sido escolhido - adiantou Quintato, já fatigado. - De facto, foi por minha sugestão. Ambas as unidades da guarnição de Bruccium
sofreram grandes perdas. Já não tens homens suficientes para que o teu comando tome lugar na frente de combate. Não tenho dúvidas sobre as suas capacidades, e pensei
em qual seria a melhor forma de colocar os teus homens onde pudessem fazer um bom trabalho. Foi essa a razão. Não estou a tentar sabotar a tua carreira.
Cato pesou a explicação, e compreendeu que fazia sentido. Sentiu-se até algo lisonjeado ao saber que ele e os seus homens estavam bem cotados na consideração do
legado. Mas mesmo assim não conseguia confiar completamente em Quintato.
- Obrigado, senhor - concluiu, também cansado.
- Não te preocupes. Queria apenas que soubesses que as tuas qualidades são bem conhecidas dos teus superiores. Eu, pelo menos, preferiria mil vezes ter-te a combater
a meu lado do que andar a ver se consigo espetar-te uma faca nas costas.
- É gratificante escutar essas palavras.
O legado arqueou o sobrolho.
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- Não abuses... Bom, será melhor passar uma boa noite de sono antes da caçada de amanhã.
Sem esperar por resposta, Quintato virou-se e deixou a tenda. Cato fechou os olhos e esfregou as têmporas. Tinha o coração pesado com presságios. A única razão que
levara Narciso a puxar os cordelinhos para lhes arranjar, a ele e a Macro, posições na Britânia fora para os afastar dos esquemas dos libertos imperiais. Sobretudo
porque Macro tinha testemunhado um encontro íntimo entre Pallas e a nova esposa do Imperador, Agripina. E agora tudo levava a crer que a influência de Pallas chegava
sem grande esforço à mais selvagem fronteira do Império.
Um pensamento sinistro atingiu-o num repente. Era bem possível que Narciso os tivesse enviado para ali por razões outras que não a sua segurança. Seria perfeitamente
típico do sujeito. E nesse caso estariam a enfrentar uma ameaça dupla: os guerreiros inimigos pela frente, e os agentes de Pallas pelas costas.
O coração pesava-lhe, e uma terrível exaustão assentava-lhe nos ombros. Não haveria forma de escapar às maquinações daqueles que cumpriam o seu letal jogo de autopromoção
à sombra do Imperador? Uma coisa era certa: tinha de ser cuidadoso e estar sempre à espreita de quaisquer sinais de perigo. Se os agentes de Pallas já se encontravam
na Britânia, e se acreditavam que ele e Macro ainda estavam a agir por ordens de Narciso, aproveitariam a primeira oportunidade para os retirar do tabuleiro do jogo
em que se movimentavam.
- Foda-se... - murmurou Cato para si mesmo, com amargura, enquanto saía da tenda e se dirigia vagarosamente para as tendas da escolta. - Porquê eu? Porquê o Macro?
Sorriu para si mesmo. Sabia exatamente o que lhe responderia Macro naquela situação. O mesmo que dizia quando confrontado com qualquer situação do género.
- Porque é precisamente aqui que nos encontramos, Cato, meu rapaz. E cá estamos...
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- Uma bela manhã para isto! - Cato espreguiçou-se e lançou o
olhar para cima, para um céu azul, claro e limpo. Nem uma nuvem se via e não corria a menor brisa. O ar ainda estava fresco e húmido, e ele respirou profundamente.
Depois de regressar à sua tenda, na noite anterior, tentara o seu melhor para esquecer as preocupações que o tinham afligido. Em vez disso, obrigara-se a pensar
em Júlia, na casa que planeava construir um dia na Campânia, quando tivesse acumulado uma fortuna suficiente com o espólio conseguido durante os anos de serviço
militar. Até ali tinha havido muito pouco disso, mas se a campanha na Britânia terminasse com sucesso, haveria uma boa maquia a realizar com a venda dos prisioneiros
aos mercadores de escravos. E também um quinhão do ouro e da prata conseguidos. Mais do que suficiente para conseguir obter uma parcela da calma e tranquilidade
da Campânia, onde ele e Júlia poderiam construir uma família, e ele poderia tomar lugar entre os magistrados da cidade mais próxima. Talvez Macro escolhesse viver
por perto, e eles pudessem de vez em quando partilhar uma bebida e recordar os bons velhos tempos. Com pensamentos tão agradáveis a ocuparem-lhe o espírito, depressa
se tinha deixado levar pelo sono.
- O quê? - resmungou Macro, de cabeça nas mãos. Estava sentado no outro banco, a aquecer-se na fogueira que tinha sido acesa à frente da tenda do prefeito. - Bela
manhã? O que é que ela tem de belo?
Cato não deixou de sorrir perante o desconforto do amigo. Quando bebia, Macro nunca parava para pensar nas consequências.
- Céu limpo, ar puro, uma bela caçada em perspetiva. Chega para me pôr de bom humor.
- Dizes tu.
- Ah, cá está o Thraxis. - Cato sentou-se, ao ver o criado chegar com um pesado recipiente de ferro, com um trapo enrolado à volta da
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pega para proteger as mãos do calor. Colocou-o junto à fogueira, antes de lhe tirar a tampa. Na outra mão trazia duas gamelas da messe e uma concha de madeira.
- O que nos trazes? - indagou Cato, piscando o olho enquanto esticava o pescoço para espreitar para dentro da panela.
- Prefeito, pensei que seria boa ideia trazer alguma coisa substancial para lhes encher os estômagos para o dia. - O homem mergulhou a concha e remexeu o espesso
conteúdo cinzento da panela. - É papa com toucinho, presunto e mel, que comprei no mercado ontem à noite.
- Inclinou-se e cheirou a comida. - Ah! Cheira bem.
Tirou uma concha cheia da panela e deixou-a cair numa das gamelas de estanho, onde a papa se espalhou lentamente. Passou-a a Cato, junto com uma colher.
- Aí tem, prefeito.
Cato acenou um agradecimento e pegou na gamela. Tirou uma colherada e soprou para a arrefecer, antes de experimentar o sabor quase a medo. Estava quente e bem temperada,
pelo que engoliu rapidamente a primeira colher e continuou, enquanto o criado enchia outra gamela para Macro e a passava ao centurião.
- Senhor?
Macro levantou a cabeça, de olhos cansados e com uma espessa penugem a crescer-lhe na face. Pegou na gamela com evidente relutância.
- Thraxis - interveio Cato. - Vê se as nossas botas, capas e cantis estão prontos, para quando acabarmos de comer.
- Sim, prefeito.
Cato voltou a atenção para o estado do amigo. Já se tinham passado vários dias desde que Macro fizera a última visita ao barbeiro, e começava a ter um aspeto mais
bravio do que o mais selvagem dos celtas, considerou Cato. O cabelo do centurião começava a tornar-se cinzento nas têmporas e, se Cato não se estava a deixar levar
pela imaginação, começava também a retroceder da testa. O que não era propriamente uma surpresa, já que Macro estava no quadragésimo ano de vida, e já tinha passado
vinte e quatro no exército, depois de ter mentido aos dezasseis para conseguir alistar-se. Cato fez uma pausa antes de engolir nova colherada, e limpou a garganta.
- Já pensou no que vai fazer quando chegarmos ao fim deste ano?
Macro tinha estado a contemplar a gamela que pusera no colo, e a
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ponderar a ideia de tentar meter no estômago um bocado da mistela que Thraxis tinha confecionado, suspeitando fortemente que o criado de Cato tinha optado deliberadamente
por lhe apresentar comida que seria capaz de revirar o estômago do mais velho e duro dos veteranos da legião. Olhou para Cato.
- Humm?
- É o seu último ano. A desmobilização espera-o no fim do ano. É a peluda. Então?
Macro remexeu a papa com a colher. As legiões dispensavam os homens que já tinham cumprido o período de alistamento em anos alternados, o que queria dizer que os
soldados serviam na realidade ou vinte e quatro ou vinte e seis anos. Macro engoliu em seco, tentou uma colherada e mastigou-a lentamente, forçando-se a deglutir
antes de responder.
- Recebi uma carta da minha mãe, lá de Londinium. A estalagem que ela comprou vai de vento em popa, e ela quer que eu vá ter com ela e a ajude a expandir o negócio.
-Oh?
Era a primeira vez que Cato ouvia falar daquela carta, e sentiu alguma ansiedade enquanto contemplava o amigo, o homem com quem tinha servido desde que chegara à
Segunda Legião havia dez anos, um recruta de cara deslavada. A vida militar sem Macro por perto era quase impensável, mas tinha de aceitar que o amigo estava a chegar
ao fim do seu período de serviço, e podia perfeitamente escolher receber o seu bónus e deixar o exército.
Macro considerou a possibilidade de comer outra colherada, e resolveu que era melhor esperar um bocado. Olhou para Cato.
- Não sei, miúdo. Às vezes penso que estou a ficar um bocadito gasto, e que já chega de ser soldado. E não posso negar que a perspetiva de gerir um botequim até
ao fim dos meus dias seja bem tentadora.
- Ainda por cima, não lhe falta capacidade para aguentar a bebida
- comentou Cato, com um sorriso.
- Tenho faltado aos treinos, nada mais.
- Pelo que me é dado observar nesta bela manhã, um treino mais assíduo ia acabar consigo.
- Se há coisa que se arrisca mesmo a acabar comigo é este maldito veneno que o teu criado me arranjou. Portanto, mais vale ser eu a tratar disso, e com substância
mais agradável. - Macro virou-se e lançou o
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conteúdo da gamela para a fogueira, onde a papa deitou fumo, borbulhou, espirrou e silvou por momentos. Coçou o queixo, pensativo. - Não sei, Cato. Os membros começam
a tornar-se rígidos. Já não sou tão forte nem tão rápido como fui em tempos, e neste negócio isso são más notícias. Estive envolvido em não sei quantas batalhas.
Bons tempos, hã? Até este ano, sempre combati muito bem. Mas ultimamente... Fico com a sensação de que já não voltarei a ser o soldado que em tempos fui, que nunca
conseguirei melhorar. Daqui para a frente é sempre a descer. E num dado momento é certo que acabarei por me defrontar com um adversário que não conseguirei derrotar.
Quando esse dia chegar, portanto, o mais provável é que me veja cortado às postas. Talvez seja mesmo boa ideia deixar esta vida, antes que esse dia me apareça pela
frente.
Cato tinha estado a ouvi-lo, sentindo o coração cada vez mais apertado. Quando Macro terminou, olhou para o amigo para avaliar a sua resposta.
O jovem abanou a cabeça devagar.
- Bem, tenho de lhe dizer que estou surpreendido. Nunca imaginei que seria capaz de deixar a vida militar para tomar conta de uma estalagem. Na minha opinião, ainda
tem muito para dar no que diz respeito a combates, refregas e batalhas, e claro que seria uma tremenda perda para o exército... - O chorrilho de frases feitas esgotou-se,
e Cato deixou-se ficar num silêncio embaraçado, incerto quanto à forma de explicar os verdadeiros motivos por que não queria que Macro deixasse as legiões.
O amigo observava com todo o cuidado a sua expressão abatida, e de repente não conseguiu aguentar mais, pelo que deixou escapar uma sonora gargalhada.
- Se pudesses ver a tua cara! Caraças, que espetáculo!
Cato espantou-se perante a súbita transformação do centurião.
- Do que é que está para aí a falar?
Macro abanou a cabeça.
- Ora, miúdo, só te estava a moer o juízo! É a paga por aquela trampa que mandaste o Thraxis cozinhar. Pensaste que não te tinha visto a piscar-lhe o olho?
- Quer dizer... Não está a pensar em deixar o exército?
- O quê? Estás doido? O que é que eu ia fazer lá para fora? Na vida civil seria um perfeito inútil, caralho.
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Era difícil não mostrar o alívio que sentia, mesmo que chateado pela brincadeira sem graça. Cato mostrou-lhe um dedo.
- Para a próxima, sou eu quem dá ordens para que seja dispensado. Só para ter a certeza.
- Oh, pois, estou mesmo a ver. De qualquer maneira, não vais ter essa possibilidade. Já entreguei o pedido para prolongar o meu alistamento. Só estou à espera de
resposta do legado, e pronto: mais dez anos de exército. - Inclinou-se para a frente e deu uma palmada amigável no ombro de Cato. - Não penses que te livras de mim
assim com tanta facilidade!
- Fico feliz por ouvir essa novidade - concluiu Cato com emoção, e apressou-se a concentrar-se no pequeno-almoço, determinado a não deixar transparecer o alívio
que o invadira.
O veterano sorriu para si mesmo, tocado pelos sentimentos evidentes do seu jovem companheiro. O seu olhar voltou-se para a panela ao lume. Do recipiente elevava-se
um penacho de vapor, e sentiu o estômago a revoltar-se perante a simples ideia de tentar comer.
- Devia meter qualquer coisa no estômago - insistiu Cato. - Senão, logo mais vai ter fome.
- Comer aquilo? Foda-se, não há hipótese. Mais depressa lambia uma bosta fumegante.
- Interessante ideia. - Cato cofiou o queixo, pensativo. - Vou ver se o Thraxis pode arranjar isso.
Amanhã já ia a meio quando o grupo de caçadores se juntou à entrada do vale que o general Ostório designara para cenário das diversões daquele dia. Havia mais de
cem oficiais, com as respetivas montadas, e pelo menos o dobro de soldados e criados, para lá das carroças que transportavam o equipamento e as provisões necessárias.
Tinha sido montada uma mesa junto a um braseiro, e à medida que os oficiais apareciam, era-lhes servida uma taça de vinho morno. Macro engoliu a sua dose com um
estalo apreciativo dos lábios, como se a noite anterior nunca tivesse acontecido. Os soldados que tinham sido escolhidos para batedores de caça começaram a embrenhar-se
no vale, progredindo pelas orlas até à extremidade mais distante, onde o terreno se empinava no encontro com as colinas. Outros homens afadigavam-se a instalar os
painéis de vime que conduziriam veados e javalis até um espaço aberto,
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onde seriam alvejados. Com essa tarefa em bom andamento, outros soldados começaram a tirar arcos de caça e aljavas cheias de flechas de uma das carroças, depositando-os
sobre um tapete de couro esticado no solo, para os manter a salvo da erva ainda húmida.
O general foi o último a chegar; vinha a cavalo, acompanhado pelos dois legados e pela sua guarda pessoal, composta por oito legionários escolhidos a dedo. Envergava
uma espessa capa, apesar de o Sol brilhar e espalhar o seu calor pela paisagem montanhosa. Embora adotasse um comportamento festivo, Cato percebeu que se tratava
apenas de um espetáculo que o general oferecia, querendo aparentar uma saúde de ferro e um bom humor contagiante nas relações com os seus subordinados.
Ostório desmontou e beberricou algum vinho, agarrando a taça com dedos encarquilhados. Cato observou-o enquanto ele percorria o grupo e cumprimentava os oficiais.
Mas o seu olhar foi então atraído por um movimento distante, vindo da direção do campo. Um cavaleiro dirigia-se para o grupo, a galope num cavalo negro de excelente
aspeto. Quando ele se aproximou, Cato percebeu que se tratava do tribuno que se tinha juntado ao exército na véspera. Deteve a montada a curta distância dos outros
oficiais e das carroças, projetando torrões de terra para cima de um dos criados do general. Saltou da sela, atirou as rédeas para as mãos do homem e foi-se juntar
aos outros oficiais, de respiração pesada devido ao esforço da cavalgada. A chegada repentina tinha interrompido várias conversas e Ostório virou-se para ele com
o cenho franzido.
- Jovem, não faço ideia do que passa por boas maneiras em Roma nestes tempos, mas agradecer-te-ia que te assegurasses de que nunca mais chegavas atrasado a qualquer
reunião ou encontro em que o teu comandante já esteja presente.
O tribuno Otho dobrou o pescoço.
- Senhor, as minhas desculpas.
- E que razões invocas para explicar o teu atraso?
Otho levantou o olhar e hesitou um momento antes de responder.
- Senhor, não tenho qualquer desculpa. Acordei tarde.
- Estou a ver. Nesse caso, é evidente que precisas de treinar a arte da vigília. Cinco dias responsável pelos turnos de sentinela noturnos devem chegar para isso.
- Sim, senhor.
Cato e Macro trocaram um rápido olhar. O general tinha acabado
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de condenar o jovem tribuno a cinco dias seguidos praticamente sem tempo para dormir. O oficial encarregado dos turnos noturnos era quem distribuía a senha do dia
a cada uma das sentinelas, e quem depois tinha de fazer rondas por todo o campo entre as mudanças de turno, para se assegurar de que todos os homens estavam alerta
e conheciam a senha. Era uma tarefa cansativa, mais ainda depois de um dia a marchar. E por essa razão era uma tarefa normalmente partilhada pelos tribunos subalternos
do exército.
- É um bocado pesado - murmurou Cato.
Macro encolheu os ombros.
- Vai ensinar ao fogoso jovem uma lição que tão depressa não esquecerá. Vai fazer-lhe bem.
- Fazer bem? Quando chegar ao fim, vai andar a rastejar pelo campo.
- Vai fazer dele um homenzinho.
- Ou então dar cabo dele.
Macro olhou para o amigo.
- Cato, sabes muito bem como é o treino militar. Tens de levar um homem para lá daquilo que ele pensa que é o seu limite. É assim que funciona. E foi graças a isso
que tu te transformaste no homem que és.
Era verdade, admitiu Cato para si mesmo. Jovens como Otho tinham de ser domados e habituados às duras condições do exército tão cedo quanto possível, para seu próprio
bem, e para o bem dos homens que lhes cabia comandar.
Ostório dispensou o tribuno com um gesto curto da mão e virou-se para o centurião da Vigésima que tinha sido designado guarda-caça naquele dia.
- Está tudo pronto?
O centurião saudou-o formalmente e fez um gesto a abarcar todo o vale.
- Quase, senhor. Os batedores estão a tomar posições.
Cato olhou para a distância e viu as pequenas figuras a formarem uma linha por entre o verde e castanho da paisagem. Distinguiu também outros movimentos, que denunciavam
a fuga de animais de grande porte, que tentavam afastar-se dos batedores. Havia um pequeno bosque a rodear o riacho que corria pelo vale, vindo das encostas. Nas
sombras das árvores adivinhava-se a presença de um pequeno grupo de
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veados. Havia portanto muita caça naquelas paragens, como afiançara o general.
O centurião virou-se para os homens que estavam a tratar dos painéis de vime. Já se notava uma forma de funil com a parte larga virada para a boca do vale; a outra
extremidade levava a uma área onde tinham sido erigidos alguns redis. Entre os painéis havia aberturas, para oferecer posições de espera aos caçadores. As linhas
de tiro dos dois lados ficavam desfasadas, de forma a que as flechas cobrissem toda a área sem colocar em perigo qualquer dos elementos do grupo de oficiais.
- Estamos só a acabar aquilo, senhor, e depois ficaremos à espera que dê o sinal para começar.
Ostório acenou em aprovação e dirigiu-se aos oficiais.
- Meus senhores, escolham as vossas armas. Vamos começar pelo arco.
Cato, Macro e os outros dirigiram-se para junto dos arcos e aljavas cheias de flechas de caça, de ponta larga, dispostos em cima do grande tapete de pele de cabra.
Escolheram as suas armas e alguns dos oficiais mais experientes testaram a tensão das cordas, para ter uma ideia da força do arco que tinham selecionado. Cato e
Macro nunca tinham treinado como arqueiros, e não se preocuparam com a escolha da arma, apanhando a primeira que lhes veio à mão antes de se dirigirem para os painéis
e se colocarem nos lugares que lhes haviam sido designados. Enquanto Cato ajustava os pequenos ganchos da aljava ao cinto da espada que levava à bandoleira, o tribuno
Otho aproximou-se e ocupou a posição de tiro adjacente. Trocaram um aceno, antes de Cato esticar a mão.
- Ainda não tivemos ocasião de nos apresentarmos. Sou o prefeito Quinto Licínio Cato, da Segunda Trácia de Cavalaria.
O homem mais novo apertou o antebraço de Cato e sorriu com entusiasmo.
- Tribuno Marco Sílvio Otho. - Olhou para lá de Cato com uma expressão inquisitiva. - E este é...?
Macro encostou o arco ao painel de vime e deu um passo em frente.
- Centurião Lúcio Cornélio Macro, comandante da Quarta Coorte da Décima Quarta Legião, senhor. Embora neste momento a minha coorte esteja adstrita ao comando do
prefeito, na escolta do comboio de equipamentos e provisões.
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- Oh, isso parece-me uma grande responsabilidade.
- Não tão grande como a que desejamos, senhor - ripostou Macro, com um sorriso pouco convencido.
Otho mordeu o lábio, claramente inseguro acerca da forma como devia colocar as suas palavras seguintes.
- Desculpe-me, prefeito, mas ainda sou relativamente novo nisto, e não havia unidades auxiliares em Lindum. Devo tratá-lo por senhor? Ou será ao contrário?
Cato ficou abismado. Um tribuno, fosse ele aristocrata ou não, devia ter-se dado ao trabalho de aprender factos tão básicos da vida militar. Limpou a garganta e
tratou de clarificar o assunto.
- Ora bem, como tribuno, é o lugar-tenente do seu legado, Hosídio Geta. Isto tecnicamente. Na prática, se Geta for abatido ou estiver ausente por qualquer motivo,
é o prefeito do campo que assume o comando. No normal decorrer das coisas, devo tratá-lo por senhor. Mas uma vez que está no comando de um destacamento da Nona Legião,
está na posição de comandante de uma formação de menor importância, e portanto em pé de igualdade comigo. E nesse caso, trato-o por tribuno, e sou tratado por prefeito.
Em situações formais. Por hoje, nesta caçada, sou simplesmente Cato.
Os olhos de Otho arregalaram-se enquanto ele fazia um esforço para absorver toda aquela informação. Assentiu.
- Cato será. E o centurião Macro trata-me por senhor. É isso?
Macro assentiu.
- E isso não sofre alterações, a não ser que o mundo fique de pernas para o ar e algum lunático resolva fazer-me senador. Ou que alguém faça tanta asneira que se
veja despromovido a legionário, senhor.
O tribuno olhou de relance por cima do ombro, na direção do general Ostório.
- Espero bem que não chegue a isso. Pelo menos não antes de eu servir o meu tempo e poder regressar a Roma.
Cato relembrou o comentário de Horácio, na véspera.
- Presumo então que está cheio de vontade de pôr o serviço militar para trás das costas.
- E como! - ripostou Otho, de forma enfática. - Por muito que aprecie o ar puro e o companheirismo rústico, não há lugar como Roma, não acham?
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- E graças aos deuses por isso - comentou Macro, carregado de más lembranças de tempos passados na capital.
- Por mim, não me importaria nada de lá voltar em breve - contrariou Cato. - Casei-me recentemente, e tive de deixar a minha mulher lá. Ao que sei, a sua esposa
acompanha-o nesta campanha.
- É verdade. Eu e a Popeia não conseguimos estar longe um do outro.
- Bem. Agora estão.
- Não, de todo. A carruagem em que ela viaja vem com as coortes que vêm reforçar o Ostório. Para ser completamente honesto, foi por isso que cheguei atrasado. Estava
a ver se a coluna chegava ao campo ainda esta manhã. Não aconteceu. E por causa disso agora estou mal visto pelo general.
Cato soprou, enquanto tentava avaliar o oficial mais jovem. Parecia-lhe ser o tribuno com menos jeito para a vida militar que alguma vez conhecera. E a presença
da mulher ali na fronteira, ou demonstrava a força dos sentimentos que os uniam, ou queria dizer mais qualquer coisa, como Horácio sugerira. Cato decidiu investigar
um pouco mais.
- É muito pouco usual que um oficial traga a esposa para uma campanha. Por mim, não quereria a minha a sofrer as agruras da vida num campo militar, por muito que
sinta a falta dela.
Otho baixou o olhar e concentrou-se em colocar a aljava numa posição confortável.
- Bom, na realidade, não é assim tão simples.
- Oh? Como é isso?
O tribuno deu um estalo com a língua.
- Deixámos Roma numa situação um tanto complicada. O caso é que a Popeia era casada com outro. Um tipo horrível, feio, com orelhas enormes e quase nada entre elas,
ou em qualquer outra área do corpo. Rufo Crispito. - Olhou para Cato com intensidade. - Conhece-o?
- Não.
- Não me surpreende. Ele transformou a invisibilidade em eventos sociais numa verdadeira forma de arte. É o tipo de homem que podia perfeitamente servir de modelo
para uma daquelas insonsas esculturas dos magistrados das províncias, está a ver.
Macro olhou para Cato com uma expressão de espanto, enquanto abanava a cabeça.
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- Seja como for - prosseguiu Otho. - Para encurtar uma história bem mais longa, seduzi a Popeia. - Sorriu. - Ou melhor, ela seduziu-me. Ela é um bocadito atrevida,
quando lhe dá para isso.
- Já estou a gostar dela, senhor. - Macro lançou o dichote com um sorriso.
O tribuno respondeu-lhe com um olhar pouco amigável, antes de continuar.
- Antes que déssemos por isso, estávamos completamente apaixonados. A nossa alegria não tinha limites.
- E quase que aposto que o Rufo Crispito não aprovou a vossa ligação - comentou Cato.
- Nem de perto! O tipo andava completamente furioso. Foi por certo a primeira vez na sua vida que ele demonstrou alguma emoção. Vai daí, põe-se a caminho do palácio
imperial e pede ao Imperador que nos castigue aos dois. Uma vez que ainda estava casado com a Popeia, tinha todo o direito de lhe pregar uma valente sova, é verdade.
Contudo, o Crispito - sempre imbecil - resolveu exagerar nos seus pedidos e acabou por indispor o Imperador. A verdade é que o Cláudio tinha de fazer alguma coisa,
nem que fosse para salvar as aparências. Portanto resolveu que o Crispito se divorciava da Popeia, e que nós teríamos de escolher. O exílio para Tomus, ou eu ingressava
no exército, casava com a Popeia e desaparecíamos os dois de Roma durante um ou dois anos, tempo suficiente para que o escândalo se apagasse das memórias. Bom, eu
li o meu Ovídio, e sei perfeitamente que Tomus é o último lugar no mundo em que queria passar o meu tempo. Pelo menos era o que eu pensava antes de chegar a esta
ilha. - Encolheu os ombros. - E pronto, aí está. A minha história de amor e penas, para lhe dar um título.
Foram interrompidos pelo som de uma trombeta, e Cato reparou, ao olhar em redor, que todos os outros oficiais já tinham assumido as suas posições; Ostório e os legados
ocupavam a boca do funil desenhado pelos painéis de vime.
- Cá vamos nós - anunciou Macro, pegando na primeira flecha e colocando-a em posição. Por toda a linha os outros oficiais também se aprestavam a entrar em ação,
e Cato viu Otho extrair uma seta da aljava e ajustá-la no arco num movimento fluido e rápido.
- Já fez isto antes.
O tribuno assentiu.
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- Cresci numa propriedade na Úmbria. Comecei a caçar assim que aprendi a andar.
O som das trombetas foi repetido na extremidade distante do vale, para marcar o começo do avanço dos batedores; uns batiam nas giestas com varapaus e outros faziam
barulho, batendo gamelas de estanho umas contra as outras e soprando trombetas de vez em quando. Cato via como os arbustos pareciam vivos à frente dos homens, mexendo-se
por ação dos animais em fuga, e depressa avistou um primeiro veado aos saltos velozes, parecendo descer a encosta aos solavancos, procurando a segurança aparente
das árvores. Os animais ainda estavam algo distantes, pelo que Cato baixou o arco, a ponta da seta a apontar para a erva entre os pés.
- Pelos deuses - disse Macro. - Esta noite vamos ter carne com fartura no prato. O velho tinha razão quanto a esta região. Há caça por todo o lado.
O som das trombetas dos batedores tornava-se cada vez mais alto e Cato já conseguia distinguir o raspar das peças de metal, e o barulho feito pelos varapaus a roçar
nos arbustos. Sentiu o coração a acelerar, e semiergueu o arco, segurando na corda com as pontas dos dedos da mão direita. O limite da floresta ficava a não mais
de duzentos passos da sua posição e, de súbito, uma corça surgiu por baixo das ramadas e saltou para o terreno aberto. Duas outras seguiram-na, e depois veio um
macho, a fazer dançar as armações enquanto se mostrava. Cato fez menção de erguer o arco.
- Prefeito, ainda não!
Baixou ligeiramente os braços e virou-se para Otho.
- O quê?
O arco do tribuno ainda apontava para o solo, e ele fez um gesto a designar o general, que estava mais perto da abertura larga do funil de caça.
- Não sei onde é que aprendeu a caçar, mas lá por casa o protocolo indica que é o anfitrião que tem o direito de fazer o primeiro disparo.
Cato enrubesceu, furioso consigo mesmo por não se ter apercebido daquele princípio de cortesia. A única ocasião em que tinha caçado javalis fora no exército, a cavalo,
e, apesar de ali ser um caso diferente, as formalidades básicas eram as mesmas. Os subordinados seguiam pacientemente atrás do líder, até que o primeiro animal fosse
trespassado, e só depois havia liberdade total para caçar.
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- Claro - respondeu, com ar natural. - Obrigado por mo recordar.
Otho não escondeu a surpresa.
- Os seus não o levavam a caçar, quando era jovem?
Macro abanou a cabeça, siderado e divertido, e murmurou:
- Os seus? Pelos deuses, em Roma há mesmo um mundo diferente.
O embaraço de Cato não parava de crescer. As suas origens estavam
muito longe de ser aristocráticas. Era fácil de compreender que o tribuno tivesse ideias erradas sobre elas. Os prefeitos de unidades auxiliares, se eram jovens,
costumavam ser provenientes de famílias senatoriais. A dor que sentia ao recordar o seu passado humilde rapidamente funcionou para transformar a vergonha em amargura.
Virou-se para Otho.
- Não. De facto não o faziam.
- Uma pena. Se assim fosse, agora saberia o que fazer.
- Imagino que sim.
- Bom, lá vêm eles! - A voz do tribuno subiu de tom quando ele apontou entusiasmado para o primeiro veado a aproximar-se do campo de caça.
Cato virou-se e avistou o macho e as três fêmeas a saltar de lado a lado enquanto continuavam a progredir na direção dos caçadores emboscados. Ao fundo da outra
linha de painéis, o general Ostório ergueu o arco e puxou o braço atrás, tremendo ligeiramente com o esforço. Apontou ao longo da seta e escolheu o alvo. Cato, de
novo absorvido na atmosfera de excitação, prendeu a respiração enquanto via a cena. A primeira das fêmeas entrou para a zona de abate, mas Ostório aguardou, à espera
do grande macho. Quando o animal se aproximou da área, Cato viu o arco do general a saltar e a flecha a descrever um arco pouco pronunciado a caminho do veado. Passou
sobre a bossa no dorso e desapareceu no meio das ervas.
- Oh, que azar! - resmungou Otho. - Devia ter seguido o veado mais algum tempo.
Ostório preparou outro projétil enquanto o animal continuava a aproximar-se. Apontou e soltou a corda, e desta vez não havia como errar. A flecha atingiu o animal
na espádua, e o estalido seco do impacto foi escutado por todos. Oficiais e soldados soltaram brados de apoio ao comandante, enquanto o grande macho lançava um bramido
de dor e cambaleava sobre as patas. O sangue, de um vermelho vivo, jorrava da
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grande ferida que a flecha de ponta larga lhe provocara e corria-lhe sobre o pelo. O general já tinha assestado nova flecha, e voltou a apontar. Mas o animal agitado
saltava e empinava-se para tentar desalojar o projétil que tinha alojado no dorso, tornando-se assim um alvo mais difícil. A segunda flecha atingiu-o na bossa, e
ele tombou sobre a relva. Lutou e conseguiu reerguer-se, apenas para que uma nova flecha lhe trespassasse o pescoço. O sangue corria livremente, e cada movimento
do animal lançava gotículas vermelhas pelo ar. As fêmeas mantinham-se à distância, receosas da violenta agitação do macho. Cato, fascinado, não conseguia afastar
o olhar do espetáculo. Embora soubesse perfeitamente que seria alvo de chacota se alguma vez o admitisse, sentia pena pela nobre criatura. O paralelismo com Carátaco
surgia-lhe facilmente na mente sempre ativa. O macho e o inimigo humano, conduzidos à destruição. Parecia um augúrio. Mais um triunfo romano manchado pelo remorso
perante a perda de um espírito nobre e livre.
Mas o veado ainda não desistira de lutar. Embora sangrasse abundantemente, baixou a cabeça e avançou, meio a correr e meio a cambalear, na direção dos painéis que
rodeavam Cato. E então, chocado pela descoberta, o prefeito reparou por fim que estava diretamente na linha em que o animal carregava. Imobilizou-se, incapaz de
reagir.
- Cato! - gritou Macro, ali perto. - Abate-o!
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O momento de inação passou, e ele ergueu o braço esquerdo. A flecha ainda estava pronta, mas saiu da posição quando ele o mexeu.
- Merda! - rosnou Cato, enquanto tentava freneticamente recolocar a flecha em posição. Estava consciente do turbilhão de movimento que se aproximava, e da respiração
ofegante do veado. Quando olhou de novo, o animal não estava a mais de três metros dele. Houve uma agitação frenética à sua esquerda, e ouviu um impacto surdo quando
uma flecha atingiu o veado no peito e a ponta metálica lhe trespassou o coração. O animal caiu para a frente e rebolou no solo até embater na guarita de Cato, destruindo-a
e lançando o prefeito ao chão. De imediato Macro irrompeu pela cena, pegando-lhe no braço e puxando-o para cima, enquanto tentava não rir.
- Tudo bem, miúdo?
- Sim, obrigado.
- Não me agradeças. Agradece ali ao tribuno. Se ele não tivesse agido tão depressa, a estas horas já tinhas sido desfeito pela armação do bicho.
Cato olhou em redor e avistou Otho a contemplá-lo, de arco na mão e uma nova flecha já tirada da aljava.
- Fico-lhe grato.
Otho abanou a cabeça.
- Foi fácil. Não tem de me agradecer.
- Disparar à vontade! - gritou o guarda-caça, da abertura da passagem. O tribuno virou-se naquela direção e preparou um novo disparo. Quanto por fim Cato tinha pegado
de novo no arco e retomado a sua posição, o espaço vazio à saída da passagem estava repleto de flechas a zunir. Os animais caíam em sucessão rápida, as hastes dos
projéteis
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destacavam-se sobre o pelo; houve uma pequena pausa, mas depressa mais animais surgiram a plena velocidade, espantados pelos batedores. Cato reparou em mais veados
antes de distinguir o primeiro javali, de cabeça baixa, lançado em plena carga. Havia também lebres em profusão, a saltar sobre as giestas para alcançar o terreno
relvado que se estendia à frente dos caçadores. Respirou profundamente para se acalmar, apontou a flecha e ergueu o arco. Apontou ao javali, assestando a ponta da
flecha, e puxou o braço atrás, até sentir o polegar a pressionar a face. Fez o seguimento do animal em corrida, apontando ligeiramente para a frente do focinho e
continuando a segui-lo quando o animal se começou a dirigir para a abertura da passagem estreita, a uns trinta passos de distância. Prendeu a respiração, fechou
o olho esquerdo e semicerrou o direito... e soltou a corda do arco com um movimento rápido dos dedos. O arco saltou-lhe nas mãos e a flecha lançou-se a caminho do
alvo, atingindo-o no ombro, por cima da cabeça.
- Acertei! - gritou Cato, o coração repleto de surpresa e orgulho. Espreitou na direção de Macro. - Acertei. Viu?
Macro seguia também um alvo, e respondeu por entre os dentes.
- Sorte de principiante! - O centurião soltou a primeira flecha e praguejou quando a viu falhar o alvo por larga margem. Cato virou-se para Otho, mas o tribuno estava
concentrado nas peças que corriam na sua direção. Por momentos, Cato observou-o, admirado com a destreza do jovem, que soltava uma flecha atrás da outra, numa sucessão
quase maquinal, sem parar para celebrar um impacto ou protestar perante um falhanço. Era como se tivesse nascido para ser um arqueiro, pensou Cato.
- Cato, concentra-te! - urgiu Macro. - Estás a perder a festa!
Focou de novo toda a sua atenção no arco, levantando-o enquanto
os dedos procuravam assestar uma nova seta. Já só teve tempo para três disparos antes que o guarda-caça desse ordem para o fim da caçada. A calma súbita, depois
do frenesim da ação, surgiu quase como um choque, e por momentos todos se limitaram a contemplar a clareira repleta de setas e de corpos de animais atingidos, alguns
ainda a agitarem-se enquanto sangravam até à morte.
Então um dos oficiais soltou um estridente grito de triunfo enquanto agitava o punho no ar. O grito quebrou a tensão silenciosa e depressa outros se lhe juntaram
ou se viraram para os camaradas, para se gabarem da sua excelente pontaria.
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- O que é que apanhaste? - inquiriu Macro.
- Uma seta no javali. Os outros disparos foram todos falhados. - Cato deu um estalo com a língua.
- Aquele grandalhão deve ter-te perturbado, e prejudicado a pontaria.
Macro apontou para o grande macho, agora imóvel, a cabeça de lado e a língua pendurada das mandíbulas abertas.
- Obrigado pelo consolo, Macro. Mas a verdade é que falhei todos os disparos depois de acertar no javali, e isso já foi depois do incidente com o veado. Não precisa
de me arranjar desculpas. Logo à tarde, com a lança, vou ver se tenho mais sorte com os javalis.
Macro debruçou-se para espreitar para o outro lado de Cato.
- E quanto a si, senhor?
O tribuno Otho deu um toque na aljava vazia.
- Fiquei sem setas. Uma pena, porque estava a começar a aquecer.
- Muito bem. E então, quantas acertou?
- Quantas? - Otho franziu o sobrolho. - Ora, todas, evidentemente.
O guarda-caça chamou toda a gente, e os homens entraram na zona de matança. Os batedores começavam a regressar aos seus pontos de partida, para preparar a sessão
seguinte. Os animais que tinham sobrevivido à passagem pela zona de caça e tinham seguido pela parte estreita do funil estavam a ser conduzidos para os redis previamente
preparados, os veados e javalis à parte dos outros. A fuga fora apenas temporária. Enquanto alguns homens recolhiam as setas que tinham falhado os alvos e arrancavam
as outras dos seus alvos, outros começavam a levar as carcaças para uma área perto dos vagões, onde iam começar a tarefa sangrenta de as desmanchar. Alguns criados
corriam a distribuir novas setas para encher as aljavas dos oficiais, para a etapa seguinte.
Durante o resto da manhã, Cato continuou a falhar a maior parte dos disparos, por muito que tentasse aplicar os conselhos que o tribuno Otho lhe dispensava. Era
profundamente frustrante fazer tão pouco ou nenhum progresso, e quando a caçada se aproximou do fim, já ele tinha começado a desenvolver um ódio completamente irracional
pelo arco, que insistia em desafiar todas as suas tentativas de o dominar. Macro tinha tido mais sorte e os seus comentários jocosos às suas próprias
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proezas irritavam os nervos de Cato enquanto se dirigiam ao vagão dos refrescos, por volta do meio do dia.
Os veados estavam já dependurados de estruturas de madeira, os membros bem abertos e rasgões avermelhados ao longo do estômago. As entranhas tinham sido amontoadas
a curta distância, e constituíam uma pilha fumegante, de um cinzento reluzente misturado com púrpura, que já tinha atraído todos os corvos da região, os quais disputavam
com selvajaria os melhores pedaços do festim inesperado. Ao lado dos veados viam-se três javalis, deitados de lado. Também tinham sido abatidas várias lebres, mas
essas haviam sido atiradas aos cães de caça que tinham sido trazidos do acampamento para a caçada da tarde. Os animais rosnavam e lutavam pelos restos sanguinolentos
de pele e carne.
No chão estavam cestas com pão e queijo à disposição dos oficiais, e odres de vinho eram passados pelo grupo que discutia a sessão matinal e as capacidades de cada
um com o arco. Cato deu o seu melhor para se juntar à conversa com Macro e outros oficiais, mas o seu desempenho deplorável fazia-o sentir um tanto como uma fraude,
pelo que se contentou em manter-se à margem da conversa, à exceção do aceno e da gargalhada ocasionais. Ao mesmo tempo não deixava de exercitar o seu olho analítico,
tomando nota mental dos que se gabavam sem freio, tentando agradar aos superiores, e daqueles que participavam na conversa com a austeridade própria de soldados
profissionais. Era sempre importante conhecer as qualidades dos homens que combatiam a seu lado.
Uma súbita altercação na zona da passagem estreita atraiu-lhe a atenção, e ele avistou dois soldados a arrastarem o que, a princípio, lhe pareceu outra carcaça de
um animal abatido. Mas então aquilo remexeu-se e Cato percebeu um rosto emoldurado por cabelo empastelado que se sobrepunha ao colarinho de uma capa de peles.
- O que é aquilo? - indagou Macro. - Dir-se-ia que os rapazes fizeram um prisioneiro.
Os oficiais silenciaram-se enquanto o nativo era arrastado até aos pés do general e lançado ao solo. O homem rolou no chão e gemeu enquanto Ostório exigia explicações
aos soldados.
- Senhor, encontrámo-lo escondido junto da crista, na ponta do vale. Oculto nas giestas.
- E ele não tentou fugir?
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- Não valia a pena, senhor. Estávamos a cercá-lo. Não tinha qualquer hipótese.
- Nem tentou resistir?
- Não podia, senhor. Está ferido. Ali de lado. - O legionário debruçou-se sobre o prisioneiro, pegou-lhe no braço e levantou-o para que o general pudesse apreciar
a localização da ferida. Via-se um rasgão com uma crosta escura no músculo do braço. Ostório examinou-a por momentos, antes de falar.
- Parece ter sido provocada por uma das nossas armas. O mais provável é que tenha resultado de alguma escaramuça com os nossos batedores. É com certeza um dos homens
de Carátaco.
Otho aproximou-se de Cato e formulou uma questão em voz baixa.
- Como é que ele sabe que foi uma espada romana?
- Os siluros combatem como as outras tribos da Britânia. Preferem uma espada longa. O que provoca feridas rasgadas. Não são nada bonitas de ver. Sangue a jorros
e um buraco comprido. Já os nossos homens estão treinados para usar a ponta, o que resulta em feridas daquele género. Não são tão espetaculares, mas a lâmina penetra
mais do que num corte tangencial, e acaba por provocar mais danos.
- Estou a ver - respondeu o tribuno.
- Senhor, o que faço com ele? - inquiriu o legionário. - Levo-o para o campo? Se lhe conseguirmos tratar da ferida, pode vir a valer um bom preço.
Ostório cofiou o queixo enquanto pesava o destino do homem prostrado a seus pés. O siluro balbuciava na sua língua, por entre os grunhidos e gemidos que a ferida
e o tratamento que recebera às mãos dos legionários que o tinham descoberto lhe despertavam.
- Alguém compreende o que este traste está para aqui a dizer? - Olhou em volta, para os homens e oficiais. - Então?
Ninguém se adiantou e o general olhou de novo para o nativo, pensativo.
- Bom, não vejo qualquer utilidade em ter mais um prisioneiro. Já temos muitos e depressa teremos mais ainda para vender aos comerciantes de escravos. Assim que
apanharmos Carátaco. Mas este pode oferecer-nos um bom espetáculo. Já é tempo de os meus cães terem algum exercício.
Cato sentiu os pelos da nuca a eriçarem-se perante a perspetiva levantada pelo general, que já se virava para o guarda-caça.
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- Vamos usar este tipo. Levantem-no e levem-no para a saída do funil. Damos-lhe algum avanço, e depois largamos-lhe os cães.
Cato deu um passo à frente.
- Senhor, espere.
Ostório virou-se para ele com claro enfado.
- O que se passa, prefeito Cato?
- Temos batedores nativos no campo. Podem ajudar-nos a interrogar o prisioneiro.
- Não vai haver nenhum interrogatório.
- Mas ele poderia fornecer-nos informações sobre Carátaco, senhor. Deve pelo menos ter alguma ideia sobre a direção que o exército inimigo tomou.
Ostório encolheu os ombros.
- Os batedores depressa o descobrirão. Não precisamos desta escumalha. - Deu um toque no siluro com a ponta da bota. O homem tinha percebido que o seu destino estava
a ser jogado, e que Cato estava de alguma forma a tentar salvar-lhe a pele. Arrastou-se penosamente na direção do prefeito e ergueu as mãos em súplica, enquanto
continuava a lamentar-se.
- Senhor, porquê esperar pelas informações dos batedores se este homem nos pode dar essa resposta hoje mesmo?
- Porque este demónio podia muito bem mentir em vez de nos dizer a verdade. - Cruzou os braços e prosseguiu num tom de leve escárnio: - E agora, Cato, se já terminaste,
gostaria de continuar com o espetáculo.
Cato não tinha qualquer vontade de ver o prisioneiro a ser desfeito pelos cães, mas compreendeu que já tinha levado ao limite a paciência do general, e que não seria
prudente insistir. Deitou uma última olhadela ao desgraçado indivíduo, deitado aos seus pés, e afastou o olhar ao perceber o tremor que se apossava dos membros do
homem. Antes que pudesse dizer mais qualquer coisa, Ostório estalou os dedos na direção dos legionários e os soldados pegaram no homem, pondo-o de pé e empurrando-o
na direção dos painéis de vime. Os oficiais seguiram-nos e espalharam-se para os lados, para terem uma boa visão do espetáculo que se ia seguir.
Macro colocou-se ao lado do amigo e repreendeu-o em tom de murmúrio.
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- O que é que pensas que estás a fazer?
- A tentar salvar a vida do prisioneiro.
- Bom, não conseguiste nada, a não ser chatear o velho. Oh, deuses! E eu a pensar que era eu quem tinha de ter cuidado com a língua neste ambiente seleto.
Os legionários levavam o homem pelos braços, provocando-lhe esgares de dor de cada vez que a zona ferida era apertada. Sangue vivo começou a escorrer por entre as
crostas.
- Tragam os cães! - ordenou Ostório.
O guarda-caça fez um gesto a dois dos seus homens, e estes pegaram nas correntes dos cães. Eram seis, de grande porte e peludos, próprios para a caça, criados pelos
nativos. Trouxeram-nos em trelas, segurando-os com evidente esforço, já que os animais se tentavam adiantar sozinhos.
- Deem-lhes o cheiro da presa!
O guarda-caça aproximou-se do prisioneiro, empunhou uma adaga e cortou uma tira da capa do homem. Guardou a lâmina e dirigiu-se para junto dos cães, mantendo o pano
debaixo dos focinhos, que farejavam avidamente. O siluro já estava perfeitamente consciente do que lhe estava reservado, e lançou um olhar sobre o ombro na direção
do general, implorando pela própria vida.
- Soltem-no - pronunciou Ostório, friamente.
Os legionários fizeram o que lhes era indicado e afastaram-se. O siluro avaliou os rostos em redor, tentando em vão encontrar algum sinal de ajuda. O general ergueu
uma mão e apontou para a extremidade do vale.
- Corre... CORRE!
O prisioneiro não se mexeu, até que um dos legionários desembainhou a espada e o ameaçou claramente.
Cato respirou fundo e sussurrou para si mesmo:
- Ouviste o general, estúpido desgraçado. Corre!
O homem deu alguns passos cambaleantes para o trilho de caça e depois acelerou o passo, lançando-se numa correria veloz por entre a relva ensanguentada. O guarda-caça
trouxe os cães para a frente e olhou para o general à espera de indicações.
- Senhor, agora?
- Ainda não. Vamos dar uma hipótese ao homem. Ou pelo menos vamos deixá-lo pensar que tem uma hipótese - juntou, cruelmente.
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O siluro já quase tinha alcançado a boca do trilho quando Ostório acenou. As trelas foram tiradas dos pescoços dos animais e estes saltaram para o trilho, correndo
de imediato atrás do siluro. Cato percebeu que o iam apanhar muito antes de o homem conseguir alcançar a orla da floresta. O siluro olhou para trás, viu os cães
e tropeçou, provocando uma risada quase geral entre os espetadores. As gargalhadas morreram-lhes nas gargantas quando viram o cão que seguia à frente deter-se de
repente e baixar a cabeça por entre a relva, voltando a erguê-la com o focinho avermelhado. Os outros cães interromperam a perseguição para o imitarem, e Cato percebeu
que deviam ter-se deparado com os restos de algum dos animais abatidos anteriormente.
Entretanto, o siluro voltara a erguer-se e fugia a toda a brida.
- O sacana vai fugir! - gritou alguém.
Mas Cato sabia que o homem estava condenado. O primeiro cão já tinha retomado a perseguição. Nesse momento, a atenção de Cato foi atraída pelas ações de um oficial
próximo. Era Otho, e Cato viu-o pegar num arco. Quase antes de que Cato percebesse o que se estava a passar, uma seta voava sobre o campo e atingia o siluro em plenas
costas, trespassando-lhe o coração. O homem tombou de joelhos, uma mão a tentar agarrar a haste da seta, antes de voltar a cair sobre a erva com o rosto colado ao
solo, e ficar imóvel.
- Pelos deuses! - Macro abanou a cabeça, siderado. - Cinquenta ou sessenta passos, e pôs-lhe a seta mesmo no coração!
Cato não conseguiu partilhar a admiração que o amigo sentia. Virou-se para o tribuno e observou-o com toda a atenção, antes de lhe fazer uma pergunta aparentemente
inócua.
- Uma morte misericordiosa?
Otho devolveu-lhe o olhar.
- Há mortes a que um homem deve ser poupado, mesmo que seja um inimigo.
Sem se deixar tomar pelo desapontamento perante o destino final do prisioneiro, o general deu ordens para que a caça ao javali começasse. Os cavalos foram trazidos,
os oficiais empunharam as suas lanças de caça e montaram. Só quatro animais tinham sobrevivido à passagem pelo trilho de caça, e foram soltos à vez para que houvesse
mais desporto. Mas os javalis estavam ansiosos e cansados e não deram grande luta, sendo
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rapidamente alcançados e trespassados pelas armas, sem provocarem qualquer ferimento em cavalos ou cavaleiros.
A meio da tarde já os painéis de caça tinham sido empilhados, as vítimas da caçada amontoadas no leito de carga de um dos vagões e a coluna saía do vale e dirigia-se
ao encontro do grosso do exército. Ao avistar o portão mais próximo, Cato reparou que a retaguarda de uma coluna de legionários estava a entrar no campo, com o equipamento
pendurado das cangas que levavam aos ombros.
- Parecem os rapazes da Nona - comentou Macro, e o jovem tribuno que seguia ao lado de Cato empertigou-se na sela, os olhos a rebrilharem de entusiasmo.
- São mesmo!
Sem outro comentário, Otho pegou nas rédeas e afastou o cavalo da coluna, lançando-o num galope frenético.
- Cheio de vontade, não é? - lançou Macro.
- Pois, e atrevo-me a dizer que não é por ser o primeiro comando independente dele, é mais por ser mesmo dependente.
Macro deitou-lhe um olhar significativo.
- O rapaz não está a pensar - comentou. - O general não vai gostar nada disto.
E, de facto, assim que ouviu o som dos cascos a martelar o pó do caminho, Ostório virou-se na sela, no preciso momento em que o tribuno passava a galope.
- TRIBUNO OTHO! - berrou o general.
Por momentos, Cato pensou que o tribuno ia mesmo prosseguir, mas o bom senso acabou por prevalecer, e ele deteve o cavalo e virou-o para o general.
- Onde é que tu pensas que vais? - inquiriu o general.
- Senhor, se me dá licença. São os meus homens, e a minha mulher vem com a coluna.
- Não é motivo para te portares como um miúdo de escola! Não permito que os meus oficiais se andem por aí a agitar como cães no cio. Que tipo de imagem é que isso
passa para os homens? Tribuno Otho, vai incorporar-te na coluna. Estou a avisar-te. Não me dês motivos para voltar a repreender-te, ou haverá sérias consequências.
Estás a perceber o que te digo?
Otho baixou a cabeça e murmurou uma desculpa. Lançou uma
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última olhadela à retaguarda que entrava no campo, levou o cavalo a trote ao longo da coluna e voltou a juntar-se a Cato e Macro. Ninguém se atreveu a falar até
chegarem ao campo e entrarem pelo portão. Os reforços da Nona Legião descansavam dos dois lados, nas bermas da via larga que levava diretamente ao centro do campo,
onde estavam as tendas do comando. Tinham acabado de pousar as bagagens e espreguiçavam-se em pé, ou sentavam-se nos locais em que a terra não estava demasiado revolta.
Os quatro centuriões que comandavam as coortes aguardavam junto a um vagão coberto a meio da coluna, e saudaram Ostório quando o viram a aproximar-se. O general
acenou ao resto do grupo para prosseguir e chamou Otho com um gesto, para que se juntasse a ele antes de se dirigir ao mais próximo dos centuriões.
- Estava à vossa espera mais cedo.
- Senhor, pedimos desculpa, mas tivemos de vir ao ritmo dos vagões. - Lançou um polegar sobre o ombro. Cato reparou que havia dois veículos para lá dos habituais
vagões de provisões. Um deles tinha uma ânfora pintada no toldo, com um escrito bem visível: "Hiparco, fornecedor de vinho a todos os deuses!" O outro era um vagão
com uma cobertura de peles de cabra e uma cortina a fechar a abertura das traseiras. Enquanto olhava para lá, avistou uma mão de aspeto delicado a desfazer os nós
da cortina.
Ostório respirou fundo e prosseguiu o diálogo com os centuriões.
- O prefeito do campo já vos indicou onde pôr as tendas?
- Está a tratar disso, senhor. Está a mudar de lugar alguns dos acompanhantes civis.
Cato trocou um olhar desalentado com Macro, e suspirou. Ia haver queixas dos civis, e era ele quem as ia ouvir.
- Muito bem. Tribuno Otho!
- Senhor?
- Assume o comando dos teus homens. Trata de erguer as tendas e depois vai ter ao comando para requisitar rações ao intendente.
- Sim, senhor.
Ostório puxou pelas rédeas e levou o cavalo a trote até à cabeça da coluna, enquanto Otho deslizava da sela e aterrava na lama com estrondo. Cato e Macro estavam
a passar pela carroça fechada quando a cortina se abriu e uma cabeça e ombros emergiram do interior escurecido.
- Popeia, meu amor. - Otho sorria, deliciado.
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Um criado apressou-se a rodear o vagão e a dispor umas escadas de madeira que permitiam à sua senhora descer. Quando ela ficou completamente à vista, Macro sugou
o ar, assombrado.
- Agora já estou a perceber a pressa do nosso amigo.
Cato assentiu, enquanto deixava o olhar percorrer a figura recém-chegada. Era alta e esguia, com cabelo louro-escuro, apanhado por trás das orelhas. As maçãs do
rosto eram altas e tinha feições bem proporcionadas, quase esculturais. Mas ainda assim ficou surpreso. Popeia era uma beldade, sem dúvida, mas era também alguns
anos mais velha do que o seu esposo. Ao avistá-lo, sorriu, o que transformou a sua face de tal forma que a fez parecer radiosa contra o fundo de lama e tendas. Antes
que Cato pudesse trocar algum comentário com Macro, ouviu gritos da frente e avistou um dos escribas do quartel-general a correr na direção do general. Parou junto
ao comandante e disse qualquer coisa em tom animado. O general lançou algumas perguntas a que o homem respondeu antes de ser dispensado; o general virou-se então
para o grupo chegado da caçada, que entretanto se tinha detido.
- Oficiais! Comigo!
Cato e Macro juntaram-se aos outros, levando as montadas até formarem um grupo denso em redor do general. Todos os traços de cansaço tinham desaparecido das feições
de Ostório, e ele contemplou animado as expressões dos outros homens.
- Os batedores encontraram Carátaco! Deteve-se numa colina a menos de dois dias de marcha de onde nos encontramos. Senhores, temo-lo onde queríamos! Por fim, temo-lo
nas mãos.
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O general desmontou na encosta suave, a uns cem passos da margem do rio que os separava do exército de Carátaco. A corrente fluía com rapidez, tanto a montante como
a jusante, e violentos remoinhos revelavam os pontos onde se dissimulavam blocos rochosos submersos. No seu ponto mais estreito, o rio tinha uns cinquenta metros
de largo, encaixado entre margens abruptas que representavam mais um difícil obstáculo para qualquer soldado que levasse consigo equipamento pesado e tentasse atravessar
a corrente. Mais dificuldades ainda se ficavam a dever às afiadas estacas que os siluros tinham cravado no leito do rio, em todos os pontos onde uma travessia a
vau parecia possível.
O prefeito Horácio mordeu o lábio.
- Vai ser uma chatice atravessar este rio.
- É bem verdade - concordou Macro. - Mas esse é o menor dos nossos problemas. O que me assusta mesmo é o que nos espera do outro lado.
Os oficiais mais próximos, que tinham ouvido o comentário, espraiaram o olhar sobre a imponente colina que se erguia íngreme a partir da margem oposta. Em vários
locais eram verdadeiras falésias que conduziam à água. Nos pontos onde era possível escalar a vertente, o inimigo tinha empilhado rochas que forneciam defesas pouco
sofisticadas mas eficazes. Uma segunda linha de obstáculos revelava-se mais acima na colina, na zona em que o declive começava a diminuir, mais de cem metros sobre
o nível do rio, calculou Cato. As defesas estavam guarnecidas por milhares de guerreiros inimigos, a olharem com rancor para o exército romano que naquele momento
instalava o seu campo no terreno quase plano a umas centenas de metros da margem do rio. Um estandarte verde, com o desenho do que parecia ser um animal monstruoso,
com asas e avermelhado, esvoaçava ao vento que soprava no alto da colina. Por
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baixo dele avistava-se um grupo de homens de capas quase escarlates, e com as calças de padrão colorido que eram a indumentária favorita dos guerreiros nativos,
e que observavam os oficiais romanos lá em baixo, na margem oposta.
- Lá está Carátaco. - Cato apontou para o grupo.
Macro esforçou a vista para tentar distinguir os homens agrupados sob o estandarte.
- Deve estar a apreciar o desafio que nos lançou. Mas depressa apagaremos o sorriso da cara daquele cabrão.
Horácio aclarou a garganta e inclinou-se para o lado, para cuspir no solo.
- Não estejas assim tão certo, Macro. Ele escolheu muito bem a posição em que resolveu enfrentar-nos. Transformou este outeiro numa verdadeira fortaleza.
- Senhor, não deixa de ser uma simples colina fortificada - insistiu Macro. - O que quer dizer que há de haver forma de contornar as defesas.
- Achas mesmo? Olha lá outra vez com cuidado.
Macro perscrutou atentamente o cenário à sua frente. A colina estendia-se por um bom par de quilómetros antes de mergulhar abruptamente nas duas extremidades, e
o rio seguia-lhe o contorno, fornecendo assim um fosso à fortaleza improvisada.
- O que há do outro lado deste monte?
Cato encolheu os ombros.
- Ninguém sabe ao certo. - Indicou o esquadrão de cavalaria auxiliar que abria caminho ao longo da margem do rio. Eram seguidos do outro lado da corrente por um
grupo de nativos com armamento ligeiro, que facilmente se mantinha a par dos romanos. - Não o saberemos até que os batedores regressem com informações para o general.
O tribuno Otho mantivera-se nas proximidades, em silêncio, a observar e pesar a posição inimiga, até que por fim se aproximou de Cato e dos outros. Envergava uma
proteção prateada em que estava gravado um elaborado desenho que representava cavalos empinados. As correias polidas do colete de couro brilhavam ao sol, e a capa
estava limpa e não mostrava nenhum dos rasgões ou desfiados que afetavam as capas dos outros oficiais. O resto do equipamento e armadura era também novo em folha,
e como toque final usava umas botas fechadas de couro tingido de vermelho, com atilhos até ao cimo das canelas.
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- Tão brilhante como um denário cunhado de fresco - resmungou Macro, enquanto abanava a cabeça, em claro sinal de desaprovação.
- Vai sobressair na paisagem como um pendericalho teso numa casa de massagens para eunucos. Não vai haver guerreiro siluro com uma pinta de sangue que não o tente
apanhar.
Cato via-se forçado a concordar. Pouco depois da sua primeira chegada à ilha britânica, tinha travado conhecimento com a mania dos guerreiros nativos de colecionar
as cabeças daqueles que derrotavam em combate. A cabeça de um oficial romano era o mais desejado dos troféus para decorar uma das rústicas cabanas de palha e adobe
em que viviam a maior parte dos nativos. Com o seu garbo e aquele capacete polido ornado com uma resplandecente crista vermelha, Otho ia atrair a atenção de qualquer
guerreiro siluro que o avistasse.
- Olá, pessoal! - Otho soltou uma saudação jovial ao aproximar-se. - Devo reconhecer que estes nativos têm olho, quando se trata de escolher uma posição defensiva.
Mas não estarão ao nível dos homens da Nona, nem mesmo ao dos das outras legiões, aposto. Assim que o general der ordens, limpamos a colina de Carátaco e da sua
turba.
- Ah, sim? - Horácio inspirou o ar por entre os dentes. Cato percebeu o ar irritado que lhe atravessou o rosto antes de ele lançar um sorriso frio e irónico ao tribuno.
- Bem, por mim apreciaria grandemente que tu e os teus homens nos mostrassem como despachar este trabalho tão rapidamente. Porque é que não pedes ao general que
te dê a honra de ser o primeiro a atacar? Tenho a certeza que tal gesto o sensibilizaria.
Otho considerou a proposta brevemente.
- E porque não? Já é tempo de me darem uma oportunidade para cumprir o meu dever.
- Porque não? - Macro franziu o sobrolho. - Bem, senhor, porque não pode simplesmente avançar sobre o inimigo a desferir espadeiradas à direita e à esquerda. Há
uma forma correta de fazer isto. E uma errada. - Virou-se para Cato. - Não concorda, senhor?
Cato apercebeu-se rapidamente do significado implícito nas palavras do centurião. Anuiu, e confrontou o tribuno num tom gentil.
- Será a sua primeira batalha, calculo.
- Bem, sim. Por acaso, até é.
- Nesse caso, aproveite a ocasião para observar e aprender. Terá
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outras oportunidades para provar o seu valor. Os bons soldados aprendem com a experiência. Ou arriscam-se a pagar um preço muito elevado.
Otho escutou-o com atenção, antes de se virar para voltar a observar a posição inimiga.
- Compreendo.
Pouco depois, o general Ostório decidiu que já tinha passado tempo suficiente a apreciar as defesas nativas. Deu ordens curtas e incisivas para que fossem colocados
piquetes de guarda à margem do rio, montou e regressou ao campo. Os oficiais do seu estado-maior seguiram-no, deixando todos os outros a ponderar sobre os formidáveis
obstáculos com que se defrontavam, até que também eles começaram a dispersar, regressando para junto das suas unidades. Os homens trabalhavam arduamente na construção
do fosso e da base elevada da muralha que rodeariam a área necessária à disposição das duas legiões, do destacamento da Nona, das oito coortes de tropas auxiliares,
e ainda da caravana das bagagens e dos acompanhantes civis. Era mais uma cidade do que um campo fortificado, considerou Cato, enquanto se aproximava do local onde
ia ficar o portão principal. As fundações dos torreões já tinham sido cravadas na terra, e havia homens a tratarem de erigir as estruturas. Ao aproximarem-se das
linhas de tendas das coortes da Nona, Otho agitou a mão à laia de despedida, e lançou o cavalo num trote rápido a caminho da sua tenda de comando, a primeira que
tinha sido levantada pelos homens, antes de montarem as suas próprias e bem mais modestas tendas, uma por secção, onde todas as noites se amontoavam oito homens.
- O rapaz está ansioso por regressar aos braços da esposa. - Macro riu-se. - Não é que eu seja do tipo casamenteiro, mas vejo as vantagens de ter uma mulher connosco
em campanha. Poupa-se uma fortuna - acrescentou, enquanto piscava um olho maroto.
- Não tenho assim tanta certeza - retorquiu Cato. - Aquela parece-me do tipo de mulher que custa muito a manter.
- A exceção da tua própria esposa, nomeia lá uma aristocrata que não o seja.
Cato sorriu.
- E essa, meu caro, é apenas uma das muitas razões porque me casei com ela. Quanto às outras... nem pergunte.
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- Como se alguma vez o tivesse feito. - Macro seguiu em silêncio, até resolver fazer justamente uma pergunta. - Tiveste notícias, ultimamente?
- Nada, desde que chegámos à ilha.
- Já lá vão quase cinco meses.
Cato encolheu os ombros.
- Estamos a travar uma guerra nos limites do mundo conhecido. Uma carta de Roma pode bem levar alguns meses até me chegar às mãos.
- É verdade. Mas tenho a certeza que ela está bem. A Júlia é uma miúda saudável. E tão leal como o melhor dos veteranos. Não que eu esteja a sugerir o que quer que
seja...
- Pois, está bem. Assim chega - ripostou Cato, tenso. - Não posso pôr-me a pensar nessas coisas. Agora não. Enquanto não derrotarmos Carátaco, nem pensar.
Macro assentiu, mas não deixou de deitar uma olhadela disfarçada ao amigo, sem se deixar iludir pela resposta aparentemente despreocupada de Cato. O miúdo tinha
encontrado o amor verdadeiro, mas era típico da vida militar ter-se visto forçado a deixar a esposa em casa pouco mais de um mês depois de a desposar. E o mais provável
era que passassem alguns anos até que Cato a voltasse a ver. Durante esse período muita coisa podia acontecer, cismou Macro, enquanto se aproximavam da linha das
tendas da escolta do comboio das bagagens.
À medida que a luz da tarde diminuía sem que houvesse sinal de um
assalto iminente, a maior parte dos guerreiros inimigos começou a deixar as suas posições nas barricadas da encosta, subindo o declive até ao acampamento situado
na crista da elevação. As primeiras fogueiras começaram a surgir enquanto o Sol se punha, e o fulgor destas depressa delineava todo o cimo da colina. Os soldados
romanos postados junto à margem do rio mal conseguiam distinguir os seus adversários na outra margem. Embora na maior parte do tempo imperasse o silêncio, de vez
em quando eram trocados insultos através da água, até que um optio, sem pingo de ironia, lançou um berro aos seus homens para que vigiassem em silêncio. Do alto
da colina vinham de vez em quando fragmentos de cantoria e gargalhadas, sinal de que Carátaco e os seus homens se lançavam num fervor alcoólico para preparar a batalha
que esperavam travar no dia seguinte.
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No campo romano o ambiente era mais tranquilo, profissional, enquanto os soldados cumpriam as rotinas quotidianas da vida militar. Depois de erigidas as tendas,
preparavam as suas modestas refeições vespertinas e depois, aqueles que tinham sido designados sentinelas do primeiro turno envergavam as armaduras, pegavam nas
armas e dirigiam-se para os seus postos. Os seus camaradas ficavam à volta dos fogos que tinham servido para cozinhar, a limpar equipamentos e a afiar armas, contemplando
a proximidade da batalha. A vasta maioria falava em tons baixos, e aqueles que ainda não tinham tido ocasião de passar à prática sanguinolenta tudo aquilo que tinham
aprendido ao longo das duras sessões de treino mantinham-se em silêncio, tentando consolidar a sua coragem e afastar todos os medos: o da morte, o de receberem uma
ferida incapacitante, o de enfrentarem o terrível e frio aço de uma lança inimiga, ou espada, ou seta, ou até os impactos mortais da metralha; e o pior de todos,
o medo de não serem capazes de esconder o terror que iam sentir à frente de todos os seus camaradas. Outros sentavam-se junto aos veteranos, tentando obter alguns
conselhos e orientações sobre a melhor maneira de enfrentar aquilo que se aproximava. Estes eram sempre os mesmos. Confiar no treino recebido, manter a fé nos deuses
e matar toda e qualquer criatura que lhes surgisse pela frente.
Na tenda de comando, a disposição era também soturna, enquanto o general Ostório e os seus oficiais superiores consideravam os eventos do dia seguinte. Os subordinados
estavam sentados em bancos e cadeiras ao longo das paredes da tenda. A pálida luz das lamparinas de azeite pouco fazia para derrotar a atmosfera sombria; o general
dirigiu-se aos seus homens.
- As patrulhas de cavalaria correram o rio para cima e para baixo, ao longo de cerca de quinze quilómetros. Ao que parece, não há nenhum ponto adequado à travessia
do exército. Se deixarmos este campo e seguirmos o rio até encontrarmos sítio para o atravessar e rodear a posição de Carátaco, ele ver-se-á certamente obrigado
a abandonar esta colina e a prosseguir a retirada. Porém, enquanto ele recua sobre as suas próprias linhas de abastecimento, para o interior do território dos ordovicos,
nós continuamos a esticar as nossas, pelo que isso lhe oferece uma evidente vantagem logística. E já vimos como ele facilmente nos iludiu em campanhas anteriores.
- Ostório fez uma pausa, antes de prosseguir com mais entusiasmo. - Não quero passar outro ano nestas
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malditas montanhas, a perseguir sombras. Não suporto a ideia de ver as nossas legiões e coortes auxiliares a sangrarem a pouco e pouco até à morte devido às intermináveis
escaramuças e aos ataques de surpresa. Os deuses colocaram Carátaco aqui à nossa frente, e é aqui que o vamos enfrentar. Não lhe darei qualquer desculpa para evitar
o combate e escapar. Ele ofereceu-nos batalha nos seus próprios termos e, quer queiramos ou não, é isso que vamos aceitar, senhores.
Olhou em volta de toda a tenda, para ter a certeza que as suas ideias eram compreendidas.
- Sendo esta a situação, vemo-nos obrigados a conduzir um ataque frontal pelo rio. Decidi que a primeira vaga avançará amanhã, ao meio-dia. Desta forma, teremos
tempo para implantar a nossa artilharia no terreno e bombardear as barricadas. Assim que abrirmos algumas brechas, poderemos entrar e tomar toda a colina... Há perguntas?
- Ui, tantas - sussurrou Macro a Cato. - Mas longe de mim meter a cabeça no cepo a fazê-las.
- Nesse caso, faço-as eu - retorquiu Cato, calmamente. Inclinou-se para a frente no banco e ergueu uma mão para chamar a atenção do general.
Ostório fitou-o, e cruzou as mãos por trás das costas.
- Prefeito Cato, o que tens a dizer?
- Senhor, a primeira linha de barricadas está no limite do alcance da nossa artilharia. A segunda está muito para lá dele. Não conseguiremos desgastá-la.
- Sei disso muito bem. Os nossos homens terão de combater até ultrapassarem essas defesas.
- Mas para o fazerem terão primeiro de atravessar o rio, evitar as estacas no leito, trepar para a margem e subir o declive, isto tudo enquanto envergam equipamento
pesado. Depois alargar as brechas e ultrapassar a primeira linha de defesas, para continuarem a trepar o declive até chegarem à segunda linha. E ao longo da subida
não deixarão de estar expostos a um constante bombardeamento inimigo. Senhor, era capaz de apostar que quando chegarem ao pé da segunda linha de defesas, já estarão
extenuados e incapazes de combater com eficácia.
- E apesar disso tudo, combaterão. E ultrapassarão todas as defesas, e ganharão o dia.
- Mas as baixas serão pesadas, senhor. Muito pesadas.
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- Pode ser que sim. Se for esse o preço a pagar por finalmente derrotar Carátaco, valerá a pena. Mas não tens de te preocupar com esses detalhes, prefeito Cato.
Afinal de contas, tu e os teus homens estarão a proteger as bagagens, e não desempenharão qualquer função na batalha. Não te apoquentes, que nada de mal te vai acontecer.
Alguns dos oficiais não esconderam um sorriso perante aquele comentário mordaz, e Cato sentiu a raiva a percorrer-lhe as veias. Podiam sentir-se insultados pela
sua rápida ascensão nas fileiras, mas isso não lhes dava o direito de duvidar da sua coragem. Teve de se obrigar a falar com toda a calma.
- Senhor, em face do tremendo desafio que o exército vai enfrentar amanhã, peço respeitosamente que os meus homens se possam juntar ao ataque. Já provaram sobremaneira
o seu valor contra este inimigo.
- Tal não será necessário. Parece-me que exageras as dificuldades que temos pela frente. Além disso, os teus homens são necessários aqui. Ficarei muito mais descansado
sabendo que o campo está protegido por homens que estão habituados a enfrentar o inimigo com uma boa muralha a separá-los, como demonstraram de forma tão convincente
em Bruccium.
O general tinha ido longe de mais e, apesar do seu bom senso habitual, o orgulho de Cato não podia deixar passar aquela calúnia sem resposta. Fez menção de ripostar,
mas Macro deu-lhe um toque rápido e sussurrou:
- Cato, deixa-o falar.
Por um momento ainda, Cato esteve à beira de uma discussão acesa com o seu comandante. Mas acabou por conseguir engolir o seu orgulho ferido e a fúria que o inundava,
e voltou a acomodar-se no banco. Ostório fitou-o com desdém, e só então voltou a passar os olhos pelo resto da tenda.
- Mais alguém?
Mais do que uma pergunta, era um verdadeiro desafio, e todos os homens na tenda o perceberam e evitaram expor-se ao mesmo tipo de comentários desdenhosos que Cato
sofrera. O silêncio manteve-se. Ostório assentiu.
- Muito bem. O ataque será então levado a cabo pelos nossos legionários. É uma tarefa demasiado complicada para as coortes auxiliares. Portanto, os auxiliares deixarão
o campo escondidos pela escuridão da
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noite e marcharão até darem a volta à colina e se posicionarem de forma a cortar a retirada ao inimigo.
A decisão provocou uma revoada de comentários murmurados entre os oficiais. As manobras noturnas eram, no melhor dos casos, difíceis de conduzir. Os romanos pouco
conheciam do terreno que iam pisar e ficariam à mercê de qualquer emboscada que o inimigo preparasse. E havia a possibilidade de algumas unidades se perderem e não
ocuparem as posições designadas a tempo. Era uma opção arriscada.
- Compreendo as vossas apreensões - lançou Ostório. - Mas, como já disse, não estou disposto a dar a Carátaco qualquer possibilidade de abandonar a posição que ocupa
e esgueirar-se de novo. Se tal vier a suceder por negligência de qualquer um dos meus oficiais, podem ter a certeza que terão de me prestar contas. A mim e ao Imperador.
Todos cumprirão o seu dever. Receberão as vossas ordens assim que os meus escribas as tiverem preparado para serem distribuídas. Senhores, estão dispensados.
Regressou à sua secretária ao fundo da tenda, e sentou-se pesadamente no seu cadeirão acolchoado. Os oficiais levantaram-se e começaram a dirigir-se às cortinas
na entrada da tenda. Cato foi-se deixando ficar, ainda disposto a tentar dissuadir o comandante de tomar aquela opção, e Macro viu-se forçado a intervir de novo.
- Senhor, não o faça.
Cato virou-se para ele e interrogou-o.
- Porque é que me impediu de falar?
- Júpiter, tem piedade... Ele estava a lançar-te o isco. Não vês isso? Se tivesses respondido, terias caído na armadilha e feito uma triste figura à frente dos outros
oficiais.
Cato pensou rapidamente, e anuiu.
- Tem razão... Obrigado, Macro.
Ao deixarem a tenda, um dos escribas do general avistou-os e abriu respeitosamente caminho por entre os oficiais.
- Prefeito Cato, senhor?
- O que se passa?
- Com os reforços da Nona, veio um pacote de cartas, senhor. Esta é para si.
Ofereceu-lhe uma pasta de couro dobrada e fina, fechada com cera, onde fora impresso o selo da família Semprónio. O nome de Cato, a sua
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patente e a localização do comando provincial em Cameloduno viam-se escritos numa letra elegante ao lado do selo. Reconheceu de imediato a caligrafia, era da sua
esposa, Júlia, e sentiu o coração dar um pulo.
- Obrigado. - Sorriu ao homem, que dobrou o pescoço e se virou, à procura de outro felizardo que ia receber notícias de casa.
- É da Júlia? - indagou Macro.
Cato assentiu.
- Nesse caso, deixo-te para a leres em sossego. Vou para a messe dos oficiais.
No exterior da tenda do general havia um espaço aberto, rodeado pelas outras tendas que constituíam o complexo do estado-maior. A área era iluminada pelas chamas
que se erguiam de vários braseiros de ferro. A noite estava cálida e as únicas nuvens no céu encontravam-se a ocidente, deixando que as estrelas brilhassem sem obstáculos.
O ambiente era pacífico e Cato lembrou-se da última noite que passara em Roma com Júlia, no terraço da casa do pai dela. Apesar de ser inverno, também eles tinham
estado debaixo do conforto de um braseiro e da companhia um do outro, deitados a contemplar os céus. Sorriu perante a memória, até que a dor da ausência tomou conta
do seu ser.
Aproximou-se do brilho lançado pelo braseiro mais próximo, levantou a carta à luz e tocou levemente na suave cera em volta da impressão do motivo que representava
os Semprónios, um golfinho. Pegou então na capa de couro e quebrou o selo, abrindo cuidadosamente o invólucro para extrair as folhas de papiro do interior. Colocou-as
por ordem e começou a ler. A carta estava datada de cerca de dois meses depois de ter deixado Roma, e tinha levado outro tanto até lhe chegar às mãos.
Meu querido esposo, Cato
Aproveito esta ocasião para te escrever, já que um conhecido do meu pai vai partir para a Britânia e, sabendo das circunstâncias, ofereceu-se para te levar uma mensagem.
O tempo é curto, e por isso temo bem não ser capaz de exprimir o vazio que sinto no coração, provocado pela tua ausência. Cato, tu és tudo para mim. Por isso faço
todos os dias as minhas preces para que te mantenhas em segurança e para que regresses rapidamente para junto de mim, depois de completares o teu serviço no exército
de Ostório Escápula. Sei bem que podem passar
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anos até que tenhamos oportunidade de estarmos de novo nos braços um do outro, e sei que devo ser forte e constante na minha afeição, e assim será. E quero que disso
fiques bem ciente, meu coração.
Aqui em Roma, diz-se que o Ostório procura pôr fim à campanha na Britânia em simultâneo com o fim da sua carreira como general. O pai diz que o Imperador fez saber
que uma vitória dessa dimensão seria merecedora de uma Ovação. Portanto, os senadores votarão nesse sentido, claro. Se tal acontecer, estarás por certo entre os
oficiais que receberão honras em Roma ao lado de Ostório. Rezo para que assim seja. Não seria mais do que aquilo que mereces pelos serviços que já prestaste ao Imperador.
Entretanto, o Imperador envelhece, e a cidade fervilha com boatos sobre a sucessão. Embora Britânico seja o seu filho natural, parece que a nova esposa do Imperador
faz tudo o que pode para promover os interesses do seu filho, Nero. Não posso dizer que simpatize com ele. Passa o tempo a elogiar e adular o seu pai adotivo, muito
para lá do que se poderia entender como sendo sincero. E nos bastidores, diz-me o pai, a verdadeira luta é entre os mais próximos conselheiros de Cláudio, o Pallas
e o teu velho conhecido Narciso. Quando houver um novo Imperador, um deles terá poucas hipóteses de sobreviver.
Mas já estou farta de politiquices. Sobretudo porque estive a escrever tudo aquilo enquanto ganhava forças para te dar notícias mais importantes para nós os dois.
Eueo pai encontrámos uma casa no Quirinal que me parece adequada para nós. Não é nenhum palácio, claro, mas é espaçosa e arejada, e tem um pequeno jardim interior.
Uma bela casa para acolher o meu adorado marido quando regressar, e nessa altura já mais do que marido. Meu querido Cato, estou grávida. Estou certa disso. Vamos
ter um filho. A tua semente cresce em mim e faz-me sentir mais próxima de ti, mesmo que estejas na outra ponta do Império. Tenho de terminar, o mercador de que te
falei está pronto para partir. Envio-te portanto esta missiva com todo o meu coração, da tua esposa amantíssima, Júlia.
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Cato sentiu o peito inchar com a paixão e o orgulho. Uma criança. O filho deles. Nasceria no outono. Cato sentiu uma enorme perda. Não estaria ao lado de Júlia quando
a criança nascesse. Aliás, o mais provável era mesmo que não a conhecesse durante alguns anos. O momento de reflexão passou, e a perspetiva de se tornar pai levantou-lhe
o espírito acima de tudo o que o rodeava, e baniu todos os pensamentos de cansaço e da batalha próxima. Releu a carta, desta vez levando tempo a saborear cada frase,
cada palavra, escutando Júlia a pronunciá-las na sua mente. Por fim, dobrou de novo a missiva, recolocou-a na pasta e prendeu-a cuidadosamente ao cinto. Tinha de
contar as novidades a Macro. Tinha de partilhar a alegria que sentia, e havia muito a celebrar.
A tenda que fora designada para messe dos oficiais ficava a curta distância e, à medida que se aproximava dela, Cato escutava os sons das gargalhadas e o burburinho
da conversa animada. O que não deixava de o surpreender, dada a disposição soturna que tinha dominado a reunião na tenda do general, havia apenas alguns minutos.
Talvez os oficiais tivessem resolvido afogar a ansiedade no vinho e na cerveja adocicada produzida pelos nativos, que se tinha tornado popular entre os homens que
serviam na Britânia.
Inclinou-se para passar por entre as abas da entrada e foi acolhido pelo ambiente caloroso do interior. O aroma das bebidas misturava-se com o do suor dos homens,
e com o odor acre da madeira queimada. O som do vozeiral era ensurdecedor, mas a atenção de Cato foi imediatamente atraída para o vulto que dominava o cenário. A
meio da tenda estava a esposa do tribuno Otho. Rodeava-a uma verdadeira nuvem de oficiais jovens e um punhado de veteranos, que apreciavam a rara ocasião de uma
companhia feminina naquele cenário, com um ar quase aparvalhado. Ela tinha acabado de proferir algum comentário e os homens à sua volta rebentavam em gargalhadas.
Ao seu lado, com o braço a rodear-lhe a cintura, estava Otho, que mal escondia o prazer que extraía da atenção concedida à mulher.
- E quem é este garboso personagem?
O olhar de Cato dirigiu-se de novo para a mulher, e reparou que ela lhe sorria. Hesitou, ansioso por localizar Macro e partilhar com ele as notícias que acabara
de receber, mas ao mesmo tempo consciente da necessidade de respeitar as normas sociais. Aproximou-se da mulher, e os oficiais deram-lhe passagem até que ele lhe
pegou na mão e baixou a
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cabeça. A pele dela era suave e branca, e antes de lhe largar a mão num aperto formal, ela pressionou-a ligeiramente.
- Senhora, sou o prefeito Cato. Comandante da Segunda Trácia de Cavalaria.
- E guardião da coluna das putas ao serviço do exército! - lançou uma voz de entre a turba.
O dichote foi sublinhado por um coro de gargalhadas de alguns dos oficiais, até que Otho falou.
- E esta é a minha esposa, Popeia Sabrina.
- É um prazer conhecer-te, prefeito. Tal como qualquer um dos novos camaradas do meu marido.
Cato procurou uma resposta adequada, e lá conseguiu soltar a língua.
- Senhora, o prazer é meu.
- Dito como qualquer homem com um casamento feliz - ripostou ela, com um sorriso maroto. - Bom, não deixes que te prenda.
Cato voltou a inclinar a cabeça e recuou, enquanto ela voltava a dar atenção aos outros oficiais. Olhou em volta e avistou Macro ao balcão, a comprar um jarro de
vinho ao comerciante que tinha conseguido o contrato para fornecer a messe de oficiais. Macro contava dinheiro da bolsa quando Cato se aproximou.
- Guarde isso. Este é por minha conta. - Cato virou-se para o negociante. - Qual é o teu melhor vinho?
- Senhor? - O homem era um oriental de pele escura, envolto numa espessa túnica e de chapéu, apesar do calor que se fazia sentir dentro da tenda.
- O teu melhor vinho. O que é que tens?
- Bom, há o arretiano, mas custa cinco denários por jarro.
Cato remexeu na bolsa e depositou as moedas de prata no balcão.
- Ótimo. É esse mesmo que queremos.
- Um momento, por favor. - O mercador inclinou-se para o interior do balcão e levantou-se com uma ânfora delicada. Retirou-lhe a tampa com todo o cuidado e encheu
um jarro antes de devolver a ânfora ao lugar seguro em que era mantida.
- O que é que vamos celebrar? - inquiriu Macro, com uma expressão de surpresa.
Cato não respondeu; encheu duas canecas e entregou uma a Macro.
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- Aí tem.
Macro abanou a cabeça.
- Vá, miúdo, o que se passa?
- Bom, parece que me vou tornar pai... Saúde!
As sobrancelhas de Macro arregalaram-se de surpresa, até que uma expressão de prazer genuíno lhe vincou todo o rosto.
Cato ergueu o copo e bebeu com vontade, sorvendo o vinho de qualidade como se fosse água. Depois de a última gota lhe ter escorregado pela garganta, pousou o recipiente
no balcão com estrondo.
- Ahhh!
Macro sorria abertamente, mostrando os dentes manchados e irregulares. Emborcou o copo em metade do tempo que tinha levado ao amigo, e lançou os braços em torno
de Cato num abraço rápido e que quase lhe esmagou as costelas.
- Caramba, miúdo, isso são notícias do caraças! Porra, grandes notícias! - Libertou Cato e recuou, ainda a sorrir. - Quando?
- N-não sei bem. Só sei o que diz a Júlia, que está grávida.
- Maravilhoso... Acho que isso faz de mim uma espécie de tio babado.
- Nem pensar nisso! - brincou Cato. - A Júlia não vai querer uma criança a praguejar como um veterano antes mesmo de saber andar.
Macro rosnou e deu-lhe um amigável soco no peito.
- Senhores! - gritou de súbito uma voz à entrada da tenda. Todos os olhares se viraram para o escriba que transportava um cesto repleto de tábuas enceradas. - Comandantes
de unidades! As vossas ordens!
O ambiente festivo esmoreceu instantaneamente, à medida que os oficiais se acercavam do homem e esperavam pela sua vez para receberem a tábua que lhes cabia.
O sorriso de Cato desvaneceu-se.
- Deixa lá, miúdo. Amanhã à noite celebramos como deve ser.
- Sim - assentiu Cato. - Amanhã.
Respirou fundo e deixou Macro a servir-se de mais vinho enquanto ele se juntava aos outros oficiais, à espera de saber que papel teriam a desempenhar na batalha
próxima. Uma batalha em que ele seria apenas um mero espetador.
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Quando Cato e Macro estavam a chegar à tenda de comando da escolta das bagagens, Thraxis surgiu por entre as abas da entrada,
deixando que a fogueira mais próxima lhe iluminasse a expressão preocupada do rosto.
- Prefeito, graças aos deuses que está aqui.
- O que se passa?
- Está um homem lá dentro. Recusa ir-se embora.
Macro franziu o sobrolho.
- Que homem?
- Um comerciante de vinho, senhor.
- Comerciante de vinho? - Cato trocou um olhar espantado com o amigo. - O que está um mercador, e de vinhos, a fazer na minha tenda a estas horas?
Thraxis mordeu o lábio.
- Reclama que eu o enganei, prefeito. Juro que não é verdade.
- Enganaste-o? Como?
- Diz ele que lhe paguei com moedas falsas e que está aqui para exigir que eu seja condenado.
Cato deteve-se. O uso de moeda falsa era uma ofensa capital. O Imperador tinha muito pouco apreço por criminosos que desvalorizavam o dinheiro em que a sua face
tinha sido cunhada. As moedas que dera a Thraxis eram genuínas. Denários cunhados de fresco. Não havia qualquer hipótese de serem falsos. E agora tinha de lidar
com aquela acusação feita ao seu servidor antes mesmo de poder ir dormir. Considerou brevemente a possibilidade de expulsar o mercador da sua tenda, mas sabia que
isso apenas o levaria a ir queixar-se ao general, o que não seria nada boa ideia.
- Oh, muito bem - resmungou. - Macro, vou precisar de si para me ajudar a resolver isto.
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- De mim? Porquê?
Cato lançou-lhe um olhar significativo.
- Porque ainda tem algumas moedas da mesma fornada que as minhas. Pode jurar que elas são genuínas.
Thraxis sorriu, agradecido, e deu um passo ao lado para afastar as abas da entrada da tenda e permitir a passagem aos dois oficiais. No interior da tenda estava
apenas uma pessoa, sentada num banco. Os dois escribas encarregados dos registos da coorte já tinham saído de serviço e deixado as tábuas enceradas e as folhas de
papiro em pilhas bem arrumadas para retomarem o trabalho no dia seguinte. Só havia uma lamparina acesa, e a face do mercador de vinhos mal se percebia na penumbra
reinante.
Cato olhou para o visitante com irritação.
- O meu homem diz-me que te queres queixar por causa da prata que eu lhe dei para te pagar.
O homem pôs-se de pé e inclinou a cabeça.
- Nobre prefeito, peço imensas desculpas por perturbar a sua noite, mas venho por causa de um assunto da maior importância.
- Dinheiro. - Macro fungou. - É tudo o que interessa aos da tua
laia.
O mercador ergueu as mãos e encolheu os ombros.
- Senhor, é assim que ganho a vida. Quem é que não lhe daria valor? Mas, como disse, tenho de falar com o prefeito. Seria melhor, antes de mais, mandar embora o
cão trácio.
- Porquê? - inquiriu Cato. - Se o queres acusar, fá-lo à sua frente e deixa que ele mesmo responda às tuas acusações.
Thraxis mantinha-se em silêncio à entrada da tenda, de rosto tenso. Cato não estava certo de que lhe agradava ter a hipótese de se defender, ou se preferia que o
seu comandante tratasse do assunto. A perspetiva de ver aquilo transformar-se numa troca de insultos entre o comerciante e o seu criado era mais do que Cato estava
disposto a aguentar àquela hora. Suspirou, e fez um sinal com o dedo na direção da entrada da tenda.
- Vai buscar lenha. Preciso que acendas o braseiro nos meus aposentos.
- Sim, prefeito. - Thraxis dobrou o pescoço, lançou um último olhar furioso ao mercador, esgueirou-se para fora da tenda e desapareceu.
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Cato deixou-se cair num dos bancos dos escribas e coçou a cabeça. Macro manteve-se de pé, de braços cruzados, a observar o visitante.
- Bom - começou Cato. - Que história é esta, afinal?
O mercador de vinhos avançou lentamente, aproximando-se da lamparina, e à luz desta Cato e Macro conseguiram por fim distinguir-lhe as feições. Vestia uma túnica
simples, castanha, e umas calças por baixo da capa verde, com botas de sola espessa. O cabelo era escuro, e o rosto magro e ossudo. Cato reconheceu-o, e soltou um
grito de surpresa.
- Sétimo...
- O quê? - O sobrolho de Macro arregalou-se. - Sétimo? Pelos deuses, tens razão. O que está este aqui a fazer, por Júpiter?
O agente imperial sorriu levemente e abandonou a pronúncia cantante que tinha usado quando assumira o papel de mercador.
- Também é um prazer revê-lo, centurião Macro. Não me vai perguntar que tal foi a viagem?
A boca de Macro ainda não se tinha fechado do espanto, e ele continuava a olhar para o homem. Foi Cato quem primeiro recuperou e fixou o olhar com firmeza em Sétimo.
- Como disse o Macro, o que estás aqui a fazer? Porquê o disfarce?
- No papel de Hiparco, mercador de vinhos, consigo evitar atrair muitas atenções - explicou Sétimo. - Comprei o negócio ao verdadeiro Hiparco ainda em Londinium,
bem como uns mandriões que o grego usava para o ajudarem. Mas vamos lá, meus amigos. - Sétimo adotou uma expressão magoada. - Isto é forma de acolher um velho companheiro
de armas? Já se esqueceram que combatemos lado a lado contra os inimigos do Imperador, nas ruas de Roma?
- O caralho - ripostou Macro, de maus modos. - Um filho do Narciso nunca será meu camarada.
- Centurião, está a partir-me o coração.
- Já chega! - irritou-se Cato. - Explica lá o que estás aqui a fazer. Não me parece, nem por momentos, que tenhas vindo investigar um caso de contrafação de moeda
nos confins do Império.
A máscara que Sétimo usara, de orgulho ferido, desvaneceu-se.
- Muito bem, ponhamos de parte as amabilidades.
- Isso mesmo! - apoiou Macro, com brusquidão.
- Fui enviado pelo meu pai.
Macro lançou as mãos à cabeça.
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- Não, digam-me que isto não é verdade. Digam-me que aquele sacana oleoso não nos quer envolver outra vez nalgum esquema malcheiroso dos dele.
- Porque é que ele te enviou? - quis saber Cato. - O que quer ele de nós desta vez?
Sétimo resolveu mostrar-se ofendido.
- Narciso enviou-me para vos avisar de uma ameaça às vossas vidas. Estão em grave perigo.
- A sério? - Macro ergueu as mãos aos céus. - Ouviste, Cato? Estamos em perigo. Aqui, no coração do território inimigo, na véspera de uma batalha decisiva. Em perigo.
Quem haveria de dizer? - Voltou-se outra vez para Sétimo. - Ora, dizem vocês que trabalham para os serviços de informação imperial, não é? Dá-me ideia de que deviam
arranjar outro nome para essa brincadeira.
Cato acenou em concordância, e atravessou a tenda para fechar as abas da entrada e fazer o mesmo na passagem para as suas acomodações pessoais. Havia outra entrada
que Thraxis poderia usar quando regressasse com a lenha para acender o braseiro.
- Fala lá, então.
Sétimo voltou a sentar-se num banco e ordenou as ideias.
- Há cerca de uns quatro meses, apanhámos um agente de Pallas nas ruas de Roma. Já o seguíamos havia uns dias, e tínhamos reparado que ele andara a visitar uma série
de personagens interessantes pela cidade. Narciso achou que era hora de trocarmos com ele umas impressões.
Cato não teve de usar grande imaginação quanto ao significado daquele eufemismo, e sentiu um arrepio na espinha enquanto Sétimo prosseguia.
- No decorrer da conversa com esse tipo, que se chamava Musa...
- Chamava? - Macro franziu o sobrolho.
Sétimo deitou-lhe um olhar.
- Ele já não conta. Seja como for, o Musa revelou-nos que o Pallas tinha enviado um agente para a Britânia, para vos localizar e liquidar. Assim que Narciso soube
disso, enviou-me para vos avisar.
- Estamos muito sensibilizados - comentou Macro. - Muito atencioso da sua parte.
Cato cofiou o queixo, e acabou por abanar a cabeça.
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- Isso foi há quatro meses, dizes tu. Levaste o teu tempo a alcançar-nos e dar-nos essa notícia.
- Foi uma longa viagem. Quando cheguei a Gesoríaco, havia tempestades que não permitiam a saída de navios. E quando cheguei à Britânia, levei algum tempo a descobrir-vos
o rasto. - Sétimo encolheu os ombros. - Que mais posso eu dizer?
Cato sorriu sem vontade.
- A verdade, por exemplo. Seria mais agradável.
- A verdade raramente é agradável. Acreditem, sei bem do que falo.
- Acreditar? - Cato abanou a cabeça. - Sétimo, falas de algo bem mais valioso do que o ouro, no mundo em que vivemos. A confiança tem de ser merecida. E eu e o Macro
já fizemos mais do que o suficiente para a merecer. Portanto, fala claro. Porque é que levaste tanto tempo a avisar-nos dessa ameaça?
Sétimo encarou-o e ao fim de alguns momentos respirou fundo e prosseguiu.
- Narciso acredita que os agentes de Pallas já cá estão, e que trabalham para minar as estruturas do governo da província da Britânia. A minha missão era tentar
descobrir toda a extensão dos seus planos. Além de vos transmitir o aviso do meu pai, claro.
- Isso parece-me mais razoável. - Macro deu uma palmada nas costas de Sétimo. - Vês? Dizer a verdade não custa quase nada.
- Vá dizer isso ao tal Musa - contrariou Cato. - Embora isso já não me pareça possível. Não é?
Sétimo cerrou os lábios, e encolheu os ombros.
- Então, afinal, o que é que descobriste? - indagou Cato.
- Muito pouco, para vos ser franco. Não sei quem são os agentes da outra fação. Nem quantos são. Sei apenas que um deles chegou à Britânia há pouco. O tal que foi
encarregue de tratar do vosso caso. Ainda não consegui descobrir-lhe a identidade. Entretanto, mantenham-se atentos. Assim que descobrir quem ele é, informá-los-ei,
e vocês poderão cuidar dele.
- Cuidar dele... - repetiu Cato, lentamente. - Estou a ver. É esse o verdadeiro motivo deste contacto. Não propriamente para nos avisar, mas para conseguir o nosso
apoio. O Narciso quer ver esse tal agente fora do vosso lindo jogo, e nós temos de te auxiliar nisso, certo?
Sétimo sorriu.
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- Não seria má ideia que ajudassem o meu pai, nem que fosse para salvar os vossos próprios pescoços.
Macro deixou escapar um profundo suspiro de frustração e fúria.
- Cato, vamos mas é atirar esta serpente daqui para fora. Já estamos mais do que fartos de Narciso. Agora estamos outra vez no exército. Essa trampa toda acerca
de agentes e ameaças não tem nada a ver connosco. Acabou.
Cato partilhava os sentimentos do amigo, mas ao escrutinar o visitante, foi compreendendo a realidade inegável da situação em que se viam, e acabou por responder
a contragosto.
- Quem me dera que fosse assim tão simples, Macro. De todo o coração. Mas não temos como escapar às consequências do que se passa lá por Roma. Esta maldição nunca
terá fim para nós. Pelo menos até que um deles, o Pallas ou o Narciso, caia em desgraça. E quando tal suceder, pode ter a certeza que todos os que tiverem a mais
ínfima e remota ligação ao derrotado não deixarão de pagar um pesado preço. Não é assim, Sétimo?
- Temo bem que sim, prefeito. É por isso que é tão importante estar no lado vencedor deste conflito entre o Pallas e o meu pai.
Cato semicerrou os olhos e lançou uma questão dúbia.
- E, neste momento, é possível dizer que o teu lado está a triunfar?
- O meu lado? - espantou-se Sétimo. - Quer dizer o nosso lado?
- Quero dizer precisamente aquilo que disse.
- Prefeito, quer vocês gostem ou não, o vosso destino está ligado ao do meu pai, tal e qual como o meu. Se Pallas triunfar, estamos todos mortos. No vosso caso,
podem nem chegar a ver o desfecho do combate. Seja qual for a razão que o move, Pallas parece estar especialmente empenhado em fazer-vos desaparecer de cena. O meu
pai julga que vocês sabem qualquer coisa que o pode ameaçar. Têm alguma ideia do que poderá ser?
Macro sabia-o perfeitamente. Tinha visto Pallas numa situação extremamente íntima com a esposa do Imperador, Agripina. Se tal facto fosse revelado, Cláudio não hesitaria
em fazer executar o liberto imperial. A que se seguiria rapidamente a execução de Agripina, ou o exílio, se ela tivesse muita sorte. O filho dela, Nero, filho adotivo
do Imperador, não deixaria também de ser atingido, e o caminho ficaria aberto para a ascensão de Britânico. Mas era um segredo cuja revelação não
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deixaria de atrair os seus próprios perigos. Se Pallas e Agripina conseguissem mentir e escapar da situação, tarefa que a mente enfraquecida do Imperador poderia
facilitar, seria sobre os acusadores que se abateria a fúria de Cláudio.
- Não - respondeu Cato, em nome dos dois. - Não fazemos ideia, nada podemos para te ajudar.
- Uma pena. Mas isso nada muda. O Pallas continua a querer ver-vos mortos.
- Sabemos cuidar de nós.
- Estou certo disso. Até certo ponto. Mas estão habituados a ameaças abertas, no campo de batalha. Não se aperceberão desta. A não ser quando for tarde de mais.
Não confiem em ninguém.
Macro fungou.
- Exceto em ti. E no teu pai, claro.
- O inimigo do seu inimigo é seu amigo, Macro. Pode não o apreciar, mas é assim que as coisas são. Os nossos interesses são coincidentes. O Narciso precisa do vosso
apoio, seja ele qual for. E do seu lado, tudo faz para vos proteger.
- Preciso tanto desse género de proteção como de uma espada cravada nas tripas.
- Seja. - Sétimo abriu as mãos num breve gesto de impotência resignada. - Mas se não o querem ajudar, nem para vossa própria proteção, façam-no então em nome do
vosso dever para com Roma.
- Dever para com Roma? Achas tu que o Narciso serve os interesses de Roma de forma desinteressada? - Macro abanou a cabeça e soltou uma risada seca. - Ele está é
a cuidar de si, e pouco lhe importa quantos de nós tem de enterrar pelo caminho.
Foi a primeira vez que a compostura de Sétimo quase se desfez. Virou-se rapidamente para o centurião, furibundo, e apontou-lhe um dedo.
- O meu pai dedicou toda a vida a servir Roma! Os imperadores chegaram e partiram, mas ele permaneceu. Serve o Império, e tudo faz para o proteger dos inimigos internos
e externos.
- Aposto que o Pallas diz exatamente a mesma coisa.
- O Pallas não tem qualquer interesse por Roma - contrariou Sétimo. - Tudo o que quer é poder e riquezas para si mesmo.
Cato interveio.
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- Não me escapou à atenção que Narciso se tem safado muito bem, enquanto servia Roma. A acreditar nos rumores que circulam, é um dos homens mais ricos da cidade.
Aliás, até ouvi dizer que emprestou várias pequenas fortunas a alguns dos reis clientelizados aqui na Britânia. Será verdade?
Sétimo baixou o olhar, e acabou por concordar.
- É verdade. Mas o mesmo aconteceu com outros homens de grandes posses.
- Incluindo Pallas?
- Não. Ele não. Pelo menos já não. Vendeu as dívidas a outros interessados, no fim do ano passado. E tinha uma boa razão para tomar essa decisão. - Sétimo voltou
a encarar Cato. - Está a conspirar contra os nossos interesses aqui na Britânia. Está a cometer uma traição.
- Aí está uma acusação séria. Será melhor que te expliques.
Sétimo cruzou as mãos e prosseguiu, em tom sério e comedido.
- Talvez já tenham ouvido a história da forma como Cláudio se tornou Imperador. Quando o seu antecessor foi assassinado por Cássio Cárias e pelos outros conspiradores,
era suposto que esse ato marcasse o fim da linhagem imperial. Roma voltaria a ser uma República. O problema foi que a Guarda Pretoriana percebeu nessa altura que
isso significava o desemprego. Sem um Imperador a quem proteger, os seus membros seriam distribuídos pelas legiões. Lá se ia o generoso salário e o resto das mordomias.
Portanto, foram buscar Cláudio aos sobreviventes da família imperial e fizeram-no Imperador. E quem era o Senado para discutir com dez mil guardas pretorianos armados
até aos dentes? E foi assim que Cláudio se tornou Imperador.
Mas a escolha estava longe de ser popular. Ele tinha de se mostrar merecedor do título. Precisava de um grande triunfo para o enfiar pelas goelas do Senado abaixo,
e para mostrar ao povo de Roma que o podia conduzir às vitórias. E por isso foi decidido invadir a Britânia. Para dar legitimidade ao seu reino, Cláudio conquistaria
a ilha que nem Júlio César tinha conseguido vergar. Ninguém poderia argumentar contra tal facto. E é por isso que têm sido lançados sobre esta ilha homens e recursos
sem parar. A conquista tem de ser completa. A Britânia tem de se tornar uma província pacificada do Império. Se esse objetivo falhar, o regime de Cláudio será completamente
desacreditado. Os seus inimigos ganharão novo alento e preparar-se-ão para de novo atentar contra
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ele. E se tiverem sucesso, Roma mergulhará de novo no caos. É isso que desejam?
- Se bem me lembro - comentou Cato, - Narciso foi um dos que encorajaram Cláudio a invadir a Britânia.
- E daí?
- Daí que tudo isto tem tanto a ver com assegurar a estabilidade da posição do teu pai, e das suas finanças, como com Cláudio e o futuro de Roma.
- E então? No fim de contas, tudo se resume ao mesmo problema.
- Ainda bem que concordamos quanto a isso. Assim, escusas de continuar a insultar a nossa inteligência com esses apelos ao nosso sentido do dever - ripostou Cato,
de chofre. - Quais são as tuas suspeitas quanto aos planos de Pallas?
Sétimo respirou fundo e continuou, com toda a calma:
- O meu pai crê que Pallas deseja nem mais nem menos do que o completo colapso da província. E que está preparado para fazer tudo o que possa levar a esse desfecho.
Tem agentes na ilha que estão a tentar trabalhar com Carátaco, no sentido de conseguir a união das mais poderosas tribos contra Roma. Se for estabelecida uma aliança
entre as tribos das montanhas e os brigantes ou os icenos, terão poder suficiente para derrotar as nossas forças. As legiões ver-se-ão empurradas para o mar. As
nossas cidades e povoações serão incendiadas, e os seus habitantes massacrados. Roma ver-se-á absolutamente humilhada. Cláudio será envergonhado e destroçado. Será
deposto, de uma forma ou de outra, e mesmo que Roma tenha a boa fortuna de conseguir escapar a uma nova e desastrosa guerra civil, Pallas instalará Nero no trono,
com Agripina a seu lado e o próprio Pallas a puxar os cordelinhos nos bastidores.
- No lugar de Narciso - lembrou Macro, a propósito. - Um novo Imperador, um novo liberto a mandar nas coisas. Será a única diferença.
- Está enganado, centurião. Mesmo no auge dos seus poderes, o meu pai nunca passou de um membro de um conselho que auxiliava o Imperador nas suas decisões. Sob Pallas,
esse conselho terá apenas um membro, ele mesmo. E o seu caminho para o poder será atapetado com os cadáveres do exército da Britânia. Vocês, e todos os vossos camaradas,
e todos os outros que morrerão a defender o Império quando todos os nossos inimigos se sentirem encorajados a pegar nas armas, a seguir à nossa derrota aqui na Britânia.
As apostas são elevadas. Pensem o que
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quiserem do meu pai, mas não podem negar que Roma enfrentará um desastre se Pallas triunfar.
Macro mergulhou em pensamentos por momentos, a considerar as explicações do agente imperial. Por fim, virou-se para o amigo.
- Bom, miúdo, o que dizes?
- Acho que não temos escolha. - Cato sorriu tristemente. - Para variar. Ao que parece, o Narciso conseguiu meter-nos outra vez numa bela alhada. Diz-me, Sétimo,
e diz a verdade, ele sabia ou não para onde nos estava a mandar quando nos arranjou colocações aqui na Britânia? Isto foi tudo parte do mesmo plano ou não?
- Não. Têm a minha palavra quanto a isso. O meu pai sabia que a sua influência junto do Imperador estava a diminuir. Quis mandar-vos para aqui para vos proteger.
- Na altura foi o que pensei, mas perdoar-me-ás por agora me sentir menos convencido. São demasiadas coincidências.
- Porra, se são! - confirmou Macro.
- Pensem o que quiserem - respondeu Sétimo. - É a verdade.
O silêncio caiu na tenda, enquanto os três homens consideravam a situação. Por fim, Cato remexeu-se e cruzou as mãos.
- A questão é: e agora? Quando para cá vieste, devias ter um plano qualquer.
- Mais ou menos. - Sétimo recostou-se e passou as mãos pelo cabelo. - Subornei um nobre brigante para vigiar o consorte da rainha Cartimandua, o príncipe Venúcio.
Ao que se sabe, é ele quem tem pressionado a rainha a juntar as suas forças às de Carátaco. Por agora, ela joga pelo seguro. Tem uma aliança com Roma que lhe proporciona
bastante prata, e a promessa de apoio militar se alguma vez dele necessitar. Mas ao mesmo tempo não fecha completamente a porta a Carátaco. Uma mulher inteligente,
mas que ocupa uma posição delicada. Se antagonizar Carátaco, metade do seu povo abandona-a e junta-se ao nosso inimigo, e Venúcio com eles. Se se volta contra nós,
Venúcio conduzirá as suas forças à guerra e, quando tudo acabar, não hesitará em reclamar o poder para si próprio. Seja como for, ela perde. Tudo depende de conseguir
manter as coisas neste pé. Nós, se perdemos os brigantes, perdemos a província e tudo o resto. Se tivermos sorte, o meu espião na corte avisar-me-á a tempo de alertar
o general Ostório para esse perigo.
- E como sabes que podes confiar no general? - indagou Cato.
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- O Ostório é da velha guarda. Quer cobrir de glória o nome da família. As suas ambições resumem-se a conseguir uma vitória retumbante, regressar a Roma e pendurar
a espada. É com alguns dos outros oficiais que me preocupo.
- Oh? Quem? O legado Quintato, por exemplo?
- Prefeito, está só a atirar nomes. Mas sim, o Quintato é um deles. A família é apoiante da fação da Agripina. E depois há um pequeno número de oficiais superiores
que chegaram à Britânia há pouco tempo. Sei que já se cruzaram com o tribuno Otho e com o prefeito Horácio. O que pensaram deles?
Cato pesou as suas impressões sobre os dois oficiais, antes de responder.
- O Horácio parece-me um oficial competente. Subiu pelas fileiras, mantendo-se afastado das intrigas de Roma.
- Afastado, mas pouco. Era centurião na Guarda Pretoriana ao tempo da ascensão de Cláudio. Foi um dos poucos que apoiaram a pretensão do Senado para um regresso
à República. Ele disse-vos isso?
- Não. Porque havia de o fazer?
- Nesse caso, calculo que não saibam que ele foi colocado na Décima Primeira pouco tempo depois disso.
- Esses lambe-cus? - desdenhou Macro. - Todos prontos a combaterem o novo Imperador, até que aparece o paizinho com uma pazada de ouro e compra-os. Como é que é
o novo título que ele lhes deu? - Concentrou-se por momentos e fez estalar os dedos. - Fiel e Patriótica Décima Primeira Legião de Cláudio... Até que apareça o próximo
capaz de os comprar. Mas porquê colocar lá o Horácio, se a sua lealdade ao Império é duvidosa?
- É melhor ter todas as potenciais complicações no mesmo lugar.
Macro cerrou os lábios.
- Estou a ver.
- Não estou de todo certo de que ele seja o nosso homem - prosseguiu Sétimo. - Ainda assim, não tenciono perdê-lo de vista. O personagem mais interessante é o tribuno
Otho. O pai foi promovido ao Senado por Cláudio, e já se mostrou digno de confiança. O filho, porém, tornou-se amigo chegado do príncipe Nero.
- Parece ser o nosso homem - comentou Macro.
Cato limpou a garganta.
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- Estás a esquecer-te de que eu salvei a vida a Nero? Ele prometeu-me que um dia pagaria essa dívida. Talvez não corra tanto perigo como pensas, Sétimo.
- Isso foi quando estava na Guarda Pretoriana, sob disfarce. O Nero não fazia ideia de que estava a espiar para Narciso. Duvido que ele se lembrasse de si agora,
prefeito. Além disso, o Nero é apenas um fantoche. O Pallas é que é o verdadeiro perigo. E imagino que não permitiria que um detalhe desse peso impedisse a sua morte.
Ouviram movimentações na tenda de Cato; era Thraxis que regressava com a lenha e começava a preparar o braseiro. Sétimo levantou-se.
- Tenho de ir. Tenho de escrever um relatório para o meu pai. Informá-lo-ei de que vos pus a par da situação. E que estão dispostos a colaborar comigo para derrotar
os planos de Pallas.
- Espera aí um minuto! - começou Macro.
- Ele tem razão - interrompeu Cato. - Temos de o fazer, Macro. Para nossa própria proteção.
Macro abriu a boca para protestar, mas fechou-a de novo e limitou-se a abanar a cabeça.
- Se precisarem de me contactar - adiantou Sétimo, em voz baixa,
- perguntem pelo Hiparco, comerciante de vinhos. É o meu disfarce. Vou ficar com o exército mais uns dias, e espero poder mandar notícias da derrota de Carátaco
para Roma. Se ele for aprisionado ou morto, o esquema de Pallas sofrerá um tremendo golpe.
- Espero bem que tenhas essa oportunidade - concordou Cato. - Parece-me que Carátaco ainda nos pode dar uma coça.
- Vou oferecer preces pela vitória - afiançou Sétimo. Estalou os dedos, como se se tivesse recordado de alguma coisa. - Havia uma última coisa que vos queria perguntar.
O senador Vespasiano. Conhecem-no bem?
Os dois oficiais trocaram um olhar.
- Já servimos sob as suas ordens - confirmou Cato.
- Um oficial e peras - acrescentou Macro. - Um dos melhores legados que já conheci.
Sétimo sorriu.
- Parece que sim. Não há dúvidas sobre as suas qualidades militares. Estava mais curioso quanto à escala da sua ambição. Alguma vez ele mencionou planos para o futuro
à vossa frente?
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- Não - retorquiu Cato com firmeza. - Isso seria uma loucura da parte dele. Porque perguntas?
O agente imperial cerrou os lábios.
- Dá sempre jeito manter os comandantes militares mais promissores debaixo de olho. E as suas famílias, nalguns casos. A mulher dele, Flávia, por exemplo.
- O que há com ela? - indagou Macro.
- Os vossos caminhos podem ter-se cruzado em tempos. - Virou-se para Cato. - E foi sua conhecida na juventude, quer no palácio quer depois, quando se juntou à legião
de Vespasiano na Germânia.
Cato assentiu sem hesitar.
- Sim, é verdade.
- O que pensa dela?
- Nunca pensei muito nisso. Era a mulher do legado. É tudo.
Sétimo fitou-o, e depois encolheu os ombros.
- Está certo. Só queria saber. Bom, deixo-vos em paz. Agora...
- Dobrou o pescoço rapidamente, aumentou o tom de voz e recuou na direção das abas da tenda. - Prefeito, mil desculpas! O erro foi de facto meu. Nunca devia ter
acusado o seu servidor. Para o compensar, enviar-lhe-ei um jarro do meu melhor vinho. Desejo-lhe então uma boa noite, e que a fortuna o acompanhe na batalha de amanhã!
Passou pela abertura e desapareceu. Macro encarou Cato com um olhar de desespero.
- Não estás a falar a sério quanto a trabalhar com...
- Chiu! - instou Cato. No momento seguinte as abas da passagem que dava para a sua tenda pessoal separaram-se ruidosamente, e Thraxis meteu a cabeça pela abertura.
- Prefeito, o lume já está aceso.
- Obrigado.
Thraxis manteve-se na mesma posição e aclarou a garganta.
- Mais alguma coisa? - quis saber Cato.
- Eu, hã, por acaso ouvi o que o mercador disse antes de se ir embora, prefeito. Presumo que o assunto está resolvido.
- Assim é. Um simples desentendimento. Tinha misturado as moedas que lhe deste com outras, de outro cliente. Não precisas de te preocupar mais com isto, Thraxis.
O homem suspirou, aliviado, e lançou uma pergunta.
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- Prefeito, deseja que lhe traga alguma coisa para comer ou beber?
- Não. Vamos deitar-nos. Amanhã vou usar a minha nova cota de malha. Trata de a pôr ao pé do resto do meu equipamento.
- Sim, prefeito.
- Podes ir, então.
Thraxis fez uma saudação rápida e desapareceu. Esperaram mais um momento, e só então Macro retomou a conversa, em surdina.
- Como eu estava a dizer, só se estivéssemos loucos é que nos deixávamos arrastar outra vez para uma ligação a Narciso.
- Macro, pouca escolha temos. Lá porque não queremos ver-nos envolvidos na luta entre Narciso e Pallas, não quer dizer que eles não tratem de nos envolver. E, ao
que parece, já o fizeram. Se Pallas é uma ameaça, não podemos simplesmente ignorar o facto. E se o Sétimo está a dizer a verdade quanto à situação global, estamos
então num perigo ainda maior, bem como todos os elementos deste exército.
- Se ele estiver a dizer a verdade.
- E poderemos arriscar pensar o contrário?
Macro rangeu os dentes.
- Foda-se... Narciso de merda. O cabrão cola-se a nós como os chatos. Nunca mais nos vamos ver livres dele, pois não? - juntou, em tom miserável. - Nem, ao que parece,
Vespasiano, coitado. Nem a sua esposa. O que era aquela história toda sobre a Flávia?
- Não faço ideia. - Cato encolheu os ombros. - Alegre-se. Talvez nos vejamos finalmente livres de Narciso, sim, se amanhã a coisa correr de feição... aos outros.
- Oh, que bem. Obrigadinho por seres um tipo tão animador - resmungou Macro, enquanto se dirigia para a entrada da tenda. - Era mesmo disso que eu precisava antes
de me ir deitar.
Cato ficou a vê-lo desaparecer à distância. Só então se levantou, fechou os olhos e espreguiçou até ouvir os ombros a estalar. Macro tinha razão, havia muito sobre
que pensar. Muitas preocupações. Mas antes disso tudo, havia uma batalha a travar.
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- Lá vamos nós - comentou Macro ao ouvir o som das trombetas do quartel-general, as notas curtas a ecoarem nas arribas na margem oposta do rio. Antes mesmo que o
som se desvanecesse, viram os homens das baterias de artilharia a lançarem o seu peso contra as alavancas de travagem. No instante seguinte os braços das balistas
saltaram para a frente, enviando os seus pesados e letais dardos em arcos pouco pronunciados contra as defesas do inimigo. Por trás das balistas estavam as catapultas,
que atiravam pedras esféricas em trajetórias mais altas e pronunciadas. A artilharia tinha sido disposta numa plataforma construída pelos engenheiros durante a noite,
num ponto elevado, de forma a evitar que qualquer projétil perdido fosse desbastar as fileiras dos legionários formados a curta distância do rio.
O general Ostório tinha colocado a mais poderosa das suas legiões, a Vigésima, na frente. Na segunda linha avançavam a Décima Quarta e o destacamento da Nona. Pela
primeira vez desde que a guarnição de Bruccium se tinha juntado ao exército, Cato conseguia ver o dispositivo das legiões em ordem de batalha. Muitas das coortes
tinham um efetivo claramente reduzido; algumas ostentavam menos de metade dos homens que deviam normalmente ter. Fez uma estimativa rápida, e concluiu que não havia
muito mais do que sete mil homens. Do que tinha visto das forças inimigas, tornava-se claro que os legionários estavam em desvantagem numérica. Pior ainda, o inimigo
possuía a tremenda vantagem de estar numa posição defensiva elevada. Tinha sido ordenado aos legionários que deixassem no campo os dardos pesados, já que eram uma
arma de eficácia reduzida contra um inimigo num terreno tão acidentado. A colina teria de ser tomada à força de espada, por decisão do general. Das tropas auxiliares
só ali estavam os Corvos Sangrentos e uma outra coorte de cavalaria auxiliar; as outras unidades
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estavam espalhadas em redor da colina, de forma a bloquear uma possível retirada do exército de Carátaco.
Pelo menos Cato assim o esperava. Não tinha ouvido falar de qualquer relatório do progresso da movimentação durante a manhã, enquanto o grosso do exército deixava
o campo e se posicionava para a batalha. Para trás só tinha ficado a escolta das bagagens, a guarnecer a paliçada e a ver os seus camaradas a prepareram-se para
o combate. O céu limpo que lhes tinha surgido pela manhã começava a acumular nuvens que pressagiavam mau tempo, e o ar era varrido por repentinas rajadas de vento.
Muitos dos seguidores do exército tinham subido a uma colina próxima, de onde podiam ver claramente a secção do rio que as legiões se preparavam para atravessar.
Alguns tinham até levado um farnel para consumir enquanto assistiam aos combates.
- Vão ficar todos ensopados - notou Cato.
Crianças brincavam à apanhada, correndo para cima e para baixo na encosta suave, ou estavam sentadas e faziam rodas. Pouca diferença havia para as multidões que
iam assistir a combates de gladiadores, refletiu Cato. Embora ali a escala da coisa fosse completamente diferente. Havia contudo outra diferença crucial. Se a batalha
corresse mal aos romanos, os espetadores seriam também passados a fio de espada. Olhou de novo para as crianças. Muitas delas deviam ser filhos de soldados, e imaginou
que boa parte acabaria o dia na orfandade.
O estalar das catapultas atraiu de novo a atenção de Cato para o rio; observou o projétil a subir num ângulo abrupto, como que parar no ar por um instante e mergulhar,
cumprindo a trajetória que o levava de encontro às defesas inimigas. Era difícil avaliar o impacto que tinha entre os guerreiros nativos, já que estes se haviam
escondido assim que a artilharia romana entrara em ação. Antes disso tinham ocupado os seus postos, sem poupar insultos às legiões, a brandir os punhos, a mostrar
as armas, alguns deles a virarem-se e a mostrarem os traseiros desnudados num desafio clàro. Assim que os primeiros dardos tinham voado sobre o rio, mergulharam
para o solo e a encosta que parecera viva com gente animada tomou de repente uma aparência deserta e imóvel. Os que estavam na segunda linha de defesas depressa
se aperceberam de que estavam fora do alcance das armas romanas e portanto em segurança, pelo menos durante algum tempo, e começaram a reaparecer e a contemplar
o que se passava abaixo deles. As pontas metálicas dos dardos embatiam
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contra as rochas empilhadas nas barricadas e ressaltavam, indo enterrar-se no solo mole da encosta. A maior parte das pedras lançadas pelas catapultas pareciam
não provocar muito maiores danos, já que se abatiam também sobre o solo. Algumas aterravam para lá das barricadas, onde os combatentes inimigos se tinham abrigado,
e Cato conseguia facilmente imaginar o estrago que provocavam: crânios e corpos esmagados e transformados numa polpa pelas pesadas massas.
Porém, o propósito principal daquela barragem não era o de destruir as defesas inimigas, já que para isso seria necessário todo um conjunto de máquinas de cerco.
Era antes o de obrigar os guerreiros nativos a manterem-se abrigados, enquanto as legiões atravessavam o rio e subiam a encosta até às barricadas. Só quando um bom
número de legionários estivesse em condições de desencadear o ataque à primeira linha de defesas é que a barragem cessaria, dando lugar a um encarniçado combate
corpo a corpo. Cato fez subir o olhar e avistou o estandarte de Carátaco a esvoaçar sobre a segunda linha de defesas; e lá estava um guerreiro alto, de cabelo claro
e barba a esvoaçar por debaixo do capacete brilhante, de mãos na cintura, bem à vista sobre um penedo. Cato apontou-o.
- Uma pena que esteja tão longe. Um disparo feliz e tudo estaria terminado.
- Achas? - duvidou Macro. - A maior parte dos bárbaros desta ilha parecem nutrir por nós um ódio sem limites. Um a mais ou a menos não ia fazer grande diferença.
- Aquele bretão em particular é o homem que nos tem combatido durante a maior parte dos últimos dez anos. Inspirou dezenas de milhares a seguirem-no, apesar de já
o termos derrotado várias vezes, e de o termos obrigado a procurar refúgio nestas montanhas. E mesmo assim convenceu os siluros e os ordovicos a aliarem-se sob o
seu comando. Se não existisse um Carátaco, os nossos problemas nesta região já teriam acabado há muito.
Macro olhou para Cato, curioso.
- Em tempos disseste que o admiravas.
- Sim, em tempos. Mas isso foi antes de ele se interpor entre mim e a minha mulher, e a criança que ela traz no ventre. Agora, tudo o que quero é que isto acabe
depressa, de forma a poder regressar a Roma. Para a minha própria casa, pela primeira vez.
- Ias ter saudades do exército. E como civil não ias ter grande futuro.
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- Em tempos, disse-me que eu nunca seria um soldado semi- decente.
- Disse?
Cato anuiu.
- Hum. - Macro arqueou as sobrancelhas. - Ora aí está a prova de que afinal não tenho sempre razão.
Soou uma nota estridente, e o sinal foi repetido pelos trombeteiros da Vigésima Legião. Cato e Macro debruçaram-se para a frente quase sem darem por isso quando
viram os resplandecentes capacetes e armaduras das primeiras fileiras a remexerem-se e começarem a andar, avançando para as águas frias e velozes da passagem a vau.
O estandarte da águia e a haste com a imagem do Imperador avançaram lado a lado, sobre as pontas das lanças. Era uma visão inspiradora, como Cato concluía de cada
vez que a via, mas não conseguia afastar a sensação crescente de ansiedade com que assistia àquele ataque frontal.
Um leve som de pingos distraiu-o, e notou que repentinamente a brisa aumentara de intensidade. Olhou para o céu e piscou os olhos, já que os primeiros pingos de
chuva lhe tombaram sobre o rosto e escorregaram pelo capacete e armadura. As nuvens que tinham vindo de leste haviam-se acumulado sobre a colina e vogavam agora
na direção do campo romano, bloqueando o Sol. Uma sombra de grandes proporções crescia sobre o solo, aproximando-se do campo, e depressa engoliu Cato e Macro, postados
no torreão sobre o portão principal; a chuva começou a cair sem cessar.
- Porra, é verdadeiramente espantoso como esta ilha se mantém à tona - resmungou Macro, enquanto puxava a capa para cima dos ombros.
Cato não fez qualquer comentário; observava a primeira vaga de soldados a entrar no rio. O ritmo de avanço reduziu-se a passo de caracol quando os soldados, com
todo o seu pesado equipamento, levantaram os escudos acima da linha de água e começaram a lutar contra a corrente para se equilibrarem. Na outra margem Cato avistou
alguns rostos inimigos a espreitar sobre as barricadas para avaliar a progressão dos romanos. Entretanto, a artilharia continuava a enviar os seus projéteis sobre
as águas, forçando os guerreiros a manterem-se abrigados. A superfície do rio ficou mais agitada com a passagem dos legionários, que patinhavam e levantavam água
à medida que abriam caminho para
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a margem distante. Por fim chegaram à linha de estacas afiadas cravadas na areia grossa do fundo, e reduziram ainda mais a velocidade do avanço, enquanto tentavam
a custo ultrapassar os obstáculos.
Foi nesse momento que Carátaco desferiu o primeiro contragolpe. O estridente ruído de um corno de guerra celta ecoou nas encostas da colina e de repente surgiram
inúmeros vultos na margem, como que nascendo da relva. A princípio pareciam estar praticamente desarmados, seminus, sem capacetes, escudos ou lanças. Mas então Cato
viu um deles elevar a mão e agitá-la rapidamente sobre a cabeça.
- Fundibulários.
A distância aos alvos não era mais do que uns trinta passos, e estes estavam praticamente imóveis, presos entre as estacas; era praticamente impossível falhar. Os
primeiros disparos encontraram os objetivos com um estalo típico que se ouviu até na torre do campo, e Cato e Macro assistiram à queda dos primeiros homens, arrastados
pela corrente. Os que tinham sido abatidos eram puxados para debaixo de água, incapazes de lutar contra o peso da armadura, e criavam assim novos obstáculos para
os camaradas que os seguiam. Os homens da Vigésima levantaram os escudos para se protegerem e avançaram ainda assim contra a chuva de metralha e pedras que se abatia
sobre eles de tão curta distância.
- Uma surpresa pouco agradável, aquela - comentou Macro. - Mas não será isso que deterá os nossos rapazes por muito tempo.
- Não, mas vai ter custos, e abalá-los. Primeiro ponto para Carátaco, diria eu.
À medida que os primeiros legionários emergiam da água e subiam para a margem, os fundibulários começaram a recuar, mantendo-se a uma distância segura mas não deixando
de atacar os soldados inimigos. Um dos romanos, enraivecido, avançou a toda a brida, trepando pela encosta até que o seu centurião lhe deu um berro e lhe ordenou
com gestos claros que recuasse. Todavia, era já tarde de mais. O escudo só o podia proteger de ataques frontais e, ao expor o dorso, foi imediatamente alvejado;
o primeiro projétil destroçou-lhe o joelho e fê-lo tropeçar e cair. Incapaz de se erguer, sofreu outros impactos e tombou, desacordado, para a relva.
Macro soltou um comentário irritado.
- Estúpido, burro do caraças.
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Os centuriões e optios afadigavam-se a formar os homens nas suas unidades à medida que se livravam da passagem repleta de estacas; assim que as três coortes da vanguarda
se alinharam, começaram a avançar para o declive. Os homens das fundas recuavam à sua frente, mantendo-se à distância. De repente, Cato viu um deles voar para trás,
antes de ser pregado ao solo por uma volumosa haste.
- Foram recuando tanto que já estão na zona de queda dos projéteis da artilharia.
- Boa! - Macro bateu com o punho direito na palma da outra mão. - Vamos lá a ver se os sacanas apreciam o gosto do seu próprio remédio!
Outros fundibulários foram abatidos, alguns deles pela metralha que tombava antes da linha de barricadas. Era como se fossem empurrados contra o solo por um punho
gigante, considerou Cato; talvez fosse a fúria de Júpiter, o maior e melhor dos deuses.
Mas aquela situação não podia continuar, dado o risco de a metralha começar a atingir a vanguarda da Vigésima, e uma trombeta soou para fazer interromper o bombardeamento.
Ouviram-se os últimos disparos de catapultas e balistas, e as equipagens mantiveram-se junto às armas, à espera de novas ordens. Na outra margem, os fundibulários
já saltavam sobre as barricadas e passavam por entre os guerreiros que abandonavam a cobertura, agora que a ameaça da artilharia romana tinha terminado. A princípio
os guerreiros de Carátaco lançaram insultos e desafios à muralha de escudos que se aproximava, mas depressa os substituíram por pedras, metralha das fundas e setas
dos arqueiros que disparavam por cima das cabeças dos seus camaradas, de modo que os projéteis mergulhavam sobre os homens das coortes de apoio que estavam naquele
momento a atravessar o rio.
Cato sentiu um aperto frio no coração ao contemplar os corpos que já juncavam o vau e a margem oposta do rio. Alguns dos feridos, ainda capazes de andar, arrastavam-se
em sentido contrário através da corrente, para tentar obter ajuda e tratamento para as feridas. Já tinham sido perdidos mais de cem homens, calculou Cato, e o combate
pela primeira linha de defesas estava apenas a começar, agora debaixo da chuva que se tinha instalado.
Um inesperado clarão iluminou a paisagem montanhosa, fixando uma imagem esbranquiçada em contraste com profundas sombras, de
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tal forma que por um instante a cena fez lembrar uma monumental escultura em relevo, com riscos de chuva. A ilusão desfez-se e Cato voltou a observar milhares de
homens envolvidos numa luta sem quartel; os homens da Vigésima já estavam em cima do inimigo, as espadas e lanças a destacarem-se no cenário escurecido. O trovão
ribombante não se fez esperar, antes de dar lugar ao silvar da chuva, num tom tão elevado que Cato mal conseguia ouvir acima do som dos pingos no capacete. No montículo,
os seguidores do exército abrigavam-se nas suas capas. Alguns já tinham desistido e apressavam-se a descer a encosta e a fugir para o campo, onde se poderiam abrigar
da chuvada.
Macro dizia qualquer coisa, e Cato abanou a cabeça e aproximou-se. Macro levou a mão em concha à boca e gritou:
- O general bem podia ter escolhido um dia melhorzinho para isto. O que é que achas? Que ele vai interromper o ataque até a chuva passar?
- Não. Ele não o fará. Quer ver isto terminado, de uma maneira ou de outra.
- Então vai ser duro para os nossos rapazes.
- Muito duro.
Voltaram a dar atenção ao combate nas barricadas rochosas mais próximas, que mesmo assim mal se viam através das densas cortinas de chuva. O inimigo parecia estar
a resistir, e os legionários não conseguiam ultrapassar a defesa. Uma corrente contínua de feridos emergia do rio; os homens vinham completamente ensopados. Passavam
por entre as fileiras das coortes da segunda vaga e deixavam-se cair no solo, à espera de enfermeiros que se encarregassem deles. Alguns dos recrutas ainda verdes
olhavam-nos sem esconder a ansiedade, até que os seus optios lhes ordenavam de forma clara que mantivessem a vista na frente.
A chuva prosseguiu por algum tempo, até que se interrompeu de forma tão súbita como começara, e o Sol faiscou por entre uma aberta nas nuvens, banhando o campo de
batalha numa luz que revelou a terrível luta em toda a sua crueza. Os legionários tinham conseguido forçar a passagem em vários pontos, e tentavam consolidar essa
pequena vantagem de forma a obter espaço e permitir que mais romanos se embrenhassem na refrega. Então, num dos pontos em que a barricada inimiga parecia ser mais
alta, algo começou a mover-se. Cato esforçou a vista e notou que havia homens do outro lado a juntarem-se em torno de
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grandes barrotes, e percebeu de imediato o perigo. Mas nada podia fazer além de observar horrorizado quando as rochas começaram a tombar sobre os legionários por
baixo delas. A pequena avalanche devastou as fileiras, empurrando homens e arrastando-os numa amálgama de corpos, membros agitados, escudos, terra e lama. O inimigo
precipitou várias avalanches, abrindo grandes brechas nas formações romanas densamente empilhadas. Nesse momento os cornos de guerra deram outro sinal e os defensores
abandonaram repentinamente a posição mais avançada e recuaram para a segunda linha de barricadas.
- Conseguimos passar - concluiu Macro, com uma satisfação atenuada pelas baixas que observara. - Mais um esforço, e está feito.
- Se fosse assim tão fácil... - ripostou Cato. - Veja bem o declive. Os rapazes vão ficar extenuados com a subida. De equipamento completo, agora ainda mais pesado
por causa da chuva e do rio. E o terreno vai estar todo remexido e enlameado. Vai ser complicado.
Conseguiam ver como os homens se debatiam para passar pelas brechas na barricada, escorregando e tropeçando à medida que subiam o terreno ensopado, cada passo laborioso
a tornar as condições ainda mais difíceis para os que os seguiam. Os combatentes inimigos, equipados de forma ligeira, facilmente se distanciavam e os mais audazes
davam-se mesmo ao trabalho de parar para agarrar em pedras e as atirar contra os perseguidores, num nível mais baixo; alguns tinham pontaria e provocavam mais algumas
baixas, fraturando queixos, joelhos ou canelas de romanos. Rapidamente se tornou claro para Cato que os homens da Vigésima depressa ficariam esgotados, demasiado
extenuados para conseguir combater com eficiência se alcançassem os nativos. Ainda nem iam a meio da encosta quando o avanço se deteve, peles e armaduras cobertas
de lama escura e espessa; alguns até tinham embainhado as armas e tentavam subir de gatas, para conseguir não escorregar. Os centuriões, que já só se conseguiam
identificar pelas cristas transversais dos capacetes, ainda lideravam, e incitavam os homens a segui-los. Na retaguarda seguiam os optios, a usar as longas varas
para tentar forçar os retardatários a avançar com maior entusiasmo.
A lenta subida tornava-se ainda mais perigosa pela ação dos defensores, agora que os homens na segunda linha tinham sido reforçados pelos que tinham recuado das
primeiras barricadas. Uma persistente chuva de pedras e outros projéteis tombava sobre os legionários, provocando
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mais baixas e fazendo interromper a marcha dos homens, que tinham de usar os escudos para se tentarem proteger.
- Estamos à beira de perder este combate - adiantou Cato, quase para si mesmo.
Macro lançou um grunhido de semiconcordância, enquanto também ele analisava o ataque falhado. As seis coortes mais avançadas tinham-se transformado numa única massa
lamacenta, que àquela distância fazia lembrar uma massa de larvas a remexer-se, e as outras quatro tentavam manter a formação enquanto iniciavam a subida a partir
da margem. Chegaram às ruínas da barricada inferior e atravessaram-na, voltando a formar do outro lado. Pelo menos os oficiais estavam a conseguir mantê-los em formação
cerrada, notou Cato. Os feridos arrastavam-se em sentido contrário, tentando alcançar a margem, enfraquecidos pelos ferimentos e pelo cansaço tremendo daquele combate
em plano inclinado. Só quando às quatro coortes da segunda vaga retomaram o dispositivo de combate é que o oficial que as comandava deu ordem para retomar o avanço.
Mas este não era constante, como seria num campo de batalha normal. As primeiras fileiras pareciam avançar a passo de caracol, embora subissem o declive para tentar
reforçar as unidades mais adiantadas. A lama gelatinosa tornava a tarefa extremamente difícil.
A massa desordenada das primeiras seis coortes aproximava-se por fim da segunda barricada. A encosta atrás deles estava apinhada de homens, entre os quais alguns
feridos. Muitos deixavam-se estar sentados ou deitados, aninhados na lama, tentando encontrar alguma reserva de força para prosseguir. Acima deles ergueu-se um vulto
na barricada, brandindo uma espada, e o som estridente dos cornos de guerra inimigos fez-se ouvir sobre toda a colina. Centenas de guerreiros saltaram de repente
da barricada, numa vaga que se lançou pela encosta abaixo, chocando rapidamente com os romanos mais próximos. Espadas e machados faiscaram em rápidos movimentos,
enquanto a desorganizada vanguarda da Vigésima Legião era engolida pelo ataque súbito e raivoso. Os combatentes nativos continuavam a emergir da barricada, aumentando
a pressão da carga. Incrivelmente, os legionários pareciam estar a conseguir aguentar a posição, mas essa impressão depressa se desvaneceu, e a força romana começou
a ser empurrada para a base da encosta.
- Merda... - Macro agarrou com toda a força o corrimão de madeira do torreão. - Estão feitos.
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Cato assentiu. Carátaco tinha escolhido o momento perfeito para o ataque, deixando que o inimigo se cansasse a tentar alcançar os seus homens, protegidos pela barricada.
Agora os seus guerreiros tinham a vantagem de ocupar o terreno mais elevado e estavam menos cansados, tendo passado o tempo protegidos atrás das suas defesas. Atiraram-se
sobre os legionários enlameados, rasgando e mutilando com as suas lâminas ferozes, despedaçando os escudos e atacando como lobos os romanos pesados e pouco ágeis.
Os legionários mais adiantados foram derrubados ou forçados a recuar para cima dos seus camaradas, e sempre a escorregar no lamaçal que começava a ganhar um tom
avermelhado. Nada se podia opor à tremenda pressão que vinha de cima e os romanos ainda do outro lado do rio só podiam assistir de longe, com um crescente sentimento
de horror e impotência, à medida que o desastre se desenrolava à sua frente.
Mas o pior ainda estava para vir, como Cato bem sabia; as quatro coortes mais recuadas depressa se viram misturadas com os homens da primeira vaga que retiravam
em completa desordem. Muitos legionários perdiam o pé e escorregavam pela encosta, e depressa toda a legião se viu reduzida a uma turba enlameada que tentava manobrar
na lama, sem saber bem para onde. O inimigo aproveitou a vantagem, varrendo os romanos da colina, saltando sobre todo e qualquer legionário que tivesse caído ao
solo, retalhando-o sem piedade até à morte.
Macro esticou o braço para assinalar o general Ostório que, com os oficiais do seu estado-maior, observava o decorrer da batalha do tranquilo refúgio da margem do
rio.
- Por que carga de água é que ele não manda tocar a recuar?
- Não faço ideia - murmurou Cato. - Não sei mesmo o que lhe vai na mente.
Qualquer ilusão de um resto de coesão já se tinha desvanecido. Não havia qualquer possibilidade de formar as unidades em torno dos seus estandartes ou dos centuriões,
já que a legião continuava a ser empurrada e não tinha tempo para respirar. Só então, finalmente, se escutou o sinal sonoro a ordenar a retirada, vindo de junto
do general e dos seus oficiais. Os homens da Vigésima responderam de imediato, abandonando o declive em corrida, e mergulhando no rio. Perante o recuo, um brado
de triunfo nasceu nas gargantas dos guerreiros nativos que os perseguiam. Só alguns pequenos grupos de legionários se recusaram a dar
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as costas aos opositores, e se esforçaram por manter um arremedo de linha de proteção aos camaradas que fugiam em desalinho.
Os primeiros homens a alcançarem a margem descobriram o caminho por entre as estacas que ainda restavam, e começaram a atravessar o vau, já sem se preocuparem sequer
em manter os escudos acima da água. Alguns dos equipamentos foram levados pela corrente, que os arrancou dos exaustos braços dos seus detentores, afundando-se de
imediato e rolando pelo rio abaixo, às vezes deixando ver uma aresta no meio da espuma, que rapidamente desaparecia. Os primeiros a chegar à margem romana cambalearam
e deixaram-se cair sobre a relva molhada, ofegantes, quase mortos de cansaço. Outros ajudavam camaradas feridos a atravessar o rio e tombavam ao seu lado na segurança
do terreno firme. A pouco e pouco, toda a área da margem se foi enchendo de legionários, como uma enfermaria a céu aberto; contudo, ainda havia homens a arrastarem-se
pela água.
Na outra margem, o inimigo tinha forçado os poucos romanos que ainda resistiam a descer para lá da primeira barricada e continuava a persegui-los até ao rio. Havia
ainda alguns grupos de soldados a combater, em pequenas formações de escudos bem aperrados, a retirar de forma mais ordenada pela encosta até à beira da água.
O repentino som dos mecanismos das balistas a estalar sobressaltou Cato. Tinha estado tão absorvido na cena que nem reparara nas equipagens das máquinas a prepará-las
para retomar o bombardeamento. Os pesados dardos metálicos voltaram a sobrevoar o rio, passando sobre as cabeças dos legionários espalhados pelo vau. Os projéteis
caíram entre o inimigo, pregando alguns homens ao solo, depois de os trespassarem. As catapultas também voltaram a entrar em ação, lançando pedras letais em arcos
pronunciados, que aumentaram o número de baixas inimigas. Pouco depois os cornos de guerra voltaram a fazer-se ouvir, e os nativos abandonaram as escaramuças e subiram
a encosta, recuando para trás da barricada mais baixa e protegendo-se. Depressa o último dos celtas tinha já desaparecido de vista, e na encosta da colina nada parecia
mover-se. Só os feridos se remexiam, gemendo lamentos no meio da lama brilhante, dos tufos de relva e das rochas cinzentas. Cato reparou que havia entre eles alguns
romanos ainda vivos, que de alguma forma tinham escapado à atenção dos nativos lançados na sua carga selvagem.
O combate tinha terminado, e os últimos homens da Vigésima
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atravessaram o rio para a margem detida pelos romanos. As balistas e catapultas continuaram em atividade por mais algum tempo, até lhes ser ordenado que parassem
de disparar. Caiu então uma terrível quietude sobre o cenário, como se os dois exércitos fossem indivíduos gigantes, ensanguentados e doridos, separando-se um do
outro por breves momentos, apenas para retomar o fôlego. Um punhado de vultos surgiu de repente de detrás da barricada e espalhou-se a correr pela colina, recuperando
os seus feridos e cortando as gargantas de quaisquer romanos ainda vivos com quem se cruzassem. Mas eram demasiado poucos e demasiado dispersos para oferecer alguma
possibilidade de um tiro certeiro às balistas, pelo que se puderam dedicar às suas tarefas sem serem importunados.
Cato sentiu que a tensão nervosa que se tinha apossado do seu corpo durante o ataque começara a dissipar-se; descobriu também que estava a suar em profusão, e que
se sentia fatigado. Baixou a cabeça e cerrou os olhos por um momento, aliviado por ver terminada aquela desastrosa tentativa de tomar a colina através de um assalto
frontal. Por fim, respirou fundo, abriu os olhos e voltou a contemplar a paisagem. Já todos os homens da Vigésima tinham atravessado o rio. Mas não lhes fora permitido
descansar por muito tempo. Um oficial do estado-maior cavalgava ao longo da margem, disparando ordens e agitando freneticamente os braços. Os oficiais começaram
a fazer levantar os homens e a levá-los em marcha rápida para longe do vau.
- O que é que se passa ali? - Foi Macro quem levantou a questão.
- Espero bem que não seja aquilo em que estou a pensar.
Cato não respondeu. Tinha adivinhado as intenções do general, mas esperava ainda estar enganado. Enquanto os dois amigos observavam, os homens dispuseram-se de lado,
abrindo caminho para as coortes da Décima Quarta e da Nona Legiões. Quando o terreno ficou livre, o general Ostório ergueu uma mão e manteve-a ao alto por momentos,
antes de a apontar para a colina. As equipas da artilharia voltaram a empenhar-se no manejo das armas, e a calma que tinha caído sobre o campo de batalha foi quebrada
pelo estalar das balistas e o estrondo dos braços das catapultas.
As trombetas deram sinal de avanço e a ordem foi repetida ao longo das linhas de legionários ainda frescos, prontos a avançar para o vau. E então, com o sol a rebrilhar
nos capacetes, os homens começaram a
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marchar, tão alinhados como se estivessem apenas a cumprir um exercício na parada.
- Mas o que é que aquele idiota pensa que está a fazer? - silvou Macro. - Foda-se, o que é que o Ostório pretende?
Cato abanou a cabeça.
- É uma loucura...
Coorte após coorte descia o pequeno declive que levava ao rio, perante os brados e insultos que vinham da outra margem, de um inimigo de confiança renovada e que
soava ainda mais desafiante aos ouvidos de Cato. Subitamente, este abandonou o varandim e dirigiu-se à escada que levava ao solo.
- Senhor! - Macro apressou-se a segui-lo e abanou-o quando ele começava a descer. Macro olhou para o amigo, escolhendo um tom mais formal. - Onde é que vai?
- Alguém tem de tentar pôr fim a isto - ripostou Cato, com firmeza. - Antes que o Ostório transforme uma derrota num verdadeiro desastre.
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Antes que Macro pudesse levantar alguma objeção, Cato desceu rapidamente a escada de mão e correu até junto de Thraxis, que segurava o seu cavalo. Cato pegou nas
rédeas e saltou para a sela num movimento ininterrupto. Um golpe dos calcanhares fez com que Aníbal se virasse para o portão e se lançasse a galope. Os cascos fizeram
eco ao passar sob o pequeno túnel da entrada, por baixo do torreão, e logo a seguir atravessou a ponte sobre o fosso e desceu a encosta, na direção do general e
do seu estado-maior. Cato estava decidido a fazer tudo o que pudesse para evitar que Ostório repetisse o primeiro e fútil assalto e enviasse mais homens para uma
morte inútil.
As centúrias mais adiantadas da Décima Quarta, lideradas por Quintato, já estavam a entrar no rio. O legado deteve o cavalo no vau e desceu da sela, aterrando em
plena corrente e levantando salpicos. Entregou as rédeas a um criado, pegou no escudo que um dos homens lhe ofereceu, desembainhou a espada e começou a marchar junto
ao grupo dos porta-estandartes que elevavam bem alto os símbolos da legião, de forma a que todos os homens os pudessem ver claramente. Na retaguarda, Cato avistou
o tribuno Otho, montado num cavalo branco, de espada no ar, a fazê-la girar sobre a cabeça e a lançar brados de encorajamento aos homens. Estes avançavam num silêncio
pleno de concentração, perfeitamente cientes do que os esperava na colina de que se aproximavam a cada passo. Dada a disposição do terreno, com um suave declive
até ao rio na margem dominada pelos romanos, e com a colina que se erguia abruptamente do outro lado, nem um daqueles soldados tinha perdido um momento do combate
anterior e a ninguém escapara o seu resultado. E agora cabia-lhes a eles seguir nos passos dos seus camaradas derrotados. Cato não conseguiu disfarçar o espanto
e o agrado perante a disciplina exibida por aquela massa humana, pelos soldados que obedeciam
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às ordens sem as questionar, sem qualquer sinal de hesitação ou discórdia. As mesmas qualidades que faziam dos homens das legiões uma máquina tremendamente eficaz
em combate faziam também deles pouco mais do que carneiros a serem conduzidos ao abate quando comandados por um general demasiado temerário.
Talvez Ostório ainda reconsiderasse, pensou Cato, com uma esperança a roçar o desespero. Talvez mandasse tocar a recuar antes de ser tarde de mais, sem que fosse
preciso intervir. Mas no grupo de oficiais parados no montículo próximo não se via qualquer sinal de movimento, e Cato cerrou os dentes, refreou a marcha da montada
e aproximou-se a trote do general e do seu estado-maior. Alguns rostos viraram-se para a figura que se acercava, mas Ostório estava concentrado na evolução dos homens
que atravessavam o rio. As fileiras mais adiantadas, já um tanto desordenadas, chegaram ao pé das estacas ainda presas e começaram a subir para a margem.
Mais uma vez a artilharia romana interrompeu os seus disparos; e, quando as últimas pedras e dardos pesados tombaram sobre o solo, também os defensores voltaram
a emergir por detrás da barricada e a lançar a sua própria barragem de projéteis sobre a nova leva de legionários que enfrentavam. Desta vez, porém, os romanos sabiam
o que os esperava, e os oficiais ordenaram que os homens da frente criassem uma parede de escudos e que as fileiras seguintes colocassem os escudos sobre as cabeças,
criando uma proteção completa para toda a formação e evitando baixas pelo impacto da chuva de pedras, setas e metralha que se abateu sobre as superfícies curvas.
Embora isso protegesse os homens, a verdade é que a formação ficava imobilizada e era cansativo manter aquela disposição; além disso, surgiam as inevitáveis brechas
entre os escudos, e acabavam por ocorrer algumas baixas.
Cato levou o cavalo a passo até junto do do general e obrigou-se a respirar fundo e acalmar-se.
- Senhor?
Ostório virou-se para ele, com uma ligeira surpresa estampada no rosto.
- Prefeito Cato, o que estás tu aqui a fazer? Devias estar lá atrás no campo, junto dos teus homens.
Cato ignorou a questão e manteve-se sentado e empertigado na sela, enquanto se dirigia ao seu superior.
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- Senhor, tem de mandar os homens retirar.
- O quê? O que é que disseste?
- General Ostório, sugiro respeitosamente que mande recuar a Décima Quarta e a Nona.
Cato estava ciente dos olhares de choque que eram trocados entre os oficiais próximos, bem como da crispação crescente do rosto do general. As narinas de Ostório
estavam bem abertas quando ele respirou fundo e falou.
- Prefeito, esqueces-te de quem és. Atreves-te a pôr as minhas ordens em questão?
- Senhor, peço-lhe apenas que reconsidere. Antes que percamos mais homens sem qualquer necessidade.
- Jovem tolo, não te apercebes de que estamos à beira de conseguir romper as defesas? Mais uma investida e os nativos fugirão. Vão ceder e correr para longe, e tudo
estará terminado. Tínhamos já a vitória à nossa mercê quando aqueles idiotas a deixaram fugir. - Fez um gesto de fúria na direção dos homens da Vigésima, que continuavam
a tentar reformar as suas unidades enquanto os feridos, às centenas, recebiam os cuidados dos enfermeiros da legião. - Ao que parece, cometi um erro ao depositar
a minha fé naqueles homens. Mas o Quintato e a segunda vaga são feitos de material mais rijo. Não se deterão antes de conseguirem romper as linhas inimigas e tomar
toda a colina.
- Senhor, ainda assim não passam de homens. O terreno que enfrentam é um lodaçal. Vão ficar extenuados antes de conseguirem derrotar o inimigo.
- Prefeito, chega! Regressa ao teu posto. Trato de ti mais tarde.
- Senhor...
- Desaparece! Imediatamente! - Ostório apontou para o campo com mão firme.
Cato compreendeu que não valia a pena continuar a tentar fazê-lo ver a luz. Tinha tentado, e falhado. Os homens da segunda vaga estavam portanto condenados a repetir
o falhanço dos seus camaradas. E se, por milagre, o exército conseguisse sobreviver àquele dia, Cato ver-se-ia sujeito à fúria do seu comandante. Tinha desafiado
a sua autoridade em frente a várias testemunhas. Não poderia deixar de haver uma punição.
Fez uma saudação rígida, virou o cavalo e regressou lentamente ao campo. Quando se voltou a colocar ao lado de Macro, já a Décima
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Quarta tinha chegado à primeira barricada, e os dois lados estavam embrenhados em aceso combate. Macro olhou para o amigo com uma expressão consternada.
- Imagino que o general não deu ouvidos à razão.
Cato abanou a cabeça.
- Eu tinha de tentar.
- Claro que tinhas. - Macro sorriu tristemente. - E aposto que ele ficou lixado contigo.
- E de que maneira.
Não havia mais nada a dizer, e voltaram a dar atenção ao que se passava na colina. A refrega prosseguia feroz, e os mais afoitos dos guerreiros nativos não se coibiam
de saltar para cima dos escudos romanos, na tentativa de abrir brechas na formação. Os legionários mantinham a disciplina e, a pouco e pouco, forçavam a passagem
pelas brechas criadas pelo primeiro assalto. Centímetro a centímetro, estavam a conseguir empurrar os homens de Carátaco. Soaram então os cornos celtas, e o inimigo
abandonou o combate e recuou rapidamente para a linha de defesas mais acima na encosta.
- Foi melhor do que há bocado - comentou Macro.
- Pois, mas ainda têm de continuar a subir, e agora a encosta ainda está mais lamacenta. E vem aí mais água. - Cato apontou para o cimo da colina. O interregno soalheiro
estava prestes a terminar. Mais nuvens se aproximavam, vindas de ocidente, escuras e a ameaçar chuva. Quando os guerreiros nativos acabaram de se acomodar na segunda
barricada, já tombavam as primeiras gotas. Cato apercebeu-se de que os seus números tinham sofrido alguma diminuição, dadas as escaramuças já travadas, e que os
seus líderes estavam a chamar homens dos flancos para se oporem à investida romana na parte central das defesas. Enquanto observava, viu pequenos grupos de homens
a deixarem os afloramentos rochosos e as arribas que formavam as margens do palco da sangrenta disputa, já que um assalto ao centro das fortificações parecia ser
de facto a única forma praticável de tentar a conquista da colina.
Uma nova barragem de projéteis caiu sobre a vanguarda da Décima Quarta no preciso instante em que a sombra das nuvens tombava também sobre eles, amortecendo o brilho
das armaduras. Uma cortina de chuva fina descia do cimo da colina; cobriu primeiro o inimigo, e logo em seguida os legionários, que tinham chegado ao ponto em que
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o terreno deixava de dar qualquer apoio e se transformava numa verdadeira geleia lamacenta. Ainda assim, os soldados avançavam, a custo, aproximando-se dos adversários
que os aguardavam calmamente. Já não havia qualquer dúvida na mente de Cato. Aquele ataque ia fracassar, numa repetição perfeita do que acontecera antes. Carátaco
tinha colocado grande parte da sua força naquela barricada, para garantir que seria esse o desfecho. Ostório ia ser derrotado, os seus homens gastos para nada e,
quando as notícias se espalhassem pela província, todos os nativos que ainda alimentavam o ódio a Roma se regozijariam. Muitos sentir-se-iam encorajados a pegar
em armas, e as tribos que oscilavam ainda em torno de uma neutralidade pouco convencida poderiam pensar mais facilmente em aliar-se a Carátaco. As previsíveis consequências
do que via a desenrolar-se à sua frente deixavam Cato francamente assustado.
A mente do prefeito trabalhava febrilmente, enquanto ele contemplava o campo de batalha. Foi então que reparou no quase apagado traço de um trilho, muito à esquerda,
para lá das arribas que flanqueavam o cenário do combate. Sentiu o pulso a acelerar enquanto delineava um plano. Era completamente avesso ao senso comum, e ignorava
o dever que lhe cabia naquele dia, o de cumprir as ordens e proteger o campo. Se falhasse, a morte esperava-o por certo. Se sobrevivesse, o mais provável era que
se visse arruinado e expulso do exército. Mas qualquer dessas possibilidades não levava em conta a mais do que provável derrota de Ostório. Se isso sucedesse, então
de qualquer maneira Cato e todos os homens daquele exército acabariam mortos.
Tomou uma decisão e virou-se para Macro.
- Mande os homens formar no exterior do portão sul, imediatamente. E os Corvos Sangrentos que venham montados.
Macro encarou-o, completamente siderado.
- Cato, o que estás tu a fazer?
- Neste momento, nada. Nada que possa impedir o desastre que está prestes a ocorrer ali adiante. - Designou a colina com um golpe rápido do polegar. - Mas há uma
coisa que podemos fazer, e que pode significar toda a diferença. Mande os homens formar. É uma ordem.
- Mas as ordens que temos são para guardar o campo.
- Macro, é pela minha própria autoridade que vou fazer isto. Não temos tempo a perder. Confie em mim, e faça o que lhe digo.
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Macro coçou o queixo, indeciso, e acabou por anuir.
- Seja, maluco. Que os deuses nos protejam!
Virou-se e apressou-se a descer a escada; pouco depois, Cato ouviu-o a gritar ordens para que os oficiais convocassem os seus homens. O prefeito olhou uma última
vez para a colina. A Décima Quarta já não estava a mais de uns cento e cinquenta passos da barricada superior, e a chuva caía com toda a força. Ainda havia tempo
para forçar um outro desfecho, mas esgotava-se rapidamente. Afastou-se da balaustrada, desceu do torreão e correu para o seu cavalo.
As duas coortes do destacamento de escolta aguardavam, formadas no exterior do campo, debaixo da chuva. Cato reparou nas expressões de curiosidade, mas também ansiosas,
em muitos dos rostos. No total, estavam ali pouco mais de duzentos homens. Mal davam para a tarefa que tinha em mente, mas eram homens batidos, veteranos de muitos
combates, e se havia alguém capaz de conseguir transformar uma derrota em vitória, eram eles.
Cato respirou fundo e gritou, para ser escutado sobre o martelar da chuva:
- Não tenho tempo para explicar. Temos de nos pôr a andar, e depressa. Quando estivermos em posição, ficarão a perceber perfeitamente aquilo que espero de todos
vocês. Tudo o que peço é que combatam como demónios, quando chegar esse momento. Segunda Trácia! Quarta Coorte da Décima Quarta! Avançar!
Fez o cavalo rodopiar e adotou um passo rápido enquanto conduzia os homens para longe do campo. Adiante, ligeiramente à direita, ficava o montículo onde um punhado
de civis continuava a observar o combate que se travava do outro lado do rio, agora num silêncio desalentado. Cato conduziu os homens, a cavalaria e as duas depauperadas
centúrias de legionários comandadas por Macro, em ritmo rápido ao redor do outeiro e por trás de uma ténue cortina de arvoredo que acompanhava a margem do rio. Através
dos intervalos entre os troncos, discernia a corrente, ali mais calma, agitada apenas pela chuva. O rio era bastante mais profundo naquela zona, impossível de passar
a vau. Contudo, lembrava-se de ter ouvido dizer, na reunião preparatória com Ostório antes da batalha, que existiam algumas passagens mais abaixo, embora impraticáveis
para uma força numerosa. O plano dependia de não haver guardas nessa passagem. Se os elementos inimigos não tivessem sido
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chamados a integrar a força principal para esmagar o segundo assalto romano, o plano de Cato falharia por certo. Mesmo que conseguisse atravessar o rio, o combate
necessário custar-lhe-ia demasiados homens para tornar praticável o seu plano desesperado. Na outra margem, a curta distância, dominavam as falésias, cinzentas e
ominosas.
A pequena coluna avançou velozmente, deixando as arribas para trás, até ao ponto em que as árvores deram lugar a uma clareira que se abria até à beira da água, e
onde se notava um estreito trilho a mergulhar no rio; a corrente voltava a acelerar ali, revelando uma zona de menor profundidade, e a água saltava sobre os rochedos
que atapetavam o fundo. Cato levantou o braço para indicar uma paragem, lançou a perna sobre a sela e saltou para o solo. Macro aproximou-se em passo de corrida,
a ofegar.
- O que se passa?
- Tenho de descobrir se o caminho está livre. Fique aqui. Assim que eu der ordem, faça os homens atravessarem o rio, e depressa.
Macro fez uma saudação rápida, a assinalar a sua concordância, e Cato virou-se para o rio. Seguiu o trilho até à beira da água e parou, olhando cauteloso para a
outra margem. Não havia qualquer sinal de movimento. Olhou para montante e percebeu que dali já não se conseguia avistar o campo de batalha, nem o campo romano,
e assentiu para si mesmo, satisfeito. Só então, reunindo toda a sua coragem, começou a atravessar a corrente, de olhos sempre atentos a qualquer movimento nas arribas
ou na encosta à esquerda, onde um íngreme caminho serpenteava na direção do cimo da massa de rochas escuras. Não havia por ali sinal do inimigo. Apesar de a água
se precipitar em torno das suas pernas, notou que o fundo não era demasiado escorregadio, e que se conseguia atravessar a corrente com alguma facilidade. A meio
do rio a água nem lhe chegava à cintura e Cato soltou um profundo suspiro de alívio enquanto prosseguia, chegava a uma zona mais rasa e por fim saía do rio, a pingar,
mas na margem oposta. Virou-se de imediato e levou a mão em concha à boca.
- Macro! Traga-os para este lado! - Fez um sinal claro com o braço, para o caso de a sua voz não ter conseguido sobressair sobre o som da água veloz. Logo surgiram
os primeiros dos Corvos Sangrentos, que desceram das selas e levaram as montadas até ao rio pelas rédeas, de forma a não correrem risco de lesões, neles ou nos cavalos,
ao escorregar nos
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seixos que formavam o leito. Atrás da cavalaria vieram os legionários, que quase por instinto levantavam os escudos para não os molharem, apesar da chuva. Cato fez
um gesto ao mais antigo dos seus decuriões, Miro, e apontou para o trilho.
- Por ali acima. Parem antes de chegarem ao cimo das falésias.
- Sim, senhor. - Miro fez a saudação e ordenou que os homens o seguissem enquanto puxava pelas rédeas e levava a montada para longe do rio. Macro trazia o cavalo
de Cato, e passou-lhe as rédeas para as mãos no momento em que o primeiro dos legionários chegava à margem.
- Isto faz-me lembrar da nossa primeira batalha a sério contra Carátaco. Nos primeiros tempos da invasão. Lembras-te?
Cato anuiu.
- Espero que também desta vez a sorte não nos abandone.
Virou-se para o trilho e seguiu os últimos elementos da coorte trácia. Os mais adiantados já seguiam a caminho da crista e Cato acelerou, puxando por si e pela montada,
para alcançar a cabeça da coluna. Quando por fim chegou ao pé de Miro, o decurião já estava perto do topo da arriba, onde a chuva caía quase de frente, impulsionada
pelo vento forte. Cato ficou aliviado ao escutar claramente os sons da batalha, o retinir das lâminas e os brados e gritos de triunfo. Era evidência de que a Décima
Quarta continuava em ação e a aguentar-se, pelo menos até àquele momento.
- Forma aqui os homens - ordenou Cato. - E segura o meu cavalo. Volto já.
Deixando o decurião com as rédeas na mão, Cato correu pelos últimos metros da subida, e depois ao longo da crista rochosa. Reduziu o passo quando notou que o terreno
começava a descer e prosseguiu agachado, enquanto lutava para soltar os apertos do capacete e o tirar da cabeça, para evitar que as plumas vermelhas e o metal brilhante
chamassem a atenção a qualquer elemento inimigo que por ali andasse. Um pouco adiante reparou num arbusto pouco desenvolvido, que crescia inclinado por causa do
vento a soprar predominantemente de uma direção no cume da colina. Usou-o como esconderijo para observar como decorria a batalha na encosta escorregadia. Estava
mais de trinta metros acima do nível da segunda linha de defesa instalada por Carátaco, e conseguia ver com clareza tudo o que se passava na frente de combate.
Os legionários tinham alcançado a barricada, feita de blocos e pedras
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mais pequenas encaixadas entre eles, e ramos aguçados bem presos nelas e dirigidos para baixo. Cato viu grupos de soldados romanos protegidos por trás dos largos
escudos enquanto outros usavam mãos e espadas para derrubarem secções da barricada. Os legionários mais corajosos tinham-se adiantado para entrar em contacto com
o inimigo. A luta era desigual, já que os romanos estavam assoberbados pelo pesado equipamento e não conseguiam fazer chegar à frente um número de homens suficiente
para enfrentar os poderosos contra-ataques do inimigo, que destroçavam os atacantes e faziam os sobreviventes recuar para o meio da massa de soldados que aguardava
mais abaixo. A cem passos, num nível inferior, os homens da Nona permaneciam agachados por trás dos seus escudos. O tribuno Otho, com a sua vistosa pluma vermelha,
tinha desmontado e andava de um lado para o outro ao pé do pelotão de honra, onde os diversos estandartes pendiam sem movimento, ensopados pela chuva constante.
Por trás da Nona havia inúmeros corpos espalhados pelo terreno. Voltando a dar atenção à frente de combate, Cato percebeu que os guerreiros nativos se apinhavam
por trás da barricada. Acima deles, o terreno suavizava-se, e havia como que um planalto irregular que ocupava o cimo da colina, onde tinham sido instaladas centenas
de abrigos improvisados. No coração do acampamento havia um grupo de tendas simples. O centro de comando de Carátaco, adivinhou Cato. Centenas de guerreiros feridos
estavam ali sentados ou deitados, abrigados da chuva e do vento. Mulheres nativas de capas cuidavam deles, ligando feridas e tratando membros partidos.
Cato já tinha visto o suficiente para compreender a disposição do terreno, e recuou, ainda agachado, até ficar fora de vista, desatando então a correr para se juntar
à coluna. Os Corvos Sangrentos aguardavam junto aos cavalos, em três esquadrões. Ao seu lado estavam as duas centúrias de legionários de Macro, uma comandada pessoalmente
pelo veterano, a outra liderada pela gigantesca figura do centurião Crispo, um antigo optio que fora promovido depois do cerco de Bruccium.
- Oficiais! Venham cá! - chamou Cato, no tom de voz mais alto a que se atreveu. Os homens apressaram-se na sua direção, enquanto ele tremia devido à chuva forte
e ao vento cortante. Amaldiçoou o seu frágil corpo e obrigou-se a permanecer imóvel, para evitar que alguém tomasse o frio que sentia por medo. Era preciso que todos
tivessem completa confiança na sua liderança, se queriam sobreviver ao combate que iam travar.
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Cato apontou para o cimo das arribas.
- A frente de combate está mesmo do outro lado daquela linha de penedos. A segunda vaga de assalto já chegou à barricada superior, mas dificilmente conseguirá ultrapassá-la.
A não ser que nós entremos em cena. - Olhou em redor do pequeno grupo de oficiais, para garantir que todos entendiam o que iam fazer. - O plano é o seguinte. O centurião
Macro e a infantaria vão rodear os penedos, mantendo-se tanto quanto possível escondidos, e depois lançarão um ataque ao flanco do inimigo. Nessa altura, façam todo
o barulho que conseguirem, e ataquem em força. Façam-nos recuar. Não vão ter a vantagem da surpresa durante muito tempo, nem vão conseguir manter o ímpeto da carga.
Mas têm de conseguir fazê-los recuar o suficiente para que os rapazes da Décima Quarta possam abrir caminho e ajudar-nos. Se fizermos isto depressa e bem, podemos
destroçar toda a linha deles a partir daqui. Está tudo entendido? Centurião Macro? Os homens serão capazes disto?
Macro sorriu e esfregou as mãos.
- Os cabrões dos celtas que tentem impedi-los, e logo veem como elas mordem, senhor!
- É assim mesmo! - insistiu Cato, antes de se virar para os três decuriões. - Miro, leva o teu esquadrão e cobre o flanco do Macro. Não podemos permitir que eles
cerquem a nossa infantaria. Carrega sobre quaisquer grupos que pareçam estar a constituir uma formação ordenada. Não os deixem agrupar-se, mantenham-nos a correr.
Não lhes permitam recuperar da surpresa.
Miro anuiu, determinado.
- Eu comandarei os outros dois esquadrões. Vamos seguir até ao cume da colina e atravessar o acampamento inimigo. Desbaratamos quaisquer combatentes que por lá ainda
estejam, e depois viramos e carregamos pela encosta abaixo, para atingir a linha do inimigo pela retaguarda. Se tudo correr bem, um ataque simultâneo e de duas direções
será suficiente para os distrair durante o tempo suficiente para que os rapazes da Décima Quarta consigam ultrapassar a barricada. E a vitória estará ao nosso alcance...
Todos perceberam que papel têm a desempenhar?
O centurião Crispo abanou a cabeça, assombrado.
- Senhor, foda-se, é pouca coisa o que nos pede.
Macro deu-lhe um murro no ombro.
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- Se viveres o suficiente, acabarás por te habituar às piadas do prefeito.
- Muito bem, senhores, é tudo então. Vamos a isso.
Macro e os seus homens avançaram em primeiro lugar, seguindo pelo trilho antes de se desviarem para o flanco da frente de combate. Cato e os cavaleiros seguiram-nos.
No ponto onde o trilho bifurcava, Cato virou-se para Miro e acenou.
- Que Fortuna te acompanhe.
- E a si, senhor.
- Vemo-nos daqui a pouco.
Trocaram uma saudação, e Cato ordenou aos seus dois esquadrões que o seguissem enquanto avançava para a crista da colina e o acampamento inimigo que lá estava instalado.
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A dor nos membros de Macro começou a desvanecer-se, à medida que sentia o sangue a correr pelas veias. Tinha os músculos tensos e alerta, e sentia no coração a habitual
leveza que antecipava um combate. Ao contrário do que acontecia com Cato, não tinha quaisquer dúvidas sobre o propósito dos deuses quando o tinham colocado na Terra.
Era para aquilo que ele tinha nascido. Era um soldado, treinado para aquele fim e, por Mitra, sempre haveria de honrar a profissão que seguira. Olhou de relance
sobre o ombro e viu a linha de homens a segui-lo, de respirações pesadas e faces determinadas. Apesar de os comandar havia apenas cerca de meio ano, já os conhecia
bem. Eram duros combatentes, e nunca o deixariam mal.
Seguiram em passo de corrida ao contornar os picos das arribas, sempre debaixo da bátega de água que as nuvens escuras lançavam sobre eles. O trilho tornava-se plano
durante alguns metros, até começar a descer na direção do flanco direito da linha inimiga. O clarão repentino de um relâmpago iluminou a encosta, mostrando um quadro
momentâneo de homens envolvidos em combates ferozes. Mas a luz desapareceu de imediato, e logo a seguir o ar reverberou com o estrondo do trovão. A atenção do inimigo
estava claramente focada nos homens da Décima Quarta, que continuavam a lutar em vão para tentarem encontrar forma de ultrapassar ou destruir as defesas. Os mais
próximos combatentes inimigos estavam colocados no ponto em que a barricada se encontrava com a falésia a pique, a uns cinquenta passos de distância. Macro fez alto
e esperou que as duas centúrias formassem uma coluna compacta nas suas costas. Limpou então a mão húmida na túnica, e desembainhou a espada. Colocou o escudo em
posição, ergueu a espada contra a chuva e fê-la mover-se para a frente.
O som das botas cardadas e o chocalhar do equipamento misturavam-se
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com o dos grossos pingos a embater nos capacetes e nos ombros das armaduras, e ainda com o barulho crescente da refrega. Macro foi acelerando à medida que ia descendo
a encosta, cujo declive era ali mais suave. Notou algum movimento à sua esquerda, e apercebeu-se de que eram os cavaleiros que se distribuíam no terreno para cobrir
o flanco da sua coluna. Já não estavam a mais de vinte passos dos guerreiros bretões quando um deles, um homem de vestes quase até aos pés, que soltava brados de
encorajamento aos outros por trás da linha de combatentes, se interrompeu, ao escutar o som da chegada dos romanos. Virou-se e Macro notou a forma como os seus olhos
se abriram de espanto e alarme, até que ele abriu a boca e soltou um grito desesperado.
- Quarta Coorte! - soltou Macro, a plenos pulmões. - À carga!
Acelerou o passo, adotando o ritmo mais veloz que era possível a um
homem de armadura e equipamento pesado, e lançou ao vento o nome da legião.
- Gemina!
- GEMINA! - O grito encontrou eco nos lábios dos seus homens, e Macro dirigiu-se contra o indivíduo que primeiro os vira. Já outros se tinham voltado para eles entretanto,
e os gritos de triunfo que lançavam momentos antes tinham-lhes morrido nos lábios. O homem de longas vestes começou a virar-se para fugir, mas era tarde de mais;
escorregou e logo Macro se lançou sobre ele, esmagando-o contra o solo com o pesado escudo e continuando praticamente sem se deter. Havia centenas de guerreiros
inimigos à sua frente, no interior da barricada, mas tal cenário, longe de o desencorajar, deu-lhe mais ânimo ainda para se lançar sobre os desprevenidos defensores
daquela extremidade da linha de combate. Um homem com uma lança, de tronco nu, fincou firmemente os pés no chão e tentou atingir Macro com a ponta acerada. O centurião
manejou a espada de forma a defletir o ataque para o solo, antes de a usar para atingir o braço esticado do inimigo, rasgando carne e músculo antes de a voltar a
libertar. Lançou então o escudo contra o outro e sentiu o brutal impacto que fez com que o guerreiro fosse projetado para trás. Macro prosseguiu, sentindo um membro
a ser esmagado debaixo da sua bota, antes de se lançar sobre um grupo de homens de equipamento ligeiro, agrupados na extremidade da barricada.
Uma espada veio embater-lhe no escudo, e percorreu a superfície até chocar contra a bossa central, com estrondo. Macro usou-o para tentar
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atingir o adversário que não vira, e recolocou-o em posição, enquanto desferia uma estocada à direita com a espada. Sentiu alguma resistência e percebeu que infligira
um corte superficial; mas logo a seguir viu-se rodeado pelos seus homens, que lhe imitavam os movimentos, com empurrões do escudo seguidos de rápidas estocadas,
como tinham sido treinados para fazer. Macro viu a barricada à sua frente, uma mistura de rochas e terra, e o cadáver de um jovem guerreiro esparramado sobre ela.
À sua volta, os legionários tinham limpado a área na base da falésia, e vários inimigos já se debatiam na lama, a sangrar.
- Para a esquerda! - gritou Macro. - Vamos varrer o flanco destes cabrões!
A frenética carga continuou, sem piedade. Os guerreiros tribais ainda não se tinham recomposto do ataque ao seu flanco e Macro estava decidido a prolongar ao máximo
o ímpeto da carga, antes que o inimigo percebesse de facto quantos homens enfrentava. Assim que a artimanha fosse desmascarada, Carátaco trataria de enviar as suas
forças de reserva para resolver a ameaça. O inimigo recuava à frente dos legionários e corria em diagonal pela encosta acima para fugir aos atacantes, pelo que se
colocava mesmo na trajetória de Miro e do seu esquadrão de Corvos Sangrentos. Desferiam golpes à esquerda e direita, derrubando os fugitivos e contribuindo para
o pânico que estava a tomar conta do flanco direito do exército de Carátaco.
Macro deteve-se momentaneamente, e procurou por Crispo. O centurião estava um pouco atrás, sobressaindo entre os seus homens enquanto os incitava a seguir a centúria
de Macro.
- Crispo! Comigo! Crispo!
O centurião olhou em redor, avistou Macro e assentiu. Pouco depois, os dois oficiais estavam juntos, ambos ofegantes. Macro apontou a barricada com a espada.
- Põe os teus homens a destruir aquela coisa. Temos de arranjar forma de os rapazes que estão do outro lado entrarem, o mais depressa possível.
- Sim, senhor. - Crispo baixou ligeiramente a cabeça e chamou as duas secções mais próximas; os legionários largaram os escudos, embainharam as espadas e começaram
a tentar com toda a força remover os blocos rochosos.
- Os outros, venham comigo! - Macro chamou as restantes secções
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da centúria de Crispo e retomou a carga. Passou por mais guerreiros nativos já abatidos, e depois pela primeira baixa entre os seus homens, de costas no solo, o
rosto reduzido a uma polpa sanguinolenta por um golpe de machado bem assente. Subiu ligeiramente o declive para tentar ter uma vista mais abrangente e reparou que
o inimigo fora forçado a recuar mais de trinta metros, mas que começava a reagrupar-se. Não tinham mais para onde ir, mas uma massa tão densa de homens queria dizer
que a carga romana ia ser interrompida, já que também os legionários não poderiam continuar a varrer o terreno em corrida. Mas ainda havia terreno a conquistar,
pelo que Macro lançou um brado aos seus homens. - Para a frente! Para a frente! Desfaçam-nos!
Muito para lá do grupo amontoado de inimigos ali perto, avistou um guerreiro de grande estatura, que percorria a cavalo a linha, para tentar perceber o porquê daquela
confusão no flanco da frente de combate. A chuva tinha ensopado o longo cabelo do homem, mas ainda assim havia nele qualquer coisa que Macro achou familiar, e de
repente compreendeu que estava a ver o próprio comandante inimigo. Carátaco em pessoa. O homem fez um gesto na direção do flanco e de imediato alguns homens começaram
a abandonar a frente de combate e a formar uma nova linha de batalha, uns trinta passos mais acima na encosta. Assim que reuniu duzentos ou trezentos dos seus guerreiros,
Carátaco conduziu-os pelo declive, em passo rápido. Não iam levar muito tempo até chegarem ao flanco e inverterem o sentido do combate naquela zona, percebeu Macro.
Olhou para trás e viu Crispo e os seus homens em pleno esforço. Já tinham retirado as maiores rochas, e tentavam afastar a terra com as espadas, usando-as para remover
o solo lamacento. Alguns dos legionários ainda do lado inferior, cobertos de sujidade, tinham trepado à própria barricada, para os ajudar. Mas ainda iam levar algum
tempo até conseguirem abrir uma passagem suficientemente larga para permitir uma corrente contínua de homens para reforçar a enfraquecida coorte de Macro.
Não havia mais nada que ele pudesse fazer, a não ser combater, e Macro avançou para se juntar aos seus homens na refrega. Abriu caminho até à frente e deu de caras
com um guerreiro pesado, com uma desgrenhada barba branca e um torso coberto de espirais azuis tatuadas. A chuva fazia-lhe reluzir o corpo enquanto ele girava um
machado sobre
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a cabeça e desferia um poderoso golpe sobre o escudo de um legionário. A pesada lâmina despedaçou a faixa metálica da orla e estilhaçou a madeira, desfazendo o escudo
até ir esmagar o ombro do soldado romano. O homem soltou um gemido ao perder o fôlego, e começou a cair para trás, as ruínas do escudo a escorregarem para a lama.
O outro lançou um rugido de triunfo e avançou, interrompendo o avanço dos romanos à sua frente e dando assim tempo aos seus camaradas para recuperar o ânimo.
Macro enfrentou o olhar enlouquecido do guerreiro, que voltava a fazer voltear o machado. Antes que o homem atacasse, Macro fez uma finta com a espada, que levou
o adversário a encolher-se quase por instinto, baixando o escudo e recuando. O centurião avançou outro passo e prosseguiu, atirando o escudo contra o inimigo, fazendo-o
tombar sobre os seus camaradas. Agora o outro estava encurralado, e Macro avançou para terminar o assunto, com uma estocada baixa à virilha, torcendo a lâmina e
retirando-a antes de voltar a golpear, mais acima, pondo todo o seu peso num movimento que trespassou o estômago do bretão. O homem soltou um grunhido explosivo
e deixou cair o machado, enquanto cambaleava.
- Avançar! - Macro fez uma pausa para voltar a animar os homens. - Vamos, rapazes!
Estava ciente de que o ímpeto do ataque esmorecia a cada minuto. Os homens estavam a ficar cansados e o inimigo começava a recuperar do choque daquele ataque súbito
no flanco. Havia mais homens a correr pela encosta para enfrentar a pequena força romana, e por trás deles Carátaco e a sua reserva improvisada também se dirigiam
para aquela zona. Uma espreitadela rápida mostrou-lhe Crispo e os seus homens, ainda a trabalhar na destruição da barricada, mas nada de soldados romanos a virem
de baixo em auxílio da Quarta Coorte.
O ataque tinha já perdido toda a força e Macro viu-se forçado a remeter-se à defesa da posição, enquanto lutava ao lado dos seus homens para manter o inimigo à distância.
Entretanto, um grupo de nativos com lanças tinha enfrentado Miro e o seu esquadrão, e distribuía golpes sobre cavalos e cavaleiros, obrigando os trácios a recuar,
de tal forma que começavam a deixar a descoberto o flanco dos seus camaradas legionários. Macro olhou mais para cima, para a crista da colina, tentando ver
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qualquer sinal de Cato e dos seus dois esquadrões, mas não viu qualquer traço de movimento.
- Vá, miúdo, despacha-te - murmurou. - Enquanto ainda temos tempo.
Carátaco e os seus homens aproximavam-se e já estavam a menos de cem passos; o líder nativo refreou o passo do seu grupo, para permitir que os mais atrasados se
juntassem à força e se lançassem todos em conjunto pela encosta abaixo, de forma a prender Macro e a sua coorte contra a barricada. Se isso sucedesse, não haveria
forma de escapar.
Um brado abafado chegou-lhe aos ouvidos e viu que Crispo e os seus homens tinham conseguido abrir uma brecha na barricada, mas a largura não permitia a passagem
de mais de um soldado de cada vez. O primeiro legionário do grupo que se amontoava na parte de fora furou a custo, e correu para se juntar à pequena força de Macro,
que se preparava para tentar aguentar a pressão inimiga; outro se seguiu, enquanto Crispo incitava os seus homens a redobrarem esforços no alargamento da brecha.
Mas era demasiado tarde. Apenas cerca de vinte homens tinham passado através da barricada quando Carátaco e o seu grupo lançaram a carga, correndo pelo declive e
soltando gritos selvagens na direção de Macro. Os últimos homens do esquadrão de Miro foram varridos, e os sobreviventes viraram os cavalos e escaparam para o cimo
da colina.
Macro sentia o coração a arder de raiva e frustração. Precisavam só de mais algum tempo, mas não iam tê-lo. Mais uma centena de homens teria feito toda a diferença
e teria permitido aguentar aquela posição enquanto a brecha era alargada de forma a permitir a chegada das coortes presas do outro lado, o que mudaria o rumo da
batalha a favor dos romanos. Mas, sonho por sonho, podia até pedir a Lua, resignou-se Macro, enquanto se preparava para enfrentar a força inimiga que se acercava,
firmando as botas no terreno enlameado, de escudo bem erguido e espada em posição para golpear. Por cima da orla do escudo via Carátaco, aprumado na sua sela, uma
mão nas rédeas, a outra a fazer dançar a espada. A boca do chefe bretão escancarou-se e os tendões do pescoço ficaram salientes quando ele soltou o seu grito de
guerra.
- Foda-se, Cato - irritou-se Macro. - Onde é que te meteste?
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Assim que os dois esquadrões alcançaram o cume da colina, Cato
deu ordens para formarem em linha e os sessenta cavaleiros alinharam-se sobre o terreno irregular. Cato levou-os a passo até à orla do planalto, olhando à direita
e à esquerda para ter a certeza que o alinhamento persistia. Levantou o escudo oval e colocou-o sobre o dorso, enquanto retirava da bainha dependurada da sela a
longa espada de cavalaria.
- Corvos Sangrentos! A trote! Avançar!
A linha voltou a movimentar-se, dirigindo-se aos abrigos mais próximos e aos homens feridos e às mulheres que deles cuidavam. Os cavaleiros depressa foram avistados
e os gritos de alarme espalharam-se pelo campo inimigo assim que o temido estandarte dos Corvos Sangrentos foi reconhecido. Os que podiam andar puseram-se de pé
e tentaram escapar. Os outros procuraram qualquer proteção que tivessem à mão, enquanto pegavam em armas para se defenderem.
Cato piscou os olhos, para se livrar das gotas de chuva que lhe picavam o rosto, respirou fundo, e ordenou:
- Acelerar!
Os homens mantiveram a formação enquanto irrompiam pelo campo inimigo, as espadas a golpearem à direita e à esquerda, os cavaleiros a debruçarem-se das selas para
atingir os que jaziam junto ao solo. Liquidaram dúzias de inimigos quase indefesos, e os que conseguiram fugir fizeram-no em total desalinho, contribuindo para espalhar
o pânico nas fileiras inimigas. Cato permitiu que os seus homens prosseguissem na matança, avaliando cuidadosamente a distância que tinham avançado, determinado
a não se embrenhar demasiado no acampamento antes de mudar de direção. Quando tinham percorrido cerca de um terço do comprimento do planalto, deteve o cavalo e levantou
a espada para chamar a atenção dos seus homens.
- Corvos Sangrentos! Alto! Alto! Formar junto a mim!
Fez rodopiar o cavalo para se virar para a face da colina onde a batalha decorria e esperou ansiosamente que os homens pusessem de parte a carnificina de inimigos
feridos e se dispusessem em redor do comandante. Uma olhadela em redor revelou-lhe apenas um cavalo sem cavaleiro e sem destino. Assentiu para si mesmo. Até ali
tudo tinha corrido bem. Se Macro e os seus homens tivessem cumprido a sua parte, a atenção do exército inimigo teria sido atraída para o ataque ao seu flanco, e
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Carátaco não estaria preparado para um segundo ataque, vindo de outra direção. Mas se Macro tivesse falhado, Cato sabia perfeitamente que estava a preparar-se para
conduzir o que restava dos Corvos Sangrentos a uma aniquilação total e absoluta. Sentiu uma calma estranha perante tal perspetiva. A única coisa que lhe custava
realmente era pensar em Júlia a lamentar a sua perda. Varreu pensamentos desse género para longe e limpou a garganta, de forma a poder dar a ordem de forma clara
e determinada.
- A trote!
Os homens usaram os calcanhares, provocando protestos dos cavalos, de orelhas a remexerem-se antes de se porem em movimento. Enquanto os Corvos Sangrentos ajustavam
o passo para manterem uma linha regular, Cato calculou que tinham uns cinquenta passos a percorrer antes de alcançarem o limite da área plana. A eficácia de uma
carga de cavalaria tinha tudo a ver com a precisão do movimento, como sabia perfeitamente. Tinham de manter o alinhamento e acelerar enquanto ainda tinham espaço
para isso, de maneira a alcançar uma velocidade aceitável, que lhes permitisse aplicar um golpe demolidor ao inimigo. Mas, fosse qual fosse o ideal, a situação ali
era complicada pelas condições do terreno: ensopado, e com um declive pronunciado até chegar à posição onde estavam as forças inimigas. Alguns dos cavalos acabariam
por escorregar e cair, mas esse era um preço que não era possível evitar pagar.
- Acelerar!
Cato deu um golpe com os calcanhares e aumentou a pressão dos joelhos nos flancos da montada, enquanto se inclinava para a frente, de maneira a melhor se prender
contra as formas da sela. Os seus sentidos passaram a ser dominados pelo som dos cascos a embaterem no solo molhado e os salpicos de lama que se levantavam vinham
prender-se na crina do animal e daí saltavam para o rosto do prefeito; Cato e a sua pequena força depressa alcançaram a orla do planalto, e o terreno começou a inclinar-se.
O som da refrega tornou-se de súbito mais próximo, mais claro, e as orelhas do cavalo mexeram-se, traindo os nervos do animal. Cato não quis dar aos homens qualquer
hipótese de hesitarem ao avistarem o cenário da batalha, pelo que respirou fundo para lançar uma derradeira ordem.
- Corvos Sangrentos! À carga!
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Os homens soltaram um urro coletivo e incitaram as montadas, cavalgando sobre a relva já pisoteada até à borda da crista, de onde a refrega sanguinária que se desenrolava
mais abaixo se lhes revelou em todos os detalhes. Num instante, Cato absorveu o panorama global da ação frenética. O inimigo defendia a sua posição ao longo de cerca
de três quartos da linha de combate, mas o ponto fulcral da batalha situava-se mesmo à sua frente e um pouco mais para a direita, onde a pequena força de Macro tentava
sobreviver, ao mesmo tempo que os homens no flanco da Décima Quarta começavam a juntar-se à refrega. O problema era que o espaço da encosta entre os homens de Cato
e os seus camaradas fervilhava de guerreiros inimigos que se lançavam em corrida feroz sobre os legionários, lançando gritos de guerra.
Cato concentrou-se naquilo que se passava imediatamente à sua frente. Chegara o momento de esquecer a sua posição de comando. A partir daquele momento, era apenas
mais um combatente, igual aos outros Corvos Sangrentos, que já não passavam de vultos fugidios que o rodeavam e acompanhavam na carga. Cato ergueu a sua espada de
cavalaria, colocando-a em posição de ataque, e golpeou o primeiro nativo com que se cruzou, rasgando-lhe selvaticamente o ombro e as costas. O homem ficou para trás
de imediato e o cavalo lançou outro para o solo antes de lhe fazer estalar um osso, já que o nativo tivera a má fortuna de tombar sob os cascos. Logo em seguida
o animal hesitou, quando um terceiro guerreiro se virou e lançou um verdadeiro rosnido contra o vulto montado que crescia sobre ele; Cato viu-se obrigado a puxar
as rédeas para evitar que o animal se torcesse demasiado e o projetasse para o solo.
O escudo do prefeito foi embater no nativo. Meio virado na sela, Cato manejou a espada de forma a que a lâmina descrevesse um arco,
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conseguindo que o gume abrisse o crânio do inimigo de alto a baixo. O espasmo do outro fez com que as costas se lhe arqueassem, e o movimento quase arrancou a espada
das mãos de Cato. Agarrou-a e puxou com todas as suas forças. Sentiu que a lâmina se libertava, puxou outra vez, e recuperou-a, não sem quase cair da sela. O cavalo
tinha-se entretanto detido, e Cato aproveitou para olhar em volta.
Os Corvos Sangrentos tinham feito destroçar a força de guerreiros inimigos que se preparava para avançar sobre a coorte de Macro e na encosta em redor reinava uma
enorme confusão de cavaleiros e guerreiros nativos envolvidos em escaramuças. Os gritos de triunfo que momentos antes saíam das gargantas inimigas tinham-se transformado
em guinchos de pânico, e muitos dos celtas tentavam já escapar para o lado esquerdo da linha de combate, embora os seus chefes tentassem detê-los e encaminhá-los
de novo para a refrega encarniçada que decorria naquele flanco. Havia também druidas envolvidos no combate, notou Cato. Figuras de longas vestes e cabelos desgrenhados,
lançando imprecações aos romanos e aos que, entre o seu próprio povo, se recusavam a voltar à luta.
Um movimento ao seu lado atraiu-lhe a atenção, e ele virou a cabeça; avistou dois guerreiros que se lançavam sobre ele, de lanças em riste. Puxou pelas rédeas e
virou o cavalo contra a ameaça, enquanto lhe espetava os calcanhares no flanco. Os homens viram-se forçados a desviar-se, mas uma das lanças ainda tentou atingir
o peito de Cato pelo lado direito. Desferiu um golpe selvagem com a espada, que retiniu de forma bem audível quando o gume embateu na ponta de ferro e a desviou
para o lado. O terreno pesado tornava difícil ao atacante mudar de direção, e o ombro do homem veio embater contra a perna de Cato. O guerreiro olhou para cima com
uma expressão selvagem, os olhos a faiscar no meio das melenas escuras que a chuva lhe colava ao escalpe. Quase por instinto, Cato atingiu-o pesadamente com o punho
da espada no cimo do crânio e o opositor tombou para o solo.
Sentiu de repente um puxão na mão que segurava o escudo e as rédeas foram esticadas, obrigando o cavalo a girar. O segundo adversário cambaleou para trás, mas com
uma mão continuou a tentar afastar o escudo do romano, de forma a criar uma abertura para o golpear com a lança. Cato puxou o escudo, lançando todo o seu peso para
o outro lado da sela, o que fez com que a ponta da lança escorregasse ao longo da
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superfície do escudo, acabando por ir rasgar o flanco do cavalo de Cato, embora sem penetrar fundo na carne do animal. Ainda assim, a montada escoiceou debaixo do
prefeito, que se viu obrigado a apertar as pernas em torno do ventre do animal para se manter na sela, enquanto um dos cascos da montada atingia em cheio o nativo
e o lançava por terra.
Cato demorou mais alguns momentos a recuperar o controlo do cavalo e a acalmá-lo; só então viu que Macro tinha voltado a formar os seus homens numa linha de combate
com dois soldados de profundidade que se estendia da barricada até um pouco mais acima no declive. Os homens das outras coortes da Décima Quarta, os primeiros a
passar pela brecha, estavam a tomar posição à sua esquerda, prolongando a linha. E, a cada momento, mais legionários ultrapassavam o obstáculo, enquanto Crispo e
os seus homens continuavam a trabalhar para alargar a passagem. A batalha começava a pender para o lado romano, percebeu Cato. Mas ele e os seus homens tinham de
continuar a atrair a atenção do inimigo sobre si, de forma a facilitar o trabalho dos legionários. Os Corvos Sangrentos estavam naquele momento dispersos por entre
a horda de guerreiros, combatendo em pequenos bandos ou em ações singulares, e Cato calculou que já devia ter perdido pelo menos um quarto do seu efetivo. Se queria
mantê-los vivos, era forçoso que a unidade se reagrupasse. O porta-estandarte estava relativamente próximo, rodeado por quatro camaradas, envolvidos num combate
renhido para evitar que o inimigo capturasse o símbolo da temida unidade. Cato dirigiu o seu cavalo para lá, mantendo o escudo aperrado e a espada pronta a entrar
em ação, fosse para atacar ou aparar algum golpe. Um dos cavaleiros viu-o chegar e abriu-lhe espaço para ele se juntar ao grupo. Cato deteve o cavalo junto ao porta-estandarte,
embainhou a espada e levou a mão em concha à boca para lançar um brado que se ouvisse por todo o campo de batalha.
- Corvos Sangrentos! Corvos Sangrentos, comigo! Todos!
Virou-se então para os homens que o rodeavam.
- Rapazes, mantenham-se juntos. Vamos progredir para junto da Quarta Coorte.
Um a um, os seus homens abriram caminho até junto do porta-estandarte, engrossando o grupo de cavaleiros que começaram a avançar pelo meio da força nativa e a dirigir-se
para junto da linha de legionários na encosta, também ela mais numerosa a cada momento que passava. Cato
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apercebeu-se de que o espírito combativo do inimigo estava a esmorecer. Cada vez menos homens pareciam dispostos a enfrentar o pequeno grupo de romanos a cavalo.
Muitos começavam a afastar-se da refrega e a tentar encontrar abrigo no centro da linha nativa. Só um punhado de guerreiros celtas parecia compreender a importância
do combate desesperado que se travava naquele flanco, e Carátaco era obviamente um deles. Percorria as fileiras dos seus homens, berrando e empurrando-os na direção
do inimigo, tentando levá-los a combater, no meio da chuva e do lamaçal que cobria a colina.
Quando por fim todos os sobreviventes dos dois esquadrões montados se conseguiram reunir ao porta-estandarte, já estavam quase junto aos legionários que mantinham
uma formação cerrada, com os escudos alinhados numa verdadeira parede inamovível.
- Abram uma passagem! - ordenou Cato enquanto continuava a incitar a montada. - Abram as fileiras!
Os homens à sua frente obedeceram e criaram um espaço por onde Cato e os cavaleiros que o seguiam passaram. Avançaram mais alguns metros, permitindo que a parede
de escudos se voltasse a fechar nas suas costas. Macro apressou-se a acolhê-los, e olhou para cima com uma expressão de alívio.
- Excelente trabalho, senhor! Porra, que maravilha. Chegou mesmo a tempo. Senão, o cabrão do Carátaco tinha-nos caído em cima com aqueles sacanas todos, e teríamos
perdido o controlo da brecha.
Cato respondeu com um sorriso, enquanto lutava para controlar os tremores que sentia em todos os membros. Olhou para a encosta e percebeu que já havia pelo menos
mais uns duzentos homens a prolongar o flanco da formação de Macro, e que muitos mais continuavam a tomar posição a cada instante. Um espaço tinha-se aberto entre
os dois lados em contenda, e nem ameaças em incentivos dos líderes pareciam capazes de persuadir os guerreiros nativos a voltarem a envolver-se na furiosa escaramuça
que se tinha desenrolado no seu flanco. A lama remexida que separava os dois lados estava semeada de cadáveres, escudos feitos em ripas, armas abandonadas e charcos
de água ensanguentada.
Os cimos dos estandartes romanos surgiram na brecha, e pouco depois o legado Quintato conduziu o seu pequeno pelotão de estado-maior e honra pela abertura, até junto
de Cato.
- Já sei o que se passou por aqui. Excelente trabalho, prefeito! -
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Sorriu. - Mas como raio vieste aqui parar? Não é suposto estares a guardar o campo?
- Éramos a última reserva que o general tinha disponível, senhor. Quando o ataque pareceu começar a perder ímpeto... - explicou Cato rapidamente, sem querer revelar
que tinha agido por iniciativa pessoal. Haveria tempo de sobra para todas as repercussões mais tarde e Cato não tinha quaisquer dúvidas de que elas surgiriam. Por
muito que tivesse conseguido ali na frente de combate, a verdade é que abandonara o seu posto a meio de uma batalha. Tinha deixado o campo militar desguarnecido.
- Foi preciso recorrer a medidas desesperadas, não foi? - reconheceu Quintato. - Bem, não há tempo a perder. Temos de aproveitar esta vantagem.
O legado virou-se para o mais próximo dos seus tribunos.
- Quero os flancos da coorte aqui em cima, e depressa. Manda uma mensagem ao tribuno Otho, ele que nos venha reforçar. Os outros devem manter posições e atravessar
a barricada assim que for possível. Vai!
O jovem oficial saudou e virou-se para correr para a brecha na fortificação nativa, agora sob controlo romano.
- Prefeito Cato, leva a tua cavalaria até à crista. Protege o nosso flanco. Já te divertiste, agora deixa o resto a cargo das legiões.
- Sim, senhor. - Cato saudou-o, mas o legado já se tinha afastado, avançando a passos largos pela colina acima para ocupar o seu lugar por trás do centro da linha
romana. Macro viu-o a afastar-se e abanou a cabeça.
- Diversão, diz ele. Gostava de saber como serão as coisas sérias.
Cato encolheu os ombros, fatigado.
- Talvez um dia venhamos a descobrir. Entretanto, Macro, o que interessa é que nos portámos bem.
Trocaram um sorriso, antes de Cato reunir o que restava da sua coorte e os conduzir pela encosta acima, por trás dos legionários, para ocupar a posição que lhe fora
indicada, na crista. Miro e o punhado de homens do seu esquadrão juntaram-se a ele. Entretanto, o planalto transformara-se num terreno vivo, por onde fugiam os nativos.
O medo e o pânico espalhavam-se no seio do exército de Carátaco, e centenas dos seus homens tinham-se juntado na fuga aos feridos, às mulheres e às crianças que
se dirigiam para a encosta mais distante da colina,
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tentando escapar ao avanço das legiões. Cato observou-os com alguma pena. Tudo o que iam encontrar por lá era o cordão de tropas auxiliares que tinham sido colocadas
naquela posição justamente para lhes cortar a retirada. A tempestade que se desencadeava poderia fornecer a alguns a cobertura necessária a uma fuga com sucesso,
mas a maior parte seria feita prisioneira e reduzida à condição de espólio de guerra, e condenada à escravidão.
Assim que as duas primeiras coortes atravessaram a brecha e formaram do outro lado, o legado deu ordens para avançar e os legionários progrediram ao ritmo marcado
pelos seus optios. Os grandes escudos retangulares, manchados de lama, apresentaram-se ao inimigo, enquanto as pontas das espadas curtas se mostravam nos espaços
entre eles. Os homens espreitavam sobre as orlas dos escudos, expondo apenas uma pequena fração dos rostos enquanto marchavam pelo declive, aproximando-se dos adversários.
Cato e os seus homens cobriam o flanco exposto à medida que a formação romana progredia ao longo da face interior da barricada nativa.
Apenas um punhado de guerreiros enlouquecidos pelo combate se atreviam a opor-se ao avanço romano, brandindo espadas, lanças e machados com maior fúria do que engenho,
pelo que depressa eram abatidos e pisoteados na lama pelos legionários que avançavam como uma onda imparável. Carátaco continuava a destacar-se à frente dos seus
homens, pedindo-lhes que se mantivessem firmes, mas até ele acabou por ter de recuar para evitar a morte imediata ou a captura. Lançando um derradeiro olhar de angústia,
o rei celta fez o cavalo rodar e abriu caminho por entre as linhas dos seus homens, até ao centro do terreno que ainda ocupavam.
As escuras nuvens tinham-se aglomerado e ocupavam agora todo o céu, e uma penumbra sinistra e pesada descera sobre a paisagem montanhosa; a chuva caía de forma incessante,
e o vento crescia de intensidade, com revoadas que ululavam ao percorrer a encosta e enregelavam Cato até ao tutano. O receio que sentira quanto ao destino do exército
romano tinha-se desvanecido. Carátaco apostara em travar uma batalha em forma, e tinha perdido a aposta. Cato via as forças inimigas à sua frente como que a derreter;
de súbito, uma nova desordem surgiu entre eles, à distância, e o brilho de capacetes revelou que os romanos tinham conseguido forçar a passagem noutro ponto da barricada,
rodeando
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ou atravessando o outro flanco das defesas inimigas, que agora se viam presas num torno de aço.
Do ponto que ocupava na crista, e lhe dava uma privilegiada visão de conjunto, Cato avistava o centro do que restava da linha de combate inimiga. Um grupo de homens
de armadura e capacete, com capas de padrões axadrezados, mantinha-se ainda em formação, a curta distância da barricada. Sobre eles esvoaçava o pavilhão de Carátaco,
a ondular furiosamente ao vento. Havia talvez uns trezentos guerreiros no que devia constituir a sua guarda pessoal. Não chegavam nem de perto para retomar o controlo
da situação, calculou Cato. E de facto a formação não se mostrava empenhada em confrontar os romanos, antes começando a recuar pelo declive acima, na direção do
acampamento nativo, afastando sem qualquer cerimónia os guerreiros que lhes prejudicavam a progressão. No meio deles seguia Carátaco e um pequeno grupo de cavaleiros,
um dos quais transportava o estandarte, mantendo-o firme e bem ao alto.
Ao verem o comandante a retirar, os últimos homens que ainda guarneciam a barricada abandonaram as suas posições e juntaram-se à fuga generalizada. Depressa o terreno
entre as duas formações romanas que convergiam sobre o centro ficou vazio, pelo que Quintato ordenou aos seus homens que avançassem de imediato contra a guarda do
general inimigo, de forma a vibrarem o golpe final e selarem de vez a conquista da nova província.
Então, quando os guardas de Carátaco chegaram ao cimo da encosta, Cato avistou três cavaleiros que se destacavam da formação e galopavam na direção das tendas implantadas
no centro do acampamento. O estandarte mantinha-se a flutuar sobre os homens que tinham parado e se preparavam para enfrentar os romanos, que convergiam sobre eles
de todos os lados. Para Cato, o estratagema era evidente. Os três homens deviam ser Carátaco e os seus seguidores mais próximos, determinados a escapar à derrota
anunciada e a manter viva a luta contra o invasor. Mais uma vez se deparou com um dilema. Se os perseguisse, estaria a ignorar as ordens recebidas e a deixar desguarnecido
o flanco de Quintato. Mas, também mais uma vez, sabia perfeitamente o que tinha a fazer.
- Corvos Sangrentos! Sigam-me!
Incitou o cavalo, acelerando a caminho do coração do acampamento inimigo. Os seus homens seguiram-no sem hesitar, espalhando-se no
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terreno enquanto seguiam atrás do prefeito. Cato apercebeu-se de que Carátaco e os seus companheiros tinham aproveitado bem o avanço de que dispunham, e que chegariam
antes deles junto das tendas. Nada podia ser feito quanto a isso, mas ainda havia a possibilidade de se verem atrasados enquanto procuravam o que quer que fosse
que buscavam por ali, e isso permitiria a Cato e aos seus homens alcançá-los. O planalto estava ainda repleto de vultos encharcados que nada mais tinham em mente
que não fosse a fuga para salvar a vida. Ao ouvirem a aproximação dos cavaleiros que exibiam o aterrador estandarte dos Corvos Sangrentos, apressavam-se a sair do
caminho dos romanos. Alguns, já feridos ou demasiado cansados, não conseguiam afastar-se, e acabavam derrubados e espezinhados no chão lamacento.
Apesar da visão dificultada pela ininterrupta cortina de chuva, Cato deu-se ainda assim conta de que os três cavaleiros inimigos tinham chegado junto das tendas.
Um deles deslizou da sela e entrou numa delas, a não mais de duzentos passos dali. Cato debruçou-se na sela e bateu com a folha da espada no flanco do cavalo, decidido
a extrair da montada exausta até à última gota de esforço. A saliva do animal saltava-lhe do focinho e ia embater no rosto do prefeito enquanto se aproximavam das
tendas. Viu então o homem a sair, conduzindo um pequeno grupo de mulheres e crianças. Os outros cavaleiros debruçaram-se nas selas para os ajudar.
- Miro! - gritou Cato. - Pela esquerda. Corta-lhes o caminho!
- Sim, senhor! - veio a resposta imediata, e alguns dos cavaleiros destacaram-se, para impedir que Carátaco escapasse pelo flanco. Cato continuou à desfilada, apontando
diretamente para o grupo de tendas. Os cavaleiros inimigos levantaram os olhares, ansiosos, quando os romanos refrearam as montadas e os rodearam de espadas em riste,
prontos a lançarem-se sobre eles assim que o prefeito emitisse tal ordem.
O peito de Cato arfava, e ele tentava recuperar o fôlego. À sua frente, a não mais de vinte passos, reconheceu Carátaco. Ao seu lado, e segurando-lhe no braço, estava
uma mulher de aspeto sólido, de cabelo escuro. Esta segurava na outra mão a de um miúdo, talvez de uns dez anos de idade, calculou Cato. Atrás dela estavam duas
raparigas, adolescentes, com expressões de pavor nos rostos enquanto olhavam para os cavaleiros romanos que as cercavam. Carátaco pegou na espada e deu um passo
em frente, decidido a proteger a sua família. Os outros homens desceram
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das selas, de armas aperradas, prontos a enfrentar o inimigo uma última vez, ao lado do seu líder. Pelas feições tornava-se evidente que havia entre eles laços de
sangue. Irmãos, supôs Cato, enquanto fazia o cavalo avançar a passo e apontava a sua espada ao grupo.
- Carátaco, deponha as armas e renda-se!
- Vai-te foder, romano! - ripostou um dos irmãos, em latim. - Vem cá buscá-las, se quiseres!
Cato encarou-os em silêncio, antes de baixar a espada e voltar a interpelá-los.
- Não têm fuga possível. Ou se rendem, ou morrem.
- Romano, ainda nos resta escolher o combate! - Carátaco levantou o queixo, num gesto de desafio. - Não nos conseguirás matar antes de fazermos de muitos dos teus
homens companheiros de viagem para o outro mundo.
- E o que será deles? - Cato apontou para a mulher e o miúdo.
Carátaco ergueu a outra mão, extraiu uma adaga do cinto e entregou-a nas mãos da mulher, gesto que foi acompanhado por uma rápida troca de palavras; o líder celta
voltou-se de novo para o preféito.
- Acabo de ordenar à minha mulher que mate os meus filhos e depois se suicide, assim que eu tombar. Os teus homens não terão oportunidade de violar as minhas filhas.
E o meu filho não crescerá como vosso escravo!
Cato embainhou rapidamente a espada e esticou a mão.
- Por todos os deuses que adoro, juro solenemente que a sua família não será molestada. Ninguém será maltratado, se se render.
- E quem és tu para nos oferecer tal garantia?
- Sou o vosso captor. O prefeito Cato, comandante da Segunda Trácia de Cavalaria.
- Prefeito Cato? - Carátaco franziu o sobrolho. - Conheço-te...
- Sim, senhor. Já nos encontrámos antes. Sou um homem de palavra, e é meu prisioneiro. Juro que nada de mal lhes acontecerá enquanto estiverem à minha guarda, ou
seja, até serem entregues à custódia do palácio imperial. Pela minha honra o garanto.
Carátaco fitou-o, numa clara agonia de indecisão, e Cato passou a pega do escudo pela crista da sela e desceu do cavalo. Avançou lentamente e deteve-se à frente
do comandante inimigo, à distância do comprimento de uma espada. Falou com gentileza.
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- Senhor, já se derramou sangue suficiente. O seu exército está derrotado. A sua guerra contra Roma está terminada. Tudo o que lhe resta é uma escolha, para si e
para a sua família, entre a vida e a morte.
Carátaco baixou ligeiramente a espada e olhou sobre o ombro para a sua esposa e filhos, antes de se virar de novo para Cato e cerrar os olhos enquanto dava uma ordem
aos irmãos. Estes fitaram-no com ar de reprovação e mantiveram as armas em posição, até que Carátaco se endireitou e repetiu a ordem com maior firmeza, já de olhos
abertos e bem fixos em Cato. Lançou a sua espada aos pés do prefeito. Os seus irmãos hesitaram mais um momento, até que o imitaram com amargura evidente; um deles
deixou-se cair para o solo e abraçou os joelhos com os braços, enquanto o outro se limitava a cruzar os braços musculosos e a olhar para Cato com uma mistura de
orgulho e desafio. Carátaco tinha-se virado para trás, lançando os braços sobre a esposa e deixando a cabeça pender sobre o ombro dela.
Cato deixou escapar um longo e profundo suspiro de alívio, antes de se virar para os mais próximos dos seus homens e fazer um gesto relativo às espadas.
- Peguem nisto. Os outros, formem um cordão de segurança em redor das tendas. Mantenham todos os inimigos à distância!
Voltou a dar atenção aos seus prisioneiros, encarando-os com emoções mistas. A guerra estava acabada, como afirmara. Não haveria mais perda de vidas, e a nova província
podia pela primeira vez conhecer a paz. Contudo, havia algo no ar de completo desespero e exaustão que Carátaco exibia e que não podia deixar de o afetar. E depois
havia o claro medo com que os seus filhos encaravam os homens que os tinham aprisionado. Cato baixou a cabeça, também ele subitamente consciente do cansaço que a
batalha lhe provocara. Atou as rédeas do cavalo a um poste de tenda e manteve-se a curta distância dos prisioneiros, enquanto à sua volta os restos do exército nativo,
agora desbaratado, fugiam por entre a chuva.
Senhor!
Ergueu de imediato a cabeça, já completamente alerta.
- O que há? - Dirigiu-se ao homem que tinha lançado o aviso.
- Há oficiais a aproximarem-se, senhor. Parece ser o general.
Cato preparou-se, respirando fundo para se acalmar, enquanto
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ordenava aos homens que abrissem caminho para o general e o seu séquito passarem. No instante seguinte, o estrondo dos cascos dos cavalos chegou-lhe aos ouvidos,
e depressa avistou um grupo numeroso de cavaleiros a acercarem-se pelo meio da chuva. Os capacetes ornamentados, as plumas ensopadas e as capas militares de cor
escarlate confirmaram a dedução do soldado que o avisara. Sentiu um nó frio nas entranhas perante a perspetiva de enfrentar o general e tentar justificar as suas
ações. Em redor das tendas, os últimos elementos inimigos abandonavam o planalto e havia pequenos grupos de legionários a varrer a área, à procura de sobreviventes
escondidos entre os mortos enquanto se entretinham a saquear os cadáveres.
O general Ostório refreou a montada e fê-la prosseguir a passo até junto de Cato, sem esconder a surpresa que sentia.
- Prefeito Cato? Que raio estás tu aqui a fazer? Disseram-me que tinhas desertado do teu posto. Uma ofensa capital, em face do inimigo, como bem sabes. O que significa
tudo isto?
Cato decidiu que seria demasiado complicado apresentar naquele momento um relatório completo. Isso podia esperar. Portanto, deu um passo ao lado e fez um gesto a
designar o abatido grupo de prisioneiros, sentado à chuva.
- General Ostório. É minha honra apresentar-lhe o rei Carátaco, a súa família, e dois dos seus irmãos.
O queixo de Ostório pendeu quando avistou o inimigo que lhe tinha dado tantos problemas ao longo dos muitos anos em que ocupara o generalato. Engoliu em seco e voltou
a olhar para Cato.
- Carátaco? - Os lábios abriram-se num princípio de sorriso que demonstrava todo o alívio sentido pelo comandante. - Por todos os deuses, isso quer dizer que acabou...
Por fim, esta maldita guerra terminou.
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Se o espetáculo de um exército derrotado era uma das mais lamentáveis visões na vida de um soldado profissional, por vezes assistir ao regresso de um exército vitorioso
não era muito diferente, refletiu Cato, enquanto regressavam ao campo. Ao longo de toda a tarde e princípio da noite, os exaustos soldados do exército romano foram
recolhendo ao acampamento, sempre castigados pela chuva forte. Muitos tinham sido designados para ajudar a procurar e recuperar os seus camaradas feridos que estavam
ainda espalhados pelo campo de batalha, e trazê-los para o acampamento, a gemer e chorar em agonia devido aos ferimentos recebidos. Outros tinham sido destacados
para guardar os prisioneiros. Centenas de nativos tinham sido capturados e trazidos da colina debaixo de apertada vigilância. Foram acorrentados no exterior do campo
e, quando se esgotaram as grilhetas, os que faltavam viram-se de mãos amarradas atrás das costas e de pés também ligados, de forma a apenas poderem dar pequenos
passos. Depois foram ali deixados, expostos aos elementos, a tremer de frio à chuva, e rodeados de guardas nada amistosos. Haveria ainda muitos outros, capturados
pelas unidades auxiliares que tinham sido enviadas para bloquear as rotas de fuga do inimigo. Alguns conseguiriam escapulir-se e regressar às suas aldeias, atordoados
perante a tremenda derrota que tinham acabado de sofrer, e muito pouco inclinados a voltar alguma vez a pegar em armas contra Roma.
Os homens da escolta das bagagens tinham estado entre os primeiros a receber ordens para voltar para a outra margem do rio. Os Corvos Sangrentos e os sobreviventes
das duas centúrias de Macro formaram uma coluna em redor dos seus prisioneiros e escoltaram-nos na descida da colina e no regresso ao campo. Os legionários que iam
passando pelo caminho paravam a observá-los e depois, à medida que se foi tornando conhecida
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a notícia da captura do comandante inimigo, começaram a vitoriar Cato e os seus homens, com tanto entusiasmo que abafavam o som constante da chuva. Cato sentiu a
chama quente do orgulho no coração e, ao contemplar os seus homens, apercebeu-se de que também eles o sentiam, e o deixavam expressar-se nas suas feições. Virou-se
e não conseguiu deixar de sorrir a Macro, que seguia a seu lado. Macro riu-se.
- Faz-te bem ouvir isto, hã, miúdo?
- Bem o merecemos.
- Bem o mereces. Assumiste um enorme risco ao agir por conta própria. Se as coisas tivessem corrido de outra forma...
Cato cerrou os lábios.
- Foi um risco, sim. Mas também a melhor coisa a fazer, nas circunstâncias.
Macro arregalou os olhos. A ideia de abandonar a posição a meio de uma batalha nunca lhe poderia ocorrer.
- Se o dizes.
- Pense bem. Se não tivéssemos agido, o mais provável era que as legiões continuassem a esbarrar nas defesas do inimigo, e a perder homens. O Carátaco só teria de
esperar o tempo suficiente para isso suceder, antes de lançar os seus guerreiros sobre os nossos rapazes, e os varrer por completo daquela colina. Caso em que o
campo acabaria por ser tomado, e nós teríamos sido massacrados, ao mesmo tempo que o resto do exército. E, nessas circunstâncias, só havia uma opção lógica a tomar,
fossem quais fossem os riscos envolvidos.
Macro soprou o ar das bochechas e suspirou.
- Detestaria ter de apostar contra ti, miúdo.
- O jogo só vale a pena quando todas as possibilidades são completamente avaliadas.
- Precisamente. Tiravas a piada toda à coisa.
Cato virou-se para ele com uma carantonha, mas reparou na expressão de zombaria no rosto do amigo e não evitou uma pequena gargalhada.
- Seja qual for o raciocínio, a Fortuna teve o seu papel, como de costume. O vau mais próximo podia ficar muito mais longe, o que nos teria atrasado tanto que já
não chegaríamos a tempo de fazer a diferença. O inimigo podia ter o flanco protegido... devia tê-lo feito, aliás. Teria bastado uma força mínima para nos deter,
pelo menos pelo tempo suficiente
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para alertar Carátaco. - Encolheu os ombros. - A verdade é que a batalha podia ter caído para qualquer dos lados, por um sem-número de razões. Tivemos sorte, e
triunfámos, mas essa não será a versão que vai ficar nos registos oficiais. O Ostório lá obteve a sua vitória, e quando ele estiver a celebrá-la em Roma, já toda
a gente estará convencida de que o desfecho era inevitável. Será isso que será dito pelos historiadores. Um bom general, ao comando de soldados profissionais, que
triunfou sobre bárbaros, valorosos, determinados, mas amadores. A seu tempo, diria eu, até nós mesmos haveremos de olhar para trás e achar que estava tudo resolvido
à partida.
- Em vez de lembrarmos o caos de merda e a carnificina que isto foi, não? - Macro soltou uma risada seca. - Talvez seja assim. Mas por agora, estou-me a cagar para
os historiadores. O que eu quero mesmo é uma bebida, qualquer coisa para trincar, tratar desta ferida e, depois, dormir. Mas sobretudo uma bebida.
- Isso vai ter de esperar. - O tom de Cato tornou-se sério. - Há muito trabalho ainda a fazer.
- Eu sei. - Macro manteve-se em silêncio por momentos, antes de esticar um polegar na direção da coluna de prisioneiros de ar andrajoso. Carátaco seguia à frente
dos seus agora desalentados seguidores, mas mantinha o ar altivo, a cabeça erguida enquanto caminhava com passos firmes. - O que queres que faça com o nosso bando
de foliões?
Cato obrigou a sua mente cansada a concentrar-se.
- Vai ser preciso pô-los em recintos fechados. Um separado para o Carátaco, bem longe dos outros. Quero-o isolado dos seus familiares, para o caso de ele ainda tentar
alguma surpresa.
Macro assentiu.
- E quero-os todos agrilhoados.
- Isso vai dar problemas. - Macro deu um estalo com a língua. - Não passam de prisioneiros, mas toda a gente pensa da mesma forma em todo o lado. Acham-se sempre
no direito de exigir um tratamento decente.
- E decente será o tratamento que receberão - retorquiu Cato com firmeza. - Serão bem tratados, mas é preciso que Carátaco se convença de que os seus dias como rei
já terminaram.
- O que é que achas que o Imperador vai fazer com ele? Será uma pena se o tratarem como fizeram com o Vercingetorix.
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- Sim, isso seria uma pena - concordou Cato, recordando o triste fim do líder gaulês, que fora derrotado por Júlio César. Tinha sido deixado a apodrecer numa cela
escura durante vários anos, até que o tinham arrastado de lá para fora e estrangulado, quando César se apresentara para celebrar o triunfo sobre os gauleses. Um
fim pouco adequado para um inimigo de tamanha nobreza e capacidade, e Cato quase se arrepiou ao pensar que também Carátaco podia vir a ter um fim semelhante. Apesar
de o rei britânico ter prolongado o conflito de uma forma que acabara por custar demasiadas vidas, fizera-o devido à sua vontade de resistir aos invasores romanos,
mesmo que em primeiro lugar tal vontade fosse a de afirmar a primazia da sua própria tribo. Poucos homens, celtas ou romanos, teriam conseguido tanto com as forças
que ele tinha tido ao seu dispor. Na opinião de Cato, a vida do inimigo devia ser poupada, e devia ser-lhe proporcionado um exílio confortável com a família. Mas
a decisão não lhe cabia de todo. O Imperador Cláudio determinaria a sorte daquele inimigo de Roma, e fá-lo-ia tendo em atenção, antes de mais, aquilo que mais agradaria
à turba romana. Cato afastou da mente os pensamentos sobre o destino do prisioneiro.
- Nada a fazer quanto a isso. Aquilo com que devemos preocupar-nos é assegurar que eles não escapam, e que não se suicidam.
- Achas que algum deles o fará?
- Não faço ideia. Mas não quero correr esse risco. Terão de ser mantidos sob vigilância a todo o momento, percebido?
- Sim, senhor. Tratarei disso.
Quando a pequena coluna regressou ao campo, a tempestade estava a abater-se em pleno sobre a paisagem montanhosa. A chuva escorria das escuras nuvens em torrentes,
transformando o terreno no interior das muralhas num pântano lamacento e criando grandes charcos que refulgiam com os salpicos constantes. O vento crescera e assobiava
sobre a paliçada, como se fosse uma fera gigantesca e assanhada, fazendo dançar as tendas alinhadas e testando as espias que as seguravam. Algumas já tinham ruído,
e amontoavam-se em pilhas ensopadas.
Cato dispensou a maior parte dos homens. Os Corvos Sangrentos levaram os cavalos encharcados para os alimentar e verificar se tinham feridas. Os legionários destroçaram
e apressaram-se a ir verificar o estado das suas tendas. Cato reteve Macro e os seus homens para construir dois recintos para os prisioneiros.
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- Volto assim que acabar de escrever o relatório - avisou Cato, e afastou-se a caminho da sua tenda, deixando Macro a tomar conta das operações.
O recinto de maiores dimensões, destinado a aprisionar os irmãos de Carátaco e o resto da sua família, foi erigido no espaço entre as tendas dos Corvos Sangrentos
e as dos legionários. O segundo, muito mais pequeno, destinava-se a albergar apenas o próprio Carátaco, e foi colocado a curta distância da tenda de comando do prefeito.
A noite já tinha tombado quando foram terminados e os prisioneiros conduzidos para o interior. Lá dentro, apesar dos seus veementes protestos, foram agrilhoados,
e as correntes presas a um poste maciço profundamente cravado no solo, no centro de cada um dos recintos. Macro assegurou-se pessoalmente de que as correntes estavam
todas bem presas.
Quando o trabalho terminou, mandou avisar Cato e o prefeito deixou a sua tenda para conduzir uma rápida inspeção do trabalho, e declarar-se satisfeito. Quando se
virava para deixar o maior dos recintos prisionais, o olhar pousou-lhe nas crianças agrupadas num abraço temeroso à mãe. Até elas tinham sido agrilhoadas, e ali
estavam, agachadas, de olhos esbugalhados de terror, os membros a tremer de frio e medo. Era uma visão sinistra, e apesar de ter anteriormente resolvido não conceder
aos seus prisioneiros mais especiais qualquer forma de tratamento preferencial, sentiu-se comovido pela cena.
- Macro, mande construir um abrigo para os miúdos. Nada de especial, só um telheiro simples, para os manter abrigados da chuva.
Macro olhou para ele, surpreso, mas consciente de que naquela matéria não valia a pena questionar o seu amigo e superior hierárquico.
- Sim, senhor. Há algumas tendas a mais nos vagões. Não é grande coisa, mas terá de servir.
- Ótimo. - Cato afastou o olhar das crianças e deixou o recinto através do portão estreito que fora colocado num dos lados. Virou-se para os dois legionários que
tinham sido encarregues do primeiro turno de vigilância.
- Vigiem-nos com atenção. Nada de mal lhes deve acontecer, seja pelo que for. Mesmo que tentem escapar. Entendido?
- Sim, senhor.
Cato prosseguiu, a caminho da sua tenda e do outro recinto. Deteve-se junto às tábuas rústicas do portão. Dois legionários encorpados
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estavam de guarda. Cato acenou na sua direção quando Macro se aproximou.
- E estes? São homens capazes?
- Os melhores. Escolhi-os eu mesmo. Rijos e confiáveis, garantidamente. Serão substituídos à meia-noite por outros dois veteranos dos meus. Chegam e sobram para
Carátaco, se ele tentar algum truque.
Cato assentiu, satisfeito, antes de alterar o rumo da conversa para um tópico pouco agradável mas necessário.
- Macro, preciso dos relatórios de efetivos das duas unidades, o mais depressa possível.
- Sim, senhor - retorquiu o centurião. - E os números das baixas. Vou tratar disso. E de tudo o mais que for preciso. Precisas de descansar. Estás com um ar gasto.
- Estou fino. - Cato sorriu, fatigado. - Além disso, com esta tempestade a cair-nos em cima, duvido que o sono venha com facilidade.
Trocaram uma saudação formal antes de Macro se virar e se dirigir à sua tenda, para dar início à macabra tarefa de descobrir o destino dos homens que tinham entrado
em combate durante o dia. Cato tinha feito uma contagem rápida após o fim da refrega, e concluíra que cerca de dois terços dos seus homens tinham sobrevivido. Haveria
mais alguns a juntarem-se ao grupo durante a noite - os feridos cujas mazelas estavam a ser tratadas naquele momento. Alguns teriam sofrido ferimentos sérios e teriam
sido levados do campo de batalha diretamente para as tendas dos médicos das legiões. Desses, um certo número recuperaria e regressaria às suas unidades, exibindo
com orgulho as suas novas cicatrizes. Para outros, porém, a carreira militar estaria terminada. Acabariam por ser dispensados, com aquilo que tivessem conseguido
poupar, o seu quinhão do espólio e um pequeno bónus vindo dos cofres imperiais, para os ajudar a sobreviver. Não havia muitos trabalhos disponíveis para homens que
a guerra tornara inválidos e, a menos que tivessem uma família que os acolhesse, a vida que os esperava era muito pouco apetecível. Pouca mais sorte tinham do que
aqueles que pereciam em resultado das suas feridas, considerou Cato.
Tinha havido ocasiões em que ele próprio fora torturado por visões dele mesmo numa situação semelhante. Um homem quebrado, a tentar suster uma existência precária
nas ruas de Roma ou de alguma cidade da província. Depois do casamento com Júlia, os riscos tinham aumentado
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grandemente. Seria ela capaz de aceitar um marido mutilado na guerra? E mesmo que ela não o abandonasse, Cato temia um destino bem pior
- viver com a piedade dela como constante companhia. Uma piedade que o seu filho um dia compartilharia. E isso ser-lhe-ia impossível de suportar. Seria melhor, nessas
circunstâncias, acabar com a própria vida. As possibilidades de se ver a enfrentar um destino tão atroz tinham porém diminuído consideravelmente, recordou-se. A
vitória alcançada naquele mesmo dia ia por certo acabar com a maior ameaça que pendia sobre a nova província. Sem a presença de Carátaco para unir as tribos, a resistência
a Roma ia certamente desmoronar-se.
Respirou fundo, e acenou a um dos legionários que estavam de guarda ao recinto mais pequeno.
- Abre a porta.
O homem obedeceu à ordem e deu um passo ao lado para permitir a passagem ao oficial. Cato entrou. O recinto tinha cerca de dois metros e meio de lado, e os postes
aguçados que constituíam as paredes erguiam-se acima da cabeça de um homem. Cato anuiu para si mesmo, aprovando de novo a construção. Havia poucas hipóteses de fuga,
sobretudo porque o prisioneiro estava acorrentado de pés e mãos. Carátaco estava sentado no centro da sua prisão, de costas apoiadas no poste a que estavam presas
as correntes. Ergueu a cabeça quando notou a presença de alguém, e olhou com ar de desafio para Cato, esquecido da chuva.
- Dei ordens para que fossem montados abrigos, para si e para os outros - informou Cato.
As suas palavras não mereceram resposta. Nem sinal de gratidão. Apenas o olhar fixo de um inimigo determinado.
- Daqui a pouco trar-lhe-ão comida. Para lá disso, precisa de alguma coisa? - Cato designou a túnica que o bretão usava, ensopada e manchada de lama. - Roupas limpas,
por exemplo? Tenho túnicas e capas que pode usar.
Carátaco hesitou, mas acabou por abanar a cabeça.
- Não. A menos que haja túnicas e capas secas suficientes para todos os meus homens que estão em teu poder.
Cato sorriu, num lamento.
- Infelizmente, tal não é o caso.
- O que vai suceder-lhes? Tornar-se-ão escravos? Ou serão executados?
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- São demasiado valiosos para serem executados. Serão vendidos para a escravatura.
Carátaco suspirou.
- Seria preferível serem executados. A escravidão não é vida, romano. Muito menos vida para um guerreiro celta.
Cato encolheu os ombros, sem saber como responder. Tinha estado perto da morte vezes suficientes para dar à vida um valor tão importante como aquele que um homem
a afogar-se num mar tempestuoso lhe dá, e que o leva a tentar ferozmente agarrar-se a qualquer coisa que flutue. O que não impedia que a escravidão fosse para muitos
uma verdadeira morte em vida. Alguns eram bem tratados pelos seus donos, mas a maior parte era vista como não mais do que uma possessão, uma ferramenta viva ao dispor
do seu proprietário. E imaginava facilmente o sentimento de vergonha que tal tratamento despertaria nos orgulhosos guerreiros que tinham seguido Carátaco.
- Nada posso dizer quanto à escravatura. Tudo o que sei é que os seus seguidores viverão. Ao contrário das dezenas de milhares que já morreram ao longo da guerra
que travou contra Roma.
Carátaco agitou-se e os seus olhos rebrilharam de fúria.
- A guerra que eu travei? Eu estava a defender a minha casa. Foram vocês que invadiram as minhas terras. O sangue que foi derramado está todo nas vossas mãos, romano.
- As suas terras? - ripostou Cato, irritado. - As mesmas terras que tomou quando conquistou os trinovantes e desencadeou a guerra contra os atrébates e os cantios?
Despojos de guerra, rei Carátaco. Tal como essas terras são agora os nossos despojos. A diferença é que Roma trará paz e prosperidade a toda a província.
- Paz? - Carátaco cuspiu a palavra. - Transformam as nossas povoações, as nossas cidades, em cenários de desolação, e semeiam as ruínas com os cadáveres do nosso
povo, e atrevem-se a chamar a isso paz? O vosso Império não é já suficientemente vasto, precisam ainda de se alimentar do sangue e das terras desta nossa ilha? Não
poderiam antes ter enveredado pelo caminho do comércio para obter a nossa prata? As nossas peles? Os nossos cães? Não poderiam ter negociado connosco uma aliança
séria? Porque é que Roma tem de tratar o mundo como um dono trata os seus cães? Porque é que todos temos de nos transformar em vossos escravos? Ou perecer, se recusarmos
tamanha humilhação?
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Cato encolheu-se mentalmente perante as acusações de que estava a ser alvo. Sabia perfeitamente qual a verdadeira razão por trás da invasão: Cláudio sentira necessidade
de obter um triunfo militar por razões políticas, e a conquista da Britânia tinha parecido na altura uma solução rápida e disponível. Cato inspirou o ar húmido.
- Não sou responsável por essas políticas. Sou um soldado. Cumpro ordens. Sugiro que coloque essas questões ao Imperador, quando tiver essa oportunidade. Por agora,
se mudar de ideias quanto às roupas secas, avise os guardas.
Cato virou-se e passou pela porta. Estava prestes a ordenar ao guarda que a fechasse quando viu dois vultos a aproximarem-se no meio da cortina de chuva. Um deles
envergava a armadura de um oficial romano. O outro era uma mulher, tentando escolher o sítio para pôr os pés de forma a evitar, na medida do possível, que as suas
vestes ficassem imundas com a lama.
- Prefeito Cato!
Reconheceu a voz de Otho e soltou uma imprecação silenciosa. Havia assuntos de que tinha de tratar, e o mesmo se aplicava aliás ao tribuno. Ainda assim, ao que parecia,
este tinha arranjado tempo para levar a mulher num passeio pelo campo, debaixo de chuva. Limpou a garganta e respondeu ao apelo:
- Tribuno. O que posso fazer por si?
O jovem oficial e a sua esposa apressaram-se a juntar-se a ele, e Cato reparou de imediato na expressão excitada no rosto do homem. A esposa, porém, estava bem menos
entusiasmada, recolhida nas dobras do capuz que lhe cobria a cabeça. A chuva já tinha começado a ensopar o tecido e os caracóis de cabelo que lhe escorriam pela
testa já estavam molhados. Otho aproximou-se e pegou na mão de Cato.
- Antes de mais, quero dar os parabéns ao herói do dia. O homem que venceu a batalha e capturou Carátaco.
- Hmmm - resmungou Cato num som gutural, francamente irritado perante os elogios exagerados. Exagerados e perigosos. A última coisa de que precisava era de ser visto
como um concorrente do general Ostório no que dizia respeito ao crédito pela vitória. Ostório tinha poderosas relações em Roma, e Cato só dispunha do seu sogro,
um senador de pouca monta, e de Narciso, conselheiro imperial que lutava para reter alguma influência junto do Imperador. Era muito pouco aconselhável arranjar inimigos
desnecessariamente.
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Mas Otho ignorou o desconforto do prefeito, e prosseguiu.
- Merece um triunfo só seu, meu caro prefeito! Fantástico trabalho. Pompeu, o Grande, não seria capaz de fazer melhor. O que achas, meu amor?
Virou-se, radiante, para a mulher. Popeia forçou um sorriso e olhou desolada para a bainha do vestido, completamente enlameada.
- Sim, claro... Fantástico.
- Eu, hã, estava apenas a cumprir o meu dever - murmurou Cato, enquanto fazia uma careta para dentro, perante as palavras pouco inspiradas que proferira.
- Cato, foi um trabalho digno de um herói - continuou Otho, dando uma palmada na perna com a mão. Então espreitou para lá de Cato e baixou a voz. - O animal está
bem preso?
- Se está a referir-se ao rei Carátaco, a resposta é sim.
- Oh, fabuloso! Temos de o ver.
Cato franziu o cenho.
- Vê-lo? Porquê?
Otho espantou-se.
- Porquê? Porque aquele é o bárbaro que se atreveu a desafiar o Império. É o bárbaro que levámos quase dez anos a subjugar. Quando a minha esposa regressar a Roma,
poderá afirmar que o viu no preciso dia em que as nossas legiões o obrigaram a baixar a crista. Será a inveja de toda a sociedade romana. Não é assim, Popeia?
- Sim - respondeu ela de forma abrupta, enquanto fixava um olhar severo em Cato. - Portanto, vamos lá despachar isto, para poder voltar para os aposentos do meu
marido e trocar de roupa, antes que estes trapos encharcados me levem à morte.
Cato abanou a cabeça.
- O meu prisioneiro está a repousar. Sugiro que regressem pela manhã, depois de a tempestade passar; nessa altura, terão todo o tempo que quiserem para o observar.
Foi a vez de Otho franzir o sobrolho.
- Prefeito, vamos lá, isso não é nada cordial. Tivemos de atravessar este lamaçal em que o campo se transformou para chegar aqui, e agora diz-nos que não podemos
ver o maldito sujeito?
Demasiado fatigado para argumentar, e disposto a tudo para se ver livre do par de aristocratas, Cato rangeu os dentes e cedeu.
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- Muito bem. Mas depressa. Abre a porta.
O legionário fez deslizar o ferrolho e escancarou a porta para os dois novos visitantes entrarem. O tribuno adiantou-se com toda a cautela e encostou-se à parede
para dar espaço à esposa. Cato observou da entrada, pouco satisfeito por ver Carátaco exposto daquela forma, como se fosse uma fera exótica.
Popeia contemplou o diminuto recinto antes de se fixar no homem acorrentado àoposte.
- Não tem lá muito a aparência de um rei - comentou, com evidente desprezo. - Dá-me mais a ideia de ser um pedinte maltrapilho, apanhado à beira da estrada.
O seu jovem esposo mantinha-se de olhos fixos no prisioneiro, com uma expressão assoberbada, enquanto a mulher continuava:
- Mal posso crer que este... este animal foi a causa de tantos problemas. - Popeia debruçou-se ligeiramente, e torceu o nariz. - Quer dizer, francamente.
Carátaco mantinha o olhar fixo em frente, aparentemente impermeável aos comentários que ouvia. Então, de repente, lançou-se para a frente, esticando as correntes
e soltando um urro, enquanto o rosto assumia uma contorcida expressão selvática. Popeia soltou um grito estridente e recuou até quase cair de encontro aos postes
da parede. O marido estremeceu e levou a mão à espada, enquanto a mulher se esgueirava pela porta fora. Otho apressou-se a segui-la. Carátaco continuou a dar largas
à fúria, fazendo as correntes chocar enquanto tentava agitar os punhos.
- O sacana é mesmo um selvagem! - exclamou Otho enquanto largava a espada e punha o braço em redor da esposa, para a confortar.
- Mesmo bravio. Bom, prefeito, hã, quero agradecer-lhe. E, mais uma vez, excelente trabalho. E agora, minha querida, é tempo de ires mudar para uma coisa quente
e seca. Vamos.
Viraram-se e afastaram-se velozmente, a caminho do centro do campo, perseguidos por mais alguns profundos gritos e maldições de Carátaco. Só então ele se acalmou;
cruzou o olhar com Cato, e desatou às gargalhadas.
- Ao que parece, não serei o único a precisar de roupas limpas.
Cato sorriu, no que foi imitado pelos legionários que flanqueavam
a entrada, até que o seu superior olhou para eles com severidade e os homens se recompuseram e adotaram as expressões imperturbáveis de
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sentinelas de serviço. O riso de Carátaco amainou, mas ainda havia uma sombra de sorriso no rosto do cativo quando ele voltou a olhar para Cato.
- Prefeito Cato, acho que afinal vou aceitar a tua oferta de uma muda de roupa seca.
- Mandarei o meu criado trazer-lha.
Os olhos dos dois homens voltaram a encontrar-se, antes de Cato fazer uma confissão.
- Uma pena que o destino tenha feito de nós inimigos. Teria considerado uma honra poder combater ao seu lado.
Um faiscar de surpresa atravessou o rosto do rei celta.
- Podes pensar assim, prefeito Cato. Mas nunca poderíamos ter sido outra coisa que não inimigos. Sei-o agora, para lá de todas as dúvidas. E se acreditas que, estando
as nossas posições invertidas, eu estaria nesta altura a oferecer-te o conforto de umas roupas secas, estás muito enganado. Ter-te-ia cortado a cabeça e tê-la-ia
colocado ao cimo do meu estandarte.
Qualquer ar caloroso que tivesse estado presente no momento anterior se tinha dissipado, e os olhos de Carátaco apenas refletiam um imenso azedume. Cato virou-se
para os guardas e acenou. A porta foi fechada e trancada de novo.
- Depois de o Thraxis lhe vir trazer uma túnica e uma capa secas, ninguém mais o poderá importunar. Se alguém vier fazer alguma visita, digam-lhe que têm, em primeiro
lugar, de pedir licença ao general. Percebido?
Os dois homens anuíram e Cato dirigiu-se à sua tenda, calcorreando o lamaçal. Sentia-se completamente exaurido e só lhe apetecia tirar a armadura e beber um vinho
quente preparado por Thraxis. Afastou as abas de couro da entrada da tenda e mergulhou no interior, antes de estacar ao avistar a figura sentada à sua secretária,
a aquecer as mãos ao braseiro.
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- Boa-noite, prefeito Cato. - Sétimo sorriu, sem se dar ao trabalho de se levantar. Teve de falar num tom elevado para se fazer ouvir sobre o martelar ininterrupto
da chuva no teto da tenda.
- O que estás aqui a fazer? - indagou Cato. - Onde anda o Thraxis?
- A esta altura, calculo que já bem bebido. Chamei-o e disse-lhe que podia escolher uma ânfora de vinho, como prenda minha para si, em honra do feito heroico que
concretizou hoje. Deixei-o ao cuidado atencioso de uma das senhoras de fácil virtude do campo, com instruções para se assegurar de que ele passava um bom bocado,
fosse de que forma fosse, o suficiente para eu ter consigo esta pequena conversa.
- Já estou mais do que farto de conversas sobre feitos heroicos, porra - anunciou Cato com azedume, enquanto se espreguiçava e empertigava, antes de abrir os fechos
que lhe prendiam a capa. Atirou o manto ensopado para cima de uma arca e começou a tirar a cota de malha que lhe cobria os ombros.
- Devia assumir o mérito da ação. - Sétimo sorriu. - Não faz mal nenhum cuidar de uma reputação.
- Fiz o que fiz para salvar este exército. A captura de Carátaco foi apenas um golpe de sorte.
- Prefeito, nunca desdenhe da sorte. Ao que me diz a experiência, é a mais importante qualidade de um soldado de sucesso. Os deuses favorecem alguns de nós com uma
boa dose de Fortuna. O jeito e a inteligência vêm muito depois.
Cato arqueou uma sobrancelha.
- É a tua opinião. Prefiro pensar que sou eu quem faz a maior parte da minha sorte, sejam quais forem a vontade e os caprichos dos deuses .
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- Uma visão ímpia.
Cato respirou fundo, agarrou na ponta da cota de malha e começou a despi-la. Por fim, lá conseguiu fazer passar sobre a cabeça a pesada massa de elos metálicos,
e depositou-a sobre a arca ao pé da capa, antes de se voltar de novo para o agente imperial.
- Bom, então, porque é que aqui estás? E agradecia que te levantasses da minha cadeira.
Sétimo encolheu os ombros, levantou-se e rodeou a mesa, para tomar assento num dos bancos desdobráveis. Cato foi sentar-se no seu lugar, e deitou uma olhadela ao
jarro que se via sobre a mesa. Foi bafejado com um reflexo escuro de vinho no fundo, e encheu uma taça antes de voltar a dar atenção ao visitante indesejado.
- Então?
- Agradeço-lhe, mas já tive ocasião de me dessedentar. - Sétimo sorriu. - Quanto à minha presença, a verdade é que vim mesmo felicitá-lo pelo excelente trabalho
feito hoje.
Cato ergueu levemente a taça, fingindo um brinde que não desejava fazer, e bebeu um trago.
- Bom, agora que já pusemos isso de lado - prosseguiu Sétimo,
- é tempo de voltarmos a avaliar a situação, à luz dos desenvolvimentos ocorridos hoje mesmo.
- E agora, quem é que está a desvalorizar a nossa vitória? Não mudou tudo? Batemos o Carátaco e desbaratámos o seu exército. A campanha está terminada. Tenho a certeza
que nenhuma outra tribo se atreverá a pegar em armas contra nós, nem mesmo os brigantes.
- Quem me dera partilhar dessa confiança toda. Com o Carátaco fora de cena, temos de nos haver com o Pallas e os seus esquemas. Ainda anda por aí um agente ao seu
serviço, e até que as notícias desta vitória cheguem aos ouvidos do próprio Pallas, as ordens que ele deu estarão em vigor. E mesmo nessa altura ele pode decidir
que os interesses da sua fação se sobrepõem à possibilidade de concluir a conquista da Britânia. E quanto a mim, também tenho ordens para cumprir. Tenho de encontrar
e eliminar esse agente, antes que provoque algum problema sério. - Sétimo fez uma pausa e inclinou-se para a frente, descansando os cotovelos sobre os joelhos. -
E não nos esqueçamos de que vocês continuam em perigo. Tanto o prefeito como o Macro.
- Não me esqueci disso.
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- Folgo muito em ouvi-lo. É o género de oficial que o Império não deve perder. Como demonstrou de forma tão singular hoje mesmo.
Cato pousou a taça.
- Já acabaste?
- Por agora, sim. Queria apenas saber se está claro que a minha missão não está concluída.
- Percebi - ripostou Cato, irritado. - E agora, se é tudo, agradecia que me deixasses sozinho. Tenho trabalho a fazer.
Sétimo manteve-se imóvel por momentos e depois ergueu-se.
- Muito bem, prefeito. Vou manter-me à distância por uns tempos. Se souber alguma coisa, informá-lo-ei. Sabe onde me pode encontrar. - Baixou a cabeça e esgueirou-se
para o exterior da tenda.
Cato passou a mão sobre os cabelos e fechou os olhos doridos. As palavras de Sétimo continuavam a ecoar-lhe na mente, e ele contemplou com desânimo a possibilidade
de perder a Britânia em consequência do conflito político que se desenrolava em Roma, em pleno palácio imperial. Tantas vidas, tanta riqueza e dez anos tinham sido
investidos numa tentativa de estabelecer uma nova província. A ideia de ver tudo aquilo ser desperdiçado fazia-lhe o coração pesar como chumbo.
Por fim, voltou a abrir os olhos, endireitou as costas e fez estalar os ombros enquanto rolava o pescoço. Depois pegou num molho de tábuas enceradas empilhadas junto
à secretária, para começar a escrever o relatório, mas alguma coisa lhe despertou a atenção. Uma pequena bolsa de couro tinha ficado no chão, ao pé das tábuas. Cato
debruçou-se e pegou-lhe. Sentiu-a pesada com moedas e reparou que um dos fios que normalmente prendiam a bolsa a um cinto se tinha partido.
- Sétimo - comentou para si mesmo. Pesou a ideia de ir atrás do agente, mas nesse preciso momento uma rajada mais forte de vento soprou sobre a tenda, fazendo o
teto ondular e bater com força. - Bom, se ele a quiser, que venha cá buscá-la.
Colocou a bolsa na arca em que guardava os documentos, para garantir que ficava em segurança, pegou num estilete e começou a escrever o relatório. Apesar de ainda
nada lhe ter sido pedido, queria ter a certeza que deixava registadas as decisões que tomara e as suas consequências, enquanto tudo ainda estava bem fresco na memória.
Se viesse algum dia a ser interrogado e precisasse de justificar o facto de ter abandonado o campo sem ordens de Ostório, teria de explicar a necessidade daquela
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ação. Talvez a melhor ideia fosse mesmo escrever dois relatórios, considerou. Um para contentar Ostório no momento imediato, e que desse menor importância ao caos
e ao quase desastre a que o ataque frontal decidido pelo general os tinha conduzido. O segundo relato conteria toda a verdade, ou pelo menos a sua perspetiva dos
acontecimentos, e talvez outros oficiais viessem a confirmá-la, se alguma vez isso se tornasse necessário.
Sentiu-se quase envergonhado pela necessidade de pensar na sua própria proteção face a rivais ambiciosos. Mas não havia forma de o evitar. A promoção a um posto
de responsabilidade vinha acompanhada de um preço, e por momentos Cato sentiu alguma nostalgia por tempos passados, quando ser um soldado pouco mais significara
do que cumprir uma rotina quotidiana. Naquela altura da sua carreira, porém, tinha de estar sempre consciente do futuro e proteger-se das consequências de gestos
passados; sentiu que se estava a transformar em algo a meio caminho entre um político e um soldado.
Soltou uma imprecação entre dentes e dedicou-se ao trabalho; já tinha esboçado as duas versões quando ouviu as abas da tenda a afastarem-se pesadamente e ergueu
o olhar para avistar Macro a entrar, a escorrer água.
- Senhor, já tenho a contagem do efetivo da escolta do comboio das bagagens.
- Sente-se, não está cá mais ninguém. - Cato apontou para o banco que Sétimo usara, e indicou o jarro sobre a mesa. - Ainda há umas gotas. Se quiser.
Macro sorriu.
- Bem, não vou dizer que não.
Aceitou a taça que Cato lhe encheu e sentou-se, enquanto soltava um suspiro.
- Calculo que queiras primeiro o número de baixas.
Cato anuiu.
Macro pegou numa tábua que trazia no bornal e levantou-a, de forma a que a luz das chamas no braseiro a iluminasse.
- A Primeira Centúria sofreu o maior embate. Dezasseis mortos, vinte e três feridos, dos quais seis vão acabar por morrer, segundo o médico. Outros dois têm feridas
muito graves, provavelmente mortais também. Cinco terão de ser dispensados do exército quando recuperarem.
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Três têm apenas ferimentos ligeiros e deverão recuperar por completo. Os outros estão feridos, mas não precisam de ficar na enfermaria. A centúria do Crispo perdeu
sete e tem nove feridos, mas só um com seriedade. Os outros sofreram feridas superficiais. O que nos dá um efetivo corrente de vinte e um e quarenta e dois homens,
respetivamente.
- Macro abanou a cabeça. - Não chegam para completar uma única centúria. A Quarta Coorte da Décima Quarta Legião praticamente não existe.
Cato inspirou longamente. As baixas eram realmente pesadas.
- E quanto aos meus Corvos Sangrentos?
Macro consultou mais uma vez a sua tábua.
- Não foi muito mau. Doze mortos, catorze feridos. Sessenta e quatro ainda na sela.
- Perdemos tanta gente...
Macro bebeu um trago de vinho.
- Do que é que estavas à espera? O ataque ao flanco inimigo foi uma aposta desesperada. Pensa nisso de outra maneira: se não tivesses dado aquelas ordens, o mais
provável era que nenhum de nós estivesse vivo a esta hora.
- Talvez, mas agora já nem chegamos para proteger a caravana das bagagens.
- Protegê-las de quem? O inimigo foi praticamente riscado do mapa. Só temos de nos preocupar com a manutenção do sossego entre os seguidores civis. E isso só precisa
de uns homens para partir umas cabeças de tempos a tempos, quando há alguma confusão. Portanto, vamos safar-nos bem até chegarem os substitutos.
- Pergunto-me quanto tempo vão levar a chegar.
- Assim que for possível, depois de o general conduzir o exército até à base em Viroconium Cornoviorum, acho eu. Claro que serão uns verdadeiros maçaricos, mas eu
cá estarei para os pôr em forma. E o mesmo vale para a Segunda Trácia de Cavalaria, embora passem a ser trácios só de nome. Calculo que as fileiras vão ser preenchidas
com batavianos, ou coisa parecida. Bons cavaleiros, mas sem aquele aspeto selvagem. Bom, quem pede não pode exigir grande coisa. Teremos de aceitar o que nos derem,
como sucederá com as outras unidades. O general é que vai ter uma trabalheira para explicar as baixas que sofreu hoje. - Macro fez uma pausa, e olhou para o amigo
com ar de preocupação. - Miúdo,
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estás com ar de quem vai cair para o lado. Já fizemos tudo o que havia a fazer por agora. O melhor é descansares, deixar a tempestade passar e amanhã de manhã logo
se vê o que é que se pode arranjar.
Cato fez que sim com a cabeça.
- Bem pensado... Como estão os prisioneiros?
- Tudo bem. Os homens que os guardam são de confiança.
Subitamente, as abas da tenda abriram-se e um mensageiro do quartel-general entrou e fez a saudação formal a Cato.
- Senhor, o general Ostório envia os seus cumprimentos e solicita a sua presença, bem como a do centurião Macro, na tenda da messe.
- Oh? E ele disse porquê?
- Não, senhor. É tudo.
- Muito bem. Podes seguir.
O homem voltou a executar o cumprimento militar, e saiu. Cato lançou uma risada seca.
- E lá se foi o descanso.
O clamor das celebrações chegou aos ouvidos dos dois oficiais assim
que se aproximaram do centro do campo. Em seu redor, as tendas alinhadas dos legionários estendiam-se pela penumbra. Daí a pouco cairia a noite, mas não haveria
fogueiras a iluminá-la, devido à chuva e ao vento que continuavam a castigar as tendas de pele de cabra, fazendo-as estalar e ondular, como se fossem as velas de
navios, pensou Cato. Havia poucos soldados por ali, já que a maior parte estava abrigada da tempestade. Só os que estavam de serviço ou que iam ou vinham das latrinas
se atreviam a enfrentar o horrível tempo.
- Ao que parece, a bebida escorre livremente - notou Macro, acelerando o passo. - Espero que tenha sobrado alguma para nós.
Cato não respondeu. Tentava lembrar-se de alguma outra ocasião em que se tivesse sentido tão cansado, e tudo o que almejava naquele momento era uma noite decente
de sono. Embora tivesse posto uma capa limpa para aquela caminhada até ao quartel-general, a chuva já tinha começado a ensopar o tecido, vencendo a gordura com que
tinha sido impregnado para se tornar impermeável. Não conseguia evitar estremecer de frio, enquanto tentava acompanhar o passo do centurião. Não se sentia com disposição
para a bebida e para as celebrações, e
- Sim?
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lançou uma silenciosa maldição sobre Ostório, por os ter convocado para aquela festa.
As tendas onde estava instalado o quartel-general no centro do campo eram muito mais imponentes do que as dos legionários, e estavam bem presas ao chão com espias
duplas e estacas grossas, bem enterradas no solo. Ainda assim, batiam e estremeciam com o vendaval. A iluminação interior dava-lhes um ar brilhante e Cato, apesar
da sua pouca inclinação para a festa, descobriu que mal podia esperar para se aquecer junto a um braseiro.
Os guardas no exterior estavam encolhidos nas suas capas, mas não deixaram de se pôr em sentido e saudar os dois oficiais que passaram por eles e entraram na grande
tenda da messe. Foram de imediato engolidos por uma vaga quente e húmida naquele espaço repleto de oficiais. O ar estava pesado com o cheiro das roupas molhadas,
suor, fumo e vinho. Tiraram as capas e penduraram-nas sobre as inúmeras outras que já lá estavam, a fumegar, nos cabides à entrada, e dirigiram-se ao balcão, onde
um comerciante e o seu escravo lutavam para responder aos pedidos constantes para voltar a encher canecas e taças que vinham de uma verdadeira nuvem de oficiais.
Assim que foram reconhecidos, Cato e Macro receberam efusivos parabéns pela sua parte na batalha, e Cato tentou não se encolher enquanto recebia uma chusma de palmadas
nas costas e ombros. Obrigou-se a acenar em agradecimento, e a tentar sair dali. Em contraste, Macro estava como peixe na água, a colher os elogios dos seus camaradas
centuriões.
Chegaram por fim junto do balcão e foram encorajados a passar à frente da fila por camaradas de olhos já vidrados. Quando se afastavam, cada qual com a sua caneca
bem cheia, foram abordados pelo general Ostório. O rosto enrugado do idoso oficial era rasgado por um sorriso esplendoroso, que lhe punha à mostra os dentes manchados.
- Ah! Prefeito Cato. A razão por detrás desta grande celebração. - Colocou uma mão no ombro de Cato e os dedos ossudos apertaram-lhe a pele, apenas o suficiente
para provocar dor. Libertou-o logo, e virou-se para um dos tribunos subalternos que por ali passava. - Jovem, tu aí! Arranja uma coisa qualquer a que eu possa subir.
E despacha-te!
O jovem esgueirou-se para o meio da turba e regressou rapidamente com um rústico banco de madeira. Ostório trepou para ele com dificuldade e endireitou-se, de maneira
a ser visto por toda a gente.
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- Senhores! Peço a vossa atenção!
Os que estavam nas imediações obedeceram e interromperam as suas conversas, mas havia grupos embrenhados em cantorias e gargalhadas nas extremidades da tenda, que
não o tinham escutado. Ostório fez cara feia, inspirou profundamente e soltou um berro:
- Calados!
Quando por fim os últimos oficiais se calaram e se viraram para ele, instalou-se o silêncio na tenda, embora as paredes de pele de cabra estremecessem e estalassem,
e a chuva continuasse a martelar o teto e a penetrar por todas as pequenas frestas que encontrava. Ostório apontou para Cato, indicando-lhe que se colocasse ao seu
lado, antes de encetar o discurso.
- Senhores, camaradas, este foi um grandioso dia para nós, para os nossos homens, para o Imperador Cláudio e para Roma! Vitória! - Levantou o cálice, entornando
parte do conteúdo pela frente da túnica de Cato, enquanto os oficiais aclamavam. - Uma vitória que sela por fim a conquista da Britânia. O inimigo foi derrotado,
humilhado, e está lá fora, encolhido e agrilhoado, como nosso prisioneiro. O seu exército foi desbaratado, e milhares dos seus elementos serão vendidos como despojos
de guerra. Cada um dos homens aqui presentes, cada um dos membros das nossas legiões, receberá uma pequena fortuna como parte dos lucros!
Mais aclamações se seguiram, perante a perspetiva de uma chuva de moedas, e Macro deu um toque em Cato, sorrindo abertamente.
- Os rapazes das coortes auxiliares vão ficar lixados com esta. Como foram enviados para bloquear a retirada, não vão ter direito a qualquer quinhão dos prisioneiros
feitos no campo de batalha. Só dos fugitivos que tiverem apanhado. Mais fica para nós. - Riu-se, contente, pensando nos seus camaradas que iam receber bastante menos,
e seguindo assim a longa tradição de rivalidade entre as legiões e os soldados das coortes auxiliares.
O general ergueu uma mão para acalmar os oficiais, e a ovação foi diminuindo de intensidade. Adotou uma expressão mais séria, enquanto continuava a dirigir-se à
multidão.
- Uma vitória, sim, mas por alto preço. Hoje os homens lutaram como leões, enfrentando todas as flechas, pedras, metralha, que um inimigo cobarde lhes fez cair em
cima, da proteção das suas fortificações. Enfrentámo-lo, trepando a custo por uma encosta enlameada e fazendo-o
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dispersar como o joio ao vento. A sua derrota era inevitável. Mas custou-nos muita gente, e ter-nos-ia custado ainda mais se não fosse a atempada intervenção do
prefeito Cato, do centurião Macro e do seu diminuto grupo de heróis que atacou o flanco inimigo. Fez a diferença entre uma vitória difícil e um golpe decisivo. Por
isso, ergamos as nossas taças e brindemos. Cato e Macro! - Lançou um sorriso a Cato e levantou bem alto a taça, antes de beber uma boa porção de vinho.
- Cato e Macro! - repetiram os outros, e emborcaram por sua vez o vinho que tinham nas canecas.
Ostório desceu do banco com dificuldade.
- Tratarei de assegurar que vos será reconhecido todo o crédito pelo papel que desempenharam no combate no flanco. - O general sorriu. - Quem sabe? Até pode ser
que sejam convidados a ir a Roma, quando a minha vitória for celebrada.
- Obrigado, senhor - respondeu Cato, enquanto Macro se limitava a acenar. Depois o general virou-lhes as costas, e desapareceu no meio da turba; os oficiais regressaram
às suas conversas e gargalhadas, e o barulho voltou a aumentar de intensidade.
- Bem, isto foi estranhamente decente da parte dele - lançou Macro. - Qualquer um poderá pensar, pela maneira como ele pôs a coisa, que nos limitámos a ter um papel
menor numa escaramuça marginal. Convidados para o triunfo dele... Estes filhos da puta de aristocratas só pensam em arrebanhar toda a glória para si mesmos.
- Bem, do que é que estava à espera? Um passeio pela Via Sacra, numa biga só sua? Vá lá, Macro. As coisas são assim. Sempre serão assim. Não muda nada do que nós
sabemos que aconteceu. - Obrigou-se a sorrir e levantou a caneca. - Ao centurião Macro, o mais rijo combatente entre todos os oficiais da Décima Quarta, ou de qualquer
outra legião do Imperador.
O rosto de Macro abriu-se num sorriso etílico, e ele ergueu também a sua caneca.
- E ao prefeito Cato, o sacana mais esperto na porra deste exército todo.
Cato hesitou, e acabou por encolher os ombros.
- E porque não? Bebo a isso.
Fizeram entrechocar as canecas metálicas, esvaziaram-nas e dirigiram-se de imediato para o balcão, para as encherem de novo.
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Os festejos prolongaram-Se pela noite fora; havia oficiais a chegar ou
a sair, de acordo com os serviços que tinham a desempenhar. Cato não tentou acompanhar o ritmo a que o amigo despejava os copos e limitou-se a beber o suficiente
para se sentir alegre e poder assim juntar-se à euforia dos seus companheiros. Macro bebeu a sua conta e continuou, assumindo o seu habitual papel de bêbado alegre,
cantando a plenos pulmões em coro com os outros centuriões e percorrendo todo o reportório de canções de marcha. Alguns dos oficiais tinham já bebido demasiado,
e tinham-se deixado deslizar sobre bancos e mesas encostados à parede da tenda, onde ficavam adormecidos, a cozer os vapores do álcool. Um jovem tribuno debruçava-se
para a frente, com as mãos nos joelhos, e vomitava a alma mesmo à entrada da tenda.
Mais tarde, Cato reparou num pequeno grupo de mulheres na outra ponta da tenda, sentadas em redor de uma mesa. Esposas de oficiais. A maior parte envergava capas
simples, à exceção de Popeia, que tinha trocado de roupa depois de ter ido visitar o prisioneiro de Cato. O cabelo tinha sido seco, penteado e apanhado num carrapito
elegante. Enquanto ele a contemplava, ela virou-se e apanhou-lhe o olhar. Embaraçado, Cato quase sucumbiu à urgência de olhar para outro lado, mas notou o desafio
no olhar dela e resolveu que não lhe daria a satisfação de um triunfo fácil. Por fim ela sorriu levemente, ergueu a taça e dobrou o pescoço numa saudação. Cato acenou
em resposta e só então desviou o olhar, dirigindo-se para o balcão.
O negociante de vinhos suava em profusão e Cato aguardou pacientemente enquanto o homem recolhia o vasilhame vazio e saía da tenda para ir buscar mais ânforas de
vinho à carroça onde mantinha a mercadoria. Enquanto Cato se apoiava no balcão, batucando com os dedos na madeira, sentiu de repente um aroma doce a chegar-lhe às
narinas;
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virou-se e descobriu Popeia, mesmo ao seu lado. Endireitou-se de imediato e balbuciou uma saudação.
- Popeia Sabina.
- Prefeito Cato. - Ela sorriu de novo. Um sorriso muito atraente, considerou Cato. Fazia-lhe lembrar Júlia, e de imediato se arrependeu da lembrança.
- Ao que parece, o bom general não está muito convencido da contribuição que deste para aquilo que ele considera ser o seu sucesso.
Cato tentou focar os seus pensamentos. A bebida e o cansaço faziam uma combinação terrível, mas estava determinado a não cometer qualquer inconfidência com a esposa
do tribuno Otho.
- Ele deu-me, a mim e ao centurião Macro, todo o crédito que merecemos.
- Oh, vá lá. Não foi bem isso que ele fez. - Deu-lhe uma palmada amigável no peito. - O meu marido contou-me o que se passou naquela miserável colina, com todos
os detalhes. Salvaste o dia.
- Desempenhámos o nosso papel.
- Acho que fizeste bem mais do que isso. Porquê tanta modéstia? Não me vais dizer que não te irrita ver as tuas ações mencionadas em breves notas. Sabes muito bem
que, quando o Ostório apresentar o seu relatório ao Imperador, a tua influência no resultado deste combate terá sido reduzida a um mero detalhe.
Cato encarou-a. Ela era realmente bela, e na sua expressão facial refletia-se uma inteligência viva que lhe aumentava o encanto. Todavia, todo aquele à-vontade com
que ela se lhe dirigia deixava-o desconfortável, e não conseguia confiar nela. Também não confiava em si mesmo para prosseguir a conversa com os cuidados que a situação
requeria. O mais ligeiro comentário que lhe saísse da boca e que pudesse ser visto, ainda que muito remotamente, como indicador de deslealdade a Ostório acabaria
por ser repetido aos ouvidos do marido de Popeia, e Otho não tinha ar de ser particularmente cuidadoso com o que ouvia. As repetições levavam ao exagero, e se aos
ouvidos de Ostório acabasse por chegar a notícia de que o prefeito se tinha andado a gabar, o desdém cairia sobre ele. Toda a boa vontade que tinha conseguido no
campo de batalha desapareceria e Ostório passaria a procurar a mais leve desculpa para punir Cato com uma missão ainda menos apetecível do que o comando da escolta
do comboio das bagagens.
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- Senhora, sou um mero soldado - respondeu, endurecendo a voz. - Cumpro o meu dever. O que o general faz e diz não é da minha conta.
Ela soltou uma gargalhada. Um riso fresco e agradável.
- Oh, deuses. Pareço ter-te perturbado, prefeito. Permite que te compense com uma taça de vinho.
O mercador tinha regressado, a debater-se com duas pesadas ânforas de vinho, uma debaixo de cada braço. Pousou-as apressadamente, para responder à chamada de Popeia.
- Sim, minha senhora?
- Quero um pequeno frasco do vinho de Osca que guardas lá atrás, para os teus melhores clientes.
- Osca?
Os olhos dela estreitaram-se.
- Não te armes em parvo comigo. Sei muito bem que o tens. O meu marido é o tribuno Otho. Põe na conta dele.
Assim que aquele nome foi mencionado, o mercador baixou a cabeça e foi-se pôr a remexer na pilha de ânforas por trás do balcão.
- Não é preciso - objetou Cato.
- Tolice. - Popeia voltou a oferecer-lhe um sorriso cheio de doçura. - Mereces ser recompensado, não? Por agora, o vinho terá de chegar. - Baixou o tom de voz. -
Mas há outras recompensas de que um homem com as tuas capacidades é claramente merecedor.
Cato ficou gelado.
- Eu, hã, eu não estou certo de perceber o que quer dizer.
- Prefeito, não sejas parvo. Sabes perfeitamente do que estou eu a falar.
- Mas o seu marido...
- Bebeu até cair para o lado e está já a dormir na nossa tenda. Ele não é exatamente o homem que pensei que fosse. Encantador em público, mas calado e tristonho
em privado. Nem sempre consegue oferecer-me tudo o que uma esposa pode pedir a um marido...
O queixo de Cato quase descaiu por momentos, não conseguindo pensar numa resposta adequada e que não o comprometesse. Foi salvo pelo regresso do comerciante, que
trazia um fino jarro vidrado. Tirou a rolha e despejou cuidadosamente o líquido, medindo a quantidade numa taça que extraiu de uma prateleira no interior do balcão.
Popeia
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colocou-se entre Cato e o homem, para pegar no recipiente. Nesse preciso instante uma forte rajada de vento soprou sobre o campo, fazendo escancarar as abas da entrada
da tenda, que dançaram selvaticamente, como se fossem as asas de uma grande ave ferida. Distraído pelo barulho, Cato dirigiu a sua atenção para lá, e quando voltou
a focar-se em Popeia, já ela tinha a taça na mão e lha oferecia.
- A tua recompensa. E há mais à tua espera, se assim o desejares. - Ela debruçou-se ligeiramente para a frente, de forma a revelar um pouco do vale escuro que se
adivinhava entre os seus seios.
O vento enrijeceu, uivando sobre todo o campo, e de repente a parte de trás da tenda, onde se sentava o grupo de mulheres, esvoaçou quando as espias daquele lado
arrancaram as estacas de madeira do chão onde estavam cravadas. O vento e a chuva irromperam pela tenda, varrendo a atmosfera pesada e quente que lá se tinha instalado.
Houve gritos de alarme das mulheres e de fúria dos homens que se tentavam furtar à inesperada e indesejada intrusão dos elementos. Entretanto, mais cordas cederam
e a tenda começou a entrar em colapso sobre si mesma.
Os pensamentos de Cato viraram-se de imediato para os seus homens, empilhados nos seus frágeis abrigos de campanha. O seu lugar era junto deles, dado que a tempestade
parecia começar a pôr em causa a segurança do campo. Virou-se para Popeia.
- Perdoe-me, mas tenho de a deixar.
Antes que ela pudesse protestar, colocou-lhe a taça de novo entre as mãos e procurou Macro com o olhar. O amigo abria caminho por entre a turba agitada e vinha na
sua direção.
- Isto está bem animado. - Macro soltou um sorriso de arrependimento. - Mas será melhor voltar para junto dos homens.
Cato assentiu, reparando que o amigo parecia quase sóbrio e em condições de percorrer o caminho até às tendas dos homens, apesar da quantidade de bebida que emborcara.
Outros oficiais pareciam ter tomado decisões semelhantes, e à entrada da tenda formou-se um amontoado de gente em busca das respetivas capas. Já no exterior, Cato
tomou a dianteira, agarrando o capuz de forma a mantê-lo sobre a cabeça. Tinham percorrido apenas uma curta distância quando Macro se deteve.
- Miúdo, aguenta aí um momento.
Deu uns passos até à berma da via lamacenta e inclinou-se para a frente. Da boca escancarada saiu uma torrente de vómito, acompanhada de
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um profundo grunhido. A maior parte do líquido foi ter ao solo, mas o vento empurrou algumas gotículas contra a túnica e Macro soltou uma imprecação, antes de voltar
a vomitar, pondo-se desta vez a favor do vento e soltando outro jato. Fez outra pausa e endireitou-se.
- Já acabou? - inquiriu Cato, de mãos na cintura.
Macro anuiu, com uma expressão pesarosa.
- Antes aqui do que lá dentro. E uma palavra de conselho, tem sempre atenção ao vento. - Designou a porcaria que lhe sujava a frente da túnica.
Cato fez uma careta, enojado.
- Vamos embora.
A tempestade rugia pelas montanhas e o vento raivoso atirava com toda a força a chuva contra as tendas e qualquer criatura que se atrevesse a passear pelo campo.
Ouviu-se um grito atrás deles e Cato virou-se a tempo de contemplar a extremidade da tenda a elevar-se no ar, depois de romper de vez os cabos que a prendiam, e
a agitar-se violentamente antes de ruir sobre o solo. Os guardas do general tinham posto de parte as armas e atarefavam-se a cravar melhor as estacas que ainda prendiam
as outras tendas ao terreno. A tempestade fazia estragos por toda a parte e os homens viam-se forçados a sair das tendas das secções, para as segurar e impedir que
voassem. Mesmo com toda a confusão que se estabelecia à sua volta, Cato sentiu-se reconfortado ao verificar que os indistintos vultos das sentinelas nas muralhas
se mantinham firmes nos seus postos.
- Pelos colhões de Júpiter! - Macro abanou a cabeça. - Já viste uma coisa destas? Alguém fez enxofrar os deuses, não há a mínima dúvida.
- Felizmente isto está a acontecer agora, e não a noite passada - ripostou Cato, tentando apreciar o lado bom da coisa. - Imagina o estado em que vai ficar aquela
colina depois deste dilúvio?
Lutaram para prosseguir, inclinando-se contra o vento, as bainhas das capas a chicotearem-lhes as pernas. Por fim chegaram ao abrigo relativo oferecido pela proximidade
das muralhas e voltaram para o canto do campo onde estava estacionado o comboio das bagagens.
- O que te queria a mulher do tribuno? - indagou Macro.
- Ah, viu aquela cena.
- É verdade. Parecia muito cosida. Não me digas que é do género de dar umas voltinhas pelo campo?
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- Não faço ideia. Queria só dar-me uma palmada nas costas e oferecer-me uma bebida. Nada mais.
Macro gargalhou.
- Pois. Uma palmada nas costas. Nem mais.
Cato soltou um suspiro enfadado.
- Macro, sou um homem casado. E amo a minha mulher.
- E então?
- Então, centurião, preferia que o assunto ficasse por aqui. É uma ordem.
- Sim, senhor.
Quando alcançaram as tendas da escolta, ou o que delas restava, o ânimo de Cato sofreu um abalo. Pelo menos metade das tendas tinham caído e os vultos escuros dos
homens debatiam-se para salvar as restantes. Os Corvos Sangrentos tinham abandonado as tendas para irem sossegar os seus cavalos, mas ainda se ouviam os relinchos
de pavor por entre o rugido do vento.
- Vou ver dos homens - resolveu Cato. - Vá verificar os prisioneiros.
- Os prisioneiros? Que se fodam. Uma chuvinha destas não lhes vai fazer mal.
- Pode ser que sim, mas quero-os em boa forma quando forem entregues ao Imperador, aconteça isso quando acontecer. Veja lá se estão em segurança e se as correntes
estão bem presas.
- Muito bem. - Macro baixou a cabeça em sinal de obediência e apressou-se na direção do maior dos recintos. Cato virou-se em primeiro lugar para a sua própria tenda
e ficou aliviado ao verificar que ainda estava de pé. Thraxis cravava ainda mais estacas no solo quando ele se aproximou.
- Há alguns danos lá dentro? - indagou Cato.
O homem baixou a marreta e olhou para o comandante.
- Não, senhor. Pus a maior parte das suas roupas na arca antes de isto começar. Também guardei os documentos e as tábuas.
- Bom trabalho! - Cato afastou-se de novo. - Deixo-te a segurar isto. Vou verificar as outras.
Thraxis anuiu e concentrou-se outra vez no trabalho, enquanto Cato se dirigia à mais próxima das linhas de tendas, pertencente aos legionários da coorte de Macro.
Avistou o enorme vulto do centurião
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Crispo a berrar ordens aos homens, e enfrentou o vento para se aproximar dele.
- Centurião, um relatório!
Crispo limpou a chuva do rosto.
- Senhor, isto não está bom. A maior parte das tendas foi pelos ares, e teremos muita sorte se conseguirmos salvar algumas das que ainda aí estão. Disse aos rapazes
para as desmontarem e se sentarem em cima delas até que a tempestade se dissipe.
Cato bocejou, dando conta de repente do enorme cansaço que se abatia sobre os seus membros.
- Boa ideia, parece-me. Assim que o vento amainar, voltem a erguer as tendas e os homens que se ajeitem lá dentro como puderem. Pela manhã veremos o que se pode
fazer.
- Vai ficar apertado naquelas tendas, senhor.
- Bom, pelo menos ficarão quentinhos.
- Cato! Cato!
Ambos os oficiais se viraram para a origem dos gritos desesperados e Cato identificou a custo o vulto entroncado de Macro a acenar freneticamente junto ao recinto
prisional mais pequeno. Corria para junto deles.
- O que se passa? - inquiriu Cato.
- Desapareceu! - gritou Macro, os olhos esbugalhados de apreensão. - O Carátaco. O cabrão fugiu!
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Fugiu! - Cato sentiu-se gelar por dentro. As suas entranhas começavam a formar nós retorcidos.
Não esperou por novas informações e desatou a correr pela lama e pelas poças de água até ao recinto. A porta estava escancarada, e estava demasiado escuro para ver
lá para dentro, mas, ao aproximar-se, depressa notou duas trouxas sobre o solo, mesmo à entrada. Percebeu de imediato que se tratava das duas sentinelas. Pulou sobre
os corpos e entrou no recinto. O escuro interior estava vazio, à exceção do poste e das grilhetas deixadas sobre a lama.
- Não! - Cato fechou a mão num punho e desferiu um forte murro na estrutura de madeira que o ladeava. Agachou-se, pegou nas correntes e examinou-as cuidadosamente.
Estavam cobertas de lama, mas os dedos não encontraram nenhum elo partido, e os fechos das algemas tinham sido simplesmente abertos. Reergueu-se rapidamente e juntou-se
a Macro e Crispo, que examinavam os cadáveres.
- Mortos?
- Os dois - confirmou Macro. - As goelas cortadas. Quem fez isto aproximou-se deles... Esse cabrão há de pagar por isto.
Cato tentou acalmar a mente, que trabalhava a toda a velocidade.
- Trataremos disso mais tarde. Agora, é fundamental encontrar Carátaco. Vá buscar os homens. Quero que comecem a procurar imediatamente. Envie um estafeta a cada
um dos portões. Ninguém pode sair do campo. Vá!
O centurião, espantado, lá saiu a correr na direção das tendas, enquanto Cato se virava para Macro.
- E os outros prisioneiros?
- Já vi. Estão todos cá. - Macro olhou de relance para as trevas. - O Carátaco ainda pode andar por aí, a pensar que os pode libertar também.
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Cato abanou a cabeça.
- Para isso já é tarde. O alarme foi dado. Se era esse o seu plano, já não o vai cumprir. Há de querer sair do campo e afastar-se o mais possível antes que nasça
o dia. Só espero que não tenhamos deixado passar demasiado tempo. Trate disto aqui. Dobre a guarda aos outros. Descubra o trombeteiro, e ele que chame todos os homens.
- Senhor, o que vai fazer?
- Apresentar um relatório ao comando. Temos de dar o alarme geral imediatamente.
- Não devíamos tentar primeiro encontrar o Carátaco? Antes de avisar o general?
- Já não temos essa possibilidade. Despache-se!
Separaram-se; Cato voltou-se e desatou a correr para o coração do
campo. Já estava à vista das tendas do comando quando escutou as finas notas da trombeta a soar à distância. Viu soldados espalhados pela escuridão que interrompiam
os esforços para salvar as suas tendas e olhavam em redor, atónitos.
- O que se passa? - exclamou uma voz. - Pensava que já tínhamos tratado da saúde ao inimigo. O que é que aquele imbecil está a tocar?
Cato deteve-se e levou a mão em concha à boca, antes de gritar:
- Está a formar! Ouviram o sinal! Tratem de mexer esses cus!
O encantamento quebrou-se e os homens começaram a procurar freneticamente pelas peças de equipamento. Optios e centuriões repetiam a ordem, tentando fazer-se ouvir
sobre o troar da tempestade. Cato prosseguiu, meio a correr e meio a escorregar pela lama, na direção do quartel-general. Por sorte, só a tenda da messe tinha sido
levada pelo vento; as outras continuavam a lutar contra a tempestade, e ele deslizou até parar à entrada da tenda privada do general, a tentar recuperar o fôlego.
- Deixem-me... passar. - Acenou aos guardas, para que lhe dessem passagem.
- Senhor, um momento. - Um deles adiantou-se para lhe impedir o caminho.
- Não há... tempo para isso. - Cato empurrou o homem e abriu caminho por entre as abas. O brilho das lamparinas e dos braseiros contrastava com a escuridão no exterior
e Cato olhou em redor, apressado, enquanto o único servidor do general ainda acordado parava espaventado
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o trabalho que tinha estado a fazer, a limpar as botas do comandante do exército.
- O general está aqui? - inquiriu Cato.
Um dos guardas entrou na tenda e dirigiu-se apressadamente a Cato, de mão já na espada.
- Senhor! Tem de aguardar lá fora!
- Onde está o general? - insistiu Cato.
A cortina ao fundo da tenda abriu-se e surgiu Ostório, de túnica e descalço.
- Em nome de Júpiter, o que se passa aqui? Prefeito Cato. O que estás aqui a fazer? - Parou e escutou com atenção. - Quem deu a ordem para formar os homens?
Cato rodeou o guarda e colocou-se em frente ao seu comandante, hirto e imóvel, mas com o coração aos pulos no peito ofegante.
- Senhor, Carátaco escapou.
Ostório encarou-o, aparentemente demasiado estupefacto para reagir.
- Escapou? Como é isso possível? Não o tinhas acorrentado?
- Sim, senhor.
- Então como é isso possível?
Cato reordenou rapidamente os pensamentos.
- Senhor, foi com toda a certeza ajudado. Os dois homens que o guardavam foram mortos e as algemas abertas, não partidas.
- Ajudado? Por quem?
- Não o posso dizer, senhor. Ainda não. Mas assim que descobri que ele tinha desaparecido, mandei soar o alarme. Os meus homens já o procuram, e dei ordens para
que ninguém possa sair do campo. Se ele ainda estiver cá dentro, encontrá-lo-emos por certo, senhor.
Ostório absorveu a informação e as suas feições foram adquirindo um ar severo.
- Será bom que ele seja recapturado, prefeito Cato. Pelos deuses, ele tem de ser recapturado e colocado de novo em grilhetas. Se ele conseguiu escapar, juro que
os responsáveis pagarão por isso.
- Sim, senhor - respondeu Cato, impotente.
O general virou-se para o guarda.
- Convoquem imediatamente os meus oficiais!
O guarda saudou-o e apressou-se a sair da tenda. O servo de Ostório
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ainda se mantinha sentado no banco, com a bota nas mãos. O general notou-o e deu largas à raiva que o possuía.
- O que é que estás aí especado a fazer? Despacha lá isso!
O homem recomeçou a esfregar furiosamente, de cabeça baixa e concentrado no trabalho. Naquele momento, porém, Cato teria de bom grado trocado de lugar com ele. Perante
a impossibilidade, limitou-se a ficar em sentido, enquanto Ostório se voltava para ele, furibundo.
- Prefeito, o melhor é que te vás dedicar à busca por Carátaco. Desaparece!
Cato saudou-o, virou-se e escapuliu-se da tenda, aliviado por poder sair dali.
epois de o general ter informado os seus oficiais, duas coortes fo-
ram destacadas para ajudar a escolta das bagagens na caça ao prisioneiro em fuga. Os outros homens receberam indicações para voltarem a desfazer-se do equipamento
e regressarem ao pouco abrigo que conseguissem arranjar para passar o resto da noite. Cato voltou à sua tenda, para esperar impacientemente pelos relatórios.
Ao fim do que pareceu uma eternidade, a tempestade começou a amainar e a afastar-se para leste, e o vento foi diminuindo à medida que as nuvens deslizavam para longe.
Por fim a chuva parou e as estrelas surgiram, serenas, a brilhar num firmamento aveludado. De pé à entrada da sua tenda, a contemplar o céu agora limpo, Cato não
pôde deixar de sentir que a natureza, na sua reencontrada calmaria, zombava dele. O seu momento de triunfo durara menos de um dia. A fuga depressa o transformaria
de orgulho da legião em bode expiatório para aquele inesperado contratempo. Ao invés de ser recordado como o oficial que capturara o comandante inimigo, estava condenado
a ser lembrado como aquele que não conseguira prevenir e impedir a fuga. O verdadeiro culpado era o homem que tinha assassinado os guardas e libertado o rei nativo.
Cato jurou a si mesmo que, se alguma vez viesse a descobrir a identidade desse indivíduo, o faria sofrer o que merecia. A sua única esperança naquele momento era
que o culpado que ajudara Carátaco o estivesse a esconder algures no próprio campo. A possibilidade de o comandante inimigo ter encontrado forma de chegar ao exterior
era demasiado dolorosa para sequer a contemplar.
À medida que chegavam os relatórios dos diferentes grupos de busca,
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o coração de Cato foi-se tornando mais e mais pesado, já que não havia qualquer sinal de Carátaco.
Quando os primeiros alvores do dia começavam a tingir o horizonte, foi Macro quem lhe trouxe notícias ainda mais perturbantes.
- Estive a interrogar os guardas de todos os portões. Cumpriram as tuas ordens e não deixaram ninguém sair. Mas depois ocorreu-me outra ideia. Perguntei-lhes quem
é que tinha passado pelos portões nas horas que antecederam o alarme.
-E?
- Não vais gostar disto, não havia nada de extraordinário... o habitual ir e vir de patrulhas. Além disso, só a carroça de um mercador de vinhos.
Cato levou a mão à testa.
- Uma carroça. E os guardas, revistaram-na?
- Deram-lhe uma vista de olhos, estava vazia. A face do condutor estava obscurecida por um capuz. Mas como chovia bem, o optio de serviço não achou isso estranho.
O homem disse que ia a Viroconium para comprar mais bebida, uma vez que o perigo de encontrar o inimigo no caminho estava afastado. O optio deixou-o passar.
- A que horas foi isso?
- Mesmo antes de encerrarem o portão para a noite. Ou seja, quando nós estávamos ainda na tenda da messe. Tenho o optio aqui fora, se lhe quiseres dar umas palavras.
- Traga-o cá.
Macro espetou a cabeça através das abas.
- Tu, vem cá.
Deu um passo ao lado para deixar o optio entrar. Era um soldado de ar experimentado, mas a expressão vazia e a falta de à-vontade que evidenciava criavam do homem
uma impressão fraca. A Cato deu a ideia de que era o tipo de soldado com capacidades suficientes para ter chegado a optio, mas sem as qualidades necessárias e essenciais
para a promoção a centurião. O homem pôs-se em sentido.
- Senhor, apresenta-se o optio Domato.
- Diz-me o centurião Macro que permitiste a saída do campo a uma carroça, antes de fechares o portão, ontem à noite.
- Sim, senhor.
- Um mercador de vinhos, a caminho de Viroconium.
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- Exatamente, senhor.
- E não te pareceu estranho que um comerciante deixasse o campo àquela hora?
O optio remexeu-se, incomodado.
- Senhor, ele pareceu-me convincente. E, de qualquer maneira, é suposto estarmos atentos a ameaças que venham de fora do campo, senhor. Este estava a sair. Não me
passou pela cabeça não o deixar passar.
- Optio, as sentinelas na muralha é que têm de estar atentas a qualquer movimentação inimiga no exterior. O teu trabalho no portão é verificares quem entra mas também
quem sai.
- Tal como disse, senhor, não vi razões para suspeitar do homem. Ele não me deu causas para considerar que podia ser um elemento inimigo, quanto mais o próprio Carátaco,
senhor. Além disso, ele falava latim.
Cato suspirou.
- Não te ocorreu que pudesse haver pelo menos uma pessoa no exército inimigo que conhecesse a nossa língua?
O optio abriu a boca para responder, mas teve o bom senso de ficar calado, e cerrou os lábios.
- Acha que era ele, senhor? - interveio Macro.
- É bem possível. Vou enviar uma patrulha atrás dele assim que estivermos despachados. Só para ter a certeza. - Cato voltou a dar atenção ao optio. - Domato, há
mais alguma coisa que nos possas dizer acerca deste mercador de vinho? Uma descrição do homem?
- Senhor, como já disse ao centurião, ele tinha um capuz a cobrir a cabeça. Estava escuro, e pouco se via, ainda por cima com a chuva e o vento.
- Estou a ver. - Cato suspirou, exasperado. Estava prestes a dispensar o homem quando o rosto deste se iluminou.
- Senhor, sei o nome dele. Estava gravado no lado da carroça. Vi-o quando passou pelo portão, apesar de estar escuro.
-Ah!
- Hiparco, senhor, era esse o nome.
Cato fitou-o, atónito.
- Oh, merda... - resmungou Macro.
Cato tinha saltado da cadeira e corria já, esquecendo o optio.
- Macro, venha comigo!
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Tentou correr na direção do comboio das bagagens e da extensão de tendas e abrigos arruinados que albergavam os seguidores civis, mas a lama tornava o avanço difícil
e escorregadio. Macro seguia-o como podia. Passaram pelo parque dos veículos, onde estavam arrumados os carros e carroças do exército, e chegaram à zona atribuída
aos civis. Havia ali muito pouco da disposição regular das tendas dos soldados, e as poucas tendas coloridas e abrigos improvisados que se mantinham de pé espraiavam-se
em redor de duas vias largas que se cruzavam. O Sol ainda não nascera, mas já muitos civis vagueavam por ali. A tempestade provocara ali tanta desordem como no resto
do campo; tendas caídas e bancas derrubadas entulhavam o cruzamento.
Cato deteve-se junto à banda de um latoeiro, que tinha resistido intacta à intempérie. O proprietário já dispunha a sua mercadoria para exposição, pouco preocupado
ou incomodado com o azar dos seus vizinhos.
- Onde é que posso encontrar Hiparco, o mercador de vinho?
O homem levantou o olhar e encolheu os ombros.
- Não o conheço. Mas se negoceia em vinhos, pode encontrá-lo ali depois da curva, ao pé dos outros.
Cato voltou a correr, virando para outra ruela escorregadia, também ladeada por bancas. Depressa avistou uma onde se empilhavam ânforas. Um homem gordo com caracóis
cinzentos e oleosos discutia com um cliente quando Cato se aproximou.
- Procuro Hiparco.
O comerciante deu imediatamente atenção ao jovem oficial, e sorriu.
- Senhor, se é vinho que procura, garanto-lhe produto de melhor qualidade e preço mais baixo do que o de Hiparco.
- Porra, quero lá saber do teu vinho. Quero é encontrar o Hiparco.
O mercador encolheu os ombros e apontou para uma banca do outro lado da rua. Cato virou-se e avistou um vagão de paredes altas que servia de base para um toldo esticado
de forma a cobrir uma estrutura de madeira que formava uma banca. Correu para lá e saltou sobre o balcão. As botas aterraram sobre algo mole e que se encolheu. Tropeçou,
recuperou o equilíbrio e avistou um corpo semiescondido sob o balcão, de rosto no solo, tapado pela tela que formava a frente da banca. Ajoelhou-se e virou o corpo.
A luz pálida da alvorada, verificou que não se tratava de Sétimo. Pela túnica esfarrapada e imunda, e pelo corte
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na orelha, adivinhou que se tratava de um escravo. O homem gemeu e levantou a medo uma mão. Cato pegou-lhe pelos ombros e sacudiu-o.
- Onde está Hiparco?
Os olhos do escravo piscaram, e fizeram um esforço visível para tentar focar o homem que tinham na sua frente. Tresandava a vinho. Cato repetiu a pergunta com mais
uma sacudidela, para tentar despertar o outro, mas o homem ainda estava demasiado aturdido para raciocinar. Cato soltou um silvo de frustração, largou-o e virou-se
para Macro, que aguardava do outro lado da banca.
- Reviste o vagão.
Macro assentiu e apressou-se até à entrada posterior do vagão, onde começou a desfazer os laços que prendiam a abertura da cobertura de couro.
- Senhor, o que se passa, afinal?
Cato levantou o olhar e viu o mercador com quem tinha falado antes, que atravessava a rua e se lhe dirigia.
- Viste alguma coisa de peculiar por aqui, ontem à noite?
- Alguma coisa?
- Alguma coisa peculiar?
- Bem, estava um bocado atarefado a tentar evitar que a minha banca se desfizesse com o temporal, senhor. Como a maior parte das pessoas no campo. Mas é verdade
que houve algo de estranho, parece-me.
- Conta-me.
- O Hiparco de repente pegou numa mula e atrelou-lhe o carro, mesmo quando a luz estava a desaparecer. Ele e aquele imprestável escravo dele. E depois foi-se. Com
a tempestade e tudo o mais, seria de esperar que ficasse quietinho e tratasse dos seus negócios. Nunca mais o vi.
- Tens a certeza que era ele? O Hiparco?
O mercador confirmou.
- Era o manto dele.
- Cato! - chamou Macro das traseiras do vagão. - Está aqui!
Cato deixou o outro homem e foi juntar-se a Macro na traseira do
vagão. Na escuridão do interior, o prefeito mal adivinhou o vulto do agente imperial, de bruços contra uma enxerga ainda enrolada. Estava imóvel, e por momentos
Cato temeu que estivesse morto. Trepou para o leito do vagão e abriu caminho para se aproximar do corpo. Ouviu a respiração do homem e deixou escapar um suspiro
de alívio.
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- Está vivo. Dê-me aqui uma ajuda. Vamos tirá-lo daqui para fora.
Arrastaram o agente inconsciente até ao fundo do vagão e depois
desceram-no lentamente até ao solo. Com mais luz, Cato reparou que o cabelo a um dos lados do crânio estava empastado com sangue seco. Havia mais sangue pisado no
pescoço e no ombro da túnica.
Macro sugou o ar por entre os dentes.
- Algum sacana lhe deu uma valente cacetada nos cornos. O Carátaco, talvez?
Cato hesitou.
- Assim parece.
Soergueu-se e pediu ao comerciante do outro lado da rua para lhe trazer água.
Macro designou Sétimo com um gesto.
- O que fazemos com ele?
Cato coçou o queixo.
- Para já, limpamos-lhe a ferida e ligamo-la. Depois, vamos tentar acordá-lo. Se não conseguirmos que nos diga nada de jeito, levamo-lo à enfermaria, para ser visto
pelos médicos. Seja como for, precisamos de falar com ele, o mais depressa possível.
Macro preparava-se para dizer qualquer coisa quando o outro mercador se aproximou com um jarro de água e um pano limpo. Cato pegou neles.
- Preciso que vás ao quartel-general e apresentes um relatório ao general.
- Não sou nenhum soldado! - protestou o homem. - Vão vocês.
- Bico calado! - avisou Cato, pouco dado a contemporizar. - E faz o que eu te digo. Diz ao general que o Carátaco se escapou do campo na carroça de Hiparco. Diz-lhe
que enviei os meus homens atrás dele, para o tentar recapturar. Vai, já!
Relutantemente, o homem meteu os pés ao caminho, deixando os dois oficiais com Sétimo.
- Levante-lhe a cabeça com cuidado - instruiu Cato.
Macro fez o que lhe era pedido e Cato deitou alguma água sobre o pano e começou a limpar o sangue seco, sem muito jeito. O escalpe estava rasgado, mas não pareciam
existir danos no osso que lhe ficava por baixo. Enquanto trabalhava no resto da ferida, Sétimo agitou-se e murmurou um protesto, antes de voltar a cair na inconsciência.
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- Há aqui qualquer coisa que não bate certo - comentou Macro.
Cato ergueu o olhar.
- Quer dizer, para lá de Carátaco ter escapado e de ter atacado um agente imperial pelo meio?
Macro percebeu o tom de ansiedade na voz do amigo e mordeu a língua para evitar dar uma resposta ao comentário. O silêncio reinou por momentos, enquanto Cato acabava
de limpar o sangue do pescoço de Sétimo, torcia o pano e o aplicava na cabeça do homem, amarrando-o em torno da ferida. Macro deixou a cabeça do agente descair.
Resolveu tentar de novo.
- Alguém ajudou Carátaco a fugir, e por acaso deram com o Sétimo quando vieram à procura de um veículo e de um disfarce para tirar o Carátaco do campo. Chamem-me
desconfiado, mas a mim isto não parece de todo plausível.
- Pois não - concordou Cato, mais calmo. - Também me parece um bocado de coincidência a mais. - Deu um toque no peito do homem inconsciente. - Leve-o para a enfermaria.
Vou tratar de pôr os Corvos Sangrentos no encalço de Carátaco. Vou ter consigo depois. Quero estar presente quando o Sétimo recuperar os sentidos. Há algumas questões
a que ele tem de responder. - Cato fez uma pausa e uma careta. - E é bem provável que o general também tenha uma boa série delas preparadas para nos colocar.
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- Esta situação é completamente inaceitável - afirmou o general Ostório num tom gelado aos dois oficiais, Cato e Macro, em sentido à sua frente. As patrulhas dos
Corvos Sangrentos tinham regressado havia uma hora, e feito os seus relatórios a Cato: tinham encontrado o vagão abandonado, mas nenhum traço de Carátaco.
O general continuava a olhar furibundo para os dois amigos.
- Foi-vos confiada a guarda do prisioneiro, do homem que tem sido uma constante ameaça aos interesses romanos nesta ilha, desde o primeiro momento em que as nossas
tropas aqui desembarcaram. O homem que, finalmente, derrotámos em toda a linha e capturámos, ontem mesmo. Passou menos de um dia, e eis que ele já nos escapou de
novo. Digam-me, exatamente, em que termos é que eu vou explicar isto ao Imperador?
Apesar de a questão ser meramente retórica, Macro sentiu-se tentado a lembrar ao general que o problema era estritamente dele. Carga pesada, mas correspondente à
patente que ostentava. Porém, uma promoção a centurião não era dada a quem não sabia manter a boca fechada na devida ocasião, pelo que Macro se manteve em sentido
e silencioso.
Ostório respirou fundo, e prosseguiu:
- Mais propriamente, como é que vocês se podem explicar a mim? Então, prefeito?
Macro pigarreou e adiantou-se, antes que Cato pudesse responder.
- Senhor, a culpa foi toda minha. Era a mim que cabia garantir a segurança dos prisioneiros, e colocar guardas suficientes junto deles.
- Tu? - Ostório soergueu as sobrancelhas. - Isto é verdade?
Cato apercebeu-se de quão perigosa era a situação em que o amigo se estava a colocar e sentiu uma pontada de ansiedade. A culpa, se existia, era tanto de Macro como
dele mesmo. O mais provável era que
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aquilo tivesse sido obra do agente de Palias. Tal como o ataque a Sétimo. Ao que parecia, o agente de Narciso tinha subestimado o adversário, que devia ter percebido
o seu disfarce. Cato não se podia arriscar a divulgar detalhes daquele género a Ostório, mas podia ao menos interceder e salvar Macro da ira do comandante.
- Senhor, o centurião Macro agiu de acordo com as minhas ordens. A responsabilidade é por isso minha, e sobre mim deve recair qualquer punição resultante deste incidente.
- Isso cabe-me a mim decidir, quando estiver na posse de todos os factos. Prefeito, sugiro que me digas tudo o que sabes.
Cato lutou contra a exaustão que o dominava, para rever e relatar todos os detalhes.
- Sei que a fuga ocorreu enquanto eu e o centurião Macro estávamos na tenda da messe dos oficiais. Sei também que ele deve ter tido ajuda para a concretizar.
- Como é isso?
- Senhor, os dois guardas foram atacados pela garganta. Dado que o Carátaco estava algemado e desarmado, pode concluir-se que os meus homens foram vítimas de um
atacante armado. Ou mais do que um. Além disso, os pinos que lhe prendiam as grilhetas foram retirados. O que só podia ser feito com um martelo e um formão adequado.
- Nesse caso, quem é que o ajudou? Um dos outros nativos? Mais algum prisioneiro escapou?
- Não, senhor. Já verifiquei junto do centurião que comanda a guarda dos prisioneiros mantidos no exterior do campo. Todos estão ainda lá. Além disso, se um deles
tivesse de facto fugido, teria ainda de passar pelo fosso, escalar as muralhas e conseguir não ser visto pelas sentinelas. Depois teria de descobrir onde estava
Carátaco, e localizar um martelo e uma arma. Parece-me muito pouco provável.
- Mas não impossível.
- Praticamente impossível, senhor - insistiu Cato, com firmeza.
- E quanto aos outros membros da família, os seus irmãos?
- Ainda estão todos agrilhoados no mesmo recinto. Os guardas que os vigiam dizem que ontem à noite não deram por nada de estranho.
Ostório acenou, pensativo.
- Nesse caso, porque é que o Carátaco não tentou libertar os seus familiares? Porque é que os deixou para trás desta forma?
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Cato inclinou ligeiramente a cabeça.
- Na minha opinião, achou que isso seria demasiado complicado Havia quatro guardas em redor do outro recinto, que também fica mais perto das tendas da coorte do
centurião Macro. Se o alarme fosse dado, ficariam rodeados de homens armados em menos de nada. E mesmo que conseguisse liquidar todos os guardas e remover as correntes
que os prendiam, o grupo seria numeroso e não seria fácil conseguir sair do campo. Sozinho, o Carátaco tinha algumas hipóteses. Se tivesse tentado levar os outros
consigo, teria falhado com quase toda a certeza.
Ostório franziu o sobrolho.
- Estás a sugerir que ele sacrificou a família para salvar a própria pele?
- O que digo, senhor, é que para ele era a decisão mais razoável.
- Razoável? A mim parece-me a mais impiedosa.
Macro encolheu os ombros.
- Senhor, talvez seja por ser tão duro e determinado que ele nos tem provocado tantos problemas.
O general fitou-o irritado.
- Centurião, muito obrigado por essa pérola de sabedoria.
Macro calou-se e enrubesceu, enquanto o comandante voltava a dar
atenção a Cato.
- Bom, imaginando que tens razão, o que é que achas que sucedeu depois?
Cato pensou velozmente. Era a parte da narrativa em que tinha de ter mais cuidado, para não destruir o disfarce de Sétimo. Por muito leal que o general fosse ao
Imperador, não apreciaria com certeza a revelação de que havia um espião no seio do seu exército. Nem a ideia de que um dos seus oficiais sabia de tudo e não lho
tinha revelado. Cato limpou a garganta e prosseguiu, com todas as cautelas:
- Já sabemos que o Carátaco saiu do forte pelo portão leste, disfarçado de mercador de vinhos, com uma carroça pertencente a um certo Hiparco, um dos seguidores
civis. Reconheci esse nome assim que o optio o mencionou.
- E como é que o conheces assim tão bem, e tão convenientemente?
- Este comerciante em particular vendeu-me algum do seu vinho, há dois dias. Procurámos o lugar onde ele tinha os seus veículos, e encontrámo-lo, inconsciente, nas
traseiras da carroça. O carro mais pequeno tinha desaparecido.
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- Estou a ver. Pergunto-me por que raio terá decidido o Carátaco atacar precisamente esse comerciante.
- Coincidência, senhor. - Cato punha-se exatamente a mesma questão. Esperava vir a descobrir o motivo quando falasse com Sétimo, mais tarde. Tossicou, e prosseguiu:
- O Hiparco tinha um carro que era ideal para o Carátaco conseguir sair do campo. Dada a quantidade de vinho que o exército consome, a história de ir a Viroconium
para reabastecer as suas reservas tinha um ar credível.
Cato sentiu o coração a acelerar enquanto o general ponderava a explicação. Ostório cruzou as mãos e batucou com os indicadores no queixo.
- Onde está esse mercador de vinho, neste instante?
- A recuperar, na enfermaria da Décima Quarta, senhor. Levou um golpe na cabeça e ficou desacordado. O médico disse-nos que espera que ele recupere os sentidos daqui
a pouco tempo.
- Excelente. Quero que o interrogues assim que ele despertar.
- Sim, senhor. - Cato deu o seu melhor para dissimular o alívio que sentira por lhe ver ser atribuída aquela tarefa, e aproveitou para continuar. - Quem quer que
tenha auxiliado o Carátaco a libertar-se, estava com ele quando roubaram o carro. Outro mercador de vinho viu-os. Na escuridão julgou tratar-se do próprio Hiparco,
que estaria a ser ajudado pelo seu escravo a prender uma mula ao arnês. Mas encontrámos o escravo perdido de bêbado. Talvez seja possível ao Hiparco identificar
o homem que apoiou Carátaco.
- E como é que isso nos vai ajudar, precisamente?
- O homem em questão ainda está no interior do campo, senhor.
Ostório pousou as mãos e encarou Cato.
- Como é que podes estar tão certo disso?
- O Carátaco era o único ocupante do carro que deixou o campo. O optio no portão diz que revistou rapidamente o veículo antes de o deixar sair. Tem a certeza que
não havia ninguém escondido no seu interior.
- Nesse caso, temos um traidor entre nós.
Cato assentiu.
- Alguém entre os seguidores civis - decidiu Ostório, com a expressão a toldar-se. - Assim que encontrar esse filho da puta, vou crucificá-lo. Só pode ser um dos
comerciantes nativos. Um espião, plantado pelo próprio Carátaco. Vou dar ordens para os reunir e interrogar a todos.-
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Assim que os verdugos começarem a trabalhar, alguém há de dar com a língua nos dentes.
- Sim, senhor.
- Esperemos que possamos encontrar este traidor. Já dei ordens para aumentar o número de patrulhas montadas que percorrem as montanhas em busca de Carátaco, mas
não tenho grandes expectativas. Ele conhece muito melhor o terreno, e pode contar com a ajuda dos nativos em qualquer povoação próxima para o esconder e alimentar.
Só Júpiter sabe quais são os seus planos para o futuro próximo.
- Seguirá para norte, senhor.
Ostório olhou para o prefeito, atónito.
- Norte? Estás assim tão seguro do que dizes?
- Para onde mais pode ele ir, senhor? Os siluros sofreram tremendas perdas na batalha de ontem, e pouca vontade terão de continuar a segui-lo. E o mesmo acontecerá
com os ordovicos, assim que as notícias da derrota lhes chegarem. O que lhe deixa duas outras hipóteses. Pode seguir para o reduto dos druidas, em Mona. Fica mais
próximo, e ele tem a certeza de ser bem acolhido por lá. Mas também significa que fica encurralado, e calculo que existam planos para tomar o local dentro de pouco
tempo.
- Muito possivelmente - admitiu Ostório. - Mas prossegue. Se não for para Mona, para onde irá Carátaco, na tua opinião tão conhecedora?
- Para o reino dos brigantes - respondeu Cato, sem hesitação.
- Mas nós temos um tratado com os brigantes. Só se estivesse louco é que ele se ia colocar nas mãos dos nossos aliados.
- Senhor, temos um tratado, sim, mas com a rainha Cartimandua. Não é exatamente a mesma coisa. Ao que sei, a rainha está longe de ter o apoio de todo o seu povo.
Se existe de facto uma fação que se opõe ao tratado com Roma, o Carátaco vai por certo tentar incitá-los a uma rebelião. E se conseguir levantar o resto da tribo,
terá de novo um poderoso exército à sua disposição para prosseguir a guerra contra nós.
O general Ostório pesou a ideia por momentos e acabou por cerrar os lábios.
- Entregar-se à mercê dos brigantes seria um enorme risco para ele. Não sei. Não estou convencido. Depois da derrota que lhe infligimos, acho que ele se sentirá
mais tentado a jogar pelo seguro. Recuar, cuidar das feridas, considerar os movimentos seguintes.
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- Senhor, peço licença para discordar. O Carátaco não é do género de recuar e de se esconder. Vai querer vingar esta derrota na primeira oportunidade. E só o poderá
tentar se reunir um novo exército. Ora, o único local onde pode consegui-lo é no território dos brigantes.
- Obrigado pela tua opinião, prefeito Cato - ripostou Ostório, dando-lhe notoriamente pouca importância. - Vou tomá-la em consideração, claro. Contudo, por agora,
temos é de nos concentrar em perseguir e voltar a capturar o Carátaco, enquanto ainda existe alguma possibilidade de o conseguir. Assim que as unidades auxiliares
se juntarem a nós, vamos desmontar o acampamento e marchar de volta a Viroconium. Mas ainda antes disso, quero ficar a saber o que tem o mercador de vinhos a dizer.
Percebido?
- Sim, senhor.
- Muito bem, podem seguir.
Cato e Macro fizeram a saudação regulamentar e saíram da tenda em passo aprumado.
Quando ficaram fora do alcance dos ouvidos dos guardas do general, interromperam a marcha e Macro deixou escapar um suspiro profundo.
- Não está certo que ele tente atirar com as culpas desta barraca para cima de nós. Não é culpa nossa haver por aí um cabrão que libertou o Carátaco. Ele é que é
o general, a responsabilidade é dele.
Cato sorriu, fatigado.
- É assim o jogo das culpas, Macro. Isto já não tem nada a ver com o exército, é uma questão política. O Ostório está a pensar no que vai acontecer quando deixar
o comando do exército. Se houver maneira de culpar os subordinados pelo que possa correr mal, ele encontrá-la-á. Para nosso azar, pusemo-nos mesmo a jeito, nesta
ocasião.
Macro rangeu os dentes, frustrado.
- Merda de política.
- Pois é.
Contemplaram o campo que se estendia à sua frente, num cenário de devastação. A maior parte das tendas parecia ter sido levada pela tempestade da noite anterior
e os soldados vagueavam por entre a lama e os detritos, procurando peças de equipamento espalhadas. Alguns tentavam acender fogueiras, mas Macro adivinhava que a
madeira estava demasiado encharcada para arder, e ainda ia levar algum tempo a secar. Sentia-se no campo um ambiente de desolação e desalento, apesar de o
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céu estar de um azul brilhante, o Sol quente lançar os seus raios sobre a terra, e os andorinhões esvoaçarem rápida e alegremente pelo ar.
Macro fungou.
- Quem visse isto, facilmente ficaria convencido de que foi o nosso lado que perdeu a batalha de ontem.
- Ganhámos a batalha, sim, mas não a guerra. Pelo menos por enquanto. Enquanto o Carátaco estiver livre, não conheceremos a verdadeira paz.
- E o que é que vamos fazer agora?
Cato colocou as palmas das mãos na base das costas, e esticou-se todo.
- Vamos falar com o Sétimo, se ele estiver em condições para isso. Neste momento, é a única pessoa que nos pode ajudar a descobrir quem é o traidor que se esconde
no campo.
- Pensei que era suposto irmos à procura de Carátaco.
Cato abanou a cabeça.
- Se estou a ver bem as coisas, ele já está longe daqui. Só por vontade dos deuses é que as patrulhas de cavalaria o poderiam encontrar. E é por isso que temos de
descobrir o homem que o ajudou a fugir. Com o grau de persuasão adequado, talvez seja capaz de nos dizer para onde se dirige Carátaco, e quais são os seus planos.
- Calculo que sim.
Cato virou-se para o amigo.
- Se tiver alguma ideia melhor, não a guarde para si.
Macro concentrou-se por momentos, mas acabou por encolher os ombros.
- Vamos lá ver o Sétimo.
O médico tinha um ar esgotado e tenso, sentado à sua secretária de campanha, à entrada da tenda da enfermaria, uma das primeiras a serem reerguidas depois da passagem
da tempestade. O interior estava na penumbra e era preenchido por homens deitados em enxergas, no solo. Alguns nem isso tinham, e estavam diretamente em contacto
com o chão. Outros estavam sentados; os que tinham feridas menos sérias conversavam em surdina, ou passavam o tempo a jogar aos dados. A atmosfera estava cheia de
gemidos e de gritos dos feridos. Vários enfermeiros percorriam a tenda, tentando aliviar o sofrimento dos pacientes.
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O médico vestia um avental ensanguentado sobre uma túnica negra, e tinha a cara e os braços salpicados de lama e sangue seco.
- Quem é que procuram?
- O Hiparco.
- A que unidade pertence?
- É um civil. Trouxemo-lo hoje pela madrugada, com um ferimento na cabeça.
- Ah, esse. Já me lembro. Está fino, foi só uma leve pancada. Já está acordado. - O médico levantou-se e apontou para a ponta da tenda. - O último homem à direita.
Cato acenou, agradecido, e seguiu com Macro pelo corredor que percorria todo o comprimento da tenda. À medida que passavam pelas filas densamente preenchidas por
homens em evidente agonia, Cato sentiu crescer em si a fúria relativamente às ações do general. A maior parte daqueles homens não estaria ali se Ostório não tivesse
tomado aquela estúpida decisão de ordenar um ataque frontal contra uma posição tão bem defendida. Não conseguia deixar de pensar que o legado Vespasiano nunca teria
cometido aquele erro, se fosse ele a estar no comando. Recordava o seu primeiro comandante com admiração, e uma lealdade que quase se confundia com alguma afeição.
Se houvesse justiça naquele mundo, um dia Vespasiano haveria de alcançar a posição e a patente que os seus talentos justificavam e mereciam, pensou Cato. Ali estava
um homem que ele seguiria para qualquer batalha sem pensar duas vezes.
Quando se aproximou da extremidade da tenda, viu Sétimo, com uma ligadura limpa enrolada em torno da cabeça, a sentar-se. Uma pequena mancha vermelha denunciava
o ponto em que o sangue ensopara o tecido, na zona diretamente por cima da ferida no escalpe. O agente levantou o olhar ao notar a sua chegada, e lançou um sorriso
enfraquecido.
- Prefeito Cato e centurião Macro! - Obrigou-se a alargar o sorriso. - Os dois clientes preferidos de Hiparco, fornecedor dos melhores vinhos do campo militar!
Os homens mais próximos agitaram-se, e um gritou um protesto, pedindo silêncio para não perturbar o descanso dos feridos. Sétimo ignorou-o e apoiou-se nos cotovelos.
- Como está a cabeça? - quis saber Cato, enquanto ele e Macro se acomodavam, um de cada lado do agente de Narciso.
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- Não está muito mal. Ainda me sinto um bocado tonto, mas espero sair daqui para fora ainda hoje. Não me parece que seja capaz de suportar a companhia destes mariconços
muito mais tempo.
- Ei - rosnou Macro. - Estes mariconços, como lhes chamas, são meus camaradas de armas.
Sétimo arqueou uma sobrancelha.
- Isso explica muita coisa.
Olhou em redor, para ter a certeza que nenhum dos vizinhos estava a prestar atenção à conversa, e baixou a voz, ao prosseguir.
- Já apanharam Carátaco? Aqui dentro não se tem falado de outra coisa.
Cato abanou a cabeça.
- Escapou do campo no teu vagão. Passou pelo portão leste e desapareceu nas montanhas.
Sétimo fez uma careta.
- Oh, merda...
- O que é que recordas da noite passada?
A testa de Sétimo franziu-se, enquanto ele tentava relembrar os pormenores.
- Tinha acabado de apanhar o meu escravo agarrado a uma das ânforas. Estava a preparar-me para lhe dar o devido castigo, mas ele estava tão bêbado que nem percebia
o que se passava, portanto resolvi adiar o castigo para hoje de manhã. Decidi então ir à vossa procura enquanto ainda havia alguma luz. Não sabia da minha bolsa,
e calculei que podia ter-me caído do cinto quando tinha estado à conversa na tenda do prefeito. Vi o Thraxis a sair da tenda para ir ajudar os homens a prenderem
melhor as outras, e entrei. Não estava ninguém, portanto pensei que podia ficar por ali, à espera, para perguntar pela bolsa. Foi nessa altura que ouvi uma confusão
ali perto. Saí para ver o que se passava e vi a porta do recinto prisional aberta. - Olhou diretamente para Cato. - Foi nessa altura que alguém se aproximou por
trás de mim e me derrubou. Antes que conseguisse reagir, o tipo estava nas minhas costas, a empurrar-me a cara para o chão e com uma faca encostada à minha garganta.
Perguntou-me quem era eu. Contei-lhe a história. Ouvi uma troca de palavras, e depois fui posto de pé. Consegui nessa altura ter um vislumbre do tipo que me tinha
derrubado. Um homem grande, de cabelo comprido.
- Carátaco?
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- Só podia ser.
- E o outro?
- Não o consegui ver. Manteve-se sempre por trás de mim, sem me dar oportunidade de o identificar.
Cato pensou uns momentos.
- Quando falaram, foi em latim?
- Sim.
Cato assentiu.
- E o que aconteceu a seguir?
- O Carátaco foi-me empurrando, sempre com a ponta da faca a pressionar-me as costelas. Ordenou-me que os conduzisse até ao meu vagão, e que não tentasse fugir,
nem lançar o alarme, ou sequer olhar para trás, se queria viver.
- E ninguém viu o vosso alegre grupo a passear pelo campo? - indagou Macro. - Ninguém suspeitou de nada?
Sétimo abanou a cabeça.
- Toda a gente estava preocupada com outras coisas. Quem é que se ia incomodar com três homens a passar pela zona dos seguidores civis, quando estava tudo ocupado
a tentar salvar os seus negócios, no meio da tempestade? Portanto, levei-os até à minha área, e estava junto à traseira do meu vagão... é a última coisa de que me
lembro, antes de recobrar os sentidos já nesta tenda.
- Não te lembras de te termos encontrado? Eu e o Macro?
Sétimo fechou os olhos por momentos e abanou a cabeça.
- Bem, seja... - Cato suspirou e refletiu brevemente no que acabara de ouvir. - Foi então azar teres ido à minha tenda naquele momento.
Sétimo fitou-o desconfiado.
- O que está a sugerir?
- Não estou a sugerir nada. Como disse, foi apenas falta de sorte.
Macro soltou um sorriso fino.
- E uma sorte do caraças para o Carátaco e o seu misterioso amigo.
- Faz parte da natureza de coincidências deste género - ripostou Sétimo, em tom calmo. - Os deuses gostam dos seus pequenos jogos. O general já sabe que houve outra
pessoa envolvida?
- Sim.
Sétimo deixou escapar um assobio desapontado.
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- Nesse caso, o nosso homem já sabe que está a ser procurado, e vai tornar-se muito discreto.
- Talvez não. O Ostório está convencido de que o Carátaco foi ajudado por um dos nativos que estão entre os seguidores civis. Acha que ele plantou um espião na comitiva
do exército, e vai entrar a matar pelo grupo dos nativos até descobrir um culpado.
- Ui, isso vai doer. Porém, se eu fosse o general, faria provavelmente o mesmo.
- Se o Ostório está decidido a pôr a culpa num espião nativo, é bem possível que o verdadeiro culpado pense que se safou, e não sinta tanta necessidade de se ocultar.
Isso dá-nos alguma vantagem.
- De facto - concordou Sétimo. - Bem importante.
Macro fungou.
- Vocês os dois são mesmo tipos amigáveis.
Cato olhou para o amigo com uma expressão de surpresa.
- O que quer dizer com essa?
- O general prepara-se para varrer o campo dos comerciantes de uma ponta à outra, e entregar quaisquer suspeitos nas mãos dos verdugos do exército, para serem interrogados,
e tudo o que vocês conseguem dizer é que acham que isso nos vai ser útil.
- Bem, é assim mesmo - insistiu Sétimo. - Por que carga de água é que me hei de importar com o que acontece a uma meia dúzia de palermas de cu peludo? Há coisas
bem mais importantes com que nos preocuparmos, centurião. Estamos a falar do destino de toda uma província. E talvez da sorte do próprio Imperador. Estou-me a cagar
para uns bretões que não caíram no goto do general Ostório.
Macro deu um estalo com a língua.
- Como eu disse, são mesmo uns tipos amorosos. São momentos como este que me lembram da razão por que sou um soldado, em vez de uma serpente traiçoeira a soldo de
um liberto imperial.
- A sério? - Sétimo encarou-o com um olhar frio. - Francamente, a razão para certas pessoas não serem agentes imperiais tem provavelmente muito mais a ver com a
falta da necessária argúcia.
Macro rangeu os dentes.
- Argúcia? Foda-se, mas o que vem a ser isso? Estás a chamar-me burro, ou qualquer coisa do género?
Cato intrometeu-se entre eles.
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- Já chega! Pelos tomates de Júpiter, já temos bastante com que nos preocuparmos, sem que vocês os dois andem às turras. Guardem os vossos belos sentimentos recíprocos
para vocês mesmos, percebem? Estou-me nas tintas se vocês se odeiam realmente, o que temos a fazer agora é encontrar este traidor e pôr fim aos esquemas de Palias.
Macro?
O centurião soltou um som que parecia um rugido profundo, mas acabou por anuir.
- Muito bem. Mas aviso-te já. Quando esta história estiver terminada, não quero ter mais nada a ver contigo ou com os da tua laia. - Apontou um dedo a Sétimo. -
Voltas a aproximar-te de mim, e torço-te o pescoço.
O agente imperial sorriu friamente.
- Isso, partindo do princípio que dá pela minha chegada.
Cato estava completamente exaurido e a paciência acabou por se lhe esgotar de vez.
- Foda-se! Já chega!
As cabeças em redor voltaram-se para a origem da explosão de mau humor, e Cato levantou-se de repente. Olhou para o agente de Narciso e concluiu, em voz baixa:
- Vou dizer ao general o que nos contaste, mas não lhe direi que os atacantes falavam latim. Se ele te quiser interrogar pessoalmente, não refiras esse detalhe.
Sétimo anuiu.
- Voltaremos a falar quando deixares a enfermaria. Macro, vamos.
- Cato indicou ao amigo que o acompanhasse na direção da entrada da longa tenda. - Embora.
Uma vez no exterior, no conforto quente do Sol radioso, Cato virou-se para o centurião.
- Sei muito bem o que pensa do Narciso e dos do seu género, mas acha que nos ajuda estar sempre a falar disso?
Macro cerrou os punhos.
- Cato, há uma série de anos que estes gajos nos andam a foder a torto e a direito. Um trabalho de merda a seguir ao outro. O Narciso disse que já não precisava
de nós. Quando deixou Roma, disse-nos que nos ia enviar para a Britânia, para as fileiras do exército, e que os nossos dias de espionagem tinham terminado. Foi o
que ele disse. Mentiroso dum cabrão.
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- Acha que eu não sinto o mesmo? - ripostou Cato, pleno de azedume. - Acha que me agrada andar a fazer de espião outra vez? Estamos metidos nisto, quer queiramos
quer não, Macro. Não podemos evitá-lo. Não podemos simplesmente escolher sair. O Sétimo tinha razão quanto à existência de um agente de Palias. E isso quer dizer
que também estava a dizer a verdade quando afirmou que alguém tinha sido enviado para nos liquidar. Alguém nos quer mortos. Tem a certeza que quer ignorar essa ameaça?
Macro lutou para recuperar o controlo das suas emoções, e por fim acabou por abanar a cabeça.
- Evidentemente que não.
- Nesse caso, Macro, ajude-me. Ajude-me a deslindar esta história, a encontrar o traidor e a fazê-lo desaparecer. Para podermos voltar a ser apenas soldados. Ajude-me
a regressar um dia para junto da Júlia. O que me diz? - Estendeu a mão.
Apertaram os braços um do outro, e Macro soltou um suspiro exasperado.
- Desculpa, miúdo. É que estou mesmo fartinho de todo, de Sétimos e tipos da mesma laia.
- Também eu. - Cato ensaiou um sorriso fatigado.
Macro deixou cair o braço ao longo do corpo.
- Então, e agora?
Cato soprou as bochechas e deixou o olhar percorrer o campo.
- O Carátaco está em fuga. É pouco provável que o recapturemos. O general prepara-se para transformar em inimigos os poucos nativos amigáveis que existem por estas
bandas. Há um traidor no campo, preparado para fazer o que for preciso para levar à queda do Imperador, e que tenciona matar-nos assim que tiver oportunidade para
isso. O que vou eu fazer agora? Bom, digo-lhe já. Vou voltar para a minha tenda e vou dormir como se vivesse na paz absoluta. E, quando acordar, prometo não descansar
enquanto não descobrir o grandessíssimo cabrão, filho da puta, que libertou o Carátaco e matou dois dos nossos homens.
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Quando o exército regressou por fim à sua base em Viroconium, o
moral dos homens já estava completamente recuperado, e foi com
um passo orgulhoso, quase festivo, que atravessaram os portões da fortaleza, atrás dos seus estandartes. O general Ostório e os seus oficiais seguiam à frente da
coluna, de armaduras brilhantes e imaculadas a cobrir túnicas escarlates, frescas e limpas. A guarnição da fortaleza tinha sido avisada do iminente regresso do general,
e alinhava-se na base das muralhas, a aclamar os seus camaradas vitoriosos. Os homens da coluna responderam com o mesmo entusiasmo, enquanto contemplavam os confortos
das casernas, das refeições a intervalos regulares, e de uma muito antecipada visita aos banhos da povoação adjacente, que continuava a crescer perto das muralhas
e do fosso da grande fortaleza romana.
As unidades de legionários que tinham estado envolvidas na batalha tinham direito às posições de honra na vanguarda da coluna. Por trás delas vinham as unidades
auxiliares que se tinham encarregado de desbaratar os restos do exército inimigo. As aclamações que receberam os soldados na cabeça da coluna chegaram até aos seus
ouvidos, e eles sorriram, com alguma inveja das celebrações dos seus camaradas legionários, enquanto partilhavam com eles os pensamentos sobre os confortos de Viroconium.
Atrás dos auxiliares vinha a longa coluna de prisioneiros, agrilhoados e acorrentados em conjunto, uma verdadeira maré de miséria e desespero, composta sobretudo
por homens, mas onde se viam também mulheres e crianças, estas condenadas a uma vida de escravidão ainda antes de terem tido oportunidade de saborear a liberdade
que era um direito inato dos descendentes da casta guerreira da sua tribo. A ladear os prisioneiros vinha uma coorte de cavalaria bataviana, vigiando-os de perto
e garantindo que eles seguiam ao mesmo ritmo do resto da
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coluna, evitando assim que ela tivesse de parar ou seguisse em grupos desligados. Uma pancada com o cabo de uma lança ou um ligeiro toque da ponta aguçada eram o
suficiente para fazer espevitar o passo a quem começasse a arrastar-se.
Por fim vinha o comboio das bagagens, alguns quilómetros atrasado em relação à vanguarda da coluna, e de onde era impossível dar pela triunfante entrada do general
e das suas legiões na fortaleza. Os vagões e carroças do exército vinham primeiro, com as peças de artilharia desmontadas, que incluíam as balistas e também as catapultas,
de maiores dimensões. Os vagões pesados transportavam abastecimentos e equipamentos necessários à manutenção de um exército em campanha. Por fim, vinham os veículos
atribuídos aos médicos das legiões, repletos de homens em recuperação dos ferimentos sofridos no campo de batalha.
Os que tinham morrido pouco depois do combate haviam sido colocados nas enormes piras funerárias que tinham ardido no exterior do campo; os que tinham falecido ao
longo dos dias tinham sido simplesmente enterrados junto aos campos construídos no termo de cada dia de marcha. As suas campas tinham ficado marcadas com pedras
simples, gravadas à pressa com os seus nomes e unidades, e um breve pedido aos deuses, para que cuidassem dos seus espíritos. Apesar de feridos, os homens nos vagões
médicos estavam também de bom humor, graças à generosa dose de vinho que tinham recebido por ordem do general Ostório. Muitos depressa tinham sucumbido aos vapores
do álcool e o quente ar do campo britânico ressoava com canções de marcha entoadas em desalinho, brindes sortidos e gargalhadas animadas.
No fim da coluna vinham os acompanhantes civis, centenas de comerciantes de todos os géneros, proxenetas e prostitutas, artistas, mercadores de escravos, e também
as sofredoras e não oficiais famílias de muitos soldados. Segundo a lei, a nenhum homem com o posto de centurião ou mais baixo era permitido contrair matrimónio.
Porém, os soldados eram criaturas de carne e osso, e muitos deles formavam ligações com mulheres que viviam fora das fortalezas do Império, e com elas concebiam
crianças. Essas pobres criaturas, refletiu Cato, não tinham outra sina que não a de seguirem a custo o exército, por montes e vales, completamente dependentes para
a sua sobrevivência da magra paga que o soldado a quem estavam ligadas recebia. Se ele tombasse numa batalha, talvez tivessem direito a uma pequena soma, por vontade
expressa
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em testamento - se ele o tivesse feito. Caso contrário, ficariam sem qualquer sustento, até que a mãe conseguisse ligar-se a outro homem. Em volta destes pequenos
grupos familiares viajavam os carros dos que seguiam o exército com intuitos comerciais, empilhados até cima com iguarias, bebida e todos os pequenos luxos que os
soldados almejavam nos momentos de folga.
À distância, atrás do último grupo de civis, marchava a coorte auxiliar da retaguarda. No início da marcha o solo ainda tinha estado empapado da chuva, e os homens
da Coorte Segoviana tinham tido de negociar o terreno revolto que a passagem de milhares de botas, cascos e rodados lhes deixara para percorrer. Agora o sol já tinha
exercido o seu poder sobre o terreno, embora ainda não tivesse chegado ao igualmente irritante ponto em que o solo se tornava tão seco que a passagem de um vasto
exército levantava uma tal nuvem de poeira que esta se instalava em todos os sítios e enchia bocas e olhos com um pozinho fino e exasperante.
Macro e Cato seguiam ao lado do comboio das bagagens, e os seus homens estavam dispostos numa vasta cortina defensiva que protegia os dois flancos da linha de marcha.
Cato tinha decidido que não lhe estava a apetecer continuar na sela, pelo que tinha deixado a montada ao cuidado de Thraxis e resolvera caminhar o que faltava do
caminho até Viroconium. A escolta estava de facto tão reduzida em número de homens que até um pequeno bando de atacantes poderia causar graves problemas e fugir
com um bom espólio antes que Cato conseguisse reunir soldados suficientes para os repelir. Mas o inimigo não dava qualquer sinal de vida enquanto o exército romano
recolhia a Viroconium.
De tempos a tempos, passavam por uma pequena aldeia ou outra povoação, cujos habitantes se tinham escondido ao notar a aproximação do exército. Por vezes Cato conseguia
distinguir figuras distantes no cimo de colinas, a observá-los. Nunca mais de um punhado. Muito provavelmente grupos de caçadores, e não de guerreiros empenhados
em atacá-los. Nunca se tinham atrevido a aproximar-se, e desapareciam assim que qualquer pequeno grupo de cavalaria romana parecia dar mostras de sair ao seu encontro.
A derrota do exército de Carátaco parecia ter quebrado qualquer vontade de continuar a luta, nas nações silura e ordovica. Porém, Cato tinha bem presente que, se
o rei catuvelauno voltasse a erguer o seu estandarte, muitos acorreriam de novo a juntar-se a ele, como já ocorrera a seguir a outras derrotas.
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- Não me vai custar nada trocar a tenda e a enxerga por uma caserna seca e uma cama decente - comentou Macro, esforçando a vista sobre a paisagem por onde seguiam,
tentando vislumbrar Viroconium.
- Não, também diria que não - concordou Cato, de pensamento ausente. Ainda se preocupava com o desaparecimento de Carátaco, e com a necessidade de descobrir a identidade
do agente que Palias enviara para os assassinar. A única vantagem de que dispunham era o facto de esse agente não fazer ideia de que Sétimo o caçava a ele. Essa
fora a única razão por que lhe tinham permitido viver, quando lhe tinham roubado o vagão, raciocinou Cato. Se o servidor de Palias soubesse da verdadeira identidade
de Sétimo, tê-lo-iam encontrado com uma faca cravada nas costas, em vez de um galo na cabeça. Com um pouco de sorte, encontrariam e eliminariam o agente inimigo
antes que ele tivesse oportunidade de provocar mais problemas.
- E há a perspetiva, claro, de receber reforços. - Macro esforçava-se para manter a conversa viva. - Será muito bom voltar a ter gente nas fileiras. Somos mesmo
muito poucos. Esperemos que o general tenha pedido que nos enviem homens da Segunda.
À menção da legião em que tinham servido tanto tempo, Cato recordou a unidade de elite que estivera sob o comando de Vespasiano, e que agora estava estacionada em
Isca Dumnoniorum. Para lá de manter uma vigilância mais ou menos apertada sobre as tribos locais, a legião funcionava sobretudo como centro de treino. Recebia as
colunas de recrutas enviadas da Gália e tratava de complementar o treino básico dos homens já em solo britânico, antes de os despachar para as outras unidades do
exército romano na ilha. Cato resolveu que deixaria a integração dos novos elementos nos Corvos Sangrentos ao cuidado de um veterano de cavalaria, como Miro. Sim,
o melhor seria deixar que o decurião Miro tratasse disso, confirmou para si mesmo. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Apercebeu-se de que não respondera à ideia expressa pelo amigo, e relembrou rapidamente a troca de palavras anterior, antes de limpar a garganta e se pronunciar.
- Macro, se fosse a si não teria grandes esperanças. A escolta do comboio das bagagens e os seus oficiais, sobretudo, ainda continuam na lista negra do general.
Se houver reforços para distribuir, temo bem que nós nos vamos ver no fim de uma longa lista.
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- Caramba, estás mesmo a transbordar com as alegrias desta vida, não estás?
- E pode criticar-me por isso? O Ostório deitou as culpas da fuga de Carátaco para cima de nós, e pode ter a certeza que não se vai esquecer de tornar esse facto
conhecido em Roma. Se a sua versão dos eventos for aceite, ficaria realmente espantado se no futuro imediato nos fosse atribuído o comando de algo mais relevante
do que um bloco de latrinas.
- E pronto, lá estamos nós outra vez na merda, não é? - lançou Macro.
Cato não conseguiu evitar uma risada, e Macro aplicou-lhe uma leve palmada nas costas.
- Ora bem, miúdo! Afinal sempre é possível ensinar-te a sorrir.
- A sério, Macro, não vejo grandes razões para alegrias. O nosso regresso às fileiras não tem sido propriamente um sucesso retumbante.
- Oh, também não nos temos dado assim tão mal. Conseguimos aguentar Bruccium contra o exército de Carátaco, e tratámos-lhe da saúde na colina. Ninguém nos pode tirar
isso. Os rapazes que andaram a patinar na lama sabem perfeitamente aquilo que fizemos.
Cato suspirou.
- Suponho que sim. Mas isso de pouco nos servirá em Roma. Macro, estamos nas mãos dos deuses. E os deuses têm por costume revelar um bizarro sentido de humor, mesmo
nas melhores ocasiões.
- Nesse caso, devias dar-te bem entre eles. É tempo de oferecer um sacrifício a Fortuna, digo eu. Olha, Cato. Não há nada que possamos fazer quanto à situação atual,
não é?
- Sim, é.
- Portanto, o que é que interessa passar o tempo a protestar, e todo chateado com o estado das coisas? Já te digo. Esta noite, depois de regressarmos às casernas,
vamos à povoação e apanhamos uma carraspana das antigas. Pago eu.
Cato pensou por momentos, e anuiu.
- Muito bem. É para a desgraça, então.
Dois dias depois, Cato e Macro estavam junto à plataforma elevada para revistas, no exterior da fortaleza de Viroconium. Esta tinha sido alargada para acolher uma
segunda legião, e vários fortins tinham
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sido construídos para albergar as unidades auxiliares destacadas para o exército durante as campanhas contra as tribos das montanhas. À frente dos dois oficiais
estendia-se a parada, um vasto retângulo de terreno desbravado pelos engenheiros do exército ao tempo da construção inicial da fortaleza, havia dois anos. Os homens
da escolta, de fileiras já mais compostas graças aos reforços entretanto recebidos, estavam formados à frente dos seus comandantes.
Estando Carátaco ainda em fuga, o general não dera ordens para dispersar as forças, e o destacamento formal da Nona Legião para o exército tinha aumentado o aperto
nas congestionadas casernas da fortaleza. Mesmo com as baixas provocadas pela batalha recente, a chegada de uma coluna de reforços obrigara a que algumas coortes
de legionários fossem aboletadas nos fortins. Por essa razão, e por existir uma ténue possibilidade de o exército se ver obrigado a marchar de novo para a guerra,
a escolta do comboio das bagagens mantinha-se constituída, e os legionários partilhavam um fortim com os trácios, separado da fortaleza principal pelo terreno destinado
à instrução.
Tal disposição era particularmente apreciada por Cato, que tentava manter-se longe do general Ostório. Para os homens, também era a preferida, já que com um fortim
só para eles, tinham muito espaço disponível, devido às baixas sofridas. Essa abundância de espaço, todavia, não durou muito, já que as duas unidades depressa receberam
novos recrutas para compor as suas fileiras empobrecidas. Pouco mais de duzentos homens para Macro, e cento e cinquenta batavianos para Cato, além de duzentas novas
montadas. Não eram suficientes para voltarem a ter o efetivo completo, mas eram ainda assim muito bem-vindos. Como era tradicional, os centuriões que comandavam
as primeiras coortes de cada legião tinham tido o direito de serem os primeiros a escolher entre os reforços, e a ordem seguira a hierarquia de antiguidade dos comandantes
das outras coortes. Macro estava longe de se sentir agradado com os homens que pudera escolher quando por fim chegara a sua vez.
- Não são tão impressionantes como a força que tínhamos em Bruccium - comentou.
Cato observou cuidadosamente as fileiras antes de responder. Os novos legionários apresentavam-se perfeitamente ataviados nos seus equipamentos novos em folha. Os
capacetes reluziam e ainda não tinham a mais pequena mossa, risco e outras imperfeições que caracterizavam
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os dos veteranos acabados de regressar de uma campanha. O mesmo se aplicava aos escudos. E os cintos e bainhas de espadas ainda não estavam personalizados, como
acontecia com os dos camaradas mais experientes; todos os couros e metais ainda cheiravam a novo, já que tinham vindo diretamente dos depósitos da Gália. A maior
parte dos homens já tinha tido instrução básica depois de desembarcarem em Isca Dumnoniorum, mas ainda precisavam de muito treino aturado antes de estarem ao nível
dos veteranos das duas coortes.
- Vamos lá ver isto de perto - decidiu Cato.
Dirigiram-se à ponta da primeira fila de legionários, e começaram a percorrê-la lentamente. Macro tinha tencionado permitir aos veteranos manterem-se nas suas antigas
secções de oito homens, completando-as com os recém-chegados quando fosse caso disso. Sabia bem, dos seus longos anos nas fileiras, o valor que possuía um grupo
de homens com ligações profundas, acostumados a viver e a combater lado a lado, e a confiar uns nos outros. Cato, porém, discordara, e resolvera que os veteranos
constituiriam os núcleos das centúrias reconstruídas da Quarta Coorte. Assim, poderiam transmitir mais facilmente a sua experiência e conhecimentos aos novos homens.
A coorte voltara a ter seis centúrias, embora nenhuma delas tivesse o efetivo completo, e fora necessário escolher vários novos optios, bem como promover quatro
dos antigos ao centurionato. A diluição da experiência através da coorte queria dizer que Macro teria de os treinar com toda a dureza para voltar a ter unidades
prontas para o combate, mas essa tarefa era-lhe de facto muito aprazível, e ele ansiava por ela. Aquela formatura na parada servia para uma apresentação formal dos
recrutas aos seus novos comandantes, e o olho clínico de Macro escrutinava cada homem enquanto passava por ele. De vez em quando, os dois oficiais detinham-se e
examinavam ao pormenor um dos recrutas de face fresca.
- Tu! - berrou Macro, enquanto apontava com veemência a ponta da vareta a um dos soldados. - Nome?
O legionário, alto e esguio, apresentou o dardo e pôs-se em sentido. O movimento foi feito de acordo com as devidas regras, notou Cato, aprovando.
- Legionário Gneu Loreno, senhor!
- De onde és? - inquiriu Macro.
- Massília, senhor.
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- Idade?
- Dezanove, senhor.
- O caralho! Não me pareces sequer ter idade suficiente para fazer a barba.
O recruta cometeu então o erro de virar o rosto para Macro, surpreso pelas dúvidas do centurião.
- Foda-se, mas quem é que te mandou olhar para mim? Olhos em frente!
- Sim, senhor! Desculpe, senhor.
- Foda-se outra vez, mas que história é essa de estares sempre a pedir desculpa? Estás na parada, não estás numa festarola dalgum ator larilas!
- Sim, senhor. - O recruta voltou a errar, quando não conseguiu reprimir um ligeiro sorriso em resposta ao comentário de Macro.
Num repente, Macro avançou para ele, de tal forma que os rostos dos dois ficaram separados por poucos centímetros. A diferença de alturas entre os dois homens obrigava
o centurião a inclinar a cabeça para trás para olhar para o recruta.
- Legionário Loreno, dou-te vontade de rir, é? - começou.
- Não, senhor.
- Estás então a dizer que eu não tenho sentido de humor, caralho? É isso?
- Não, senhor.
- Porra, Loreno, então estás a gozar comigo? É isso? Estás-te a rir de mim, meu grande jarro de mijo?
O homem vacilou de novo, deixando o olhar descair até encarar Macro, que aproveitou a ocasião para empurrar a ponta da vareta com toda a força contra a cota de malha
do recruta.
- OLHOS EM FRENTE! Perguntei-te se estavas a gozar comigo.
- N-não, senhor - tentou o soldado responder.
- Não acredito em ti. Optio! - Macro virou-se para o superior imediato do recruta. - Legionário Loreno. Faxina. Cinco dias!
- Sim, senhor! - O optio fez uma rápida inscrição na tábua encerada que trazia consigo.
Cato tinha permanecido impassível a assistir àquela troca de palavras. Relembrava claramente o duro tratamento a que fora submetido quando se juntara à Segunda Legião.
O centurião, com o apropriado nome de Besta, tinha feito da sua vida uma completa miséria, e Cato
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ainda sentia um arrepio ao lembrar o receio que aquele instrutor lhe provocara. Na altura, tinha acreditado piamente que Besta era um monstro cruel, mas entretanto
tivera inúmeras oportunidades para reconhecer o verdadeiro propósito do pesado tratamento que era dado aos recrutas. Os soldados tinham de manter a cabeça fria em
toda e qualquer ocasião. A disciplina tinha de vir tanto de dentro deles como de fora. E o processo tinha início ali, no campo de treino, onde aprendiam a manter
o olhar fixo em frente, a dar respostas diretas e a não se deixarem perturbar por nada que acontecesse ao seu redor. E só terminava quando enfrentavam o inimigo
em batalha com toda a frieza, esquecidos do instinto e prontos a confiar a vida ao treino recebido.
Macro seguiu ao longo da fila, com Cato ao seu lado. Vários homens receberam a mesma dose de tratamento, até que Macro os deixou entregues aos respetivos oficiais,
para uma sessão de instrução. À medida que a Primeira Centúria se afastava, Macro virou-se para o amigo e esfregou as mãos, verdadeiramente empolgado.
- Ah! Não perdi o jeito. Ainda lhes consigo pregar um belo cagaço.
- É verdade. Mas pensava eu que a ideia era treiná-los, e não aterrorizá-los.
- Ora, depressa aprenderão, assim que deixarem de se borrar perante uns berros. Ah, até parecem os bons velhos tempos. Trabalho de soldado. Não há nada como isto.
Cada treino uma batalha sem sangue, cada batalha um treino sangrento.
Cato sorriu, deixando o amigo discorrer. Aquele era o ideal de vida de Macro. A oportunidade de moldar homens, de fazer deles soldados profissionais, duros e disciplinados,
enchia-lhe o peito de orgulho e fazia dele um homem realizado. O que Macro fazia de forma tão natural era para Cato uma tarefa penosa. Ainda se sentia desconfortável
a berrar insultos na cara de recrutas com ar de crianças, e agradecia aos deuses por o terem elevado a uma patente que o colocava acima dessas tarefas.
Os reforços que tinham sido atribuídos à Segunda Trácia representavam outro tipo de problema. Na sua larga maioria provinham da Batávia, e já eram experientes cavaleiros
e combatentes. Altos, espadaúdos e quase todos de cabelo louro, tinham um ar fortemente contrastante com os trácios de tez escura que tinham originalmente constituído
a unidade. Os batavianos tinham de aprender a aceitar os costumes e estilo dos seus camaradas. Os Corvos Sangrentos tinham conseguido, a custo, uma
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reputação de ferocidade, e tinham cultivado uma aparência que os fazia parecer mais um grupo de cavalaria irregular do que uma unidade enquadrada no exército romano.
Tinham servido Cato de forma perfeita até àquele momento, e ele tinha toda a intenção de manter a unidade no mesmo registo.
Ao iniciar a inspeção dos soldados, alinhados com as montadas, o contraste entre batavianos e trácios provocou-lhe alguma preocupação. Parou à frente do primeiro
dos decuriões, um recém-chegado com uma face cheia de cicatrizes e rugas. Evidentemente um veterano de muitos combates, que provavelmente não tinha triunfado em
todos eles.
- Como te chamas?
- Decurião Avergo.
- Avergo? Só?
- Sim, senhor. Foi esse o nome que me deram quando nasci. Não vejo qualquer razão para o alterar. - O latim do homem era bom, embora se notasse a pronúncia; como
todos os do seu povo, tinha tendência a falar num tom mais elevado do que era necessário. Um bom atributo para um soldado, pensou Cato, mas um tanto cansativo em
termos de sociabilidade.
Deitou uma olhadela a Macro. Era usual que os soldados auxiliares, que provinham de zonas não romanas, adotassem nomes romanizados ao alistarem-se, sobretudo porque
ao fim do período de serviço lhes era atribuída a cidadania romana. A escolha de manter o seu nome tribal podia significar que o decurião se sentia orgulhoso da
sua ascendência, mas também podia querer dizer que ele desprezava os costumes romanos. Cato decidiu que tinha de manter Avergo sob estreita vigilância.
- Avergo, a maior parte destes homens foi recrutada ao mesmo tempo que tu?
- Sim, senhor. Pertencemos à mesma tribo. De uma aldeia nas margens do Reno, perto de Moguntum. Todo o grupo veio da mesma povoação.
- Quantos falam latim?
Avergo pensou um momento, antes de responder.
- A maior parte dos rapazes da aldeia sabem o suficiente, senhor. Os que vieram das quintas nos arredores, nem por isso.
- Estou a ver. E quanto a ti? Pareces ser fluente na nossa língua.
- O meu pai é comerciante em peles, senhor. Fornece-as às guarnições
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locais. Passei mais tempo em fortes romanos do que em casa, enquanto crescia.
- Nesse caso, faço de ti o instrutor de latim dos novos homens. O decurião Miro indicar-te-á quais são as ordens e termos fundamentais, que eles devem primeiro aprender.
E esses, têm de os conhecer depressa. O resto poderás ensinar-lhes depois, quando já souberem responder a ordens.
O pesado sobrolho de Avergo enrugou-se.
- Há algum problema?
- Não, senhor... Sim, senhor. Não tenho grande jeito para ensinar.
- Ora ainda bem - interrompeu Macro. - Porque isto aqui é o exército, não é nenhuma escola de merda. O prefeito deu-te uma ordem, e tu só tens é que lhe obedecer.
Entendido?
- Sim, centurião.
Cato assentiu.
- Ótimo.
Prosseguiu, sem se preocupar em deter-se e atormentar mais algum dos novos elementos, já que não fazia grande sentido gritar com um homem que não entendia uma palavra
do que lhe diziam. Quando chegou junto do decurião Miro, parou.
- O novo lote parece ter aspeto de poder vir a produzir bons soldados.
- Sim, senhor. Servirão perfeitamente, assim que receberem toda a instrução. A seu tempo acabarão por se tornar merecedores de pertencer aos Corvos Sangrentos.
- Trata de te assegurar que eles ficam a saber que esse é um nome de que se devem orgulhar. Podes prosseguir, decurião Miro.
Trocaram uma saudação formal, antes de Miro dar um passo atrás e se virar para os homens.
- Oficiais! Comigo!
Cato assentiu, satisfeito. Miro sabia bem o que tinha a fazer, e podia confiar nele para dar o treino necessário aos homens. Virou-se para Macro.
- Venha comigo.
Afastaram-se das duas formações, enquanto os oficiais distribuíam ordens na condução da instrução de rotina: ordem unida, manobras em formação, prática de armas
e exercícios físicos para desenvolver força e
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resistência. Cato subiu a rampa que levava à plataforma de revista e apreciou os movimentos de homens e animais do destacamento da escolta, antes de voltar a fixar
a atenção em Macro.
- O que se diz no quartel-general é que o Ostório deu ordens para interromperem os interrogatórios aos civis de origem nativa, e libertá-los.
- Já não era sem tempo. Os interrogadores descobriram alguma coisa que não soubéssemos já?
- Nada. Quem quer que tenha ajudado o Carátaco a escapar é um de nós.
Macro fez estalar os nós dos dedos.
- Estás seguro de que isto foi obra do tal agente do Palias, não estás?
Cato anuiu.
- É o que faz mais sentido. Dado o que o Sétimo nos disse.
- E confias nele?
- Tenho as minhas reservas. Afinal de contas, é filho de quem é. Mas a fuga de Carátaco prova que ele tinha razão acerca das intenções de Palias, de fazer com que
a província seja abandonada e assim destruir o apoio que o Cláudio ainda tem em Roma.
Macro concordou.
- Mas há coisas piores que podem acontecer. A nós.
- Precisamente. - Cato suspirou. - Ao que parece, temos de andar com olhos nas costas, e tudo graças aos nossos antigos assuntos com Narciso. Até agora temos tido
sorte...
- Até agora, sim.
Na noite seguinte, o general Ostório convocou os seus oficiais para uma reunião no quartel-general, a primeira do género em vários dias. O edifício do pretório era
uma vasta estrutura em madeira, que dominava as outras edificações de grande dimensão erigidas no coração da fortaleza: os celeiros, as acomodações dos tribunos,
o armeiro, o hospital e os estábulos para as montadas dos oficiais e dos batedores da Vigésima Legião. Era o fim da tarde, e uma luz dourada derramava-se sobre a
fortaleza, lançando compridas sombras na rua que Cato e Macro percorriam, enquanto se aproximavam do arco de entrada do edifício.
Em redor dos dois amigos ouvia-se o barulho de fundo do campo, onde os homens terminavam os turnos de serviço e viravam a atenção
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para a preparação da refeição vespertina. Aqueles que tinham tido a sorte de receber uma licença já estavam a imaginar os prazeres de que desfrutariam na povoação
civil que se estendia pelas colinas nas redondezas das muralhas de Viroconium. Depois da dureza da campanha, o exército acomodava-se com prazer à rotina pacífica
da vida de guarnição, e pela fortaleza tinha-se espalhado um sentimento de bem-estar.
Macro aspirou o cheiro acre da madeira a queimar nas fogueiras e sorriu, satisfeito.
- A vida não consegue ficar muito melhor do que isto.
As sobrancelhas de Cato franziram-se por momentos.
- A sério? Por mim, facilmente consigo almejar bem melhor. Podia muito bem passar sem o opróbrio que o general lançou sobre mim por causa da fuga de Carátaco...
cuja culpa dificilmente me pode ser atribuída. Temos um ardiloso inimigo à solta por aí, e eu preferia não ter de me preocupar com um assassino enviado de Roma para
nos liquidar. Neste preciso momento, com toda a franqueza, preferiria estar muito, mas muito longe daqui, a salvo, nos braços da minha mulher.
Macro riu.
- Aposto que sim.
Continuaram a caminhar em silêncio, mas depressa Macro voltou a encetar a conversa.
- Cato, estava apenas a referir-me a este momento, aqui e agora. Põe lá tudo o resto de lado, e diz-me que isto não te sabe bem.
A curta distância à sua frente, um dos escravos do general passeava dois dos seus cães de caça. Um deles parou de súbito, mesmo à frente de Cato, e dobrou as patas
de trás para defecar. Cato não evitou um sorriso, enquanto apontava para o animal.
- Ora ali está o que retrata bem a situação atual, do meu ponto de vista.
- Foda-se, caramba - desabafou Macro, antes de respirar fundo e gritar ao escravo: - Ó, tu! Trata de limpar isso, estás a ouvir-me?
O escravo virou-se ansiosamente e dobrou o pescoço.
- Sim, senhor. Com certeza, senhor.
Viraram para o portão e atravessaram o pátio, antes de cruzar duas portas escancaradas que lhes deram acesso ao interior fresco e sombrio do salão principal. Quase
todos os outros oficiais já lá estavam, e tinham tomado lugares nos bancos colocados junto ao púlpito na outra extremidade
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do salão. Cato avistou alguns lugares ainda vazios lá à frente, e foi para lá que se dirigiu, até se aperceber da presença do prefeito Horácio ao lado do espaço
desocupado. Parou e fez menção de mudar de direção, mas nessa altura Horácio olhou em redor, viu-o e chamou-o.
- Cato, aqui. Há espaço suficiente. E tu também, centurião Macro.
Já não havia fuga possível e Cato e Macro fizeram o que lhes fora
indicado. Horácio não perdeu tempo a interpelá-los.
- Então, que tal se estão a portar os novos batavianos?
Cato encolheu os ombros.
- São bons cavaleiros, mas um tanto lentos a adaptarem-se às nossas táticas. Mas depressa aprenderão, se o decurião Miro levar a sua avante.
- Porra de batavianos - largou Horácio, com ênfase. - Também tive de ficar com uns quantos. Não se dão nada bem com os hispânicos. Nos últimos dois dias já tive
três rixas, e um dos novos recrutas acabou com o crânio rachado. O médico diz que terá muita sorte se não sair da coisa aparvalhado. Embora, com os batavianos, seja
difícil de distinguir, hã? Então e tu, Macro?
- Os reforços ainda estão um bocado verdes, senhor. Mas em breve os terei metidos na linha.
- Espero bem que sim. Com o Carátaco ao fresco, somos bem capazes de ter de nos pôr em marcha outra vez, ainda antes do fim do verão. - Horácio baixou a voz e debruçou-se
para eles. - Isto é, partindo do princípio de que o general está capaz disso.
Cato não disse nada, mas arregalou um olho.
- Diz-se que ele adoeceu. Que tem passado os últimos dias no leito. Por isso é que não tem havido reuniões.
- Doente? - Macro olhou rapidamente para o púlpito, como se esperasse ver o general a surgir de repente. - Doente, como?
Horácio fez uma careta.
- Sei lá eu. Por acaso tenho cara de médico? Só vos estou a contar o que tenho ouvido. Mas vocês sabem como ele é. Rijo como couro velho. Teria de ser algo muito
grave para o deixar preso à cama. Já agora, Cato, só para que saibas, não te considero responsável pela fuga de Carátaco. Podia ter acontecido a outro qualquer.
- Obrigado.
- Ainda assim, se tivesse sido comigo, tinha posto o dobro dos guardas que tu designaste. Não valia a pena correr um risco daqueles, hã?
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Cato obrigou-se a controlar a irritação que sentiu perante o remoque, e respondeu num tom calmo:
- Pois, suponho que não.
Olhou em redor, de forma a quebrar o contacto visual com Horácio, e notou que os últimos oficiais se estavam a acomodar, embora todos os retardatários se vissem
obrigados a ficar de pé, já que os bancos estavam cheios. Pouco depois, o prefeito do campo surgiu à frente da assembleia e lançou o habitual aviso:
- Atenção ao comandante!
Seguiu-se um rápido coro de botas a raspar nas lajes quando os homens sentados se levantaram e se colocaram em sentido; instalou-se o silêncio, e escutou-se então
o som de passos pouco firmes a ecoar no salão. Pelo canto do olho, Cato viu o general a progredir pelo lado da sala, acompanhado por um jovem nativo de grande estatura,
numa capa de fina textura. Ostório fez-lhe sinal para se colocar de lado e depois subiu os três degraus que conduziam ao púlpito. O general parecia ainda mais magro
do que era costume, e a pele exibia uma palidez acinzentada. Parecia ter encolhido no interior das vestes, uma túnica debruada de forma delicada e uma couraça de
couro polido; fazia lembrar uma tartaruga decrépita dentro da sua concha, considerou o prefeito.
O general fez uma pausa e depois empertigou-se à frente dos seus oficiais, passando a ponta da língua sobre os lábios para os humedecer. Limpou a garganta e começou
a falar.
- Meus senhores, sou portador de más notícias. Esta tarde recebi um mensageiro da rainha Cartimandua, dos brigantes. - Fez um gesto a designar o nativo, que aguardava
junto à base do púlpito. - A nossa aliada informa-nos de que o Carátaco fez a sua aparição na capital do reino, em Isurium. Está sob a proteção do seu consorte,
Venúcio, que solicitou que seja concedida a Carátaco a oportunidade de apresentar a sua causa perante a assembleia das tribos da confederação dos brigantes.
Ostório fez uma nova pausa, enquanto os oficiais se remexiam, perturbados pela notícia.
- Pelo caralho de Júpiter - resmungou Macro. - Isso é que é pôr o gato no meio dos pardais.
Quando voltou a concentrar a atenção dos seus homens, Ostório prosseguiu:
- Não preciso com certeza de vos dizer que, se o Carátaco conseguir
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o que pretende, vamos ter todo o Norte da ilha unido contra nós. Sabemos perfeitamente que ele é um magnífico orador, e se ele conseguir convencer um número suficiente
de exaltados entre os nobres dos brigantes, a liderança de Cartimandua ver-se-á ameaçada. Venúcio tornar-se-á o novo líder do seu povo, e Carátaco terá à sua disposição
um fresco e poderoso exército para renovar a luta contra a nossa presença na ilha. Isto acontece na pior altura. Os nossos homens ainda estão a recuperar da campanha
nas montanhas ocidentais. Sofremos pesadíssimas baixas, e apesar de já termos recebido reforços, a verdade é que eles ainda não estão prontos para a guerra. Os brigantes
são pelo menos o dobro das nossas forças. Se avançar para enfrentar esta nova ameaça, arrisco-me a deixar o Ocidente desguarnecido. Ou seja, tudo o que conseguimos
pode ser perdido de novo, se os siluros e os ordovicos decidirem aproveitar a situação. E nesse caso ficaremos a braços com uma guerra em duas frentes. Ver-me-ei
obrigado a tratar da ameaça dos brigantes em primeiro lugar, e depois teremos de voltar a reconquistar o terreno que tenhamos entretanto perdido para as tribos das
montanhas.
- Assumindo que derrotamos os brigantes, claro - murmurou Cato.
Macro mal lhe prestava atenção. Fitava o general, cujas derradeiras palavras lhe tinham soado um tanto arrastadas.
- Não acredito nisto. O velho está bêbado...
Cato virou-se e notou que Ostório parecia oscilar, que as palavras descambavam em incoerências ao sair-lhe da garganta, e que um dos lados da boca parecia ter ficado
preso. O general cambaleou, tropeçou, e caiu sobre o púlpito com estrondo. O prefeito do campo saltou pelos degraus de imediato, colocando-se ao lado do seu superior.
Vários dos oficiais também já estavam de pé, incluindo Cato. Percebeu de imediato que aquilo nada tinha a ver com a bebida, e virou-se para um dos centuriões mais
próximos da entrada do salão.
- Vai buscar um médico! Vai! - gritou, para se fazer ouvir acima do burburinho alarmado e crescente.
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- Pensava que íamos ter outra conversa com o Sétimo - disse Macro, enquanto se instalava na cadeira em frente à secretária de Cato. A escuridão já caíra no exterior
do modesto quartel-general do fortim onde se acomodava a escolta, e o gabinete do prefeito era iluminado por apenas dois candelabros com lamparinas de azeite. Já
se via uma pequena nuvem de insetos a voltear na área iluminada pelas pequenas chamas. - Onde é que ele anda?
Cato encolheu os ombros.
- Acabou de soar a primeira hora. Macro, dê ao homem uma hipótese.
Macro resmungou em surdina, enquanto deixava as costas da cadeira apoiarem-se na parede e cruzava os braços.
- Há notícias sobre o Ostório?
Já tinha passado um dia desde que o general sofrera um colapso na reunião de oficiais. Não tinha sido feito nenhum anúncio oficial, mas havia boatos a correr pelo
exército, segundo os quais o general sucumbira a quase tudo, desde um amor desmesurado à bebida, até uma morte súbita provocada por um veneno administrado por um
agente de Carátaco. Cato tinha descoberto a verdade por si mesmo, recorrendo ao simples expediente de visitar o quartel-general do exército e perguntar o que se
passava.
- Está vivo. Segundo o prefeito do campo, o médico diz que ele sofreu uma espécie de ataque. Perdeu o controlo da parte esquerda do corpo, e delira um bocado.
- Vai recuperar?
- O médico não faz ideia. Pô-lo mais confortável com uma mezinha oriental qualquer, e sacrificou um galo a Esculápio. Se isso vai servir de alguma coisa, também
eu não faço a mínima ideia.
Macro franziu o cenho, como de costume pouco satisfeito quando
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via o amigo a lançar dúvidas sobre as capacidades dos deuses. Era um jogo perigoso, considerou Macro. Apesar de nunca ter encontrado um deus cara a cara, achava
bastante mais prudente mostrar-lhes o respeito devido, para o caso de isso se vir a dar algum dia. Limpou a garganta sem grande alarde.
- Mas achas que o velho se vai safar?
- É como diz, Macro, o general já não é nenhum jovem. E dessa maleita é garantido que nunca ninguém recupera. - Cato cruzou as mãos e olhou para a porta. - Esta
campanha esgotou-o. Embrenhou-se na guerra contra Carátaco e os seus aliados desde o momento em que se tornou governador, há cinco anos. Este era suposto ser o seu
último posto oficial antes de se reformar do serviço público. Acho que a possibilidade de Carátaco retomar a guerra numa nova frente o derrubou. Mesmo que recupere,
duvido muito que esteja em condições de tomar o comando do exército numa nova época de campanha.
- E nesse caso? Quem é que assumirá o comando?
- O legado mais antigo é o Quintato. Ficará no comando até que o general recupere.
- Quintato. Disseste-me que achavas que tinha sido ele a mandar-nos para Bruccium, e que pensavas que ele tomara essa decisão para tentar ver-se livre de nós.
Cato assentiu. Apesar de Quintato lhe ter garantido que nada o movia contra eles, Cato não conseguia confiar no homem.
- Merda. Agora vai ter rédea livre para fazer connosco o que bem lhe apetecer.
- Pois é. Teremos de tentar não nos metermos no seu caminho. Não lhe podemos dar nenhuma desculpa para ele achar que merecemos um castigo. E por falar nisso, que
tal se têm portado os novos elementos?
- Talvez me tenha precipitado ligeiramente ao julgá-los. Estão a aprender depressa. Na maior parte parecem-me capazes. Claro que há sempre alguns que não conseguem
distinguir entre as duas pontas de um dardo. Vou ver se os consigo transferir para a messe, onde não poderão colocar em perigo o resto dos rapazes com a sua falta
de jeito.
- Isso pode não ser bem assim. Sabe-se lá as asneiras que eles poderão fazer, tendo acesso às rações e ao equipamento de todo o exército. E quanto aos batavianos?
Macro coçou a penugem que lhe despontava no queixo.
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- Diz o Miro que são bons tipos. Mas ainda vão levar algum tempo a tornarem-se bons soldados. E ainda há alguma tensão entre eles e os trácios, que ameaça descambar
a qualquer momento. Disse ao Miro para, se for preciso, partir umas cabeças e acabar com a história. Talvez devêssemos ameaçar os batavianos de que os colocamos
na messe se não entrarem nos eixos. Sabes como eles são. Preferiam caminhar sobre chamas a terem de aprender a ler, escrever e somar.
Ouviram passos a aproximar-se no corredor, seguidos por um raspar na porta, que se abriu para revelar a cabeça de Thraxis a meter-se pelo espaço estreito.
- Senhor, está aqui outra vez aquele mercador de vinhos. Diz que queria falar com ele, para encomendar mais bebida.
- É verdade. Manda-o entrar.
Thraxis hesitou.
- Senhor, se assim desejar, posso tratar de tudo com ele.
Cato fitou-o com firmeza. Em circunstâncias normais, um oficial da sua patente deixaria de facto a compra de abastecimentos pessoais a cargo dos seus servidores.
Mas Cato precisava de uma cobertura credível para os seus encontros com Sétimo. Se o trácio tomava aquilo como um sinal de desconfiança, paciência.
- Thraxis, não voltes a colocar em causa as minhas decisões. Manda entrar o homem, e depois prepara uma refeição para mim e para o centurião.
- Sim, senhor.
A porta fechou-se nas costas do homem, e Macro deu um estalo com a língua.
- Mais cedo ou mais tarde, alguém vai começar a perguntar-se o porquê de tantas visitas do Sétimo. E ele não torna as coisas mais fáceis, sendo uma testemunha da
fuga, e ainda novo no campo. Dá azo a alguma suspeita.
- Nada a fazer. Ou ele vem até aqui para me vender vinho, ou sou eu quem tem de se deslocar até ele para fazer a compra em pessoa, o que pareceria ainda mais estranho.
Macro encolheu os ombros.
Voltaram a ouvir-se passos e Thraxis abriu a porta para dar passagem a Sétimo, fechando-a em seguida, sem uma palavra mas com ar de reprovação.
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Sétimo trazia uma ânfora debaixo de cada braço e baixou a cabeça antes de cumprimentar efusivamente o seu suposto cliente.
- Honrado prefeito, é um prazer poder fazer mais uma vez negócios consigo. Trago-lhe duas amostras dos mais recentes vinhos a chegarem a Viroconium.
Assim que os passos de Thraxis deixaram de se fazer ouvir, pôs de parte o disfarce e pousou as ânforas ao lado de um banco onde se sentou. Macro aproveitou para
de imediato se referir ao vinho.
- No interesse de manter o teu disfarce, parece-me que devíamos experimentar a qualidade do produto que apregoas.
Sétimo anuiu.
- Muito bem pensado. E também no interesse de manter o meu disfarce, acho que me deviam pagar o vinho. Um denário por ânfora.
- Como? - Macro fingiu-se indignado. - Eras capaz de fazer dinheiro à custa de um camarada?
- Porque não? Tudo o que um agente imperial possa fazer para mitigar os custos inerentes às suas tarefas é simplesmente um ato de patriotismo.
- Ah, é isso que chamam hoje em dia à especulação?
Sétimo encolheu os ombros e estendeu a mão. Macro lançou uma imprecação e meteu os dedos na bolsa, de onde extraiu uma moeda de prata que atirou a Sétimo, antes
de pegar numa das ânforas e olhar para Cato.
- Copos?
- Na prateleira. Além.
Macro pegou nas canecas de barro samiano e despejou uma boa porção para si mesmo e para Cato, antes de servir também meia caneca a Sétimo, não sem resmungar de forma
ininteligível. Este provou o vinho e começou a falar.
- Isto não está a correr bem - começou, pouco animado. - A doença do governador não ajuda a nossa causa.
Macro deitou-lhe uma olhadela cínica.
- A nossa causa?
Sétimo respondeu ao olhar do centurião.
- A minha causa. A causa do meu senhor. A causa do Imperador. A causa de Roma. E portanto também a vossa causa. Satisfeito?
Um sorriso passou rapidamente pela face de Macro.
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- Ajuda que mo lembrem de tempos a tempos.
O agente imperial virou-se para Cato.
- Sabe que isto significa que o Quintato vai assumir o comando, pelo menos temporariamente.
- Sim, a essa conclusão já tinha eu chegado sozinho.
Sétimo ignorou o remoque.
- Se fosse a si, teria muita cautela com o legado. Já demonstrou a sua simpatia pelo outro lado, mesmo não sendo de facto um agente de Palias. A situação já está
muito perigosa com o Carátaco à solta no meio dos brigantes. Com o Quintato no comando do exército, não há forma de saber o que poderá ele fazer para sabotar a nossa
posição.
Macro fungou.
- Estás mesmo a sugerir que um legado romano seria capaz de sacrificar deliberadamente os seus homens para satisfazer os caprichos de um liberto imperial?
Sétimo lançou-lhe uma olhadela condescendente.
- Centurião, tudo isto tem a ver com o que se passa em Roma. E só sobre quem se vai sentar no trono, e quem vai estar ao seu lado. Tudo o que se passa no resto no
Império resulta dessa dúvida essencial.
- Parece-me é que andas metido nestes jogos há demasiado tempo - ripostou Macro, em tom frio. - Dá-me a clara ideia de que tu e os teus comparsas se dão demasiada
importância neste mundo. Os teus estratagemas pouco importam ao resto das gentes. Nós enfrentamos perigos bem mais imediatos, como manter os bárbaros no seu lugar.
Sétimo olhou outra vez para ele, e desatou às gargalhadas.
- Macro, você é mesmo impagável! Acha portanto que é assim que o mundo funciona? Acha mesmo que vocês, soldados, têm alguma palavra a dizer quanto ao que determina
o caminho seguido pelos poderosos?
- Por acaso, até acho que sim. - Macro afagou o punho da espada.
- Queres que te faça uma demonstração?
Cato agitou a mão no ar, impaciente.
- Macro, esteja quieto. Não é tempo de permitir que os nossos agravos pessoais interfiram com o que há a fazer. - Virou-se de novo para o agente imperial. - Não
me parece que o Quintato tente algum movimento às claras.
- Oh?
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- Pensa nisto. Mesmo que ele esteja de facto empenhado em ajudar Nero a suceder a Cláudio, dificilmente estará disposto a permitir que o seu nome fique na história
como o homem que perdeu a província da Britânia. Portanto, terá de agir de forma subtil. Se Quintato está decidido a tentar minar as nossas possibilidades de impor
a paz nesta ilha, fá-lo-á de forma a que isso suceda depois de ele sair de cena. Dessa forma, a culpa recairá sobre outro homem - o próximo governador, seja ele
quem for. Partindo do princípio de que o Ostório não vai recuperar. - Cato fez uma pausa para reordenar os seus pensamentos. - Agora que o Carátaco está abrigado
no reino dos brigantes, há grandes hipóteses de a guerra se prolongar. Pelo menos durante o tempo suficiente para o Quintato passar o resto do tempo que lhe falta
à frente da Décima Quarta Legião e regressar a Roma. Portanto, é do seu interesse garantir que Carátaco consegue convencer os brigantes, enquanto ao mesmo tempo
dá uma imagem pública de quem está a fazer tudo o que pode para o impedir. A questão é: como tenciona ele consegui-lo? Parece-me que depressa o saberemos.
- O que quer dizer? - indagou Sétimo.
- O Quintato convocou todos os oficiais superiores para uma reunião logo pela manhã. Penso que ele vai anunciar que assume o comando interino do exército, e as funções
de governador da província, até à recuperação de Ostório. E se se der o caso de o general morrer, o Quintato ficará no comando até que um novo governador chegue
à Britânia. É muito poder concentrado nas mãos de um legado. Especialmente de um em quem não podemos confiar totalmente.
- Tenho de informar Narciso destes desenvolvimentos, imediatamente. Vou tratar de escrever e codificar a mensagem esta noite mesmo. - Sétimo levantou-se, sem se
esquecer de pegar na ânfora ainda intacta, antes que Macro a reclamasse. Já à porta, olhou de novo para os dois oficiais. - Dado o que se vai passar amanhã, se fosse
a vocês tomaria precauções especiais. Temo bem que o agente de Palias passe a ter mão livre.
- Teremos cuidado - garantiu-lhe Cato.
Os oficiais que se reuniram no quartel-general na manhã seguinte mal conseguiam esconder a ansiedade que os dominava, enquanto conversavam em voz baixa e aguardavam
que o prefeito do campo lhes
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indicasse o começo da reunião. Não tiveram de esperar muito tempo, e depressa a voz poderosa ecoava no salão.
- Comandante presente!
O legado Quintato encaminhou-se a passo decidido para o palco e subiu os poucos degraus para encarar os oficiais ali reunidos. Acompanhava-o o sacerdote adstrito
ao exército. Este envergava as vestes brancas formais. Atrás deles, vinha um escriba com um saco repleto de tábuas, rolos, tinteiros e plumas. Por baixo do braço
trazia uma grande tábua encerada, onde tomaria todas as notas sobre a reunião. O olhar de Quintato percorreu silenciosamente a assembleia por momentos, antes de
tossicar e começar a falar.
- Na opinião do médico da Vigésima Legião, Públio Ostório Escápula não está nesta altura em condições de saúde que lhe permitam continuar ao comando deste exército.
Além disso, ainda na sua opinião, é muito provável que o general continue incapacitado nos próximos tempos. Cabe-me portanto a mim, como oficial mais antigo aqui
presente, assumir o comando deste exército e o controlo da província até que se dê a recuperação de Ostório. Há algum homem que entenda dever pôr em causa este meu
direito de assumir o comando?
A pergunta era retórica, feita em obediência aos costumes. Ninguém tinha de facto razões legítimas para apresentar um protesto formal, pelo que os oficiais se mantiveram
imóveis e em silêncio.
- Muito bem. - Quintato fez um sinal ao escriba, que tomava notas junto à parede da sala. - Regista que não houve qualquer objeção. Além disso, consultei o sacerdote
para garantir que a minha decisão está de acordo com a vontade dos deuses. Os augúrios são favoráveis?
Era mais uma afirmação do que uma pergunta, e o sacerdote assentiu rapidamente, enquanto respondia num tom bem claro.
- Assim é. Os mais auspiciosos augúrios que alguma vez testemunhei, senhor. - O homem respirou fundo e preparou-se para continuar a arengar, mas Quintato ergueu
uma mão a pedir-lhe silêncio.
- Os deuses pronunciaram-se e deram-me a sua bênção para prosseguir nesta via. O tempo urge, senhores. Neste preciso momento, o nosso inimigo está a tentar subverter
a lealdade de uma importante aliada nossa, a rainha Cartimandua. Se o conseguir, ver-nos-emos forçados a marchar contra as tribos do Norte. E essa será uma campanha
pelo menos tão longa e sangrenta como as que tiveram lugar desde que as legiões
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primeiro puseram o pé na Britânia. O exército tem de estar preparado para ela. Vou convocar a Segunda Legião e mais duas coortes da Nona para reforçar as nossas
fileiras. Entretanto, preciso que voltem a preparar os vossos homens para a guerra. Temos de estar prontos para avançar em poucos dias, se surgir essa necessidade.
Perguntas?
Cato endireitou-se e ergueu a mão.
- Senhor!
Quintato virou-se para ele.
- O que é, prefeito Cato?
- Se atacarmos os brigantes antes de eles decidirem o que fazer com Carátaco, precipitaremos a guerra. Não seria preferível avisá-los antes das consequências de
tomar o seu partido? Enquanto ainda há hipóteses de resolver isto sem mais derramamento de sangue?
O legado sorriu.
- Obrigado por fazer notar o óbvio, prefeito.
Cato sentiu-se enrubescer de embaraço e fúria, enquanto alguns dos oficiais à sua volta nem sequer se esforçavam para dissimular o seu divertimento perante o raspanete.
Quintato permitiu-lhes gozar durante mais alguns momentos o facto de ter posto no seu lugar o comandante da escolta da caravana das bagagens, antes de continuar.
- Vou enviar um representante, à cabeça de uma pequena coluna, para convencer os brigantes a entregarem-nos Carátaco. Contudo, devemos estar prontos para agir caso
os líderes tribais rejeitem a nossa pretensão. - Afastou o olhar de Cato. - Mais alguma pergunta? Sim, tribuno Petílio?
- Senhor, como está o general?
- Ostório está na sua tenda, a recuperar. Se ocorrer alguma alteração na sua condição, serão notificados. Mais alguma coisa? Não? Nesse caso, estão dispensados,
com a exceção do tribuno Otho, e dos prefeitos Horácio e Cato.
Os oficiais puseram-se imediatamente de pé, enquanto Quintato deixava o palco e se dirigia para junto do escriba. Assim que ele desceu os degraus, os primeiros oficiais
viraram-se e começaram a sair da sala.
- O que é isto agora? - indagou Macro. - Porque raio é que ele te quer falar?
- Não tenho a certeza, mas tenho um mau pressentimento quanto a isto. Regresse para junto dos homens. Reúna os oficiais, o encarregado
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da messe, o ferreiro, o armeiro e o encarregado dos cavalos dos Corvos Sangrentos.
- Sim, senhor. - Macro fez a saudação regulamentar e saiu com os outros.
O salão ficou rapidamente vazio, à exceção dos três homens expressamente mencionados por Quintato. Horácio estava a curta distância de Cato, e lançou-lhe um olhar
admirado, com a sobrancelha arqueada, mas Cato só pôde responder com um movimento da cabeça. O tribuno Otho deixou-se ficar sentado, com uma expressão estupefacta
no rosto. Por fim as portas cerraram-se nas costas do último oficial a sair, e os dois guardas do quartel-general retomaram as suas posições, a ladeá-las, de lanças
e escudos apoiados no solo. Quintato dispensou a presença do sacerdote e manteve uma conversa com o escriba até este o saudar e também deixar o salão, mas apenas
por breves momentos; regressou quase de imediato com o mensageiro enviado pela rainha Cartimandua. O jovem guerreiro avançou até ao meio do salão e ficou a curta
distância do palco, de braços cruzados sobre o peito. Cato escrutinou-o com o olhar. Tinha cabelo claro, era alto e bem constituído. O queixo era quadrado, e tinha
o aspeto musculado que o tornaria muito popular junto do tipo de mulheres que adoravam os gladiadores em Roma, considerou o prefeito.
Quintato voltou-se para os subordinados e anunciou:
- Este é Velocato, representante pessoal da rainha Cartimandua. Ele fala a nossa língua. - Era tanto uma apresentação como um aviso dissimulado. O brigante acenou
à laia de cumprimento aos outros oficiais, antes de Quintato prosseguir.
- Prefeito Cato, quiseste saber se tinha feito alguma tentativa de negociar com os brigantes e dessa forma evitar uma nova guerra. Portanto, ficarás contente por
te ter escolhido para acompanhares o enviado que irá falar em meu nome com a rainha Cartimandua e o seu povo. O enviado em questão será o tribuno Otho. - Virou-se
para o jovem aristocrata. - Trata-se de uma tarefa de vital importância. Achas-te o homem certo para a desempenhar?
Otho mal conseguiu disfarçar o orgulho, enquanto respondia efusivamente:
- Sim, senhor!
- Ótimo. Assim, tomarás o comando da coluna que partirá amanhã
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pela alvorada. Velocato seguirá contigo, na qualidade de guia e tradutor. Levarás duas das tuas coortes da Nona, bem como a coorte auxiliar do prefeito Horácio e
a força que tem estado a escoltar as bagagens, comandada pelo prefeito Cato. Essas são as únicas unidades que estou preparado para arriscar. Se mandarmos mais homens,
a coisa terá o ar de uma invasão. Se forem menos, não conseguirão efetuar uma retirada se a coisa der para o torto. Apesar de ires falar em meu nome, e de seres
o mais antigo oficial da coluna, exijo que para fins militares seja o prefeito Horácio a ocupar o comando. Se a missão resultar em confronto, quero ter no comando
um oficial experiente. Ficou bem claro?
- Sim, senhor-anuiu Otho, antes de deixar uma pequena ruga formar-se na testa lisa. - Posso perguntar-lhe porque me atribui a honra de liderar esta missão?
- A honra não tem nada a ver com isto. Preciso de um homem capaz no terreno. Alguém com estatuto, que possa falar com a autoridade do Senado e, através deles, do
Imperador. És quem melhor se adequa a esse papel.
- Sim, senhor.
Quintato lançou-lhe um sorriso caloroso.
- Trata bem disto, tribuno Otho, e farás o teu nome ecoar na História como o homem que trouxe a paz à Britânia.
- Sim, senhor.
Quintato dirigiu-se então aos dois prefeitos.
- Horácio, darás todo o apoio ao tribuno. O teu dever será o de o proteger e, se tal se tornar necessário, também à rainha Cartimandua. Se as negociações falharem,
poderás ver-te obrigado a retirar em combate. És o homem para esta tarefa?
- Senhor! - Horácio anuiu rapidamente.
O legado virou-se por fim para Cato.
- Imagino que te estás a perguntar porque é que a escolta das bagagens se vai juntar a esta coluna.
- Senhor, essa questão já me atravessou o pensamento, sim.
- Prefeito, és tudo menos parvo. Além disso, já demonstraste ser muito capaz de te ajustares às circunstâncias e de tomar a iniciativa quando tal se torna necessário.
Precisamente o tipo de oficial de que preciso para apoiar o tribuno Otho e o prefeito Horácio. Serve-os bem.
- Senhor, estou ciente do meu dever.
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- Tenho a certeza disso. Encara isto como uma oportunidade para te redimires.
Os olhos de Cato semicerraram-se ao ouvir aquelas palavras.
- Redimir-me. De quê, senhor?
- O general decidiu que a maior parte da culpa da fuga de Carátaco te cabia. Tenho a certeza que sentes essa decisão como uma injustiça. Até podes ter razão, mas
o que importa realmente é a forma como as notícias são apresentadas em Roma. Se conseguirmos acabar esta história com o Carátaco no bolso e com a vontade de resistir
dos nativos definitivamente quebrada, todos receberemos as devidas recompensas, e quaisquer detalhes menos felizes serão facilmente olvidados. E é nisso que consiste
a tua hipótese de redenção, prefeito Cato. Fiz-me entender?
- De forma bem dolorosa, senhor.
- Excelente. Portanto, todos sabem o papel que têm a desempenhar. Os escribas vão redigir as vossas ordens, e elas ser-vos-ão entregues ainda antes do fim do dia.
Partirão pela alvorada.
O legado fitou cada um deles à vez.
- Boa sorte, senhores. Vão precisar dela.
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- que é isto? - indagou Cato, enquanto desapertava o capacete
e limpava o suor da testa. Indicou o papiro dobrado que se via sobre a secretária. No exterior estava escrito o seu nome, numa caligrafia de fino recorte.
Thraxis parou de remover o reforço de cota de malha que Cato usava sobre o ombro, para ver o que o prefeito designava.
- É da esposa do tribuno Otho, senhor. Um escravo trouxe-a esta tarde, enquanto estava a dar instrução à coorte.
Cato resmungou. Tinha passado o dia no exterior do forte, com os seus homens, praticamente desde que a reunião matinal terminara. A escolta do comboio das bagagens
mal tinha tido ocasião de retomar a rotina da vida de guarnição e já estava a enfrentar os preparativos para marchar para o interior do território brigante. Havia
alguns resmungões
- havia sempre. Cato relembrou as suas primeiras experiências como optio de Macro, tempo em que se sentira constantemente frustrado pela necessidade de estar pronto
para qualquer tipo de dever ao mínimo aviso - e muitas vezes pronto para nada, apenas para esperar por novas ordens. Agora que era ele quem comandava uma unidade,
esse luxo tinha-se desvanecido. A miríade de deveres de um prefeito queria dizer que o aborrecimento se tornara raro na sua vida, e quase precioso.
De manhã ainda perdera algum tempo a requisitar transporte para as rações das montadas, carros para as balistas da coorte de Macro, rações para os homens e, ainda
mais importante, couro para remendar ou substituir as tendas danificadas durante a tempestade. Mas havia muito pouco couro disponível nos armazéns em Viroconium,
e vira-se obrigado a subornar o encarregado da messe para conseguir a quantidade minimamente necessária para os seus homens. A tarde tinha sido gasta a observar
os homens a treinar na parada. Ainda havia muito trabalho pela frente com
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os recrutas batavianos, que já tinham aprendido as formações básicas e as manobras de esquadrão, mas ainda respondiam lenta e atabalhoadamente quando lhes era pedido
que executassem manobras mais complicadas, como formações em cunha ou a rotação pelos flancos. Ainda assim, eram excelentes cavaleiros, e não lhes faltava espírito
combativo. Se fossem chamados à ação, Cato tinha a certeza que se portariam à altura do resto dos Corvos Sangrentos.
Macro tinha exercitado sem parar os seus novos legionários, nos poucos dias desde que eles se tinham reunido à coorte, e já se podia confiar na sua capacidade de
marcha e de realizar qualquer manobra necessária. O jeito para usar as armas é que ainda era rudimentar. Numa refrega, caberia aos homens mais experientes de cada
secção dar o exemplo na manutenção das formações e na recusa de ceder terreno. Só ao fim da tarde é que Cato mandou destroçar as duas coortes, e enviou os homens
para as casernas, para prepararem as cangas de marcha e os alforges. Estava cansado, encalorado e sedento, e tinha antecipado uma bela sessão nos banhos, para cuidar
dos músculos antes de deixar outra vez Viroconium no dia seguinte.
- O que me quer Popeia Sabrina?
Thraxis não o encarou, mas respondeu depois da mais breve das hesitações.
- Senhor, posso garantir-lhe que não faço a menor ideia.
- Não leste a mensagem, portanto?
- Senhor, mal sei reconhecer umas poucas palavras.
- As suficientes para saber o que ela me quer, não?
- Senhor, na realidade fiquei a saber alguns detalhes, sim, mas pela escrava.
- E mais do que os detalhes, imagino - acrescentou Cato com malícia, antes de se controlar. A vida privada do seu criado só ao próprio dizia respeito. Levantou os
braços enquanto Thraxis o ajudava a tirar o resto da cota de malha. - Bom, o que me quer afinal a esposa do tribuno?
- O marido convida-o para o jantar, depois do primeiro turno de vigia, senhor. Bem como ao prefeito Horácio e aos três centuriões mais antigos, comandantes das coortes
de legionários.
Cato rangeu os dentes, frustrado. Tinha tencionado completar os seus preparativos para a marcha e depois ter uma boa noite de sono descansado numa cama a sério.
Agora ia ter de satisfazer os caprichos sociais de um
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tribuno aristocrata e da sua esposa. Sentiu-se embaraçado ao recordar as atenções indesejadas que ela lhe dedicara na noite seguinte à batalha, e não sentiu grande
vontade de passar a noite em tal companhia. Além disso, se corresse tudo como era costume, o encontro ia acabar por se arrastar, e já seria noite adiantada quando
pudesse finalmente descansar. Brincou por momentos com a ideia de recusar o convite, mas sabia perfeitamente que isso o colocaria na lista negra de Otho. E se ia
ter de servir sob o comando do tribuno no mês que se avizinhava, seria boa ideia não começar por o ofender.
O último dos pesados elos escorregou finalmente sobre a sua cabeça, e Thraxis pegou na peça para a colocar cuidadosamente numa mesa com o resto da armadura do prefeito.
Cato fez girar o pescoço, saboreando a sensação de se ter visto livre daquele peso.
- Depois de terminares aqui, podes ir aos aposentos do tribuno dizer que aceito o convite.
- Quer dizer à sua casa, senhor?
- Casa?
- Sim, senhor. A esposa do tribuno não estava satisfeita com as acomodações no forte e por isso convenceu o marido a alugar a casa de um mercador de lãs que fica
na ponta da povoação civil. Não é muito longe. Só cerca de quilómetro e meio, senhor.
Cato cerrou os lábios. Ao que parecia, o tribuno Otho tinha o hábito de ceder a todos os caprichos da esposa. Bem, tinha posses para isso. Podia imaginar facilmente
os antecedentes e a riqueza do tribuno. Tal como era habitual nas famílias aristocráticas, devia haver um belo casarão em Roma, um solar nas colinas toscanas, uma
espécie de refúgio para os abrasadores meses de verão, e outro palácio junto ao mar, na ampla baía que se estendia de Puteoli a Pompeia. Otho devia ter sido educado
pelos melhores tutores gregos, e desfrutado dos melhores lugares no teatro, nos jogos e no Circo Máximo. Depois daquela breve estadia no exército, iniciaria uma
carreira no Senado, e se não se metesse em confusões políticas, podia perfeitamente almejar uma futura e lucrativa colocação como governador de uma província, ou
comandante de uma legião, a seu tempo. Cato sentiu uma ponta de inveja pela fácil vida a que alguns tinham acesso sem qualquer trabalho, enquanto outros se viam
obrigados a constantes e duros esforços para colherem magras recompensas.
Fez um esforço para afastar o azedume e a inveja. Muito bem, iria
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ao maldito jantar do tribuno. Mas adotaria um comportamento formal e brusco, e esforçar-se-ia por ser o género de convidado tão antipático que os anfitriões ficariam
mais do que satisfeitos por o ver pelas costas, e nunca mais se sentiriam tentados a repetir a experiência. Sorriu satisfeito perante tal plano, enquanto metia um
raspador e um pequeno frasco de óleo numa sacola e deixava os seus aposentos para ir ter com Macro aos banhos que estavam ao serviço dos oficiais e soldados da guarnição
de Viroconium.
Então a que propósito vem isto? - inquiriu Macro, enquanto passavam pela povoação civil adjacente ao campo. O crescente lunar brilhava sobre um cenário noturno repleto
de pregões de mercadores e do vozeiral dos pequenos grupos de soldados de folga, que procuravam bebida, jogos e bordéis. Muitas das diminutas povoações que surgiam
e cresciam junto às instalações militares não passavam de aglomerados sem qualquer planeamento, feitos de imundas ruas serpenteantes, mas naquele caso o crescimento
da aldeia tinha seguido, desde o início, um plano metódico, por ordem do general Ostório. As ruas eram direitas, largas e bem drenadas, e muitas das estruturas temporárias
tinham sido substituídas por edifícios de madeira com fundações em pedra. Havia até, no centro da povoação, uma pequena basílica, onde ocorriam reuniões de um conselho,
para dar algum andamento aos assuntos que mais preocupavam os habitantes. Cato tinha vindo a pensar precisamente na velocidade com que Roma estampava a sua marca
nos territórios acabados de conquistar, e por isso nem escutou a pergunta do amigo.
- Desculpe. O que é que me perguntou?
- Esta porra do convite do tribuno? O que é que ele quer realmente de nós?
- Calculo que pretenda aproveitar a ocasião para nos conhecermos melhor. É o primeiro comando independente que lhe é atribuído.
O Otho há de querer sair desta história bem visto pelos seus superiores.
Macro tinha passado pela barbearia nos banhos, pelo que estava bem escanhoado. O cabelo escuro e encaracolado tinha sido aparado, e a túnica que envergava era limpa.
De vez em quando o centurião levava os dedos ao colarinho da túnica e coçava a pele, como se aquele estado de limpeza lhe provocasse alguma irritação. Ainda cheirava
aos óleos aromáticos com que o barbeiro lhe tinha massajado a pele da cara e pescoço, depois do corte.
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- E portanto tivemos de nos aperaltar todos só para lhe causar boa impressão?
Cato tinha-se sujeitado ao mesmo tratamento, mas sentia-se muito mais confortável com a sua aparência. Encolheu os ombros.
- Mal não fará.
Macro lançou um olhar de lamento à entrada escurecida de um bordel por onde passavam. Na rua, uma pequena fila de soldados aguardava vez, e partilhava um odre de
vinho. Uma mulher encorpada, com as maçãs do rosto pintadas de vermelho e longo cabelo pastoso, surgiu à porta, levantou a bainha da sua curta túnica e fez um gesto
convidativo com o dedo na direção do soldado mais próximo. O homem apressou-se a segui-la para o interior do estabelecimento. Macro fungou ao aspirar o cheiro que
se desprendia da sua pele.
- No regresso, vou fazer render este cheirinho. Última ocasião antes de entrarmos outra vez em território bárbaro.
- Se bem me lembro, estes chamam-se brigantes.
- Quero lá saber do nome que se dão, desde que se portem como
deve ser e nos entreguem o cabrão do Carátaco.
Cato virou-se para ele e abanou a cabeça.
- E eu a pensar que esta missão seria essencialmente diplomática.
- Uma perda de tempo. Vale mais dar-lhes logo umas pauladas e mostrar-lhes quem manda. Isso, para mim, é que é diplomacia.
- É evidente.
Alcançaram por fim o limite da povoação, e avistaram o solar murado a curta distância no caminho, dissimulado contra o tom cinzento-escuro da paisagem em redor.
O tal mercador de lãs devia ter feito uma fortuna nos negócios com o exército, pensou Cato, enquanto tomava consciência das dimensões do edifício. Ao aproximarem-se,
notou que havia uma portaria que dava acesso a um pátio, e a casa erguia-se a curta distância, com um telhado sólido, embora as telhas fossem com certeza de madeira,
percebeu. Ainda passaria algum tempo até que verdadeiras telhas estivessem disponíveis em Viroconium.
Uma secção de legionários da Nona guardava a entrada e, quando avistaram os dois oficiais a emergir da escuridão, puseram-se em sentido. O optio reconheceu-os e
fez uma saudação formal.
- Prefeito Cato e centurião Macro - anunciou Cato. - Viemos visitar o tribuno.
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- São aguardados, senhor. Os outros convidados já cá estão. Se me quiser seguir.
O optio virou-se e conduziu-os através do arco da portaria. À fraca luz do luar, Cato percebeu que o pátio tinha a habitual disposição, e que em redor dele se dispunham
estábulos e espaços de armazenagem. À frente ficava a casa propriamente dita. A porta estava aberta, e o interior iluminado por numerosas lamparinas que derramavam
o seu brilho sobre as lajes que pavimentavam o pátio. Seguiram o optio para o interior e foram ter a uma área jardinada. Havia ali mais lucernas penduradas de ganchos
cravados na estrutura de madeira do edifício. Uma série de colunas atravessava o jardim, oferecendo abrigo ao passeio que percorria a frente das salas, cozinha,
latrina e quartos. O jardim não tinha mais do que uns dez passos de largo, e o espaço estava praticamente todo tomado pelos cadeirões de jantar dispostos em torno
de uma mesa baixa. A casa do mercador de lã seria modesta pelos padrões de Roma, mas era um verdadeiro palácio em comparação com os casebres redondos e simples das
tribos nativas. Também oferecia um ambiente tranquilo, muito mais agradável do que os barulhentos e atulhados aposentos disponíveis nos fortes de menor dimensão
que se aglomeravam à volta da fortaleza principal. Cato percebeu porque é que o tribuno Otho e a sua esposa preferiam aquela localização.
- Prefeito Cato e centurião Macro! - anunciou o optio.
Ao olhar para além do homem, Cato avistou Horácio e os outros oficiais já instalados nos cadeirões laterais, enquanto o tribuno e esposa se recostavam nos que estavam
à cabeça da mesa. Otho levantou o olhar e sorriu, enquanto acenava aos seus convidados.
- Ah! Já começava a perguntar-me se lhes teria acontecido alguma coisa!
Lembrando-se da sua decisão, tomada havia horas, de desempenhar o papel do profissional taciturno, Cato não respondeu ao sorriso, e limitou-se a dobrar o pescoço
ligeiramente, antes de responder:
- O centurião e eu tivemos de completar os preparativos para a marcha de amanhã, senhor.
- Ótimo. Isso é bom. - Otho indicou dois lugares livres, à sua esquerda. Horácio tinha ficado do outro lado, na posição de privilégio, de acordo com a sua maior
antiguidade militar. Quando todos estavam acomodados, Otho indicou os dois centuriões que estavam ao lado de
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Horácio. - No caso de ainda não se conhecerem, estes são o Gaio Estatilo e o Marco Ptolomeu Acer, centuriões-chefes da Sétima e Oitava Coortes da Nona Legião, respetivamente.
Cato deitou o olhar sobre os centuriões e avaliou-os quase por instinto. Estatilo devia ter cerca de cinquenta anos de idade, pelo que devia estar à beira do fim
do período de alistamento. Tinha cabelo ralo e olhos azuis-claros que espreitavam de um rosto bem marcado pelo tempo. Acer era mais jovem. Provavelmente uma promoção
recente, calculou Cato. O seu olhar saltava constantemente em torno da mesa, como se ainda duvidasse de que podia estar ali, em tão excelsa companhia. Era o maior
dos dois, com a constituição de um gladiador, de cabelo claro e feições largas que denunciavam as suas origens célticas.
Otho recostou-se na sua poltrona e pegou num cálice de prata.
- Pronto, estão feitas as apresentações.
A mulher esticou-se para lhe tocar no braço.
- Nem por isso, meu querido. Não me parece que tenha já travado conhecimento com a deliciosa criatura que acompanha o prefeito Cato.
Macro mal conseguiu disfarçar a fúria que lhe provocou tal comentário.
- Não? - Otho sorriu e levou a mão da mulher à boca, aplicando-lhe um beijo. - Aquele, minha querida, é o centurião Macro, o mais antigo da Quarta Coorte da Décima
Quarta Legião.
- Tantos números, deve ser difícil recordá-los! - protestou ela. - Como é que vocês conseguem? Se eu fosse um soldado, nem saberia por onde começar. Tantas patentes,
e nomes, e números, e destacamentos.
Horácio e os outros centuriões lançaram sorrisos polidos, mas Cato manteve uma expressão neutra, enquanto Popeia mudava de posição para se dirigir a ele diretamente.
- Ah pois, já percebi. Os homens do centurião Macro, e aqueles cavaleiros de ar rude que comanda, são os encarregados da segurança das tralhas do exército. Não é
isso, prefeito?
- Bagagens, senhora - corrigiu-a Cato, sem simpatia. - Sou de facto o comandante da escolta do comboio das bagagens.
Ela inclinou a cabeça para o lado e sorriu fugidiamente, revelando dentes brancos e perfeitos, mas que pareciam bem afiados. Como a língua dela, pensou Cato, enquanto
a aristocrata prosseguia:
- Não parece uma tarefa particularmente difícil, nem muito importante,
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mas ainda assim foi capaz de ser falado por todo o exército, dadas as suas ações no dia da batalha.
- E com toda a justiça! - interrompeu o centurião Acer, erguendo a taça na direção de Cato. - Um excelente trabalho, senhor. Safou-nos de ficar com o cu a arder,
sem qualquer dúvida.
- Que bela forma de apoiar o seu camarada - comentou Popeia, com ar doce. - Posso continuar? Tem toda a razão, o prefeito parece ter-se coberto de glória nesse dia.
Embora o momento de triunfo tenha passado de forma incrivelmente rápida, depois da fuga de Carátaco. Estão a ver, outro detalhe do mundo militar que parece enormemente
difícil de compreender para um simples civil. Num momento somos um herói, no momento seguinte uma espécie de renegado. O que é que uma pessoa há de pensar disso?
Em silêncio, Cato ardia com a vontade de se justificar, mas pôs de parte os sentimentos azedos e concentrou-se em manter uma aparência de indiferença.
- São assim as coisas no exército, senhora. Tudo o que um soldado pode fazer é servir o melhor possível e aceitar tanto o bom como o mau.
Ela lançou-lhe um olhar.
- Tão estoico, e tão típico dos soldados profissionais que tenho conhecido aqui na Britânia. Porém, é demasiado novo para ter uma longa história da profissão por
trás de si. Calculo que tenha uma linhagem.
- Se quer dizer uma família com posses, não.
- Não, não quis dizer nada de tão horroroso como a simples riqueza material. Falei de linhagem.
- Também nada tenho a reclamar nesse campo. Subi pelas fileiras.
- Nesse caso, deve ter demonstrado a sua capacidade militar de forma a ser promovido de forma tão rápida, não é assim?
Cato encolheu os ombros à laia de confirmação, mas nada disse.
Popeia voltou a olhar para Macro.
- E quanto a ti, centurião? Como é a tua história?
Macro fungou e coçou o nariz.
- Alistei-me ainda jovem. Levei oito anos a chegar a optio, e depois outros dois até conseguir a promoção ao centurionato. Foi nessa altura que conheci o prefeito.
Nesses tempos ele era o meu optio.
As cuidadas sobrancelhas arquearam-se com a surpresa.
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- O prefeito Cato era teu subordinado? E como é que te sentes quanto a isso, agora?
- Como me sinto? - Macro remexeu-se, pouco à vontade, e encheu as bochechas de ar. - Senhora Popeia, o prefeito Cato é o meu comandante direto. Obedeço às suas ordens.
É isso que sinto.
Ela contemplou-o por momentos e deixou escapar uma breve gargalhada, antes de pegar no seu cálice e beberricar com delicadeza.
- Estou a ver que vamos ter uma noite de conversas muito interessantes.
Otho deitou-lhe um olhar preocupado e ergueu também o seu cálice.
- Senhores, um brinde. Ao sucesso da busca e prisão do fugitivo, Carátaco. E à paz e prosperidade que se lhe seguirão.
Os outros oficiais ergueram de imediato os cálices e deram o seu melhor para repetir o prolongado brinde, murmurando qualquer coisa de semelhante à última frase
do tribuno. Popeia observou a cena com ar sardónico, enquanto o seu marido fazia sinal ao escravo que se mantinha de lado, em silêncio.
- Podes trazer o primeiro prato.
- Sim, amo.
O escravo dobrou a espinha e desapareceu por uma porta, por baixo das colunas.
Macro olhou em redor do jardim e acenou com ar apreciativo.
- Bela casa que aqui tem, senhor.
- Bela? Sim, acho que sim. De uma forma básica e limpa, sim. Claro que aqui na fronteira do Império manda quem pode, neste caso, o senhorio. A renda que estou a
pagar por este casebre dava bem para uma casinha modesta em Roma. Mas é um valor que despendo com agrado pelo conforto e privacidade que nos permite.
- Casebre? - repetiu Macro em surdina, abismado.
Popeia designou o jardim num gesto elegante.
- Uma pena termos de trocar isto pela dureza das tendas no próximo mês, ou perto disso, mas o dever chama.
Cato quase se engasgou.
- Senhor, faz mesmo tenção que a sua esposa nos acompanhe nesta incursão pelo território dos brigantes?
- Claro. A minha adorada Popeia e eu não poderíamos suportar a separação. Além disso, trata-se de uma missão diplomática. A presença
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da minha esposa servirá para demonstrar claramente que as nossas intenções são pacíficas. E estou certo que a rainha Cartimandua apreciará uma companhia feminina
durante o decorrer das nossas negociações.
Macro estava longe de ter a mesma ideia. Recordou o seu breve envolvimento com uma jovem icena, durante o seu primeiro período de serviço na Britânia. Boudica era
uma criatura vivaz, que apreciava a bebida e outros prazeres terrenos. Não lhe parecia que pudesse ter muitos interesses em comum com aquela aristocrata de ar frágil.
Talvez a rainha Cartimandua fosse diferente, mas tinha muitas e prementes dúvidas.
- Senhor, isso será sensato? - inquiriu Cato. - Pode ser uma missão diplomática, mas há grandes hipóteses de se transformar numa ação militar. Caso em que a senhora
Popeia se poderia ver em grave perigo.
- Oh, duvido muito que chegue a isso - respondeu Otho, altivo. - Será a rainha Cartimandua a correr grande risco, se se recusar a aceder ao nosso pedido. Se for
idiota a ponto de tomar o partido de Carátaco, será varrida do mapa em conjunto com os outros rebeldes assim que o legado Quintato conduzir o exército até à sua
capital. Francamente, penso que ela perceberá que o jogo terminou assim que a minha coluna se apresentar na sua capital. Ainda assim, creio que poderemos manter
as coisas num nível civilizado, e por isso creio bem que a minha esposa pode ajudar a tornar as coisas mais fáceis entre Roma e aqueles bárbaros. Não será assim,
meu amor?
- Claro que farei o meu papel. É esse o meu dever.
- Ora aí está! - Otho sorriu a Cato. - Estás a ver?
Cato encolheu os ombros.
Foram interrompidos pela chegada do primeiro prato, que vinha numa travessa larga mas pouco funda, que o escravo transportava. Pousou-a na mesa, e um rico aroma
espalhou-se por entre os convidados.
- Tiras de carneiro, fritas e cobertas de garo e vinagre - explicou Popeia. - Segundo uma receita que o nosso cozinheiro recebeu do da própria Agripina.
O escravo serviu porções generosas em pequenos pratos de prata, entregando os primeiros aos anfitriões e depois aos outros oficiais. Assim que Otho começou a comer,
os outros imitaram-no com vontade, empregando as pontas das facas para espetar as tiras de carne e levando-as assim à boca. Macro depressa despachou a sua dose,
e fez sinal ao escravo para lhe servir mais, enquanto Cato adotava um ritmo mais
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pausado, recusando-se a mostrar que achava o sabor verdadeiramente delicioso.
- Caraças, que isto é bom! - confirmou Horácio, também se candidatando a nova porção. Os outros centuriões confirmaram com vigorosos acenos, entretidos ainda com
a carne nos pratos. Cato reparou que Estatilo parecia estar a ter algumas dificuldades para comer e então, quando os lábios do homem se entreabriram, percebeu a
razão de todo aquele labor. Ele já não tinha dentes. Cato percebeu que o veterano devia ser ainda mais velho do que aquilo que calculara.
- É de confeção muito simples - indicou Popeia. - Infelizmente, o nosso cozinheiro só conseguiu trazer consigo uma arca com especiarias e outros ingredientes. E
nesta maldita ilha não há grande variedade de sementes e frutos. Portanto, temos de aguentar. Ainda assim, atrevo-me a imaginar que será um pouco mais sofisticado
do que a refeição vulgar do legionário.
- Porra, é uma delícia - comentou Macro, com a boca meio cheia.
Popeia lançou-lhe um sorriso, antes de se virar para Cato. - E o que
achas tu, prefeito Cato?
Ele mastigou, engoliu e lambeu os lábios, antes de replicar:
- Está salgado.
- Salgado? - Ela fez ar de espanto, mas antes de poder pensar numa resposta, Otho bateu as palmas para chamar a atenção do escravo e indicar que o primeiro prato
devia ser recolhido.
Seguiu-se um breve intervalo, em que outro escravo surgiu com mais vinho para encher as taças.
- E agora, senhores, se não se importam, gostava que déssemos atenção ao trabalho que temos em mãos. Já todos receberam as vossas ordens do quartel-general, e estão
perfeitamente cientes da natureza da nossa missão. A questão que se põe é: qual a melhor forma de a levar a bom porto? E para que contingências devemos estar preparados,
em face dos diversos desfechos que podemos antecipar.
Cato reparou que o tribuno tinha adotado um comportamento mais prático, e que existia agora no seu olhar um brilho, uma argúcia em que não tinha reparado anteriormente.
Otho apoiou-se nos cotovelos e juntou as mãos enquanto continuava a dirigir-se aos oficiais que iam ser seus subordinados na missão.
- O Carátaco tem um bom avanço sobre a nossa coluna. Terá
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tempo de sobra para parlamentar com os líderes da tribo. Sabemos que ele consegue ser extraordinariamente persuasivo, e que quando lá chegarmos, já terá convencido
alguns a tomarem o seu partido. Pelo que, quando alcançarmos Isurium, teremos uma posição a recuperar. Pelo que me disse Velocato, podemos esperar uma receção hostil.
Se for esse o caso, recuaremos de imediato para aqui. Se nos receberem em paz, apresentaremos a nossa exigência de que os brigantes honrem a aliança que têm com
Roma. Não espero que Cartimandua tome uma decisão imediatamente. Ela terá de se sentir confiante de que terá o apoio da maioria do seu povo.
Enquanto escutava o tribuno, Cato não pôde deixar de reparar na forma clara como o jovem exprimia o seu pensamento. Não parecia condizer com a máscara de ingenuidade
e alegre companheirismo pouco exigente que ele tinha mostrado na maior parte das ocasiões anteriores. Havia portanto um outro lado na sua personalidade, bem mais
astuto e calculista.
- Como é evidente - prosseguia Otho, - as coisas podem dar para o torto nessa altura, e nesse caso teremos de lidar com um novo líder da tribo. Neste momento, o
candidato mais provável é Venúcio, um apoiante encarniçado de Carátaco. Se isso suceder, teremos em mãos a perspetiva de um combate. A minha intenção é proceder
com toda a cautela. Estabeleceremos um campo nas vizinhanças de Isurium, mesmo que nos seja oferecida hospitalidade na própria capital. Porém, este não será um simples
acampamento de campanha, construído da forma rotineira. Teremos um fosso mais largo e profundo, e as paredes também serão mais elevadas. Nos torreões de canto vamos
instalar balistas. Os nativos poucos conhecimentos têm quanto a cercos, pelo que facilmente os manteremos à distância até sermos socorridos pelo legado Quintato.
Fez uma pausa e sorriu.
- Mas vamos assumir que as coisas nos correm bem, e que Cartimandua aceita entregar-nos o nosso inimigo. Nesse caso, quero-o afastado do território dos brigantes
o mais depressa possível. E essa será a tua tarefa, prefeito Cato.
- Sim, senhor. Suponho que se está a referir aos Corvos Sangrentos.
- Não, prefeito; refiro-me a todo o destacamento da escolta.
- Senhor, peço desculpa, mas faria mais sentido se fosse apenas a minha coorte a trazer o Carátaco aqui para a fortaleza. Caso contrário,
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só poderemos progredir à velocidade a que a infantaria do Macro conseguir marchar. O que dará ao Venúcio e seus seguidores amplas ocasiões para planear emboscadas.
Seria bem melhor que nós regressássemos a Viroconium a toda a brida, e que a coorte do Macro ficasse a reforçar a guarnição do campo.
- Mas quem é que diz que nós ficamos no campo? - contrariou Otho. - O meu plano é deixar o território dos brigantes e regressar para junto do exército assim que
tivermos concluído as negociações com Cartimandua.
Cato hesitou antes de explanar as suas objeções ao seu superior. Queria ter a certeza que explicava claramente as suas razões, e que elas eram aceites.
- Senhor, mesmo que a rainha aceite entregar Carátaco, isso não constituirá uma garantia de que a campanha para pacificar a Britânia estará terminada de vez. Seja
qual for a decisão que Cartimandua tome, o mais certo é que provoque uma divisão entre os seus súbditos. Portanto, se ela o entregar nas nossas mãos, isso levará
o Venúcio à ação. Pode ocorrer violência entre os apoiantes de Carátaco e a fação pró-romana. Caso em que, se as forças romanas ainda estiverem por perto, poderão
ajudar a balança a pender para o lado da rainha. Na minha opinião, seria portanto melhor para os interesses do Império que mantivéssemos uma presença militar junto
a Isurium até se tornar claro que Cartimandua detém um controlo firme sobre todo o seu povo.
- É fácil para ti dizeres isso, uma vez que já estarás longe, nesse caso.
Um silêncio tenso abateu-se de imediato sobre a cena, e Cato sentiu
o sangue a ferver perante a insinuação. Mas antes que pudesse responder, Otho lançou uma animada gargalhada e sorriu-lhe.
- Estava a brincar, prefeito. Apenas a brincar... Tens evidentemente razão. Muito bem, se conseguirmos voltar a ter o Carátaco nas nossas mãos, regressarás aqui
imediatamente e informarás o legado de que é minha intenção permanecer no campo avançado até ser substituído, ou até considerar que a situação está consolidada,
ou até receber ordens do Quintato para regressar.
- Sim, senhor.
- Bom, creio então que já cobrimos todas as possíveis eventualidades. - Olhou à vez para cada um dos oficiais que o rodeavam. - Horácio, tens alguma coisa a acrescentar?
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O prefeito que tinha a seu cargo o comando da parte militar da missão pensou por momentos, e acabou por abanar a cabeça.
- Não, senhor. Pode estar certo de que cumprirei todos os meus deveres.
- Excelente! Nesse caso, podemos apreciar o resto da refeição sem nos preocuparmos mais com o trabalho, para eterna gratidão da minha Popeia, cujo aborrecimento
com estes assuntos salta positivamente à vista. - Virou-se para ela com um sorriso, mas ela respondeu com uma careta; o tribuno esticou-se todo para lhe aplicar
um beijo nos lábios. Ela fingiu resistir e enxotá-lo, mas acabou por corresponder. Embaraçados, os oficiais afastaram o olhar daquela demonstração pública de afeto,
e Horácio encetou uma conversa com os dois centuriões instalados ao seu lado. Cato observou a cena por momentos, recordando com pesar a esposa que deixara em Roma,
mas sabendo também que teria grandes dificuldades para se dividir entre os seus deveres como oficial do Império e como marido. Embora o tribuno Otho desse ideia
de que conseguia conciliar as duas vertentes sem problemas, Cato não conseguia afastar as reservas que sentia sobre a decisão do seu superior de se fazer acompanhar
pela esposa na marcha para a capital dos brigantes. Para além do perigo que a mulher correria, havia a questão do fator de distração que ela constituiria, numa altura
em que o marido teria de se concentrar por completo nas negociações, que poderiam representar o fim do conflito na Britânia.
Da cozinha surgiu nesse momento uma pequena coluna de escravos. Os dois primeiros traziam uma longa travessa onde se podia apreciar um leitão bem tostado, rodeado
por pequenas iguarias de aspeto muito apetecível. Outro homem empunhava um cesto de pão, o seguinte uma terrina com cogumelos, cebolas assadas e outros legumes.
A mistura de aromas, de fazer crescer água na boca, fez com que os oficiais se desfizessem em elogios. Otho e a esposa aceitaram-nos com sorrisos, contentes com
o prazer evidente nos rostos dos seus convidados. Ao lado de Cato, Macro esfregou as mãos enquanto deitava olhares gulosos ao leitão.
- Ah, olhem bem para aquela pele a estalar! Mmm!
Só Cato se manteve num silêncio austero, incapaz de sacudir os presságios que o faziam recear os muitos perigos de que a missão que se preparavam para encetar estava
recheada.
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- O que está aquele aqui a fazer? - perguntou o centurião Acer,
enquanto fazia um gesto na direção do mercador de vinhos que manobrava a carroça de forma a ocupar posição na cauda da pequena coluna de veículos que transportavam
os mantimentos, equipamentos e componentes das peças de artilharia.
Horácio olhou para onde o outro apontava.
- O tribuno deu-lhe autorização para se juntar à nossa alegre companhia. Chama-se Hiparco. Mais um grego a agarrar-se às saias do exército romano para tentar fazer
dinheiro.
Os outros oficiais soltaram sonoras gargalhadas, e Cato e Macro juntaram-se a eles, embora de forma contida.
- Agora a sério - prosseguiu Acer. - Pensava que era suposto que deixássemos cá tudo o que nos pudesse atrasar. Nada de tralha desnecessária, era o que diziam as
ordens do tribuno.
- Mas isso é para nós, miúdo - elucidou-o Macro. - Como se torna evidente, o tribuno acha que a sua esposa e um abastecimento inesgotável de vinho são fundamentais
para assegurar o sucesso da missão.
Os outros riram-se outra vez.
- Há mais algumas ideias por trás desta decisão - assegurou Horácio. - O mercador vem connosco para estabelecer laços comerciais com os brigantes. Não há nada que
os nativos mais apreciem do que o nosso bom vinho. Pelos deuses, a maior parte deles era capaz de vender a própria mãe por uma ânfora de um vinho decente. E em tempos
era mesmo isso que se passava, segundo o meu pai, que serviu em Gesoriacum muitos anos antes da invasão. Havia um constante fluxo de vinho a deixar a costa gaúlesa
rumo à Britânia, e os navios regressavam carregados de peles e escravos. O tribuno espera que fornecer vinho aos nativos possa ajudar a olear os mecanismos e deixá-los
mais dados à persuasão. Além
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disso, já se sabe como são estes mercadores gregos. Se houver algum boato interessante a circular, ele será o primeiro a saber.
O Sol tinha acabado de se erguer sobre o casario de Viroconium, os fortes militares e os edifícios civis que os rodeavam. No céu limpo e ainda róseo começava a erguer-se
o fumo de inúmeras fogueiras reavivadas. Os homens da coluna que Otho ia liderar mantinham-se numa formação pouco cuidada na parada, à espera da ordem para marchar.
Os cavalos das duas coortes auxiliares já estavam selados e carregados com o equipamento dos seus cavaleiros, e tinham dependuradas nos focinhos redes com ração.
Os animais pressentiam a ansiedade dos homens à sua volta, e as orelhas pontiagudas e os focinhos delicados vibravam e remexiam-se, no que eram acompanhados pelos
ruídos metálicos dos arreios. As mulas já atreladas aos veículos pareciam, em contraste, completamente alheadas do cenário, e mantinham-se imóveis enquanto os condutores
as passavam em revista, ajustando arreios e cangas onde fosse necessário. A carruagem de Popeia Sabina era o maior veículo da coluna e tinha sido colocada logo à
cabeça, para evitar que ela sofresse com a poeira fina levantada pelos cascos e rodas dos outros vagões.
- Aí vêm eles - anunciou Macro a meia-voz, e os oficiais avistaram o tribuno, de braço dado com a esposa, a caminhar calmamente, vindos da sua casa alugada. - Nada
de pressas.
Quando chegaram junto da carruagem, Otho ajudou a esposa a subir os degraus na retaguarda, e pôs-se em bicos de pés para receber um último beijo antes de se espreguiçar,
e passar pelos legionários e pelo contingente de infantaria auxiliar da coorte mista de Horácio. Esfregou as mãos enquanto se aproximava do grupo de oficiais que
o aguardava.
- Manhã frescalhota, não vos parece?
Macro sussurrou a Cato, pelo canto da boca:
- O que é que este quer com essa da frescalhota?
Cato encolheu os ombros.
- Deve ser alguma moda de Roma, imagino.
- Bom, a mim irrita-me como o caralho. Quando oiço coisas destas, só me apetece mandá-los à fava.
- O que se passa, centurião? - indagou Otho, em tom alegre.
- Nada de especial, senhor. É bom ver um homem tão atencioso. Com a sua esposa, quero eu dizer.
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- Essa não saiu lá muito bem - comentou Cato, quase sem mexer os lábios.
O tribuno assentiu, feliz.
- Todos os dias agradeço aos deuses por Popeia ser a minha esposa. Bom, senhores, vamos ao que interessa. Presumo que tudo esteja a postos?
Horácio assentiu.
- Estamos apenas à espera que dê a ordem, senhor.
- Nesse caso, vamos embora. Temos uma pequena conquista a concluir.
Horácio hesitou, pouco entusiasmado com os modos quase informais do seu superior. Acabou por soltar um suspiro e assentir.
- Sim, senhor. Oficiais! Às vossas unidades.
Os centuriões afastaram-se, cada um dirigindo-se à posição que a sua unidade ocupava na coluna, enquanto o prefeito se encaminhava para a cabeça da mesma. Cato e
Macro trocaram um aceno, antes de o centurião se dirigir à coorte que tinha formado por trás dos vagões. Cato foi até junto do soldado que tinha estado a segurar-lhe
o cavalo e subiu para a sela, onde se acomodou, antes de acenar ao decurião Miro. Este respirou fundo e levou a mão em concha à boca.
- Segunda Trácia! Montar!
Os soldados montaram rapidamente, no meio de alguma confusão de cascos, grunhidos e relinchos dos animais. Depressa os cavaleiros acalmaram as montadas, e tudo serenou.
Do outro lado da parada, Cato viu um escravo conduzir o cavalo do tribuno até junto deste; era um belo garanhão branco, de pelo lustroso e cuidado, sobre cujo dorso
se podia ver um pano vermelho e dourado, onde assentava a sela; dos arreios de couro polido pendiam fitas. O escravo agachou-se e fez um estribo com as mãos, para
ajudar o aristocrata a subir. Otho montou depois de acabar de apertar o capacete e, todo aprumado, passou os olhos pela diminuta força que ia comandar. Envergava
uma capa vermelha, ornada com enfeites dourados, que lhe fluía pelas costas abaixo, uma placa peitoral resplandecente e um capacete coroado com uma delicada pluma
vermelha, o que lhe dava um aspeto formidável, considerou Cato. O género de aspeto que, na sua imaginação, teria sido o de Pompeu, o Grande, nos seus dias de juventude.
A verdade é que a indumentária do jovem tribuno era mais esplendorosa do que a do próprio general Ostório; a dos legados, de patente muito
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mais elevada que Otho, nem tinha comparação possível. Cato sorriu, ao imaginar como reagiria a rainha dos brigantes àquele espetáculo quando os romanos chegassem
à sua capital, Isurium.
O tribuno deu um ligeiro toque na montada, suficiente para a colocar em andamento, e foi a trote colocar-se à cabeça da coluna, onde Horácio o aguardava, ao lado
do tradutor nativo, Velocato. A curta distância seguia o contingente montado de Horácio, que formava a vanguarda da coluna, e que se encarregaria de bater o terreno,
assim que deixassem os limites oficiais da nova província e entrassem em território nativo. Otho acenou ao seu subordinado e a voz de Horácio fez-se de novo escutar
ao longo das linhas de homens, veículos e animais.
- Coluna! Avançar!
Por trás dos dois oficiais, os estandartes das unidades representadas na coluna avançaram, seguidos pelas primeiras fileiras da primeira coorte de legionários, comandada
pelo centurião Estatilo, depois os homens de Acer, a caravana das bagagens, e por fim a coorte de Macro. Os Corvos Sangrentos tinham visto ser-lhes atribuída a retaguarda,
de onde podiam rapidamente avançar para proteger os flancos da coluna, se tal se tornasse necessário.
A coluna deixou a parada e tomou pela estrada que seguia para norte a partir de Viroconium. Um punhado de mulheres da povoação civil tinha-se juntado para os ver
partir, e algumas delas não conseguiam conter as lágrimas por se verem separadas dos seus homens. Dada a necessidade de alcançar Isurium rapidamente, Otho tinha
dado ordens estritas para que não fosse permitido a nenhum dos civis juntar-se à coluna, já que facilmente se podiam atrasar. A sua própria esposa era a única mulher
a quem fora permitido acompanhar os soldados, e o mercador de vinhos era o outro único civil da coluna.
No exterior do portão principal tinha-se também reunido um pequeno grupo de oficiais, para se despedir do tribuno e dos seus homens. Quintato avançou assim que viu
a cabeça da coluna a passar.
- Que Fortuna te acompanhe, tribuno Otho, e boa caça.
O jovem sorriu em resposta.
- Trarei Carátaco de volta, senhor, vivo ou morto. Fica a minha palavra.
- Espero ver-te de volta daqui a menos de um mês. De uma forma ou doutra.
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Trocaram uma rápida saudação, e o tribuno voltou a fazer avançar o cavalo, retomando o comando da coluna a caminho das terras dos brigantes. Depressa se tornaria
claro se a tribo ainda podia ser contada entre os aliados firmes de Roma ou se se tinham tornado inimigos acirrados.
os primeiros dois dias atravessaram as terras dos cornóvios, uma
tribo de pouco peso, que tinha solicitado a paz com os invasores pouco tempo depois do desembarque das legiões. Só depois de Ostório ter empurrado o inimigo para
as montanhas é que o povo da região tinha passado a viver sem preocupações com os ataques dos seus vizinhos, pela primeira vez em muitas gerações. Graças a isso,
a paisagem ondulante estava repleta de pequenas quintas, e a coluna cruzava-se com pastores e comerciantes que viajavam sem cuidados entre povoações, sem medo de
encontrarem bandos de malfeitores acoitados nas florestas que cobriam boa parte das colinas.
Era uma visão do aspeto que toda a província podia vir a ter um dia, refletiu Cato, enquanto seguia à frente dos seus homens pelo cenário verdejante, onde as flores
selvagens ofereciam salpicos de cores vibrantes. Havia naquelas terras uma beleza muito própria, suave, que lhe tocava a alma. Era muito diferente da paisagem dramática
de Itália, que era tantas vezes desfigurada pelas grandes propriedades agrícolas onde grupos de escravos permanentemente acorrentados trabalhavam sem descanso em
condições miseráveis, da alvorada ao ocaso. Ofereceu uma prece a Júpiter, pedindo para que nunca a Britânia fosse palco desses excessos. Se uma paz duradoura fosse
conseguida, traria Júlia até à nova província, para que ela pudesse apreciar a ilha por si própria. E talvez também ela se sentisse atraída pela paisagem. No instante
seguinte estava a fungar, furioso por se deixar embalar por aquela conceção idealista do futuro. Estava a deixar-se levar pela serenidade do verão britânico. Durante
a maior parte do resto do ano o clima era frio e húmido, no pino do inverno os dias eram curtos, e a luz que iluminava a paisagem despida era pálida, para dizer
o menos. Júlia ia detestá-la, tal como sucedia com Macro, que não perdia qualquer ocasião de apregoar esse facto.
Ao terceiro dia de caminho, passaram por vários fortins de muralhas de turfa e pelas torres de vigia que eram guarnecidas por destacamentos de tropas auxiliares,
e avançaram finalmente para lá da fronteira da província romana. Nessa noite, o tribuno ordenou que os homens
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construíssem um campo de marcha "em face do inimigo", designação utilizada pelo exército para caracterizar uma construção com um fosso mais profundo e muros mais
elevados, encimados por uma paliçada. Os cavalos e mulas já não foram deixados a pastar em recintos improvisados com cordas no exterior do campo; ao escurecer, foram
recolhidos e mantidos em pequenos currais no interior das defesas, onde estavam a salvo de quaisquer ataques inimigos. O número de sentinelas nos turnos da noite
foi dobrado, e todas foram instruídas para se manterem alerta a tudo o que se passava nas imediações do campo, na paisagem embrenhada na escuridão.
Cato apercebeu-se da mudança de disposição dos homens. O humor fácil e ligeiro dos primeiros dois dias tinha-se desvanecido, e agora agiam com um ar mais profissional
e atento. Todos estavam a par das linhas gerais da missão em que tinham sido enviados, e das ameaças que podiam ter de enfrentar para a levar a cabo. Carátaco tinha-se
tornado uma espécie de lenda para os seus opositores romanos e Cato percebia perfeitamente as razões para tal facto. Havia poucos homens que Roma tivesse combatido
durante tanto tempo; o rei dos catuvelaunos sempre se recusara a capitular, mesmo depois de o seu reino ter sido completamente conquistado, havia já alguns anos.
Nenhuma derrota o tinha feito mudar de rumo, e abandonar a sua fanática devoção ao desafio que lançara ao Imperador Cláudio. E agora parecia aos vulgares soldados
que o homem possuía decerto alguns poderes mágicos que lhe tinham permitido livrar-se das correntes que o prendiam em pleno campo romano, e isso no preciso dia em
que tinha por fim sido capturado. A um homem daqueles não podia ser permitido que continuasse a desafiar Roma. Era fundamental que ele partilhasse a sorte dos que
tinham posto à prova o poder de Roma e tinham soçobrado - como Aníbal, Mitrídates e Espártaco antes dele.
No dia seguinte, a guarda do flanco, comandada por Cato, avistou um diminuto grupo de cavaleiros que acompanhava à distância a coluna romana, ligeiramente abaixo
da crista das colinas à sua direita. O decurião Miro apontou-os ao seu superior, mas Cato levou alguns momentos a perceber os movimentos distantes no meio da urze
e das giestas que cresciam na íngreme encosta. Eram cinco cavaleiros, de túnicas, calças e lanças na mão. Não se via qualquer reflexo de uma armadura metálica, nem
sinal de escudos.
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- Dá ideia de um grupo de caça.
- Senhor, quer que envie um esquadrão atrás deles?
Cato considerou a ideia e abanou a cabeça.
- Não vale a pena. Facilmente se escapariam. Além disso, não estamos aqui para lhes fazer a guerra. Se são dos cornóvios, são nossos aliados. Se são brigantes, a
mesma coisa, pelo menos até que descubramos que afinal já não é assim. Vamos deixá-los em paz.
Miro dobrou o pescoço, mas não fez grande esforço para esconder o desagrado. Fez o cavalo rodar e regressou a trote para junto dos seus homens. De tempos a tempos,
Cato continuou a observar os cavaleiros desconhecidos, e verificou que eles regulavam o passo pelo da coluna romana. Não faziam qualquer esforço para se aproximarem,
nem para se afastarem. Se eram realmente caçadores, era evidente que tinham abandonado esse propósito para manterem os romanos sob vigilância. O mais provável era
que tivessem enviado alguém a dar notícia da presença dos romanos assim que a tinham notado. Apesar do tratado vigente com os cornóvios e com a rainha dos brigantes,
Cato não conseguia deixar de se sentir ansioso quando pensava no caminho que ainda tinham a percorrer. O tribuno Otho ia conduzir a sua coluna muito para lá da fronteira
estabelecida da província. À distância, Cato avistava uma linha de colinas que se estendia de norte a sul. De acordo com Velocato, essa linha no terreno marcava
a fronteira da nação governada por Cartimandua. Era bem possível que Carátaco já os tivesse conseguido converter à sua causa, e que naquele preciso momento estivessem
a organizar um exército de combatentes frescos, que ele poderia empregar contra os romanos. Se a coluna fosse emboscada nas colinas, ou nas terras para além delas,
não teria qualquer esperança de ajuda.
E o perigo não vinha apenas do exterior, refletiu Cato, sombriamente. Havia muito boas hipóteses de que alguém na coluna estivesse a planear a sabotagem da missão
do tribuno Otho, a recaptura de Carátaco. Mas quem? Cato voltou a sua atenção para a coluna que avançava pelo pacífico cenário: a infantaria, a caminhar penosamente
debaixo do peso das suas cangas de marcha, muitos dos homens com sujos farrapos atados em torno das testas para ensopar o suor; a cavalaria, que levava as montadas
a passo, os equipamentos pendurados das pegas das selas; e os vagões e carroças cujas rodas maciças ribombavam sobre a terra seca da
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estrada que curvava na direção da linha de colinas que a névoa tornava indistintas. Cato avistou o vagão coberto de Sétimo, e viu o agente imperial sentado ao lado
do escravo, no banco do condutor, de braços cruzados e o corpo a estremecer, devido às vibrações do veículo enquanto percorria o solo irregular.
Sétimo tinha mencionado aqueles de quem mais suspeitava, mas Cato não tinha encontrado qualquer evidência clara de traição da parte de algum deles. Horácio parecia-lhe
demasiado um soldado dos pés à cabeça, incapaz de entrar numa conspiração e, apesar dos segredos que o tribuno Otho e respetiva esposa pareciam guardar, também no
caso deles não havia indicações claras de traição. Todavia, alguém tinha de facto ajudado Carátaco a escapar, e para o fazer não tinha hesitado em livrar-se de dois
soldados. O responsável era uma ameaça a ter em conta. Sobretudo se Sétimo tivesse razão quanto à sua intenção de os eliminar, a Macro e a ele mesmo. Durante algum
tempo, Cato sentira-se feliz por estar de volta ao exército, onde havia um propósito claro e definido: derrotar o inimigo. Mas, desde que o agente imperial tinha
chegado com novas do plano de Palias, Cato vira-se obrigado a passar o tempo num estado de permanente alerta. A sua mente incansável procurava o mais ínfimo indício
de traição, e tinha-se-lhe tornado difícil conciliar o sono. E mesmo nas alturas em que o cansaço o vencia, obrigava-se a manter a espada ao alcance e a adaga debaixo
da almofada. Não era que tivesse alguma ilusão de que um inimigo expedito fosse incapaz de arranjar forma de o matar, se para tal lhe surgisse a oportunidade. Isso
era pouco provável de suceder durante a rotina quotidiana, já que um assassinato nessas circunstâncias seria demasiado arriscado e não traria grandes recompensas.
Era bastante mais provável que o homem de Palias esperasse até poder fazer com que as mortes dos dois amigos parecessem um acidente, ou até uma ocasião em que as
suas mortes pudessem ser usadas para fazer avançar decisivamente a sua causa, calculou Cato. Imaginou que eram ambos mortos durante as negociações com Cartimandua.
Se as suas mortes fossem atribuídas aos guerreiros da tribo, esse facto poderia ser usado para criar um diferendo entre Roma e os brigantes. Havia um pequeno faiscar
de esperança naquela história, ponderou Cato - Carátaco sabia quem era o traidor. Se não fosse já demasiado tarde para negociar uma resolução pacífica, decidiu que
manteria uma vigilância apertada ao fugitivo, para tentar descobrir se ele estava em contacto com
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alguém da coluna romana. E se tal fosse o caso, resolveu que avançaria sem piedade.
Ao fim da tarde, pouco depois de Otho ter dado ordem de alto e de estabelecer o campo, um grupo numeroso de cavaleiros surgiu na crista de uma colina, a pouco mais
de quilómetro e meio da coluna. Cato estava com Macro, a observar os homens a escavar o terreno com as suas ferramentas para começar a construir a secção das defesas
que lhes tinha sido designada. O alarme foi dado pelos homens da coorte do centurião Acer, mas depressa todos se viraram para ver, esticando os pescoços na direção
da colina. Cato calculou que devia haver cerca de cinquenta homens no grupo. E desta vez era evidente que não se tratava de caçadores. A luz rasante do Sol fazia
rebrilhar capacetes polidos e as partes metálicas dos escudos. Cato virou-se para o centro do campo, onde o tribuno estava com Velocato e alguns dos oficiais. Otho
observava os cavaleiros, mas não deu qualquer indicação ao trombeteiro para chamar os homens às armas. Ao invés, virou-se para um dos ordenanças e apontou na direção
de Cato. O homem anuiu e desatou a correr na direção indicada.
A breve troca de palavras não tinha escapado a Macro.
- Que é que ele quer connosco?
- Depressa o saberemos - retorquiu Cato, e depois olhou em volta; todos os homens de Macro tinham parado de trabalhar para ver o que se passava com os nativos, lá
longe.
- Macro... - Cato acenou na direção do grupo de trabalho.
A pele em redor dos olhos do amigo enrugou-se, formando uma carantonha irada, e ele respirou fundo.
- Mas o que vem a ser isto? Alguém vos deu feriado, caralho? - lançou aos homens, enquanto fazia vibrar a vareta no ar. - Toca a pegar nas picaretas e a cavar com
ganas!
Os legionários obedeceram de pronto, e o ar encheu-se do barulho das pontas metálicas a cravarem-se na terra, e dos grunhidos dos homens que empunhavam as ferramentas.
Macro passeou ao longo da linha, para verificar se não havia ninguém a preguiçar, no momento em que o ordenança chegou junto de Cato, sem fôlego, depois da correria.
- Senhor, o tribuno Otho envia cumprimentos e solicita que avance ao encontro daqueles cavaleiros com um dos seus esquadrões.
- Ao encontro? Ele quer que os ponha em fuga?
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- Não, senhor. Apenas que os desencoraje de tentarem aproximar-se mais.
Cato olhou para o homem com ar severo, tentando imaginar o que significava exatamente desencorajar os guerreiros nativos, se eles decidissem que queriam mesmo aproximar-se
do campo romano.
- Muito bem. Diz ao tribuno que não serão os meus homens a desferir o primeiro golpe, se tal puder ser evitado.
- Sim, senhor. - O soldado fez a saudação e virou-se, para correr de novo para junto do comandante.
Cato procurou o decurião Miro com o olhar; tinha acabado de desapertar a presilha da sela e estava a colocá-la no solo.
- Miro! Comigo!
Pouco depois, Cato conduzia o primeiro esquadrão dos Corvos Sangrentos para fora do campo em construção, na direção dos cavaleiros que observavam a disposição das
forças romanas. Manteve o passo lento, para não alarmar os nativos. O som surdo das picaretas depressa foi afogado pelo sapatear ritmado dos cascos dos cavalos.
O Sol mergulhava no horizonte e banhava a paisagem num brilho dourado e ainda caloroso. As sombras dos cavaleiros romanos estendiam-se sobre as ervas, e uma leve
nuvem de fina poeira levantava-se na estrada depois da sua passagem. O decurião Miro abria e fechava a mão livre, sem parar, enquanto seguia ao lado do prefeito.
- Devíamos ter trazido toda a coorte connosco, senhor.
- O tribuno quer apenas que os vigiemos - ripostou Cato, com toda a calma.
- Isso, podíamos fazer a partir do próprio campo.
- Mas nesse caso eles podiam sentir-se encorajados a aproximarem-se mais ainda. Será melhor mantê-los bem à distância, por agora. Decurião, temos ordens precisas
- concluiu com firmeza, para mostrar a sua desaprovação à forma como o subordinado permitia que a sua ansiedade interferisse com o dever que tinha a cumprir.
Avançaram em silêncio, até chegarem ao sopé da colina onde os nativos aguardavam, imóveis. Cato ergueu uma mão e fez sinal para os homens deterem as montadas e formarem
uma linha, e os Corvos Sangrentos dispuseram-se de ambos os lados do comandante, virados para o declive. Os trácios estavam tensos, e mantinham lanças e escudos
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a postos. Cato percebia perfeitamente o nervosismo dos homens. A unidade tinha passado dois anos em campanha contra as tribos das montanhas, e todos os nativos com
que se haviam cruzado nesse período tinham sido inimigos declarados de Roma. Por que razão seriam os homens no cimo da colina diferentes? Ainda assim, Cato estava
determinado a que os seus homens não fossem a causa de quaisquer hostilidades.
À medida que as sombras se alongavam e as ervas e arbustos se tingiam com os fulgores do Sol a desaparecer no horizonte, o trabalho de construção do campo fortificado
prosseguia. De vez em quando, Cato virava-se, para confirmar que o muro de terra já estava um pouco mais alto, enquanto os homens que na sua base construíam o fosso
pareciam estar um pouco mais afundados no solo. Por fim só as suas cabeças ficavam à vista, e pouco depois só se viam as pontas das picaretas quando eram erguidas,
e as pazadas de terra que eram lançadas para o monte de terra onde seriam cravadas as estacas da paliçada. Do outro lado das defesas outros homens afadigavam-se
a montar tendas de couro castanho, seguras por espias bem esticadas, em linhas longas e bem ordenadas. A coorte de piquete formava um cordão de infantaria em volta
do campo, mantendo-se atenta à possível aproximação de algum inimigo. Quando as defesas ficaram prontas, os homens foram chamados para o interior, e o primeiro turno
de sentinelas depressa assomou por trás da paliçada, enquanto os seus camaradas removiam as armaduras e começavam a preparar a refeição da noite.
- Quanto tempo mais é que vamos ter de ficar aqui? - resmungou Miro para si mesmo, mas num tom suficientemente elevado para chegar aos ouvidos do seu comandante.
- Até ouvirmos o toque a chamar-nos, nem mais nem menos.
Miro pareceu ensaiar uma resposta, mas pensou melhor e manteve
a boca fechada.
- Senhor! - Um dos soldados ergueu a lança e fez um gesto na direção do declive.
Cato olhou na direção indicada e viu que um dos cavaleiros tinha deixado o grupo e começara a descer a encosta, em passo lento; a montada fazia oscilar a cauda,
descontraída. Os Corvos Sangrentos reagiram de imediato, aperrando as rédeas e os escudos, e preparando-se para um embate.
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- Calma! - gritou Cato. - Ninguém faz nada sem ordens expressas! Mantenham-se nas vossas posições, e esperem pelas minhas ordens. Se alguém se lembrar de agir sem
motivo, esfolo-o vivo!
A linha romana acalmou, e esperou num silêncio tenso, enquanto o cavaleiro continuava a descer lentamente a encosta. Quando por fim se aproximou, Cato notou que
ele se sentava aprumado na sela de um cavalo muito bem cuidado, um garanhão castanho de pelo lustroso, que refletia a luz avermelhada do poente. Envergava uma túnica
com um padrão local, e calças azuis, presas por tiras de cabedal. Da sela pendia um escudo oval, e na mão direita transportava uma comprida lança. Os braços eram
espessos e musculados, e os cabelos escuros pendiam em tranças sobre os ombros largos. Não havia qualquer traço de medo na sua expressão enquanto conduzia o cavalo
a passo até junto do esquadrão de Cato e se detinha a não mais de dez passos dele. Encarou Cato por momentos, e depois fez rodar o cavalo para a direita e seguiu
ao longo da linha dos Corvos Sangrentos, fitando-os com evidente hostilidade. Ao chegar ao fim da linha, deu meia-volta e, no mesmo passo lento, regressou até junto
de Cato; parou mesmo à sua frente e fez menção de ameaçar o oficial romano com a ponta da lança. Miro reagiu por instinto, começando a desembainhar a espada.
- Quieto! - instou Cato. - Não faças nada até eu dizer.
Miro hesitou por momentos, e acabou por se obrigar a largar o punho da espada e a colocar a mão na crista da sela.
O cavaleiro nativo começou a falar numa voz ribombante, recheada de orgulho e ira, enquanto se dirigia a Cato na sua língua, apontando os romanos com a lança, para
dar maior ênfase ao discurso. Cato demorou um momento a perceber que ele indicava não apenas a linha de cavaleiros com que se confrontava diretamente, mas também
o campo distante.
- Senhor, o que está ele para aí a arengar? - inquiriu Miro a meia-voz.
- Calculo que esteja a perguntar-nos que raio estamos aqui a fazer. Uma questão que tem toda a razão de ser. Podemos ser aliados, mas esta coluna pode dar a impressão
de ser uma força invasora.
- Precisávamos era daquele tradutor que o tribuno trouxe. Quer que o vá buscar, senhor?
- Não. Mantém-te firme na linha, e fecha a boca.
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O cavaleiro continuou a sua tirada; os olhos rebrilhavam-lhe de cada vez que a luz do Sol poente os encontrava, o que lhe dava o aspeto de ser a personificação do
ultraje, sempre à beira de fazer o cavalo avançar bruscamente para empalar Cato na ponta da sua lança. O prefeito tomou consciência da aproximação de um martelar
de cascos na estrada, e arriscou uma espreitadela por cima do ombro; um cavaleiro aproximava-se a toda a brida, vindo do forte. Depressa o reconheceu; era Velocato,
pelo que lançou um sorriso fino ao decurião.
- Ao que parece, o tribuno adivinhou-te os pensamentos.
A gritaria foi interrompida quando o cavaleiro nativo esticou o pescoço para tentar perceber o que se passava por trás do prefeito. No instante seguinte, Velocato
refreava o cavalo e colocava-se ao lado de Cato. A expressão facial do outro homem enrugou-se numa máscara de desprezo e ele cuspiu para o solo, mesmo à frente do
recém-chegado.
Cato coçou a orelha, com o ar mais natural do mundo.
- Um amigo teu?
- Um primo. Belmato. Irmão mais novo de Venúcio.
- Ah, assim já percebo o porquê do evidente prazer que ele sente ao ver-te aqui. - Cato acenou na direção do irado nativo. - Mas gostava de saber exatamente o que
é que ele pretende.
Velocato limpou a garganta e dirigiu-se ao seu familiar. Em tempos, Cato tinha aprendido alguns rudimentos da língua das tribos do Sul, mas foi incapaz de acompanhar
o dialeto dos dois nortenhos, mais gutural. A troca de argumentos foi ríspida, e só depois o tradutor se virou para Cato.
- Além de alguns coloridos insultos dirigidos à minha pessoa, o Belmato exige saber qual a razão por que os romanos se aventuram tão para lá da fronteira das terras
cuja posse reclamam.
- Estou a ver. - Cato inclinou ligeiramente a cabeça, já que acabara de lhe ocorrer um pensamento preocupante. - Devo portanto presumir que a tua rainha ainda não
informou o seu povo de que solicitou a nossa assistência?
Velocato remexeu-se na sela, claramente incomodado, mas acabou por responder.
- Não sei, senhor. Limitei-me a transmitir a mensagem.
- Não acredito no que dizes. Tenta lá outra vez.
O jovem nobre baixou o olhar, e replicou:
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- Ela disse que seria melhor não avisar ninguém da vossa aproximação-
- Ao que parece, os acontecimentos resolveram contrariar essa intenção. - Cato acenou ao nativo, que esperava resposta. - Notícias da nossa aproximação vão chegar
a Isurium bem mais depressa do que nós.
Velocato encolheu os ombros. Antes que o prefeito pudesse prosseguir, foram interrompidos por Belmato, que lançou um chorrilho de palavras rápidas e duras.
- Ele exige uma resposta.
- Nesse caso, mais vale dizer-lhe a verdade.
O tradutor lançou um olhar ansioso a Cato.
- Não me parece prudente fazê-lo.
- E que escolha temos? Se não lhe contarmos a verdade, vai dar a sensação de que estamos de facto a invadir o território dos brigantes. Diz-lhe que estamos aqui
por solicitação da rainha. Que pediu para conversar com um representante do governador romano. - Cato baixou a voz. - Não menciones qualquer detalhe sobre aquele
que viemos prender. Depressa adivinharão o nosso verdadeiro propósito, mas não temos de lhes dar tudo de bandeja. Diz-lhe o que te indiquei.
Deu-se nova troca de palavras, mais longa e ainda mais acesa, até que Belmato fez ranger os dentes e esticou o braço, a apontar para sul. Para o sítio de onde a
coluna tinha vindo.
- Deixa-me adivinhar - comentou Cato, secamente. - Ele exige que voltemos para trás e regressemos às terras da província romana.
Velocato assentiu.
- Diz que não sabe de nada acerca desse pedido de Cartimandua. E que, de qualquer forma, só aceita ordens do seu próprio irmão. Se a vossa coluna prosseguir o caminho,
os brigantes interpretarão essa ação como uma declaração de guerra.
Cato empertigou-se. Tal resposta alterava por completo a situação, e não no melhor sentido. Não tinha autoridade para enfrentar aquela resposta. Era forçoso relatar
os acontecimentos ao tribuno Otho, e dar-lhe a possibilidade de pesar o cenário antes de decidir o que fazer.
- Hmm. - Cato limpou a garganta. - Diz ao Belmato que transmitirei a sua mensagem ao meu comandante, e diz-lhe também que nada temos contra o seu povo. Lembra-lhe
que estamos aqui a pedido da rainha Cartimandua, nossa aliada. Aconselho-o a verificar que isto
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é assim, antes de empreender qualquer ação que possa vir a provocar grande arrependimento entre todo o povo da nação brigante.
Velocato falou, e recebeu uma agressiva resposta do outro nativo, que pareceu atingir o tradutor como se tivesse sido um golpe direto. Virou-se para Cato e fez uma
careta.
- O meu primo avisa que, se a vossa coluna der mais um passo que seja na direção de Isurium, ele, e os guerreiros da sua tribo, vos despedaçarão, e levarão as vossas
cabeças como troféus para decorar as suas cabanas.
O guerreiro tinha estado a observar Cato enquanto este ouvia a tradução, e quando Velocato terminou, ele sorriu friamente e passou um dedo lentamente pelo pescoço,
num gesto inequívoco. Fez então rodopiar o cavalo e incitou-o a subir o declive, para se ir juntar aos homens que ainda aguardavam no cume. O Sol estava mesmo a
desaparecer no horizonte e, apesar de a tarde ter estado quente e acolhedora, Cato sentiu um arrepio de frio a subir-lhe pela espinha.
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- Como é que foi passar pela ideia da tua rainha que era boa ideia
esconder ao seu povo o facto de ter sido ela a solicitar a nossa assistência? - quis saber o tribuno Otho.
Velocato passou um momento a tentar deslindar a intricada pergunta, antes de replicar.
- Como já expliquei ao legado Quintato, ela está numa posição delicada. O nosso povo está dividido quanto à questão das nossas relações com Roma. A maioria quer
a paz, mas há também muitos que vos odeiam, ou simplesmente receiam. E que sentem que devem juntar-se aos que continuam a combater o invasor. Se não o fizerem, acham
que o reino dos brigantes acabará engolido pelo Império, como sucedeu a todas as tribos a sul das nossas terras. A minha rainha decidiu que seria melhor que na corte
não se soubesse que tinha solicitado a vossa ajuda. Pelo menos até que vocês estejam a caminho.
Otho esfregou os olhos fatigados, enquanto digeria a explicação. Ao redor da mesa, os outros oficiais superiores da coluna mantinham-se em silêncio. Cato meteu um
dedo por baixo da bainha da túnica e puxou o tecido, para o afastar da pele pegajosa de suor. No interior da tenda do tribuno fazia um calor sufocante, graças ao
facto de Otho ter ordenado que fechassem as abas da entrada, para manter os insetos no exterior. Ainda assim, havia uma pequena nuvem de mosquitos e moscardos a
esvoaçar alegremente em redor das pequenas labaredas das lamparinas de azeite; Macro resmungava imprecações de cada vez que um se atrevia a aproximar-se demasiado
do seu rosto, e lançava a mão ao ar, na vã esperança de lhes reduzir o número.
O tribuno, por seu lado, ignorava tais perturbações. Toda a sua atenção estava focada no jovem nobre brigante.
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- E o teu primo está realmente decidido a atacar-nos, se tentarmos prosseguir a marcha amanhã?
- Se? - interrompeu Horácio. - Senhor, temos ordens para...
- Conheço perfeitamente a merda das ordens, obrigado! - irritou-se Otho. - E sou eu quem comanda esta coluna. Sou eu quem toma as decisões. Apreciaria que te recordasses
disso, prefeito Horácio.
Aquela súbita explosão fora a primeira ocasião que Cato tivera para comprovar o temperamento do jovem tribuno, e ele e os outros oficiais ficaram imóveis, sentados
e à espera que o momento passasse e a tensão se dissipasse. Otho respirou fundo para se acalmar, e fez um gesto na direção do tradutor.
- Então, achas que o teu primo combaterá?
Velocato fechou os olhos por momentos e franziu as sobrancelhas, antes de voltar a abrir os olhos e responder.
- Não sei. O Belmato é um exaltado. Sempre o foi. Mas só faz o que o Venúcio lhe manda. É ele que deve ser a vossa fonte de preocupação. Se ele tiver dado ordens
ao irmão para lutar, será isso que ele fará.
- Seria uma tolice - interrompeu de novo Horácio. - Não tem mais de cinquenta homens com ele. Se tentar deter-nos, será completamente desbaratado.
- O que será com toda a certeza muito bem recebido na corte da rainha Cartimandua - lançou Cato, com evidente e pesada ironia, de forma a que nem Horácio deixasse
de compreender o que ele queria dizer. - Antes mesmo de chegarem a Isurium, já os seus aliados romanos terão manchado as espadas com o sangue do seu povo. Já estou
a ver como isso vai funcionar. O Venúcio vai atribuir-nos todas as responsabilidades pelas mortes, e afirmar que é uma prova das intenções de Roma em levar a guerra
aos brigantes, pelo que o seu povo não tem verdadeira alternativa senão juntar-se a Carátaco e prosseguir o combate contra a nossa presença. - Voltou-se para o tribuno.
- Senhor, temos de nos assegurar de que amanhã não correrá sangue, ou pelo menos fazer tudo o que nos for possível para o evitar.
Otho massajou a testa, devagar.
- Estás a sugerir que, em caso de nos tentarem deter, devemos dar meia-volta e recuar?
- Nem por sombras, senhor. Se retirarmos, o Venúcio não deixará
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de reclamar o crédito pelo nosso falhanço, e isso tornará ainda mais difícil a posição da rainha.
- Ou seja, em qualquer dos casos a situação em Isirium torna-se bastante pior para nós. Estamos tramados se continuarmos a marcha, e tramados se não o fizermos.
Cato conteve a irritação. Detestava aquela forma de pensar tão categórica. Obrigava todas as hipóteses reais de desenlace a reduzirem-se a duas alternativas - e,
como consequência, acabava por limitar também as linhas de ação que eram possíveis de adotar.
- Não, senhor. Estou apenas a salientar que a opção, a decisão, não é entre avançar e recuar. Qualquer uma dessas ações provocará alguma erosão no parco apoio que
temos entre os brigantes. Portanto, nenhuma delas constitui a melhor ação a realizar.
- Nesse caso, qual é? - inquiriu um evidentemente frustrado Otho.
- Amanhã, temos de prosseguir a nossa marcha - explicou Cato, pacientemente. - Além disso, como muito bem salientou o prefeito Horácio, são essas as nossas ordens...
a não ser que o legado nelas tenha incluído alguma salvaguarda que nos permita interromper o avanço se encontrarmos oposição.
Otho abanou a cabeça.
- Nesse caso, prosseguimos - adiantou Cato, com firmeza. - Mas não podemos provocar qualquer violência. Temos de a evitar, por todos os meios.
Horácio debruçou-se sobre a mesa.
- Por todos os meios, sim, mas não podemos deixar de nos defender.
- Precisamente - admitiu Cato. - Mas se forem trocados alguns golpes, temos de nos assegurar que são eles quem desfere os primeiros.
Deu-se uma breve pausa, antes de Macro comentar:
- Os rapazes não vão apreciar essa ideia. Não estão propriamente treinados para levarem tareia do inimigo e se ficarem.
- Mas não existe aqui um inimigo - ripostou Cato. - Pelo menos por enquanto, e é assim que queremos que as coisas se mantenham. Se acabar por ocorrer uma escaramuça,
é possível que percamos alguns homens ao início, sim. Mas antes isso a provocar uma guerra que custará muitas mais vidas, apenas porque os nossos homens não tiveram
a disciplina necessária para completar esta missão da melhor forma. - Voltou
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a dar atenção ao tribuno. - Senhor, terá de alterar a ordem de marcha para amanhã. Se formos efetivamente confrontados, é forçoso que na vanguarda sigam os homens
mais adequados para a missão. Homens em quem possamos confiar para fazerem exatamente aquilo que lhes é ordenado.
O tribuno Otho lançou um sorriso conhecedor.
- Os teus homens, calculo?
- Sim, senhor.
- Mas não são eles que possuem uma certa má reputação entre os nativos? Ao que ouvi, os teus homens são verdadeiros sanguinários, Cato. Não me parece que sejam um
grupo em quem confiar para manter a paz.
- É precisamente essa a ideia, senhor. A reputação que ostentam seguirá à sua frente. Quando Belmato e os seus homens avistarem o estandarte dos Corvos Sangrentos
à cabeça da coluna, talvez pensem duas vezes antes de avançarem para uma batalha.
- Não é esse bando que me preocupa. E se não conseguires controlar os teus homens? E se eles resolvem atacar primeiro?
- Tal não acontecerá - garantiu Cato com toda a firmeza. - Escolherei pessoalmente os homens, e tratarei de me assegurar que percebem aquilo que lhes é pedido. Confio
neles, senhor. Pode confiar também.
Otho encarou Cato, e sopesou as escolhas que se lhe apresentavam. Por fim, cruzou as mãos e olhou para os outros oficiais, à vez.
- Alguém quer oferecer algum comentário?
Ninguém se manifestou, e o silêncio reinou até que Otho deixou escapar um suspiro.
- Muito bem, ao que parece, vejo-me obrigado a prosseguir a marcha para Isurium. Dadas as circunstâncias, adotaremos um dispositivo semelhante ao que apresentamos
quando percorremos território inimigo. Para lá das fortificações noturnas, dobraremos a guarda do campo. Além disso, seguiremos em formação cerrada. Amanhã, o prefeito
Cato e metade da sua coorte tomarão a vanguarda. Prefeito Horácio, os teus homens vigiarão os flancos. Senhores, verifiquem se os vossos oficiais informam os homens
de que é absolutamente vital que não respondam a quaisquer provocações dos nativos. E que, se passarmos por alguma povoação, estão estritamente proibidos de roubar
o que quer que seja aos locais. Se ocorrer algum roubo, alguma violência, garanto-vos que o
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soldado responsável, e o seu oficial, se verão enterrados numa enorme pilha de merda, que eu próprio fornecerei. Estou a fazer-me entender?
Os oficiais anuíram e murmuraram a compreensão das ordens.
Otho voltou a olhar para Cato.
- Seguirás então à frente. Se algo de errado se passar, prefeito, ter-te-ei como responsável direto. Se rebentar um conflito entre Roma e o reino dos brigantes,
tratarei de garantir que todos, desde o legado Quintato ao próprio Imperador, ficam a saber que foste tu que o provocaste.
Cato encarou o superior, lutando para manter uma expressão de compostura. Por dentro, fervia nele o desprezo devido a quem se mostrava tão disposto a alijar qualquer
responsabilidade dos seus próprios ombros para os de um subordinado. A coluna era comandada por Otho. Ele tinha as suas ordens. Sabia perfeitamente qual era o seu
dever. E, mesmo assim, recusava expor-se às consequências de exercer as prerrogativas de comando que a sua patente implicava. Cato sentiu-se profundamente desapontado
com ele. Apesar de Otho ter tiques característicos da sua classe social, tinha-se mostrado corajoso durante a batalha contra Carátaco e o seu exército. Talvez tivesse
excedido o grau de confiança que lhe era inato por natureza. Era isso que, no fim de todas as contas, fazia a diferença entre os oficiais médios e os melhores, como
Cato acabara por descobrir. A confiança era a fonte da competência. A arrogância podia dar uma ajuda, mas era uma qualidade dúbia e frágil, baseada na ilusão e não
no bom julgamento, e portanto perigosa. Seria aquele o ponto fraco de Otho? O seu calcanhar de Aquiles?
Então uma negra suspeita fez o seu caminho na mente de Cato. E se estivesse a avaliá-lo de forma errada? E se o tribuno estivesse apenas, de uma forma extremamente
cautelosa, mas deliberada, a tentar sabotar a missão? Podia muito bem ocorrer que fosse ele o agente inimigo, enviado por Palias para tentar tudo, de forma a impedir
a paz de se instalar na província. A sua rapidez na aceitação de que seria Cato a seguir na vanguarda podia ser motivada pela possibilidade de o colocar na primeira
linha para ser abatido, se se viesse a dar um confronto com os guerreiros tribais. Seria uma solução realmente económica, admitiu Cato, com uma ponta de admiração.
Palias teria conseguido a guerra que desejava com os brigantes, e a eliminação de um peão indesejado, numa única cajadada. A coluna de Otho ver-se-ia obrigada a
retroceder, e Macro seria também eliminado sem problemas.
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Cato respirou profundamente antes de responder ao seu comandante.
- Senhor, cumprirei o meu dever. Não darei a ninguém qualquer desculpa para provocar uma nova guerra.
- Agrada-me ouvir-te dizê-lo - ripostou Otho, sem emoção. - E agora, a menos que haja qualquer outro assunto que alguém queira discutir. ..? Nada? Estão dispensados.
Os oficiais levantaram-se dos bancos e começaram a sair da tenda. Macro soltou um prolongado suspiro de alívio ao sair para a noite fresca. Por cima deles, o céu
apresentava-se completamente limpo, e as estrelas brilhavam como minúsculas gemas. A Lua estava baixa, pouco acima da linha das colinas, e à luz que proporcionava
conseguiam avistar um cavaleiro solitário que observava o campo romano da crista mais próxima. Os outros oficiais afastaram-se na direção das suas unidades. Macro
e Cato deixaram-se ficar nas redondezas da tenda do tribuno por mais alguns momentos.
- O que estás a pensar? - inquiriu Macro. - Achas que vai haver confusão, amanhã?
- Quem sabe? Tudo o que posso fazer é desempenhar o meu papel, e garantir que não é o nosso lado que a provoca.
- Pois. Muito bonito da parte do tribuno, apontar-te essa responsabilidade.
Cato soltou uma risada seca.
- A ideia foi minha, é justo que assuma a responsabilidade por ela.
Macro fitou-o. O luar fazia com que a pele do prefeito tivesse um ar
frio, como se fosse de pedra.
- Miúdo, tem cautela. Pouco me importa o que disseste ali dentro. Se algum daqueles bárbaros te atacar amanhã, não corras riscos desnecessários. Desfaz o cabrão,
antes que ele tenha oportunidade de o fazer a ti.
Os lábios de Cato abriram-se num breve sorriso.
- Verei o que posso fazer quanto a isso. - A expressão dele endureceu. - De facto, não é a ameaça dos bárbaros que me preocupa mais.
- O que é que queres dizer?
Foram interrompidos pelo riso suave da esposa do tribuno, que facilmente lhes chegou aos ouvidos. Quatro dos guardas do tribuno mantinham uma vigilância silenciosa
à entrada da tenda, a uma distância que facilmente lhes permitia escutar a conversa dos dois amigos. Cato indicou ao centurião que se deviam afastar da tenda.
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- Aqui não. Parece-me que é hora de irmos beber um trago.
Os olhos de Macro animaram-se de imediato.
- Ah! Isso é que é falar.
Percebeu então o verdadeiro significado das palavras de Cato, e deixou os ombros descair de novo enquanto começavam a atravessar o campo, na direção de uma pequena
carroça estacionada num dos cantos do recinto.
Um braseiro alumiava a área aberta junto aos vagões do mercador de vinhos. E por ali se deixava ficar uma pequena multidão; os homens, de pé ou sentados em pequenos
grupos, beberricavam de canecas de barro e conversavam nos tons sossegados de soldados fatigados pela marcha do dia, mas não de todo descontentes com a sua sorte.
Os homens abriram passagem aos dois oficiais até ao balcão instalado a curta distância do vagão. O escravo de Sétimo atarefava-se a servir os clientes, enquanto
o seu amo trabalhava semiescondido, a misturar uma bebida com água.
- Dois copos - pediu Cato, enquanto pegava na bolsa e tirava duas moedas de latão. - Mas de um vinho decente, claro.
Sétimo tinha levantado o olhar assim que reconhecera a voz do prefeito. Pousou o jarro que segurava e sorriu de forma obsequiosa.
- Meus caros senhores, infelizmente não tenho qualquer verdadeiro vinho disponível. Apenas posca, cuidadosamente misturada com água de nascente, fresca e pura, por
mim mesmo. Um excelente refresco.
- Queremos vinho - insistiu Macro.
Sétimo ergueu as mãos e exprimiu a sua desolação com um encolher de ombros.
- Não mo é permitido vendê-lo, por ordens de sua excelência, o tribuno Otho. Não permite que nenhum homem sob o seu comando fique bêbado. Portanto, só posso mesmo
servir vinho aguado. Isso, ou nada. - Sétimo baixou a voz, de maneira a que só os mais próximos dos soldados o pudessem ouvir. - Porém, para clientes especiais,
meus caros senhores, há sempre vinho. Tenho algumas ânforas especiais no meu vagão, se por acaso estiverem interessados...?
Cato assentiu, e Sétimo indicou-lhes a traseira do vagão, com toda a naturalidade. Os homens mais próximos deitaram olhares invejosos aos oficiais e trocaram resmungos
abafados acerca dos privilégios das patentes, antes de voltarem às conversas que mantinham antes. Sétimo conduziu os dois oficiais à parte de trás do vagão e afastou
as abas de
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couro para procurar no interior uma pequena ânfora. Enquanto falava, apontou para ela, como se estivessem a discutir qualidade e preço.
- Será melhor despachar isto. O que se passa?
- Viste os tipos que nos observaram ao longo do dia?
Sétimo assentiu.
- Ameaçam bloquear-nos a passagem, amanhã.
- Já mo tinha dito o decurião Miro. Esteve aqui há pouco, a tentar afogar as mágoas.
- Não vai conseguir grande coisa com a posca - comentou Macro.
- Ainda bem. Não me parece que ele apreciasse uma ressaca em cima das suas preocupações várias. - Sétimo olhou de novo para Cato.
- Então?
Cato hesitou um momento.
- O Otho está à procura de uma desculpa para fazer retroceder a coluna. - Fez um breve relato da reunião na tenda do tribuno, em que ele e Macro tinham estado.
- Estou a ver... E acham que pode haver nisso mais do que um simples caso de nervos em franja?
- Não faltou coragem ao tribuno na primeira batalha que travou
- lembrou Macro. - Não me parece do tipo que mete o rabinho entre as pernas só porque um magote de bárbaros merdosos o avisa para não meter os pés na terrinha deles.
- Exato - reforçou Cato. - Parece-me que há mais qualquer coisa por trás disto.
Sétimo coçou o nariz.
- Acha que é ele o nosso homem? O agente de Palias?
- Pode muito bem ser. Está numa posição perfeita para garantir o insucesso desta missão, e muito antes sequer de nos chegarmos a Carátaco e termos alguma hipótese
de voltar a capturá-lo.
- É verdade - admitiu Sétimo. - E o facto de ele estar tão entusiasmado por o colocar numa posição perigosa parece dar algum suporte a essa interpretação. Mas não
é propriamente uma prova conclusiva.
- Ele teria de agir com todas as cautelas - prosseguiu Cato. - Quem quer que seja o agente tem de apagar todas as pistas. Não apenas para se proteger, mas para proteger
o próprio Palias. Se ocorrer uma crise aqui na Britânia, e alguém for capaz de seguir a sua origem até ao
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liberto, o Palias vai acabar pregado a uma cruz, bem como todos os que lhe estão associados.
- Não me parece que essa sorte possa atingir todos os que a ele estão associados. A esposa do Imperador e o Nero dificilmente sofreriam tal destino.
- Achas que não? Ele mandou assassinar a Messalina por conspirar contra ele. E Cláudio amava-a. Casou com a Agripina mais por razões políticas do que outra coisa.
Se fosse provado que ela conspirava com o Palias para minar o poder do Imperador, duvido muito que fosse só o grego a desaparecer da face desta terra. - Cato fez
uma pausa. - Seja como for, e como eu disse, o agente de Palias não se pode arriscar a agir às claras. Tem de ter muitas cautelas. E isso leva-me, nesta altura,
a considerar o Otho como principal suspeito. A não ser que saibas de alguma coisa que não nos contaste.
- Não estou mais perto de chegar à verdade do que vocês - contrariou Sétimo. - É até possível que o agente não siga nesta coluna. Pode ser alguém em Viroconium.
O legado, por exemplo.
- Não me parece - decidiu Cato. - O Quintato não teve problemas em admitir que lhe tinha sido dito para nos tornar a vida difícil, a mim e ao Macro.
Macro fungou.
- E isso faz-te suspeitar dele menos?
- Precisamente - percebeu Sétimo. - Olhe, prefeito Cato. Estamos a combater o Palias e o seu grupo de agentes. São tão ardilosos e letais como os que o meu pai emprega.
E eu sei bem daquilo de que são capazes. Pode ser o Otho. Pode ser a mulher dele...
- O quê? - Macro fungou de novo. - Achas mesmo que foi ela quem abateu dois dos meus homens e libertou Carátaco?
- Porque não? Consegue imaginar um homem que não pusesse dois guardas de sobreaviso se se aproximasse deles? Acha mesmo que não existem agentes do sexo feminino?
Pela verga de Júpiter, centurião Macro, ainda tem muito a aprender. E seria melhor aprendê-lo depressa, se não quer sentir alguém a cortar-lhe as goelas de repente.
- Fez uma pausa, e adotou um tom mais moderado. - Claro que suspeito dela. E de quem quer que tenha os meios para tornar reais os desejos de Palias. Pode ser o Otho,
a mulher dele, o Horácio, quase todos.
- Até mesmo eu? - rosnou Macro.
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Sétimo afastou a ideia com desdém.
- Eu sirvo Narciso. Ele serve o Imperador. O que me põe acima de qualquer suspeita. As únicas pessoas de quem não suspeito são, por acaso, vocês os dois. Que mais
não fosse porque são as vossas vidas que estão sob ameaça do homem que procuramos. Ou da mulher - acrescentou, no último momento.
- Atendendo ao que sinto pelo teu chefe Narciso neste preciso momento, bem podia ser eu o agente de Palias. Nada me daria maior alegria do que despachar-te a ti,
e a ele, só para nos vermos livres de vocês de uma vez por todas, acontecesse o que acontecesse ao Império a seguir.
Os dois homens encararam-se sob o pálido luar com evidente hostilidade, até que Cato resolveu que era tempo de acabar com aquela conversa.
- Isso não nos leva a lado nenhum. Já disse tudo o que tinha a dizer. Devias manter uma vigilância apertada ao Otho. É o que penso.
- Tomei nota. Agora, será melhor regressar para junto dos meus clientes, antes que alguém comece a pensar no que raio teremos nós em comum, para levarmos tanto tempo
a conversar.
Sétimo voltou a arrumar a ânfora no interior do carro e dirigiu-se para o balcão, enquanto erguia ligeiramente o tom de voz.
- Lamento, senhores, se acham o meu preço demasiado elevado. Pensava que os oficiais romanos tinham dinheiro suficiente para viverem como senhores. - E adicionou
um remoque crítico: - As coisas nem sempre são o que parecem.
Os dois oficiais despediram-se com um breve aceno de cabeça, atravessaram a turba e afastaram-se da improvisada taberna.
- Serviu-nos de muito, esta conversa - protestou Macro.
- Pois - concordou Cato, pensativo. - Não nos deu qualquer ajuda. .. nenhuma mesmo.
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Cato estava sentado na sela, em silêncio, enquanto voltava a escrutinar os homens que tinha escolhido para compor a vanguarda montada da coluna. Eram cinquenta,
de pé junto aos seus cavalos, enquanto esperavam que ele lhes dirigisse algumas palavras. Tinha dado ordens para que os equipamentos dos homens fossem transportados
nos vagões das bagagens, de modo a que eles pudessem seguir sem qualquer peso extraordinário e estarem prontos a responder a qualquer ameaça. A maior parte deles
eram trácios, homens que já anteriormente o tinham seguido em combate. O seu caráter disciplinado tinha sido comprovado pelos comandantes dos esquadrões a que pertenciam.
Um punhado deles provinha do grupo de batavianos que fora recentemente incorporado, e que já tinham demonstrado ser de confiança.
- Parecem-me homens capazes - comentou Cato a meia-voz com o decurião Miro, de pé a seu lado.
- Sim, senhor. Os melhores. Chegam e sobejam para aquela ralé que nos vigia lá de cima.
Os olhares dos dois homens ergueram-se até divisarem uma linha de cavaleiros que parecia aguardar numa crista, a menos de quilómetro e meio dali. Durante a noite
tinham mudado de posição, e agora cobriam a estrada que a coluna romana tinha de seguir quando saísse do campo. Os preparativos para tal já iam adiantados. A paliçada
fora removida e as estacas aguçadas que a compunham tinham sido empilhadas nas respetivas carroças. A última secção do muro de terra estava a ser lançada em pazadas
certeiras para o fosso, de forma que apenas o solo remexido ficaria a marcar a posição do campo romano na noite anterior. As tendas também já tinham sido desmontadas
e dobradas, e as últimas estavam a ser amarradas sobre os alforges que pendiam dos dorsos das mulas da coluna. Os animais de tiro já estavam presos às carroças e
vagões, e
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os condutores alinhavam os veículos em coluna. A infantaria formava de ambos os lados, com as cangas apoiadas nos ombros. A cavalaria da coorte de Horácio e os restantes
Corvos Sangrentos tinham ocupado posições nos flancos e na retaguarda da coluna, a não mais de vinte passos da infantaria. A carruagem de Popeia Sabina tinha sido
posicionada a meio do pequeno comboio de bagagens, com uma secção de legionários destacada para a sua proteção.
- Esperemos bem que não seja preciso testar este dispositivo - retorquiu Cato. Limpou a garganta e adotou um tom formal. - Obrigado, decurião. Podes juntar-te ao
corpo da coluna.
- Senhor? - Miro virou-se para ele, surpreso.
- Eu assumo o comando aqui. Tu ficas no comando do resto da coorte, até que eu resolva alterar a situação. - Cato tinha estado a antecipar aquele momento. Já decidira
excluir o decurião da vanguarda. Os nervos que tinha exibido no dia anterior tinham deixado bem claro que o homem não servia para aquela tarefa. Cato tinha necessidade
absoluta de homens em quem pudesse confiar, homens que manteriam o sangue-frio mesmo em circunstâncias difíceis. Mas não tinha grande vontade de ser assim tão claro
com o decurião. Apesar de Miro não possuir o temperamento adequado para exercer o comando, ou mesmo para tomar parte naquela missão, era um oficial decente, perfeitamente
competente no desempenho das tarefas quotidianas, e não merecia receber uma ofensa daquelas. Subira nas fileiras até onde as suas capacidades tinham sido capazes
de o levar, e passaria certamente o resto do seu período de alistamento como decurião. O valor que possuía para Cato resumia-se na capacidade de desempenhar esse
papel a contento e sem provocar problemas.
Miro hesitou e Cato ofereceu-lhe um sorriso paciente.
- Preciso de ter alguém de confiança em reserva, capaz de assumir o comando da unidade no caso de me acontecer alguma coisa. Percebes?
O decurião anuiu e apresentou-lhe uma saudação formal.
- Sim, senhor. Pode contar comigo.
- Ótimo. - Cato retribuiu o gesto formal.
Miro virou-se e caminhou empertigado até junto do resto da coorte, que aguardava que a coluna se colocasse em movimento. Cato concentrou por fim a sua atenção nos
homens da vanguarda.
- Todos vocês sabem porque foram escolhidos para esta
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missão! Vocês são os melhores homens desta coorte. E isso torna-vos especiais, quando comparados com qualquer das outras unidades de cavalaria deste exército. Não
há coorte mais capaz do que a Segunda Trácia, os Corvos Sangrentos. Mas essa honra requer um elevado preço. A nossa reputação foi conquistada ao longo de anos de
duras provas nas campanhas da Britânia. E, como todas as reputações, tudo o que leva anos a construir pode ser destruído num único momento de desgraça. - Cato fez
uma pausa, para lançar um olhar austero aos seus homens. - E isso nunca poderei permitir. Hoje mesmo poderemos vir a enfrentar um severo teste à nossa autodisciplina
e coragem. Quero que cada um dos homens aqui presentes compreenda perfeitamente o que espero dele. Numa simples palavra, obediência. Absoluta. Aconteça o que acontecer,
sejam quais forem as provocações ou desafios, ignorá-los-ão. Ninguém reagirá. Nada farão a não ser que eu para isso dê uma ordem explícita. Nem quero saber se algum
brigante peludo e malcheiroso, um destes amantes de cabras, salta para cima de um de vocês e lhe vai ao cu. Se acontecer, acontece, e se o escolhido se atrever sequer
a fazer uma careta, tratarei de o colocar a cuidar do produto das latrinas de toda a coorte do centurião Macro pelo resto dos seus dias!
O comentário desencadeou um coro de gargalhadas, e Cato bendisse a rivalidade que existia entre as duas unidades, que tinham passado quase um ano juntas e isoladas
do resto do mundo. Embora tivesse explorado a situação para fazer uma brincadeira, sabia que os seus homens respeitariam estritamente as suas ordens com ainda maior
empenho, por medo de sofrerem uma vergonha daquela amplitude à frente dos seus camaradas.
- Corvos Sangrentos! - O seu sorriso tinha-se apagado já. - Às selas!
Os cavaleiros viraram-se para as selas, fizeram uma pausa para a regulamentar contagem silenciosa, um, dois, três, e subiram para os assentos, pegando nas rédeas
para acalmar as montadas e as alinhar em coluna. Quando ficaram prontos, Cato fez rodar o cavalo na direção de marcha, tomou a dianteira e lançou um braço para a
frente.
- Em coluna de quatro, avançar!
Seguiram a passo, deixando para trás a infantaria da coorte de Horácio, e começaram a passar pelos homens de Macro, que seriam o seu
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primeiro apoio em caso de combate. Macro esperava à cabeça da primeira centúria, e saudou o amigo ao vê-lo aproximar-se.
- Boa sorte, senhor.
- Também para si, centurião.
A troca de cumprimentos fora formal; porém, os dois homens estavam bem conscientes dos profundos laços que se tinham estabelecido entre eles. Quantas vezes, ao longo
dos anos, já tinham eles enfrentado momentos semelhantes, questionou-se Cato. Porém, ainda assim, havia naquela situação uma diferença. Era necessário um outro tipo
de coragem para refrear todo o treino recebido, que lhes apontava vezes sem conta a necessidade de serem os primeiros a atingir o inimigo. Renegar o treino, sim,
pensou Cato, mas também o instinto de autodefesa.
- Se alguma coisa correr mal, quero que a Júlia oiça as palavras dolorosas da boca de um amigo.
- Senhor, vire para lá essa boca.
- Curiosa escolha de palavras. - Cato sorriu, e prosseguiu pela estrada até que a última fila da vanguarda montada ficou dez passos à frente da coorte de Macro.
- Corvos Sangrentos! Alto!
Os cavaleiros detiveram as montadas, que ali ficaram à espera, de orelhas a agitarem-se e com um ocasional pisotear ou escavar de um casco na terra batida do caminho.
Não havia nada a fazer até que fosse dada ordem para toda a coluna se pôr em movimento. O Sol já tinha nascido e começava a derramar sobre a paisagem um brilho caloroso.
Os nativos que os esperavam pouco adiante eram banhados pela mesma luz, o que os fazia de alguma forma parecer maiores aos olhos de Cato. Perguntou-se se seria apenas
a tensão que lhe roía as entranhas. Apesar de não conseguir acreditar seriamente que Belmato e o seu punhado de homens se sacrificassem de forma tão estúpida para
dar origem a uma guerra, não conseguia acalmar os nervos. Havia qualquer coisa naquela situação que não lhe parecia correta, mas não conseguia precisar exatamente
o que era.
A espera foi curta, já que depressa o último elemento da coluna assumiu a posição que lhe cabia e uma trombeta soou no ar matinal, uma nota clara e profunda, que
ecoou nas encostas das colinas circundantes.
Cato encheu os pulmões de ar e lançou a ordem sobre o ombro:
- Corvos Sangrentos! Em frente!
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Deu um estalo com a língua e um ligeiro toque com os calcanhares, para que a sua montada começasse a avançar, sem tirar a vista de cima dos guerreiros nativos que
lhe bloqueavam a passagem, a poucas centenas de metros de distância. O ar depressa se encheu do bater de cascos, do matraquear das botas cardadas e dos gemidos profundos
das rodas dos veículos com as bagagens. Acima deles, bandos de andorinhões volteavam pelo ar, em busca da primeira refeição do dia, alguns subindo no céu, enquanto
outros esvoaçavam entre arbustos e tufos de ervas altas decoradas com flores amarelas e brancas. Tudo isto se imprimia nos sentidos apurados de Cato, enquanto continuava
a subir a doce ladeira que levava à crista da colina, onde Belmato e os seus homens aguardavam.
Já conseguia distinguir perfeitamente o líder do grupo. O guerreiro celta estava sentado no seu cavalo, mesmo a meio da estrada, de mão na cintura, numa pose altiva
que Cato acabara por reconhecer como característica dos homens que lideravam as tribos daquela ilha. Por momentos desejou ter Velocato ao seu lado, para traduzir,
se ocorresse alguma troca de palavras. Mas o jovem brigante tinha recebido ordens para viajar na carruagem de Popeia, onde estaria longe da vista dos nativos. O
tribuno tivera razão ao insistir nesse ponto, refletiu. Ver um dos seus a viajar com os romanos podia muito bem ser o suficiente para agitar as paixões dos nativos,
e levá-los a um ato violento que todos acabariam por lamentar. E não havia realmente necessidade de um tradutor, raciocinou Cato. Sabia perfeitamente o que tinha
a fazer, e numa situação daquelas as palavras seriam supérfluas, talvez mesmo perigosas. Perscrutando bem fundo dentro de si mesmo, reconheceu que a única razão
que tinha para desejar a presença do outro homem era porque se sentia exposto ao seguir sozinho à cabeça da coluna. O coração batia-lhe a toda a velocidade e sentia
o sangue a correr pelas veias enquanto tentava manter um ar de compostura e o olhar fixo em frente.
Então, quando já não estava a mais de cem passos da crista, um rugido tremendo ergueu-se no ar, fazendo com que os pássaros se lançassem em voo por todo o lado,
espantados. Por trás do pequeno grupo de cavaleiros que os aguardavam, o solo pareceu tornar-se vivo e dar nascença a homens, centenas deles, que se apressaram a
engrossar as fileiras dos cavaleiros. Um arrepio frio de temor cresceu no peito de Cato, mas firmou a mandíbula e continuou a avançar, fiel às ordens. Deitou uma
rápida olhadela ao que se passava atrás de si, e assinalou com orgulho
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que nenhum dos seus homens dera qualquer sinal de vacilar, apesar de terem colocado as lanças em posição e manobrado os escudos de forma a proteger os corpos. Cato
imitou-os, e passou as rédeas para a mão direita, para afastar a tentação de a fazer descansar no punho da espada.
Os nativos não fizeram qualquer tentativa de avançar, limitando-se a esperar e a lançar berros e insultos, agitando punhos e armas. À medida que o prefeito se aproximava
deles, um esguio e jovem guerreiro adiantou-se ao grupo e virou as costas aos romanos. Pegou na bainha da túnica e levantou-a, para revelar as nádegas; logo em seguida,
debruçou-se para a frente, ostentando as pálidas meias-luas na direção de Cato. Este suprimiu uma careta perante a ousadia do jovem e fingiu ignorar o gesto. O outro
correu para o lado no último momento, e deixou Cato face a face com Belmato.
O nobre brigante não se mexeu e Cato deu um subtil toque nas rédeas, de maneira a passar ao lado do homem. Não foram trocadas quaisquer palavras, só os olhos se
defrontaram, numa troca de frios e inflexíveis olhares, até que Cato o deixou para trás. À sua frente estava agora uma massa de elementos tribais, a gritar e gesticular
sem sentido, e o prefeito continuou a olhar por cima das suas cabeças enquanto levava o cavalo a passo. Como todos os animais da cavalaria militar, este tinha sido
treinado para situações de batalha, pelo que não se deixou afetar pelos gritos, toques estridentes de corno, ou pelo bater das armas. Ainda assim, resfolegou e abanou
o pescoço, enquanto levantava a cabeça para a afastar dos homens no seu caminho.
Cato sentiu um deles a roçar-lhe pela perna, e tentou não estremecer. Não foi feita qualquer tentativa de impedir a marcha do cavalo, nem de lhe tocar, ou de agredir
o cavaleiro. Notou um lampejo de movimento à sua direita, e um pedaço de matéria mole aterrou-lhe no peito, salpicando-lhe o queixo. O cheiro a dejetos atingiu-lhe
as narinas, mas obrigou-se a não reagir. Nem sequer fez menção de limpar a porcaria. E então viu-se do outro lado da linha de nativos, a salvo no cimo da colina.
À sua frente, a estrada estendia-se, desimpedida, pelas colinas da terra dos brigantes. Avançou mais alguns metros antes de olhar para trás e verificar que os seus
homens se mantinham disciplinados, ignorando os abusos verbais e os projéteis imundos que lhes eram lançados. Avistou de novo Belmato, que se tinha desviado para
a berma da estrada. O guerreiro nativo virou-se e avistou-o ao mesmo
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tempo, e o prefeito pôde verificar a frustração que lhe tinha tomado conta das feições.
De imediato, toda a tensão que o afetava se desvaneceu e Cato sentiu uma necessidade urgente de largar umas sonoras gargalhadas, ao perceber que Belmato e os seus
homens tinham recebido ordens em tudo semelhantes às suas. Também eles tinham sido instruídos para não desferirem o primeiro golpe, mas tinha-lhes sido dada rédea
livre para tentarem todas as provocações que pudessem levar os romanos à violência. Agora que o truque tinha sido desmascarado, nada do género poderia vir a suceder,
considerou Cato, aliviado.
A coluna continuou a avançar pelo meio da agitada turba, mas não foram trocados quaisquer golpes, e nem um dos romanos se voltou para devolver os insultos aos brigantes;
pouco depois, já toda a vanguarda da formação tinha deixado para trás Belmato e os seus homens. Do cimo da colina seguinte, Cato voltou-se para ver o que acontecia,
e viu o guerreiro agitar os braços, furioso com os seus homens, até que eles se calaram e ali ficaram, imóveis e impotentes, a ver as costas dos soldados romanos
a atravessar o sereno cenário do campo britânico. Cato pegou no cantil e tentou limpar os excrementos com que fora alvejado. Da próxima vez podia não ter tanta sorte,
considerou. Podia muito bem ser uma seta, um dardo ou um pedaço de metralha a vir ao seu encontro.
A coluna prosseguiu a marcha pelas colinas que se espraiavam para todos os lados da estrada, e os nativos foram-na seguindo, cobrindo ambos os flancos. Contudo,
não renovaram a tentativa de impedir a passagem aos romanos, e nessa noite as duas forças instalaram os seus acampamentos a pouco mais de um quilómetro de distância.
As fogueiras brigantes envolviam os vultos dos guerreiros num brilho avermelhado, enquanto eles se instalavam à sua volta e conversavam animadamente, como era usual
entre os celtas. As suas vozes chegavam com facilidade às muralhas de terra bem desenhadas onde os soldados romanos patrulhavam em silêncio, parando de vez em quando
para deitar uma olhadela preocupada ao que se passava no acampamento vizinho, antes de prosseguirem a ronda e perscrutarem a escuridão em busca de qualquer sinal
de perigo. À medida que a noite progredia, os nativos resolveram dar largas à cantoria. A princípio eram músicas alegres e bem-dispostas, mas a pouco e pouco foram
começando a entoar as canções mais lentas e sentidas que despertavam em Cato, que
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percorria a secção do perímetro do campo confiada aos seus homens, sentimentos de perda e nostalgia.
Normalmente, caberia ao optio o trabalho de assegurar que os homens se mantinham alerta, mas o prefeito não tinha conseguido pregar olho. Por isso, tinha pegado
na capa e saído da tenda; resolvera percorrer o passadiço e verificar todos os postos, oferecendo a senha sempre que esta lhe era solicitada. Aproximou-se de uma
das plataformas de esquina, onde a silhueta escura de uma balista se destacava contra os tons mais claros da paisagem, mal iluminada por um fino crescente lunar,
tão fino como as letais lâminas curvas das adagas que tinha em tempos visto na Judeia. Ouviu uma troca de palavras sussurradas entre dois homens, e os seus lábios
cerraram-se numa careta, enquanto se preparava para desancar as sentinelas responsáveis. Mas nesse momento distinguiu a voz de Macro.
- Estão animados, não estão? Sobre o que estão eles a cantar?
Deu-se uma pausa, até que o outro homem respondeu:
- É um lamento... Acerca da mulher de um guerreiro, que aguarda o seu regresso da batalha. Ela ainda não sabe, mas ele morreu. Uma morte heróica. Ela espera ao portão
da aldeia, ao lado das outras mulheres, e procura o rosto do seu bem-amado entre os homens que regressam, até passar o último deles. E só nesse momento ela compreende...
Ao escutá-la, Cato reconheceu a voz de Velocato. O jovem brigante foi interrompido por um pigarrear desdenhoso.
- Não é lá muito animadora, essa canção - protestou Macro. - Ainda assim, a melodia não é má de todo. Um dia terás de ma ensinar...
Virou-se ao pressentir a chegada de Cato, e acenou uma saudação ao reconhecer o amigo.
- Senhor, boa-noite.
- Centurião. - Cato acenou também, mas o seu olhar dirigiu-se para o tradutor nativo. As feições do homem mal se distinguiam ao pálido luar. Ainda assim, conseguia-se
perceber a expressão magoada com que ele olhava para as fogueiras distantes. - Alguma coisa a relatar?
- Não. O Belmato e os seus rapazes estão-se a portar como umas joias. E ainda fornecem o entretenimento.
- Esperemos que continuem a portar-se bem. - Cato subiu à paliçada para se colocar ao lado dos outros dois, e contemplou o espaço
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entre as duas forças. - Pergunto-me se eles continuarão a fazer isto ao longo de todo o caminho até Isurium.
- A cantoria não me incomoda. Agora, se eles quiserem mesmo lutar, vão dar-se mal, e lá se vai o pio.
- A não ser que eles recebam reforços. Além disso, quanto mais progredimos para o interior do seu território, maior se torna o caminho da retirada, se for caso disso.
- Imagina tu - ripostou Macro - que essa até eu tinha percebido por mim mesmo.
Cato irritou-se por ter proferido aquele comentário desnecessário. Traía os nervos que sentia. Ofereceu um breve sorriso ao amigo.
- Desculpe.
Os três homens ficaram em silêncio, enquanto continuavam a escutar o agora suave som das canções que se espalhava pela noite tranquila. Cato apercebeu-se de que
Velocato entoava as melodias em voz baixa e ocorreu-lhe a ideia de que o tradutor preferiria certamente estar com os seus compatriotas à volta da fogueira, em vez
de ali, na paliçada de um campo romano. Pigarreou.
- Velocato, porque é que estás aqui?
O brigante virou-se para ele, surpreso.
- O que quer dizer?
- Quero saber porque é que estás aqui connosco, em vez de estares além. - O prefeito apontou para as figuras distantes sentadas ao redor das fogueiras.
Velocato olhou para o oficial romano, sem se deixar enganar.
- Quer dizer, porque é que vos estou a ajudar, em vez de me juntar a eles?
- Sim.
- Estou aqui por ordem da minha rainha.
- E porque é que ela te escolheu?
- Porque falo a vossa língua. Porque ela confia em mim. São razões mais do que suficientes. Além disso, ela ordenou-mo. Não tenho portanto escolha.
- Todos temos escolhas. Podias ter optado por te aliares aos que não tencionam entregar-nos Carátaco. Ou seja, podias ter aderido à fação de Venúcio. Mas não o fizeste.
Gostava de saber porquê.
O outro esfregou a parte de trás do pescoço, num gesto casual.
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- De facto, eu sou o portador de escudo de Venúcio. Um lugar honroso, na nossa tribo. Não nego que o facto de ele me ter escolhido me encheu de orgulho. O Venúcio
é um guerreiro de renome. Tão forte como corajoso. O nosso povo admira-o. Aliás, foi essa a razão por que ele atraiu a atenção da Cartimandua. E por isso ela o aceitou
como consorte. Com Venúcio ao seu lado, ela propunha-se fortalecer o poder real e criar laços mais fortes entre todas as tribos da confederação. - Velocato soltou
um sorriso contrariado. - União, eis uma qualidade a que a generalidade das tribos desta ilha dá muito pouca importância, como vocês, romanos, já devem ter percebido.
Se déssemos mais valor à unidade e a tivéssemos concretizado numa aliança contra vós, as vossas legiões já teriam sido forçadas a regressar ao mar há muito tempo.
- Achas mesmo? - interveio Macro. - A mim parece-me que a nossa determinação de acabar um trabalho encetado mais do que contrabalançaria a vossa unidade.
- Reconheço a capacidade das vossas legiões, mas nem elas seriam capazes de se sobrepor ao poder combinado de todas as nossas tribos. Se os brigantes decidirem enveredar
pelo caminho da guerra a Roma, há uma real possibilidade de vocês se verem derrotados.
- Jovem, continuo a achar que sobrestimas as hipóteses dos teus celtas.
- Velocato - Cato encarou-o, - se o que dizes é verdade, então porque é que nem todos os homens da tua tribo escolheram seguir Venúcio?
O tradutor hesitou.
- Existem duas fações principais entre os brigantes, as tribos do Ocidente e as do Leste. O Venúcio vem do Oeste, e há por lá muita gente que possui ligações aos
ordovicos. Por isso, as suas simpatias viram-se para Carátaco e os seus aliados. Há alguns que gostariam realmente de enfrentar Roma. Foi também por isso que a rainha
escolheu Venúcio para consorte, para manter o povo unido. Ela, e eu, vimos das terras do Leste. Temos menos motivos para odiar os romanos. Além disso, existe sempre
o risco da derrota, e a rainha é cautelosa quanto a expor o seu povo às consequências de uma humilhação militar. E eu concordo com ela.
- Falaste como um verdadeiro guerreiro - lançou Macro, em tom de gozo.
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Velocato empertigou-se.
- Até o portador de escudo de um herói como o Venúcio pode perceber que a guerra não é a solução para tudo, centurião. Compreendi que a minha rainha tem razão em
avançar com prudência. A certeza de uma paz com Roma é vastamente superior aos riscos que um confronto implica, nomeadamente uma derrota, e o consequente esmagamento
da nação brigante debaixo dos vossos pés. Não tenho qualquer desejo de partilhar o destino dos catuvelaunos, ou o dos durotrígios. E assim pensam muitos na nossa
tribo. A rainha sabe-o, e partilha as preocupações dos seus nobres.
- Pareces conhecer perfeitamente as ideias da rainha - comentou Cato, sem malícia. - Sobretudo para alguém que é o portador de escudo de Venúcio.
O jovem nobre brigante abriu a boca para ensaiar uma resposta, mas hesitou e acabou por desviar o olhar.
Cato apercebeu-se de que estava a entrar por terreno movediço, e que seria necessário avançar com grande sentido de tato. Mudou a linha de questionário.
- E o que pensa o consorte das cautelas da rainha?
- O Venúcio é um guerreiro, desde sempre. Conduziu a tribo à batalha, muitas vezes. Mas liderar em combate não é a mesma coisa que governar uma nação. Para isso
é preciso também sabedoria, não apenas coragem, como tenho aprendido ao servir a rainha. O que se passa é que ele já não se satisfaz com a sua posição de consorte,
e ambiciona ocupar a posição da rainha, de maneira a poder levar o povo a uma guerra com Roma, ao lado de Carátaco.
- Carátaco não é do tipo de homem que se limita a ficar ao lado de alguém - adiantou Cato. - Não se contentará em ver Venúcio a governar o vosso povo. Esse é o papel
que ele reserva a si mesmo. De forma a arranjar um novo exército com que se possa opor à nossa presença. Combatér-nos-á até à última gota de sangue de todos os homens
da Britânia que consiga convencer a segui-lo. E só a rainha Cartimandua se interpõe entre ele e esse desejo.
- Não é apenas ela. Ainda há muitos de nós que lhe são leais - replicou Velocato, de forma inflamada. - Não ficaremos quietos a assistir à tomada do trono por Venúcio.
Macro inclinou a cabeça para lançar outro remoque.
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- Leal à rainha, mas desleal ao guerreiro supremo, então?
- O meu dever é para com o meu povo e a minha rainha, e só depois para com Venúcio.
- O que é de aplaudir. - Macro acenou a Cato. - Não te parece?
- Oh, sim - retorquiu o prefeito, e calou-se, à espera que o jovem prosseguisse. Todavia, em vez disso, Velocato lançou um último olhar às luminosas mas longínquas
fogueiras dos brigantes e voltou-se de novo para os dois oficiais romanos.
- Estou exausto. Se não se importam, vou recolher.
Cato fixou-o com o olhar, antes de concordar.
- Claro. Dorme bem.
O nobre brigante acenou brevemente, à laia de despedida, e apressou-se a descer a rampa interior da muralha, antes de se dirigir para as tendas do quartel-general.
- Bem, bem... - considerou Macro, suavemente. - Ao que parece, o miúdo viu-se metido numa camisa de varas. Ainda bem que escolheu o lado certo, pelo menos do nosso
ponto de vista.
Cato anuiu, pensativo.
- A mim parece-me que há ali outra coisa.
- O que é que queres dizer?
- Há qualquer coisa na voz dele quando fala da Cartimandua. Não se apercebeu?
- Ouvi o que ele disse, sim.
- Não é exatamente a mesma coisa.
Macro sorveu o ar, chateado.
- Porra, diz-me lá o que queres dizer com isso.
- Quero dizer que há outra coisa, além da disputa entre a lealdade à rainha e a que ele deve ao homem que lhe concedeu a honra de o escolher para portador do escudo...
Macro considerou a ideia de Cato por momentos, antes de soltar uma suave imprecação e ripostar.
- Queres tu dizer que ele tem um fraquito por ela?
- Algo mais do que isso. E acho que essa afeição é mútua.
- Como é que podes saber tanto?
- Ela enviou-nos alguém em quem sabe que pode confiar, e que por acaso é subordinado do homem que se quer aliar a Carátaco. O Venúcio não sabe da relação entre os
dois. Como poderia saber? Tenho a certeza
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que a rainha e Velocato são extremamente cuidadosos. Sabe muito bem como as paixões se inflamam facilmente, entre os celtas.
- Isso, sim - retorquiu Macro, com emoção.
- Ela foi esperta. - Cato coçou o queixo. - E o Velocato não foi lá muito honesto connosco. Enfim, pelo menos sabemos que ele é, antes de tudo o mais, leal à rainha.
- E se estiveres enganado? - indagou Macro. - Se ele estiver na realidade a trabalhar para Venúcio?
Cato pesou a sugestão, mas acabou por abanar a cabeça.
- Como já disse, havia qualquer coisa na voz dele quando falava de Cartimandua... Estou seguro do que disse.
Macro fletiu os ombros, fatigado.
- Doce Júpiter, as coisas devem andar complicadas lá por Isurium. A rainha usa o miúdo contra o marido. Se a verdade se torna conhecida, lá se vai a tranquilidade
doméstica. E de que maneira!
- Sem dúvida - anuiu Cato. - Como se não tivéssemos já o suficiente com que nos preocuparmos. A última coisa de que precisamos é de uma guerra civil entre os brigantes.
Se a diferença de opiniões quanto à entrega de Carátaco à nossa custódia não a desencadear, a infidelidade da Cartimandua poderá muito bem ser a desculpa de que
Venúcio anda à procura. E ainda temos um agente inimigo algures nas nossas fileiras para nos dar que fazer.
- Perigo por todos os lados, portanto - considerou amargamente Macro. - Enfim, parece-me o habitual. Diz-me, Cato, que raio fizemos nós, que tenha levado os deuses
a decidir mergulhar-nos em merda até ao pescoço a cada oportunidade? Hã? Diz-me lá, se souberes.
As canções tinham terminado, e os nativos, lá longe, tinham começado a acomodar-se sobre o solo, aquecidos pelo calor que as fogueiras moribundas ainda irradiavam.
Cato encolheu os ombros.
- Os deuses jogam os seus jogos, Macro, e nós os nossos. E, ao que parece, nada podemos fazer quanto a isso, exceto tentarmos manter-nos vivos. Mais nada.
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Chegaram à capital dos brigantes três dias depois, ao anoitecer. Em tempos, Isurium fora apenas uma pequena povoação rodeada por algumas fortificações de pouca monta,
instalada no cimo de uma íngreme encosta que dava para o vale onde corria o rio. Mas agora toda a cumeada se via coberta por dúzias e dúzias de cabanas, com tetos
de colmo e tamanhos variados. No ponto mais elevado tinha sido construído um edifício de madeira, que dominava as redondezas. Uma estreita vereda curvava por entre
as linhas de fossos e as paliçadas, e conduzia a uma povoação bem desenvolvida na base da colina. No vale em redor viam-se as demarcações de pequenas quintas.
As sombras já se alongavam quando a coluna romana fez alto, a uns oitocentos metros do início da subida para Isurium. A força nativa que os seguira de perto prosseguiu
até à povoação, enquanto os cavaleiros trepavam a colina e desapareciam da vista no meio das muralhas de terra que guardavam o acesso ao antigo forte. Assim que
a coluna se deteve, os soldados dedicaram-se à rotina habitual. Uma linha de legionários foi disposta no terreno, para proteger o local, enquanto os seus camaradas
tiravam as mochilas e pegavam nas picaretas, para começar a preparar o fosso e a paliçada.
À medida que escurecia, dezenas de nativos, mais audazes do que a maior parte dos elementos da tribo, aproximaram-se, muitos deles para verem pela primeira vez os
famosos romanos que tinham varrido todos os que se lhe tinham oposto nas terras do Sul. Mantiveram-se a uma distância segura, e limitaram-se a olhar enquanto o campo
romano se erguia do solo à frente dos seus olhos. Antes de a luz desaparecer por completo, já a paliçada estava terminada, e as balistas estavam a ser montadas nos
torreões aos cantos do campo.
- Amanhã quero torreões também sobre os portões - ordenou o
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tribuno Otho, enquanto inspecionava o campo, ao lado dos seus oficiais superiores. - Podemos ter de passar aqui vários dias. Ou mais ainda, se a situação se virar
contra nós. - Voltou-se para o centurião Estatilo.
- Quero as defesas do campo melhoradas, tanto quanto possível. Não temos estrepes, portanto teremos de nos remediar com estacas e outros obstáculos quaisquer de
que nos lembremos. Trata disso.
- Sim, senhor.
Estavam na muralha que ficava mais próxima de Isurium, e a massa escura da colina erguia-se sobre eles na escuridão crescente. O palácio real era iluminado por braseiros,
dispostos a distâncias cuidadosas dos telhados de colmo, e naquele brilho avermelhado o edifício parecia ainda maior do que dera impressão à luz natural do fim
do dia. Todos os oficiais olhavam na mesma direção, e o silêncio perdurou por momentos, até que o prefeito Horácio limpou a garganta e lançou a questão que dançava
nas mentes de todos.
- Quando é que eles vão reconhecer oficialmente a nossa presença?
Não tinha existido qualquer contacto com a rainha ou um seu representante desde a chegada da coluna, e Cato considerava tal facto um mau presságio. Virou-se para
Velocato.
- Este é o teu povo. Porque é que achas que a rainha ainda não nos enviou um representante, a saudar-nos?
- Não sei - admitiu o nativo. - Mas se me permitirem ir até lá acima de cavalo, depressa saberei a razão, e poderei voltar para vos informar.
Otho abanou a cabeça.
- Não. Preciso de ti aqui, para o caso de alguém se aproximar com alguma mensagem. Se amanhã de manhã continuar a não se passar nada, enviarei um pequeno grupo,
contigo, para lhe apresentar os cumprimentos do general Ostório. Avaliaremos então qual a disposição da rainha. E do resto da corte.
- Mas podia fazer isso ainda esta noite, senhor. Agora mesmo, se mo permitir.
Otho pensou um momento, e abanou a cabeça.
- Está muito escuro. Pode ser perigoso sair do campo. Vamos esperar que a luz regresse. Não gostaria de te pôr em perigo.
- Perigo? - O brigante não se deixou enganar. - Quer dizer que prefere manter-me como refém.
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Por momentos, Cato julgou que o tribuno ia protestar contra aquela suposição, mas Otho acabou por admitir a razão.
- Claro. Tanto quanto sei, podias planear conduzir-nos a uma emboscada. Talvez não te apercebas disso, mas também não tem importância. Se a tua rainha, ou quem quer
que ocupe o poder, dá algum valor à tua vida, então teremos algo com que negociar. Se não for assim, e se os brigantes tiverem traído a nossa confiança, serás o
primeiro do teu povo a morrer. Será melhor que ores aos teus deuses para que a garantia de salvo-conduto que a Cartimandua concedeu à minha coluna seja realmente
válida. Entretanto, não sairás do meu lado. Se tentares escapar, partirei do princípio de que preparavas alguma traição, e mandar-te-ei executar. Percebido?
Otho anunciou a ameaça em tom firme, e o nobre nativo limitou-se a anuir. Cato franziu o cenho perante a revelação daquele traço implacável no jovem tribuno.
- Muito bem. - Otho virou-se e dirigiu-se aos outros. - Vamos colocar uma coorte de serviço de cada vez. Metade dos homens na paliçada, metade a descansar na rampa,
pronta a ocupar posições de defesa se for dado o alarme.
Pressentiu as reservas dos oficiais, e resolveu explicar os seus motivos.
- Eu sei que os homens estão exaustos, mas prefiro ser cauteloso a ver-me surpreendido. Estamos muito para cá da fronteira, senhores, no coração do território dos
brigantes. Apesar de serem supostamente nossos aliados, já constatámos a pouca apreciação que existe por Roma no seio da casta dos guerreiros, pelo menos de alguns
deles. Portanto, uma coorte em cada turno. É a minha decisão. Pela manhã saberemos em que pé estamos. De uma forma ou de outra. Senhores, estão dispensados.
O grupo trocou saudações formais, e Otho afastou-se com os seus oficiais, Velocato e os seus guardas pessoais. Os outros esperaram até o comandante se afastar o
suficiente antes de começarem a trocar ideias em voz baixa.
- Isto não me agrada - resmungou o centurião Acer. - Se estamos em paz com os brigantes, porque é que não veio nenhuma delegação oficial ao nosso encontro?
- Há uma série de razões que o podem explicar - respondeu Cato.
Acer virou-se para ele.
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- Tais como?
- Tais como, senhor. - Cato não se dispôs a deixar passar aquela falta de respeito à sua patente. Fez uma pausa para vincar a ideia, e só então prosseguiu. - A rainha
pode querer fazer uma coisa formal. Chegámos a uma hora demasiado tardia para ela ter tempo de organizar uma cerimónia. Se ela quer demonstrar alguma coisa, será
melhor fazê-lo de dia. À frente de todo o seu povo. Não há nada de sinistro nesta ideia.
- Partindo do princípio de que está certo, senhor.
- Se não estiver, depressa o descobriremos - comentou Macro.
Pela alvorada chegaram por fim notícias. Um cavaleiro aproximou-se do campo com uma mensagem da senhora dos brigantes. Cartimandua solicitava a presença do comandante
da coluna romana, podendo ser acompanhado por um pequeno grupo de oficiais e guardas, se sentisse necessidade desse género de proteção. A rainha dava ainda a sua
palavra de que nada de mal aconteceria aos romanos enquanto gozassem da hospitalidade do seu povo. Os convidados deviam visitá-la ao meio-dia, no salão real, ao
cimo da colina fortificada. Depois de receber a confirmação de Otho de que compareceria ao encontro, o enviado voltou a montar no cavalo e deixou o campo romano.
- Senhores, acham que podemos confiar nela? - Otho olhou em redor dos oficiais reunidos na sua tenda. - Ou deveremos insistir em que seja ela a vir visitar-nos?
- Senhor, não me agrada este cenário - começou Horácio. - Se for lá acima e se se tratar de uma armadilha, eles ficarão com reféns na sua posse.
- Mas nós já temos também um - lembrou Otho. - O Velocato.
- E isso dá-nos uma ligeira vantagem, senhor. Se eles capturarem alguns dos nossos, perdemo-la.
Cato aclarou a garganta.
- E é por isso mesmo que não me parece boa ideia manter aqui o Velocato, senhor. Se os brigantes pensarem que estamos a reter um dos seus nobres connosco, contra
a sua vontade, isso poderá levá-los a proceder da mesma forma, se para tanto tiverem oportunidade. Devíamos deixá-lo sair do campo, ou pelo menos ele devia ir consigo
quando for ao encontro da Cartimandua.
Otho franziu o sobrolho.
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- Se eu for a esse encontro.
- Senhor, com todo o respeito, tem de o fazer.
- E porquê, prefeito?
- Por duas razões - explicou Cato. - Em primeiro lugar, os brigantes estão a observar de perto o nosso comportamento. Esta é a primeira coluna militar que penetra
tão profundamente no seu território. Quer apreciemos a situação ou não, são eles que nos estão a avaliar. Se não corresponder à convocatória da rainha, isso não
deixará de causar ofensa. Pior, provocará danos à autoridade dela, à frente de todo o seu povo. E isso só poderá contribuir para reforçar o poder dos que apoiam
Venúcio e o seu amigo Carátaco. - Cato fez uma pausa. - E depois, há outra questão. Se nos mostrarmos demasiado nervosos, com medo de deixar o campo e visitar a
capital tribal, o Venúcio não deixará de nos acusar de cobardia. E seguramente usará esse argumento quando tentar agitar as águas e levar toda a nação a uma guerra
contra Roma.
Otho anuiu, pensativo, enquanto pesava as considerações de Cato.
- Então, ao que parece, não tenho realmente escolha nesta questão.
- Senhor, tem com certeza escolha - protestou Horácio. - Somos romanos. Não aceitamos ordens de bárbaros. Diga-lhe isso. Ordene-lhe que nos venha visitar aqui. Isso
mostrar-lhes-á quem é que manda. E significa também que não temos de correr quaisquer riscos.
Otho lançou um sorriso, pouco à vontade.
- Para diplomata, Horácio, és um fantástico soldado. Mas é esse o teu problema. Estamos aqui para recuperar a custódia sobre Carátaco, a pedido da rainha Cartimandua,
nossa aliada. Não nos ficaria muito bem tratar aliados de uma forma tão vergonhosa, mesmo que, como dizes, eles não passem efetivamente de uns bárbaros. E portanto,
por essa razão, vou deixar-te aqui no comando do campo, quando me for encontrar com Cartimandua. Ficarás sob ordens estritas para te manteres no interior do forte
até eu regressar.
Horácio cerrou os lábios enquanto tentava controlar a ira perante o remoque, antes de responder, num tom controlado:
- Partindo do princípio, senhor, de que regressa.
- Se ao cair da noite eu ainda não tiver voltado, ou não tiver enviado uma mensagem a confirmar que está tudo bem, poderás então assumir que eu, e os meus acompanhantes,
fomos feitos prisioneiros. Nesse caso, não encetarás quaisquer negociações para a nossa libertação.
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Exigirás que ela tenha lugar imediatamente. Se isso não resultar, enviarás uma mensagem ao legado Quintato. A coluna deverá permanecer aqui até receber novas instruções.
Percebido?
- Sim, senhor - ripostou Horácio, com evidente relutância.
- Ótimo. - Otho olhou para os outros oficiais na tenda. - Levarei comigo o prefeito Cato, já que vou precisar de alguém com uma inteligência viva a meu lado. E tu,
centurião Macro, para o caso de haver problemas e precisar de um homem com a espada a postos. O Velocato irá também connosco, bem como um par de guardas, e a minha
esposa.
- A sua esposa? - Macro arregalou os olhos. - Desculpe, senhor. A sua esposa?
- Porque não? Como apontou o prefeito Cato, não podemos dar a esta gente a ideia de que estamos nervosos. Isto criará uma impressão favorável entre os locais. E
duvido que até um bárbaro tivesse a ousadia de atacar uma mulher desarmada.
- Senhor, há uma razão para lhes chamarmos bárbaros - protestou Macro.
- Disparates e dislates! - Otho removeu a objeção com um voltear rápido da mão. - Já tomei a minha decisão. Quero-te a ti, ao prefeito e aos meus guardas, todos
impecáveis. Quero que a primeira impressão dos nativos seja tão favorável quanto possível. Horácio?
- Senhor?
- Terás as tuas ordens por escrito antes de eu deixar o campo. E segui-las-ás à risca.
- Sim, senhor.
- É tudo, senhores. Estão dispensados.
Foda-se, que raio de jogo é o dele? - resmungou Macro, enquanto percorriam o campo na direção das suas tendas. - É uma loucura levar a mulher com ele. O que é que
ele pensa que isto é? Um lanchinho calmo no campo toscano?
Cato abanou a cabeça.
- Ele tem razão. Isto mostra que o tribuno confia na Cartimandua. Se estiver errado, e houver problemas, duvido que a Popeia Sabina esteja em muito maior segurança
aqui no campo. A coluna não conseguirá resistir muito tempo, se os brigantes fizerem apelo a todos os seus guerreiros.
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Macro levantou o olhar e apontou.
- Olha, lá vai um a raspar-se enquanto pode.
Cato seguiu a direção que Macro indicava e avistou a carroça do comerciante a curta distância do portão que dava para Isurium. Um pequeno carro, a que estavam atreladas
duas mulas, estava junto à carroça, e Sétimo afadigava-se a passar uma pesada ânfora de vinho para o leito do carro. Colocou-a em posição e parou para limpar a testa,
antes de reparar nos dois oficiais que se aproximavam. Uma expressão de ansiedade passou-lhe pelo rosto antes de voltar a assumir o seu papel de mercador.
- O que há? - inquiriu Macro. - Vais deixar-nos tão cedo?
- Nem pensar, meu caro centurião! - respondeu Sétimo, usando a verbosidade típica de um comerciante. - Nunca poderia abandonar tão bons clientes. Não, não, espero
apenas conseguir fazer alguns bons negócios com os nativos. Vinho por peles ou, melhor ainda, ouro e prata.
Cato espreitou para o leito da carroça e avistou várias ânforas grandes e outras vinte, ou perto disso, mais pequenas, todas marcadas com o nome do vinho que continham.
- Vais então vender-lhes os vinhos mais baratos que tens?
- Claro. Aproveito a oportunidade para me livrar do material em que nenhum romano com juízo toca. - Os olhos de Sétimo olharam em redor rapidamente, para ter a certeza
que ninguém estava a prestar atenção à conversa. - Vi aquele nativo a entrar no campo. O que se passa?
Macro espetou um dedo na direção do quartel-general.
- A rainha deles convocou o tribuno. Vai lá amanhã ao meio-dia. Comigo, com o Cato, mais alguns homens, e com a mulher.
- A mulher? - Os olhos de Sétimo arregalaram-se de espanto.
Macro ergueu uma mão.
- Não perguntes. Ao que parece, até é uma boa ideia.
- Bom, o que é que estás a pensar fazer realmente? - inquiriu Cato.
- Sabe como são os celtas com o vinho. Se há alguma coisa capaz de lhes soltar as línguas, é esta pomada. - Sétimo afagou uma das ânforas. - Vou tentar saber coisas
do círculo da rainha. Com alguma sorte, talvez alguém deixe escapar alguma informação útil. A pista do nosso traidor arrefeceu.
- Se souberes alguma coisa importante, trata de a partilhar connosco - reclamou Cato.
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- O mesmo vos digo eu.
Macro adotou uma expressão de horror fingido.
- O quê, agora não confias em nós?
- Estou apenas a lembrar-vos de que estamos do mesmo lado, centurião.
- E estamos, a sério? De que lado é esse? Tu trabalhas para Narciso. O traidor trabalha para Palias. Por cima disso tudo, temos Carátaco e Venúcio. E depois há o
Velocato e a sua rainha. - Macro coçou a cabeça, num gesto teatral. - Há tantos lados nesta história, que já começo a perder-lhes a conta.
O agente imperial fitou-o sem entusiasmo.
- Há apenas dois lados. O daqueles que servem os verdadeiros interesses de Roma, e o daqueles que se lhes opõem. Essa é a pura e simples realidade, Macro.
Macro inclinou-se para ele e segredou, num tom ameaçador:
- Assunto em que o teu paizinho tenha metido as patas não tem nenhuma realidade pura e simples, meu amigo.
Sétimo fitou-o com mal disfarçada raiva, mas depois sorriu.
- Macro, tenha cuidado. E o mesmo se aplica a si, prefeito. - Virou-se e dirigiu-se à parte de trás do vagão para apanhar outra ânfora. Macro cerrou os punhos e
o queixo assumiu uma forma familiar, que significava que ele se estava a preparar para andar à pancada. Cato conhecia perfeitamente os sintomas, pelo que o conduziu
para longe da traseira do vagão.
- Venha. Não temos tempo para isto. Temos de ver se o equipamento está em condições de enfrentar a realeza.
Macro deixou-se levar a custo, e lá foi abandonando o ar carrancudo.
- Está certo. Por agora, deixo passar. Mas da próxima vez que aquele cabrão mandar uma boca sobre o cuidado que temos de ter, não me escapa.
- Claro que não - aplacou Cato, o que resultou no amigo a lançar-lhe um olhar tão furibundo que Cato não conseguiu evitar uma gargalhada. - Ora bem, é assim mesmo.
Agora, guarde esse estado de espírito para o inimigo, sim?
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O Sol brilhava vigorosamente no zénite quando os portões do campo
se escancararam e o tribuno Otho conduziu o seu pequeno séquito para o exterior. Ao seu lado seguia a esposa, de estola arregaçada em torno das pernas pálidas e
sentada de lado, numa sela adequada. Em Roma teria sem dúvida insistido em ser transportada numa liteira carregada por escravos, calculou Cato. Porém, ali na fronteira
tais comodidades eram desconhecidas, e Popeia lá ia sentada, muito empertigada, a tentar ostentar toda a graça e dignidade que lhe eram possíveis. Atrás do casal
seguiam Cato, Macro, Velocato e dois dos guardas pessoais do tribuno. Os três oficiais envergavam placas peitorais polidas e capacetes com cristas tingidas de fresco,
que se erguiam bem direitas no quente ar de verão. Cada um deles usava também uma capa limpa, bem afastada dos ombros, para evitar o abraço sufocante da lã escarlate.
O nobre brigante tinha escolhido uma simples túnica verde e calças com um padrão axadrezado.
Cato e Macro exibiam também os arneses onde prendiam as medalhas, e os discos de prata faiscavam sob o sol. Em torno do pescoço de Macro via-se um pesado colar de
ouro, um troféu que ele tinha recolhido do corpo de um irmão de Carátaco, que tinha derrotado em combate singular pouco tempo depois de ele e Cato terem desembarcado
na ilha, fazia já muitos anos. Era um bem precioso, e Macro conservava-o normalmente bem embrulhado num pano, no fundo da sua saca de equipamento, bem escondido
dos olhares indiscretos dos criados do campo ou até de soldados de dedos ligeiros. As condecorações dos dois oficiais contrastavam fortemente com o peito sem adornos
do seu comandante, mas Otho adotara uma postura orgulhosa com que esperava, sem dúvida, impressionar os nativos tanto como as medalhas de ouro e prata que os seus
subordinados exibiam e que reconheciam o seu valor e coragem.
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Horácio e os outros oficiais observavam o grupo do torreão que tinha sido construído nessa manhã para proteger o acesso ao portão; porém, nem Otho nem nenhum dos
outros se dignaram virar-se para trás uma única vez, para contemplar a relativa segurança do campo. Em vez disso, seguiam de olhos postos na povoação à sua frente,
aninhada por baixo da encosta relvada e íngreme da colina onde se situava a fortificada capital dos brigantes. Cato reparou que não eram o único grupo a encaminhar-se
para a corte da rainha nativa. Um outro grupo subia já pela estrada que levava ao portão da fortificação, e dois outros grupos de cavaleiros aproximavam-se vindos
das colinas a norte. Apontou-os a Macro.
- Uma reunião de nobres? - sugeriu o centurião.
Cato concordou.
- O destino de Carátaco vai ser testemunhado por uma vasta audiência, imagino eu. Cartimandua deve querer ter a certeza que todos percebem a mensagem: a sua autoridade
não pode ser questionada. E a nossa presença serve para mostrar aos nobres que ela tem amigos poderosos. Não é assim, Velocato?
O brigante encolheu os ombros.
- Não fará mal nenhum vincar tal facto a todos os idiotas que apoiam o Venúcio.
Quando chegaram à povoação, já se tinha reunido uma pequena multidão para assistir à sua passagem. Mantinham-se em silêncio, envergando as túnicas puídas e as calças
simples dos camponeses. A casta dos guerreiros estaria acomodada lá em cima, na fortificação, como Cato sabia perfeitamente. As pessoas que viviam nas cabanas e
casebres no sopé da colina pouco se preocupavam com as distantes guerras que envolviam outras tribos. As suas vidas centravam-se, isso sim, na luta quotidiana para
alimentar as suas famílias. Alguns contemplavam os romanos e o tradutor nativo com curiosidade, outros com desconfiança, e ainda outros com receio, mas nenhum fez
qualquer tentativa de os interpelar. Macro enfrentou o olhar de uma garota adolescente encostada ao portão da povoação, e lançou-lhe um breve aceno, à laia de saudação.
Ela sorriu timidamente em resposta, até que o pai lhe aplicou uma palmada na cabeça e a empurrou para o meio da turba.
Popeia olhava de um lado para o outro, e murmurou:
- Se é isto que passa pela capital desta gente, estamos seguramente
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entre selvagens, e muito para lá dos limites mais recônditos do mundo civilizado.
O tribuno lançou-lhe um olhar de aviso.
- Minha querida, agradecer-te-ia que guardasses esse género de pensamentos para ti mesma. Alguns dos, hã, selvagens até falam a nossa língua.
Cato apercebeu-se da troca de palavras, e sentiu uma ponta de embaraço enquanto olhava pelo canto do olho para Velocato. O jovem mantinha os lábios firmemente cerrados,
e segurava nas rédeas com os punhos crispados, mas não deu sinal de pretender dar uma resposta, notou Cato, aprovando a contenção do nobre nativo. Era o tipo de
homem que sabia quando devia engolir o orgulho e manter a boca fechada, e isso seria provavelmente um dom precioso nos dias que se avizinhavam.
A estrada atravessava a povoação, serpenteando entre aglomerados de cabanas e currais com cabras e porcos. O dia estava quente e os odores dos animais, do suor e
do esgoto misturavam-se num cheiro atroz, adocicado, que preenchia o ar parado. A estrada deixou por fim a aldeia e começou a ziguezaguear pela encosta, a caminho
do forte, uns cento e vinte metros acima. Um grupo de miúdos de olhos esbugalhados seguiu-os por uma curta distância, até que os seus pais os chamaram ou até perderem
interesse neles, uma vez que a subida se tornava pronunciada.
À medida que se aproximavam das defesas exteriores da fortificação, Cato e Macro lançaram o seu olhar profissional sobre as estruturas.
- É mais pequena que aquela fortificação que o legado Vespasiano arrasou lá para o Sul. Lembras-te? Aquele enorme forte dos sacanas dos durotrígios.
- Lembro-me, sim - replicou Cato. Macro fora ferido antes desse combate e não tinha tomado parte no ataque, e só vira o forte depois de tomado. Para Cato fora muito
diferente. Tinha-se introduzido no forte para salvar alguns reféns, enquanto o resto da Segunda Legião montara um assalto em forma. - Mas este ia ser uma noz mais
difícil de roer.
- Achas?
- As encostas são muito mais íngremes, e um atacante fica completamente exposto a um ataque, ao longo de todo o caminho até ao portão. Ainda bem que os brigantes
são nossos aliados. Detestaria ter de tentar
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tomar este forte. A posição foi muito bem escolhida... é uma fortaleza natural.
Continuaram a subir até fazerem a curva que os levava a ficar paralelos às defesas mais exteriores da fortificação. Por cima deles estendia-se um bastião, de onde
um punhado de sentinelas os observava, à medida que percorriam o caminho. Cinquenta passos adiante, a estrada fazia outra curva apertada e seguia depois numa espécie
de estreita ravina artificial, entre paliçadas, até ao portão, um par de pesadas portadas de madeira maciça, do outro lado de uma ponte levadiça. Por cima do portão
havia um passadiço fortificado que ligava dois montículos de terra fortemente defendidos, de um lado e do outro. Daqueles pontos, mais sentinelas os observavam.
Tinham já subido bastante relativamente ao fundo do vale, e soprava ali uma agradável brisa, que fazia ondular o estandarte amarelo dos brigantes sobre o portão
de Isurium. O pano esvoaçava, mas mostrava claramente a figura central, um enorme javali escuro, que parecia vivo com os movimentos da flâmula.
Através do portão aberto avistava-se um pequeno destacamento de guerreiros com lanças e escudos, e Otho voltou-se para trás na sela para chamar Velocato.
- Vou precisar de ti daqui a nada.
O homem anuiu e fez adiantar a montada, ultrapassando Popeia e colocando-se a par do tribuno. A ponte levadiça estalou por baixo dos cascos quando atravessaram o
fosso e entraram na fortificação. Uma linha de homens armados barrava-lhes a passagem e Otho deteve-se à sua frente, para anunciar, alto e bom som.
- Estamos aqui como hóspedes da rainha Cartimandua. Afastem-se.
Velocato traduziu e o líder dos nativos, um guerreiro de imensa estatura, com cabelo acinzentado preso por uma tira de cabedal que lhe atravessava a testa, encarou
o romano antes de responder.
- Este é Trabo, capitão da guarda da rainha - traduziu Velocato. - Foi enviado para nos escoltar até ao complexo real.
- Nesse caso, agradece-lhe. - Otho baixou ligeiramente a cabeça.
- E pede-lhe que nos mostre o caminho.
A escolta assumiu posição, ladeando os cavaleiros, enquanto Trabo se colocava à frente da coluna. Em claro contraste com a povoação do vale, o interior do forte
exibia muito maior ordem. As cabanas dispunham-se junto ao interior das muralhas, deixando um vasto terreiro em
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frente ao palácio real. A um dos lados, uma vintena de homens treinava, travando duelos simulados sob o olhar severo de um guerreiro mais velho, um homem de corpo
atlético, cujo torso nu estava coberto de tatuagens azuladas. Outros seis homens, com túnicas em tom ocre e armados de lanças, montavam guarda à entrada do palácio,
e formaram à frente da abertura assim que viram o grupo a aproximar-se e a atravessar a parada.
Cato continuava a observar tudo o que o rodeava, absorvendo todos os detalhes, tomando nota mental de tudo o que lhe pudesse vir a ser útil em ocasião posterior,
se necessário. A um dos lados do palácio havia duas filas de estábulos e junto aos cavalos via-se um grande grupo de homens que trocavam saudações em tons animados.
Por trás deles encontrava-se o vagão de Sétimo, e Cato avistou-o de relance, a aplicar a sua lábia de vendedor num dos nobres nativos.
- Devem ser os cavaleiros que vimos antes - comentou Macro.
- Sim. - Cato observou-os ainda mais alguns momentos, e depois deu atenção ao outro lado do complexo, onde existia uma série de pequenas cabanas, dispostas em redor
de covas para fogueiras sobre as quais havia estruturas montadas, para assar grandes animais. Mulheres e crianças atarefavam-se a abater e limpar borregos e porcos
e a preparar as fogueiras com molhos de pequenos paus. Trabo levou-os até à entrada do palácio, virou-se e fez um gesto convidando-os a desmontar. Dois dos seus
homens aproximaram-se para segurar nos cavalos enquanto os romanos saltavam das selas e aterravam, fazendo tilintar as armaduras metálicas. Macro deitou a cabeça
para trás, para contemplar a frontaria do palácio. Por cima das portadas ficava uma enorme viga de carvalho maciço, gravado com cenas de cavalos e com os ondulantes
desenhos de que os celtas eram grandes apreciadores.
- Belo trabalho de madeira.
Cato olhou para cima.
- Pelo menos é uma mudança, comparada com as coleções de crânios que outras tribos exibem.
- É dar-lhes tempo.
Otho tinha pegado no braço da esposa, e virou-se para os seus homens.
- Vamos manter-nos calmos e amáveis. Estamos aqui como hóspedes.
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Macro ajustou rapidamente o capacete, de forma a tirar-lhe qualquer folga.
- Senhor, esperemos que eles se lembrem disso também.
O tribuno suspirou profundamente, sorriu abertamente à esposa e virou-se para a entrada do edifício, avançando com toda a dignidade e decisão que conseguiu reunir.
Os outros homens seguiram-no, Macro, Cato e Velocato juntos, e os dois guardas na retaguarda.
Depois do brilho do Sol no exterior, foram precisos alguns momentos para que os olhos dos membros do séquito se ajustassem à penumbra do interior; só então Cato
percebeu que a luz no interior provinha de aberturas no telhado, que permitiam a entrada de raios de luz melosa, onde rebrilhavam insetos em voo e partículas de
pó a pairar. O pavimento era feito de lisas lajes de ardósia, e as solas cardadas dos romanos produziam um barulho quase estrondoso no interior silencioso, mas não
desocupado. Dúzias de elementos da tribo, homens e mulheres, estavam alinhados junto às paredes do salão, todos eles calados e quietos. Uma via larga abria-se até
ao fundo, dominado por um vasto trono de madeira, colocado sobre uma plataforma de pedra. Tinha sido posicionado mesmo por baixo de uma grande abertura no telhado
de colmo, e a luz que se precipitava por ela banhava o cimo do grande cadeirão numa luz quase dourada. E ali sentada, imóvel e silenciosa, encontrava-se uma mulher
alta e esguia, com uma farta cabeleira alourada que parecia rebrilhar e lhe rodeava as feições bem desenhadas. Cartimandua parecia ter uns quarenta e tal anos de
idade, pela estimativa de Cato, feita a partir das suas impressões iniciais.
Ninguém falou ou sequer murmurou enquanto os romanos e o seu tradutor percorriam o comprimento do salão e se aproximavam da rainha dos brigantes, a mais poderosa
tribo da Britânia. À sua direita, Cato notou a presença de um guerreiro de estatura impressionante, com cabelo entrançado a cair-lhe sobre a túnica, que mal cobria
os musculados ombros. Mantinha-se de pé, de braços cruzados, e observava os recém-chegados com ar de desafio. Cato reconheceu-o: era Venúcio.
O tribuno Otho adotou um passo mais vagaroso à medida que se aproximava e deteve-se a curta distância do degrau que levava ao trono. Agora que Cartimandua estava
ali a menos de três metros dele, Cato verificou que a rainha era realmente bela, apesar de já ter deixado
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a juventude havia muitos anos. Os olhos eram castanhos, escuros e penetrantes, as maçãs do rosto altivas, e davam ao queixo um aspeto estreito e profundo. Ela escrutinou
cada um dos romanos, começando e terminando em Popeia.
O tribuno dobrou o pescoço.
- Sou Marco Sílvio Otho, tribuno-chefe da Nona Legião. Esta é a minha esposa, Popeia Sabina.
Popeia imitou o marido, e dobrou o pescoço num gesto impregnado de rigidez.
- E estes oficiais são o prefeito Quinto Licínio Cato, comandante da Segunda Coorte de Cavalaria Trácia, e o centurião Lúcio Cornélio Macro, da Décima Quarta Legião.
Cato e Macro saudaram a rainha com toda a formalidade.
- Apresentamo-nos aqui seguindo ordens do general Ostório, que envia calorosos votos de amizade à rainha Cartimandua e ao seu povo, com o fim de deter um inimigo
de Roma. E, nessa qualidade, um inimigo de todos nós.
Cartimandua lançou um sorriso pouco convincente, antes de se virar para Velocato e falar pela primeira vez. Fê-lo num tom de comando, mais profundo e ressonante
do que era típico de uma mulher. Velocato apressou-se a avançar e colocar um joelho no solo à frente da soberana, enquanto entoava uma saudação formal. Os olhos
de Cartimandua focaram-se no jovem nobre, e Cato notou que os cantos da boca dela se levantaram ligeiramente, indicando o prazer que sentia ao revê-lo. Ela debruçou-se
e tocou-lhe o rosto com uma mão esguia, antes de lhe dar umas palmadinhas amigáveis.
Cato procurou com os olhos a reação de Venúcio; este não escondia a hostilidade perante o quadro composto por Cartimandua e pelo seu jovem favorito.
- Ali não há grande afeição - sussurrou Macro. - E ela não se esforça propriamente por esconder a preferência.
Cartimandua baixou a mão e recostou-se, fixando o olhar no tribuno. Durante alguns momentos manteve-se imóvel, e o resto das pessoas presentes no salão imitaram-na,
de tal forma que os recém-chegados sentiram o peso de centenas de olhos sobre eles. Dirigiu-se então a Velocato, e ele assentiu, antes de voltar a pôr-se de pé e
se ir colocar de novo junto aos romanos. Só então Cartimandua falou de forma a que todos a
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escutassem, e as suas palavras foram traduzidas para benefício do tribuno e dos seus companheiros.
- Ofereço aos nossos convidados e aliados romanos as boas-vindas ao grande salão real dos brigantes. Por nossa ordem real, ser-lhes-á concedida toda a cortesia.
Jurámos amizade a Roma e em retorno foi-nos prometido apoio aos nossos interesses e independência, e foram-nos dados ouro e prata, como garantia da intenção romana
de honrar os tratados que estabelecemos. Todos os presentes sabem disto, e estão comprometidos pela jura sagrada que proferi ao declarar amizade a Roma. E eis que
somos defrontados com o primeiro grande teste ao tratado que nos liga.
Cato viu que a mão esquerda da rainha fez um gesto quase impercetível e um vulto que tinha estado de pé numa ponta da plataforma dirigiu-se furtivamente a uma pequena
porta lateral do salão, enquanto a rainha prosseguia.
- Veio recentemente ter connosco um fugitivo que foi em tempos um grande rei no Sul da ilha. Um grande guerreiro, que tem sido um incansável inimigo de Roma desde
que as suas tropas desembarcaram na Britânia. No decorrer da sua luta foi derrotado uma e outra vez pelas legiões. Depois de perdido o seu reino, escolheu liderar
outras tribos contra Roma, e todas elas foram derrotadas e destruídas, e as suas terras enchem-se agora de lamentos e de gritos de desespero. Um destino a que os
brigantes foram poupados. Um destino que nunca imporemos ao nosso povo. - O olhar dela percorreu a nobreza ali reunida, desafiando qualquer um deles a contrariar
a sua vontade. - Este rei, depois de mais uma vez derrotado e expulso das montanhas onde habitam siluros e ordovicos, veio até nós solicitar abrigo e sustento, pedir
a nossa hospitalidade, a que os nossos costumes nos obrigam. Mas existem limites a essas obrigações, quando colocam em perigo os que as oferecem, e por isso temos
de chegar a uma decisão, a uma escolha entre o respeito formal pelos nossos costumes e a nossa própria sobrevivência. E é por essa razão que todos os que aqui estão
foram convocados para testemunhar o destino deste rei... Carátaco.
Ainda as suas palavras ecoavam no salão e já Cato via o homem a emergir da porta lateral, à frente de um pequeno grupo. Quatro guerreiros, todos eles homens de forte
musculatura, que vestiam túnicas de tom ocre e levavam espadas em cintos passados sobre os ombros, escoltavam
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um homem ainda maior do que eles. Carátaco envergava vestes finas, uma túnica azul e umas calças brancas. O cabelo tinha sido entrançado e caía-lhe pelas costas
largas. No pescoço brilhava um espesso colar dourado. Avançou até à plataforma com a cabeça ligeiramente erguida, de forma que parecia muito maior do que os que
o rodeavam. A aparência e comportamento eram tudo menos os de um prisioneiro dos brigantes; parecia de facto um rei que entrava no salão rodeado pelos seus guardas
de corpo.
Apesar de o homem ser um inimigo jurado de Roma, Cato não conseguia deixar de admirar a postura orgulhosa de Carátaco. Pressentiu que essa era a reação predominante
no salão, e sentiu no estômago um nó de antecipação e temor. O comandante inimigo era um homem que, pela sua presença, inspirava respeito instantâneo. Não era de
admirar que tantos tivessem decidido segui-lo até à derrota e à morte, ao longo dos muitos anos de conflito com Roma.
Aquele que fora em tempos o rei dos catuvelaunos pareceu preparar-se para se dirigir à assembleia, mas uma ríspida palavra de Cartimandua cortou-lhe a palavra; a
rainha fitou-o com evidente hostilidade ameaçadora. Carátaco baixou a cabeça com um ligeiro sorriso e a rainha respirou fundo e preparou-se para de novo se dirigir
aos nobres ali reunidos.
- O tratado que estabelecemos com Roma obriga-nos a entregar este homem à sua custódia - traduziu Velocato. - E decidimos honrar essa obrigação.
Na multidão pareceu nascer uma espécie de suspiro coletivo, e aqui e ali ouviram-se murmúrios de descontentamento. A rainha pôs-se de pé e voltou a falar, num tom
frio e determinado.
- Tomámos a nossa decisão, e ela não será alterada! - Olhou em redor, desafiadora, antes de prosseguir, num tom mais conciliatório: - Contudo, não há razão para
renegar a nossa reputação de hospitalidade. Esta noite haverá um festim em honra de Carátaco, antes de ele ser entregue aos romanos.
- Festim? - Macro chupou o ar por entre os dentes. - Para aquele cabrão?
- Chiu! - sussurrou-lhe Cato.
O tribuno Otho não conseguiu esconder quer a surpresa quer a súbita ira que sentiu ao escutar o anúncio. Virou-se rapidamente para Velocato.
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- Diz à tua rainha que isso não é aceitável. Este homem é um inimigo de Roma, um fugitivo da nossa justiça. Devia estar acorrentado.
- Não! - Ela espetou um dedo na direção do tribuno para o silenciar, e falou em latim. - Também vocês são nossos hóspedes, e não fica bem a um hóspede ditar os termos
ao seu anfitrião. Portanto, tribuno, guardarás essas ideias para ti mesmo, se é que tens a mais pequena conceção do que são as boas maneiras. Entendido?
Otho ficou completamente abismado perante aquele acesso de génio, ainda por cima disparado na sua língua, e o queixo descaiu-lhe momentaneamente, antes de aceder
com um gesto. Mas a sua esposa não se deixou ficar, pelo que deu meio passo à frente e encarou a rainha dos brigantes.
- Oiça lá, ninguém fala assim a um romano. Ninguém.
- Mas eu acabei de o fazer - respondeu-lhe Cartimandua, calmamente. - E se quiser ter um lugar à mesa do festim, senhora Popeia, faria melhor em falar apenas quando
lhe dirigirem a palavra.
As cuidadas sobrancelhas de Popeia arquearam-se com o ultraje, e foi preciso o marido pegar-lhe na mão.
- Chega, minha querida. Não é o lugar nem o momento para isso.
Carátaco tinha estado a seguir a altercação com evidente divertimento, e olhou então para Cato.
- Ah, o prefeito Cato. O meu captor, embora por breves horas apenas. Espero bem que a minha fuga não te tenha causado demasiados problemas pessoais.
Cato dobrou o pescoço ao dirigir-se ao rei inimigo.
- Senhor, não vou negar que tal incidente provocou grande desprazer ao general Ostório. Contudo, dir-se-ia que a única coisa que teve uma breve duração foi a sua
fuga.
- Achas mesmo? A sério?
- A rainha deu a sua palavra. Amanhã estará de novo nas nossas mãos. Onde se mantêm os seus irmãos, a sua esposa e os seus filhos; amanhã poderá voltar a reunir-se
com todos eles. A guerra que travou contra Roma está terminada. A paz triunfará. Portanto, senhor, sugiro que aprecie o festim desta noite. Será o último que poderá
apreciar em liberdade.
A expressão facial de Carátaco toldou-se por momentos, mas ele acabou por sorrir friamente e falar num sussurro ameaçador.
- Talvez fizesses melhor tu em apreciar o festim, prefeito Cato. Quem sabe? Poderá muito bem ser a tua última refeição.
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Outros grupos de nobres foram chegando à colina fortificada com
os seus séquitos, ao longo de toda a tarde, e depressa se esgotou o espaço disponível para instalar as montadas, pelo que os retardatários se viram forçados a deixá-las
na povoação, abaixo das fortificações. Mesas e bancos foram trazidos para o salão e dispostos em três filas que corriam todo o comprimento do edifício. No exterior,
os servos da rainha prepararam grandes fogueiras para cozinhar e acenderam-nas ainda durante o dia, de forma a dar-lhes tempo para consumir toda a lenha e ficarem
as brasas adequadas para assar a carne.
Depois de ter anunciado o festim, a rainha Cartimandua retirou-se para uma cabana privada nas traseiras do complexo real, para conversar com os seus hóspedes romanos.
O tribuno ordenou aos guardas que ficassem junto dos cavalos. Enquanto as montadas eram levadas, Cato viu Carátaco a ser conduzido para uma outra cabana, mais pequena,
que lhe fora atribuída, e onde era mantido sob vigilância. As acomodações privadas de Cartimandua tinham sido preparadas para o encontro. Um pequeno círculo de bancos
fora disposto sobre as lajes do pavimento, e um assento maior e acolchoado dominava a cena, do outro lado do círculo. Depois de Cartimandua se sentar, os outros
imitaram-na e, após um breve período em que todos procuraram acomodar-se o melhor possível, a rainha dirigiu-lhes um sorriso.
- Peço-vos desculpa por ter falado na minha língua no salão, mas há entre o meu povo quem considere o facto de eu compreender e falar o latim um claro sinal de traição,
em vez de uma capacidade útil. Foi por isso que pedi ao Velocato que traduzisse a maior parte das minhas palavras.
- E que opinião tem o seu povo sobre Velocato, majestade? - inquiriu Otho.
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Ela sorriu ao portador de escudo do marido.
- É jovem e pouco importante, pelo que facilmente o esquecem. A seu tempo assumirá um papel relevante na nossa nação, mas por agora o facto de saber a vossa língua
é apenas uma pequena nódoa que quase todos conseguem esquecer. - Cartimandua voltou-se para o tribuno e a breve expressão de prazer que lhe atravessara o rosto foi
substituída pela implacável face de uma rainha.
- Respeitei o meu acordo com Roma. Carátaco será de novo vosso prisioneiro. Apreciaria que o levassem das minhas terras o mais depressa possível, assim que terminar
o festim.
- Nesse caso, porquê oferecer-lhe o festim? - indagou Macro, de forma brusca, e teve noção imediata das respirações suspensas em seu redor, pelo que engoliu em seco
e prosseguiu num tom mais respeitoso:
- Perdão, majestade. O que eu queria perguntar era porque não entregá-lo a nós imediatamente e deixar-nos partir?
- Quem me dera que fosse assim tão simples, romano. Para dizer toda a verdade, a sua chegada inesperada a Isurium tem sido para mim uma fonte de consideráveis problemas.
Ao que sei, ele logrou escapar do campo do vosso exército na noite a seguir à batalha em que o derrotaram e fizeram prisioneiro.
- É verdade - admitiu Otho. Indicou Cato. - Este era o oficial encarregado de guardar os prisioneiros.
- És então tu o idiota responsável por toda esta confusão?
Cato reagiu à acusação com ar empertigado, e sentiu Macro furioso ao seu lado. Respirou fundo antes de responder.
- Fui eu quem o capturou em pleno campo de batalha, pelo que o general me atribuiu a tarefa de o guardar, como recompensa pelo feito.
- E ainda assim, ele escapou. Um tremendo desleixo da tua parte. Seria de esperar que um opositor tão perigoso fosse guardado com maior diligência - ripostou Cartimandua,
usando uma ironia pesada.
- Creio que compreenderão o desapontamento que senti relativamente ao vosso general quando o Carátaco chegou à minha corte e pediu proteção, enquanto ao mesmo tempo
aproveitava a ocasião para apelar ao meu povo para se juntar a ele numa nova guerra contra Roma.
Otho remexeu-se no banco.
- Ele foi ajudado na fuga. Alguém nos traiu.
- Essa preocupação é vossa, não minha. Mas acabou por se tornar
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minha, de facto. Sobretudo quando o Carátaco convenceu o meu consorte a apoiar o apelo aos brigantes para tomarem o caminho da guerra. Felizmente, o meu povo tem
um caráter mercenário muito bem desenvolvido. Não combaterão, a não ser que lhes seja prometida uma boa recompensa em ouro e prata. A sua lealdade para comigo pode
ser obtida da mesma forma. Em resultado desta situação, já praticamente despendi o tesouro que me foi entregue pelo vosso Imperador para manter a paz com Roma. E
essa é a única razão por que ainda não fui deposta pelo Venúcio e a sua fação. Se Roma quiser manter as coisas desta forma, vou precisar de mais dinheiro.
Cato percebeu de imediato o ponto.
-Majestade, está a pedir-nos uma recompensa por nos entregar Carátaco?
O olhar dela virou-se para Cato, e os olhos semicerraram-se ligeiramente, enquanto ela o reavaliava.
- Evidentemente. Uma aliança cria obrigações de ambos os lados, prefeito.
- Tanto quanto sei, Roma paga-lhe para se manter neutra. Entregar-nos Carátaco parece respeitar os termos desse acordo.
- Vocês compraram a nossa neutralidade. Não há qualquer menção a termos de desempenhar a tarefa de carcereiros no vosso lugar. Isso vai custar-vos alguma coisa extra.
Sim, quero ser paga pela entrega de Carátaco.
- Espere aí - interrompeu Popeia. - Um tratado é um tratado. Quem é que você se acha para o alterar? Uma mulher, uma bárbara, convencida de que tem poder, nada mais.
Como se atreve?
Cartimandua fitou-a, antes de se dirigir ao marido.
- Entre o nosso povo, as mulheres são respeitadas. É por isso que sou rainha. Compreendo que a ideia de uma mulher a ocupar o poder vos provoca um tremendo desconforto,
romanos. Até as vossas mulheres assim pensam. Mas não estamos em Roma. Estamos aqui, em Isurium. Agradecer-vos-ia se respeitassem os nossos costumes.
Popeia abriu a boca para renovar os protestos, mas Otho mandou-a calar, pelo que ela ficou de queixo firme a olhar para o chão, irritada. O marido dirigiu-se à rainha
num tom submisso.
- Majestade, farei chegar o seu pedido de pagamento ao general Ostório. É o melhor que posso fazer.
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- Não é suficiente - contrariou Cartimandua. - Quero cem mil denários por Carátaco, e quero o teu selo num documento a especificar estes termos, antes de deixares
Isurium com o teu prisioneiro.
- Cem mil denários? - O tribuno Otho abanou a cabeça, estupefacto. - Pelos deuses, posso desde já garantir-lhe que o general nunca concordará com essa exigência.
- Porque não? É o preço da paz na vossa nova província, e até sai barata, se pensarmos na possibilidade de um renovado ataque de Carátaco, com milhares dos meus
guerreiros a apoiarem-no.
Cato percebeu que o seu superior tinha ficado momentaneamente sem palavras, pelo que limpou a garganta e interveio.
- Majestade, a presença de Carátaco na sua corte é um problema tanto para nós como para si. Como afirmou. Nesse caso, pode ser considerado que o facto de nós o levarmos
como prisioneiro será um favor que lhe faremos. Se o deixássemos aqui, quanto tempo acha que o seu reinado duraria?
Cartimandua deitou-lhe um olhar frio e duro como o aço, antes de soltar uma leve risada e se virar para Otho.
- Oh, o teu prefeito é um espertalhão. E tem razão, até certo ponto. Quero o Carátaco fora daqui, e o mais depressa possível. Desde que chegou, não tem feito outra
coisa que não minar a minha posição. E custou-me bastante comprar a lealdade do meu povo até este momento. Portanto, considero que devo pelo menos ser reembolsada
por tudo o que já paguei para preservar a paz com Roma.
Macro gargalhou.
- Sem mencionar a preservação do seu lugar no trono, majestade.
Ela deitou-lhe um olhar venenoso.
- Deste aqui, tribuno, não gosto. Não mostra senso suficiente para frasear as suas observações de forma correta. Peço-te portanto que lhe ordenes que não me volte
a dirigir a palavra.
As faces de Macro enrubesceram com a fúria, e ele inclinou-se para a frente, com a óbvia intenção de protestar, mas Cato ergueu uma mão e lançou-lhe um olhar, a
implorar silêncio. Macro acabou por soltar um assobio frustrado e deixar-se ficar quieto no banco.
- Muito melhor assim - prosseguiu Cartimandua. - Ora bem, estávamos então a discutir o preço de Carátaco. Eu sou muito razoável. Digamos então noventa mil.
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Otho pensou por momentos, e abanou a cabeça.
- Sessenta.
Cato estremeceu, e não conseguiu deixar de pensar que seria excelente ter a mãe de Macro, Pórcia, a regatear pelo lado romano. A velha era esperta e tinha um dom
para aquilo, ao contrário do jovem aristocrata que os representava naquela negociação melindrosa.
- Oitenta.
Otho mordeu o lábio.
- Setenta e cinco.
- Muito bem, setenta e cinco - assentiu Cartimandua. - Espero recebê-los num prazo de dois meses, e vais deixar isso escrito, com o teu selo, antes de saíres de
Isurium. Concordas?
Otho anuiu, encurralado como estava.
- Nesse caso, as negociações estão terminadas e podemos apreciar o festim desta noite.
- Tem mesmo que ser em honra de Carátaco? - inquiriu Cato.
- Tem, sim. Para salvar as aparências. Ele é um rei, ou pelo menos sê-lo-á até amanhã. Muitos dos meus nobres e dos seus guerreiros têm-no em grande estima. Se eu
vo-lo entregasse agrilhoado, isso deixá-los-ia furiosos. Ao invés, ele tem sido tratado como um hóspede de grande vulto. O festim permite-nos manter essa ideia.
A verdade é que ele se tornou um prisioneiro no momento em que se atreveu a mostrar a cara na minha corte.
- E tem a certeza que os que apoiam a sua causa não representam uma verdadeira ameaça, majestade?
- Nenhuma. Eles podem pensar o que quiserem de Carátaco, mas vocês podem ter a certeza que têm maior apreço pelo dinheiro que receberam do tesouro real. O festim
é apenas uma questão formal. Vou cumprir o papel de anfitriã generosa, e garantir o respeito do meu povo. Poderão fazer todos os brindes que quiserem, ao homem e
à glória dos seus feitos, sem enfrentarem a perspetiva bem menos apetecível de terem de derramar o próprio sangue por ele. E assim todos mantêm a sua honra intacta.
- Fez uma pausa e deixou cair as mãos no regaço. - Evidentemente que a questão do preço que me será pago pelo prisioneiro se manterá um segredo entre mim e Roma.
O que, aliás, será vantajoso para todos.
- Compreendo, majestade.
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- Nesse caso, estamos entendidos?
- Sim - reafirmou Otho.
- Sugiro então que aproveitem a hospitalidade de Isurium, antes do festim.
- Obrigado. Antes, tenho de enviar uma mensagem a quem deixei no comando do campo, a anunciar que regressaremos mais tarde do que estava previsto.
- Muito bem. - Cartimandua inclinou a cabeça na direção da entrada da cabana. - Podem deixar-me.
Todos se levantaram dos bancos e se dirigiram para a saída. A rainha disse mais algumas palavras na sua língua, com uma entoação quase terna, e Velocato deteve-se
e voltou-se para ela. Trocaram mais algumas palavras, antes de ele se virar de novo para os romanos.
- Tenho de ficar. A rainha tem necessidade dos meus serviços.
Macro obrigou-se a manter uma expressão séria, enquanto Cato retorquia:
- Claro. Ver-te-emos no festim, presumo.
- Sim. Até lá.
Cato foi o último a deixar a cabana, antes de Velocato cerrar a cortina de couro que a fechava. Enquanto seguiam o tribuno e a esposa a caminho do salão, Macro soltou
uma risada e preparava-se para falar, mas Cato antecipou-se.
- Macro, pense bem no que vai dizer.
- Ia simplesmente lembrar o peso do dever. O miúdo tem sorte!
- Uma sorte que pode mudar - retorquiu Cato, antes de apontar discretamente para o terreiro em frente do salão. Venúcio lá estava, com um grupo de nobres, mas não
prestava atenção ao grupo de romanos. Estava ali de pé, de braços cruzados, a contemplar com evidente fúria a cabana onde estava a sua esposa real.
Cato prosseguiu em surdina:
- Não creio que o interesse amoroso da rainha seja propriamente um segredo, e o consorte não me parece do género de se fingir desapercebido.
- Aproveitar a hospitalidade deste miserável fim do mundo, pois sim
- protestou Popeia, enquanto puxava as dobras da estola para não a deixar arrastar pelo chão. O dia estava quente e o solo seco, e Cato entendeu o gesto como o que
realmente significava em termos de irritação e desdém.
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- Oh, estou seguro de que deve haver por aqui alguma coisa que valha a pena ver - replicou o marido, com uma animação forçada. - Talvez um mercado nativo. Um lugar
onde podes encontrar algumas pequenas curiosidades nativas para as tuas amigas em Roma, meu amor.
Ela lançou-lhe um olhar pouco amistoso.
- A única coisa que posso encontrar por aqui é mesmo alguma mísera doença dos nativos. Estou certa de que as minhas amigas adorariam que as contagiasse, para terem
uma recordação bem palpável e duradoura da minha visita a este adorável e rústico pedaço de terra.
Foram interrompidos pela aparição de uma capa romana a esvoaçar; um soldado aproximava-se a correr, vindo de junto dos guardas e dos cavalos.
- O que será agora? - perguntou-se Macro, em voz baixa.
O tribuno Otho deteve-se, e os outros pararam ao seu lado, enquanto o soldado se aproximava, com uma tábua encerada fechada na mão. Saudou o tribuno e entregou-lhe
a tábua.
- Com os cumprimentos do prefeito Horácio, senhor. Foi-me ordenado que o procurasse e lhe entregasse isto imediatamente, mas aqueles sacanas não me deixavam passar.
- Acenou na direção dos homens de túnicas amareladas.
- Caralho, soldado, cuidado com a língua! - soltou Macro. - Alguns destes cabrões falam latim. Portanto, boas maneiras.
Otho franziu o cenho.
- Muito obrigado, centurião.
O tribuno pegou na tábua e afastou-se ligeiramente, enquanto quebrava o selo e abria a mensagem. Os outros observaram-no a lê-la em silêncio, tentando perceber,
pela sua reação, o género de notícias que continha. Otho sugou o ar longamente, enquanto fechava a tábua. Virou-se para o soldado e deu-lhe uma curta ordem.
- Espera ao pé dos cavalos. Vou dar-te uma mensagem para levares para baixo.
- Sim, senhor! - O homem saudou-o de novo, virou-se e afastou-se.
Quando ele já estava suficientemente longe para não poder ouvir, Otho regressou para junto dos outros e olhou em redor com alguma desconfiança, antes de anunciar
em voz baixa:
- O Ostório morreu.
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Os três fitaram-no, em silêncio. A mente de Cato disparava em todas as direções. Assassínio? Morto em combate? Um acidente?
- Morto? Como?
Popeia suspirou.
- Pobre homem.
- O Horácio não menciona mais detalhes, apenas que o general morreu na sua tenda.
- Quem é que assumiu o comando? - inquiriu Cato.
Otho abanou a cabeça.
- O Horácio também não diz.
- O legado Quintato - sugeriu Macro. - Só pode ter sido ele.
Cato assentiu. Fazia sentido. A seguir ao governador, Quintato era o
mais antigo oficial do exército estacionado em Viroconium, e já assumira interinamente o controlo da situação. Mas também existiam os legados das outras três legiões
na província, e algum deles podia aproveitar a ocasião para fazer valer o seu direito ao comando, mesmo que temporário. Haveria uma breve oportunidade para colher
algum prestígio por dirigir a nova província, enquanto Roma não nomeasse um novo governador. Sobretudo se o substituto de Ostório conseguisse chamar a si o crédito
pelo envio de Carátaco acorrentado para Roma. Se houvesse discussão entre os legados, Cato temia que os inimigos conseguissem tomar partido da situação, pelo menos
até que a luta pelo poder fosse resolvida. Outro pensamento lhe surgiu, para provocar ainda mais ansiedade.
- Se a morte do general é do conhecimento geral em Viroconium, é só uma questão de tempo até que as notícias cheguem a Isirium.
Otho fitou-o.
- E então?
- A notícia poderá fortalecer a posição de Venúcio. Se ele conseguir persuadir outros de que esta morte deixa as nossas forças sem direção firme, pode levar outros
nobres brigantes a alinharem com ele, e provocar-nos mais problemas. Ouviu a rainha, senhor. O poder que ainda detém está a escapar-se-lhe por entre os dedos.
Otho assentiu, pensativo.
- Nesse caso, será melhor que tratemos de assegurar que ela recebe o dinheiro de que necessita o mais depressa possível.
- Sim, senhor. Mas é preciso que exista um comandante que possa autorizar o pagamento.
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- Porra, tens toda a razão. - Fez uma careta, mas depressa os seus olhos se voltaram a iluminar. - Temos o dinheiro dos soldos. Podíamos usá-lo.
Macro não aguentou.
- Não! Esse dinheiro é dos homens. É o seu salário, e as suas poupanças. Se lhe tocar, senhor, vai deixar os rapazes das fileiras mesmo muito pouco satisfeitos.
Cato sabia que o amigo tinha razão naquele ponto. A arca que continha o dinheiro dos pagamentos em cada unidade era quase tão sagrada como os estandartes sob os
quais os soldados marchavam, pela proteção dos quais muitas vezes ofereciam a própria vida. As pesadas e robustas arcas com reforços de metal continham tudo o que
os soldados de uma unidade possuíam naquele mundo, todos os sonhos e ambições que alimentavam para quando acabassem de cumprir o período de alistamento. Se o tribuno
esvaziasse as arcas e entregasse o conteúdo à rainha dos brigantes, os homens ficariam tão escandalizados como Macro. Cato também teria muito a perder, mas ele percebia
que o dinheiro poderia comprar-lhes a paz na província.
- O que importa isso? - incitou Popeia. - São os teus homens. Os teus soldados. Farão o que lhes for ordenado, e apreciarão tamanho privilégio, como devem.
Macro respirou fundo e tentou controlar a fúria que o possuía ao dirigir-se à esposa do seu comandante.
- Peço desculpa, senhora, mas não faz ideia do que está a dizer. Isto é um assunto para homens. E acredite no que lhe digo, se usar o dinheiro dos homens, não me
posso responsabilizar pelo que possa vir a suceder.
- Ora essa, centurião. Claro que te responsabilizas. És um oficial. Fizeste um juramento de que obedecerias ao Imperador e aos oficiais que te fossem superiores
na hierarquia. Se o meu marido te der uma ordem, tens de lhe obedecer e tratar de ver se a ordem é também cumprida pelos outros.
Macro fitou-a com raiva, a arder de vontade de lhe dizer para fechar a matraca e se meter nos seus assuntos. Mas antes que pudesse dizer alguma coisa, Otho pigarreou
e começou, em tom calmo:
- Tens toda a razão, meu amor, mas eu mesmo tratarei desta situação. Não tu.
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- Pffft! - Popeia fungou e fez um gesto de desinteresse com a mão.
- Está bem, trata lá disso então.
Otho lançou-lhe um sorriso condescendente antes de voltar a virar-se para os outros dois.
- Acham portanto que não é aconselhável utilizar o dinheiro que está nas arcas das unidades?
Macro rangeu os dentes.
- Isso é pô-lo em termos simples, senhor.
Otho voltou o olhar para Cato.
- E tu, prefeito? O que pensas?
- Estamos muito longe do resto do exército, senhor. A situação é delicada. A última coisa com que queremos ter de nos preocupar é com a disposição dos homens. Além
disso, mesmo que fizéssemos o que sugeriu, podemos não ter o suficiente para cobrir as necessidades da Cartimandua. E, nesse caso, acabaríamos a enfrentar sérios
problemas em ambas as frentes. Portanto, senhor, aconselho-o fortemente a não seguir esse caminho.
- Mas então, fazer o quê? Se eu lhe dou a minha palavra de que lhe enviaremos o dinheiro assim que regressarmos a Viroconium e depois chegamos lá e não há ninguém
com a autoridade suficiente para permitir o pagamento, a rainha Cartimandua é capaz de ficar um bocadito chateada.
Completamente lixada, isso sim - comentou Macro, em tom lúgubre. -E perderá completamente a face perante o resto da tribo.
- Teremos de enfrentar essa questão quando e se ela surgir - ripostou Cato. - O que é absolutamente vital neste momento é termos de novo o Carátaco na nossa custódia,
e conseguirmos levá-lo daqui o mais depressa possível. Senhor, temos de guardar esta notícia sobre a morte do Ostório só para nós. Não podemos saber como é que ela
afetaria a situação. Entretanto, vamos ao festim, participamos na homenagem da rainha a Carátaco. Pela madrugada prendemo-lo de novo, levantamos o campo e marchamos
de volta a Viriconium o mais depressa possível. Pela altura em que os brigantes ficarem a saber da morte do Ostório já será demasiado tarde para alterar a situação.
Claro que ainda restará apresentar e justificar a necessidade de pagamento à rainha, a quem quer que tenha assumido o comando das coisas na província.
- Sem dúvida. - Otho anuiu, embora a contragosto. - E se esse
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pagamento não acontecer, depois de eu ter empenhado a minha palavra, ver-me-ei desonrado.
- Senhor, se for esse o preço a pagar para remover do cenário o mais perigoso dos nossos inimigos, valerá bem a pena.
- É fácil para ti dizeres isso. Quem está no comando da coluna sou
eu.
- É o fardo da patente, senhor. - Macro fez um trejeito com os lábios. - Por vezes, abatemos o lobo. Outras vezes, é o lobo que nos apanha.
Otho franziu o cenho.
- Foda-se, o que quer isso dizer?
- É apenas uma forma de dizer, senhor. A decisão é sua.
- Obrigado por me lembrares esse facto, centurião Macro. És mesmo uma grande ajuda. - Otho cerrou os olhos por momentos, respirou bem fundo e suspirou com amargura,
antes de voltar a abrir os olhos.
- Muito bem. Apanhamos o Carátaco na primeira oportunidade, e vamo-nos daqui. Entretanto, ninguém menciona o nome do Ostório.
- Senhor, será melhor notificar o prefeito Horácio para proceder da mesma forma, no campo - fez notar Cato.
- Sim... Evidentemente. E de imediato. - Abriu a tábua, e hesitou. Levantou o olhar. - Alguém tem um estilete?
Macro fitou-o sem perceber, e Cato levou a mão à sacola, até se lembrar de que a tinha deixado no campo.
- Fantástico - resmungou Otho, antes de pegar na adaga e compor, com todos os cuidados possíveis com um instrumento tão desadequado, uma resposta a Horácio. Fechou
a tábua, voltou a colocar a adaga na sua bainha e chamou o mensageiro. O soldado tinha estado a ver o que se passava, e correu para o tribuno.
- Leva isto de volta ao campo. Entrega a mensagem nas mãos do prefeito Horácio em pessoa. Diz-lhe que respeite as minhas instruções à letra. Percebido?
- Sim, senhor.
- Vai, então.
O homem virou-se e fez menção de desatar a correr.
- Espera - irritou-se Otho. - Não corras. Isso só servirá para atrair sobre ti as atenções dos nativos. Mostra-lhes que um romano mantém sempre a cabeça fria, sim?
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- Sim, senhor. - O soldado avançou sem pressa até junto dos cavalos, saltou para a sela e levou o animal a trote a caminho do portão, acabando por desaparecer ao
meter pela estrada que descia a colina até à povoação.
- E pronto, está tratado - concluiu Otho. - Os dados estão lançados. Nada mais podemos fazer, a não ser esperar pelo começo do festim.
Cato soltou um sorriso de encorajamento, aliviado por o tribuno ter tomado a melhor decisão possível naquelas circunstâncias. Não era exatamente o mesmo que atravessar
o Rubicão, mas se a analogia permitia ao jovem aristocrata ver-se a uma luz mais favorável e convencer-se de que tinha acabado de tomar uma decisão difícil mas correta,
a Cato não custava nada deixá-la passar.
- Por falar em dados... - Macro acenou na direção dos dois guardas. - Já agora, podemos passar o tempo de forma útil. Senhor?
Otho arqueou uma sobrancelha.
- O quê? Ah, sim. Como desejar, centurião.
Macro executou o cumprimento militar, e olhou para Cato.
- Etu?
Cato sentiu-se tentado a declinar o convite. Havia muito em que pensar. Mas então percebeu que não havia nada que pudesse fazer para mudar as circunstâncias. Tinha
feito tudo o que pudera para influenciar o desenlace. Agora cabia aos deuses olharem com benevolência para os seus planos, ou então atirarem-lhes com mais escolhos
para o caminho. Assentiu.
- E porque não? Um dia a sorte vai ter de virar a nosso favor.
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27
O terreiro em frente ao palácio real começou a encher-se com os convidados para o festim assim que o Sol mergulhou para o horizonte. O dia tinha sido quente, e todos
os que tinham passado muitas horas expostos aos raios solares sentiam a pele a picar, devido à intensidade da radiação. Os animais que tinham sido abatidos durante
a tarde estavam a assar por cima das brasas que enchiam as covas onde tinham ardido as fogueiras, situadas a distância segura dos telhados de colmo dos edifícios
mais próximos. No recinto espalhava-se abundantemente o delicioso aroma da carne assada, e Macro levantava o nariz e aspirava o ar com um sorriso beatífico.
- Mmmm. Porra, estou esfomeado. E sempre é uma mudança, em vez daquelas rações de campanha.
Cato remexeu-se ao seu lado, sentado num dos longos bancos corridos que tinham sido colocados junto à entrada do salão, para que os convidados da rainha pudessem
descansar enquanto esperavam para ser admitidos no interior.
- Imagino que sim - replicou, sem pensar no assunto. Estava preocupado com as constantes idas e vindas dos nobres brigantes, que tinha passado o tempo a observar.
O jogo de dados tinha acabado já tarde, depois de Macro ter resgatado todo o dinheiro que os guardas do tribuno traziam consigo, bem como a maior parte do de Cato.
Não era de admirar que o amigo estivesse de tão boa disposição, concluiu o prefeito.
O tribuno Otho e a esposa tinham regressado da sua exploração da povoação na base da colina, pouco tempo depois. Ambos estavam encalorados e suados pelo esforço
de voltar a subir o declive, e eram seguidos por uma pequena procissão de crianças, que traziam cestos com fruta, fardos de peles, e pequenos rolos do tecido grosseiro
e com padrões que tanto agradava aos nativos. Otho indicou-lhes que
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deixassem as cargas ao cuidado dos seus guardas e pagou-lhes com algumas moedas de bronze que extraiu da bolsa. Depois, os guardas da rainha conduziram os miúdos
para fora do forte, enquanto o casal romano se ia juntar a Cato e Macro.
À luz quente e longas sombras do entardecer, Popeia sentou-se ao lado do marido, em frente aos outros oficiais romanos, tentando refrescar-se com um leque de palha,
enquanto lutava para afastar a nuvem de moscardos que volteavam em torno da sua cabeça como pequenos flocos dourados.
- Quando é que começa esta maldita festa?
O marido estava a mordiscar uma maçã que tirara de um cesto pousado no banco, entre eles.
- Se tens fome, experimenta uma destas. Deliciosa.
Otho deu mais uma dentada e ofereceu-lhe o cesto. Popeia encarou-o com ar frio.
- Se queres parecer um leitão, é contigo; eu tratarei de manter os padrões da civilização por ti.
Cato fitou-a, mas mordeu a língua. Como todos eles, Popeia tinha um ar cansado e desarranjado, e a sua cuidada estola colava-se-lhe à pele por causa do suor. Duvidava
muito que naquele estado fosse considerada apresentável pelas suas amigas da sociedade romana.
- Olha, olha, pelo menos alguém parece feliz. - Macro interrompeu-lhe os pensamentos e apontou. Cato seguiu a indicação e viu Sétimo a aproximar-se. O agente imperial
tinha atado uma tira de tecido em torno da cabeça, para impedir o suor de lhe chegar aos olhos.
- Centurião! Prefeito! - chamou Sétimo, muito animado, antes de adotar modos mais respeitosos quando notou a presença do tribuno e da esposa. - Senhor, desejo-lhe
uma excelente tarde, bem como à sua senhora.
- Pareces um porco a rebolar feliz na pocilga - notou Macro. - Foi um dia de grandes negócios? Parecias muito ocupado, há bocado. Pareceu-me que o Venúcio e alguns
dos seus amigos te compraram quase todo o material.
Cato sorriu. Também ele tinha visto o consorte real a proceder a diversas compras, antes de levar o amontoado de ânforas de vinho para dentro de uma das maiores
cabanas.
- Sabem como são estes celtas. - Sétimo lançou um sorriso
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conhecedor, e acariciou a pesada bolsa que lhe pendia do cinto. - Adoram mesmo o bom vinho. Vendi tudo. Aliás, leiloei as três últimas ânforas, e todos fizeram os
seus lances como se este fosse o seu último dia neste mundo.
Cato olhou para trás dele, para os muitos nobres brigantes que se viam por ali, em pequenos grupos. Muitos falavam em voz alta, e vários estavam claramente já bem
bebidos. Virou-se, para sorrir a Sétimo.
- Desde que tenha o efeito pretendido...
O agente acenou-lhe ligeiramente em resposta, antes de continuar:
- Desde que se enfrasquem, e que eu veja o fundo das suas bolsas, tudo estará bem. Já estou a ver que este será um mercado excelente para o primeiro a conseguir
estabelecer um comércio regular com Isurium.
- Fez uma pausa. - Claro que isso depende, antes de mais, da existência de paz nesta parte do mundo.
- Disso tratamos nós - salientou Macro. - Nem que tenhamos de lhes dar uma valente tareia para o garantir. A Roma pouco importa quem é preciso destruir para alcançar
a paz.
Cato deitou uma olhadela ao amigo, para ter a certeza que ele estava apenas a empregar a ironia, uma raríssima tendência no centurião.
- Hã, pois. - Sétimo franziu o sobrolho. - Bem, tenho de ir. Preciso de ir ao campo buscar mais material.
Deu um toque de punho cerrado na própria testa antes de se curvar respeitosamente ante Otho e a esposa; afastou-se então na direção da carroça, agora vazia.
- Que homenzinho tão aborrecido - resmungou Popeia. - Como todos os comerciantes, aliás. Só sabem falar de dinheiro e negócios. É tudo o que significa Roma para
eles. É a nossa classe que se dedica à expansão do Império e derrama o seu sangue para conquistar novas terras. E é gentalha daquela que beneficia dos nossos esforços.
Fui comprar-lhe algum vinho esta tarde, e ele só mo queria vender a um preço absolutamente ridículo, o patife.
Cato suprimiu um sorriso perante aquela prova de que o agente imperial não se desfazia facilmente do seu disfarce.
Otho engoliu e inspecionou a sua maçã meio comida, enquanto retorquia:
- Talvez assim seja, minha querida, mas tu não estás propriamente a passar por grandes vicissitudes ao serviço de Roma.
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- Não? Achas que é fácil para mim viver como um vulgar soldado, e partilhar todas as suas dificuldades?
Macro engasgou-se e desviou rapidamente o olhar para o solo entre os seus pés, para evitar rebentar às gargalhadas.
- Começo a lamentar ter sido tão insistente no pedido para te acompanhar a esta ilha esquálida. Teria sido muito melhor ter ficado em Roma.
- É bem verdade... - confirmou Otho, a brincar, mas, ao perceber que a resposta podia ser levada a sério, logo se apressou a continuar: - Quero eu dizer, teria sido
melhor para ti se tivesses permanecido no teu ambiente, minha querida. Aqui, és como uma rosa entre cardos. Temo por ti. Teria a mente bem mais sossegada se te soubesse
a salvo lá em Roma.
Macro debruçou-se ligeiramente para Cato e comentou em surdina:
- Nem por sombras.
Popeia lançou ao marido um olhar desconfiado mas, antes que pudesse falar, o estridente som de um corno celta rasgou a tranquilidade do entardecer. As conversas
interromperam-se e todos olharam na direção do sinal sonoro. Um forte guerreiro soprou mais algumas notas, antes de baixar o instrumento reluzente. Ao seu lado estava
Velocato. Este respirou fundo antes de fazer um anúncio. Falou na língua nativa, antes de se virar para os romanos e repetir as mesmas palavras em latim.
- Sua majestade, a rainha Cartimandua, solicita que entrem no seu salão e ocupem os vossos lugares para o festim.
Os nobres e as respetivas esposas começaram imediatamente a encaminhar-se para a entrada do salão, cujas portas tinham sido abertas de par em par por dois dos servos
da rainha. Cato viu Otho começar a levantar-se, mas a mulher agarrou-lhe na manga e obrigou-o a sentar-se, enquanto lhe ralhava, irritada.
- Espera! Não vou entrar para ali no meio da turba, para ser conduzida como os porcos. Vamos entrar como os romanos o devem fazer, de forma digna, que nos distinga
claramente destes bárbaros.
O tribuno soltou um suspiro de resignação, enquanto Macro rangia os dentes de forma tão audível que Cato quase se assustou. Velocato esgueirou-se pela orla da turba
para se juntar a eles.
- A rainha reservou-vos um lugar especial, à sua esquerda. Eu ficarei junto de vocês.
Popeia franziu a sobrancelha bem aparada.
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- À esquerda? Então quem é que fica à direita da rainha?
- O consorte, Venúcio. Como lhe cabe e compete.
Cato não deixou de notar o tom amargo na voz do jovem nobre.
- E quem se senta junto a ele? - inquiriu.
- Os seus amigos mais próximos.
- Onde se inclui Carátaco, aposto.
Velocato assentiu.
Os olhos de Popeia semicerraram-se.
- Então isso quer dizer que o nosso inimigo se senta num lugar de honra, apenas abaixo da rainha, e superior ao nosso? Não. Isto não pode ser permitido.
Foi a vez de as sobrancelhas do brigante se arquearem.
- Senhora, não pode ser evitado. Já assim foi determinado.
Ela virou-se para o marido.
- Aquela mulher quer claramente humilhar-nos. Somos seus aliados, mas ela dá o lugar de honra ao nosso inimigo jurado, em vez de a nós. Otho, não podes consentir
em tal coisa. Diz-lhe.
- Meu amor, não posso...
- Diz-lhe! Ou então diz à própria mulher.
- Silêncio! - explodiu por fim o tribuno, e a sua expressão adotou instantaneamente um brilho selvagem. Popeia encolheu-se e ele prosseguiu no mesmo tom irritado:
- Para de dar à língua. Não quero ouvir outra lamúria dos teus lábios. Já estamos numa posição difícil, não precisamos dos teus queixumes para a tornar ainda pior.
- Queixumes... - Ela fez beicinho, e o lábio inferior começou a tremer-lhe.
- Sim, queixumes. Querias vir comigo para a fronteira. Uma aventura, disseste tu. E desde que chegámos que não oiço outra coisa senão queixas e protestos. Agora,
preciso é que estejas calada, a não ser que alguém te dirija a palavra. E, se houver motivo para falares, fá-lo-ás de forma cortês e polida. Percebido?
Ela encarou-o, os olhos esbugalhados de surpresa e choque perante aquela explosão tão pouco habitual.
- Mas, Otho, meu amor, eu...
- Perguntei-te se tinhas percebido. Sim ou não? Se é não, voltas imediatamente para o campo. E para Roma, no momento em que chegarmos a Viroconium.
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- Não queres dizer isso.
- Quero, sim. - Levantou-se, e encarou-a com ar severo. - Então, que resposta me dás?
Ela fitou-o com uma expressão magoada, e com lágrimas a dançar-lhe no canto do olho.
- Sim.
- Assim é melhor. - Otho suavizou o tom de voz, e ofereceu-lhe a mão. Ela aceitou-a, hesitante, e levantou-se também. O tribuno voltou-se para Velocato e para os
seus dois subordinados.
- Peço desculpas por esta pequena cena.
Cato não fez qualquer comentário; limitou-se a acenar levemente, com ar compreensivo. Macro optou por balbuciar umas palavras sem sentido, enquanto Velocato soltava
um sorriso tolerante.
- Agora, por gentileza, conduz-nos aos nossos lugares. - Otho apontou para a entrada, e Velocato levou-os para o interior do salão.
- Porra, que já era tempo - sussurrou Macro ao amigo. - Ela estava mesmo a pedi-las.
- Tem razão - foi a resposta de Cato, acompanhada de um sorriso.
Quando por fim o pequeno grupo entrou no salão, já quase todos os convivas tinham tomado os lugares que lhes tinham sido destinados nos longos bancos que ladeavam
as mesas, que se estendiam por todo o comprimento da sala. Não havia ali nem um traço das travessas de prata bem polida e das delicadas iguarias que se poderiam
esperar num banquete em Roma, reconheceu Cato. Em vez disso, pão e queijo tinham sido colocados a meio de cada mesa, e cada homem ou mulher tinha à sua frente uma
caneca de barro vidrado; alguns tinham trazido o seu próprio corno de beber ou a sua taça decorada. Havia jarros de hidromel e cerveja. Alguns já se tinham encarregado
de deitar abaixo uma primeira dose de bebida, e o ar estava repleto de gargalhadas sonoras, de trocas de palavras animadas e do burburinho habitual numa ocasião
festiva. Velocato levou os convidados romanos pelo centro do salão, e Cato tentou manter o olhar fixo em frente, ignorando a curiosidade hostil que sobre ele caía
de ambos os lados do recinto. Verificou que o trono de Cartimandua tinha sido arrastado para junto da parede do fundo, e que três mesas apoiadas em cavaletes tinham
sido colocadas sobre o estrado, ladeadas por cadeiras. O lugar da rainha ainda estava
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vazio, mas Venúcio e outros homens já tinham ocupado os seus lugares e conversavam, muito animados. Cato sentiu o sangue enregelar ao avistar Carátaco. Os seus olhares
cruzaram-se e o rei catuvelauno ficou também hirto de repente. Os que o rodeavam notaram a súbita alteração de humor, e depressa começaram a observar com evidente
hostilidade os romanos que se aproximavam.
- Ora aqui está a hospitalidade dos brigantes - comentou Macro.
- Não é propriamente uma surpresa - retorquiu Cato. - Mas vamos manter as coisas calmas.
- Eu fá-lo-ei, se eles o fizerem.
- Fá-lo-á, sejam quais forem as circunstâncias, meu amigo.
Macro fez-lhe uma careta.
- Desmancha-prazeres.
- E esse é o único desmancho que está autorizado, esta noite - concluiu Cato com firmeza, resolvido a garantir desde logo que Macro não ia começar alguma briga.
Seria preciso vigiá-lo com atenção, sobretudo ao fim de algumas bebidas. Quando Macro passava dos limites, as coisas tendiam a descambar em violência, como Cato
já sabia havia muito. E, naquelas circunstâncias, uma zaragata de bêbados não seria por certo a melhor forma de concluir o festim.
Subiram ao palco, e Otho ocupou o lugar mais próximo da mesa da rainha. Depois sentou-se a sua mulher, Velocato, Cato e Macro. Do outro lado, Venúcio e os seus companheiros
contemplaram-nos com expressões frias, que traduziam um inabalável ódio e desprezo.
- Bem, isto é um tanto embaraçoso - começou Macro. Pegou na caneca à sua frente e fez menção de se servir da bebida disponível. Cheirou o conteúdo, desconfiado,
antes de aprovar com um gesto da cabeça. Começou a encher a caneca, mas lembrou-se das boas maneiras, e virou-se para os outros.
- Alguém quer?
Popeia abanou a cabeça, e continuou a fitar o tampo da mesa, com ar agastado.
- Talvez mais tarde - foi a resposta de Otho.
Velocato e Cato ofereceram as suas canecas, e Macro encheu-as até ao cimo, antes de fazer o mesmo com a sua e pousar o jarro. Ergueu o copo e dirigiu-se a Carátaco.
- Ao convidado de honra.
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Venúcio ficou furibundo, e parecia estar a ponto de se levantar, quando o rei catuvelauno pousou firmemente a mão no braço do companheiro, para o manter no assento.
Soltou um sorriso divertido, encheu o seu corno, finamente decorado com uma base que representava uma cabeça de touro, e devolveu o brinde a Macro, lançando algumas
palavras através do espaço entre os dois grupos.
- Aos meus pertinazes inimigos romanos.
- Pertinazes - repetiu Macro, com prazer. - Sim, somos mesmo
nós.
Ergueu a caneca e experimentou. A cerveja era adocicada, e parecia mais leve do que as cervejas gaulesas que Macro já tinha experimentado. Ao seu lado, Cato também
bebeu, mas Velocato recusou-se a sequer tocar no copo.
- Nada mau - reconheceu Macro, e aproveitou para beber um bom trago. - Melhor do que aquela porcaria que bebemos lá na Gália.
- Muito agradável, sim - concordou Cato, antes de deitar mais uma olhadela ao amigo. - Mas vá com calma, está bem?
Macro inclinou-se para espreitar para lá do amigo, para Velocato.
- Então e tu, rapaz? Não bebes?
- Não vou aceitar um brinde do homem que conspira contra a minha rainha - foi a resposta rápida do jovem nobre.
- Quem, aquele? - Macro apontou para Carátaco. - Os seus dias de conspirador estão terminados, meu caro. A esta hora amanhã já estará nas nossas mãos, e a caminho
de Viroconium. Não nos vai incomodar mais, nem a ti. Acredita no que te digo. Entretanto, deixa-o lá aproveitar a sua última noite de liberdade, sim?
O portador de escudo do consorte real manteve-se em silêncio, mas cruzou os braços, para mostrar bem o seu protesto.
- Bom, faz lá como quiseres. - Macro voltou a encher a sua caneca até ao bordo, e fez estalar os ombros enquanto se punha a olhar em volta. O aroma da carne assada
preenchia o abafado interior do salão, ainda iluminado pelo brilho do Sol poente que se derramava pela entrada. - Onde está a rainha, afinal?
Como que em resposta à sua questão, um vulto destacou-se da penumbra junto à parede do salão e subiu ao estrado com graciosidade. De imediato se ouviu um apressado
e ensurdecedor arrastar de cadeiras e bancos, e todas as conversas foram interrompidas. Cartimandua
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instalou-se no assento real e sentou-se de costas bem aprumadas, enquanto contemplava os seus convidados. Ergueu então uma mão, e fez sinal para que todos se sentassem.
De novo se escutou o arrastar dos assentos, as conversas foram retomadas e começaram lentamente a subir de intensidade sonora.
Não houve qualquer preâmbulo ao início da refeição, nem nenhum entretenimento. Servos carregados de travessas de carne fumegante entraram no salão pelas portas laterais
e começaram a servir os que estavam mais distantes, de maneira a que a rainha fosse a última a ser servida, mas com carne quente - e ela seria a primeira a começar
a comer. O estômago de Macro começou a protestar quando ele avistou as pilhas reluzentes de carnes bem passadas, e o centurião lambeu os lábios.
Então Venúcio levantou-se de rompante e abriu bem os braços, para atrair a atenção de toda a gente, enquanto lançava um brado que se fez ouvir sobre o burburinho
das conversas em todo o salão.
- O que está ele a fazer? - interrogou-se Cato. Olhou para a sua direita e notou a expressão de alarme no rosto de Cartimandua, ao ver-se confrontada com a súbita
intervenção do esposo.
- Velocato, o que está ele a proclamar?
Deu-se uma breve pausa antes de o tradutor começar a explicar.
- Exige ser ouvido. Diz que tem um anúncio a fazer, tem de informar todos de que os nossos deuses lhe revelaram um augúrio. Enviaram-lhe um sinal claro de que lançaram
uma maldição sobre Roma.
- Maldição? - O cenho de Otho franziu-se. - Que idiotice é essa?
Mas Cato já quase o tinha adivinhado. A rainha espetou o dedo no
ar na direção do consorte, e falou em tom imperioso. Venúcio virou-se para ela com desdém, e abanou a cabeça. Antes que ela pudesse repetir a ordem, o homem virou-se
para olhar diretamente para o tribuno romano, e dirigiu-lhe algumas palavras num tom elevado, que preencheu todos os recantos do salão. Enquanto ele falava, Cato
deu um toque impaciente em Velocato.
- O que diz ele?
- Afirma que o governador Ostório está morto.
Cato e Otho trocaram um olhar ansioso, mas foi o suficiente para que Venúcio aproveitasse a ocasião; saltou do seu lugar, aproximou-se da mesa romana, e berrou na
sua direção.
- Exige saber se isto é verdade.
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- Foda-se - rematou Macro. - Ele sabe.
- Como pode ser isso? - Otho abanou a cabeça. - Como é que pode ter descoberto tão depressa?
Venúcio apoiou as mãos na beira da mesa e Popeia encolheu-se toda quando o nativo repetiu a pergunta numa voz repleta de ameaças.
Quando não recebeu resposta, Venúcio afastou-se, virou as costas a uma irritada Cartimandua e dirigiu-se à assembleia no salão.
- Diz ele que o vosso silêncio comprova que o que acaba de dizer é a verdade. Um sinal dos deuses. Um sinal de que eles voltaram as costas a Roma. Um sinal de que
os brigantes se devem erguer e avançar para a guerra contra os invasores. Os nossos deuses destruirão as legiões, tão certo como o facto de terem já aniquilado o
seu general.
A maior parte dos convidados da rainha não parecia apreciar particularmente aquele discurso, mas Cato apercebeu-se de que alguns anuíam, com um brilho de desafio
a crescer-lhes nos olhos, enquanto escutavam as inflamadas palavras de Venúcio.
- Diz ele que os deuses estão irados, devido à aliança da rainha com Roma. Estão descontentes com a sua decisão de entregar Carátaco nas mãos do inimigo.
- Temos de o calar - concluiu Macro, enquanto deixava a mão escorregar para o punho da espada. - E depressa.
- Não - contrariou Cato, em tom firme. - Se brandirmos aqui uma arma, não escaparemos vivos.
- Mas não podemos ficar só a ver, sem fazer nada. Não podemos permitir que aquele cabrão os acicate desta maneira.
Cato concordou, enquanto pensava furiosamente. Deitou uma olhadela a Otho, e percebeu, pelo rosto do tribuno, que este estava paralisado de terror. Cato respirou
bem fundo e levantou-se; encheu os pulmões e lançou um berro com toda a força da voz, para se sobrepor ao discurso de Venúcio.
- Chega! Chega! Oiçam-me! Brigantes, oiçam-me! - Virou-se para Velocato. - Diz-lhes o que eu vou dizer. Exatamente o que eu disser.
O nobre assentiu.
Venúcio não tentou competir com Cato; deu um passo ao lado, cruzou os braços e limitou-se a sorrir friamente.
- É verdade que o general Ostório está morto. Mas tal facto não
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é um sinal dos deuses. Era um homem velho e doente. No momento em que vos falo, o seu lugar já foi ocupado por outro oficial. As legiões servi-lo-ão com a mesma
eficácia com que serviram Ostório. Esmagarão qualquer tribo que lhes saia ao caminho. Yenúcio diz falsidades quando afirma que os vossos deuses nos amaldiçoaram.
Assim que as palavras de Cato foram traduzidas, Venúcio colocou-se entre ele e o resto do salão. Ao dirigir-se novamente ao seu povo, fê-lo com um renovado tom de
triunfo. Cato olhou em redor, e pediu a Velocato que continuasse a traduzir.
- Diz que pode provar que os deuses se encarniçam contra Roma...
Venúcio fez uma pausa e apontou teatralmente, com o braço bem esticado na direção da entrada do salão, onde o Sol poente dava à madeira um brilho flamejante. Um
vulto alto e de vestes compridas destacou-se no limiar e abriu os braços, formando uma figura negra contra os tons vermelhos de sangue que tinham tomado conta do
céu.
- Um druida - apercebeu-se Cato. - Merda...
O recém-chegado começou de imediato a falar num tom rico e profundo, lançando as palavras como se entoasse um cântico ritmado, ou um encantamento.
- Diz que é um druida da ordem da Lua Negra.
- Oh, não - murmurou Cato para si mesmo, enquanto um arrepio frio lhe descia pela espinha. Já se tinha cruzado com aquela Ordem anteriormente, e quase pagara com
a vida, tal como Macro. Ao mesmo tempo, percebia que tudo aquilo fora planeado de forma cuidadosa e incluíra mesmo a sua tentativa de desdizer os augúrios anunciados
por Venúcio. Embora os nativos pudessem não engolir o discurso do consorte real, seriam muito mais capazes de acreditar num druida. Cato olhou para a mesa da frente
e viu Carátaco a sorrir-lhe, enquanto Velocato continuava a traduzir.
- O druida afirma que Venúcio diz a verdade. Ele viu os augúrios. A morte do general romano é um sinal claro de que os deuses apelam aos brigantes para que se revoltem
e sigam o exemplo de Carátaco. São os deuses que exigem a guerra contra Roma. Mostraram-lhe uma visão em que uma águia dourada soçobrava num mar de sangue romano.
Antes que o druida pudesse prosseguir, Cartimandua pôs-se de pé e gritou a sua resposta. Para isso foi obrigada a erguer a voz, que antes
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soara quase melodiosa e agora parecia apenas esganiçada. O druida cedeu perante o assalto real e remeteu-se ao silêncio; ela virou-se então e descarregou a sua ira
sobre o consorte, que lhe respondeu à letra.
Velocato já tinha deixado de traduzir, incapaz de ultrapassar o choque perante o confronto que presenciava.
- O que estão eles a dizer? - quis saber Otho, antes de lhe pegar no braço e o sacudir, perante a falta de resposta. - Traduz, porra!
Velocato piscou os olhos, como se despertasse de um transe, e anuiu.
- Ela diz-lhe que mande embora o seu druida, e que saia ele também de Isurium, imediatamente. Mas o Venúcio recusa-se a deixar a cidade. Exige uma reunião do conselho
tribal, para discutir os presságios e a decisão de entregar Carátaco aos romanos.
Um coro de gritos de apoio acolheu as palavras de Venúcio, e os seus seguidores pareceram aumentar em número, enquanto outros olhavam para a rainha com ar desamparado.
Alguns ergueram-se e vociferaram abertamente contra os que tinham tomado o partido de Venúcio.
- A situação está a ficar uma boa merda - realçou Macro. - Temos é que apanhar o Carátaco e sair daqui, antes que seja tarde de mais.
- Já o é - admitiu Cato. - Se lhe tocamos, é como se já estivéssemos mortos.
Enquanto as discussões agrestes prosseguiam no salão, Cartimandua aproximou-se dos seus hóspedes romanos e falou em latim, sem qualquer subterfúgio.
- Têm de ir. Regressem ao vosso campo. Eu resolverei isto.
Otho abanou a cabeça.
- Não podemos ir sem Carátaco.
Ela rangeu os dentes.
- Romano, és parvo? Digo-te para saírem daqui agora mesmo. Deixem o salão pela porta lateral, e vão para os vossos cavalos.
- O que fará quanto a isto? - indagou Cato.
Cartimandua lançou um olhar despeitado ao consorte.
- Darei ao Venúcio a sua oportunidade no conselho. E depois bani-lo-ei da minha corte, e do meu reino. Será morto se alguma vez se atrever a voltar a mostrar-se
por aqui.
- E quanto a Carátaco?
- Ser-vos-á entregue assim que o dia nascer. Têm a minha palavra quanto a isso. Agora, partam!
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Cato virou-se para o tribuno Otho, que anuiu, embora com relutância, e se levantou do lugar, ajudando Popeia a imitá-lo antes de a conduzir para a porta lateral
que Cartimandua lhes tinha apontado. Cato e Macro seguiram-nos, mantendo um olhar atento aos nativos mais próximos. Um punhado dos homens de Venúcio lançou-lhes
insultos, e assobiou a retirada apressada dos romanos. Já no exterior, estes estugaram o passo e dirigiram-se para o terreiro à frente do palácio. Otho passou o
braço em torno dos ombros da mulher, num gesto protetor. Macro e Cato mantinham as mãos nos punhos das espadas, prontos a pô-las em ação no instante em que alguma
ameaça se concretizasse. Do outro lado do terreiro, os guardas aguardavam-nos, com evidente ar preocupado, alertados pela confusão no interior do salão. Cato ergueu
o olhar e viu que o céu no horizonte ocidental estava pintado de um vermelho vivo. Muito acima da faixa de cor brilhava uma Lua crescente, que se destacava contra
o negrume da noite aveludada, fazendo lembrar a lâmina de uma foice. Estremeceu perante tal visão, e não conseguiu evitar a ideia de que talvez afinal o druida tivesse
razão quanto aos presságios.
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Assim que regressou ao campo romano, o tribuno Otho deu ordens para que os homens da coluna ocupassem os seus postos. Optios e centuriões distribuíram berros pelos
soldados, e os romanos lá foram saindo das tendas, no preciso momento em que a luz do Sol desaparecia, e começaram a envergar armaduras e a formar as respetivas
unidades. Entretanto, os oficiais superiores reuniram-se na tenda do tribuno. A esposa deste tinha-se retirado para os seus aposentos privados e cerrado a cortina
que os separava do resto das acomodações, como se tal gesto pudesse apagar a ameaça que claramente sentia a pender-lhe sobre a cabeça. Cato percebia bem os receios
da mulher. A missão que o seu marido tinha sido enviado para concluir sofrera um importante contratempo, face aos eventos do dia. Havia agora uma muito real possibilidade
de que os seus hóspedes, em vez de continuarem a acolhê-los como aliados da tribo, se deixassem convencer a assumir o papel de inimigos de Roma. A perspetiva de
a mais poderosa tribo da Britânia resolver apoiar alguém tão casmurro e determinado como Carátaco fazia Cato temer o pior.
E não era ele o único oficial que receava o resultado do confronto entre a rainha Cartimandua e o seu consorte, que estava a ter lugar na colina fortificada erguida
a curta distância do campo romano. Um sentimento sombrio descera sobre os oficiais romanos sentados em torno da secretária do tribuno. Otho tinha descrito de forma
resumida os acontecimentos daquela tarde, e fizera uma pausa para que os oficiais ponderassem a situação. Limpou a garganta para soar mais calmo quando prosseguiu.
- Meus senhores, a vosso ver, quais são as nossas opções?
- Opções? - Cato cruzou as mãos. - Senhor, não temos qualquer ideia do que se está a passar lá em cima. Até recebermos notícias, temos
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de esperar que Cartimandua consiga aplacar o seu povo. Devemos permanecer no campo até saber o que aconteceu.
O prefeito Horácio abanou a cabeça.
- Nessa altura pode já ser demasiado tarde. Senhor, não nos podemos dar ao luxo de ficar aqui sem fazer nada. Por mim, devíamos enviar uma coorte de legionários
para apoiar a posição da rainha. Podem deter os que se lhe opõem e pôr as mãos em Carátaco. Pela manhã já tudo estará terminado, a ordem restaurada, e mais ninguém
se atreverá a pôr em causa a autoridade da rainha.
Otho assentiu devagar, antes de replicar:
- E achas que uma coorte será suficiente? Que tal enviarmos duas? Deviam estar lá em cima várias centenas de guerreiros, esta tarde.
Cato sentiu o peso no peito a aumentar ao escutar aquela troca de ideias, e obrigou-se a explicitar as preocupações que lhe cruzavam o pensamento.
- Senhor, se enviarmos homens para o forte nativo, haverá violência, com toda a certeza. Não fará qualquer diferença quem vai desferir o primeiro golpe, haverá sangue
derramado. E assim que o resto da tribo souber que os soldados romanos invadiram a capital e mataram alguns dos seus, sejam as circunstâncias as que forem, isso
virá-los-á contra nós. Ou seja, cairemos precisamente na armadilha que o Venúcio e o Carátaco idealizaram. Não se esquecerão de proclamar a evidência do que os romanos
tencionam fazer a todos os brigantes.
- Isso não sucederá se deitarmos as mãos aos dois em primeiro lugar - ripostou Horácio. - Se prendermos os cabecilhas da fação antirromana, podemos pôr fim à oposição
a Roma logo à nascença.
- Ou então acendemos o fogo que levará toda a tribo a entrar em guerra - contrariou Cato. - De uma coisa podemos ter a certeza. Sejam quais forem as diferenças entre
as fações e os clãs da nação brigantina, depressa esquecerão essas diferenças e se virarão contra nós, no momento em que nos virem a usar a força contra o seu povo.
Além disso, com este luar, quaisquer soldados romanos que avancem para o forte na colina serão avistados de imediato. O Venúcio e o Carátaco terão todo o tempo de
que precisarem para escapar.
- É verdade, mas nesse caso estará a fugir com o rabo entre as pernas. Restar-nos-á demonstrar o nosso apoio à autoridade da rainha, e restaurar a ordem em Isurium.
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Cato refreou a frustração crescente, e forçou-se a manter um tom calmo e claro.
- O que só servirá para a fazer parecer vazia de autoridade. Aos olhos do povo, surgirá como uma marioneta romana. Qualquer autoridade que ela mantenha sobre o seu
povo entrará em colapso imediatamente. - Virou-se para o tribuno. - Senhor, temos de dar à rainha Cartimandua a possibilidade de resolver este assunto no seio da
nação brigante. Pôde verificar por si mesmo que ela tem uma personalidade bem vincada. Talvez ainda consiga convencer os nobres a apoiá-la contra Venúcio. Temos
de lhe dar essa oportunidade.
A testa de Otho vincou-se, enquanto ele tentava pesar todos os argumentos.
- Pode ser que tenhas razão, prefeito Cato. Pode ser muito perigoso intervir diretamente na questão.
Horácio fungou.
- E pode ser ainda mais perigoso ficarmos aqui sentados à espera do desenlace, senhor. Por mim, acho que devemos avançar.
- E eu acho que tenho de considerar todas as opções - ripostou Otho de chofre. - Fomos aqui enviados numa missão diplomática, Horácio. Não viemos invadir o território
dos brigantes, nem atacar a capital.
Horácio mordeu o lábio e deixou-se ficar calado por momentos, antes de voltar ao ataque.
- Senhor, se bem se recorda, o legado disse que em caso de se tornar necessária alguma ação militar, deveria ser eu a assumir o comando.
- Mas essa situação ainda não se verifica - protestou Cato. - Acho que devíamos aguardar até sabermos ao certo o que aconteceu.
- E eu acho que não devemos correr o risco de permitir que a situação fuja ao nosso controlo. O momento de agir é agora. - Horácio bateu com a mão na mesa. - Se
o prefeito Cato está nervoso, pode ficar no campo com os seus homens, e proteger as nossas bagagens. Afinal de contas, é nisso que ele é bom.
Aquele comentário foi demasiado para Macro, que se debruçou sobre a mesa e interveio de forma agressiva.
- Foi o prefeito Cato quem operou a reviravolta na batalha da colina contra Carátaco, em caso de se ter esquecido, senhor. E se ainda há bastantes homens vivos nas
nossas fileiras, é graças ao raciocínio rápido
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e à coragem do prefeito; caso contrário, podiam muito bem ter morrido quase todos naquela maldita colina.
- Não o nego - respondeu Horácio. - Por outro lado, também é por causa do Cato que aqui estamos todos. Se tivesse vigiado Carátaco como deve ser...
- Chega! - irritou-se Otho. - Senhores, silêncio!
Instalou-se uma quietude tensa, até que Macro se voltou a sentar direito, com o queixo cerrado. Horácio fitava-o com mal disfarçada fúria, mas refreou os sentimentos
e não produziu mais comentários de imediato.
- O prefeito Cato tem razão quando salienta que isto ainda não se trata de uma questão militar. Peço a Júpiter que assim continue. Não nos vamos lançar em ações
precipitadas até sabermos o desenlace da discussão entre os nativos. Se a situação descambar em combate, nesse momento entregar-te-ei o comando da coluna, Horácio,
mas não antes disso. Entendido?
- Sim, senhor.
- Entretanto, será melhor reforçar as sentinelas nas muralhas. Dobrem os turnos. As outras unidades podem ir descansar. Mas escusam de recolher às tendas, podem
ficar a dormir nas rampas entre os turnos. Horácio, Cato, peço-vos que fiquem. Os outros estão dispensados.
Depois de os outros oficiais deixarem a tenda, Otho esperou ainda algum tempo até ter a certeza que todos já se tinham afastado e não podiam ouvir o que se ia seguir;
depois virou-se para os subordinados, com uma expressão irada no rosto.
- Juro a todos os deuses que, se vocês os dois voltarem a criar uma cena destas, os removo imediatamente do comando das vossas unidades. E tenho autoridade para
o fazer, sim, Horácio, apesar das instruções do legado quanto ao comando da coluna em ações militares. Agradecia que tivessem isso em mente.
- Sim, senhor - aceitou Horácio, embora de dentes cerrados pela
ira.
Cato manteve-se em silêncio. Estava furibundo por lhe estarem a ser atribuídas responsabilidades pela confrontação, mesmo que partilhadas. Tinha estado apenas a
cumprir o seu dever de aconselhar o comandante sobre os riscos associados a qualquer ação que pudesse ser vista como hostil pelos nativos. E o remoque maldoso de
Horácio sobre
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a sua coragem tinha-o tocado fundo. De qualquer forma, Otho fixou-o com ar severo.
- E tu também, Cato.
- Sim, senhor - respondeu sem emoção, embora se sentisse mal por ser tratado como uma criança malcomportada por um homem que era vários anos mais jovem do que ele.
- Nesse caso, senhores, não há mais nada a dizer. Regressem para junto das vossas unidades. Quando chegar a manhã, saberemos qual dos dois tinha razão. Ou até antes
disso. Estão dispensados.
Cato não conseguia dormir, pelo que passou as primeiras horas da
noite no torreão sobre a entrada principal do campo. Macro manteve-se a seu lado durante algum tempo, a contemplar a fortificação ao cimo da colina. Havia tochas
a arder ao longo da paliçada, e um brilho bruxuleante iluminava os telhados das cabanas e o complexo real. Não havia sinal de chamas descontroladas e Cato calculou
que a luz provinha das grandes fogueiras usadas para cozinhar e de outras, acesas com o propósito de iluminar o interior das fortificações.
A dado momento, depois da mudança de turno de sentinelas no campo romano, que ocorreu por volta da meia-noite, ouviram-se gritos exaltados, que pareceram ter continuidade
numa espécie de cântico que se prolongou por momentos, mas acabou por se desvanecer. Depois disso, não se escutaram mais sons vindos da fortificação nativa; talvez
os habitantes tivessem sucumbido ao vinho, cerveja e hidromel que tinham consumido em grandes quantidades, considerou Cato. Ou então, prosseguiu na sua imaginação,
talvez estivessem sóbrios e calmos, a traçar os seus planos para lançar um ataque ao campo romano, como prelúdio a uma ofensiva em larga escala contra as forças
do Imperador Cláudio na ilha. Os cidadãos que ocupavam a povoação na base da colina pareciam partilhar do presságio que Cato sentia; não se via por ali qualquer
sinal de luz ou vida, e as cabanas mal se distinguiam ao luar. De facto, o único sinal de vida nas redondezas vinha do próprio campo romano, onde as sentinelas percorriam
a paliçada, cumprindo as rondas entre os torreões nos cantos e os portões.
- O que é que achas que estará a acontecer lá para cima? - indagou Macro, em voz baixa.
Os ombros de Cato movimentaram-se, enquanto ele respirava fundo e organizava os pensamentos.
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- Macro, tenho tanta ideia como outro qualquer de nós. Só podemos esperar que a Cartimandua tenha conseguido convencer gente suficiente a permanecer-lhe leal. Se
isso não ocorreu, e o Venúcio assumiu o controlo, temos entre mãos uma guerra. Mais uma.
- Caso em que ser romano em Isirium se tornará muito pouco saudável.
- Levará algum tempo até que todos os combatentes sejam convocados e organizados. Teremos ainda alguns dias de calma, em que poderemos tentar salvar a situação.
Ou isso, ou então teremos de tratar de ganhar um avanço decente sobre qualquer força que o Venúcio lance contra nós.
Macro virou-se para o amigo e arqueou a sobrancelha.
- Achas que será melhor bater em retirada?
- Não sei... Antes de pensarmos em retirar, teríamos de fazer pelo menos uma tentativa de tomar a capital e capturar Carátaco. Mas isso será um trabalho duro e sangrento.
Já apreciou as defesas que eles têm lá em cima. Mesmo que só tivesse metade dos nossos homens, o Venúcio podia facilmente aguentar até receber reforços. E os tipos
que estão lá em cima são a elite guerreira da tribo. Vão de certeza dar luta, e da rija.
- Já o fizeram muitas vezes antes, e não lhes serviu de nada - retorquiu Macro com um sorriso, os dentes a refletirem a pálida luz do luar.
- Mais uma colina fortificada, é igual às outras todas que já tomámos.
- Esta não. - Cato fez um gesto a abarcar as muralhas de terra, que se percebiam como faixas de sombra a rodear o cimo da colina, mesmo por baixo da paliçada. -
As encostas são mais íngremes e mais altas. Só há uma linha de ataque possível, e toda ela está ao alcance daquele bastião exterior. E por detrás das defesas haverá
homens duros e que combatem com alma.
Macro considerou as palavras do amigo, antes de responder com uma pergunta.
- Achas que o Horácio estará à altura duma coisa destas?
- Não sei. Sei é que ele não é propriamente um Vespasiano.
- É bem verdade. - Macro soltou uma risada. - Pelo que ouvi, o legado entrou por aquelas colinas fortificadas como faca em manteiga. Bem nos dava jeito agora. Em
vez disso, temos aquele tribuno mal saído das fraldas da mãe e uma ama-seca, o Horácio. Perspetivas pouco entusiasmantes.
Cato mordiscou os lábios, pensativo.
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- Quem sabe, talvez ainda nos venham a surpreender.
- Por outro lado, talvez não nos surpreendam de todo.
Cato virou-se para o amigo com um sorriso.
- E eu a pensar que era sempre a mim que cabia ver o lado mau de todas as situações.
- Tens toda a razão. - Macro riu-se e deu-lhe uma palmada no ombro. - Ao que parece, conseguiste finalmente fazer-me começar a ver as coisas como tu.
Cato encolheu os ombros.
- Que posso eu dizer mais?
- O melhor é não dizeres mais nada, sim? - Macro bocejou e espreguiçou-se. - Bom, está tudo calmo, portanto vou aproveitar para descansar. Amanhã, se calhar, vamos
estar bem atarefados.
O centurião atravessou a plataforma de madeira até ao fundo, enquanto tirava o capacete e desapertava a capa. Dobrou-a num fardo apertado, deitou-se e apoiou a cabeça
na almofada improvisada. A sua respiração acalmou-se, e depressa mergulhou num sono profundo. Um sorriso escapou-se dos lábios de Cato, ao escutar o familiar ronco
profundo que anunciava o habitual ressonar do amigo.
Nesse momento julgou captar pelo canto do olho um faiscar luminoso, e virou-se para observar para o forte nativo, precisamente quando surgiram fagulhas no ar, a
curta distância da paliçada. Durante breves instantes surgiu um rasgão luminoso sobre a encosta relvada, mas depressa se desvaneceu. Contudo, logo outra tocha voou
no ar, seguida por outras, descrevendo arcos flamejantes na escuridão, antes de atingirem o solo e espalharem pequenos pontos luminosos para todo o lado. Dessa vez,
a luz foi suficiente para que Cato conseguisse distinguir um vulto a esgueirar-se pelo declive abaixo. Porém, logo a paisagem voltou a mergulhar nas trevas. O prefeito
esforçou olhos e ouvidos, e pensou escutar gritos, antes de soar um corno que rasgou a quietude da noite e ecoou pelas colinas circundantes.
Sem se virar, Cato chamou sobre o ombro:
- Macro!
O amigo pareceu remexer-se, mas limitou-se a virar-lhe as costas e resmungar uma coisa qualquer sobre uma tenda. Cato apressou-se a chegar junto dele, debruçar-se
e abanar-lhe vigorosamente os ombros.
- Centurião, acorde!
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Desta vez os olhos de Macro arregalaram-se, e ele piscou-os várias vezes, antes de dar acordo de si. Assim que se apercebeu da expressão ansiosa no rosto de Cato,
pareceu retomar total consciência, e pôs-se de pé num salto, já com o capacete na mão.
- Senhor, o que se passa?
- Alguém está a tentar fugir do forte nativo. Deu-me a sensação de que vinha nesta direção. Quero meia centúria dos seus homens a postos junto ao portão, imediatamente.
Macro apertou o capacete e anuiu, antes de correr para a escada.
- Ora bem, rapazes! Primeira Centúria, Quarta Coorte! De pé!
Enquanto os vultos que descansavam na base da rampa interior começavam a agitar-se, Cato regressou ao parapeito do torreão, para tentar discernir a ação que decorria
na colina. Havia mais tochas a descer o declive, mas desta vez eram transportadas ao alto por homens que corriam e deslizavam pela encosta, claramente em perseguição
de alguém. Mais tochas podiam ser vistas a percorrer a paliçada, a caminho do portão das fortificações. Cato sentiu o pulso a acelerar. Quem quer que tivesse triunfado
na discussão entre a rainha Cartimandua e o seu consorte, o confronto não parecia ter acabado de forma pacífica.
Podia ter sido uma ilusão provocada pelo luar, mas Cato ficou com a ideia de ter notado movimento no meio da escura paisagem de tons cinzentos que os separava de
Isurium. No instante seguinte teve a certeza da sua perceção. Um vulto corria realmente na direção do campo romano. Sentiu-se tentado a dar o alarme e a chamar toda
a guarnição aos postos de combate. Mas só se via aquela figura isolada, e seria melhor dar aos soldados ocasião para descansar e poupar as forças que se começava
a tornar óbvio viriam a ser necessárias no dia seguinte.
Levou a mão em concha à boca.
- Macro?
- Senhor! - A resposta veio de perto do portão.
- Os seus homens estão prontos?
- E cheios de vontade, senhor.
- Ótimo. Aguardem bem junto ao portão.
O vulto que se aproximava em corrida já estava a poucas centenas de metros, atravessando as ervas altas no calor daquela sufocante noite de verão. Nesse momento,
acima do tilintar metálico das armaduras e do remexer das botas nos pés dos homens de Macro, Cato ouviu outro
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som inconfundível. Cascos de cavalos lançados a grande velocidade, a percutir o solo. O som vinha da zona da povoação, e Cato depressa os avistou, vários cavaleiros
a espalharem-se pelo terreno enquanto galopavam atrás da sua presa, determinados a derrubá-la antes de ela conseguir alcançar o campo romano.
Cato apressou-se a chegar à parte traseira da torre e a debruçar-se para procurar o vulto atarracado de Macro, lá em baixo.
- Abram o portão! Alguém se aproxima. É perseguido por cavaleiros, que estão cada vez mais perto dele. Saiam, e tragam-no para dentro em segurança.
Macro olhou para cima, o rosto quase sem se perceber na escuridão.
- Sim, senhor!
Olhou em redor, contemplando a primeira fileira da primeira centúria da sua coorte.
- Ouviram o prefeito! Tirem o fecho dos portões!
Alguns vultos escuros avançaram de pronto e Cato ouviu os homens a grunhir de esforço enquanto levantavam a pesada viga dos seus suportes. No momento seguinte foram
as dobradiças a gemer, à medida que as portadas se abriam. Então Macro deu uma ordem curta:
- Primeira Centúria! Em passo acelerado... Avançar!
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As botas dos legionários troaram sobre a terra batida da estreita passagem, à medida que eles saíam pelo portão, atravessavam o fosso e mergulhavam na noite. Macro
manteve o escudo aperrado quase por instinto, numa tentativa de manter o equilíbrio enquanto corria. A mão direita pendia livre, já que não parecia haver necessidade
imediata de empunhar a espada. Perscrutou a paisagem iluminada pelo luar que se estendia à sua frente, até que distinguiu um vulto a correr na sua direção. Encetou
a progressão para ir ao encontro do fugitivo, mas ao mesmo tempo reparou que também os cavaleiros convergiam para aquele ponto. Ia ser à justa, calculou. Aumentou
de velocidade e ordenou aos seus homens que o acompanhassem. Os cavaleiros não representavam grande ameaça para os legionários. Eram demasiado poucos. Mas isso não
os impedia de se aproximarem à desfilada, sem se preocuparem com o risco que faziam correr às suas montadas, ao precipitarem-se àquela velocidade através da noite.
Já os conseguia ouvir, a soltar brados selváticos enquanto incentivavam os animais, como caçadores que sentiam a presa ao seu alcance.
- Por aqui! - chamou Macro. - Aqui!
O vulto que abria caminho por entre as ervas correu diretamente para ele. E atrás vinham os cavaleiros de lanças já assestadas, como Macro verificou. O mais adiantado
colocou a arma em posição baixa e apontou com a precisão possível.
- Escudos à frente! Formar cunha! - berrou Macro, enquanto manejava o seu escudo e desembainhava a espada, apoiando o gume na orla da proteção. Diminuiu de velocidade
para permitir que os homens da primeira fila tomassem lugar ao seu lado, enquanto os que os seguiam iam formando filas cada vez mais largas, mesmo sem interromperem
o avanço.
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O fugitivo olhou para trás por cima do ombro e avistou o perseguidor mais próximo, quase a alcançá-lo. Lançou-se numa derradeira e desesperada correria para alcançar
a segurança da formação romana, mas tornou-se evidente para Macro que não ia conseguir chegar junto deles antes de ser apanhado pelos cavaleiros.
- Para o chão! Para baixo! - gritou-lhe Macro desesperadamente, enquanto os primeiros perseguidores se lançavam sobre o homem. Este, por ter ouvido o aviso ou por
puro instinto, acabou por se lançar para o lado e rolar pelo solo. O cavaleiro desferiu o golpe mas falhou, e teve de puxar pelas rédeas, já que o cavalo continuava
a aproximar-se dos romanos. Macro sentiu o impacto do peito do animal contra o escudo. O cavalo empinou-se e o cavaleiro voltou a tentar empregar a lança, enquanto
soltava imprecações. A ponta metálica roçou pela curva do escudo e Macro aproveitou para golpear para cima, sentindo a ponta a rasgar os tecidos.
Todavia, o cavalo afastou-se repentinamente, dirigindo-se para junto dos outros cavaleiros. Macro procurou pelo homem que tinham vindo a perseguir, e avistou um
vulto de alta estatura a erguer-se nas ervas. Adivinhava-se o cabelo solto e a mão esquerda a pressionar o ombro do lado oposto. O homem quase se atirou para o meio
da formação romana, mal se desviando de Macro. Mas ainda havia os perseguidores para considerar, e Macro nem perdeu tempo a olhar para o refugiado enquanto as fileiras
romanas se voltavam a fechar e os escudos eram erguidos contra os cavaleiros que tentavam ainda liquidar o fugitivo.
- Primeira Centúria! Alto!
As botas dos legionários fincaram-se de imediato no solo, enquanto a respiração ofegante se espalhava pelo ar, e eles enfrentaram os cavaleiros. No último instante,
estes desviaram-se, passando pelas faces da cunha, usando as lanças para tentar atingir alguém no meio da massa escura dos soldados. O estrondo dos impactos do ferro
na madeira e nas bossas de latão dos escudos rasgou o ar, mas nenhuma das lanças encontrou o alvo que procurava. Macro recuou para o interior da formação, dando
ordens para que esta se mantivesse cerrada. Virou-se e percebeu que o homem que tinham salvado estava de joelhos, ainda ofegante, a tentar recuperar uma respiração
normal.
- Estás bem, rapaz?
O outro levantou o olhar e Macro distinguiu-lhe perfeitamente as feições ao luar. Espantou-se.
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- Pelos deuses, Velocato!
O nobre assentiu e lutou para conseguir respirar.
- O vosso tribuno... Tenho de lhe falar... Imediatamente.
- Muito bem. - Macro embainhou o gládio, e ajudou o brigante a pôr-se de pé. Havia uma mancha escura no tecido sobre o ombro direito, e ele mantinha lá uma mão para
tentar estancar a hemorragia. Macro levou-o para o meio da formação e cobriu-lhe o corpo com o escudo. Os cavaleiros continuavam a rodear a compacta formação romana,
tentando em vão encontrar uma aberta entre os grandes escudos retangulares. Macro olhou para o campo fortificado e calculou que estava a mais de duzentos passos
de distância. O uivo de uma trombeta indicou-lhe que o alarme geral tinha acabado de ser dado.
- Recuar, à minha ordem! Um... Dois...
O centurião marcou a cadência e os homens foram recuando passo a passo em direção ao campo, mantendo Velocato a salvo no seio da formação. Quando se aproximaram
do campo, um esquadrão de cavalaria saiu pelo portão, a galope na sua direção, e Macro sorriu ao reconhecer o estandarte dos Corvos Sangrentos.
- Rapazes, é o prefeito! Veio buscar-nos para nos levar em segurança até ao campo.
Os cavaleiros nativos romperam o cerco, assim que deram conta da nova ameaça. Macro viu um virar-se uma última vez e colocar a lança em posição de arremesso. O homem
soltou um urro furioso e atirou o projétil na direção de Velocato. Macro atirou-se por instinto sobre a pretensa vítima, e os dois homens rolaram no solo enquanto
a lança lhes passava por cima das cabeças e ia atingir um dos legionários na coxa, rasgando-lhe a perna até irromper pelo outro lado. O romano cambaleou ao sofrer
aquele impacto e depois olhou para baixo, estupefacto perante a haste que lhe trespassava a perna.
Ouviu-se um grito de comando e os cavaleiros fizeram as montadas rodar e afastaram-se a galope na direção de Isirium. O legionário ferido embainhou a espada e baixou
o escudo para o solo com toda a calma, antes de inspecionar o ferimento com uma mão trémula.
- Tirem-lhe isso e liguem bem a ferida - ordenou Macro.
No momento seguinte, os cavaleiros auxiliares já estavam a deter as montadas em redor da formação e Cato chamou:
- Macro, tudo bem por aqui?
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- Perfeito, senhor.
- Conseguiu chegar ao fugitivo a tempo?
- Está aqui comigo. É Velocato.
Deu-se uma pausa, enquanto Cato digeria a informação e começava a sentir algum receio por tudo o que ela implicava.
- Leve-o para o campo. Vou mandar chamar o tribuno. Parece-me que o que o nosso amigo terá a dizer não lhe vai agradar.
O médico da Nona Legião tratava da ferida no ombro de Velocato,
enquanto ele apresentava a sua história aos oficiais que o rodeavam. Tinham-se reunido à entrada do campo, onde Cato dera ordens para acender um braseiro para que
houvesse luz suficiente para o médico cuidar do paciente.
- Fizeram a rainha prisioneira - continuou Velocato, com azedume.
- O Venúcio mandou detê-la. Os guardas reais foram desarmados e os homens de Venúcio começaram a arrebanhar todos os que eram conhecidos pela sua lealdade a Cartimandua.
Irrompeu uma luta numa parte do salão, e foi nessa altura que eu consegui fugir por uma das portas laterais. Fui imediatamente avistado e um deles conseguiu atingir-me
com a espada no ombro antes de eu conseguir saltar a muralha e tentar chegar ao vosso campo. Têm de nos ajudar. Têm de salvar a rainha - insistiu.
Otho e os seus oficiais trocaram olhares ansiosos, antes de Cato falar.
- O que é que sucedeu? Diz-nos tudo, exatamente como se passou. Temos de saber, antes de podermos agir.
- O que é que temos de saber que não saibamos já? - contrariou Horácio. - Ela não conseguiu manter o controlo sobre o seu próprio povo. E agora está esse renegado
no poder. Ele e Carátaco. Portanto, temos de ir lá e metê-los nos eixos.
- Espere - protestou Cato. - Temos de saber mais.
Horácio fez um jeito com a cabeça.
- Porquê, exatamente?
- Porque isto não faz sentido. - Cato virou-se para Otho. - Senhor, ontem, quando tivemos a audiência privada com a Cartimandua, ela disse-nos que tinha comprado
a lealdade do seu povo. Que lhes tinha distribuído dinheiro suficiente para isso. Lembra-se?
O tribuno anuiu.
- É verdade. Bem, parece que estava enganada.
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- Ela pareceu-me bem confiante na situação. E o mesmo aconteceu ontem à noite no salão. Havia algum apoio a Venúcio, mas claramente minoritário. Estou certo disso.
Otho relembrou a cena que presenciara.
- Tens razão. E então?
- Só há uma forma de o Venúcio ter conseguido apoio suficiente para se atrever a depor a rainha. Ele ofereceu-lhes mais dinheiro ainda.
- Isso mesmo - interrompeu Velocato. - Foi o que ele fez. Moedas de prata para todos os homens que se juntassem a ele contra a rainha.
- E ele mostrou-lhes o dinheiro? - perguntou Cato. - Viste-o?
Velocato assentiu.
- Um dos seus homens trouxe uma arca. Cheia de moedas.
Horácio suspirou, impaciente.
- Não consigo perceber para que é esta conversa toda. Não muda nada.
Cato virou-se para ele.
- Mas onde é que ele foi buscar toda esta prata? Será que tem acesso a alguma fortuna pessoal? Não se conseguem montantes destes fazendo um peditório por entre os
apoiantes.
- Seja - admitiu Horácio. - Então, como foi?
Cato deitou uma olhadela a Macro antes de responder.
- Foi ajudado por alguém do nosso lado. Um espião.
Horácio olhou para ele abismado, e acabou por soltar uma sonora gargalhada.
- Oh, vai-te lá foder! Temos um espião nativo entre nós? Misturou-se connosco e conseguiu fazer-se passar por romano, foi isso?
- Não me ouviu dizer que se trata de um nativo.
- Então o que é? Um romano, é isso? Um de nós?
- É precisamente isso que quero dizer. Alguém que foi enviado para ajudar o Venúcio a depor a rainha, e levar os brigantes a apoiar Carátaco.
Horácio abanou a cabeça e sorriu, zombeteiro.
- Cato, ouve bem o que dizes. É absurdo.
- O prefeito Cato tem toda a razão - interrompeu Macro. - Há um espião no nosso acampamento e tem por intento destruir a segurança na província.
Horácio e os outros viraram-se para Macro, surpresos. Horácio respirou fundo antes de começar.
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- Tu também? Que raio, há alguma coisa nas rações que vocês têm comido lá na escolta do comboio das bagagens? Alguns daqueles cogumelos que os druidas tanto apreciam?
- É a verdade. - Macro pronunciou-se com toda a calma que conseguiu reunir. - Eu e o prefeito fomos informados de que existe em Roma uma fação que pretende o abandono
da Britânia. O espião trabalha para eles.
- E porque é que vocês foram informados disso?
- Porque em tempos trabalhámos para o lado que se opõe a esta fação de que acabo de vos falar.
Horácio franziu o cenho, pouco agradado.
- Mas o que vem a ser isto? Tu e o prefeito também são espiões?
- Não - soltou Cato, uma vez que Macro tinha acabado de dar com a língua nos dentes. - Já não o somos. Não, desde que regressámos a esta província. Dou-vos a minha
palavra quanto a isso. Fomos informados para o caso de podermos ajudar a frustrar os planos da outra fação.
O tribuno Otho encarou-o.
- Informado? Quem é que vos informou?
Cato abanou a cabeça.
- Não podemos revelar esse facto.
- Bah! - resmungou Horácio. - Uma treta do caralho, seja lá como for. E não muda rigorosamente nada. Temos de ir lá acima. Tratar da saúde ao Venúcio e ao seu bando,
e colocar Cartimandua de novo no trono.
- É isso mesmo - concordou Velocato. Voltou-se para olhar para Otho, e o médico teve de afastar rapidamente a linha e agulha com que se preparava para coser a ferida
no ombro do nobre brigante. - É isso que têm de fazer. Não têm escolha.
Otho evitou-lhe o olhar, enquanto considerava a situação.
- Tenho pouco mais de dois mil homens sob o meu comando, e estamos em pleno coração daquilo que acaba de se tornar território inimigo. Para lá das centenas de homens
que o Venúcio deve ter ao seu dispor, haverá dezenas de milhares a juntarem-se à sua causa nos próximos dias. - Levantou o olhar. - Senhores, tanto quanto me é dado
ver, não temos de facto escolha, temos de retirar. Imediatamente.
Estabeleceu-se um pesado silêncio, que só Velocato quebrou, num apelo de voz angustiada.
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- Serão capazes de trair a vossa aliada? Vão abandonar Cartimandua à sua sorte? É assim que Roma honra os tratados que estabelece?
- Lamento - respondeu Otho. - Não há nada que possamos fazer. Seria um suicídio tentar salvá-la. Não estou disposto a arriscar as vidas dos meus homens num gesto
fútil.
Horácio olhou para o tribuno com evidente desdém.
- Os seus homens, ou a sua esposa?
Otho encarou-o, furioso.
- O que é que estás a insinuar?
- Sempre disse que não devia ter trazido a sua esposa. Não há lugar para mulheres numa campanha deste género.
Macro anuiu com veemência.
- É a minha decisão, prefeito. E sou eu quem comanda esta coluna.
- Não, senhor. Não é. Já não é. As ordens do legado foram bem claras. Se existir uma situação de combate, deverá ceder-me o comando.
- Mas se retirarmos de imediato, podemos evitar um combate.
- Não vamos retirar. Vai haver uma batalha. E serei eu a comandar a coluna nesse caso. Até tudo estar terminado. - Horácio sorriu sem vontade. Voltou-se para os
outros oficiais. - De acordo com as ordens, assumo o comando em substituição do tribuno Otho. Há alguma objeção?
O centurião Estatilo abanou a cabeça e Acer imitou-o. Os olhos de Horácio procuraram Cato.
- Então?
Apesar de o seu instinto lhe dizer que a ação mais correta era a de tentar salvar a rainha, Cato obrigou-se a ponderar brevemente as outras opções disponíveis. A
retirada era de facto uma possibilidade. Evitaria a mortandade que um ataque à colina fortificada não deixaria de provocar, quer entre os nativos, quer entre os
romanos. Mas também não tinham nenhuma garantia de que conseguiriam chegar à fronteira antes de Venúcio e os seus guerreiros os alcançarem e os obrigarem a lutar
pela vida. Podiam avançar e sitiar a colina, mas cada dia que passassem à espera que Venúcio ficasse sem comida e se rendesse era um dia que o inimigo podia aproveitar
para mobilizar reforços entre as tribos e marchar sobre os que cercavam Isurium. Não, concluiu Cato, só havia realmente um curso de ação lógico. Tinham de esmagar
a rebelião antes que esta se espalhasse, e repor Cartimandua no poder. E isso significava concordar com a mudança de comando das forças no campo.
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- Não tenho qualquer objeção.
- Macro?
- Concordo.
Horácio assentiu.
- Está então resolvido. Assumo o comando. Vou traçar os planos para um ataque ao forte assim que o Sol se levantar.
- Senhor, porquê esperar? - inquiriu Macro. - E se eles tentarem escapulir-se a coberto da noite? Se o Venúcio e o Carátaco nos escapam, nunca mais daremos com eles
outra vez.
- Não, eles vão esperar onde estão - replicou Horácio. - Julgam-se a salvo lá em cima. Embora me atreva a pensar que já devem ter enviado mensageiros a todas as
tribos, para que se juntem em Isurium assim que for possível. E é por isso que temos de resolver isto amanhã mesmo.
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Pela altura em que os soldados romanos começaram a atravessar a povoação, quase todos os seus habitantes tinham já deixado as respetivas casas. Depois de se espalhar
a notícia de que Venúcio tinha tomado o poder, muitos temeram que os romanos do campo próximo interviessem. Embrulharam rapidamente em fardos os poucos bens que
possuíam, arrebanharam todos os membros da família e levaram-nos dali para fora, procurando refúgio nas colinas circundantes, de onde podiam assistir aos desenvolvimentos
sem se verem diretamente afetados por eles. Uns poucos, porém, tinham resolvido ficar, escondendo-se em silêncio por trás de portas aferrolhadas e pedindo aos seus
deuses que lhes permitissem passar despercebidos ou ignorados.
O prefeito Horácio tinha deixado o contingente montado da sua coorte a proteger o campo, sob comando do tribuno Otho, enquanto ele conduzia o resto dos soldados
ao assalto do forte. Seguia à cabeça das suas tropas, todo empertigado na sela. À sua frente avançava uma cortina de legionários, a bater o terreno, e foram eles
os primeiros a entrar na povoação, cuidadosamente, à procura de quaisquer sinais de alguma emboscada, enquanto percorriam as estreitas ruelas que levavam à estrada
que subia a encosta. O Sol tinha acabado de nascer e as sombras abundavam ainda entre as cabanas e os redis onde os nativos mantinham os seus animais de criação.
Horácio deu ordem de alto ao corpo principal da coluna ainda no exterior da povoação, e convocou os comandantes das diversas unidades. Ainda estava tão fresco que
se justificava perfeitamente o uso de uma capa, mas Cato mal conseguiu suprimir um arrepio quando esticou o pescoço para percorrer com o olhar todo o declive até
à paliçada lá em cima.
- Só há uma forma de fazer isto - começou Horácio. - Ou seja, atacar diretamente o portão principal.
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Um grupo de homens tinha sido enviado durante a noite para abater uma árvore adequada a ser usada como aríete; a pesada carga era agora transportada por duas secções
de legionários, que avançavam lentamente sob o enorme peso.
- Centurião Estatilo, a tua coorte lançará o primeiro assalto, seguindo pela estrada. Uma centúria de proteção na vanguarda. Depois o aríete, e o resto dos teus
homens.
Estatilo anuiu.
- Tratarás de garantir que os homens que transportarem o aríete serão protegidos pelos seus camaradas, claro. Não quero baixas desnecessárias. Subam o caminho o
mais depressa possível e deem cabo do portão. A tua coorte deve ser suficiente para tomar o forte, mas os homens do centurião Acer estarão a postos se forem precisos
reforços. Infelizmente não podemos usar as balistas para cobrir o ataque, já que o ângulo da encosta é muito pronunciado.
- Isso é uma pena - comentou Macro. - Os nativos não gostam mesmo nada de receber prendas da nossa artilharia.
- Nada a fazer. Teremos de tomar o forte num ataque frontal, e pronto. A coragem e o aço romanos chegarão para esmagar Venúcio e os seus apoiantes. - Horácio virou-se
para Cato. - A única tarefa que resta é garantir que ninguém consegue escapar. Se o Velocato conseguiu pular a muralha ferido, podemos ter a certeza que outros o
tentarão também. Não queremos que os cabecilhas se ponham ao fresco, e muito menos o Carátaco. Essa responsabilidade será tua, prefeito Cato. Os Corvos Sangrentos
cercarão toda a colina, e deterão toda e qualquer pessoa que desça pela encosta. Entendido?
- Sim, senhor.
- Ótimo. Portanto, já todos sabem o que têm a fazer. Daremos início ao ataque assim que a Sétima Coorte formar no sopé da colina. - Olhou em redor e concluiu, numa
nota de confiança: - Boa sorte, senhores. Cumpram o vosso dever, e isto estará terminado pelo meio-dia. Estão dispensados.
Os outros oficiais saudaram e viraram-se para se dirigirem aos seus comandos. Cato seguiu ao lado de Macro enquanto ladeavam a coluna de legionários. A coorte de
Macro estava no fim da coluna, à frente apenas do contingente de infantaria auxiliar da unidade de Horácio. Os Corvos Sangrentos aguardavam junto aos cavalos, na
retaguarda da coluna.
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- O que acha disto? - inquiriu Cato.
- Do quê?
- Do plano do prefeito.
Macro suspirou.
- Sabes, às vezes o melhor é o mais simples.
- É verdade - admitiu Cato. - Mas não neste caso. Um assalto frontal vai ter custos pesados. Não há como evitar um grande número de baixas, se nos dirigirmos diretamente
ao portão principal. - Fez uma pausa, e apontou para o bastião exterior, junto ao qual a estrada fazia uma curva, na aproximação final ao fosso e ao portão das fortificações.
Já se viam ali dúzias de guerreiros a ocuparem lugares na paliçada, a observar o avanço das forças romanas. - Era ali que devíamos atacar primeiro, antes de fazer
avançar o aríete.
Macro contemplou as defesas de aspeto formidável.
- Isso ia levar muito tempo. O Horácio tem razão, temos de acabar com isto o mais depressa possível, mesmo que isso implique mais algumas baixas. - Sorriu, determinado.
- Colinas... Parece que nos estamos a especializar em tomá-las.
Cato manteve-se em silêncio por instantes, enquanto calculava os perigos inerentes ao assalto próximo.
- Esperemos não nos vermos a braços com um banho de sangue parecido com o que vimos na batalha contra os siluros.
- Meu caro, secundo o teu pensamento.
Retomaram a marcha ao longo da coluna, até chegarem ao estandarte que seguia na cabeça da coorte de Macro. Cato estendeu o braço e trocaram um aperto.
- Macro, tenha cuidado. Se for enviado lá para cima, lembre-se de que vai ser complicado.
- Se eu for enviado lá para cima, isso quererá dizer que o Horácio fez uma borrada monumental. Foda-se, isso não vai acontecer. Trata é de garantir que nenhum daqueles
cabrões consegue fugir.
- Não há forma de o Carátaco conseguir fazer isso outra vez. Juro-o, por todos os deuses que me são queridos.
- Se fosse a ti, não os provocava. Os deuses gostam de se divertir connosco, como já mostraram muitas vezes. Eu pelo menos já não duvido disso.
Cato riu-se.
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- Muito bem, seja. Vemo-nos mais tarde, lá em cima.
Soltaram os braços um do outro, e Cato prosseguiu na direção dos cavaleiros expectantes. Quando por fim subiu para a sela e deu ordem para montar, já conseguia ver
o brilho do Sol nascente nos capacetes da Sétima Coorte, que saía da povoação e formava por centúrias no caminho para a fortificação. Lá em cima, no bastião, finas
colunas de fumo erguiam-se no ar límpido, denunciando os preparativos dos defensores para repelir o ataque.
- Decurião Miro!
- Senhor!
Cato apontou para a colina.
- Quero os nossos homens posicionados em redor da elevação, a curta distância da base. Dois homens de cinquenta em cinquenta passos, deve chegar. Vou manter um esquadrão
de reserva, na zona à direita da povoação. Não podemos deixar passar um único homem. E queremos capturar prisioneiros. Matem-nos só se for absolutamente necessário.
O Carátaco tem de ser apanhado vivo. - Cato fez rodopiar o cavalo e ergueu a voz para que todos os seus homens o ouvissem. - Todos sabem qual é a aparência do Carátaco.
Desta vez não nos vai escapar. Se o virem, notem bem que prometo cem denários ao homem que o capturar. E dez por cada prisioneiro que não seja ele.
Via perfeitamente o brilho excitado nos seus olhos, e soube que podia contar com eles, fossem trácios ou dos novos elementos. Fariam o seu dever e combateriam pelo
seu comandante; e agora que havia dinheiro envolvido, fá-lo-iam ainda com maior convicção. Cato não receava não ter dinheiro para pagar a promessa. Facilmente o
recuperaria com a venda de quaisquer cativos aos mercadores de escravos que esperavam em Viroconium.
- Segunda Trácia! Em frente!
Colocou o cavalo num passo rápido e conduziu a coorte pela erva da altura dos joelhos, a caminho da elevação. Fez parar o esquadrão mais adiantado a curta distância
de um dos casebres e deu novas indicações a Miro para começar a distribuir o resto dos homens em redor da colina. Adiante, via os últimos legionários da Sétima Coorte
a formarem em coluna pela estrada. Junto à frente, o aríete ainda repousava no solo, com oito homens de cada lado, os escudos sobre as costas, bem presos. Era a
eles que cabia a pouco invejável tarefa de levar o pesado barrote pela
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estrada acima, até ao cume, e depois empregá-lo no assalto ao portão. E durante todo o percurso seriam um alvo apetecível para os defensores, tendo de confiar nos
seus camaradas para os proteger da melhor forma possível.
O troar das rodas de um vagão atraiu a atenção de Cato; virou-se na sela e avistou Sétimo no banco do condutor do seu veículo, a aproximar-se, vindo do campo. O
agente imperial acenou e deteve-se ao lado do esquadrão de Cato.
- Uma bela manhã, prefeito!
- Hiparco, o que te traz até aqui?
- O comércio, senhor. Negócios. Que mais? - Apontou para os legionários. - Hoje vai estar calor e o trabalho será duro. Os homens vão precisar de se refrescarem,
e o que poderia ser melhor do que uma caneca do meu excelente vinho? Além disso, assim posso assistir de perto - acrescentou, num tom quase conspiratório. - Quem
sabe o que pode um humilde civil aprender aqui hoje.
Uma trombeta anunciou o início do ataque e os dois homens concentraram a atenção na Sétima Coorte, à medida que a centúria na vanguarda começava a progredir.
- Bem, senhor, será melhor que me vá colocar. - Sétimo levou os nós dos dedos à testa e fez estalar o chicote, para convencer as mulas a avançar. O vagão lá rolou
sobre a superfície irregular, e desapareceu pelo meio da povoação. Sentado ali na sela, Cato sentiu-se dorido e fatigado. Não tinha dormido na noite anterior e tinha
a mente nublada pela fadiga. Ao que parecia, Sétimo e o seu amo, Narciso, tinham tido razão desde o início; havia traidores a conspirar para provocar o colapso das
ambições romanas na Britânia. Se Carátaco fosse capturado com vida, seria sem dúvida levado para Roma e arduamente interrogado para revelar as identidades dos romanos
que tinham secretamente patrocinado a sua causa.
Por forte e duro que Carátaco fosse, Cato não tinha ilusões quanto à habilidade do rei inimigo para aguentar os especialistas em tortura que o secretário imperial
tinha ao seu serviço. Acabaria por revelar tudo o que sabia, e depois haveria as consequências expectáveis: discretos mas sangrentos fins para todos os que fossem
implicados numa conspiração contra o Imperador Cláudio. Seria bem melhor para eles que Carátaco perecesse ali mesmo, naquele dia, a combater os seus inimigos
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romanos até ao último fôlego. E era um destino que ele merecia, muito mais do que ver-se de espírito quebrado pelos verdugos de Narciso, admitiu Cato. No fim de
contas, combatera pela liberdade do seu povo. E continuara a combater quando outros reis de menor valia se tinham inclinado perante Roma, ou tinham aceitado pagamentos
de Roma para se tornarem mascotes do Imperador. Havia nele qualquer coisa de heroico, e Cato desejou ao seu persistente inimigo um fim melhor do que a perspetiva
de expirar em sofrimento numa masmorra escura, húmida e esquecida, nas entranhas do palácio imperial.
Um raio escuro desenhou um arco pelo ar e uma seta flamejante atingiu o pináculo do seu voo e mergulhou sobre as fileiras mais adiantadas da Sétima Coorte. Dado
o sinal, os arqueiros posicionados no bastião defensivo soltaram uma verdadeira barragem de setas pela encosta abaixo, e Cato viu as hastes escuras a embaterem e
desfazerem-se contra os escudos vermelhos dos legionários. Algumas cravavam-se na madeira e davam a sensação de pelos eriçados nas costas de um comprido e escamoso
inseto formado pela coorte, a descrever entretanto a primeira curva na estrada que ziguezagueava até ao forte nativo.
Pouco depois de os primeiros legionários começarem a percorrer a reta seguinte, aconteceu a primeira baixa: um homem com uma seta a sair-lhe da perna num ângulo
pronunciado. O soldado saltitou para fora do percurso dos seus camaradas e, mantendo-se debaixo do escudo, começou a descer a custo a encosta relvada. A segunda
baixa seguiu-se rapidamente, quando um dos homens que transportavam o aríete foi derrubado por uma seta que lhe trespassou o pescoço, depois de acertar por baixo
da guarda do capacete. Caiu na estrada e um optio apressou-se a mandar outro homem ocupar a sua posição, enquanto ele arrastava o cadáver para a berma da estrada.
A coorte descreveu outra curva e começou a percorrer a extensão que ficava mesmo por baixo do bastião. Cato avistou labaredas ao longo do parapeito e fumo espesso
que se libertou quando os defensores começaram a atirar molhos de material em chamas, lançando mão de forquilhas com que os faziam passar sobre a paliçada e o muro
de terra. Os feixes incendiários brilhavam fortemente enquanto voavam pelo ar. O ângulo da encosta era tão íngreme que eles não se desfaziam quando embatiam no solo,
e antes continuavam a rolar pelo declive, contra o flanco direito e exposto da coluna de soldados romanos. Esta deteve-se, já que
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os legionários tentaram sair do caminho dos feixes de paus embebidos em piche. Cato viu uma fila completa de homens a cair no solo e, quando um deles se levantou,
tinha a túnica a arder com material pegajoso. O homem largou o escudo e começou a tentar bater as chamas, enquanto os seus camaradas se afastavam dele. Foi atingido
por uma seta, e outra, e caiu para fora da estrada, rebolando pela encosta abaixo, ainda a tentar desesperadamente extinguir as chamas.
Mais legionários foram derrubados pela ação dos feixes em chamas e foram queimados até que os optios e centuriões ordenaram aos homens à direita da coluna para mudarem
a posição dos escudos para a outra mão. Uma secção foi enviada para proteger o flanco dos transportadores do aríete, três dos quais já tinham sido queimados ou atingidos
por setas. A coluna retomou o avanço, debaixo de um bombardeamento incessante de setas, pedras, dardos e feixes em chamas.
Cato observou a cena com um crescente sentimento de desespero, ao ver mais legionários a serem atingidos e a encosta por baixo da estrada ficar salpicada com fulgores
de armaduras e túnicas vermelhas dos feridos que tentavam alcançar a segurança da base da colina. Acima deles, a paliçada do bastião estava apinhada de guerreiros
brigantes, e mais algumas centenas deles observavam das muralhas do forte, aplaudindo os seus camaradas com tal vigor que os seus brados chegavam facilmente aos
ouvidos das unidades romanas que observavam em silêncio a tentativa de assalto da Sétima Coorte. Por fim, os sobreviventes da centúria da vanguarda descreveram a
última curva, entre o bastião e o corpo principal do forte, e aproximaram-se do portão, saindo do campo de visão de Cato. O aríete seguiu-os e Cato perguntou-se
quantos dos que tinham começado a transportá-lo ainda estariam vivos. As centúrias seguintes progrediram também, embora o passo fosse ficando cada vez mais curto,
até que todos se imobilizaram.
Um faiscar súbito numa zona mais baixa da encosta atraiu-lhe o olhar, e ele viu um oficial a cavalo, a galopar pela estrada acima. Era Horácio, compreendeu Cato.
O prefeito diminuiu o andamento ao passar pelo primeiro dos feridos e depressa se viu obrigado a levar o cavalo a passo, quando alcançou a retaguarda da coluna.
Desembainhou a espada, ergueu-a bem ao alto e apontou para o forte, incitando os homens enquanto passava por eles, tentando chegar à frente da coorte. Chegou à última
curva e pareceu sumir de vista, como se tivesse desaparecido.
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Cato esforçou o olhar mas não viu sinal do oficial. Nem capacete com plumas, nem sequer o cavalo. E então avistou por fim o animal, de sela vazia e manchada de sangue,
a descer espavorido pela encosta abaixo. Atrás do animal, os legionários começavam a recuar.
O coração de Cato encheu-se de pesar e frustração, enquanto assistia à retirada. Já não havia sinal do aríete, abandonado, sem dúvida, algures na zona letal entre
o forte e o bastião, enquanto os seus guardiães fugiam com os seus camaradas, livres por fim para retirarem os escudos das costas e os usarem para se protegerem
dos projéteis que choviam sobre eles. Muitos homens foram abatidos na fuga, e os mais afortunados levantados do solo e ajudados pelos seus camaradas à medida que
a Sétima Coorte descia em desalinho a estrada, para longe do alcance das pedras, depois dos dardos e por fim das setas. Os mais otimistas dos defensores tentaram
os últimos disparos antes de se tornar evidente que o inimigo já estava fora de alcance. Um coro triunfante ergueu-se então das gargantas dos brigantes, enquanto
contemplavam os cadáveres e o equipamento abandonado, espalhado pela área fronteira ao forte. Os restos de alguns feixes ainda ardiam no fundo de rastos de terreno
chamuscado que atravessavam a encosta. Alguns dos feridos tentavam arrastar-se para uma área segura antes que atraíssem a atenção do inimigo.
Cato abanou a cabeça, desesperado. O assalto falhara, tal como ele tinha temido, e ao que parecia Horácio colocara-se pessoalmente em perigo e fora derrubado do
cavalo, ainda por cima. A Sétima Coorte tinha sofrido pesadas baixas, e dificilmente se atreveria a conduzir outro ataque do mesmo género; e o mesmo se passaria
com o resto da coluna, que tinha testemunhado o castigo que ela sofrera.
- Bem, e agora? - soltou uma voz de entre os homens nas costas de Cato. Espreitou por cima do ombro e viu Thraxis a abanar a cabeça.
- Uma desgraça, foi o que foi.
Cato olhou para ele por momentos, tentado a partilhar as suas dúvidas. Mas decidiu que não podia minar a autoridade de outro oficial à frente dos homens. Portanto
optou por soltar um aviso.
- Silêncio nas fileiras!
Voltou-se de novo para a frente, e tentou imaginar o que se ia passar. Quando Horácio regressasse à segurança da povoação, teria de rever o seu plano, enquanto lhe
tratavam dos ferimentos. Cato tinha esperança de que ele decidisse tentar outra abordagem. O bastião tinha de ser a
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prioridade. Até ser neutralizado, os romanos nunca conseguiriam aproximar-se do portão, muito menos derrubá-lo com o aríete, sem sofrerem pesadíssimas baixas.
Cato ainda considerava os vários ângulos da situação quando avistou um cavaleiro a galopar à saída da povoação e a virar a montada para o esquadrão dos Corvos Sangrentos.
No momento seguinte um ordenança do quartel-general deteve o cavalo e saudou-o.
- O centurião Macro envia os seus cumprimentos, senhor - disse, com a respiração entrecortada. - O prefeito Horácio está morto.
- Morto?
O soldado assentiu.
- Morto pelo impacto de um pedaço de metralha, senhor. Atingiu-o no rosto. O corpo foi trazido para baixo há pouco. O centurião Macro enviou-me para o informar.
- Estou a ver.
- Há mais, senhor... o centurião Macro informa-o também de que o comando da coluna lhe pertence, senhor.
Cato ficou imóvel, tenso. Evidentemente. O amigo tinha toda a razão. Era ele quem se seguia na cadeia de comando. A responsabilidade caía agora toda sobre ele. Virou-se
na sela para olhar para Thraxis.
- Vai ter com o decurião Miro e diz-lhe para assumir o comando de todo o contingente. Diz-lhe o que aconteceu, e diz-lhe também que eu estarei na povoação.
- Sim, senhor! - Thraxis fez uma saudação rápida e incitou a montada, saindo da formação e galopando em torno da colina.
Cato virou-se para o ordenança.
- Vamos.
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- Mas que estupidez - protestou Macro, enquanto contemplavam
o cadáver do prefeito Horácio, que tinha sido colocado sobre
um leito, numa das cabanas. Ele e Cato estavam a sós com o corpo e o médico que tinha tentado cuidar da ferida que provocara o fim do oficial. Ainda envergava a
armadura, mas o capacete tinha sido removido; todavia, mesmo sem ele, reconhecê-lo teria sido uma dura tarefa, até para os seus amigos mais próximos. O projétil
atingira-o ligeiramente à direita da cana do nariz, e pulverizara a cartilagem e desfizera a área da arcada, antes de penetrar pelo olho e se ir alojar no cérebro
do homem. Deixara no seu rasto uma cratera de osso, carne rasgada e sangue, que desfigurava por completo a face de Horácio. Ao seu lado, no solo, jazia o centurião
Estatilo. Também ele morto. Atingido por uma seta que lhe rasgara uma artéria na zona da virilha. Tinha-se esvaído em sangue no caminho, antes que os homens que
o transportavam alcançassem a povoação na base da colina.
- Afinal de contas, o que estava o Horácio a fazer lá em cima?
Macro tentou relembrar os acontecimentos.
- Ele percebeu que o ataque estava a perder o ímpeto e irritou-se. Tentei dissuadi-lo. Mas ele saltou para o cavalo e arrancou lá para cima. Sobressaía no meio das
tropas como um gigante. Todos os nativos o notaram e o tomaram como alvo. O estranho foi ele ter avançado tanto como avançou antes que alguém lhe acertasse. - Macro
fez estalar os nós dos dedos. - Seja como for, foi um ar que lhe deu, foi uma pena, e essas coisas todas...
- E o que quer isso dizer?
- Que, agora, à frente das coisas está alguém que as sabe conduzir.
Macro ergueu o queixo e adotou toda a formalidade
- Senhor, as suas ordens?
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Cato tinha tido pouco tempo para avaliar a situação enquanto se dirigia para ali, depois de deixar os Corvos Sangrentos. Apressou-se a organizar as ideias.
- Primeiro, os feridos. Os que estão em condições para isso, que regressem por si mesmos ao campo. Os outros devem ser levados em carroças. Que, já agora, podem
também trazer as balistas para a frente.
- Para que é que vamos precisar delas? O Horácio tinha razão quanto a uma coisa. O ângulo é demasiado grande para as podermos usar.
- Daqui de baixo é, sim - admitiu Cato. - Mas desmontem-nas e tragam-nas em peças. Ainda nos vão dar muito jeito.
Macro franziu o sobrolho. Porém, Cato já continuava a dar ordens, antes que ele pudesse levantar mais objeções.
- Depois, quero machados e picaretas para dez homens, e cordas, trazidos dos armazéns. E todas as fundas, e munições para elas, que tivermos disponível. Vou nomear
um novo comandante para a Oitava Coorte. O Acer que se encarregue da Sétima até isto terminar. Vão precisar de descansar um bocado, depois da tareia que apanharam.
A sua coorte é a próxima a subir a colina.
- Temos poucos homens. À partida, menos do que a Sétima. Mas é verdade que são tipos duros. - Fixou Cato com um olhar inflexível. - Estamos prontos, senhor. Dê a
ordem.
Cato sorriu.
- Tudo a seu tempo, Macro. Ainda temos alguns preparativos a fazer antes desse momento. - Virou-se para o médico. - Trata de levar o Estatilo e o Horácio para o
campo, e depois cuida dos feridos.
- Sim, senhor - respondeu o médico com a saudação formal.
Cato e Macro deixaram-no na cabana e saíram para o sol. A manhã
ainda não estava a meio e o dia apresentava-se quente e claro. Ambas as bermas da rua estavam cheias de feridos, muitos deitados no solo, outros sentados ou de pé,
com expressões de dor enquanto aguardavam vez para serem vistos pelo médico.
- Macro, quero que regresse ao campo e reúna o material que lhe pedi. Depois volte para aqui com o equipamento, o mais depressa possível.
Macro ofereceu ao seu superior a saudação regulamentar e afastou-se, para cumprir as ordens. Cato abriu caminho por entre os feridos e saiu da povoação, pelo lado
que dava para a fortificação na colina. A
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coorte de Macro e a Oitava descansavam no espaço aberto, à espera de ordens. Ao avistarem o novo comandante, todos os olhares se concentraram nele, expectantes,
mas ao perceberem que ele estava apenas interessado em observar as defesas nativas, quase todos regressaram às suas conversas em tons calmos.
Cato escrutinou cuidadosamente o bastião inimigo, de ponta a ponta, e depressa reparou que os postes que constituíam a paliçada eram mais baixos no canto junto à
última curva da estrada, antes de esta seguir a direito até ao portão. Ou os brigantes que tinham construído o forte tinham usado troncos de comprimento desigual,
ou o terreno dera de si naquela área, considerou Cato. Se tivesse sido esse o caso, seria uma boa ajuda para o plano que tinha gizado. Pelo menos na sua fase inicial.
Não evitaria a necessidade de um combate que antevia selvagem pela conquista do bastião, mas se isso fosse conseguido com alguma rapidez, todo o forte lhes cairia
nas mãos. Tudo dependia de conseguir tomar aquela fortificação avançada, sabia-o bem. Ia ser perigoso, e os homens teriam de ser comandados por oficiais que lhes
oferecessem um claro exemplo de coragem, e lhes mostrassem como conseguir concluir aquela tarefa árdua. Sorriu sem vontade. Um trabalho feito à medida para Macro
- e para ele próprio.
Já era meio-dia quando, depois de reunido todo o material que Cato solicitara, os homens foram informados do plano. A infantaria auxiliar tinha sido dividida em
pares. Um homem transportaria um escudo de legionário para se cobrir a si e ao companheiro designado, enquanto o outro manejaria uma funda e levaria uma sacola cheia
de munição. Iam progredir pela encosta, fora da estrada, para tomar posições que lhes permitissem cobrir o avanço da pequena força que Cato ia liderar em pessoa.
Duas secções da coorte de Macro transportavam as ferramentas e as cordas, enquanto o resto da Primeira Centúria formaria um testudo, para lhes dar proteção.
Cato deu uma última olhadela aos homens que o rodeavam.
- Lembrem-se, quando chegarmos ao bastião, temos de ser rápidos. Vão atirar-nos para cima com tudo o que tiverem à mão; isto tem de ser feito, mas não quero perder
nenhum homem desnecessariamente.
Virou-se para o centurião veterano que tinha escolhido para liderar a Oitava Coorte. Lebausco era um tipo grande. Destacava-se entre os
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outros pela estatura, que tinha correspondência no volume. As suas origens germânicas eram óbvias para todos, graças ao cabelo claro, queixo quadrado e penetrantes
olhos azuis.
- Quando eu der o sinal, leva os homens pela encosta acima, e depressa. Não parem por nada. E não deixem de avançar até termos acabado com a espécie daqueles cabrões
lá no bastião, até ao último.
Lebausco riu-se.
- Senhor, pode contar comigo. E com os rapazes. Não o deixaremos ficar mal.
- Fico feliz por o saber. - Cato olhou por fim para o último oficial que tinha um papel a desempenhar no ataque iminente. - Acer, os teus grupos vão seguir a Oitava
assim que eles se puserem em movimento. Quero as balistas prontas a serem montadas no momento em que tomarmos o bastião. E com as munições preparadas. Vamos varrer
aquele portão antes que eles percebam o que se está a passar. - Fez uma pausa e dirigiu-se a todos. - Isto terá de ser rápido e sangrento. Ao fim do dia, estes nativos
já terão ficado a saber da facilidade com que o exército romano os consegue fazer dobrar os joelhos. Quero que as notícias do que aqui se passar se espalhem por
toda a nação brigante. Que fiquem bem cientes do que os espera, se alguma vez voltarem sequer a pensar em dar-nos que fazer. Uma última coisa. Carátaco. Tem de ser
apanhado vivo. Firam-no, se tal se revelar absolutamente necessário, mas só os deuses poderão auxiliar quem pense em ganhar uma reputação por ter matado o maior
inimigo de Roma. Carátaco é uma presa que o Imperador quer todinho para si. Há questões?
Os oficiais e homens escolhidos para compor os diferentes grupos mantiveram o olhar fixo em frente, e ninguém abriu a boca.
- Ótimo. - Cato bateu as palmas. - Então, meus senhores, vamos a isto!
Acer e Lebausco apressaram-se a juntar-se às suas unidades. Cato desapertou o fecho da capa e deixou-a escorregar dos ombros. Apanhou-a antes de cair no solo, e
dobrou-a cuidadosamente; fez uma breve pausa e sorriu, enquanto recolhia as dobras soltas.
- Foi a Júlia que ma deu, antes de deixar Roma.
- Nesse caso, ela ficará feliz por esta capa te ter servido bem - comentou Macro, em tom amigável. - E ainda mais lhe agradará ver-te com ela posta, quando regressares
para junto dela.
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- Sim.
Deu-se um breve silêncio, até que Macro voltou a falar.
- Escuta, não há qualquer necessidade de te meteres nisto pessoalmente. Eu posso tratar de tudo.
Cato abanou a cabeça.
- Não me importo de sujar as mãos.
- Sei-o perfeitamente. - A expressão de Macro tornou-se mais séria. - Estou mais preocupado com o que pode acontecer-nos a todos se te fizeres matar. Já perdemos
dois oficiais superiores. Se tombares também, caber-me-á a mim ou ao tribuno Otho levar a missão a bom fim, ou levar os rapazes até à fronteira em segurança. E não
tenho a certeza de que quer eu ou ele estejamos à altura de qualquer uma dessas tarefas.
- Se for preciso, Macro, safar-se-á bem. Além disso, já dei as ordens. Os homens estão à espera que eu os lidere. O que é que ficarão a pensar se eu recuar à última
hora? Tenho mesmo de ir lá acima.
Macro soprou as bochechas e assentiu.
- Muito bem. Mas mantém a cabeça baixa.
Cato sentiu o suor nas palmas das mãos e dobrou-se, para pegar num punhado de solo seco e solto na berma da estrada. Espalhou algum entre as mãos para se livrar
da humidade e ter a certeza que a arma não se lhe escaparia das mãos. Depois pegou num machado e num baraço de corda, respirou fundo e sacudiu os ombros.
- Vamos a isto.
Dirigiram-se para junto dos homens da coorte de Macro, que aguardavam na estrada, de escudos apoiados no solo. No centro da formação havia um espaço aberto, onde
Cato e o grupo de demolição se acolheram, enquanto Macro pegava no escudo e se ia colocar na primeira fileira.
- Primeira Centúria, Quarta Coorte! Preparar para avançar.
Os homens empunharam os escudos e aguardaram, prontos a pôr-se em movimento. Quando todos se imobilizaram, Macro virou-se para a frente.
- Avançar!
A centúria começou a deslocar-se, fileira após fileira, até que toda a unidade começou a subir a estrada. Por cima deles, Cato avistou faces a espreitarem sobre
a paliçada do bastião, já que ao inimigo não escapara o início de uma nova investida romana. Assim que os legionários começaram a subir pelo caminho, também os auxiliares
se puseram
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em movimento, trepando dissimuladamente por entre as ervas, até se aproximarem o suficiente das defesas para usarem as fundas com eficácia. Pouco caminho tinham
coberto quando as primeiras flechas começaram a zunir pelo céu e a precipitar-se na sua direção. Os homens continuaram a progredir, mantendo-se atentos aos projéteis,
que de vez em quando os obrigavam a dar saltos para o lado ou a cobrirem-se com o escudo. Daí a pouco já estavam ao alcance das defesas, e depressa se estabeleceu
uma contínua troca de projéteis entre os defensores e os auxiliares.
Cato assentiu, satisfeito. Os fundibulários tinham como missão servir de distração, ainda mais do que de ameaça, para os defensores no bastião. Tirava alguma pressão
de cima dos homens de Macro, enquanto avançavam para a posição que lhes fora designada. Olhou para trás e viu Lebausco a conduzir a sua coorte à posição inicial,
e mais atrás ainda avistou os homens carregados com as peças das balistas e com cestos repletos dos mortíferos dardos com pontas de ferro, que se tinham mostrado
tremendamente eficazes contra as tribos que Roma combatera desde que as suas tropas tinham desembarcado na Britânia.
Macro levou a centúria pelo caminho serpenteante, que mudava de direção com regularidade à medida que subia pela encosta. As primeiras setas começaram a tombar por
perto, esguias hastes com penas que pareciam irromper do solo subitamente, como flores a nascer por entre as ervas.
- Alto! - ordenou Macro. O som das pesadas botas em marcha cadenciada interrompeu-se. - Escudos ao alto!
Os pesados retângulos de madeira entrechocaram-se quando os legionários os ergueram acima das cabeças e apoiaram parte do peso nas cristas dos capacetes.
- Cerrar fileiras!
Os legionários apertaram-se e Cato viu-se de repente cortado da luz solar e imerso num mundo sombrio de homens a suar profusamente e a respirar pesadamente. O grupo
de demolição ficou no meio dos seus camaradas, e os homens viram-se obrigados a dobrarem-se para permitir que todos os escudos se encostassem e cobrissem também
o centro da coluna.
- Avançar!
Voltaram a mover-se, e os sons dos homens ecoavam nos ouvidos
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de Cato. Lá em cima havia setas e pedras a embaterem nos escudos, e de vez em quando um dos projéteis trespassava a superfície de proteção, fazendo soar um estalido
seco. A vontade de escapar dos confins daquela formação abafante era tremenda e o prefeito teve de recorrer a toda a sua força de vontade para se manter a par dos
homens. Ao descrever a curva seguinte quase pararam; era a última secção de estrada a percorrer antes de ficarem diretamente por baixo do ponto que queriam atacar
no bastião.
- Cá estamos - gritou Cato a Macro. - Preparem-se.
Avançaram mais alguns passos, até que Cato deu ordem de alto.
Sentia o coração a bater furiosamente, quer do esforço da subida naquelas condições, quer pelo medo do que se ia seguir. Fletiu os músculos e aguardou pelo momento
de dar a ordem.
- Desfazer a formação! Para a direita!
Os escudos mudaram imediatamente de disposição e a luz bateu em cheio no rosto de Cato, cegando-o por breves instantes. Piscou os olhos. Havia corpos a mexerem-se,
a saírem da estrada e a começarem a trepar a curta distância que os separava da esquina mais próxima do bastião. Cato imitou-os, segurando no machado com a mão direita
e usando a esquerda para se ajudar na subida. Ao seu redor, os legionários grunhiam e ofegavam com o esforço de trepar, e pedras e setas começavam a tombar sobre
eles, vindos da paliçada. Colocados nos dois flancos, os fundibulários auxiliares aproveitaram para enviar nova revoada de projéteis, renovando os esforços para
distrair os defensores, perturbando-lhes a pontaria ou obrigando-os a proteger-se. Ainda assim, Cato viu um homem à sua direita a ser abatido, uma haste de seta
a sobressair-lhe da base da espinha, mesmo abaixo da couraça protetora. Outro foi atingido no capacete por uma pedra e tombou inanimado sobre a erva, onde foi pisado
por um camarada que o seguia. Cato chegou ao pé de dois homens abrigados por trás dos escudos, de cabeças bem escondidas, à espera que o tormento terminasse. Sem
perder tempo, abanou o mais próximo com violência.
- Avança! Continua a andar, se não queres morrer aqui mesmo!
O homem pareceu despertar do torpor, e anuiu. Deu um empurrão ao companheiro e os dois começaram a progredir de novo. Cato lançou-lhe um sorriso de encorajamento
e no instante seguinte ouviu, mais do que sentiu, o impacto de uma seta. Olhou para baixo e avistou
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as penas, depois a haste e por fim a base, que desaparecia nas costas da sua mão esquerda. Por instinto, tentou afastar a mão, mas a ponta da seta tinha-se ido cravar
no solo, depois de lhe trespassar a carne. Largou o machado, pegou na haste da seta junto às costas da mão e puxou-a do meio das ervas; sentiu algum alívio ao verificar
que se tratava duma seta estreita e leve, do tipo criado para trespassar armaduras e não para provocar largos rasgões no corpo dos inimigos. Cerrou os dentes e voltou
a segurar na haste com firmeza. Não havia tempo para hesitações, nem para antecipar a dor. Puxou-a com força, e sentiu os ossos da mão a mexerem-se, à medida que
a fina ponta metálica os voltava a atravessar e se libertava por fim, provocando um jato de sangue brilhante, e um auge de agonia.
Deitou fora a seta, voltou a pegar no machado, e cerrou o punho da mão ferida, para tentar deter a hemorragia e lhe dar apoio enquanto progredia, de lábios firmemente
cerrados. Olhou para a frente e viu que Macro e vários dos seus homens já tinham alcançado a base da paliçada, e tinham começado a criar uma espécie de telhado com
os seus escudos, para proteger o grupo encarregado da demolição. Cato trepou pelos últimos metros da encosta e alcançou a área protegida; largou de novo o machado
e tirou o baraço de corda que levava à bandoleira. Fez uma careta ao examinar a ferida, um buraco de aspeto horrível, que sangrava sem parar. Macro reparou no gesto
e fez também uma careta.
- Isso deve doer, senhor.
- Foda-se, dói e não é pouco. - Cato desapertou o pano que usava ao pescoço e fez um pedido ao legionário mais próximo. - Liga-me a mão.
O homem fez o que lhe era pedido, enquanto Cato examinava com atenção o solo na base da paliçada. Apercebeu-se de que de facto o terreno tinha cedido pelo menos
uns trinta centímetros em volta da esquina do bastião, o que denunciava a sua pouca firmeza.
- Aqui! Vamos escavar.
Vários homens pegaram nas picaretas e lançaram-se ao trabalho, desfazendo o solo e atirando-o para longe. Sobre eles continuavam a precipitar-se flechas e pedras
em profusão; escutaram subitamente o som de labaredas, e uma vaga de calor atingiu-os quando um feixe em chamas se desfez contra os escudos, projetando material
em fogo sobre as ervas que ladeavam os homens que os seguravam. Mas o solo
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continuava a ceder com facilidade, e depressa tinham posto a descoberto mais de meio metro da parte enterrada dos postes da paliçada.
- Continuem - instou Cato, inclinando-se para testar a superfície das madeiras, escuras e suaves devido à idade e à humidade. Virou-se para um dos homens do grupo.
- Pega num machado e corta aqui. Desbasta isto o melhor possível.
O soldado assentiu e Cato recuou, para lhe dar espaço para manejar a ferramenta. O homem desferiu golpes com toda a força de que era capaz naquele espaço confinado,
e o som do machado a embater na madeira ressoou no ar. Depressa começaram a voar estilhaços. O suor escorria pela testa do legionário, enquanto ele abria dois sulcos
no tronco, que tinha quase trinta centímetros de diâmetro. Sabia perfeitamente o que tinha a fazer, pelo que Cato não precisou de lhe dar mais instruções. Assim
que conseguiu criar uma abertura suficientemente larga para prosseguir, largou o machado, pegou na adaga e atacou o solo do outro lado, remexendo a lâmina para afastar
a terra húmida, até ter espaço suficiente para passar uma corda em torno do poste. Cato entregou-lhe a ponta, e o soldado fê-la passar rapidamente uma vez e outra
pelos buracos, antes de a atar e lançar o resto da corda pela encosta abaixo.
- Aí está o primeiro - gritou Cato a Macro. - Mais dois devem chegar.
- Despachem-se! - ripostou o centurião, enquanto o escudo abanava com o impacto de uma pedra. - Ali em cima dão ares de estarem a ficar mesmo chateados.
Os homens com as picaretas renovaram a fúria com que se lançavam sobre o terreno, removendo torrões em séries de golpes rápidos, até que conseguiram deixar expostas
as bases de vários postes, com um aspeto que fazia lembrar velhos dentes podres. Um homem mais fresco avançou para substituir o que estivera a usar o machado, e
depressa fez novas aberturas nas quais um terceiro elemento fez rapidamente passar as cordas. Cato experimentou os nós com a mão intacta. Depois de verificar que
iam aguentar, lançou uma derradeira ordem.
- Já está! Todos às cordas!
O grupo largou as ferramentas e juntou-se aos outros homens que deslizavam pela encosta abaixo e tomavam posição, agarrados às cordas que corriam ao longo do declive.
Cato permaneceu junto aos postes, de pé entre duas das cordas, e de costas para a paliçada.
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- Estiquem!
Apesar de expostos aos projéteis inimigos, os homens de Macro pegaram nas cordas com ambas as mãos, fincaram as botas no terreno e esperaram por nova ordem.
- Puxem!
As cordas retesaram-se e Cato testou a mais próxima com as pontas dos dedos, sentindo a tensão e tentando adivinhar o movimento que indicaria que o poste ia ser
arrastado.
- Todos juntos! - gritou Macro. - À minha ordem... força!
Os homens agarrados às cordas grunhiram, bramaram e soltaram imprecações enquanto puxavam com todo o peso e força, num esforço tremendo para derrubar os postes da
paliçada. Mas Cato não pressentiu qualquer movimento, e experimentou outra das cordas, temendo já que não tivesse dado tempo ao grupo para escavar o suficiente nas
bases dos troncos.
- Cabrões. Mexam-se, vá...
Um grito súbito atraiu-lhe o olhar para um dos homens que puxava. Tinha largado a corda e estava agarrado ao cabo de um dardo, que lhe tinha trespassado a cota de
malha no ombro. A tensão naquela corda desceu de imediato.
- Continuem a puxar! - berrou Macro e a linha esticou de novo. Desta vez Cato teve a certeza de sentir um minúsculo movimento nas pontas dos dedos. Não passara de
um ligeiro tremor, mas renovou-lhe a esperança.
- Está a mexer-se! - gritou. - Macro, outro puxão!
- Rapazes, vamos a isto! Todos juntos. Um, dois, três, força!
Daquela vez foi mais evidente, e Cato até julgou sentir a corda a
descer muito ligeiramente, e que o poste nas suas costas também se remexeu.
- Vai resultar! - gritou com júbilo. - Está a mexer! Força!
O solo na base do poste começou de repente a escorregar e Cato olhou para cima e viu que o topo do tronco oscilava contra o fundo claro do céu limpo. Outro poste
também se mexeu, e por momentos Cato nem sentiu a dor que lhe queimava a mão, enquanto sorria como uma criança, feliz pelo resultado da sua traquinice. Sentiu terra
fria a salpicar-lhe os braços, no momento em que se começaram a abrir brechas entre os troncos da paliçada, e já ria abertamente quando o seu olhar se cruzou
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com o de Macro. Mas a expressão do amigo ilustrava apenas uma crescente preocupação com o que via.
- Isso está tudo a ceder! Sai da frente, pateta! - gritou-lhe Macro.
Cato sentiu o poste atrás de si a mexer-se e ouviu o gemido das madeiras a roçarem uma pela outra. A sua excitação de havia momentos transformou-se instantaneamente
num temor gelado, que o fez lançar-se para longe da esquina do bastião e escorregar pela encosta abaixo. À sua frente, os legionários tinham largado uma das cordas,
e corriam para os lados. O pesado tronco passou por ele com um rugido, a acelerar pelo declive.
- Afastem-se! - ouviu Macro a gritar aos seus homens.
Outro dos troncos ruiu do outro lado de Cato, e de repente o solo pareceu ceder debaixo dos seus pés como se fosse água, e um tremendo peso atingiu-o nas costas,
atirando-o de cabeça pelo ar e mergulhando-o na escuridão, no silêncio e na imobilidade absoluta.
A princípio perguntou-se se seria aquilo a morte. Uma infindável escuridão fria, que lhe envolvia a mente, sem consciência de um corpo. Fazia sentido, se aceitasse
que havia alguma essência íntima que correspondesse ao ser. Surpreendeu-se ao ver que ainda raciocinava calmamente e nesse momento voltou a sentir a dor na mão,
e descobriu que estava a tentar respirar. Lá se ia a descoberta do mundo para lá da morte, lamentou-se, enquanto tentava mexer-se. Sentiu o solo a remexer-se entre
os dedos. Esticou o braço tanto quanto conseguiu, e tentou mexer as duas pernas ao mesmo tempo. Os pulmões ardiam-lhe e o ar em volta da sua boca e nariz parecia
quente e sufocante, pelo que o medo começou a tomar posse da sua mente. Enterrado vivo. Ia sufocar até à morte. Redobrou os esforços para se libertar, mas não conseguiu
sequer perceber qual a direção correta para a superfície do terreno. E então o pânico tomou posse do seu ser.
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- Foda-se, mas onde raio se meteu o prefeito? - gritou Macro, enquanto se levantava e cobria de novo o corpo com o escudo. Em redor, os homens começavam a levantar-se
e a sacudir a terra que lhes tinha caído em cima quando a esquina do bastião cedera e provocara a derrocada que tomara conta da encosta. Um dos legionários tinha
sido esmagado pela ponta de um dos troncos, e jazia imóvel, quase pregado ao solo. Os romanos não estavam sozinhos no terreno remexido do declive. Alguns elementos
inimigos tinham também sido arrastados na derrocada, e tentavam igualmente libertar-se do monte de terra que ficava por baixo do que era agora uma brecha na paliçada.
Os postes que os romanos tinham conseguido puxar haviam provocado o deslizamento da terra acumulada por trás deles, e tinham arrastado outros postes de ambos os
lados, deixando alguns dependurados em ângulos estranhos dos dois lados da abertura.
Macro empunhou a espada; sabia que tinham de aproveitar a vantagem momentânea. Agitou-a no ar, apontando para cima, para a brecha nas defesas do bastião que se abria
à sua frente.
- Primeira Centúria! A eles!
Os seus homens soltaram um rugido em coro e recomeçaram a subir a encosta, tentando progredir sobre a terra solta e alcançar a abertura. Macro carregou sobre um
brigante que ainda não tinha percebido bem o que acontecera; o homem tinha uma barba escura apanhada em tranças, e foi derrubado com um golpe do escudo antes de
ser cravado três ou quatro vezes em golpes rápidos da espada. Ao rebolar no solo já morto, o homem provocou um pequeno deslizamento do terreno, e expôs a ponta de
uma crista de capacete avermelhada. Macro aplicou um pontapé no cadáver para o atirar para longe e pôs-se rapidamente de joelhos. Largou a espada, e começou a procurar
freneticamente
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com as mãos no solo, até conseguir pôr à mostra o metal reluzente do capacete.
Virou-se e gritou a um legionário que subia a encosta.
- Tu, dá-me aqui uma ajuda!
Trabalharam afincadamente para escavar o solo em redor do capacete, e por fim conseguiram expor uma face; os olhos de Cato abriram-se de repente, e ele cuspiu a
terra que lhe entrara para a boca.
- Macro... - murmurou.
- Foda-se, miúdo, tu tens é uma sorte do caraças. - Macro riu-se, enquanto ele e o legionário continuavam a afastar a terra do corpo do prefeito. Cato conseguiu
por fim sentar-se, provocando mais um pequeno desmoronamento. Estava virado para baixo, e foi assim que avistou o centurião Lebausco e os seus homens a acorrerem
à brecha, seguidos pelos homens da Sétima, carregados com os diversos componentes das balistas. Virou-se e contemplou o bastião, percebendo que o inimigo já começava
a recuperar do choque que lhe causara a ruína daquela área da posição defensiva, e se preparava para defender a brecha para onde convergiam os legionários.
Macro ajudou-o a levantar-se e fez um gesto ao legionário, para que se fosse juntar ao combate.
- Alguma coisa partida?
Cato apalpou os membros e abanou a cabeça.
- Acho que está tudo bem.
Limpou a mão esquerda na bainha da túnica para remover a terra da ferida e percebeu que a mão lhe tremia de forma incontrolável. Cerrou os dentes, fechou a mão num
punho crispado e apertou-a contra o peito, antes de desembainhar a espada.
- Vamos lá.
Macro recuperou a espada que atirara para o chão, e foi lado a lado que se foram juntar aos homens que tentavam subir a encosta de solo solto. À sua frente, o último
dos inimigos apanhados pelo colapso do canto do bastião foi abatido no momento em que se tentava reunir aos seus camaradas e os legionários treparam por cima dele
para tentar atingir os nativos. Havia espaço para que vários homens pudessem lutar lado a lado na defesa do bastião e uma larga linha de guerreiros apresentou-se,
de espadas, machados e escudos a postos para o combate. O primeiro dos romanos aproximou-se, o escudo bem levantado
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sobre a cabeça, e um guerreiro brigante desferiu de imediato um golpe de machado; o impacto fez o legionário tombar de joelhos. O inimigo atacou de novo, e desta
vez o choque fez estalar a madeira, mas o legionário aproveitou a ocasião para contra-atacar com a espada, golpeando as pernas do outro. O nativo soltou uma maldição
e debruçou-se para afastar o escudo semidestruído, atingindo de imediato o capacete do romano na face lateral. O soldado caiu sobre a terra da rampa que se tinha
formado e de imediato dois companheiros do nativo se precipitaram sobre ele, de espadas em punho, rasgando-lhe roupas e carne.
Os legionários que seguiram o seu malogrado camarada avançaram com mais cautelas, tomando o cuidado de fincar as botas no terreno e de formar uma parede de escudos
antes de avançarem juntos. Os defensores atacaram-nos com espadas e machados, tentando fazê-los recuar. Mais brigantes se acotovelavam na zona da brecha e os que
não podiam combater diretamente lançavam pedras sobre os romanos que continuavam a trepar a encosta.
Macro e Cato forçaram o avanço com os seus homens, de respiração ofegante pelo esforço de trepar o declive coberto de terra solta, que escorregava debaixo dos pés
e tornava o progresso lento e laborioso. O primeiro grupo de legionários a alcançar a brecha estava já a enfrentar o inimigo, e o choque de lâminas e o estrondo
dos golpes detidos pelos escudos ribombavam no ar. À medida que mais homens conseguiam chegar à brecha, o combate tornava-se mais encarniçado e começava a aumentar
a pressão sobre os defensores. Os dois oficiais pararam por trás das fileiras densas dos seus homens, e enquanto Macro mantinha o escudo bem levantado, Cato espreitava
por cima das cabeças dos legionários à sua frente.
- Temos de os manter em movimento.
Macro anuiu.
- Vou tratar disso.
Cato avistou dois brigantes que o apontavam, depois de terem identificado a crista vermelha de um capacete de oficial. Reconheceu um deles. Era Belmato. O companheiro
deste ergueu um arco e fez pontaria; a ponta da seta reduziu-se a um ponto na visão de Cato, enquanto o arqueiro prendia a respiração para disparar com precisão.
Os dedos do homem soltaram a corda e o prefeito agachou-se nesse preciso momento, o que fez com que a seta lhe batesse no capacete e se desviasse.
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Entretanto, Macro abrira passagem pelas fileiras e, ao chegar à frente, lançara um brado.
- Primeira Centúria! Vamos empurrar em cadência! Sigam a minha voz... Um!
Os soldados romanos tinham-se preparado, atentos à ordem, e ouviu-se um grunhido de esforço coletivo quando todos puseram o peso por trás dos respetivos escudos.
- Dois!
Os homens deram um passo e fincaram outra vez os pés, prontos para a próxima investida.
- Um!
Cato empurrou em conjunto com os outros, usando a mão em condições para se equilibrar. Já tinha escapado à morte uma vez naquele dia, e não estava de forma nenhuma
interessado em escorregar e ver-se esmagado pelos seus próprios homens. A massa compacta de homens equipados com pesadas armaduras foi ganhando terreno a pouco e
pouco, obrigando os nativos a recuar apesar dos seus esforços frenéticos, que se traduziam numa chuva de golpes infrutíferos sobre a parede de escudos que os ameaçava.
Ao arriscar uma rápida espreitadela, Cato percebeu que acabara de passar por entre os postes ainda de pé de um lado e de outro da brecha. Deu outro passo e a bota
calcou qualquer coisa sólida. Olhou para o solo e percebeu que se tratava do primeiro legionário a penetrar na brecha, honra que lhe custara a vida. Aquele homem
nunca receberia a coroa de louros que a valentia de que dera mostras bem merecia.
Mais quatro passos, e debaixo das botas já sentia a erva pisada do interior do bastião. Os legionários alargavam já a linha de combate para os lados, uma vez que
tinham assegurado a passagem para o interior das defesas, e mais homens se juntavam ao seu efetivo a cada momento. Cato já conseguia ver por cima das cabeças dos
que seguiam à sua frente. O interior do bastião era oval, e tinha um comprimento de uns oitenta passos, contra uns trinta de largura, na zona mais espaçosa. Havia
talvez uns duzentos defensores, e um braseiro ardia a curta distância de alguns feixes dispostos sobre o solo. Na paliçada já só restava um punhado de brigantes,
mas esses continuavam a disparar setas sobre os romanos que subiam a colina.
Mantendo a mão ferida junto ao peito, Cato desembainhou a espada,
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apontando para baixo, para não correr o risco de ferir acidentalmente algum dos seus próprios homens. Ao seu redor prevaleciam as respirações pesadas; o trabalho
era cansativo, sobretudo para homens que já tinham trepado a colina e conseguido criar aquela brecha, tudo dificultado ainda mais pelo peso morto das armaduras.
Cato gastou um momento a agradecer pela leveza da cota de malha que tinha adquirido ao mercador sírio, mas depressa se voltou a concentrar na missão. Tinham de conquistar
o bastião, enquanto ainda havia forças para tanto.
- Continuem a avançar! - gritou, por cima do clamor da batalha.
- Não parem!
Macro fez seu o mesmo grito. Tinha arranjado lugar na fileira da frente, e ali estava, lado a lado com os homens que trocavam golpes com o inimigo. Avançava numa
posição de equilíbrio, semiagachado, e espreitava sobre o bronze da orla superior do escudo, lançando rápidas estocadas com o gládio sempre que um brigante se atrevia
a aproximar-se demasiado. O inimigo tinha visto frustrada a sua tentativa de manter os romanos no exterior do bastião, pelo que se via obrigado a recuar, para arranjar
espaço para manejar as suas compridas armas. Os celtas combatiam com a coragem desesperada que era típica da sua raça, lançando-se de forma destemida contra a linha
de escudos romanos, na tentativa de ferir os homens que se ocultavam por trás dela. Os menos exaltados desferiam golpes por baixo dos escudos, tentando provocar
ferimentos incapacitantes nos pés e canelas dos romanos, ou então atacavam por cima, sobre os escudos, tentando alcançar cabeças e ombros. Em ambos os casos, porém,
não evitavam o risco de se exporem à rápida estocada de uma espada inimiga.
Da confusão emergiu, diretamente à frente de Macro, um guerreiro de cota de malha, que empunhava um pesado machado. A cabeça rapada era adornada de tatuagens espiraladas,
e um bigode de pelos avermelhados curvava de ambos os lados dos dentes arreganhados. Rugiu a Macro, e elevou o machado nas duas mãos, pronto a desferir um poderoso
golpe. Macro mal teve tempo para oferecer o escudo ao impacto, e viu-o ser rachado, porque a cabeça do machado rompeu a orla metálica e penetrou até quase ao centro,
embatendo na bossa de latão.
- Merda... - soltou o centurião, momentaneamente atordoado perante o poder daquele ataque.
O machado oscilou, preso ao escudo, enquanto o celta tentava
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libertá-lo de novo. Estava encravado, e Macro puxou também o escudo para si com toda a força, tentando arrancar o machado das mãos do outro. Contudo, o brigante
era forte e não largou a arma, pelo que escudo e machado andaram para a frente e para trás entre eles, até que o guerreiro perdeu a paciência e se lançou sobre Macro,
ao mesmo tempo que soltava um tremendo urro; com o empurrão, o escudo veio chocar contra o veterano e desequilibrou-o, até que foi amparado pelo escudo do legionário
que se encontrava atrás dele. O brigante fez um derradeiro esforço desmesurado e conseguiu por fim recuperar o machado, que fez imediatamente rodar, para desferir
novo golpe. Ao fazê-lo, porém, atingiu um dos seus próprios camaradas, partindo-lhe o nariz com a cabeça metálica. Pouco preocupado com o incidente, manejou a arma
para a frente, num arco ameaçador, estilhaçando o escudo do homem que seguia à direita de Macro e passando rente ao do centurião. O ímpeto do golpe estava no máximo
quando atingiu o capacete do legionário à esquerda, na articulação da proteção das maçãs do rosto. A aba de metal saltou para o lado, e a lâmina rasgou o crânio
do homem, acabando por sair por entre a órbita ocular e a cana do nariz, antes de acabar de cumprir o seu arco destrutivo.
- Sa! - gritou o celta, antecipando o triunfo. Recolocou o machado em posição de ataque, e aplicou um pontapé no escudo do homem que acabara de abater e que caía
para o solo, espalhando sangue sobre as armaduras dos seus camaradas.
Macro saltou para a frente, empurrando o escudo meio desfeito contra a cara do inimigo, e conseguiu um bom impacto, que provocou um grunhido de dor ao outro quando
as bordas aguçadas da fratura do escudo lhe arranharam o rosto. Insistiu com novo empurrão, obrigando o nativo a recuar, antes de recolher o escudo e preparar a
espada para um golpe. Avistou a cara do homem, riscada pelo sangue que corria de um dos rasgões provocados por uma das farpas do escudo. Golpeou com a espada, atingindo
o estômago do outro com a ponta. Retorceu o gládio mas, para seu espanto, a fina cota de malha que o outro usava impediu a ponta da espada de lhe penetrar na pele.
Ainda assim, a estocada tinha feito o guerreiro perder o ar dos pulmões, e ele cambaleou para o meio da turba de combatentes e desapareceu de vista.
Macro viu-se isolado num espaço aberto e respondeu com um
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berro selvagem, enquanto fazia a espada rodar num arco. Foi o suficiente para desencorajar qualquer inimigo que estivesse tentado a enfrentá-lo, e deu-lhe tempo
para avaliar rapidamente o que se passava à sua volta. Cerca de metade dos sobreviventes da Primeira Centúria tinham já conseguido entrar pela brecha, e continuavam
a empurrar o inimigo para o interior do bastião. Pouco atrás de si avistou a crista do capacete de Cato. Virou-se de novo para a frente, as botas bem fincadas no
terreno, o escudo pronto, apesar de arruinado, a espada em riste, e deixou-se alcançar pela linha de combate dos legionários, que já não tinha um aspeto muito composto.
Vários dos defensores tinham sido derrubados e remexiam-se sobre o solo, até que a linha romana os alcançava e liquidava sem hesitação, antes de prosseguir o avanço.
Ouviu-se um grito, e o inimigo recuou apressadamente, mas em bloco. Macro fez uma pausa e viu um guerreiro de grande estatura com ar de desafio, a uns dez passos
de distância; era Belmato, e atrás dele estava uma linha de arqueiros, já de projéteis prontos. O guerreiro recuou para o meio deles e ergueu a espada no ar.
- Primeira fila, para baixo! - reagiu Macro, de forma instantânea.
- Segunda fila, escudos levantados!
Apoiou um joelho no solo, enquanto deixava o escudo descer até se apoiar também no chão. O homem por trás dele levantou o escudo e ajustou-o sobre o seu, inclinado.
Os homens que o rodeavam executavam precisamente os mesmos movimentos quando o guerreiro brigante emitiu uma curta ordem e a primeira rajada de flechas atingiu a
linha romana com um coro ensurdecedor de estalos, estrondos e baques, já que muitas das pontas metálicas trespassavam os escudos, enquanto outras eram desviadas
e outras ainda se desfaziam no impacto. Outra rajada se seguiu, menos intensa, e uma terceira, até que o barulho de arcos a disparar flechas se tornou ininterrupto,
à medida que os arqueiros menos eficientes se iam atrasando.
- Macro!
Virou-se e avistou Cato, que tinha furado pela formação romana até se colocar atrás dele, agachado. Colocara a mão ferida por dentro de uma faixa bastante suja que
lhe rodeava a cintura. Com a outra segurava a espada cravada no solo para manter o equilíbrio enquanto permanecia naquela posição.
- Isto está quente! - Macro riu-se, e pestanejou quando uma gota
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de suor lhe caiu da testa e lhe fez comichão, ao rolar pelo rosto até ao queixo. - Em todos os sentidos. Como está a coisa, senhor?
- Conseguimos dominar a brecha. A Oitava Coorte já está a subir a rampa. É hora de puxar pelos homens. Ao ritmo a que o inimigo está a despachar flechas umas atrás
das outras, daqui a pouco ficam sem nenhuma.
- É deixá-los atirar à sua vontade. Os rapazes até agradecem a oportunidade de recuperar o fôlego antes de voltar a avançar.
Cato anuiu.
- Muito bem. Mas esteja a postos quando eu der o sinal. E avancem sem piedade. Quero o bastião limpo o mais depressa possível. Viu quem era o homem que deu a ordem
aos arqueiros?
- Aquele cabrão alto? Sim.
- É o irmão do Venúcio, o Belmato. Se tiver ocasião para isso, dê cabo dele. Parece-me que é o comandante do bastião. Se ele for despachado...
- Vou tratar disso.
A barragem de flechas começava a amainar e Cato recuou até à retaguarda da centúria e olhou na direção da rampa. O centurião Lebausco avançava sobre o terreno solto,
quase a deitar os bofes pela boca. Parou ao cimo da rampa, acenou a Cato e virou-se para mandar uns berros aos seus homens.
- Foda-se, seus mandriões, o que é que vos está a fazer perder tanto tempo? Todos cá para cima, e em corrida! O último fica de faxina nos próximos meses!
Os homens em melhor forma apressaram-se a responder, seguidos pelo porta-estandarte, apoiado no cabo da flâmula, o peito a arfar.
- Senhor, o que lhe aconteceu? - inquiriu Lebausco, enquanto contemplava Cato de alto a baixo e reparava que o prefeito ainda estava coberto de terra. - Porra, parece
uma toupeira. Quando há problemas, é suposto atirarmo-nos para o chão, mas não para dentro dele.
- Muito engraçado, centurião. Quando o Macro avançar, trata de o apoiar. E como vos disse, avancem sem piedade. Mais tarde trataremos de fazer prisioneiros.
Lebausco lançou um sorriso cruel.
- Sim, senhor.
Os recém-chegados descansavam, abrigados por trás dos escudos,
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enquanto algumas flechas lhes passavam por cima, de vez em quando. Cato esperou até ver que todo o espaço atrás da Primeira Centúria da coorte de Macro estava ocupado
por soldados romanos. E então respirou fundo e lançou a ordem:
- Macro! Agora!
O centurião ergueu-se ligeiramente e semicerrou os olhos para espreitar pela abertura que o seu escudo exibia. A maior parte dos arqueiros inimigos tinha já esgotado
as munições, e recuara para junto dos homens que rodeavam Belmato, lançando os arcos para longe e desembainhando as espadas. Macro respirou fundo.
- Primeira Centúria! Preparar para avançar, e em força!
Os homens que o rodeavam prepararam-se, os membros tensos, à espera da ordem.
Macro voltou a encher os pulmões e lançou um brado:
- À CARGA!
Um urro tremendo rasgou os lábios dos homens, que se levantaram e avançaram como uma onda poderosa, cobertos pelos escudos, de espadas em riste e prontas a desbaratar
o inimigo. A súbita erupção de espírito guerreiro abalou por momentos os opositores, pelo que os legionários mais adiantados se lançaram sobre eles antes que esboçassem
qualquer reação. Macro atirou-se contra um dos arqueiros que tinha começado a recuar e foi lançado pelos ares com o impacto, aterrando em cima de dois dos seus camaradas,
alguns metros atrás. Macro seguiu-o, voltando a lançar o escudo contra o grupo em desalinho antes de desferir uma poderosa série de estocadas em cada um dos nativos
mais próximos. Um deles, armado com um pequeno machado, deu um salto para trás depois de receber um ferimento no flanco, e lançou o machado contra a cabeça de Macro.
Este desviou-se agilmente e sentiu o sopro do ar no ouvido quando o projétil lhe passou perto, a rodopiar, e foi embater com estrondo contra o escudo de um legionário
que o seguia. Macro assegurou-se de que os outros dois inimigos tinham ficado fora de combate, antes de progredir. Tinha consciência do avanço das túnicas vermelhas
e dos escudos romanos que o rodeavam, enquanto os seus homens entoavam o nome da legião.
- Gemina!
Os legionários avançavam, dizimando os adversários com eficiência e sem piedade. Mas os brigantes depressa recuperaram o ânimo e
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lançaram-se ao encontro dos romanos, espadas e machados contra escudos e armaduras. Só um punhado dos nativos envergava cotas de malha por cima das túnicas forradas.
Os outros combatiam sem proteções, até mesmo de peito nu, depositando toda a sua fé na coragem pura e no desdém pelo inimigo, pesadamente protegido. O duelo era
desigual, e um a um foram tombando, não conseguindo mais do que provocar algumas baixas, enquanto os homens de Roma avançavam sempre e dizimavam as suas fileiras.
Macro fez uma pausa para tentar localizar Belmato. Avistou-o por fim, ao lado de um guerreiro tatuado que agitava uma flâmula de um lado para o outro, de maneira
a que todos pudessem ver o touro dourado sobre fundo verde no ar parado daquele abafado dia de verão. Havia portanto um novo estandarte a voar sobre a capital dos
brigantes, considerou Macro, mas resolveu no mesmo instante que, antes de o dia terminar, aquele símbolo já nada representaria.
Avançou decidido na direção de Belmato, mostrando escudo e espada a todos os que se interpunham no seu caminho. Abriu passagem por entre a confusão do combate, trocando
golpes apenas quando necessário, até confrontar diretamente o líder inimigo. Belmato tinha visto a crista do capacete do centurião a avançar na sua direção e apressara-se
a intercetá-lo, desejoso de conseguir a glória de matar um oficial inimigo. Um outro guerreiro fez menção de confrontar Macro, mas Belmato virou-se para ele e lançou-lhe
um berro furioso, que fez o homem recuar e procurar outro inimigo para enfrentar.
- Queres-me todo para ti, é isso? - rosnou Macro, enquanto desenhava uma pequena elipse no ar, com a ponta da espada. - Anda então, cá te espero.
Durante uma batida de coração, os dois homens avaliaram-se e Belmato ergueu a sua longa espada e o escudo circular, adotando uma posição agachada. O brigante murmurou
qualquer coisa. Talvez uma maldição, pensou Macro, ou um desafio como o que ele acabara de pronunciar, como se os dois se enfrentassem por desígnio superior, na
arena e não no meio da refrega confusa que tinha lugar pela posse do bastião. Decidiu fazer o primeiro movimento, uma finta, só para testar a reação do opositor.
Colocou a espada em posição para aplicar uma estocada ao centro do peito do guerreiro nativo.
Antes que pudesse desferir o golpe, houve uma súbita confusão e
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um movimento rápido; um legionário veio a correr embater contra Belmato, e a espada do homem apanhou o guerreiro pela axila, penetrando-lhe profundamente no peito.
Belmato soltou um grunhido que lhe fez expelir todo o ar dos pulmões, enquanto era levado pelo ar e caía um passo à frente, ruindo sobre o solo enquanto o sangue
lhe borbulhava nos lábios.
- Foda-se, mas que merda é esta? - rugiu Macro, furibundo. - Este cabrão era meu!
O legionário apoiou uma bota no peito do homem caído no solo e puxou pela espada, para a libertar. Encolheu os ombros na direção do centurião, murmurou uma espécie
de desculpa e apressou-se a regressar ao combate, deixando Macro a fitar Belmato de expressão desalentada, enquanto o outro se remexia no solo, o sangue a correr
da ferida fatal.
A curta distância, o porta-estandarte nativo também contemplava horrorizado o corpo, antes de levantar o olhar ao notar que Macro se aproximava dele, de espada em
riste.
- Bom, meu amigo, parece que vais ter de servir.
- Na! - O homem abanou a cabeça e recuou, antes de se virar e correr com o estandarte para a parte de trás do bastião. Ao verem o símbolo a passar-lhes sobre as
cabeças, os combatentes nativos soltaram gemidos desesperados, e alguns abandonaram de pronto a refrega e seguiram na mesma direção que o porta-estandarte. Então
Macro percebeu qual era a intenção dos inimigos: dirigiam-se a um pequeno portão na paliçada, oposto ao corpo principal da fortaleza, e que era perfeitamente visível,
já que se situava a um nível mais elevado do que o chão do bastião. O pânico espalhou-se rapidamente e os brigantes renunciaram ao combate, recuando alguns passos
antes de se virarem e fugirem. Os legionários perseguiram-nos, embora o peso do equipamento os retardasse. Porém, à medida que os nativos se aglomeravam junto ao
portão, os romanos alcançaram-nos de novo e lançaram-se em força sobre eles. Apertados, sem espaço para manejar as suas armas, os guerreiros tribais ficaram à mercê
dos legionários. Que nenhuma resistência ofereceram. Apenas a sede de matar os animava. E os romanos abandonaram-se a ela, com arremetidas violentas e sucessivas.
Homens mortalmente feridos tombavam em sequência, e a alguns nem era permitido caírem no solo, tal era o congestionamento.
Para lá da carnificina, Macro viu o estandarte a passar o portão e
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desaparecer de vista quando o porta-estandarte desceu os degraus do outro lado do muro de terra. Muitos mais homens lutavam para passar, tentando desesperadamente
escapar às lâminas já vermelhas de sangue dos romanos que os assolavam por todos os lados. Um grupo de legionários tinha entretanto alcançado a paliçada e começou
a percorrer o perímetro do bastião, dirigindo-se para o portão, até conseguir fechar a única linha de fúga que os brigantes ainda possuíam. Começaram por isso a
obrigar os sobreviventes a regressar ao centro do bastião.
Macro percebeu que não havia saída possível para os cerca de cinquenta nativos cercados, que se viam rodeados por pilhas de camaradas já caídos. De repente, sentiu
uma dor intolerável nos membros, e todo o peso da armadura, bem como o calor sufocante. Lambeu os lábios secos e obrigou-se a empertigar-se, enquanto soltava uma
ordem.
- Chega! Recuem! - A voz soou rouca. Demasiado rouca para que os homens a ouvissem com clareza. Cuspiu rapidamente e voltou a erguer a voz. - Recuem!
Levou um momento até que a ordem penetrasse nas mentes dos homens embrenhados na loucura do massacre, mas um a um eles afastaram-se do magote de defensores ainda
vivos, até que se abriu um espaço entre os dois lados da refrega. Macro avançou, enquanto embainhava a espada. Depositou o escudo rachado no chão e apontou um dedo
firme ao brigante mais próximo, assinalando com ar imperioso a arma que ele empunhava e depois o solo.
- Larga-a! - gritou, para dar ênfase à exigência.
Enervado, o homem fez o que lhe era exigido, e lançou a espada à distância, para lá dos cadáveres que o rodeavam. Os outros imitaram-no de pronto. Macro olhou em
redor e avistou um optio.
- Leva-os lá para fora e senta-os no chão. Deixa uma secção da tua centúria a guardá-los.
- Sim, senhor. - O optio baixou a cabeça e voltou-se, para chamar alguns homens e cumprir a ordem recebida.
Na orla do bastião havia comparativamente poucos sinais do combate. A luta fora mais acesa no canto que fora derrubado, e nessa zona havia dúzias de cadáveres pelo
solo. Havia depois outros espalhados aqui e ali pelo solo aplanado, homens que tinham tentado escapar mas que haviam sido alcançados e abatidos pelos primeiros legionários
da Oitava Coorte a penetrar pela brecha. Macro contemplava os corpos
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quando avistou o guerreiro de cabeça rapada que tinha enfrentado antes. O homem jazia de costas, de cabeça apoiada no tronco ensanguentado de outro guerreiro. Macro
agachou-se ao seu lado e apalpou a cota de malha que o outro envergava, torcendo os lábios perante a qualidade do material. Não era de espantar que tivesse conseguido
resistir à sua espada. Macro tirou o cinto ao morto, pegou nas mangas e puxou a cota de malha do corpo do outro. Fez uma trouxa e entregou-a a um dos homens que
estava de guarda aos prisioneiros.
- Pega nisto e guarda-a. Quando estiver tudo acabado, vou querê-la de volta. - Exibiu um dedo em riste ao soldado. - Trata de não a fazer desaparecer. Entendido?
O homem respondeu com uma saudação formal, e Macro avistou Cato a conversar com o centurião Lebausco, que assentiu e se afastou, descendo pelo monte de terra desabada.
Cato virou-se para o amigo e aproximou-se dele a passos largos.
- Vi o cadáver do Belmato ali atrás. Sempre o apanhou?
- Ia apanhá-lo, sim, mas um cretino qualquer meteu-se no meio. De qualquer maneira, está morto.
Cato contemplou as pilhas de cadáveres junto ao portão das traseiras e soltou um assobio, baixinho.
- Doce Júpiter. Que banho de sangue... - Atravessou até à paliçada e olhou para baixo, mesmo a tempo de avistar o último dos brigantes que tinham conseguido escapar,
a correr pela faixa de estrada que levava ao portão da fortaleza principal. No momento seguinte os portões desta cerraram-se com um estrondo surdo a que se seguiu
o raspar da tranca a ser colocada nos suportes.
- Esperemos que aqueles façam um relato assustador do que se passou aqui. Que chegue para convencer o Venúcio e os seus amigos de que não querem ter o mesmo destino.
Havia guerreiros inimigos num plano superior, no passadiço sobre o portão da fortaleza e na paliçada desta, e alguns empunhavam arcos. Cato virou-se e olhou para
os prisioneiros que o optio e os seus homens conduziam para o exterior.
- Será melhor colocá-los neste lado do bastião. Talvez isso desencoraje os seus amigos de tentarem uns disparos à sorte.
Macro anuiu.
- Boa ideia.
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Cato contemplou então a estrada que Horácio tinha escolhido como via de acesso ao forte, durante o primeiro ataque. O aríete lá estava, no solo, abandonado depois
da curva final, rodeado por cadáveres de homens da Sétima Coorte. Macro avistou-os também, e abanou a cabeça, desanimado.
- Nem sequer chegaram perto. Que desperdício.
- De facto. - Cato suspirou. - E ainda só fizemos metade do trabalho.
Fez um gesto que abarcava as maciças paredes de terra e o portão que se fechava.
- Temos o bastião. Agora vem a parte complicada.
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Quando a Sétima Coorte acabou de arrastar as balistas desmontadas para o bastião, os homens de Lebausco já estavam a construir abrigos improvisados junto à muralha
traseira. Os legionários usaram os escudos inimigos e peças de madeira retiradas da frente da fortificação. Atados uns aos outros, forneciam alguma proteção contra
os projéteis que lhes eram lançados a partir do forte. Depois, os auxiliares, armados de fundas, colocaram-se em posição ao longo da face da paliçada que dava para
o portão da fortificação principal.
A estratégia pensada por Cato, de utilizar os prisioneiros para desencorajar Venúcio de mandar disparar sobre o bastião, tinha funcionado durante algum tempo, mas
assim que os primeiros abrigos foram montados, o inimigo aceitou o risco que faria correr aos seus camaradas capturados pelos romanos, e começou a enviar rajadas
de setas. Depois de uma barragem inicial, que custou mais vidas nativas do que romanas, os brigantes contentaram-se com alguns disparos ocasionais, para perturbar
a ação inimiga e ao mesmo tempo poupar nas munições.
- Aqui! - gritou Cato, para chamar o centurião Acer, e indicou as posições improvisadas em frente ao torreão da entrada. - Monta-as ao longo da paliçada.
Os legionários, banhados em suor, levaram as suas pesadas cargas sobre a relva ensanguentada e pousaram-nas por trás da cobertura fornecida pela parede de madeira.
À medida que mais homens subiam com os cestos em que vinham os projéteis de um metro de comprido e as pedras esféricas para lançar, os seus camaradas lançavam-se
ao trabalho para montar as peças. Os maiores dos componentes eram as pesadas estruturas de madeira em que se fixavam os espessos cordões, feitos de tendões enrolados,
que davam às balistas toda a sua força. Foram içadas para cima das bases maciças, também de madeira, e presas com cunhas
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e pinos do mesmo material, marteladas nos sítios indicados à força de marretas. Por fim foram ajustados os leitos para os projéteis sobre os braços de lançamento,
e encaixadas as alavancas para fazer funcionar as engrenagens de torção.
- Estão prontas, senhor - informou o centurião Acer, enquanto Cato conferenciava com Lebausco, Macro e Velocato. Este último, de braço ao peito, tinha subido ao
bastião na companhia da Oitava Coorte.
- Devo dar ordens para começar a disparar? - inquiriu Acer.
- Ainda não - decidiu Cato. - Quando atacarmos, quero fazê-los sentir todo o nosso poder. Se os abalarmos fortemente logo no princípio, a batalha estará mais de
metade ganha. Uma coisa que aprendi ao combater estes bretões é que, se os atacarmos com rapidez e ferocidade, têm tendência a perder a calma e a coragem. Choquem-nos,
senhores, é esse o segredo da vitória.
- Belas palavras - comentou Lebausco. - Mas elas não chegam para ganhar as batalhas, senhor. Isso fica a cargo dos homens e do aço frio que levam consigo.
Cato anuiu.
- Mas também da mente que os dirige, centurião.
Fez uma pausa, e pesou rapidamente os homens que tinha à sua disposição, bem como o terreno com que se deparavam. Era vital que os oficiais tivessem bem presentes
os seus papéis nas ações que se iam desencadear, e a necessidade de coordenar os esforços, se queriam obter sucesso no assalto com um número mínimo de baixas. Não
se podiam dar ao luxo de perder mais homens. Cato já tinha considerado as consequências de um falhanço. A coluna ver-se-ia obrigada a retirar para o outro lado da
fronteira, o mais depressa possível. Assim que Venúcio e Carátaco reunissem homens suficientes, lançar-se-iam em perseguição deles e começariam a flagelá-los sem
cessar. A coluna enfraquecida ia necessitar de todos os homens para manter o inimigo à distância. Pôs de lado qualquer ideia de retirada e concentrou-se na tarefa
que tinha entre mãos.
- O centurião Horácio tinha razão quanto a uma coisa, a única maneira de penetrar no forte é mesmo derrubando o portão. O método que escolheu, infelizmente, era
demasiado direto.
- Pondo a questão de forma doce - lembrou Macro.
- Ainda precisamos do aríete - retomou Cato. - O inimigo tentará
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por certo fazer-nos pagar um elevado preço para o recuperarmos. Está mesmo no meio das muralhas que ladeiam o portão e o grupo que enviarmos para o recuperar vai
ficar exposto a uma barragem de setas, dardos, pedras e seja lá mais o que for que eles tenham preparado. Por outro lado, se eles quiserem atacar os nossos homens,
também terão de se expor. E é aí que tu entras, Acer. Quero as balistas a funcionar a toda a velocidade nessa altura. Obriguem os defensores a manterem-se protegidos.
Vais ficar também no comando dos fundibulários auxiliares. Quando for dada ordem, atirem tudo o que tiverem sobre o inimigo. Tudo o que possa prejudicar-lhes a pontaria
e dê aos nossos rapazes mais hipóteses de recuperar o aríete sem sofrerem demasiadas perdas.
- Sim, senhor.
- O que nos traz ao pequeno pormenor da recuperação do aríete.
- Cato virou-se para Macro com um sorriso fatigado. - Quantos homens ainda tem a sua Primeira Centúria?
Macro tinha contabilizado as suas perdas durante a breve pausa na ação, enquanto as balistas eram montadas.
- Ainda tenho quarenta e oito homens capazes, senhor. Chegam e sobram.
- Excelente. Levá-los-á pela brecha e dará a volta ao bastião. Quando ouvir o sinal, terão de correr até ao aríete, pegar nele e levá-lo até ao portão. E depois,
usá-lo e dar cabo daquela merda toda.
Macro sorriu.
- Será um prazer.
- Desculpe, senhor - interrompeu Lebausco. - Mas porquê mandar os homens do Macro? Já fizeram a sua parte. Seria melhor entregar essa tarefa aos meus homens. Estão
frescos, e com um efetivo completo.
Cato abanou a cabeça.
- Por isso mesmo é que os estou a guardar para lançar o assalto principal. A Oitava Coorte ficará aqui, pronta para irromper pelo forte através do portão, no momento
em que o aríete conseguir realizar o seu trabalho. Além disso, ias ter uma tremenda trabalheira a convencer o Macro a renunciar a esta tarefa. Não é verdade?
Macro riu-se e mostrou um dedo ao outro centurião.
- Tenta impedir-me, meu caro.
Lebausco sorriu.
- Macro, é o seu funeral. Só estava a tentar dar uma ajuda.
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- Terás ocasião de ter a tua parte, depois de o Macro conseguir o que queremos - adiantou Cato. - Assim que o portão for derrubado, trata de avançar com toda a força,
e depressa. Mata todos os que resistirem, mas poupa os que depuserem as armas. Tens de deixar isso bem claro aos teus homens. Não quero matar nenhum brigante que
não seja necessário. A nossa posição é que todos os que alinharam com o Venúcio e o Carátaco foram enganados, e cometeram um erro. Portanto, deixamo-los viver e
ficarem gratos por isso.
Lebausco mostrou dúvidas.
- Essa vai ser difícil para os homens engolirem, senhor. Sabe como eles são quando o sangue lhes ferve.
- Sei sim, perfeitamente. E é mesmo por isso que preciso que os refreies, centurião. Quando isto terminar, os brigantes serão novamente nossos aliados. Prefiro que
não lhes provoquemos mais sofrimento do que aquele que se tornou estritamente necessário. Não queremos deixar atrás de nós uma sensação de ressentimento e azedume.
Percebido?
- Sim, senhor. E quanto a cativos?
- Não haverá nenhuns. Quem quer que seja capturado será entregue à rainha Cartimandua, que decidirá o destino a dar-lhe.
- Não haverá cativos? - Lebausco mal escondeu o desapontamento. - Os homens não vão gostar mesmo nada disso. Já ouvi alguns a conversarem acerca da sua parte do
espólio.
- Pouco me importa o que eles apreciam ou não - ripostou Cato, severamente. - Estas são as minhas ordens. Não serão tomados prisioneiros para serem vendidos como
escravos, e não haverá saque. Qualquer homem que seja apanhado a saquear ou violar será submetido à mais dura ação disciplinar. Explicar-lhes-ás também esse facto,
e serás responsável pelas suas ações, centurião Lebausco. Entendido?
- Sim, senhor.
Cato olhou em redor.
- Toda a gente tem bem presente o que tem a fazer?
Os outros anuíram, e Lebausco perguntou:
- Senhor, e quanto a si?
- Avançarei com a tua coorte. Eu e o Velocato.
Lebausco arregalou os olhos.
- Senhor, com todo o respeito, estão ambos feridos. Vão atrapalhar mais do que ajudar.
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- Agradeço-te a tua preocupação - ripostou Cato, com acidez. - Precisamos do Velocato para lançar um apelo à rendição. E eu estarei lá porque sou eu o comandante.
- Como desejar, senhor.
Cato fez uma pausa, mas ninguém colocou mais questões.
- Muito bem, então. O sinal para o Macro ir buscar o aríete e o Acer começar a disparar será um toque da trombeta, repetido num intervalo curto até tudo estar em
curso. Depois, serão dois toques para começar o ataque principal, e para o Acer parar de disparar. Senhores, às vossas unidades. Macro, leve os seus homens à volta
do bastião. Mantenham-se escondidos e prontos a avançar assim que ouvirem o sinal.
Os oficiais saudaram o comandante e afastaram-se, para se juntarem aos seus homens, e Cato virou-se para Velocato.
- É tempo para um último apelo ao bom senso. Pronto?
O jovem nobre brigante assentiu.
- Acha mesmo que o Venúcio se renderá?
Cato encarou-o.
- Tu é que és o portador de escudo do homem. Conhece-lo muito melhor do que eu. O que é que tu achas?
- Ele vai combater - retorquiu o brigante, de imediato. - Toda a vida foi um guerreiro. Não sabe fazer outra coisa.
- Era o que eu temia ouvir-te dizer. Mas temos de oferecer esta possibilidade a todos nós. De qualquer maneira, ele fará o que o Carátaco lhe disser para fazer.
- Cato sorriu sem vontade. - Imagino o que isso quer dizer.
- Nesse caso, para quê dar-me ao trabalho de fazer a oferta?
Cato suspirou, fatigado.
- Se houver a mais pequena possibilidade de acabar com isto sem provocar uma única morte, tenho de a aceitar.
Levou o nobre brigante até próximo dos auxiliares, agachados por trás da paliçada, e espreitou com todo o cuidado por entre os abrigos. O portão do forte não estava
a mais de uns quarenta passos dali. A estrada por baixo do portão do bastião estava também ali perto, e depois havia uma extensão de terreno aberto até ao fosso
e à ponte levadiça, que estava levantada. Muitos inimigos encontravam-se em plena vista, e alguns deles eram arqueiros. Não tinham qualquer razão para se abrigarem.
Ainda não, refletiu Cato, num pensamento sombrio. Virou-se para Velocato.
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- É a tua vez. Diz-lhes que o comandante romano quer falar com Venúcio.
- Só com Venúcio?
Cato assentiu.
- Se isso ajudar a minar o prestígio de Carátaco naquele forte, vale a pena tentar.
Velocato sorriu.
- Tem uma evidente compreensão dos costumes do meu povo.
O brigante levou a mão em concha à boca, inspirou profundamente e lançou um brado aos seus compatriotas. Não teve resposta imediata, pelo que repetiu o apelo, e
desta vez, depois de um breve silêncio, recebeu gritos exaltados e assobios de gozo. Velocato virou-se para Cato, que se limitou a abanar a cabeça.
- Não vale a pena traduzires, já percebi a ideia.
As vozes no forte acalmaram-se rapidamente, à exceção de uma, e Velocato arriscou uma espreitadela rápida por cima da paliçada.
- É Carátaco.
- Porra... - Cato franziu o cenho. Ao que parecia, o rei dos catuvelaunos já tinha assumido o comando dos rebeldes. - Explica-lhes que quero falar com Venúcio.
Velocato voltou a lançar o mesmo apelo mas, depois de um momento, Cato ouviu a voz do inimigo a responder em latim.
- Dirijo-me ao comandante romano! Não converso com este cão traidor. Tens a minha palavra de que ninguém tentará atingir-te com setas ou lanças. Em troca, espero
o mesmo respeito. Levanta-te, dirige-te para onde te possa ver e possamos falar.
Cato pensou rapidamente. Era já demasiado tarde para tentar minar a autoridade de Carátaco. Se se recusasse a falar com ele, o líder nativo diria aos seus apoiantes
que o comandante romano estava cheio de medo deles. E se falassem em latim, só um punhado de nativos seria capaz de acompanhar a conversa.
- Preciso que continues a traduzir. Em voz alta, de maneira a que todos possam ouvir.
Velocato anuiu.
Cato respirou fundo e pôs-se de pé, abandonando com cuidado o abrigo, até expor o tronco por cima da paliçada. Indicou a Velocato que se levantasse também, mas para
ficar atrás do abrigo. O jovem
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nobre abanou a cabeça e aproximou-se de Cato, enquanto afirmava, a meia-voz:
- Não vou mostrar receio perante estes traidores.
- Essa atitude fica-te muito bem - retorquiu Cato. - Mas ao primeiro sinal de problemas, trata de te esconderes. Vais ser preciso mais tarde.
- Será o meu velho adversário, o prefeito Cato, debaixo daquele capacete? - indagou Carátaco.
- Diz-lhes que eu quero falar com o Venúcio.
Carátaco escutou a resposta e abanou a cabeça.
- Eu falo pelos patriotas brigantes. Venúcio fez-me a honra de me oferecer o comando dos seus homens. E falarei apenas com o prefeito Cato, não com o seu lacaio.
Cato ergueu a voz.
- Exijo que os rebeldes que ocupam o forte libertem a rainha Cartimandua e todos os outros reféns, e que se rendam. Dou-vos a minha palavra de que todos os que se
renderem não serão tomados como escravos, nem sofrerão quaisquer maus-tratos. Garanto ainda que insistirei com a nossa aliada, a rainha, para que não sejam exercidas
represálias. O meu único pedido é que nos seja entregue o fugitivo Carátaco. - Virou-se e acenou a Velocato, que começou a traduzir as suas palavras, até ser interrompido
por Carátaco, que falava num tom de voz mais elevado.
- E estes, romano, são os meus termos. Renunciem ao vosso ataque, deixem Isurium e eu garanto que terão passagem livre até à fronteira. Eu, e o meu novo exército,
poupar-vos-emos as vidas se deixarem Isurium antes do fim do dia. Se ainda aqui estiverem quando chegar a alvorada, juro pelo nosso deus da guerra, Camulos, que
todos morrerão, e que as vossas cabeças ficarão a decorar as cabanas dos guerreiros brigantes. O que me dizes?
Cato olhou para Velocato.
- Diz-lhes outra vez tudo o que eu disse antes.
Velocato recomeçou, mas mais uma vez a sua voz foi rapidamente abafada. Desta vez Carátaco deu por terminada a trégua parlamentar, voltando-se para os seus homens
e dando uma ordem curta.
- Baixe-se! - Velocato pegou no braço são de Cato e puxou-o para trás do abrigo, que foi atingido por uma seta no momento imediato.
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Outras se seguiram, e uma delas rasgou mesmo um escudo nativo, fazendo chover sobre eles vários estilhaços. Cato usou a mão em boas condições para os limpar do ombro
com todo o cuidado.
- Bem, diria que isto pôs fim à nossa tentativa de negociar uma resolução pacífica para esta situação. É tempo de aplicar uma tática mais enfática, acho eu. Vem!
Mantendo-se agachado, Cato levou-os ao longo da paliçada até ao ponto mais próximo do aríete. Pegou num escudo nativo, correu pelo espaço aberto e espreitou por
cima da paliçada. Macro e os seus homens estavam em posição, na encosta relvada, à espera do sinal para começar o ataque. Cato voltou para trás e avaliou a situação
no bastião. Lebausco tinha ordenado à sua coorte para se ajoelhar e proteger por trás dos escudos. Os homens de Acer estavam agachados ao lado das suas balistas,
e os auxiliares tinham uma primeira salva de projéteis acomodados nas bolsas de couro das suas fundas. Estava tudo a postos, decidiu Cato. Era hora de pôr o seu
plano à prova.
O pelotão de honra da Oitava Coorte estava agrupado em torno do estandarte. Entre eles, Cato distinguia perfeitamente as curvas de bronze da trombeta transportada
pelo soldado responsável por emitir os sinais sonoros correspondentes às ordens para as seis centúrias comandadas por Lebausco. Cato fez um gesto a Velocato, para
este se manter junto dele, e correu para o grupo. Um dos homens alertou Lebausco para a chegada do comandante, e ele virou-se e saudou Cato quando este chegou junto
dele.
- É hora.
Lebausco assentiu.
Cato viu Acer a observar, o punho a cerrar-se repetidamente enquanto esperava pela ordem para iniciar a barragem romana. Virou-se para o trombeteiro.
- Dá o sinal.
O legionário cuspiu para limpar a boca e levou o metal aos lábios. Ajustou-os na peça, respirou fundo e soprou. A trombeta ressoou, emitindo uma longa nota. O homem
interrompeu o sopro, respirou de novo e contou até cinco, antes de repetir a nota. Antes que o segundo sinal se espalhasse pelo bastião, o assobiar das fundas e
os estalidos das balistas destroçaram a comparativa calma que se tinha instalado no cenário, depois da captura do bastião. Do outro lado da paliçada veio
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um coro de berros quando Macro e os sobreviventes da Primeira Centúria abandonaram a proteção da esquina do bastião e correram para o aríete abandonado nos derradeiros
metros do caminho que levava ao portão da fortificação brigante.
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- Rapazes, todos comigo! - gritou Macro, enquanto começava a correr pela estrada. À sua direita via de relance os capacetes e rostos dos auxiliares colocados junto
à paliçada do bastião, que faziam girar as fundas antes de soltar os projéteis sobre o inimigo. À sua esquerda ficava o grande muro de terra da fortificação nativa,
que se prolongava até ao portão. A súbita rajada de metralha, acompanhada pela chuva de projéteis de ponta metálica e pedras do tamanho de um punho lançada pelas
balistas ligeiras, tinha apanhado o inimigo de surpresa, e os nativos correram a abrigar-se por trás da sua paliçada, enquanto a barragem romana se abatia sobre
os postes de madeira. Mas Macro sabia perfeitamente que o efeito depressa se atenuaria e que o inimigo tudo faria para abater os homens que se preparavam para retomar
a posse do aríete e o empregar contra o portão.
Já passava do meio-dia, mas o calor não se atenuara. O ar naquele estreito corredor entre o bastião e o forte era parado e abafado. O peso da armadura e os esforços
já feitos durante toda a manhã levavam a que o suor lhe escorresse pela testa, enquanto Macro continuava a avançar rapidamente para o aríete. À sua frente jaziam
os corpos dos homens caídos durante o malogrado ataque que Horácio ordenara logo pela alvorada. Nem todos estavam já mortos. Alguns ainda se agitavam e gemiam. Outros
levantaram as cabeças, de esperança renovada ao avistar os seus camaradas a correr pelo caminho. Um ergueu uma mão na direção de Macro e lançou a custo algumas palavras.
- Água... Por piedade, alguma água...
Macro rodeou-o, e continuou a correr. Viu uma cabeça a surgir acima da paliçada do forte, uma silhueta escura contra o céu brilhante, e ouviu o homem a gritar, dando
o alarme sobre o que decorria lá em baixo. O aríete já estava ali à sua frente, rodeado de cadáveres
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trespassados por dardos e setas; ao redor havia inúmeros projéteis que tinham atingido apenas a terra do caminho. Chegou à cabeça do aríete, esculpida com uma ponta
aguçada, na forma que maior estrago pudesse produzir. Havia cordas passadas em redor do barrote, para que uma equipa de homens pudesse levantá-lo. Macro deitou fora
o escudo, que de qualquer forma já estava uma ruína, e afastou um cadáver que tinha caído sobre a própria madeira. Agarrou na pega mais próxima da ponta e olhou
para os legionários que o seguiam mais de perto, que também atiravam para longe os escudos e tomavam posição de ambos os lados. Assim que um número suficiente de
homens tomou lugar, Macro lançou um novo brado:
- À minha ordem... iça!
Os homens soltaram um grunhido, e levantaram o aríete do solo.
- Avançar!
Começaram a subir o que faltava do caminho, no passo mais veloz que a pesada carga lhes permitia. A haste de uma seta cravou-se de repente na terra, a poucos centímetros
de Macro, e ele lançou um apelo sobre o ombro:
- Façam a cobertura, depressa!
Os homens da Primeira Centúria que se tinham atrasado na corrida chegavam agora ao pé dos seus camaradas que já transportavam o aríete, e apressavam-se a colocar-se
ao lado esquerdo do grupo, entre este e a paliçada do forte, e a erguer os escudos, para protegerem os homens que levavam o aríete. As setas começavam a chover,
acompanhadas por pedras, mas o ininterrupto bombardeamento a que os nativos eram sujeitos da parte do bastião obrigava-os a fazer os seus disparos sem tempo para
apontar, pelo que pouco efeito obtinham sobre o grupo do aríete, que se aproximava do portão passo a passo. Em contraste, os romanos no bastião mantinham-se de pé
e concentrados, enquanto atacavam a paliçada do forte do outro lado da estrada. Macro reparou num projétil lançado por uma balista, que embateu no cimo de um poste
da paliçada, desfazendo-o e lançando estilhaços para todo o lado.
Um guerreiro inimigo, mais temerário do que corajoso, expôs-se em toda a sua altura enquanto apontava a espada a Macro, exortando os seus camaradas a derrubar todos
os legionários. Foi imediatamente atingido por uma pedra em pleno peito, tendo sido empurrado pelo impacto, como se levado pela mão invisível de um gigante.
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Ouviu-se então um grito mesmo atrás de Macro, e este sentiu a corda que segurava a agitar-se na mão. Soltou uma imprecação rápida ao ver-se forçado a parar e virou-se
com uma expressão furiosa para ver o que se tinha passado. Um dos seus homens tinha sido atingido por uma pedra no capacete e tombara para cima do soldado que o
seguia, obrigando-o a também largar a corda que segurava o aríete. Macro acenou ao homem mais próximo de entre os que levavam os escudos.
- Toma o lugar dele!
O legionário obedeceu de imediato, lançando o escudo para longe e passando sobre o homem abatido para segurar na pega da corda. Assim que ele içou o seu peso, Macro
deu ordem para continuar o avanço. Prosseguiram lentamente pela última secção da estrada e aproximaram-se do fosso à frente do portão. Tinha mais de dois metros
de largura, pelo cálculo rápido que Macro efetuou de imediato. O problema era que a ponte tinha sido levantada e estava dependurada à entrada do forte, a impedir
a passagem e a fazer as vezes das portadas, que estavam de facto abertas. Macro deu ordens para pousarem o aríete e indicou aos três homens mais próximos que o seguissem.
Desceram para o fosso e treparam a custo pela outra face, até se verem em cima, onde pararam para recuperar o fôlego. Macro apontou para as cordas retesadas que
seguravam a ponte na posição vertical.
- Temos de as cortar! Dois homens em cada. Vamos!
Enquanto dois dos homens se dirigiam às cordas mais afastadas,
Macro deu ordens ao terceiro elemento.
- Encosta-te à parede e forma um estribo.
O soldado fez o que lhe fora pedido e colocou as mãos em concha. Macro colocou a bota nas mãos dele e fez força sobre os ombros do outro enquanto se projetava para
cima.
- Empurra!
O legionário soltou um urro e empurrou o centurião para cima, e Macro apoiou-se contra as estacas do portão enquanto procurava colocar os pés sobre os ombros do
soldado. Quando o conseguiu, o legionário agarrou nas canelas de Macro para o estabilizar, enquanto o oficial se dedicava à tarefa em mãos. A corda estava exposta
um pouco acima da sua cabeça, e Macro empunhou a adaga e atacou-a. Enquanto se segurava à borda da ponte com a mão esquerda, começou a serrar o espesso cordame,
rasgando fibra após fibra com o afiado gume da lâmina. Entretanto, os homens
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de Acer no bastião mantinham o esforço de bombardeamento para obrigar o inimigo a permanecer abrigado.
Então ouviu-se um grito do outro lado do portão e Macro olhou para baixo, onde avistou uma escura forma que o observava da zona de sombra projetada pelas fortificações
adjacentes.
- Já nos descobriram! - avisou Macro para os homens que cortavam as cordas do outro lado. - Despachem-se!
Continuou a cortar furiosamente, os músculos a doer e arder com o esforço, enquanto amaldiçoava a corda e desejava ardentemente que ela se partisse. Pelo espaço
vazio entre a ponte e as estacas da paliçada via vários homens a correrem naquela direção, e o brilho metálico de uma ponta de lança. Esta, a refulgir ao sol, depressa
se dirigiu contra ele pela fresta. Macro colocou o peso de um dos lados, sem com isso se desequilibrar da posição sobre os ombros do homem que se esforçava por o
manter estável. Mal conseguiu manter o equilíbrio e continuar a atacar a corda. Só resistia ainda uma fina fibra, tensa graças ao peso que suportava agora sozinha,
o que tornava até mais fácil cortá-la. Um ruído dissonante e profúndo anunciou que a corda cedera por fim e o canto da ponte descaiu, fazendo com que Macro fosse
projetado da sua posição aos ombros do legionário. Caiu para o lado, tentando encontrar um apoio nas toscas madeiras da paliçada ao lado do portão. O solo aproximou-se
velozmente e Macro tombou pesadamente de lado, e todo o ar lhe foi expulso dos pulmões, num suspiro forçado. O legionário que o apoiava caiu ao seu lado, no preciso
instante em que a ponta da lança se projetava mais uma vez pelo espaço entre as madeiras, falhando-o por escassos centímetros. Do outro lado do portão, os outros
dois homens ainda lutavam para completar o corte de toda a espessura da corda.
Macro tentou avisá-los, mas estava sem fôlego para lançar qualquer grito. O legionário que empunhava a faca estremeceu e soltou um grunhido ao ser atingido por um
guerreiro inimigo, mas manteve-se no seu lugar e continuou a cortar através da corda. No momento seguinte também ela cedeu, e a ponte levadiça desceu com velocidade
crescente, até que a extremidade se abateu sobre o outro lado do fosso, provocando uma explosão de pó e terra. O legionário escorregou de cima do seu camarada e
tombou para o fosso, com o sangue a jorrar da ferida que a lança inimiga lhe provocara na virilha. Mas Macro, a lutar para se pôr de novo em pé e ainda a tentar
recuperar o fôlego, não lhe pôde dar atenção; via os guerreiros
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inimigos a recuar para as sombras. Antes que os romanos do outro lado do fosso pudessem reagir, as portadas foram encerradas e um pesado barrote que servia de tranca
foi encaixado nos respetivos suportes, barrando de novo a entrada. Macro correu pela ponte até ao aríete, seguido pelos dois homens que tinham sobrevivido à ação,
e todos retomaram os seus lugares na corda.
Macro lançou uma ordem pouco inteligível aos seus homens, mas todos perceberam a necessidade de voltar a erguer o aríete, e assim fizeram. O grupo avançou pela ponte
e deteve-se a curta distância das portadas de aspeto sólido. À sua volta, os seus camaradas voltaram a colocar os escudos de forma a proteger todo o grupo dos inimigos
que guarneciam o cimo do portão e as muralhas que o ladeavam. Macro apontou a cabeça do aríete ao estreito espaço entre as duas portadas e gritou aos seus homens:
- Três balanços e um impacto! Um...
Os homens fincaram as botas contra as tábuas da ponte e começaram a fazer oscilar o pesado tronco para trás, permitindo-lhe depois avançar, levado pelo balanço,
até o voltarem a puxar para trás, com mais força, enquanto Macro marcava os movimentos.
- Dois... três!
Desta vez os homens fizeram avançar o aríete com toda a força, e a ponta foi embater nas madeiras do portão, fazendo sobretudo saltar a poeira que se tinha entranhado
em todos os espaços.
- Outra vez!
Macro e os seus homens repetiram o processo, e de cada vez que o aríete embatia, fazia saltar poeira e alguns estilhaços de madeira que tombavam sobre o capacete
e os ombros do centurião. Ao fim de algum tempo, avistou um finíssimo raio de luz a passar por entre as madeiras.
- O portão está a começar a ceder, rapazes! - gritou aos homens.
- Mantenham o ritmo!
O golpe seguinte empurrou uma das grossas tábuas, partindo-a e permitindo à luz jorrar pela brecha irregular. Os romanos soltaram um grito de júbilo espontâneo e
voltaram à carga, alargando o buraco. Macro já avistava relances dos homens e armas que os aguardavam do outro lado. Sentiu o coração a acelerar perante a perspetiva
de se poder lançar sobre eles, para vingar os homens da Sétima Coorte e pôr fim à rebelião,
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antes que ela se propagasse para lá de Isurium. Ouviu-se então um estalo profundo que marcou a cedência da tranca, e as portadas recuaram alguns centímetros.
- Está quase - avisou Macro os seus homens, enquanto voltavam a fazer oscilar o aríete. O suor brilhava-lhes nos rostos, mas todos os olhares estavam inflamados
de excitação. Custou-lhes mais alguns impactos até que a tranca se partiu de vez e as portadas começaram a saltar nas dobradiças.
- Baixar aríete! - ordenou Macro. - Empunhem as vossas espadas, e vamos a eles!
Os homens soltaram as cordas, e o aríete caiu pesadamente sobre as tábuas da ponte levadiça. Macro virou-se para um dos homens que tinham estado a proteger os flancos
e estendeu a mão.
- Dá-me o teu escudo!
O homem hesitou brevemente, pouco inclinado a ceder a sua propriedade e única forma de proteção na batalha. Mas a disciplina férrea das legiões triunfou e ele acabou
por vencer a renitência e entregar o seu escudo a Macro.
- Arranja outro aí na estrada e avança - ordenou Macro enquanto ajustava a pega e se virava para o portão, ao mesmo tempo que desembainhava a espada. - Sigam-me!
Lançou-se ao assalto, enquanto o inimigo recobrava o espírito e começava a empurrar os portões, para os cerrar de novo. A tromba soou duas vezes no bastião e começou
a repetir o toque, enquanto os homens da Oitava Coorte soltavam um urro coletivo e corriam para se juntar ao ataque. Macro empurrava com todas as forças o escudo,
apoiando-o contra as portadas e lançando todo o seu peso na ação. De ambos os lados os homens apinhavam-se, e depressa se juntaram mais romanos, todos a empurrar
as portadas para evitar que voltassem a fechar-se. Durante alguns momentos manteve-se o impasse, as portadas imóveis, os dois lados a competirem para prevalecer.
- Abram caminho! - soou uma voz possante, por trás de Macro.
- Deixem passar!
Sentiu alguém a empurrá-lo para o lado com brusquidão e viu o centurião Lebausco, homem de grande envergadura, a lançar todo o seu peso na contenda. De imediato
os romanos começaram a ganhar terreno, forçando as portadas centímetro a centímetro e alargando a brecha
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entre elas, o que permitiu revelar a massa densa de brigantes rebeldes do outro lado, a tentarem desesperadamente guardar a posição.
- Hispânica! - Lebausco bradava a plenos pulmões o nome da Nona Legião. - Hispânica!
Os homens da sua coorte fizeram eco do brado orgulhoso, enquanto juntavam o seu peso ao embate. Os portões continuaram a escancarar-se, até oferecerem a Lebausco
espaço suficiente para atacar diretamente os homens à sua frente. Deixou escapar um verdadeiro rugido e avançou, lançando o escudo contra um primeiro inimigo, fazendo-o
sentir a bossa contra o corpo antes de lhe rasgar a pele com a espada. O outro grunhiu e tentou recuar, mas não tinha para onde ir, já que estava preso entre os
homens nas suas costas e o feroz centurião romano à sua frente, que o golpeava uma vez e outra, atingindo-lhe os órgãos vitais. Lebausco deu um passo atrás para
permitir que o corpo do inimigo rolasse para o solo, avançou sobre ele, pisando-o, e atacou outro nativo.
A seu lado, Macro continuava a empurrar com todas as forças, e a tentar avançar, enquanto usava a espada para desferir sucessivas estocadas no espaço entre o seu
escudo emprestado e o de Lebausco. Os rebeldes punham também o seu peso por trás dos escudos, e a ponta da espada de Macro não encontrava brechas na parede inimiga,
pelo que a retirou e voltou a empurrar. Os gritos de guerra de um lado e outro começaram a esmorecer nas gargantas, à medida que romanos e brigantes se empenhavam
naquela disputa, separados apenas pela espessura dos escudos, sem que houvesse trocas de golpes, apenas os grunhidos de esforço, imprecações soltas a meia-voz, e
o roçar dos escudos uns contra os outros. Cada passo em frente era conseguido graças a um tremendo esforço, mas a pouco e pouco os romanos avançaram para a zona
que estava na sombra projetada pela estrutura do portão.
Macro percebeu de repente de onde vinha a ameaça seguinte e soltou uma ordem por cima do ombro:
- Fileiras de trás! Erguer escudos!
O movimento de avanço atenuou-se e acabou por se interromper, já que os legionários precisaram de espaço para cobrir as cabeças com os escudos que se projetavam
por cima do homem mais à frente. Assim que a formação foi ajustada, Macro deu ordem para retomarem o avanço, e voltaram a pressionar o inimigo. Tal como esperava,
os rebeldes por cima do portão estavam a preparar os seus arcos para alvejar os romanos
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que entravam no forte. Alguns lançavam pedras, mas os escudos impediam-nas de atingir os homens. No outro lado do portão, os muros de terra afastavam-se como na
abertura de um funil, e os legionários começavam a alargar a frente de combate enquanto forçavam os guerreiros inimigos a recuar sem cessar.
Macro virou-se para Lebausco.
- Pega nalguns dos teus homens e varre o passadiço por cima do portão.
Lebausco anuiu e abriu caminho para a retaguarda das densas fileiras que os seguiam, dirigindo-se então para a escada de madeira que dava acesso à torre por cima
do portão. A sua voz profunda ressoou acima dos sons de combate:
- Primeira Centúria, Oitava Coorte! Sigam-me!
Avançou a passos largos pelos degraus que levavam à fortificação, obrigando os seus homens a correr para o acompanharem. Pouco depois, Macro ouviu o retinir das
lâminas e a voz do centurião a soltar um grito de guerra enquanto se lançava sobre os rebeldes que guarneciam a torre.
Macro liderou o resto dos homens num avanço ininterrupto, notando que o inimigo cedia cada vez mais rapidamente. Reduziu o passo e permitiu que se abrisse um espaço
entre as duas linhas de combatentes.
- Recomponham a linha!
Os homens que o ladeavam ajustaram as posições relativamente aos seus vizinhos, e a muralha de escudos oscilou para um lado e outro, até que os legionários apresentaram
de novo ao inimigo uma frente bem organizada. Macro colocou a espada na posição ideal, com alguns centímetros de lâmina a projetarem-se sobre a orla do escudo, e
fê-la embater contra o metal deste. Os homens imitaram-no, e depressa se estabeleceu um ritmo metálico que dava cabo dos nervos aos inimigos e que ressoava por todo
o forte.
- Avançar!
Os dois lados voltaram a juntar-se, mas aquele era o género de confronto que os legionários mais treinavam, e em que eram vastamente superiores a qualquer outra
força. Usavam os escudos como proteção e para castigar os adversários e desferiam golpes apenas quando o outro expunha o corpo. Os brigantes, mais habituados a refregas
sem qualquer disciplina, travadas em magotes desordenados, não conseguiam
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manejar as suas longas espadas, machados de cabo comprido e lanças, e começaram a recuar em desalinho perante o avanço massacrante dos homens de equipamento pesado
que avançavam pelo forte dentro. Os homens de Lebausco combatiam junto à paliçada de ambos os lados do portão, e também aí os adversários estavam a ser forçados
a recuar. No bastião, os seus camaradas tinham já interrompido a barragem, assim que se haviam apercebido da presença dos legionários na muralha da colina fortificada.
Macro notou que à sua frente se abria um largo espaço, já que os rebeldes recuaram de repente para trás e para os lados, revelando então um grupo de guerreiros,
todos eles de cota de malha, escudos largos e capacetes reluzentes. Reconheceu de imediato o homem que os liderava. Era Venúcio.
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Venúcio tinha resolvido juntar-se ao combate, para tentar evitar o
completo desânimo dos seus seguidores. Avistara a crista do capacete de Macro, e fora para lá que se dirigira. De lábios arreganhados e dentes cerrados, avançou
sem demora, e lançou imediatamente um golpe com a pesada espada, tentando atingir a cabeça do centurião. Macro colocou o escudo por cima de si e apoiou um joelho
na terra no momento do impacto. Deixou que o escudo absorvesse parte do impacto, permitindo-lhe deslizar um pouco. Mas ripostou de imediato, levantando-se e lançando
todo o seu peso contra Venúcio, tentando desequilibrá-lo enquanto ele recuperava a posição da espada. Teve a recompensa de embater contra o escudo do brigante e
de o obrigar a recuar meio passo.
Mas o guerreiro reagiu com uma velocidade surpreendente, usando também o escudo para contrariar o ataque de Macro, forçando-o a parar. Desferiu outro golpe sobre
o escudo romano, empurrando-o contra o ombro de Macro. Ao mesmo tempo, o centurião manejou a espada, fazendo-a descrever um arco que fez com que a ponta rompesse
a túnica de Venúcio e o ferisse no cotovelo. Macro puxou a espada para trás, apresentou de novo o escudo ao inimigo e soltou um grunhido de vitória.
- O primeiro sangue é para mim...
Venúcio fez uma pausa, manobrou o escudo para avaliar o estado da articulação ferida e voltou a avançar, empurrando com o escudo e puxando-o para trás, para equilibrar
o movimento selvagem que efetuara com a espada. Desta vez Macro respondeu inclinando o escudo de forma a defletir o golpe, em vez de o bloquear. A lâmina gemeu,
num ruído estridente, ao resvalar na bossa e percorrer a superfície curva do escudo, a caminho do solo. Macro empurrou o escudo para o lado, para obrigar o braço
do inimigo a esticar-se, e avançou sobre a pele exposta,
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num movimento que tinha tanto de brutal como de pouco ortodoxo. A sua lâmina penetrou profundamente, e a força do golpe levou os músculos de Venúcio a responderem
involuntariamente; os dedos esticaram-se e a espada tombou para o solo. O rosto do nobre brigante enrugou-se com a surpresa, enquanto ele fechava o braço ferido.
Macro atirou-se contra ele, atingindo-o de novo com o escudo e colocando a bota com firmeza por trás da perna do opositor, antes de voltar a empurrar e fazer Venúcio
cair para trás desamparado. Macro saltou sobre ele, com a ponta da espada bem apontada, premindo-a contra a garganta do guerreiro nativo, mas deteve o movimento
da mão a poucos centímetros das veias pulsantes. O trambolhão do seu líder tinha deixado aturdidos os que o rodeavam, e eles recuaram, desanimados, deixando o terreno
livre a Macro, debruçado sobre o corpo de Venúcio no solo. Todos os instintos do seu corpo lhe diziam para desferir o golpe final, para matar o inimigo e prosseguir.
Mas lembrava-se das ordens de Cato. Poupar todos os que acedessem a capitular.
- Rende-te! - gritou ao homem que tinha dominado de forma tão clara.
Venúcio olhou para ele, mas não deu resposta.
- Rende-te, cabrão de bárbaro merdoso! - Macro fez dançar a mão que empunhava a espada, permitindo que a ponta arranhasse a parte lateral do pescoço do nativo. -
Não to digo outra vez.
Venúcio percebeu o claro significado do aviso de Macro e a intenção assassina que pairava por trás dele. Lambeu os lábios e gritou algo aos seus seguidores. A princípio
estes não pareceram dispostos a responder, e Macro temeu que o líder lhes tivesse ordenado que continuassem a combater e que vendessem caras as suas peles. Mas então
um primeiro homem começou a afastar-se da linha romana. Depois outro, e outro ainda, em número crescente, até que todos os brigantes se encontraram a uma distância
segura da muralha de escudos romana. Os homens que tinham acompanhado Venúcio para o combate mantiveram-se juntos, a curta distância do ponto onde o seu líder estava
à mercê do centurião, e por fim um deles lançou a espada para o solo, e depois o escudo. Após uma pausa tensa, os outros imitaram-no, e o resto dos rebeldes depressa
fez o mesmo.
Macro limpou a garganta, antes de gritar por sua vez aos seus homens:
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- Parem todos!
Os legionários imobilizaram-se, de espadas prontas, mas sem fazer qualquer tentativa para avançar ou atacar um inimigo. Uma quietude bizarra instalou-se na zona
em redor do portão, à medida que os combates eram interrompidos e os nativos depunham as armas.
- Prendam-nos! - ordenou Macro, desfazendo o feitiço. - Levem-nos daqui para fora, mas não façam mal a esses cabrões!
Enquanto os homens voltavam a avançar, indicando com as espadas que os brigantes se deviam afastar, Macro recolheu a espada e chamou os seguidores de Venúcio, para
que o ajudassem a pôr de pé. Uma vez levantado, o homem apertou a ferida no braço com a mão e baixou o olhar, envergonhado, recusando-se a enfrentar Macro face a
face.
- Macro!
Virou-se e avistou Cato a atravessar o portão, abrindo caminho por entre as centúrias de reserva da Oitava Coorte. Velocato seguia-o de perto. O prefeito sorria,
aliviado, ao juntar-se ao amigo.
- Graças aos deuses! Centurião Macro, conseguiu. Excelente trabalho, meu amigo. - Só então Cato avistou Venúcio, e sorriu de novo.
- Magnífico trabalho, realmente!
Escrutinou os rostos dos outros homens em redor do líder rebelde.
- Mas não há sinal de Carátaco. Pergunta-lhe onde está ele.
Velocato dirigiu de imediato uma rápida questão a Venúcio e este
levantou o olhar com desdém ao reconhecer a voz, mas não se deu ao trabalho de responder. Velocato perguntou de novo, com maior insistência, mas ainda assim não
obteve resposta. Venúcio limitou-se a cuspir no solo em frente aos pés do seu portador de escudo.
- Temos de o encontrar e confirmar se a rainha está em segurança. Vamos! - Cato tomou o comando e passou pelo guerreiro derrotado com Macro, Velocato e um grupo
de legionários. Os brigantes abriram alas para os deixar passar, como cachorros que tinham acabado de levar umas palmadas. Ao passar para trás das fileiras do inimigo,
Cato e os outros espalharam-se por entre as cabanas até chegarem ao terreiro à frente do grande salão da governante da nação brigante. Algumas mulheres e crianças
viram-nos chegar e correram a refugiar-se nas cabanas em redor. No exterior do palácio, a guardar as entradas, viam-se vários homens armados de lanças. Aprestaram-se
a usá-las assim que deram pela aproximação dos romanos.
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- Avisa-os de que o Venúcio se rendeu. Diz-lhes que a rebelião terminou e que devem depor as armas imediatamente.
Velocato falou aos seus compatriotas, enquanto continuavam a aproximar-se. Os homens hesitaram brevemente, mas ao verem mais e mais romanos a surgir por entre as
cabanas, perceberam que era verdade o que lhes era dito pelo portador de escudo, e largaram as armas.
- Macro, trate deles - ordenou Cato, enquanto se dirigia à entrada do salão. Avançou com todas as cautelas para o interior na penumbra, e esperou uns momentos até
que os seus olhos se ajustaram à falta de luz. Notou então que bancos e mesas tinham sido empurrados para junto das paredes, e que havia mais de uma centena de pessoas
sentadas no solo, de rostos voltados para ele, aliviados por verem o oficial romano e percebendo o que a sua chegada queria significar. Cato não tinha tempo para
lidar com eles e olhou diretamente para o fundo do salão. A rainha Cartimandua estava de pé, junto ao seu trono. Ao seu lado via-se Carátaco, que lhe apertava um
dos pulsos com mão de ferro. Cato não hesitou e continuou a aproximar-se a passo firme, o som das suas botas cardadas sobre as lajes do pavimento a ribombar no silêncio
reinante.
- O forte está tomado e Venúcio rendeu-se - anunciou, com toda a clareza. - A rebelião foi esmagada. Agora chegou a hora de se render.
- Mentiroso! - devolveu Carátaco. - O Venúcio nunca se renderia.
- Mas fê-lo, e agora é nosso prisioneiro. Carátaco, desta vez tudo está acabado.
- Não! Nunca serei teu prisioneiro.
Havia nas palavras do adversário uma tal intensidade que Cato se sentiu alarmado, detendo-se a dez passos do rei dos catuvelaunos. Temeu que o homem preferisse cometer
suicídio em vez de voltar à condição de cativo, à espera de ser enviado para Roma e ver o seu destino decidido pelo Imperador. Como que em resposta aos pensamentos
de Cato, Carátaco empunhou de repente uma adaga, que tirou do cinto. Depois, com um violento puxão, colocou Cartimandua à sua frente, pôs o braço esquerdo em redor
da garganta da mulher e pressionou a ponta da adaga contra o seu seio, diretamente sobre o coração. A boca de Cartimandua abriu-se em surpresa e ela soltou um involuntário
gemido de terror.
- Vais deixar-me partir - anunciou Carátaco - se queres que ela saia disto viva.
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Cato respirou fundo e abanou a cabeça.
- Não, não irá a parte alguma. Já não há fuga. A sua guerra contra Roma está terminada. Acabou.
- Isso é o que tu pensas. Hei de encontrar outra tribo. Guerreiros com mais coragem do que aquela que Venúcio possuía. A guerra prosseguirá.
- Não. Tal não sucederá. Não posso deixá-lo partir.
- Se não o fizeres, ela morre. Queres realmente ser apontado como o responsável pela morte de uma aliada do teu Imperador? Ele exigirá a tua cabeça por teres permitido
tal desfecho.
Cato encolheu os ombros.
- Pode ser que sim. Mas até que esse momento surja, penso que a sua captura é mais importante do que a vida ou a morte da rainha. Se se render agora, viverá. Se
ferir a rainha, matá-lo-ei com as minhas próprias mãos. Juro pela minha honra.
- Matas-me? Achas mesmo que me conseguirias derrotar em combate singular? Homem a homem?
Soaram mais passos quando Macro e uma secção de legionários entraram no salão e se aproximaram do confronto. Cato sorriu e apontou com o dedo por cima do ombro.
- Parece que afinal não seria só eu.
Carátaco olhou para os romanos com desmedido ódio, enquanto Macro se adiantava e se colocava ao lado de Cato, de escudo numa mão e espada ainda ensanguentada na
outra.
- Liberte-a - insistiu Cato. - Liberte-a e renda-se.
Carátaco abanou a cabeça, mais numa reação nervosa do que numa negação, como se não suportasse sequer imaginar a possibilidade de se render.
- Pense bem - urgiu Cato. - Se matar essa mulher a sangue-frio, o nome de Carátaco será apontado e amaldiçoado por toda a Britânia. É isso que deseja? Ou prefere
ser relembrado como o mais indómito de todos os bretões? Mantém toda a sua honra. Lutou até ao último instante, até onde pôde. Isso é algo que ninguém alguma vez
lhe poderá tirar... Se a libertar e se render agora.
O queixo de Carátaco continuou de pedra. O grande guerreiro deu a ideia de estar em plena agonia. Um gemido selvagem nasceu-lhe na garganta. E depois, lentamente,
baixou os braços e empurrou ligeiramente
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Cartimandua para o lado. Ela fugiu apressada e saltou do estrado, correndo para a proteção dos seus aliados romanos. Cato manteve o olhar fixo naquele homem agora
só e derrotado, e o olhar foi atraído pela lâmina que brilhava suavemente na mão do rei derrotado.
- Senhor, não o faça. Peço-lhe. Ainda está vivo, e tem a sua família. Estão à sua espera em Viroconium.
Carátaco manteve-se imóvel e olhou-o fixamente, com uma expressão de pura desolação e lamento estampada no rosto. Soltou um longuíssimo suspiro e embainhou a adaga.
Cato aproximou-se cautelosamente dele e estendeu a mão.
- Eu fico com isso. Se não se importa.
Carátaco pensou um momento e voltou a tirar a adaga do cinto, entregando-a a Cato pelo cabo.
- Obrigado, senhor. - O prefeito deixou escapar um suave suspiro de alívio e virou-se para o legionário mais próximo. - Leva o rei Carátaco para junto dos outros
prisioneiros.
O soldado fez uma saudação apressada e aproximou-se do líder inimigo, fitando-o desconfiado. Carátaco desceu o degrau e permitiu que o homem lhe pegasse no braço
e o encaminhasse ao longo do salão, a caminho da abertura por onde a luz entrava a jorros.
Cato virou-se para a rainha.
- Majestade, está bem?
Ela sorriu, nervosa.
- Agora estou, obrigada.
- E estas pessoas? - Cato indicou os prisioneiros que começavam a levantar-se, agora que o drama tinha tido fim.
- Fomos tratados com decência. Ninguém foi molestado. - Ela acenou para a entrada do salão. - Se não te importas, temos estado aqui fechados desde ontem. Todos apreciaríamos
um pouco de ar fresco.
Cato reparou então, e pela primeira vez, no calor que estava ali dentro e anuiu.
- Com certeza. Os rebeldes foram desarmados. Talvez os que a acompanharam nesta detenção queiram recuperar as suas armas.
Cartimandua fitou-o, desconfiada.
- Os teus homens permiti-lo-iam?
- Claro, majestade. É de novo a rainha dos brigantes. Vou deixar
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aqui uma unidade dos meus homens enquanto restaura a ordem e decide o futuro dos rebeldes. Quando achar que já não são necessários, peço-lhe o favor de os enviar
de volta ao campo romano.
Ela fitou-o com ar astucioso.
- Prefeito Cato, estou em dívida para contigo. Ou pelo menos em dívida para com o teu tribuno, Otho. Onde está ele?
Macro suprimiu um sorriso, enquanto Cato coçava o queixo, antes de responder.
- O tribuno considerou que seria melhor confiar a tarefa de tomar o forte aos soldados profissionais, majestade. Ele voltará a assumir o comando da coluna, agora
que o trabalho militar está concluído.
-Compreendo. Obrigada, prefeito, e a ti também, centurião.
Cato dobrou o pescoço e Macro imitou-o.
A rainha baixou ligeiramente a cabeça em reconhecimento do gesto, e preparava-se para se voltar e falar ao seu povo, quando Cato retomou a palavra.
- Se mo permite, há ainda um pequeno assunto.
- Sim?
- Gostaria de apelar a alguma benevolência em relação aos rebeldes. Agora que temos Carátaco nas nossas mãos, não haverá nenhum vulto de relevo para liderar aqueles
que gostariam de continuar a guerra contra Roma. Exceto Venúcio, claro.
A expressão de Cartimandua tornou-se sombria.
- Ele pagará o preço da sua traição. Existem formas de morrer que fazem de cada momento do processo uma tortura insuportável.
- Estou certo disso. Mas ele é agora uma força gasta. A rebelião foi esmagada à nascença. Se ele for executado, isso acabará apenas por contribuir para alimentar
o ressentimento dos que o seguiram.
Cartimandua fixou o seu olhar penetrante em Cato.
- Como tu mesmo disseste, eu sou a rainha. Os destinos de Venúcio e de todos os que foram suficientemente tolos para lhe dar ouvidos pertencem-me, e a decisão sobre
eles só a mim cabe.
- Evidentemente. Quis apenas oferecer um pequeno conselho. Nada mais.
- E por ele te agradeço. - Ela virou-se, acabando com a discussão, e avançou para junto dos que lhe tinham permanecido fiéis. Enquanto todos abandonavam o salão,
Macro abanou a cabeça.
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- Podia ter ficado um bocadinho mais grata, dado o sangue que foi derramado pelos nossos homens para lhe salvar o couro.
- É verdade. Mas estamos aqui para servir o Império, e neste momento é do superior interesse de Roma que ela volte a ocupar o trono. Temos de nos contentar com essa
ideia.
- Parece que sim, uma vez que nem sequer vamos ter direito a um saquezito nesta história.
Ao escutar aquela palavra, Cato olhou em redor do salão e percebeu que os legionários andavam a vasculhar todos os cantos.
- Quero estes homens daqui para fora. Mas primeiro verifique que não levam nada.
- Senhor! - Um dos legionários chamou-os, e os dois oficiais viraram-se e viram um soldado à porta de uma passagem que levava a uma câmara nos fundos do salão. -
Creio que deve ver isto.
Apressaram-se para junto do homem, que voltara a entrar na câmara, e baixaram a cabeça para o imitar. O compartimento era iluminado por um buraco por cima de uma
pequena lareira, por onde passava um solitário raio de luz, suficiente porém para dar alguma claridade ao interior. O legionário aguardava-os junto a um baú com
a tampa aberta num dos cantos da sala. Parte do raio de Sol caía sobre ele e refletia-se no conteúdo, iluminando a parte de dentro da tampa aberta. Cato e Macro
cruzaram a sala para ao pé do soldado, e perceberam que o baú estava repleto de moedas de prata. Por momentos, os três homens contemplaram aquele tesouro em silêncio.
- Isto explica muita coisa - começou Macro. - Agora já sabemos como é que o Venúcio convenceu tantos a aderirem à sua causa.
- De facto - concordou Cato.
Macro tossicou.
- E agora, o que fazemos com ele, agora que é nosso? Despojos de guerra?
Os olhos do legionário animaram-se visivelmente.
Cato abanou a cabeça.
- Não. Fica aqui. A rainha terá necessidade dele para acalmar os mais recalcitrantes.
Macro fitou-o, horrorizado.
- Mas, senhor...
- Macro, isto fica aqui. E não lhe tocamos. São as minhas ordens. -
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Virou-se para o legionário. - Tu ficas aqui, e guardas esta sala até receberes novas ordens. E nem penses em subtrair uma moeda que seja. Percebido?
- Sim, senhor.
Macro continuava a contemplar a prata com ar lamurioso. Baixou-se, pegou num molho de moedas e ergueu-as à luz.
- Nem se daria pela falta de umas centenas...
- Macro...
- Uma pena - retorquiu o centurião. - Um punhado de denários cunhados de fresco seriam uma boa recordação da nossa visita a Isurium.
Cato franziu o sobrolho e repetiu:
- Cunhados de fresco?
Debruçou-se e pegou numa moeda. Era de facto como Macro dissera. Nem um risco na superfície da moeda, e todas elas eram novas, já que no ano anterior ele e Macro
tinham estado em Roma, e aquelas moedas, com um desenho que mostrava o Imperador a visitar as suas tropas, tinham entrado em circulação nessa altura. Uma ideia repentina
surgiu-lhe no espírito e ele aproximou a moeda do nariz e cheirou-a.
- Até apetecem comer, não é? - Macro riu-se, claramente esperançoso de que a avareza tivesse feito o seu alegre caminho na mente do amigo e superior hierárquico.
- Comer, não... - retorquiu Cato, com uma expressão fria e calculista. Cerrou a mão em torno da moeda e fechou a tampa da arca. - Ainda há um assunto a resolver,
antes de regressarmos a Viroconium.
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- Excelente resultado, prefeito Cato. - Otho mostrava-se radiante, sentado à secretária na tenda do quartel-general, com Cato à sua frente. Lá fora, a escuridão
começava a tomar conta da paisagem. O dia fora tórrido, a noite anunciava-se quente e abafada, e os insetos formavam já enxames para ir procurar alimento no sangue
dos homens que tinham passado o dia a suar dentro das suas pesadas armaduras.
Depois da derrota dos rebeldes e da libertação da rainha Cartimandua, Cato tinha dado instruções às tropas auxiliares para permanecerem na fortificação nativa, às
ordens da rainha. Os legionários tinham retirado do forte, do bastião e das encostas todos os cadáveres romanos e recolhido os feridos. Os primeiros tinham sido
trazidos para o campo e colocados em longas filas no exterior do portão principal, e piras funerárias tinham começado a ser preparadas para as cerimónias que teriam
lugar no dia seguinte. Os feridos haviam sido transportados em carroças e carros, para serem tratados pelos médicos integrados na coluna. Depois de a ferida que
tinha na mão ter sido limpa e tratada, Cato travara uma breve conversa com Macro, antes de o enviar para cumprir uma tarefa, e dirigira-se por fim para as tendas
do comando.
- Temos Carátaco à nossa guarda, e sufocámos os sentimentos antirromanos entre os brigantes. O corpo do druida foi encontrado entre os mortos e a rainha Cartimandua
tem para connosco uma considerável dívida, como bem sabe. Como disse, um excelente resultado, no fim de contas.
Cato suprimiu um sorriso sardónico, ao ouvir o tribuno usar o pronome "nós". Otho tinha passado o dia a salvo no campo, e fora não mais do que um mero espetador
do terrível combate para a tomada do forte. Não se tinha submetido ao calor, à exaustão, ao feroz medo do combate. Não tinha enfrentado o inimigo, nem correra qualquer
risco
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de ferimento, e mesmo assim já se aprestava a assumir o crédito pelo resultado. Não era difícil imaginar que o relatório final da missão a Isurium, que Otho enviaria
ao legado Quintato, conteria um relato que só de muito longe teria qualquer semelhança com o que se passara na realidade.
- Executámos a tarefa que nos foi confiada - concordou Cato. - Embora o nosso sucesso tenha custado um preço bem amargo. - Fez uma pausa, enquanto recordava os números
de perdas, cuja lista Macro lhe entregara pouco antes de deixarem Isurium e regressarem ao campo.
- Para lá das mortes do prefeito Horácio e do centurião Estatilo, a Sétima Coorte sofreu sessenta e oito mortos, e outros noventa e dois feridos. Incluindo dois
centuriões e um optio. A Primeira Centúria da coorte do Macro sofreu vinte e um mortos e catorze feridos. As outras unidades escaparam às baixas pesadas. A Oitava
Coorte, seis mortos e dezoito feridos, os auxiliares, dez mortos e quinze feridos. Dos Corvos Sangrentos só um sofreu ferimentos. Foi projetado da sela quando perseguia
um dos fugitivos do forte.
Otho assentiu, sobriamente.
- Uma lamentável perda de vidas, estou certo disso. Mas geralmente não se conseguem fritar ovos sem os partir primeiro, não é?
- Ovos? Senhor, não tenho a certeza de conseguir aceitar facilmente essa comparação.
- Prefeito, é apenas uma forma de falar. Evidentemente que vamos prestar todas as honras aos nossos mortos, e Roma ficará triste perante as notícias, mas agradecida
por tantos estarem preparados para o supremo sacrifício para bem do Império.
- Sim, senhor.
Deu-se uma pausa na conversa, até que Otho aclarou a garganta e prosseguiu:
- Agora que a operação militar está terminada, não há qualquer razão para que o comando da coluna não me volte a ser confiado.
- É verdade, senhor - admitiu Cato. - De acordo com as ordens do legado Quintato, entrego-lhe o comando da coluna, neste momento.
Otho soltou um rápido suspiro de alívio.
- Obrigado, Cato. Podes ficar certo de que te darei todo o crédito pelo papel que desempenhaste na nossa vitória de hoje.
Cato dobrou ligeiramente o pescoço, em sinal de reconhecimento.
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- Ora bem, resta-nos apenas preparar a coluna para levantar o acampamento e marchar de volta a Viroconium - continuou Otho, animado. - Confesso desde já que não
me desagrada de todo regressar aos confortos da civilização, enfim, aos que nos são oferecidos pela base do exército, por ruins que sejam. - Fez um gesto a designar
o uniforme imundo que Cato ostentava, e a ligadura que lhe rodeava a mão. - Parece-me, prefeito, que um banho te assentava bem, tal como uma mudança de roupa. E
atrevo-me a pensar que também deves estar exausto. Proponho portanto que passes as próximas horas a cuidar de ti, agora que te tirei de cima dos ombros a responsabilidade
pela coluna.
- Obrigado, senhor. Fá-lo-ei por certo. Mas, antes, ainda há um assunto que tem de ser resolvido definitivamente. - Cato sentiu um tremor de ansiedade ao abordar
o tema. - Tem a ver com a rebelião em Isurium, bem como com a fuga de Carátaco quando o tínhamos prisioneiro depois da batalha na colina.
- Não deves permitir que o facto de seres responsável por essa fuga te pese na consciência - adiantou Otho, num gesto gracioso. - Afinal de contas, os teus feitos,
antes disso e muito certamente depois desse episódio, já mais que o compensaram.
- Não fui eu o responsável pela fuga, senhor. Foi outra pessoa.
- Então, quem foi?
Cato não queria identificar o culpado antes de poder justificar a acusação.
- Senhor, como se recordará, os homens que estavam a vigiar Carátaco foram mortos antes de poderem reagir.
- Sim, e então?
- Então, é minha convicção que das duas uma: ou eles conheciam quem os atacou, ou não tinham qualquer motivo para desconfiar e pensar que estavam em perigo.
- Sim, imagino que sim. Que mais?
- Há também a questão de saber quem disse a Venúcio que o general Ostório tinha falecido. O que ajudou a provocar a deposição da rainha Cartimandua. Ontem à noite,
só um punhado dos nossos sabia da morte do general, e tínhamos concordado em não o comunicar aos brigantes antes de eles nos entregarem Carátaco.
Otho concordou, pensativo.
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- Tu, eu, o centurião Macro, além da minha mulher. Presumo que não suspeitas de mim? E se não, e obviamente também não de ti mesmo, só fica o centurião Macro. -
Fez uma pausa. - Pelo que sei, vocês são amigos muito chegados. Servem juntos há muitos anos. Não me vais dizer que suspeitas do Macro?
- Não, senhor. Confiaria a minha vida ao centurião Macro. Nunca suspeitaria que ele me pudesse trair.
- Então tem de haver mais alguém. O soldado que nos trouxe a mensagem. Vou mandar que o interroguem.
- Não foi ele. Deixou o forte pouco tempo depois, teve de ser outra pessoa.
Todos os traços da boa disposição do tribuno se evaporaram do rosto do homem quando pensou compreender por fim o que Cato estava a querer dizer.
- Prefeito, o que estás tu a dizer? Estás a acusar-me? Como te atreves...
- Não, senhor. Não o acuso de nada.
- Como? - Otho parecia confuso. - Então... A minha esposa? Popeia? Estás louco?
- Não, senhor. Apenas desapontado por não ter percebido tudo mais cedo.
A expressão do tribuno toldou-se ainda mais.
- Se isto é alguma espécie de brincadeira, não estou a achar graça nenhuma.
- Onde está a sua esposa neste momento?
- A descansar na minha tenda privada, embora isso não seja da tua conta.
- Senhor, um momento. - Cato levantou-se, caminhou até à entrada da tenda e espreitou para o exterior. Macro estava ali perto, à espera, com Sétimo e o centurião
Lebausco, tal como Cato combinara com ele havia pouco. Ambos admiravam a cota de malha que ele tinha trazido como troféu do bastião. Cato acenou-lhes e os três homens
foram ter com ele à tenda.
Otho olhou para o grupo, sem esconder a desconfiança.
- O que é que isto significa?
- É precisamente o que eu me pergunto - disse Sétimo, enquanto olhava para Cato e arqueava uma sobrancelha. - Será, porventura, que
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os senhores estão a pensar em encomendar um bom vinho para celebrar o vosso glorioso triunfo?
Cato deixou escapar um suspiro impaciente.
- Chegou o momento de abandonares o disfarce.
- Honrado prefeito, estou seguro de que não entendo o que quer dizer.
- Porra, mas afinal o que é que se passa aqui? - irritou-se Otho. - Porque é que fizeste vir até aqui este mercador de vinhos?
- Senhor, ele não é de todo um mercador de vinhos. Não se chama Hiparco, de facto, mas sim Sétimo, e é um agente imperial, enviado pelo próprio Narciso para tentar
deslindar uma conspiração contra o Imperador. Mais especificamente, estava encarregue de identificar um traidor, aliás, a sua esposa, que foi enviada para a Britânia
para minar os nossos esforços de trazer a paz a toda a província. Mais ainda, ela estava também instruída para que eu e o centurião Macro desaparecêssemos de cena.
Sétimo, não é isto tudo verdade?
Por momentos o agente imperial manteve-se calado, com uma expressão impenetrável. Mas acabou por assentir. Otho fitou-o, assombrado.
- Um agente imperial, enviado para desmascarar a minha mulher? É isso? É uma calúnia miserável. Popeia é inocente. É absurdo sugerir tal ideia.
- Mas sê-lo-á realmente? - inquiriu Cato. - Talvez pareça que sim. Quem poderia suspeitar de uma aristocrata, esposa de um tribuno superior? Decerto que isso nunca
passou pela cabeça dos dois homens que foram mortos para que Carátaco fosse libertado. Decerto que não suspeitei eu, nem mesmo depois da batalha, quando, ao que
agora creio, ela me tentou fazer beber vinho envenenado, na tenda da messe. E, mais importante ainda, decerto que não suspeitou o seu próprio marido, mais do que
contente por lhe permitir acompanhá-lo numa missão crucial à capital dos brigantes, onde ela revelou a morte de Ostório aos nossos inimigos. O que me faz perguntar:
pediu-lhe para vir, ou terá sido ela a insistir? E já agora, de quem foi realmente a ideia de ela o acompanhar na vinda para a Britânia?
O queixo do tribuno tinha descaído enquanto escutava Cato, e ele teve de fazer um esforço visível para se recompor e abanar a cabeça.
- Não é verdade. Não pode ser. Não a Popeia. Onde é que estão as provas que te permitam dizer tudo isto?
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- Ela tem apagado a pista de forma quase perfeita. Exceto quanto a esta história de dizer aos rebeldes o que tinha acontecido a Ostório. Assumiu um risco, mas precisava
de o fazer, para fornecer a Venúcio uma arma com que pudesse minar o poder da rainha. Quem mais o poderia ter feito, senhor? Eu? O centurião Macro? O senhor?
- Sim, porque não tu, ou o teu amigo?
- Porque nós sabemos bem a quem dar a nossa lealdade, senhor. Fizemos um juramento de que serviríamos o Imperador. Somos soldados, e não agentes secretos. É por
isso.
- Porra, podem bem ter a certeza disso - acrescentou Macro, de forma enfática.
O tribuno Otho deitou-lhe um olhar furibundo, mas voltou a focar-se em Cato.
- Repito, onde estão as tuas provas? E, sem elas, porque havia eu de acreditar em ti?
Cato coçou a penugem que lhe orlava o queixo.
- Não duvido que Popeia se possa fazer de inocente, e com toda a convicção. No fim de contas, tem sido perfeitamente convincente no papel da esposa mimada de um
aristocrata. Devia ter suspeitado dela mais cedo. Agora já nada posso fazer, a não ser enviar a informação a Narciso. Atrevo-me a dizer que ele se mostrará seriamente
empenhado em interrogá-la, assim que tiver essa possibilidade. E se ela acabar por confessar que trabalha para Palias, ficará numa posição muito perigosa, tal como
qualquer pessoa que esteja associada a ela, de perto ou de longe.
O sangue desapareceu do rosto de Otho.
- Não serias capaz...
Cato ponderou por momentos, e acabou por abanar a cabeça.
- Talvez não; eu não, mas ele fá-lo-ia por certo - designou Sétimo.
- Não é verdade?
O agente imperial lançou um sorriso fino e sem humor.
- Sim, tribuno. É meu dever proteger o Imperador, e nada se pode interpor entre mim e esse objetivo.
- Nada - repetiu Cato. - Como vê, Otho, a sua esposa está envolvida num jogo muito perigoso. Não está apenas a colocar a própria vida em risco, mas também a sua.
Há em Roma homens, como aqui o Sétimo, que são peritos em fazer desaparecer sem grande espalhafato
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os inimigos do Imperador. E acredite-me, não quer um dia ouvi-los a bater-lhe à porta.
O tribuno deixara-se escorregar pela cadeira abaixo, abatido, e colocava a cabeça nas mãos, enquanto murmurava:
- Não pode ser verdade... Não a minha Popeia.
- É verdade - insistiu Cato. - A questão é: o que vamos fazer quanto a isso? Como é evidente, ela não pode continuar a acompanhar o exército. Popeia deve ser enviada
de volta a Roma. Se ela fosse minha esposa, trataria de a fazer compreender que esta loucura tem de parar. Antes que leve a algum desfecho fatal. - Cato fez uma
pausa. - Senhor, se ama a sua esposa, para bem dela, tem de a fazer abandonar esta vida secreta.
Otho manteve-se em silêncio por momentos, dobrado sobre a mesa e a encarar o vazio, horrorizado e estupefacto perante as revelações sobre a sua esposa.
- Não posso acreditar.
- Acredite, tudo o que lhe disse é a verdade. Se quer que ela sobreviva, tem de se assegurar de que ela deixa de trabalhar para o Palias e abandona os esquemas secretos.
Compreende?
Otho levantou o olhar, com uma leve expressão de esperança no rosto.
- Permitirias que ela viva?
- Apenas na condição de que ela cumpra o que proponho. Se tal não suceder, outros tomarão decisões quanto ao seu destino.
- Esperem lá um minuto! - interrompeu Sétimo. - Ela é uma traidora. Não lhe será mostrada qualquer clemência. O meu pai nunca o permitiria.
- O teu pai não está aqui - fez Cato notar.
- Pois não, mas há de saber disto. E, nessa altura, será outra pessoa a ficar em maus lençóis, prefeito Cato.
- Cala-te - ripostou Cato, fatigado. - Cala essa boca de vez.
- Como? - Sétimo deu um passo em frente. - Atreve-se a desafiar o meu pai, ou a mim, que o represento? O que acha que vai dizer o Narciso quando descobrir que a
deixou em paz? A sua vida não valerá nada. Melhor será deixar-me levar Popeia para Roma, para que seja interrogada.
- Não me parece - retorquiu Cato. - Além disso, tenho muitas dúvidas de que a levasses a Narciso. O mais provável era que a entregasses a Palias.
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Sétimo olhou para Cato, assombrado, antes de levantar uma questão num tom quase de murmúrio:
- O que é que isso quer dizer?
- Depressa se tornará claro.
Otho levantou-se da cadeira e fez menção de abandonar a tenda.
- Espere! - Cato bloqueou-lhe a passagem. - Ainda há mais.
- Que mais poderá haver? - retorquiu Otho, distante. - Já disseste o suficiente.
- Nem por sombras. Sente-se.
Otho hesitou, mas acabou por voltar para a cadeira e deixar-se cair nela.
- Então?
- Tem de perceber que a sua esposa não trabalhava sozinha. Tinha um cúmplice. Alguém que também foi enviado para a Britânia, depois dela, que se lhe revelou e que
a ajudou a criar os seus esquemas.
- E quem poderá ser esse personagem?
Cato deu um passo ao lado e apontou para Sétimo.
- Ele.
- Eu? - espantou-se o agente imperial. - Caralho, que história é essa agora?
Cato aproximou-se dele e encarou-o, olhos nos olhos.
- Estás a trabalhar para o Palias, não é?
A testa de Sétimo vincou-se e ele soltou uma risada nervosa.
- Está a brincar. Sabe perfeitamente que eu trabalho para o Narciso. Sabe-o muito bem.
- É bem verdade, até há pouco tempo. Até teres percebido a forma como as coisas estavam a correr na luta de poder entre o Palias e o Narciso. Viste como o teu pai
perdia influência junto do Imperador. E percebeste que, quando o Cláudio desaparecer e a Agripina se assegurar de que o seu filho se torna Imperador, o Narciso estará
morto, e os seus seguidores terão o mesmo destino. Decidiste então que era o momento de trocar de patrão, e entraste num acordo com o Palias, inimigo do teu pai.
Portanto, quando o Narciso te enviou para cá, para sabotares o plano do seu inimigo, nunca poderia suspeitar que, na realidade, farias o que pudesses para assegurar
que ele corria bem. É verdade que eu próprio o devia ter percebido há muito, também.
- Mentiras! - rosnou Sétimo. - Isto é de loucos. Narciso é meu
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pai. Acha que eu trairia o meu próprio pai? A minha carne, o meu sangue?
Macro fitou-o com desprezo.
- O Narciso não passa de uma víbora traiçoeira. Era capaz de apostar bom dinheiro em como a sua descendência herdou essa bonita característica.
- Pfff! - Sétimo rodou para encarar Cato e apontou-lhe um dedo acusador. - Onde está a prova disso? Não foi capaz de apresentar nenhuma quanto à Popeia, e agora
é o mesmo comigo. Não pode provar nada do que está para aí a dizer.
Cato sorriu sem vontade.
- É aí que te enganas, Sétimo. Tapaste os teus rastos com muito cuidado, é verdade. Exceto por um pormenor. Sabíamos que o Venúcio precisava de dinheiro para arranjar
apoiantes para a revolta que planeava. Sem isso, estava perdido. E eis que de repente tem acesso a uma verdadeira fortuna. Encontrámos no salão real um baú cheio
de moedas cunhadas de fresco. Moedas como esta aqui. - Apanhou o denário de prata com que tinha ficado, e mostrou-o aos outros, para que o vissem bem. - Romana.
Foste tu quem lhas deu. Parte do tesouro em prata que trouxeste contigo de Roma, para comprar os serviços de quem pudesse ajudar a causa do teu verdadeiro mestre.
Deste a Carátaco uma pequena fortuna, esperando que ele assim pudesse comprar Venúcio e os seus apoiantes, e sabotar dessa forma os nossos esforços para trazer paz
a toda a Britânia.
- Mais mentiras - concluiu Sétimo, com ar de gozo. - Como é óbvio, ele deve ter arranjado a prata noutro sítio qualquer. O mais provável é que tenha sido a Popeia
a dar-lha, dado que já sabemos que ela é de facto uma traidora.
- Sim, foi o que eu pensei... a princípio - admitiu Cato. - Mas depois pus-me a tentar perceber como é que ela poderia ter entregado a prata nas mãos de Venúcio.
Não estava a ver como tal teria sido possível.
- Passou a moeda ao tribuno Otho. - Senhor, aí tem. Examine-a com cuidado.
Otho franziu o sobrolho, tentando afastar os pensamentos da traição da mulher. Levantou a moeda e escrutinou-a cuidadosamente à fraca luz de uma lamparina. Encolheu
os ombros.
- É um denário, como outro qualquer.
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- Não é exatamente como outro qualquer - retorquiu Cato. - Cheire-o.
Otho hesitou, mas por fim cheirou com cuidado.
- Cheira a... parece... vinagre?
- Não é vinagre, é vinho barato. O Sétimo tem guardado as moedas nas ânforas de vinho. As mesmas ânforas que o vi, ainda ontem, a passar aos homens de Venúcio.
O tribuno cheirou outra vez, e por fim baixou a moeda, enquanto olhava para Sétimo.
- É verdade?
- Claro que não! As moedas podem ter esse cheiro por uma data de razões. Ele mente.
De repente, Macro desferiu um potente murro no estômago de Sétimo, fazendo-o perder o fôlego.
- Cabrão traiçoeiro, não te atrevas a acusar o prefeito de estar a mentir.
Sétimo deixou-se cair no solo, e ficou de gatas, a tentar recuperar o ritmo da respiração. Os outros fitaram-no em silêncio, até que Cato voltou a falar.
- Devia ter visto isto tudo muito antes. Logo quando o Carátaco escapou. Alguém tinha de distrair os dois guardas, de forma a poder, ele ou ela, aproximar-se o suficiente
para os despachar rapidamente. Coisa de um momento, para alguém treinado no uso de uma faca. Poderás ter sido tu ou a Popeia. O mais provável é que ela tenha pedido
para ver o prisioneiro mais uma vez, e que tu lá estivesses ao lado dela, a oferecer aos guardas uns goles do teu vinho. Assim que te aproximaste o suficiente, avançaram
de facas em riste. Entre os dois, foi um instante. Depois de tirarem o Carátaco da gaiola, pensaram em extraí-lo do campo, usando o teu carro. Claro que tinhas de
fazer parecer que ele te tinha surpreendido e feito perder os sentidos antes de escapar com o teu carro e as tuas mulas. Daí teres levado aquela pancada na cabeça,
e antes disso teres deliberadamente deixado a tua bolsa na minha tenda, de forma a teres um bom motivo para andar por ali na altura em que o Carátaco escapou, de
modo a corresponder à história de que ele te deixara desacordado e levara o teu carro.
- Mas eu fiquei mesmo desmaiado.
- Tinha de ser convincente. Mas o golpe foi ligeiro. Foi o que disse
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o médico na enfermaria. - Cato considerou o opositor, e abanou a cabeça, triste. - Já não há qualquer dúvida na minha mente, Sétimo. Trabalhas para o Palias desde
antes de saíres de Roma. Assassinaste dois dos homens do Macro, ajudaste o Carátaco a fugir e forneceste a prata que permitiu desestabilizar a nação brigante. A
questão é: o que é que fazemos contigo?
- Bom, e o que é que vamos fazer com ele? - repetiu Macro.
Cato limpou a garganta e respondeu num tom calmo:
- Vai desaparecer. Tal e qual as suas vítimas lá em Roma. Direi ao Narciso que ele foi morto durante a refrega com o Venúcio. Nada temos a ganhar em revelar-lhe
a verdade sobre o filho.
- Porque é que não lhe dizemos? - indagou Macro. - Ele merece ficar a saber o género de criatura que engendrou.
Cato abanou a cabeça.
- O Narciso não tem qualquer futuro. Está já condenado. Não vejo qualquer razão para agravar o que ele vai padecer às mãos dos seus inimigos.
- A sério? - Macro fungou. - Nesse caso, és um homem bem melhor do que eu.
- Não. Não me parece, meu amigo. Além disso, a influência de Narciso pode estar a dissipar-se, mas ele ainda tem poder suficiente para nos perseguir, se achar que
deve vingar o filho.
- Bom, e agora? - interrompeu Lebausco. Aplicou um pontapé em Sétimo, fazendo-o espalhar-se sobre o solo. - O que é que fazemos com este pedaço de merda, então?
Cato ripostou sem hesitação:
- Ele vai morrer. Agora mesmo. Macro, levante-o do chão.
Os olhos de Sétimo esbugalharam-se de terror, e ele tentou escapulir-se de gatas para a entrada da tenda. Mas Macro alcançou-o de imediato e obrigou-o a pôr-se de
pé, antes de lhe prender os braços atrás das costas.
- Lebausco... - Cato acenou. - Mata-o.
- Com todo o prazer - rosnou o centurião. Desembainhou a espada e aproximou-se do espião, que se contorcia desesperadamente. Inclinou-se para ele e pronunciou umas
palavras: - Isto é por todos os rapazes que morreram hoje.
- Espera! - lançou Sétimo, em pânico. - Não podes...
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Lebausco segurou a espada junto à cintura e orientou a ponta para cima, num ângulo calculado para atingir o coração da vítima.
Então empurrou a lâmina, rompendo o tecido da túnica de Sétimo, rasgando-lhe o estômago e penetrando por baixo das costelas. Sétimo lançou a cabeça para trás, contra
o ombro de Macro, e escancarou a boca num gemido de medo e dor. Lebausco rangeu os dentes enquanto puxava a lâmina e voltava a cravá-la, remexendo-a nas entranhas
do homem, destruindo-lhe os órgãos vitais. Otho contemplava a execução, horrorizado.
- Não... - Sétimo balbuciou um último protesto, como se ainda pudesse salvar-se. - Não.
Lebausco puxou a lâmina num repente e recuou um passo da sua vítima. A frente da túnica de Sétimo já estava encharcada em sangue e, quando Macro o soltou, ele ruiu
para o solo e rebolou até ficar de lado, tentando ainda respirar. Os pulmões já estavam cheios de sangue, que saía aos salpicos dos lábios do espião enquanto ele
tremia, até que por fim ficou imóvel. Lebausco debruçou-se e usou a túnica do cadáver para limpar o sangue da espada.
- E agora? - indagou Macro. - Livramo-nos dele?
Cato abanou a cabeça.
- Não. Deixem-no aí. Parece-me que o tribuno precisa que lhe lembrem os perigos de conspirar contra o Imperador. Desta vez foi o Sétimo. Da próxima, poderá muito
bem ser a sua esposa, ou alguém próximo dela... Vamos.
Cato virava-se já para sair quando todos escutaram uma troca de senhas ali perto, e um vulto surgiu à entrada da tenda.
- Tribuno Otho?
- Sim. - Otho tentou recuperar alguma compostura. - Sou eu.
- Senhor, mensagem do legado Quintato. - O homem entrou na tenda e Cato reparou que o soldado estava coberto de pó e lama, devido a ter passado alguns dias na estrada
desde Viroconium. O homem deteve-se ao avistar o corpo e olhou para os oficiais. Quando ninguém reagiu, procurou no bornal e extraiu um tubo de couro que ostentava
o selo do legado. Entregou-o ao tribuno e afastou-se da mesa.
Otho pegou no tubo e avaliou o recém-chegado, enquanto continuava a tentar recuperar dos acontecimentos.
- Parece-me que te dava jeito algum descanso, comida e bebida. Pede a um dos meus homens que trate disso.
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- Sim, senhor. - O soldado fez uma saudação, lançou um último olhar ao cadáver e deixou a tenda.
Otho continuou a segurar a mensagem na mão, enquanto também ele contemplava o corpo. Os outros mantiveram-se em silêncio, até que por fim Cato tossicou.
- Senhor, não a vai ler?
- O quê? Ah, sim. - Otho abanou a cabeça. - Não. Por agora, não. Há uma coisa que tenho de fazer primeiro. Antes de poder retomar o comando da coluna. Cato, estás
no comando. Até que eu esteja pronto a assumir a responsabilidade... Lê-a tu. - Levantou-se abruptamente da cadeira e rodeou a secretária, oferecendo a Cato o estojo
de couro. - Lê-a e age como achares conveniente. Se precisares de alguma coisa, eu estarei junto da minha esposa.
Cato anuiu.
- Sim, senhor. Compreendo. Tratarei de tudo.
Otho assentiu.
- Muito obrigado. És um bom homem. Isso vê-se.
Passou cautelosamente por cima do cadáver e apressou-se, fazendo dançar as abas da entrada e deixando-as a oscilar. Cato virou-se para Lebausco.
- Parece-me que já vincámos a nossa posição. Trata de tirar o corpo daqui. Leva-o para fora do campo e enterra-o. Mas não deixes qualquer traço. Deixa tudo como
se a terra o tivesse tragado. Percebido?
- Sim, senhor. - Lebausco fez a saudação regulamentar. - Tratarei disso imediatamente.
Saiu, e Cato foi-se sentar na cadeira do tribuno, enquanto quebrava o selo do estojo. Extraiu o rolo de papiro e alisou-o sobre a mesa, para o ler sem dificuldade.
Por fim, levantou o olhar e enfrentou o ar expectante de Macro.
- Então?
- O legado quer-nos de volta a Viroconium, o mais depressa possível. Há problemas com os ordovicos. Os druidas conseguiram incitá-los outra vez ao combate. Têm feito
ataques ao longo de toda a fronteira. O Quintato precisa de todos os homens para os conter.
Macro encolheu os ombros.
- Não há sossego para nós, portanto.
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- Parece que não. Levantamos campo amanhã, depois de os homens descansarem. Bem o merecem.
- Eles e nós, miúdo. Eles e nós. - Macro sorriu. - Por acaso, até sei de uma pequena reserva de vinho que precisa de ser bebida. Só teve um dono. Queres fazer-me
companhia?
Cato levantou-se.
- Quero... Quero, sim. Preciso mesmo de uma bebida.
- É esse o espírito. Vamos lá a isso. - Macro conduziu o amigo para a saída da tenda. Lá fora, a última faixa de luz cruzava o horizonte, e as primeiras estrelas
rompiam aqui e ali o aveludado céu noturno. Pássaros chamavam por entre as trevas, fazendo-se ouvir claramente sobre o burburinho familiar de um campo militar. Afastaram-se
da tenda do quartel-general a passos largos e Macro riu-se.
- E quem sabe, com um bocadinho de sorte, ainda acabamos por nos cruzar com algumas moedas de que ele se tenha esquecido pelo caminho. Nem só as nuvens têm margens
prateadas...
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UMA BREVE INTRODUÇÃO AO EXÉRCITO ROMANO
A Décima Quarta Legião, como todas as outras, era composta por cinco mil e quinhentos homens. A unidade básica era a centúria de oitenta homens, comandados por um
centurião. A centúria dividia-se em secções de oito homens que partilhavam o alojamento: um quarto nas casernas, uma tenda quando em campanha. Seis centúrias compunham
uma coorte, e dez coortes constituíam uma legião, embora a primeira coorte tivesse o dobro do efetivo das outras. Cada legião era acompanhada por um contingente
de cavalaria de 120 homens, divididos em quatro esquadrões, que serviam como batedores e mensageiros. Por ordem descendente, as patentes principais eram as seguintes:
O legado era um homem de ascendência aristocrática. Andaria tipicamente pelos trinta e cinco anos; comandava a legião durante um período que podia chegar aos cinco
anos, e tinha como objetivo ganhar renome, de forma a dar um bom impulso à carreira política que se seguiria.
O prefeito do campo era um veterano de vasta experiência, que fora previamente o centurião mais antigo de uma legião, e que atingira assim o topo da carreira de
um soldado profissional. Dada a sua enorme experiência e comprovada integridade, era sobre ele que recaía o comando de uma legião, no caso de o legado estar ausente
ou impedido de exercer o cargo por algum ferimento ou morte.
Seis tribunos serviam como oficiais subalternos do estado-maior. Seriam homens de vinte e poucos anos, que serviam pela primeira vez no exército, como forma de ganharem
experiência administrativa, antes de assumirem postos intermédios na administração civil. O tribuno mais antigo era um caso diferente. Tinha à espera no futuro um
cargo político importante, talvez mesmo o comando de uma legião.
Sessenta centuriões davam à legião uma espinha dorsal, quer em
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termos disciplinares quer quanto à instrução dos homens. Eram criteriosamente escolhidos, depois de demonstrarem qualidades de comando e disponibilidade para combaterem
até à morte. Por isso mesmo, a taxa de baixas entre eles era desproporcionalmente elevada, em comparação com as outras patentes. O centurião mais antigo comandava
a primeira centúria da primeira coorte, e era um indivíduo amplamente respeitado e muitas vezes condecorado.
Os quatro decuriões da legião comandavam os esquadrões de cavalaria, embora ainda seja tema de debate se existia ou não um centurião a exercer o comando global do
contingente montado de uma legião.
Cada centurião tinha um assistente, um optio, que tinha algumas atribuições menores de comando. Os optios aguardavam por uma vaga no centurionato, na esperança de
uma promoção.
Abaixo dos optios existiam os legionários, homens que se tinham alistado por um período de vinte e cinco anos. Em teoria, era necessário que um indivíduo fosse cidadão
romano para se poder alistar, mas o número de recrutas provenientes das populações de outras áreas aumentava sem cessar; estes homens recebiam a cidadania romana
no ato de alistamento. Os legionários eram bem pagos e podiam esperar receber do Imperador bónus ocasionais, de montante valioso (sempre que ele sentisse que era
preciso dar um incentivo à lealdade dos exércitos!).
Com um estatuto inferior ao dos legionários, existiam os homens que compunham as coortes auxiliares. Eram recrutados nas províncias, e forneciam ao Império Romano
unidades de cavalaria, infantaria ligeira e outras especialidades. A cidadania romana era-lhes concedida ao completarem os vinte e cinco anos de serviço.
As unidades de cavalaria, como a Segunda Coorte Trácia, tinham um efetivo que podia ser de cerca de quinhentos ou de mil homens; as unidades mais numerosas eram
reservadas a comandantes de grande experiência e capacidade. Existiam ainda coortes mistas, geralmente com um terço de homens montados e dois terços de infantaria, que eram usadas para tarefas de policiamento do território.
Simon Scarrow
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