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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IRON KISSED / Patricia Briggs
IRON KISSED / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A mecânica Mercy Thompson pode mudar sua forma-mas não sua lealdade. Quando seu antigo chefe e mentor é preso por assassinato e deixado para apodrecer atrás das grades por sua própria raça, é dever de Mercy limpar seu nome, quer ele queira que ela o faça ou não.
A lealdade de Mercy está sob pressão de outras direções também. Lobisomens não são conhecidos por sua paciência, e se Mercy não conseguir decidir entre os dois homens de quem ela gosta, Sam e Adam podem escolher por ela...

 

 

 

 

 

 

- Um vaqueiro, um advogado e uma mecânica vendo A Rainha dos Condenados - murmurei.

Warren, que há muito tempo havia sido um vaqueiro, soltou um risinho abafado e maneou os pés descalços. - Podia ser o início de uma piada ruim ou de uma história de terror.

- Não. - Kyle, o advogado disse, cuja a cabeça estava apoiada na minha coxa. - Se quiser uma história de terror, tem que começar com "um lobisomem, o seu amante deslumbrante e uma andarilha"...

Warren, o lobisomem riu e balançou a cabeça.

- É muito confuso. São muito poucas as pessoas que ainda se lembram do que é um andarilho.

Sobretudo nos confundiam com os andarilhos de pele. Uma vez que tanto os andarilhos quando os andarilhos de pele são metamorfos índio-americanos, era mais ou menos capaz de compreender a confusão. Especialmente porque tenho certeza que o rótulo "andarilho" surgiu de um idiota branco qualquer que não conseguia notar a diferença.

Mas eu não sou uma andarilha de pele. Em primeiro lugar, sou da tribo errada. O meu pai tinha sido um Blackfoot, de uma tribo da zona norte de Montana, e os andarilhos de pele vem de tribos do Sudoeste, sobretudo dos Hopi ou dos Navajos.

Em segundo lugar, os andarilhos de pele tem que vestir a pele do animal em que se transformam, normalmente um coiote ou um lobo, mas não conseguem mudar os seus olhos. São magos malévolos que espalham a doença e a morte por onde quer que passem.

Quando me transformo em coiote, não preciso de uma pele ou... Olhei na direção de Warren, a muito tempo era um vaqueiro e agora um lobisomem da Lua. Quando sou uma coiote, me pareço com todos os outros coiotes. Bastante inofensiva, na verdade, ocupando a posição mais baixa possível na escala de poder das criaturas magicas que viviam no estado de Washington. Que é um dos aspectos que costumava me ajudar a me manter em segurança. Eu simplesmente nem era digna de que alguém se preocupasse comigo. Isso tinha mudado ao longo do ano passado. Não que eu tivesse me tornado mais poderosa, mas eu começara a fazer coisas que atraiam a atenção. Quando os vampiros descobrissem que eu tinha matado não um, mas dois dos da sua espécie...

Como se chamado pelos meus pensamentos, um vampiro atravessou a tela da televisão, uma televisão tão grande que não caberia na sala de estar do meu trailer. Estava com o peito nu e as calças caiam centímetros abaixo de seu quadril sexy.

Ressenti-me ao sentir um arrepio de medo que me percorreu ao invés de sentir desejo. É curioso ver como depois de tê-los matado, os vampiros tinham se tornado mais assustadores. Sonhava com vampiros que saiam rastejando de buracos no chão e que sussurravam coisas das sombras. Sonhava com a sensação de uma estaca deslizando através da carne e presas se afundando em meu braço.

Se a cabeça de Warren estivesse em meu colo e não no de Kyle, teria notado minha reação. Mas Warren estava esticado no chão e concentrado firmemente na tela.

- Sabe... - disse, me aconchegando mais no sofá de couro obscenamente confortável da sala de estar do segundo andar da gigantesca casa de Kyle e tentando soar descontraída. - Estava me perguntando por que Kyle tinha escolhido esse filme. Não esperava que aparecessem tantos peitos masculinos nus em um filme chamado A Rainha dos Condenados.

Warren deu uma risada abafada, comeu uma mão de pipoca da tigela que estava em seu estômago plano, e depois, com sua voz áspera e de um modo lento e arrastado típico do Texas, disse: - Estava à espera de mais mulheres nuas e menos homens seminus, não é Mercy? Devia conhecer Kyle melhor do que isso. - ele riu baixinho mais uma vez e apontou para a rela. - Olha lá, não sabia que os vampiros eram imunes a gravidade. Já viu algum se pendurar no teto?

Balancei a cabeça e vi quando o vampiro caía em cima das suas duas vítimas groupies.

- Mas acho que não são capazes. Também não os vi comendo pessoas. Eca.

- Cala a boca. Eu gosto desse filme. - Kyle, o advogado, defendeu a sua escolha. -Montes de homens bonitos enroscados em lençóis e andando de um lado para o outro com calças de cintura baixa e sem camisa. Pensei que talvez fosse gostar, Mercy.

Olhei pra ele, para cada adorável e artificialmente bronzeado centímetro dele, e me ocorreu que era mais interessante do que qualquer um dos homens bonitos da tela, mais real.

Na aparência era quase um estereótipo de um homem gay, desde o gel no cabelo castanho-escuro cortado semanalmente até as roupas caras e de bom gosto que vestia. Se as pessoas não fossem cuidadosas, não se davam conta da inteligência perspicaz que se escondia por baixo do exterior bonito. Que era, já que se tratava de Kyle, o propósito da fachada.

- De fato, isso não é suficiente ruim para uma noite de cinema ruim. - Kyle continuou, sem se preocupar com o fato de estar interrompendo o filme. Ninguém estava assistindo por causa dos seus brilhantes diálogos. - Eu teria trazido Blade III, mas, estranhamente, já tinha sido alugado.

- Qualquer filme com o Wesley Snipes vale a pena ver, mesmo se tiver que tirar o som. - me virei e me curvei para roubar uma mão cheia de pipoca de Warren. Ainda estava muito magro, isso e o fato de mancar eram lembretes de que há apenas um mês tinha ficado tão gravemente ferido que pensava que ia morrer. Os lobisomens são duros, abençoados sejam, senão o teríamos perdido para um vampiro que transportava um demônio. Esse tinha sido o primeiro vampiro que eu matara, com o total conhecimento e permissão da Senhora dos vampiros locais. O fato de ela, na verdade, não querer que eu o tivesse matado não negava que o tinha feito com a sua benção. Não podia fazer nada por causa da morte dele, e ela não sabia que eu era responsável pela outra.

- Desde que ele não esteja vestido como travesti. - Warren disse entre risos.

Kyle desatou a rir em sinal de concordância.

- O Wesley Snipes pode ser um homem bonito, mas dá uma mulher feia como o diabo.

- Ei. - me opus, voltando a me concentrar na conversa. - Os Três Mosqueteiros do Amor é um bom filme. - tínhamos visto ele em minha casa na semana passada.

Um ligeiro zumbido subiu pelas escadas e Kyle se arrastou para fora do sofá e se pôs em um movimento gracioso, parecido com um passo de dança, que escapou aos olhos de Warren. Ainda estava concentrado no filme, embora o seu sorriso provavelmente não fosse a reação que os produtores do filme tinham em mente para a cena do banho de sangue. Os meus sentimentos estavam muito mais alinhados com os resultados desejados. Era muito fácil me imaginar no papel da vítima.

- Os brownies estão prontos, meus queridos. - Kyle anunciou. - Alguém quer beber mais alguma coisa?

- Não, obrigada. - era só faz-de-conta, pensei enquanto observava o vampiro se alimentar.

- Warren?

Ao ouvir seu nome, Warren finalmente desviou os olhos da televisão.

- Um pouco de água seria bom.

Warren não era tão bonito quanto Kyle, mas tinha um aspecto robusto. Observou Kyle descer as escadas com olhos famintos.

Sorri para mim mesma. Era bom ver Warren finalmente feliz. Mas o olhar que me lançou assim que Kyle desapareceu de vista era sério. Utilizou o controle para aumentar o volume e depois se sentou direito me encarando, sabendo que Kyle não nos ouviria.

- Precisa escolher. - me disse de forma intensa. - Ou Adam ou Samuel, ou nenhum dos dois. Mas não pode continuar indecisa entre um e outro.

Adam era o Alfa do bando de lobos locais, meu vizinho, e as vezes minha companhia em encontros. Samuel tinha sido o meu primeiro amor, a minha primeira desilusão amorosa, e atualmente meu companheiro de casa. Apenas meu companheiro de casa, embora ele gostaria de ser mais do que isso.

Não confiava em nenhum dos dois. O exterior despreocupado de Samuel mascarava um paciente e implacável predador. E Adam... bem, Adam simplesmente me assustava. E sentia muito medo da possibilidade de amar os dois.

- Eu sei.

Warren abaixou os olhos, um claro sinal de que se sentia desconfortável.

- Não escovei os dentes com pólvora de manhã para poder andar disparando com a boca, Mercy, mas isso é sério. Eu sei que tem sido difícil, mas não é possível haver dois lobisomens dominantes atrás da mesma mulher sem que isso implique em derramamento de sangue. Não conheço mais nenhum que tivesse permitido tanta liberdade de movimentos como eles, mas em breve um deles vai ceder.

Meu celular começou a tocar The Baby Elephant Walk. Tirei do bolso e olhei para o identificador de chamadas.

- Acredito no que diz. - repliquei. - Simplesmente não sei o que fazer em relação a isso. - em relação a Samuel, a questão não se reduzia a um amor eterno da minha parte, mas isso era entre eu e ele, Warren não tinha nada a ver com isso. E Adam... pela primeira vez me perguntava se não seria mais fácil eu simplesmente ir embora.

O telefone continuou a tocar.

- É Zee. - disse. - Tenho que atender.

Zee era o meu antigo patrão e mentor. Tinha me ensinado a reconstruir um motor a partir do nada e tinha me dado os instrumentos para matar os vampiros responsáveis pelo mancar de Warren e pelos pesadelos que lhe deixaram ligeiras rugas em volta dos olhos. Entendi que isso dava a Zee o direito de interromper a Sessão de Cinema de Sábado a Noite.

- Pense nisso.

Warren disse com um sorriso tênue e abri o celular.

- Ei, Zee.

Fez-se uma pausa do outro lado.

- Mercedes. - disse, e nem seu carregado sotaque alemão disfarçou o tom hesitante da voz. Algo estava errado.

- Do que precisa? - perguntei, me sentando de forma mais vertical e colocando os pés no chão. - Warren está aqui. - acrescentei para que Zee soubesse que tínhamos plateia. Os lobisomens fazem com que seja difícil ter uma conversa privada.

- Vem comigo à reserva?

Podia estar falando da Reserva Umatilla, que era a uma distância das Tri-Cities. Mas era Zee, portanto estava falando da Reserva Ronald Wilson Reagan de Seres Fae, mesmo do lado de cá de Walla Walla, mais conhecida nessas bandas por Fairyland.

- Agora? - perguntei.

Além disso... Lancei meus olhos ao vampiro na televisão gigante. Ainda não tinham feito a coisa certa, não tinham capturado o verdadeiro mal mas, de qualquer modo, estava perto demais para servir de consolo. De certo modo, não me sentia particularmente triste por perder o resto do filme, ou mais conversa sobre minha vida amorosa.

- Não. - Zee disse irritado. - Para a semana que vem. Jetzt. Agora, claro. Onde que está? Eu vou te buscar.

- Sabe onde fica a casa do Kyle? - perguntei.

- Kyle?

- O namorado do Warren. - Zee conhecia Warren, não tinha notado que não conhecera Kyle. - Estamos em West Richland.

- Me dê o endereço. Eu vou encontrar.

 

 

O carro de Zee ronronava através da autoestrada apesar de ser mais velha do que eu. Pena que o estofado não estivesse em tão bom estado como o motor. Desviei o traseiro alguns centímetros para evitar que uma mola se afundasse muito.

As luzes do painel iluminavam o rosto de feições irregulares que Zee apresentava ao mundo. O seu fino cabelo branco estava ligeiramente bagunçado, como se tivesse estado esfregando-o com as mãos.

Warren não disse nada sobre Adam ou Samuel depois de eu ter desligado o telefone porque Kyle, graças a Deus, tinha voltado com os brownies. Não que a interferência de Warren me incomodasse, eu tinha interferido o suficiente em sua vida amorosa e entendia que ele tinha o direito de fazê-lo. Simplesmente não queria mais pensar sobre o assunto.

Zee e eu seguimos a maior parte do caminho, desde West Richland, passando por Richland até Pasco, em silêncio. Sabia que não devia tentar sacar nada do velho gremlim até que ele estivesse pronto para falar, portanto o deixei em paz até se decidir abrir a boca. Pelo menos após as primeiras dez ou quinze perguntas que não tinha respondido.

- Alguma vez foi à reserva? - perguntou abruptamente enquanto atravessávamos o rio na saída de Pasco na autoestrada para Walla Walla.

- Não. - a reserva de Seres Fae de Nevada acolhia visitantes com prazer. Tinham construído um casino e um pequeno parque temático para atrair turistas. A reserva Walla Walla, contudo, desencorajava ativamente a entrada de quem não fosse um ser Fae. Não sabia ao certo se eram os agentes federais ou os próprios seres Fae os responsáveis pela reputação pouco simpática.

Zee, em um gesto triste, deu pancadas de leve no volante com mãos que pertenciam a um homem que passara toda a vida consertando carros, robustas e marcadas com cicatrizes e com óleo tão impregnado que nem pedra-pomes removeria.

Eram as mãos perfeitas para o humano que Zee fingia ser. Quando os Senhores Cinzentos, os poderosos e impiedosos seres que governavam as criaturas Fae em segredo, o forçaram a admitir ao público o que era há alguns anos, uma década ou mais após a primeira criatura Fae ter vindo a público. Zee não se preocupava minimamente em alterar seu aspecto exterior.

O conhecia a pouco mais de dez anos, e o rosto de velho carrancudo fora o único que eu tinha visto. Ele tinha outro, eu sabia disso. A maior parte dos Fae vivia no meio dos humanos com seu glamour, mesmo que admitissem o que eram. As pessoas simplesmente não estão preparadas para lidar com a verdadeira aparência de uma criatura Fae. Claro, algumas delas tinham um aspecto suficientemente humano, mas também não envelhecem. O cabelo desgastado e a pele enrugada e manchada pela idade eram sinais inequívocos de que Zee não ostentava a sua verdadeira face. A sua expressão carrancuda, todavia, não era nenhum disfarce.

- Não coma nem beba nada. - disse abruptamente.

- Eu li todos os contos de fadas. - lembrei-o. - Nada de comida, nem bebida. Nada de favores. Nada de agradecer a ninguém.

Grunhiu.

- Contos de fadas. Malditas histórias para crianças.

- Também li Katherine Briggs. - indiquei. -E os livros originais dos Irmãos Grimm. - sobretudo a procura de alguma menção a um ser Fae que pudesse ter sido Zee. Não falava sobre o assunto, embora eu pense que ele tivesse sido Alguém. Portanto, descobrir quem tinha sido ele, tinha se tornado uma espécie de passatempo para mim.

- Bom. Bom, mas não é grande coisa. - começou a tamborilar os dedos no volante. - Briggs era uma arquivista. Os seus livros são tão corretos quanto as suas fontes e são, sobretudo, perigosamente incompletos. As histórias dos Irmãos Grimm dizem mais a respeito do entretenimento do que a realidade. Ambos são nur Schaten... apenas sombras da realidade. - olhou para mim, um breve olhar penetrante. - Tio Mike sugeriu que talvez pudesse ser útil aqui. Entendi que seria uma retribuição melhor do que outra que pudesse pagar.

Para matar um vampiro feiticeiro, que estava sendo gradualmente dominado pelo demônio que o tornara feiticeiro, Zee tinha arriscado a ira dos Senhores Cinzentos ao me conceder um par de preciosidades dos Fae. Tinha matado aquele feiticeiro, e depois tinha matado aquele que o criara. Como acontece nas histórias, se usar uma dádiva Fae mais vezes do que as permitidas, há consequências.

Se soubesse que essa seria a retribuição pelos favores prestados, teria ficado mais apreensiva desde o começo, a ultima circunstancia em que tivera de retribuir um favor não tinha acabado bem.

- Não vai haver problema. - disse, apesar do nó frio de pavor no meu estômago.

Lançou-me um olhar irritado. - Não tinha pensado sobre o que pode significar te trazer para a reserva depois do anoitecer.

- As pessoas vão para a reserva. - afirmei, apesar de na verdade não ter certeza disso.

- Não pessoas como você, e nenhum visitando depois do anoitecer. - balançou a cabeça. - Um humano entra e vê o que deveria ver, especialmente a luz do dia, quando os seus olhos são mais fáceis de enganar. Mas você... Os Senhores Cinzentos proibiram a caça aos humanos, mas temos nossos vários predadores e é difícil contrariar a natureza. Especialmente quando os Senhores Cinzentos que definem as nossas regras não estão aqui. E se ver o que não deveria, haverá quem diga que estava apenas protegendo aquilo que lhe pertence...

Apenas quando mudou para o alemão que notei que estava falando comigo durante a última metade do discurso. Graças a Zee, meu alemão era melhor do que tinha aprendido em dois anos de faculdade, mas não bom ao ponto de conseguir acompanha-lo quando se empolgava.

Passava das oito da noite, mas o sol ainda lançava seu olhar quente sobre as árvores nas montanhas ao nosso lado. As arvores maiores ainda estavam verdes, mas alguns dos arbustos menores davam indícios das gloriosas cores do outono.

Perto das Tri-Cities, as únicas árvores encontravam-se na cidade, onde as pessoas as mantinham regadas ao longo dos brutais verões, ou ao longo de um dos rios. Mas a medida que nos aproximávamos de Walla Walla, onde as Blue Mountains ajudavam a espremer um pouco mais de umidade no ar, a região rural tornava-se lentamente mais verde.

- O pior é que... - Zee disse, mudando finalmente para o inglês. - Não me parece que você será capaz de dizer alguma coisa que nós já não saibamos.

- Em relação a quê?

Deu-me um olhar envergonhado, algo que encaixava de forma estranha em seu rosto.

- Já, estou misturando tudo. Deixe-me começar de novo. - inalou uma porção de ar e liberou com um suspiro. - Dentro da reserva, fazemos a nossa própria aplicação da lei. Temos esse direito. O fazemos discretamente porque o mundo humano não está preparado para as formas que temos de aplicar a lei. Não é lá muito fácil prender um de nós, não é verdade?

- Os lobisomens têm o mesmo problema. - comentei.

- Ja, aposto que sim. - assentiu com um aceno de cabeça brusco. - Então. Tem havido mortes na reserva ultimamente. Nós achamos que se trata da mesma pessoa em todos os casos.

- Você está na força polícial da reserva? - perguntei.

Balançou a cabeça.

- Nós não temos isso. Não dessa maneira. Mas o Tio Mike está no Conselho. Ele achou que o seu olfato apurado poderia ser útil e mandou-me te buscar.

Tio Mike era o dono de um bar em Pasco que servia os Fae e algumas das outras pessoas mágicas que viviam na cidade. Que ele era poderoso, eu sempre soube, de outro modo como conseguiria encobrir tantas criaturas Fae? Não fazia ideia que pertencia ao Conselho. Talvez se soubesse da existência de um Conselho, pudesse ter suspeitado.

- Nenhum de vocês é capaz de fazer o mesmo que eu? - levantei a mão para impedi-lo de responder de imediato. - Não que eu me importe. Consigo imaginar formas bem piores de pagar a minha divida. Mas porque eu? O gigante do Jack não sentiu o cheiro do sangue de um inglês por causa do Pete? E a magia? Nenhum de vocês é capaz de encontrar o assassino com magia?

Não sei muito sobre magia, mas acreditaria que uma reserva de Fae teria alguém cuja magia seria mais útil do que o meu olfato.

- Talvez os Senhores Cinzentos fossem capazes de fazer magia para descobrir o culpado. - Zee disse. - Mas não queremos chamar a atenção deles, é muito arriscado. Tirando os Senhores Cinzentos... - encolheu os ombros. - O assassino está se revelando surpreendentemente esquivo. No que diz respeito ao olfato, a maior parte de nós não é dotada a esse nível. Foi um talento em grande escala dado apenas às bestas. Assim que determinaram que seria mais seguro para todos nós nos misturarmos com os humanos em vez de vivermos à parte, os Senhores Cinzentos mataram a maior parte das bestas entre nós, que tinham sobrevivido a chegada de Cristo e do ferro frio. Talvez haja uma ou duas aqui com capacidade de farejar pessoas, mas são tão impotentes que não são confiáveis.

- Como assim?

Dirigiu-se a mim um olhar irritado.

- Os nossos procedimentos são diferentes dos seus. Se alguém não tem poder para se proteger, não se pode dar ao luxo de ofender ninguém. Se o assassino for poderoso ou bem relacionado, nenhuma das criaturas Fae será capaz de sentir o cheiro se mostrará disposta a acusa-lo.

Sorriu, em um pequeno e amargo movimento sutil dos lábios.

- Podemos não ter a possibilidade de mentir... mas a verdade e a honestidade são muito diferentes.

Eu tinha sido criada por lobisomens que conseguiam, na maioria das vezes, cheirar uma mentira a noventa metros. Conhecia bem a diferença entre verdade e honestidade.

Havia algo em relação ao que ele disse...

- Hmm. Eu não sou poderosa. O que acontece se eu disser alguma coisa que ofenda?

Sorriu.

- Estará aqui como minha convidada. É possível que não sirva para te manter fora de perigo no caso de ver demais. As nossas leis são claras em relação a como lidar com mortais que vagueiam por Underhill e veem mais do que deviam. O fato de ter sido convidada pelo Conselho, que sabe o que você é, e que não é propriamente humana, deve te dar alguma imunidade. Mas quem se sentir ofendido quando falar a verdade terá, segundo as nossas leis para convidados, de vir atrás de mim e não de você. E eu sei me proteger.

Acreditei no que me disse. Zee se autodenomina gremlim, o que provavelmente é mais preciso do que impreciso, à exceção do fato de a palavra gremlim ser muito mais recente do que Zee. Ele é um dos poucos dos Fae que tem afinidade com o ferro, o que lhe dá toda espécie de vantagem em relação aos outros Fae. O ferro é fatal para a maior parte deles.

Não havia qualquer placa que indicasse a bem preservada estrada do distrito para a qual entramos depois de sair da autoestrada. A estrada serpenteava através de pequenas colinas arborizadas que me faziam lembrar mais Montana do que o território árido, coberto de bromo e artemísias ao redor das Tri-Cities.

Contornamos uma esquina, seguimos através de uma parte de terreno povoada de álamos, e emergimos entre duas paredes de blocos de cimento cor de canela que se erguiam de ambos os lados, com cinco metros de altura e arame farpado ao longo do topo para fazer com que os convidados se sentissem ainda mais bem-vindos.

- Parece uma prisão. - comentei. A combinação de estrada estreita e paredes altas me fez sentir claustrofóbica.

- Sim. - Zee concordou com um tom sombrio. - Me esqueci de perguntar, tem carteira de motorista com você?

- Sim.

- Ótimo. Mercy, quero que saiba que há muitas criaturas na reserva que não são fãs de humanos, e você está suficientemente próxima de um humano para não cair na graça deles. Se ultrapassar muito os limites, te matarão primeiro e depois me deixarão fazer justiça.

- Eu vou ter cuidado com o que digo. - repliquei.

Grunhiu e fez um gesto pouco lisonjeiro.

- Só acredito vendo. Quem me dera que o Tio Mike também estivesse aqui. Nesse caso não se atreveriam em te incomodar.

- Pensava que isso tinha sido ideia do Tio Mike.

- E foi, mas ele está trabalhando essa noite, e não pôde sair da taberna.

Devemos ter percorrido um quilômetro até finalmente a estrava fazer uma curva abrupta à direita e revelar uma guarita e um portão. Zee parou o carro e abriu a janela à manivela.

O guarda vestia um uniforme militar com um emblema enorme do GAF no braço. Não estava suficientemente familiarizada com o GAF (Gabinete dos Assuntos Fae) para saber que unidade militar estava associada a ele, se é que havia alguma. O guarda tinha aquele ar de segurança contratado, como se sentisse um pouco deslocado no uniforme mesmo apreciando o poder que lhe proporcionava. No crachá que tinha no peito lia-se O’DONNELL.

Inclinou-se para frente e senti um cheiro de alho e suor, embora não cheirasse a limpo. Simplesmente o meu olfato é mais sensível do que a maior parte das pessoas.

- Identificação. - disse.

Apesar do seu nome irlandês, parecia mais italiano ou francês. Tinha traços bem marcados e o cabelo começava a ficar ralo.

Zee abriu a carteira e entregou a carteira de motorista. O guarda conferiu a fotografia com grande zelo e olhou para Zee. Acenou afirmativamente e grunhiu.

- A dela também.

Já tinha tirado a carteira da bolsa. Entreguei a minha a Zee para que ele passasse ao guarda.

- Não tem designação. - O’Donnell disse, passando o polegar no canto da minha.

- Ela não é um Fae, meu senhor. - Zee explicou em um tom respeitoso que eu nunca tinha escutado.

- Sério? O que a traz por aqui?

- Ela é minha convidada. - Zee respondeu, falando rapidamente como se soubesse que eu estava prestes a dizer ao imbecil que ele não tinha nada a ver com isso.

E ele era, de fato, um imbecil, ele e quem quer que esteja a frente da segurança. Identificações com fotografias para os Fae? A única coisa que todos os Fae tem em comum é o glamour, a capacidade de alterarem a sua aparência. A ilusão é tão boa que afeta não só os sentidos humanos, como a realidade física. É por isso que um ogro de duzentos e trinta e três quilos de altura é capaz de usar um vestido tamanho 36 e dirigir um Mazda MX-5. Não é uma metamorfose, segundo me disseram. Mas no que me diz respeito, pouca diferença faz.

Não sei que tipo de identificação os teria obrigado a usar, mas uma identificação com fotografia era inútil. É claro que os Fae tentavam ao máximo fingir que apenas conseguiam assumir uma forma humana sem nunca dizerem exatamente isso. Talvez tivessem convencido um burocrata qualquer a acreditar nisso.

- Por favor, se importa de sair do carro, minha senhora? - disse o imbecil, saindo da guarita e contornando o carro pela frente até chegar ao meu lado do veículo.

Zee fez um aceno com a cabeça. Sai do carro.

O guarda me rodeou e tive que reprimir um rosnado. Não gosto de ter pessoas que não conheço andando atrás de mim. Não era tão estúpido como tinha parecido inicialmente porque notou isso e voltou a caminhar ao meu redor.

- Brass não gosta de visitantes civis, especialmente depois do anoitecer. - disse a Zee, que tinha saído do carro para ficar ao meu lado.

- Eu tenho permissão, meu senhor. - Zee replicou, ainda naquele tom respeitoso.

O guarda bufou e folheou algumas páginas de seu bloco de notas, embora na verdade eu não acreditasse que estivesse lendo nada.

- Siebold Adelbertsmiter. - pronunciou mal o nome de Zee, fazendo com que soasse a Seabold do que Zeebolt. - Michael McNellis e Olwen Jones. - Michael McNellis podia ser o Tio Mike, ou não. Não conhecia nenhuma criatura Fae chamada Olwen, mas podia contar nos dedos da mão, e ainda sobravam, os Fae que eu conhecia pelo nome. Na sua maioria, os Fae os guardavam para si.

- Isso mesmo. - Zee disse com uma falsa paciência que soava genuína, apenas sabia que era falsa porque Zee não tinha paciência para imbecis, nem para mais ninguém. - Eu sou Siebold. - pronunciou do mesmo modo que O’Donnell.

O tirano insignificante ficou com a minha carteira de motorista e voltou ao seu pequeno escritório. Permaneci no mesmo lugar, portanto não conseguia ver o que ele fazia, embora escutasse o som de teclas de computador. Voltou depois de alguns minutos e devolveu minha carteira.

- Não se meta em problemas, Mercedes Thompson. Fairyland não é um lugar para menininhas bem comportadas.

Obviamente O’Donnell tinha estado doente no dia de se formar em sensibilidade. Por norma não sou muito de ser implicante, mas havia algo ofensivo no modo como disse "menininha". Consciente do olhar cauteloso de Zee, peguei minha carteira e enfiei em meu bolso, tentando guardar para mim aquilo que estava pensando.

Não acredito que minha expressão tenha sido suficientemente agradável, porque pressionou seu rosto no meu.

- Ouviu o que eu disse, menina?

Senti o cheiro de pernil assado com mel e mostarda que teve em seu jantar. Quanto ao alho, provavelmente tinha comido na noite anterior. Talvez tivesse jantado pizza ou lasanha.

- Ouvi. - respondi no tom mais neutro que consegui, mas que claramente não foi bem alcançado.

Indicou a arma que tinha no quadril. Olhou para Zee.

- Ela pode ficar duas horas. Se depois disso não tiver saído, vamos a procura dela.

Zee inclinou a cabeça como fazem os lutadores nos filmes de karatê, sem desviar os olhos do rosto do guarda. Esperou até que o guarda voltasse ao seu escritório antes de voltar a entrar no carro, e eu segui o gesto.

O portão de metal se abriu de par a par com uma relutância que espelhava a postura de O’Donnell. O aço de que era feito foi o primeiro sinal de competência que vi. A menos que houvesse barras de reforço nas paredes, o cimento poderia impedir que pessoas como eu entrassem, mas jamais impediria os Fae de sair. O arame farpado era muito brilhante para ser feito de outra coisa que não fosse alumínio, e o alumínio não incomoda os Fae. É claro que aparentemente a reserva tinha sido feita para delimitar a zona onde os Fae viviam bem como para protege-los, portanto não devia fazer diferença que eles pudessem entrar e sair conforme quisessem, com ou sem portão guardado.

Zee atravessou os portões e entrou em Fairyland.

Não sabia o que esperar da reserva, casas militares de alguma espécie, talvez, ou pequenas casas de campo inglesas. Em vez disso, haviam fileiras atrás de fileiras de casas de rancho bonitas e bem preservadas com anexos de garagens para um carro, dispostas com pátios de dimensão semelhante e cercas idênticas, redes metálicas ao redor do pátio da frente, cedros de 1,80 ao redor do jardim de trás.

A única diferença de uma casa para outra estava na cor e na folhagem nos pátios. Sabia que a reserva existia aqui desde os anos oitenta, mas parecia ter sido construída há um ano.

Haviam carros espalhados aqui e lá, sobretudo SUV e carros, mas não vi ninguém. O único indicio de vida, exceto Zee e eu mesma, era um grande cão preto que nos encarava com olhos inteligentes do pátio de uma casa amarelo-pálida.

O cão elevou o efeito Stepford{1} a um nível hiper sinistro.

Virei-me para comentar com Zee quando notei que meu olfato estava encontrando coisas estranhas.

- Onde está a água? - perguntei.

- Que água? - replicou, erguendo a sobrancelha.

- Sinto cheiro de pântano, água e putrefação e coisas crescendo.

Dirigiu-me um olhar que não consegui decifrar.

- Isso foi o que eu disse ao Tio Mike. O nosso glamour funciona melhor para a visão e o tato, é muito bom para o paladar e a audição, mas não tão bom para o olfato. A maior parte das pessoas não tem um olfato apurado ao ponto de chegar a ser um problema. Você percebeu que eu era um Fae logo que me conheceu.

Na verdade ele estava enganado. Nunca conheci duas pessoas que tivessem exatamente o mesmo cheiro, pensava que aquele odor terroso que ele e seu filho Tad partilhavam era apenas parte das suas essências individuais. Só depois de muito tempo que aprendi a distinguir entre os Fae e os humanos. A menos que viva a uma hora de carro de uma das quatro reservas de seres Fae dos Estados Unidos, a probabilidade de deparar com um não é muito alta. Até ter me mudado para as Tri-Cites e começado a trabalhar para Zee, nunca tinha conhecido conscientemente um Fae.

- Então, onde fica o pântano? - perguntei.

Balançou a cabeça.

- Espero que consiga perceber qualquer recurso que o nosso assassino usou para se disfarçar. Mas para o seu próprio bem, Liebling, espero que deixe os segredos que conseguir dentro da reserva.

Entrou em uma rua que descia e que parecia exatamente como as primeiras quatro que tínhamos percorrido, com exceção de que esta tinha uma garota com oito ou nove anos que brincava com um io-iô em um dos quintais. Observava o brinquedo giratório com tamanha atenção que nem se alterou quando Zee estacionou o carro em frente a sua casa. Quando Zee abriu o portão, pegou o io-iô em uma mão e nos olhou com olhos adultos.

- Não entrou ninguém. - disse.

Zee assentiu com a cabeça.

- Este é o local do último crime. - me explicou. - O encontramos esta manhã. Há mais seis. Os restantes tiveram pessoas que entraram e saíram, mas exceto esta... - indicou a garota com um aceno. - que é um membro do Conselho, e o Tio Mike, não houve mais nenhum intruso desde a morte.

Olhei para a criança que era uma dos membros do Conselho e ela me dirigiu um sorriso e estourou sua bola de chiclete.

Decidi que era mais seguro ignorá-la.

- Quer que eu consiga sentir o cheiro de alguém que tenha estado em todas as casas?

- Se conseguir.

- Não existe exatamente uma base de dados onde os odores estão armazenados como acontece com as impressões digitais. Mesmo que eu sinta o cheiro, não vou ter a mais pálida ideia de quem possa ser, a menos que seja você, Tio Mike ou o seu membro do Conselho aqui. - acenei com a cabeça em direção a garota do io-iô.

Zee sorriu sem humor.

- Se conseguir detectar um cheiro que esteja em todas as casas, te acompanho pessoalmente ao longo de toda a reserva ou de todo o estado de Washington até encontrar o assassino filho da puta.

Foi então que notei que se tratava de uma questão pessoal. Zee não era muito de dizer palavrões e nunca fazia em inglês. Puta, em particular, era uma palavra que nunca tinha usado na minha presença.

- Nesse caso, é melhor eu fazer isso sozinha. - eu disse. - Para que os cheiros que vocês carregam não contaminem o que já está lá. Se importa de que eu use o carro para me transformar?

- Nein,Nein. - respondeu. - Vai se transformar.

Voltei ao carro e senti o olhar fixo da garota atrás de mim por todo o percurso. Tinha um ar muito inocente e indefeso para ser outra coisa que não um ser verdadeiramente ruim.

Entrei no carro, no lado do passageiro para conseguir o maior espaço possível, e tirei toda a minha roupa. Para os lobisomens, a transformação é muito dolorosa, especialmente se esperarem muito tempo para se transformarem em uma noite de Lua Cheia e a Lua os impelir a se transformar.

Para mim, a transformação não causa qualquer dor, na verdade, a sensação é boa, como um alongamento completo depois de fazer exercício físico. Fico com fome, contudo, e se trocar muitas vezes de uma forma para outra, me canso.

Fechei os olhos e passei de humana para minha forma de coiote. Cocei uma orelha com a pata traseira para por fim ao zumbido e em seguida pulei pela janela que tinha deixado aberta.

Os meus sentidos como humana são apurados. Quando mudo de forma, melhoram um pouco, mas é mais que isso. Na forma de coiote, a informação que os meus ouvidos e meu nariz me dão se concentra melhor do que quando estou em forma humana.

Comecei a procurar a partir do portão, tentando sentir os cheiros da casa. Quando alcancei o alpendre, já conhecia o cheiro do macho (não era com certeza um homem, embora não conseguisse determinar com exatidão o que era) que tinha feito desta sua casa. Consegui também detectar a garota, que, entretanto brincava novamente com seu io-iô giratório e agitado, embora estivesse de olhos postos em mim e não no brinquedo.

Com exceção do seu primeiro relato, ela e Zee não tinham trocado nenhuma palavra que eu tivesse escutado. Podia significar que não gostavam um do outro, mas a linguagem corporal deles não era rígida e hostil. Talvez simplesmente não tivessem nada a dizer.

Zee abriu a porta no momento em que parei diante dele, e um sopro de morte foi expelido para o exterior.

Não consegui evitar recuar um passo. Ao que parece, nem mesmo um Fae estava imune ao ultraje da morte. A cautela que me fez rastejar sobre o limiar até a entrada não era necessária, mas algumas coisas, especialmente de coiote, são instintivas.


2

 

Não foi difícil seguir o cheiro de sangue até a sala de estar, onde o Fae tinha sido morto. Haviam generosos salpicos de sangue espalhados por diversas peças da mobília e pelo tapete, com uma mancha maior no local onde o corpo finalmente tinha descansado. Os seus restos mortais tinham sido removidos, mas não fora feito qualquer esforço para limpar o local.

Aos meus olhos inexperientes, não parecia que tivesse oferecido muita resistência uma vez que não havia quebrado ou derrubado. Dava mais a ideia de que alguém tinha se deleitado ao dilacerá-lo.

Tinha sido uma morte violenta, perfeita para criar fantasmas.

Não tinha certeza se Zee e Tio Mike sabiam dos fantasmas. Embora eu nunca tivesse tentado esconder, durante muito tempo não tinha percebido que não era algo que todas as pessoas pudessem fazer.

Foi assim que eu consegui matar o segundo vampiro. Os vampiros tem a capacidade de esconder os seus locais de descanso diurno, mesmo do olfato de um lobisomem ou coiote. Nem mesmo os bons utilizadores de magia conseguem quebrar o seus feitiços de proteção.

Mas eu consigo encontrá-los. Porque as vítimas de mortes traumáticas tendem a prolongar como fantasmas e os vampiros têm vítimas traumáticas de sobra.

Essa é razão pela qual não há muitos andarilhos (nunca conheci outro), os vampiros mataram todos.

No entanto, se o Fae cujo sangue pintou o chão e as paredes se transformara em fantasma, não tinha qualquer desejo de me ver. Não ainda.

Encurvei-me na entrada entre a passagem e a sala de estar e fechei os olhos, para me concentrar mais naquilo que cheirava. O odor da vítima de homicídio, coloquei de lado. Toda casa, como qualquer pessoa, tem um cheiro. Começaria por ali e discriminaria os odores que não pertenciam àquele lugar. Detectei o cheiro essencial da sala, neste caso, sobretudo a fumo de cachimbo, fumo de madeira queimada e lã. O cheiro de madeira queimada era estranho.

Abri os olhos e olhei em volta por via das dúvidas, mas não havia qualquer indicio de uma lareira. Se o cheiro fosse mais tênue, teria presumido que alguém entrara com ele em sua roupa, mas o cheiro era dominante. Talvez ele tivesse arranjado algum incenso ou coisa parecida que cheirasse a fogueira.

Uma vez que descobri que a misteriosa causa do cheiro de madeira queimada, provavelmente seria inútil, voltei a colocar o queixo sobre as patas dianteiras e fechei os olhos novamente.

Depois de saber qual o cheiro da casa, foi mais fácil separar os odores ligeiros que corresponderiam às coisas vivas que tinham entrado e saído. Como prometido, descobri que Tio Mike tinha estado aqui. Também distingui o cheiro apimentado da garota do io-iô, tanto recente quanto antigo. Ela tinha estado aqui muitas vezes.

Absorvi todos os cheiros restantes até sentir que poderia relembrar quando quisesse. A minha memória olfativa é um pouco melhor do que a visual. Posso me esquecer do rosto de alguém, mas raramente me esqueço do seu cheiro ou da voz.

Abri os olhos para investigar a casa mais a fundo e... tudo tinha mudado.

A sala de estar em que entrara era um pouco pequena, bem organizada e tão suave quanto o exterior da casa. A sala em que eu estava agora tinha quase o dobro do tamanho. Em vez da parede de gesso, almofadas de carvalho polido forravam as paredes, cheias de pequenas tapeçarias intrincadas ilustrando cenas na floresta. O sangue da vítima, que tinha acabado de ver espalhado no tapete bege, cobria agora, um tapete aos trapos que estendia-se ao chão de madeira lustrosa.

Contra a parede da frente, onde existia uma janela de frente para a rua, havia uma lareira. Agora não haviam janelas naquele lado da sala, mas haviam imensas janelas do outro lado, e através do vidro, conseguia ver uma floresta que nunca cresceria no clima seco do leste de Washington. Era muito, muito grande para caber no pequeno jardim traseiro que estava cercado pelos cedros.

Coloquei as patas no peitoril da janela e encarei a floresta, e o assombro substituiu a infantil desilusão de descobrir que a reserva era um subúrbio particularmente vulgar.

O coiote queria ir explorar os segredos que sabíamos que se escondiam na profunda floresta verde. Mas tínhamos um trabalho a fazer. Então afastei o focinho do vidro e pulei para as partes secas do chão até voltar à entrada, que mantinha o mesmo aspecto.

Havia dois quartos, dois banheiros e uma cozinha. O meu trabalho foi facilitado porque apenas estava interessada em odores recentes, o que fez a procura não demorar muito tempo.

Quando voltei a olhar para a sala de estar, no meu caminho para sair da casa, a janela ainda dava para a floresta e não para o jardim traseiro. Meus olhos se detiveram um momento na poltrona que estava posicionada de modo que estivesse de frente para as árvores. Quase conseguia vê-lo sentado, desfrutando da natureza enquanto fumava seu cachimbo em um nevoeiro de fumo de cheiro forte.

Mas não o vi, não de fato. Não era um fantasma, apenas uma invenção resultante da minha imaginação, do cheiro a fumo de cachimbo e da floresta. Ainda não sabia o que ele tinha sido, além de poderoso. Esta casa iria se lembrar dele durante muito tempo, mas não guardava quaisquer fantasmas inquietos.

Saí pela porta da frente, aberta, e voltei ao suave mundinho que os humanos tinham construído para os Fae para mantê-los fora das suas cidades. Perguntei-me quantas mais daquelas cercas opacas esconderiam florestas ou pântanos, e dei graças pela minha forma de coiote me impedir de fazer perguntas. Duvido que de outro modo tivesse força de vontade para ficar de bico calado, e ocorreu-me que a floresta era uma daquelas coisas que eu não devia ver.

Zee abriu a porta do carro e pulei para o interior para que ele pudesse me levar para o próximo local. A garota nos observou partir, ainda sem falar. Não fui capaz de ler sua expressão no rosto.

A segunda casa em que paramos era um clone da primeira, até a cor da moldura em volta das janelas. A única diferença era que o pátio da frente tinha uma árvore de lilases e um canteiro de flores a um lado da entrada, um dos poucos canteiros de flores que tinha visto desde que tinha chegado. As flores estavam todas mortas e a grama estava amarelada, necessitando desesperadamente ser cortada.

Não havia nenhum guarda na varanda. Zee colocou a mão na minha porta e parou se abrir.

- A casa onde esteve foi onde aconteceu a ultima morte. Essa foi onde aconteceu a primeira e imagino que desde então muita gente tenha entrado e saído.

Sentei-me e olhei para o seu rosto, ele se preocupava em relação a essa.

- Ela era minha amiga. - disse lentamente a medida que a mão que estava na porta cerrava em um punho. - O nome dela era Connora. Tinha sangue humano como o Tad. O dela era mais antigo, mas deixou-a fraca. - Tad era filho de Zee, meio humano e atualmente na universidade. O seu sangue humano não tinha, ao que podia ver, diminuído a afinidade com metais que partilhava com o pai. Não sei se tinha herdado a imortalidade do pai, tinha dezenove anos e uma aparência equivalente à idade.

- Era a nossa bibliotecária, a nossa arquivista e colecionadora de histórias. Conhecia todas as lendas, todos os poderes que o ferro frio e o Cristianismo nos roubaram. Ela odiava ser fraca, odiava e desprezava ainda mais os humanos. Mas era bondosa com Tad.

Zee virou o rosto para que não conseguisse vê-lo e, abruptamente abriu a porta.

Entrei na casa sozinha. Se Zee não tivesse me dito que Connora foi uma bibliotecária, talvez tivesse adivinhado. Havia livros empilhados em todo o lado. Em prateleiras, no chão, em cadeiras e em mesas. A maior parte deles não correspondia aos tipos de livros que tinham sido feitos no último século, e nenhum dos títulos que vi estava escrito em inglês.

Tal como na última casa, o cheiro da morte estava presente, embora, conforme Zee dissera, fosse antiga. A casa cheirava sobretudo a mofo com um tênue odor a comida podre e produtos de limpeza.

Não tinha me dito quando ela morrera, mas supus que ninguém tinha entrado aqui durante um mês ou mais.

Há cerca de um mês, o demônio tinha causado todo tipo de violência com sua simples presença. Tinha certeza de que os Fae tinham tido isso em conta, e estava razoavelmente convicta de que a reserva se encontrava a uma distancia suficientemente segura para ter escapado de sua influencia. Ainda assim, quando voltasse a forma humana, talvez perguntasse a Zee em relação a isso.

O quarto de Connora era agradável e feminino ao estilo de casa de campo inglesa. O chão era de pinho ou outra madeira branda qualquer, coberto com tapetes dispersos tecidos à mão. A colcha de sua cama era um daqueles tecidos brancos finos com nós que sempre associei a hotéis com almoço incluso e avós. O que é estranho, considerando que nunca conheci meus avós, ou dormi em um hotel com almoço incluso.

Sobre a mesinha de cabeceira, erava uma rosa morta em uma jarra, e não havia um único livro.

O segundo quarto era seu escritório. Quando Zee disse que ela colecionava histórias, de certo modo estava a espera de encontrar blocos de notas e papel, mas a única coisa existente era uma pequena estante com uma embalagem de cd's regraváveis. As prateleiras restantes estavam vazias. Alguém tinha levado seu computador, embora tivessem deixado a impressora e o monitor, talvez tivessem levado também o que quer que estivesse nas prateleiras.

Saí do escritório e continuei a explorar.

A cozinha fora recentemente esfregada com amônia, embora ainda houvesse algo apodrecendo na geladeira. Talvez fosse esse o motivo que no balcão tinha um daqueles aromatizadores. Espirrei e recuei. Não ia conseguir detectar cheiro algum naquele ambiente, tentar fazê-lo teria como único resultado insensibilizar meu nariz.

Percorri o resto da casa, e por exclusão deduzi que ela tinha morrido na cozinha. Uma vez que a cozinha tinha uma porta e um par de janelas, o assassino podia perfeitamente ter entrado e saído sem deixar cheiros em mais nenhum lugar. Registrei isso mentalmente, mas ainda assim revisei a casa novamente. Detectei o cheiro de Zee, e, também vagamente o de Tad. Havia três ou quatro pessoas que visitavam essa casa com frequência, e algumas que eram visitas menos frequentes.

Se essa casa guardava segredos como a anterior, não fui capaz de desvendá-los.

Quando saí pela porta da frente, a luz do dia tinha quase desaparecido. Zee me esperava na varanda de olhos fechados, o rosto ligeiramente virado para os últimos raios de sol. Tive que ganir para chamar sua atenção.

- Já acabou? - perguntou em uma voz que era um pouco sombria, um pouco mais diferente do que a habitual. - Uma vez que o homicídio de Connora foi o primeiro, porque não vamos aos locais do crime por ordem cronológica? - sugeriu.

O local do segundo homicídio não cheirava completamente a morte. Se alguém tinha morrido aqui, o local tinha sido tão bem limpo que não conseguia sentir o cheiro, ou o Fae que tinha vivido estava tão longe da humanidade que a sua morte não deixou nenhum dos familiares indicadores de cheiro.

Havia, contudo, uma série de visitantes comuns a esta casa e as primeiras duas e alguns que tinha encontrado apenas na primeira e na terceira. Mantive-os na lista de suspeitos, porque não tinha sido capaz de detectar cheiros distintos na cozinha da bibliotecária. Além disso, considerando que essa casa estava tão limpa, não podia eliminar por completo nenhuma das pessoas que tivesse estava apenas na primeira casa. Daria um jeito de conseguir lembrar aonde tinha sentido o cheiro e de quem, mas não descobri como registrar um cheiro com papel e caneta. Simplesmente teria de fazer o melhor que conseguisse.

A quarta casa que Zee me levou não possuía nada que se destacasse comparada às outras casas. Uma casa bege ornamentada em tons de branco com mais nada além de grama morta e morrendo no quintal.

- Essa não foi limpa. - disse com uma carranca enquanto abria a porta. - Depois da terceira vítima, os esforços deixaram de se preocupar em esconder o crime dos humanos e passaram a se concentrar na tentativa de descobrir o assassino.

Não estava brincando quando disse que não tinha sido limpa. Pulei sobre jornais velhos e roupas espalhadas que tinham sido deixadas na entrada.

Esse Fae tinha sido morto na sala de estar ou na cozinha. Ou no quarto principal onde uma família de ratos estabelecera sua residência. Fugiram desesperadamente quando entrei.

O banheiro principal, por uma razão qualquer que não consegui notar, cheirava como o oceano e não a rato como o resto desse canto da casa. Impulsivamente, fechei os olhos, como fiz na primeira casa e me concentrei no que os meus outros sentidos estavam me comunicando.

Ouvi primeiro, o som de surfe e vento. Em seguida, uma brisa gelada agitou minha pelagem. Dei dois passos em frente e o ladrilho frio se converteu em areia. Quando abri os olhos, estava no topo de uma duna na orla de um oceano.

O vento levantava a areia, que feria meu nariz e olhos e se enfiava na minha pelagem enquanto olhava, abismada, a água ao mesmo tempo em que minha pele murmurava com magia do lugar. O sol aqui também estava se pondo e a luz transformava o mar em mil tons de laranja, vermelho e rosa.

Escorreguei pela vegetação até parar na praia de areia compacta. Ainda não conseguia ver o fim da água, cujas ondas cresciam e amansavam até se arrastarem na praia. Observei as ondas tempo o suficiente para permitir que a maré se aproximasse e tocasse minhas patas.

A água gelada lembrou-me que estava ali para trabalhar, e, por muito belo e impossível que isso fosse, era improvável que encontrasse o assassino aqui. Não sentia qualquer outro cheiro além do mar e da areia. Voltei para percorrer o caminho de volta antes que ficasse presa, mas atrás de mim via apenas infinitas dunas com pequenas colinas erguendo-se atrás delas.

Ou o vento tinha apagado as marcas das minhas patas da areia enquanto observava a paisagem, ou elas nem sequer tinham chegado a existir. Nem sequer tinha certeza qual encosta tinha descido.

Congelei, de certo modo convencida de que se mexesse um passo que fosse nunca mais encontraria o meu caminho de volta. O pacífico feitiço do oceano tinha se dissipado por completo, e a paisagem, ainda bela, apresentava sombras e uma ameaça.

Sentei-me lentamente, tremendo na brisa. A única coisa que me restava a fazer era esperar que Zee me encontrasse, ou que essa paisagem desaparecesse tão rapidamente quanto aparecera. Para isso, me encolhi até minha barriga pousar na areia com o oceano atrás de mim.

Coloquei o queixo sobre as patas, fechei os olhos e pensei banheiro e em como devia cheirar a rato, tentando ignorar o mar salgado e o vento que despenteava minha pelagem. Mas não desapareceu.

- Ora, ora. - disse uma voz masculina. - O que temos aqui? Nunca ouvi falar em um coiote descuidado em Underhill.

Abri os olhos e dei meia volta, agachando-me como me preparando para fugir ou atacar conforme me parecesse apropriado. A cerca de três metros, entre eu e o oceano, um homem me observava. Pelo menos tinha aspecto de homem. A sua voz soara tão normal, em um tom de professor de Harvard, que demorei um momento para perceber o quanto desse homem estava fora do normal.

 

 

Seus olhos eram mais verdes do que o verde-azeitona com que o Tio Mike vestia os seus garçons, tão verdes que nem mesmo a escuridão da noite amenizava a cor. Um longo cabelo claro, molhado com a água salgada e emaranhado com pedaços de algas marinhas, caindo até a boda de seus joelhos. Estava completamente nu, e confortável com isso.

Não vislumbrei nenhuma arma. Não havia qualquer agressividade na sua postura ou voz, mas meus instintos estavam aos gritos. Abaixei a cabeça, mantendo o contato visual e consegui não rosnar.

Permanecer na forma de coiote me pareceu a coisa mais segura a fazer. Podia pensar que simplesmente era um coiote... que tinha vagado até o interior do banheiro de um Fae morto até o lugar em que estava. Pouco provável, tive de admitir. Talvez houvesse outros caminhos para chegar aqui. Não tinha visto nenhum indicio de qualquer outra coisa viva, mas talvez ele acreditasse que eu era exatamente aquilo que parecia.

Mantivemos o contato visual durante muito tempo, sem que nenhum de nós se mexesse. A sua pele era muito mais clara que o seu cabelo. Conseguia ver o tom azulado das veias através da pele.

As suas narinas se agitaram enquanto captava o meu cheiro, mas eu sabia que cheirava a coiote.

Porque Zee não o usou? Obviamente esse Fae usava seu olfato, e não me parecia impotente.

Talvez fosse por pensar que ele pudesse ser o assassino.

Repassei sobre folclore enquanto me observava, tentando pensar em todos os Fae de aparência humana que viviam no ou perto do mar. Haviam muitos, mas poucos sobre os quais soubesse muita coisa.

Os Selkies era os únicos que me lembrava como sendo neutros. Não me pareceu que fosse um Selkie, sobretudo porque não era possível eu ter tanta sorte, e não cheirava a algo que se transformasse em um mamífero. Cheirava a algo frio e relacionado com peixe. Havia coisas mais simpáticas em lagos, mas no mar trazia, sobretudo histórias de terror, não brownies gentis que mantem as casas limpas.

- Cheira a coiote. - disse por fim. - Tem aparência de coiote. Mas nenhum coiote alguma vez vagou por Underhill até o Reino do Rei dos Mares. Que é você?

- Gnädiger Herr. - Zee disse cautelosamente em algum lugar atrás de mim. - Ela estava trabalhando para nós e se perdeu.

As vezes sentia um amor enorme por aquele velhote, mas nunca tinha me sentido tão feliz por ouvir sua voz.

O Fae do mar não se mexeu exceto para levantar os olhos até eu ter certeza absoluta que olhava para o rosto de Zee. Não queria desviar o olhar, mas recuei um passo até o meu quadril tocar a perna de Zee me certificando de que ele não era apenas um fruto da minha imaginação.

- Ela não é um Fae. - disse o Fae.

- Tampouco é humana. - havia algo na voz de Zee que se aproximava muito ao respeito, e notei que tinha razão de ter medo.

O ser desconhecido avançou abruptamente e se apoiou sobre um joelho em frente a mim. Agarrou meu focinho pouco preocupado em ter permissão para isso e passou a mão livre pelos meus olhos e orelhas. Suas mãos geladas não eram bruscas, mas, ainda assim, sem o incentivo de Zee eu era capaz de ter protestado. Largou a minha cabeça abruptamente e se levantou novamente.

- Ela não usa unguento de elfo, nem fede às drogas que ocasionalmente deixam alguém aqui perdido para vagar e morrer. Que eu saiba, embora rara, a sua magia não era capaz de fazer isso. Então, como ela veio para aqui?

À medida que falava, notei que não se tratava de Harvard em sua voz, mas a Merrie Inglaterra Antiga.

- Não sei, mein Herr. Suspeito que ela também não saiba. Você sabe melhor que ninguém que Underhill é instável e solitária. Se a minha amiga quebrou o glamour que esconde as passagens, ela não tinha como impedir de entrar.

A criatura do mar ficou muito quieta, e as ondas do oceano caíram vagarosamente como um gato que se preparava para um ataque súbito. As nuvens no céu escureceram.

- E como é que... - disse em um tom muito baixo. - ela ia conseguir quebrar o glamour?

- Trouxe-a para nos ajudar a descobrir um assassino porque ela tem um faro muito bom. - Zee explicou. - Se o glamour tem uma fraqueza, é o cheiro. Assim que quebrou essa parte da ilusão, o resto aconteceu. Ela não é nem poderosa nem uma ameaça.

O oceano atacou sem aviso. Uma onda gigante me esbofeteou, tirando meu equilíbrio e visão. Por alguns minutos roubou o calor do meu corpo e não me parece que tivesse sido capaz de respirar mesmo que o meu nariz não estivesse mergulhado na água.

Uma mão forte agarrou minha cauda e puxou com força. Doeu, mas não protestei porque a água estava recuando, e se não estivesse sendo agarrada, estaria sendo arrastada. Assim que o nível da água abaixou até os meus joelhos, Zee me largou.

Assim como eu, estava encharcado, embora não estivesse tremendo. Tossi para expelir a água salgada que tinha engolido, sacudi a pelagem e depois olhei em volta, mas o Fae tinha desaparecido.

Zee tocou minhas costas.

- Vou ter que te levar no colo para voltarmos. - não esperou por uma resposta, simplesmente me pegou. Houve um momento nauseante quando senti tudo rodar, e em seguida ele me pousou no azulejo do chão do banheiro. A casa estava negra como breu.

Zee ligou a luz, que era amarela e parecia artificial depois das cores do por do sol.

- Consegue continuar? - me perguntou.

Olhei para ele, mas balançou a cabeça contundentemente. Não queria falar sobre o que tinha acontecido. Fiquei chateada, mas tinha lido contos de fadas suficientes para saber que as vezes falar sobre um Fae várias vezes permite que ele ouça o que é dito. Quando saíssemos da reserva, obteria as respostas nem que tivesse que obriga-lo.

Até lá, pus a minha curiosidade de lado para ponderar a sua pergunta. Espirrei duas vezes para desentupir o nariz e depois o aproximei do chão para descobrir mais pessoas que tinham estado nessa casa.

Dessa vez Zee veio comigo, mantendo-se atrás de mim para não interferir, mas me seguindo de perto. Não disse mais nada e ignorei-o ao mesmo tempo que me esforçava para encontrar uma explicação para o que acabou de acontecer. Essa casa era real? Zee dissera ao outro Fae que eu tinha quebrado o glamour, isso não significava que a outra paisagem seria real? Mas isso significaria que havia aqui um oceano inteiro, o que parecia altamente improvável, embora ainda conseguisse cheirá-lo se tentasse. Sabia que Underhill era o reino das fadas, mas as histórias em relação a ele eram muito vagas quando não eram absolutamente contraditórias.

O Sol tinha se posto completamente e Zee foi ligando luzes a medida que avançávamos. Embora eu conseguisse ver perfeitamente na escuridão, fiquei grata pelo fato de haver luz. O meu coração ainda tinha certeza de que íamos ser comidos, e martelava com o dobro da sua velocidade habitual.

O desagradável perfume da morte atraiu a minha atenção para uma porta fechada. Se estivesse sozinha, poderia ter aberto facilmente a porta, mas acredito na ideia de fazer uso dos outros. Gani (os coiotes não conseguem ladrar, não como um cão) e Zee abriu obedientemente a porta, revelando as escadas que desciam para um porão. Era a primeira casa que tinha um porão, a menos que as outras tivessem sido de alguma maneira escondidas.

Desci as escadas aos saltos, Zee ligou as luzes e me seguiu. A maior parte do porão tinha aspecto que um porão normalmente tem: tralha armazenada sem critério, paredes inacabadas e chão de cimento. Percorri lentamente o chão, seguindo a morte até uma porta, completamente fechada. Zee abriu-a sem que eu pedisse e descobri, finalmente, o lugar onde o Fae que vivia aqui tinha sido assassinado.

Ao contrário do resto da casa, esse local estava imaculado até o morador ter sido assassinado. Por baixo das manchas de sangue do Fae, o chão de azulejo brilhava. Livros com capas de couro, possuindo a verdadeira granulosidade dos livros anteriores a época da impressão, estavam misturados com livros em mau estado e textos universitários de Matemática e Biologia em estantes alinhadas com as paredes.

Esse local era o mais sangrento de todos que tinha visto até o momento, e considerando o primeiro homicídio, isso queria dizer alguma coisa. Mesmo seco e velho, o sangue era avassalador. Tinha formado poças, manchas e tinha sido projetado enquanto o Fae lutava com o seu atacante. As prateleiras de três estantes da parte de baixo, estavam salpicadas com ele. Mesas tinham sido tombadas e no chão estava um candelabro estava partido.

Talvez não tivesse percebido isso se não tivesse pensado neles instantes antes, mas a criatura Fae que tinha morrido aqui era um selkie. Nunca tinha conhecido um, pelo menos conscientemente, mas tinha ido à zoológicos e sabia qual era o cheiro das focas.

Não queria entrar no quarto. Não costumava sentir náuseas, mas recentemente tinha caminhado em cima de sangue suficiente. Nos locais onde o sangue tinha formado poças, na argamassa entre os azulejos, um livro aberto e contra a base de uma das estantes onde o chão não estava nivelado, tinha apodrecido em vez de secado. O quarto cheirava a sangue, foca e peixe apodrecido.

Evitei as áreas piores onde consegui e tentei não pensar demais sobre as que não consegui evitar. Gradualmente, o que o meu olfato me indicou me distraiu da natureza desagradável da minha tarefa. Atravessei o quarto me movendo de um lado para o outro enquanto Zee me esperava na entrada.

Quando caminhei para a porta, detectei algo. A maior parte do sangue que tinha aqui pertencia ao Fae, mas no chão, na frente da porta, havia algumas gotas de sangue que não lhe pertenciam.

Se Zee fosse um polícial, tinha me transformado ali naquele momento para lhe dizer o que tinha encontrado. Mas se apontasse o dedo a um suspeito, sabia exatamente o que aconteceria a pessoa que eu tinha apontado.

Os lobisomens lidavam com os seus criminosos da mesma maneira. Não me oponho que matem os assassinos, mas se sou eu a fazer a acusação gosto de ter certeza absoluta do que estou dizendo, considerando as consequências. E a pessoa que estaria acusando era uma hipótese improvável como assassino de tantos Fae.

Zee me seguiu escadas acima, desligando as luzes e fechando as portas a medida que avançávamos. Não me dei ao trabalho de procurar mais. Havia apenas dois odores no quarto do porão além do sangue do Tio Mike. Ou o selkie não tinha recebido ninguém na sua biblioteca ou tinha deixado limpa desde a última vez em que isso acontecera. O que mais acusava era o sangue.

Zee abriu a porta e saí para a noite onde a Lua prateada tinha subido completamente. Quanto tempo teria ficado de olhos fixos no mar impossível?

Uma sombra se mexeu na varanda e se transformou no Tio Mike. Cheirava a malte e asinhas de frango fritas, e consegui ver que ainda estava com suas roupas de taberneiro: calças cáqui largas e uma camisa verde com o seu nome escrito no peito em letras reluzentes. Não se tratava de egocentrismo, Tio Mike era o nome da taberna.

- Ela está molhada. - disse com um sotaque irlandês mais carregado do que o sotaque alemão de Zee.

- Água do mar. - Zee explicou. - Ela vai ficar bem..

O belo rosto do Tio Mike se comprimiu.

- Água do mar.

- Pensava que essa noite estava trabalhando. - havia um aviso na voz de Zee ao mudar de assunto. Não tinha certeza se não queria falar do meu encontro com o Fae do mar ou se estava me protegendo, ou ambos.

- O GAF andava fazendo patrulha à sua procura. A Cobweb me ligou porque estava preocupada com a possibilidade de eles interferirem. Mandei o GAF embora com as orelhas ardendo. Eles não têm qualquer autoridade para te dizer quanto tempo pode manter um visitante. No entanto, temo que tenhamos atraído a atenção deles para você, Mercy. É possível que lhe causem problemas.

As suas palavras não diziam nada de extraordinário, mas havia algo mais sombrio na sua voz que não tinha nada a ver com a noite e tudo a ver com poder.

Olhou novamente para Zee.

- Alguma sorte?

Zee encolheu os ombros.

- Vamos ter que esperar até que ela se transforme. - olhou para mim. - Acho que é hora de por fim nisso. Você viu demais, Mercy, quando não é seguro.

O pelo na parte de trás do meu pescoço me indicou que algo estava me vigiando das sombras. Aspirei o vento e percebi que eram mais que dois ou três. Olhei em volta e rosnei, enrugando o nariz para cima para deixar as presas descobertas.

Tio Mike me encarou, ergueu as sobrancelhas, e depois lançou os olhos em volta. Tocou com as pontas dos dedos o queixo e, com os olhos ainda em mim, disse: - Vão todos para casa! Agora!

Esperou mas depois pronunciou algo rigidamente em gaélico. Ouvi um estrondo e alguém decolou pela calçada com barulho de cascos.

- Estamos sozinhos agora. - me disse. - Pode se transformar.

Olhei para ele de relance e voltei os olhos a Zee. Satisfeita por ter sua atenção, pulei da varanda e trotei em direção ao carro.

A presença do Tio Mike aumentava os riscos. Talvez tivesse sido capaz de convencer Zee a esperar por mais uma prova que confirmasse minhas suspeitas, mas não conhecia Tio Mike tão bem.

Pensei furiosamente, mas na altura em que cheguei ao carro, estava tão certa de que podia sem tê-lo visto matar de que o sangue que encontrara pertencia ao assassino. Desconfiava dele mesmo antes de ter encontrado o sangue. O seu odor estava por toda a parte nas restantes casas, mesmo na que tinha sido limpa, como se tivesse andado revistando as casas a procura de alguma coisa.

Zee me seguiu até o carro. Abriu a porta, depois a fechou atrás de mim antes de se virar e se juntar ao Tio Mike na varanda. Transformei-me e coloquei minhas roupas quentes. O ar da noite era quente, mas ainda sentia o frio do meu cabelo molhado contra a pele úmida. Não me dei ao trabalho de procurar meus tênis, saindo do carro descalça.

Na varanda, esperaram pacientemente, fazendo-me lembrar a minha gata, que era capaz de encarar o buraco de um rato durante horas sem se mexer.

- Há alguma razão para a GAF ter enviado alguém a todas as cenas do crime? - perguntei.

- A GAF pode fazer buscas aleatórias. - Zee explicou. - Mas não foram chamados aqui.

- Está dizendo que um membro da GAF esteve em todas as casas? - Tio Mike perguntou. - Quem é e como que o conheceu?

Os olhos de Zee semicerraram subitamente.

- Ela só conhece um agente do GAF. O O’Donnell estava no portão quando a trouxe.

Assenti.

- O cheiro dele estava em todas as casas e o sangue dele estava no chão da biblioteca dessa casa. - indiquei a casa com a cabeça. - O único cheiro na biblioteca era o dele, além do cheiro do selkie, e do seu, Tio Mike.

Sorriu.

- Não fui eu. - ainda com aquele sorriso encantador, olhou para Zee. - Gostaria de falar contigo a sós.

-Mercy, porque não leva o meu carro? Pode deixá-lo na casa do seu amigo que eu vou buscá-la amanhã.

Dei um passo fora da varanda antes de me virar.

- O que eu conheci ali dentro... - apontei para a casa do selkie com a cabeça.

Zee suspirou.

- Não trouxe você aqui para por sua vida em risco. A dívida que tem conosco não é assim tão grande.

- Ela se meteu em algum problema? - Tio Mike perguntou.

- Trazer uma andarilha para a reserva talvez não tenha sido uma ideia tão boa como pensava. - Zee respondeu secamente. - Mas acho que está tudo resolvido... a menos que continuemos a falar do assunto.

O rosto do Tio Mike adquiriu um vazio agradável que usava para esconder os seus pensamentos.

Zee olhou para mim.

- Acabou, Mercy. Dessa vez se contente com o fato de não saber.

Não me contentava, como é evidente. Porém, Zee não tinha qualquer intenção de me contar mais.

Dirigi-me ao carro e Zee clareou a garganta bem baixinho. Olhei-o, mas limitou-se a me olhar fixamente. Assim como fez quando estava me ensinando a montar um carro e eu tinha me esquecido de um dos passos. Esquecido de um dos passos... certo.

O meu olhar cruzou com o do Tio Mike.

- Isso salda a minha dívida contigo e com os seus por ter matado o segundo vampiro com os seus artefatos.

Dirigiu-me um sorriso lento e malicioso que me fez sentir feliz pelo que Zee me fez lembrar.

- Claro.

 

 

De acordo com o meu relógio, tinha passado seis horas na reserva, assumindo, é claro, que não tinha passado o dia inteiro. Ou cem anos. Visões de Washington Irving à parte, se tivesse, presumivelmente, ficado lá o dia inteiro ou mais, Tio Mike ou Zee teriam me dito. Devo ter passado mais tempo do que pensava olhando o oceano.

De qualquer modo, era muito tarde. Não tinha nenhuma luz ligada na casa de Kyle quando cheguei, portanto decidi não bater. Havia um lugar vazio na rampa de entrada da casa, mas o carro de Zee era velho e me preocupava com a possibilidade de deixar manchas de óleo no cimento (razão pela qual tinha deixado meu Rabbit estacionado no asfalto). Devia estar cansada, porque só depois de ter desligado o carro e saído que notei que nenhum carro de Zee gotejaria qualquer coisa.

Parei para dar umas palmadinhas no para-choque como forma de pedir desculpa, quando alguém pôs a mão sobre o meu ombro.

Agarrei a mão e fiz uma rotação, executando uma bela chave de pulso. Usando isso como vantagem conveniente, o fiz rodar alguns graus para fora e prendi seu cotovelo com a minha outra mão. Mais uma rotação e a articulação do seu ombro também passou a ser minha. Estava pronto para ser pulverizado.

- Que diabos, Mercy, já chega!

Ou para um pedido de desculpas.

Soltei Warren e inspirei fundo.

- Da próxima vez, diga alguma coisa. - na verdade, devia ter pedido desculpa. Mas não ia realmente querer dizer isso. Pegou-me de surpresa, foi culpa dele.

- Direi. - fulminei com o olhar. Não tinha machucado ele, mesmo se ele fosse humano, não teria provocado qualquer dano.

Parou de fingir e riu.

- Ok, Ok. Ouvi você chegar com o carro e quis me certificar que estava tudo bem.

- E não resistiu em vir às escondidas.

- Não estava vindo às escondidas. Precisa estar mais alerta. O que aconteceu?

- Dessa vez não foram vampiros possuídos pelo demônio. - disse. - Apenas um trabalhinho de detetive. - e uma viagem até a costa.

Uma janela foi aberta no segundo andar e Kyle pôs a cabeça e os ombros para fora para conseguir nos ver.

- Se vocês dois já acabaram de brincar de índios e vaqueiros, há quem gostaria de dormir em seu sono de beleza.

Olhei para Warren. - Você ouviu, Kimo Sabe. Eu ir para minha cabana e dormir.

- Porque você sempre faz a índia? - Warren se queixou.

- Porque ela é a índia, cara-pálida. - Kyle disse. Levantou a janela completamente e se encostou seu quadril no batente. Vestia pouco mais do que a maior parte dos homens do filme que tínhamos visto, e ficava melhor nele.

Warren bufou e despenteou meu cabelo.

- Ela só é metade índia, e já conheci mais índios do que ela.

Kyle sorriu maliciosamente e, com a sua melhor imitação de Mae West, disse: - Quantos índios você conheceu, garotão?

- Podem parar por aí. - fiz o gesto de tapar os ouvidos. - Lalalala. Esperem até eu entrar no meu fiel Rabbit e arrancar em direção ao nascer do Sol. - fiquei nas pontas dos pés e beijei Warren no queixo.

- É muito tarde. - Warren disse. - Ainda quer nos encontrar no Tumbleweed amanhã?

O Tumbleweed era o festival anual de música tradicional que era realizado no fim de semana do Dia do Trabalhador. As Tri-Cities eram próximas o suficiente da costa para a nata musical de Seattle e Portland aparecerem em força: cantores de blues, jazz, música celta e todos os restantes gêneros. Entretenimento barato e de qualidade.

- Não podia deixar de ir. Samuel ainda não conseguiu se livrar da atuação e tenho que estar lá para incomodá-lo.

- Então, amanhã às dez próximo ao River Stage. - Warren disse.

- Estarei lá.


3

O Tumbleweed era no Howard Amon Park, em frente ao Rio Columbia em Richland. Os palcos estavam espalhados o mais distante possível uns dos outros para minimizar interferências entre as atuações. No River Stage, onde Samuel devia atuar, era completamente impossível estacionar. Em uma situação normal, isso não teria me incomodado, mas o treino de karatê aquela manhã não tinha corrido lá muito bem. Manquei lentamente através do gramado enquanto resmungava comigo mesma.

O parque ainda estava praticamente vazio, com exceção de músicos que, transportando diversos estojos de instrumentos, caminhavam com dificuldade através dos vastos campos verdes em direção aos palcos onde iam atuar. Ok, o parque na verdade não é assim tão grande, mas quando se sente uma dor na perna, ou quando se arrasta um contrabaixo de uma extremidade à outra, é suficientemente grande.

O contrabaixista e eu trocamos acenos esgotados de miséria mútua quando nos cruzamos.

Warren e Kyle já estavam sentados na grama em frente ao palco e Samuel colocava seus instrumentos em diferentes suportes quando finalmente cheguei.

- Aconteceu alguma coisa? - Kyle perguntou com a testa franzida enquanto me sentava ao seu lado. - Ontem a noite não estava mancando.

Balancei-me sobre a grama cheia de orvalho que tinha sido regado até me sentir confortável.

- Nada importante. Levei uma pancada forte na coxa hoje de manhã na aula de caratê. Vai melhorar daqui a pouco. Estou vendo que os homens dos bótons encontraram vocês.

Tmbleweed normalmente era de graça, mas você podia se manifestar comprando um bóton por dois dólares... e os homens dos bótons eram implacáveis.

- Também compramos um pra você. - Warren estendeu a mão sobre Kyle e me entregou um bóton.

Enfiei no sapato, onde não seria imediatamente óbvio.

- Aposto que consigo atrair quatro homens dos bótons até a hora de almoço. - disse a Kyle.

Riu.

- Tenho ar de novato? Quatro até a hora do almoço é fácil demais.

Juntaram-se mais pessoas do que eu esperava em frente ao palco de Samuel, considerando que a apresentação dele era uma das primeiras.

Reconheci algumas pessoas do E.R. com que Samuel trabalhava perto do centro, com um grupo maior. Colocavam cadeiras de jardim e conversavam de uma maneira que me fez ter a certeza de que todos trabalhavam no hospital de Samuel.

Depois, havia os lobisomens.

Ao contrario ao pessoal médico, não estavam juntos, mas espalhados aqui e ali pelos cantos. Todos os lobisomens das Tri-Cities, com exceção de Adam, o Alfa, continuavam a fingir ser humanos, portanto, sempre que podiam, evitavam andar juntos em publico. Todos eles teriam ouvido Samuel cantar antes, mas provavelmente não em uma verdadeira apresentação porque não era coisa que fizesse com frequência.

Uma brisa fria soprou do Rio Columbia, a curta distancia de uma trilha próxima, razão pela qual o palco se chamava River Stage. Era uma manhã quente, como é normalmente todas as manhãs do inicio do outono nas Tri-Cities, pelo motivo que, a intensidade ligeira do vento era mais bem-vinda do que o contrário.

Um dos voluntários do festival, vestindo um avental de pintor coberto com bótons do Tumbleweed desse ano e dos anos anteriores, nos deu boas-vindas ao festival deste ano e agradeceu a todos por termos aparecido. Passou alguns minutos falando dos patrocinadores e das rifas enquanto a plateia se mexia agitada antes de apresentar Samuel como o médico cantor de música tradicional de Tri-Cities.

Batemos palmas e assobiamos enquanto o apresentador descia as escadas energicamente e voltava para a estação de rádio, onde podia assegurar o bom funcionamento dos alto-falantes. Houve alguém que ficou atrás de mim, mas não olhei em volta porque Samuel caminhou para o centro do palco com o seu violino na mão sem cuidado.

Vestia uma blusa azul-cobalto que realçava seus olhos, fazendo com que o azul se destacasse do cinzento. Tinha a camisa enfiada em novas calças de ganga preta que eram justas ao ponto de exibirem os músculos de suas pernas.

O tinha visto essa manhã quando bebeu seu café e saí correndo porta fora. Não havia razão para ainda me afetar dessa maneira.

A maior parte dos lobisomens é atraente, tem a ver com o visual permanentemente de jovem-musculoso. No entanto, Samuel tinha algo mais. E não era apenas aquele vigor extra que os lobos dominantes possuem.

Samuel aparentava ser uma pessoa na qual podia se confiar, havia um toque de humor que se escondia por trás dos olhos profundos e o canto de sua boca. Isso contribuía em parte para que fosse tão bom médico. Quando dizia aos seus pacientes que iam ficar bem, eles acreditavam.

Os seus olhos se fixaram nos meus por instantes e sua boca desenhou-se m um sorriso.

Aquele sorriso fez com que um calor me percorresse dos pés à cabeça, me fez lembrar uma vez em que Samuel era o meu mundo, uma vez em que acreditava em um cavaleiro de armadura brilhante capaz de me fazer sentir feliz e segura.

Samuel sabia disso também, porque seu sorriso se expandiu, até olhar para atrás de mim. O prazer em seus olhos se acalmou, mas se manteve sorrindo, exibindo-o ao resto do publico. Foi aí que tive certeza que o homem que tinha se sentado atrás de mim era Adam.

Não que tivesse grandes dúvidas. O vento vinha da direção errada para me permitir detectar convenientemente o seu cheiro, mas os lobos dominantes transpiram poder, e mais dominante do que Adam, independentemente de ser o Alfa, é difícil de encontrar. Era como ter uma bateria de carro atrás de mim e me ligarem a ela através de um par de cabos.

Mantive o olhar em frente, sabendo que desde que minha atenção estivesse nele, Samuel não ficaria muito chateado. Desejei que Adam tivesse escolhido se sentar em outro lugar. Mas se ele fosse esse tipo de pessoa, não seria um Alfa, o lobo mais dominante do seu bando. Quase tão dominante como Samuel.

A razão pela qual Samuel não era alfa do bando era complicada. Antes de tudo, Adam era Alfa aqui desde quando existia um bando nas Tri-Cities (que foi antes do meu tempo). Mesmo que um lobo seja mais dominante, não é fácil destruir um Alfa, e na América do Norte isso nunca acontece sem o consentimento do Marrok, o lobo que governa aqui.

Uma vez que o Marrok era pai de Samuel, presumivelmente poderia ter obtido permissão, mas acontece que Samuel não tinha qualquer desejo de ser Alfa. Dizia que ser médico lhe dava mais do que pessoas o suficiente para cuidar. Portanto, era oficialmente um lobo solitário, um lobo fora da proteção do bando. Vivia no meu trailer, a menos de noventa metros da casa de Adam. Não sei porque optou por viver ali, mas sei porque o deixei, porque de outro modo ainda estaria dormindo no meu jardim da frente.

Samuel tinha a capacidade de garantir que as pessoas fizessem o que ele queria que elas fizessem.

Testando o temperamento do violino, o arco dançou sobre as cordas com uma precisão delicada adquirida à anos... provavelmente séculos de prática. Eu o conhecia desde sempre, mas só a menos de um ano que eu tinha descoberto sobre esses séculos.

Ele simplesmente não agia como um lobisomem velho. Os lobisomens velhos eram tensos, facilmente irritáveis, e especialmente nesses últimos cem anos de transformações rápidas (me contaram) era mais provável que se transformassem em eremitas do que médicos em E.R agitados com toda aquela tecnologia recente. Ele era um dos poucos lobisomens, entre os que conheci, que realmente gostava de pessoas, pessoas humanas ou lobisomens. Até gostava delas em multidões.

Não que ele não tivesse poupado esforços para se apresentar em um festival de música tradicional. Para isso foi necessária alguma chantagem criativa.

Não fui eu. Não dessa vez.

A pressão de trabalhar em um E.R especialmente considerando que era um lobisomem e a sua reação ao sangue e à morte podia ser um pouco imprevisível, significava que ele levava o seu violão ou violino para o trabalho e tocava quando tinha oportunidade.

Umas das enfermeiras ouviu-o tocar e o fez se inscrever no festival antes que ele pudesse arranjar uma maneira de se safar. Não que tivesse se esforçado muito por isso. Oh, ele fez muito barulho, mas conheço Samuel. Se ele não quisesse realmente fazer, nem um bulldozer{2} o teria posto ali encima.

Afinou o violino com a mão enquanto o segurava embaixo do queixo e dedilhava com a outra. Alguns compassos de uma música e a multidão se inclinou pra frente em expectativa, mas eu sabia o que estava acontecendo. Ele ainda estava se aquecendo. Quando começasse de verdade, todos notariam: ele ficava cheio de energia diante do público.

Às vezes, ver Samuel se apresentar parecia mais um espetáculo de stand up comedy do que um concerto. Tudo dependia de como estaria se sentindo no momento.

Aconteceu por fim, o momento mágico em que Samuel absorveu o seu auditório. O velho violino emitiu um som arrepiante, como o assovio de uma coruja na noite, e percebi que hoje ele tinha decidido ser um músico. Todos os sussurros cessaram e todos os olhos se ergueram para o homem no palco. Séculos de prática e o fato de ser lobisomem lhe dão velocidade e destreza, mas a música vinha da sua alma de galês. Dirigiu um sorriso tímido à audiência e o som melancólico transformou-se em canção.

Quando tinha frequentado o curso de História, perdi quaisquer noções românticas em relação ao Príncipe Carlos Eduardo Stuart, cuja tentativa de readquirir o trono da Inglaterra forçara a Escócia a se ajoelhar. De qualquer maneira, a versão que Samuel executou de "Over the Sea to Skye"{3} trouxe lágrimas em meus olhos. Essa música tinha letra, e Samuel sabia cantá-la, mas por agora, deixou que o violino falasse por si.

Enquanto tocava as últimas notas suavemente, começou a cantar por cima "Barbara Allen", tão conhecida universalmente entre os cantores de música popular como "Stairway to Heaven"{4} entre os guitarristas. Após os primeiros compassos, cantou o resto da primeira estrofe a capella. Quando chegou ao refrão, introduziu o violino em um arrepiante soprano. Quando estava na segunda estrofe, convidada pelo seu sorriso, a plateia também cantou o refrão. As pessoas cantaram temporariamente até um dos outros grupos profissionais que percorria o caminho de asfalto parar e cantar também.

Samuel acenou a eles com a cabeça na última estrofe e parou de cantar, deixando o outro grupo exibir a forte harmonia que era sua marca registrada. Quando a canção chegou ao fim, aclamamos e aplaudimos enquanto Samuel agradecia aos seus "cantores convidados". A plateia tinha completado enquanto ele tocava e todos foram se aproximando uns dos outros.

Pousou o violino e pegou o violão para tocar um tema de Simon e Garfunkel. Nem mesmo o estúpido Jet Ski que roncava ao longo do rio a uns noventa metros influenciava a qualidade de seu desempenho. Começou uma boba canção de piratas e depois pousou o violão e pegou um bodhran, um tambor grande e achatado que era tocado com uma baqueta de ponta dupla, e deu inicio a uma canção de marinheiros.

Reparei nos Chaters, o casal de idosos que vivia ao meu lado, sentados em duas cadeiras de acampamento do outro lado da multidão.

- Espero que não chova. Nós não íamos querer deixar de ver Samuel tocar. - ela tinha dito ontem de manhã enquanto estava cuidando das plantas. - É um homem tão bom.

Claro que ela não tinha que viver com ele, pensei com o queixo encostado ao joelho enquanto o via tocar. Não que Samuel não fosse um "bom homem", mas também era teimoso, controlador e implicante. No entanto, eu era teimosa e mais ranzinza do que ele.

Alguém sussurrou um educado "com licença" e se sentou no pequeno espaço a minha frente. Achei que estava perto demais para alguém que eu não conhecia, por isso me afastei alguns centímetros, até as minhas costas se encostarem firmemente contra a perna de Adam.

- Ainda bem que o convenceu a tocar. - o lobisomem Alfa murmurou. - Ele é realmente um elemento em frente a multidão, não é?

- Não o convenci a fazer isso. - disse. - Foi uma das enfermeiras com que ele trabalha.

- A alguns anos ouvi o Marrok e os dois filhos dele, Samuel e Charles, cantarem juntos. - Warren sussurrou, tão baixinho que duvido que mais alguém tenha ouvido. - Foi... - desviou a atenção do palco e o seu olhar cruzou com o de Adam por cima da cabeça de Kyle, e encolheu os ombros revelando a sua incapacidade de encontrar as palavras.

- Eu os ouvi. - Adam disse. - Não é algo que se esqueça.

Samuel pegou a sua velha harpa de Gales enquanto estávamos conversando. Tocou algumas notas para dar ao técnico tempo para correr de um lado para o outro e ajustar o sistema de som aos tons mais suaves do novo instrumento. Percorreu a multidão com os olhos e deteve-se em mim. Se eu pudesse ter me afastado de Adam sem me sentar encima de um estranho, teria feito. Adam também viu o olhar de Samuel e colocou uma mão possessiva sobre o meu ombro.

- Para com isso. - disparei.

Kyle viu o que estava acontecendo e pôs o braço em volta dos meus ombros com um abraço, afastando a mão de Adam no processo. Adam rosnou suavemente, mas recuou alguns centímetros. Ele gostava de Kyle e, melhor ainda, como Kyle era homossexual e humano, não o encarava como qualquer tipo de ameaça.

Samuel respirou fundo e sorriu, um pouco rígido, ao apresentar sua ultima peça. Relaxei contra Kyle enquanto harpa e harpista faziam com que a velha música galesa ganhasse vida. O galês era a primeira língua de Samuel, quando estava chateado, conseguia ouvi-lo na sua voz. Era uma língua feita para a musica, suave, melodiosa e mágica.

O vento passou, fazendo com que as folhas verdes sussurrassem um acompanhamento para a musica de Samuel. Quando terminou, o som das folhas foi o único ruído que se escutou durante algum tempo. Depois o imbecil do jet-ski apareceu, quebrando o feitiço. A multidão se levantou e desatou a aplaudir animadamente.

O meu celular tinha estado vibrando intermitentemente no bolso durante a melhor parte da música, por isso saí enquanto Samuel guardava os instrumentos e saia do palco para o artista seguinte.

Quando encontrei um local relativamente calmo, tirei o celular para constatar que tinham cinco chamadas perdidas, todas elas de um numero que eu não conhecia. Ainda assim, liguei de volta. Qualquer pessoa que ligasse cinco vezes por tanto tempo estaria em uma grande agitação.

Atendeu ao primeiro toque.

- Mercy, temos um problema.

- Tio Mike? - era a voz dele, e eu não conhecia mais ninguém que falasse com um sotaque irlandês tão acentuado. Mas nunca tinha o ouvido falar assim.

- A polícia humana tem o Zee. - disse.

- O quê? - mas eu sabia. Sabia o que iria acontecer a alguém que estivesse matando os Fae. As velhas criaturas voltam as leis mais antigas quando a situação fica apertada. Quando lhes disse quem era o assassino, sabia que estava assinando a sentença de morte de O’Donnel, mas estava muito segura de que o fariam de uma forma que não permitisse que a culpa recaísse sobre ninguém. Algo que parecesse acidental ou um suicídio.

Não esperava que fossem atrapalhados ao ponto de atrair a atenção da polícia.

O meu celular zumbiu, indicando que estavam me ligando, mas ignorei-a. Zee tinha assassinado um homem e fora pego.

- Como isso aconteceu?

- Fomos surpreendidos. - explicou Tio Mike. - Ele e eu fomos falar com o O’Donnel.

- Falar? - a descrença estava bem na minha voz. Não tinham ido à casa dele para conversar.

Uma risada curta.

- Teríamos conversado primeiro, independentemente do que possa pensar de nós. Fomos de carro até a casa do O’Donnel, depois de você ter ido embora. Tocamos a campainha, mas ninguém veio a porta, embora estivesse com a luz acesa. Depois de tocarmos uma terceira vez, Zee abriu a porta e entramos. Encontramos o O’Donnel na sala de estar. Alguém tinha se antecipado a nós, arrancando a sua cabeça do corpo, um ferimento que não via desde que os gigantes vagavam pela Terra, Mercedes.

- Vocês não o mataram. - podia respirar novamente. Se Zee não tinha matado O’Donnel, ainda tinha chances.

- Não. E enquanto estávamos ali mudos e quietos, a polícia apareceu com as suas luzes e gritos de banshee. - fez uma pausa e ouvi um barulho. Reconheci o som que praticava no karatê. Ele tinha golpeado qualquer coisa de madeira e tinha quebrado.

- Ele me disse para me esconder. Entre os talentos dele não se conta com a capacidade de se esconder da polícia. Portanto os vi pô-lo no carro e partirem.

Fez uma pausa.

- Eu podia tê-los impedido. - disse em uma voz gutural. - Podia ter impedido todos, mas deixei que os humanos levassem Siebold Adelbertskrieger (a versão alemã do nome Adelbertskrieger, que Zee usava), o Ferreiro Negro, para a prisão. - a sensação de ultraje não mascarava completamente o medo em sua voz.

- Não, não. - repliquei. - Matar agentes da polícia é sempre um plano ruim.

Não acredito que tenha me ouvido, simplesmente continuou a falar.

- Fiz o que ele disse, e agora, seja qual for o ângulo a partir do qual olhe para a situação, acho que a minha ajuda só vai piorar a situação em que se encontra. Esse não é um bom momento para ser um Fae, Mercy. Se nos reuníssemos para defender Zee, a coisa poderia se transformar em um banho de sangue.

Ele tinha razão. Uma sucessão de mortes e episódios de violência em menos de um mês, tinha deixado Tri-Cities com uma ferida aberta. A escalada de crimes tinha parado com o fim de uma onda de calor que nos atormentava ao mesmo tempo. O tempo mais fresco era uma bela razão para a sensação do pesado ambiente de raiva que pairava no ar. O afastamento do demônio que estava causando a violência através da aniquilação do seu vampiro hospedeiro era uma razão ainda melhor, embora não pudesse ser revelada ao publico. Esses apenas tinham conhecimento de alguns lobisomens e do lado mais simpático dos Fae. Todos estariam mais seguros se a população geral não tomasse conhecimento de coisas como vampiros e demônios, especialmente a população geral.

No entanto, havia uma forte minoria que murmurava que tinha havido violência a mais para ser explicada por uma onda de calor. Afinal de contas, o calor vinha todos os verões, e nunca tínhamos testemunhado uma sucessão de homicídios e ataques como aquela. Alguns dessas pessoas olhavam com muita atenção a possível culpa dos Fae. Na semana passada, tinha tido um grupo de manifestantes na porta do Tribunal de Richland.

O fato dos lobisomens terem, ainda este ano, admitido a sua existência não estava ajudando muito. Toda essa questão tinha corrido da melhor maneira possível, mas nada era perfeito. Toda a história desagradável dos anti-fae, que tinha acalmado depois de os Fae terem se retirado voluntariamente para as reservas, vinha ganhando novamente força pelo país todo. Os grupos de ódio estavam desejosos de alargar o seu alvo para incluir os lobisomens e quaisquer outras criaturas ímpias, humanas ou não.

Em Oklahoma, tinham queimado uma bruxa no mês passado. O irônico é que a mulher que ardeu não tinha, afinal, sido uma bruxa, curandeira ou mesmo Wicca, que são três coisas diferentes, embora uma mesma pessoa possa ser todas elas.

Tinha sido uma boa mulher católica que gostava de tatuagens, piercings e de vestir roupas pretas.

Nas Tri-Cities, um lugar que não é particularmente conhecido pelo ativismo ou pelos grupos de ódio, os grupos anti-fae e anti-lobisomens locais vinham se tornando visivelmente mais fortes.

Isso não significava paredes pintadas com spray ou janelas quebradas e motins. Afinal de contas, estamos falando de Tri-Cities, não de Eugene ou Seattle. No Festival de Artes da semana passada, eles tinham uma tenda de informações, eu vira pelo menos dois folhetos diferentes que tinham distribuído via correio no mês passado. Os grupos de ódio de Tri-Cities são civilizados a este ponto, até agora.

O’Donnel poderia alterar isso. Se a sua morte tivesse sido tão dramática quanto Tio Mike narrara, o assassinato preencheria todos os jornais do país. Tentei reprimir o meu pânico.

Não estava preocupada com a lei, estava muito segura que Zee era capaz de sair de qualquer cela de prisão na hora que quisesse. Através do glamour podia mudar a aparência ao ponto de que nem eu pudesse reconhecer. Mas não seria suficiente para salvá-lo. Não tinha certeza se a inocência seria suficiente para salvá-lo.

- Vocês têm um advogado? - o nosso bando de lobisomens locais não tinha um oficialmente, embora eu ache que Adam tivesse um advogado que mantém na folha de pagamentos para o seu negócio na área de segurança. Mas lobisomens não eram Fae.

- Não. Os Senhores Cinzentos tem varias firmas na Costa Leste, mas foram consideradas desnecessárias para a nossa reserva. Nós somos discretos. - hesitou. - Os Fae que são suspeitos de crimes tendem a não sobreviver para precisarem de advogados.

- Eu sei. - repliquei, engolindo em seco.

Os Senhores Cinzentos, à semelhança do Marrok dos lobisomens, eram impelidos a preservar as suas espécies. Bran, o Marrok, era escrupulosamente justo, embora brutal. Os métodos dos Senhores Cinzentos tinham uma forte tendência para serem mais convenientes do que justos. Com o preconceito tão ruidoso e forte, eles iriam querer abafar isso o mais depressa possível.

- Que perigo que Zee corre de fato? - perguntei.

Tio Mike suspirou.

- Não sei. Esse crime está prestes a se tornar do conhecimento de um público vasto. Não vejo como que a sua morte iria beneficiar os Fae mais do que a sua sobrevivência nesse momento, especialmente considerando que ele é inocente. Eu liguei e lhes disse que essa morte não era da responsabilidade dele. - o lhes se referia aos Senhores Cinzentos. - Se conseguirmos provar a sua inocência... não sei, Mercy. Depende de quem de fato matou o O’Donnel. Não foi um humano. Talvez um troll pudesse ter feito isso... ou um lobisomem. Podia ter sido um vampiro, mas o O’Donnel não foi morto por alimento. Alguém estava mesmo muito zangado com ele. Se se tratar de um Fae, os Senhores Cinzentos não vão querer saber quem foi, apenas vão querer que o caso seja resolvido de forma rápida e definitiva.

Rapidamente, antes que um julgamento pudesse chamar mais atenção para o crime. Rapidamente, como um suicídio com um bilhete admitindo a culpa.

O meu telefone começou a produzir bips, indicando que estava recebendo uma segunda chamada.

- Presumo que ache que eu possa ajudar? - perguntei. De outro modo, nunca teria me ligado.

- Não podemos ir ajudá-lo. Ele precisa de um bom advogado, e alguém que descubra quem matou O’Donnel. Alguém precisa falar com a polícia e dizer que Zee não matou esse sacana. Alguém em quem ela acredite. Você tem um amigo na polícia de Kennewick.

- O’Donnel morreu em Kennewick?

- Sim.

- Eu arranjo um advogado. - disse ao Tio Mike. Kyle era um advogado especializado em divórcios, mas certamente conheceria um bom advogado de defesa criminal. - Talvez a polícia exclua os detalhes mais sórdidos nos comunicados de imprensa. Não vai lhes interessar muito terem a imprensa mundial encima deles. Mesmo que apenas digam as pessoas que ele foi decapitado, não soa assim tão mal, não é? Talvez consigamos ganhar algum tempo em relação aos Senhores Cinzentos se o assunto não aparecer nos principais jornais. Vou falar com o agente da polícia que conheço, mas ele é capaz de não me dar ouvidos.

- Se precisar de dinheiro. - disse. - Me avise. Zee não tem muito, acredito, embora com ele nunca se sabe. Eu tenho, e consigo arranjar mais se precisarmos. Mas terá de ser você a gastá-lo. Nós, Fae, não podemos nos envolver nisso mais do que já estamos. Portanto, contrate um advogado, e nós lhe pagamos o que for necessário.

- Tudo bem. - respondi.

Desliguei com um nó no estômago. O meu telefone indicava que tinha duas chamadas perdidas. Ambas eram do celular do meu amigo Tony, o policial. Sentei-me na saliência da raiz de uma árvore e liguei de volta.

- Montenegro. - disse.

- Eu sei o que aconteceu ao Zee. - eu disse. - Ele não matou ninguém.

Fez uma pausa.

- Mas acha que ele não seria capaz de fazer algo assim ou sabe alguma coisa especificamente a respeito do crime?

- Zee é perfeitamente capaz de matar. - lhe disse. - No entanto, sei de fonte segura que ele não matou essa pessoa. - não lhe disse que se Zee tivesse encontrado O’Donnel vivo, muito provavelmente o teria matado. Essa informação não seria muito vantajosa.

- Qual é sua fonte segura? E, já que mencionou, quem matou a vítima?

Apertei o topo do nariz.

- Não posso te dizer. E eles não sabem. Sabem apenas que o assassino não foi Zee. Ele encontrou O’Donnel morto.

- Consegue me dar algo mais substancial? Ele foi encontrado de joelhos ao lado do corpo com sangue nas mãos, e o sangue ainda estava quente. O Sr. Adelbertskrieger é um Fae, registrado no GAF há sete anos. Isso não foi feito por nada humano, Mercy. Não posso falar de detalhes, mas isso não foi feito por nada humano.

Clareei a garganta.

- Por acaso não pode manter essa ultima informação fora do relatório, não é? Até que vocês capturem o verdadeiro assassino, seria uma ideia muito boa não ter pessoas agitadas contra os Fae.

Tony era uma pessoa sutil, e compreendeu aquilo que eu não estava dizendo.

- Como quando disse que seria muito bom que a polícia não fosse a procura dos Fae como causa do aumento dos crimes violentos neste verão?

- Exatamente. - bem, não propriamente, e a honestidade me impediu de me corrigir. - No entanto, dessa vez a polícia não vai estar em perigo. Mas o Zee vai, e o verdadeiro assassino andará a solta para matar em outros lugares.

- Preciso de mais do que a sua palavra. - disse finalmente. - A nossa consultora especialista está convencida de que Zee é o nosso culpado, e a palavra dela tem muito peso.

- A sua consultora especialista? - inquiri. Ao que sabia, eu era a coisa que mais se aproximava de uma consultora especialista em Fae que as forças policiais de Tri-Cities tinham.

- A Dra. Stacy Altman, uma especialista em folclore da Universidade do Oregon, chegou hoje de avião. Ela recebe muito dinheiro, o que significa que os meus patrões entendem que devemos ouvir os conselhos dela.

- Talvez eu devesse cobrar mais quando eu sirvo de consultora para vocês. - disse.

- Da próxima vez duplico os honorários. - prometeu.

O que recebi pelos meus conselhos foi absolutamente nada, o que não era problema pra mim. Era provável que estivesse em problemas suficientes sem que a comunidade sobrenatural local pensasse que eu estava sendo informante da polícia.

- Escuta. - disse. - Isso não é oficial. - Zee não me tinha dito que não era para dizer sobre as mortes na reserva porque não lhe ocorreu que tivesse que fazer. Era algo que eu já sabia.

Todavia, se falasse depressa, talvez conseguisse cuspir tudo para fora antes de pensar quão descontentes eles poderiam ficar comigo por contar a polícia.

- Aconteceram algumas mortes no seio dos Fae, e indícios sustentáveis de que O’Donnel foi o assassino. Essa foi a razão pela qual Zee foi a casa de O’Donnel. Se alguém descobriu isso antes de Zee, poderia ter matado O’Donnel.

Se isso fosse verdade, poderia salvar Zee (pelo menos do sistema jurídico local), mas as consequências politicas podiam ser horríveis. Era apenas uma criança quando os Fae tinham ficado conhecidos pela primeira vez, mas me lembro de o KKK queimar uma casa com os seus ocupantes Fae ainda dentro e dos motins nas ruas de Houston e Baltimore que serviram de ímpeto para confinar os Fae em reservas.

Mas era Zee que importava. Os Fae restantes podiam apodrecer desde que Zee ficasse a salvo.

- Não ouvi nada sobre pessoas morrendo em Fairyland.

- Porque você deveria ouvir? - perguntei. - Eles não deixam pessoas estranhas entrar.

- Nesse caso, como sabe disso?

Tinha dito que não era um Fae nem uma mulher-loba, mas algumas coisas valem a pena serem repetidas até que eventualmente se acredite nelas. Essa era a teoria com base na qual estava agindo.

- Já te disse que não sou Fae. - expressei. - Não sou. Mas sei algumas coisas e eles acharam que eu talvez pudesse ajudar. - aquilo soou muito pouco convincente.

- Isso é pouco convincente, Mercy.

- Um dia. - disse. - Te conto tudo. Nesse momento, não posso. Também não acho que deva estar falando disso, mas é importante mês passado. Acredito que O’Donnel matou... - tive que recapitular mentalmente. - ...sete Fae no. - Zee não tinha me levado aos outros locais dos crimes. - Não está olhando para um agente da lei que foi morto pelos bandidos. Você está olhando para um bandido que foi morto por... - quem? Mocinhos? Bandidos piores? Alguém?

- Alguém forte ao ponto de arrancar a cabeça de um homem, Mercy. As duas clavículas dele foram partidas pela força do que quer que o tenha matado. A nossa consultora bem remunerada parece acreditar que Zee seria capaz de fazê-lo.

Oh? Franzi a sobrancelha para o celular.

- Que tipo de Fae disse o que Zee é? O que ela sabe sobre eles? - calculei que se Zee não tinha me contado nenhuma das histórias do seu passado, e eu tinha procurado, essa consultora não tinha como saber mais do que eu.

- Ela disse que ele é um gremlin, como ele também disse. Pelo menos nos seus papeis de registro. Não disse uma única palavra desde que fomos buscá-lo.

Tive que pensar durante um minuto na melhor maneira de ajudar Zee. Finalmente decidi que, considerando que ele era de fato inocente, quanto mais verdades fossem desvendadas, mais ele se beneficiaria.

- A sua consultora não vale um centavo. - disse a Tony. - Ou não sabe tanto quanto diz saber, ou tem algum motivo escondido.

- Porque diz isso?

- Os gremlins não existem. - conclui. - É um termo inventado por pilotos britânicos na Grande Guerra como explicação para coisas estranhas que impediam os aviões de funcionar. Zee é um gremlin apenas na medida em que afirma que é.

- Então o que ele é?

- Um Mettalzauber, um dos Fae que trabalham na metalurgia. Que é uma categoria muito ampla que contem muitos poucos membros. Desde que o conheci, fiz muita pesquisa sobre Faes alemães apenas por pura curiosidade, mas nunca encontrei nada que se parecesse com ele. Sei que trabalha o metal porque o vi fazê-lo. Não sei se teria tido a força para arrancar a cabeça de alguém, mas sei que é impossível a sua consultora saber isso. Especialmente se ela o chama de gremlin e age como se isso fosse uma designação real.

- Primeira Guerra Mundial? - Tony perguntou pensativo.

- Pode pesquisar na Internet. - assegurei. - Na altura da Segunda Guerra Mundial, a Disney estava usando-os em desenhos animados.

- Talvez tenha sido nessa altura que ele nasceu. Talvez as lendas venham dele. Consigo imaginar um Fae alemão fazendo modificações nos aviões inimigos.

- Zee é muito mais velho do que a Primeira Guerra Mundial.

- Como você sabe?

Era uma boa pergunta, e não tinha resposta apropriada para ela. Na verdade nunca tinha me dito sua idade.

- Quando ele está zangado... - disse lentamente. - ,ele pragueja em alemão. Não em alemão moderno, que eu compreendo razoavelmente. Tive um professor de inglês que nos leu Beowulf na língua original. É assim que Zee soa.

- Pensava que Beowulf tinha sido escrito em uma versão antiga do inglês, não do alemão.

Aqui eu estava em terreno firme. As licenciaturas em História não são totalmente inúteis.

- O inglês e o alemão têm origens comuns. As diferenças entre o inglês e o alemão medieval são muito menores do que nas línguas modernas.

Tony produziu um ruído de insatisfação.

- Que diabos, Mercy. Tenho em mãos um homicídio brutal e o chefe quer a sua solução para ontem. Especialmente porque temos um suspeito pego em flagrante. Agora está me dizendo que ele não o cometeu e que a nossa consultora especialista bem paga está mentindo ou não sabe tanto quanto diz saber. Que O’Donnel era o assassino, embora os Fae provavelmente negarem a ocorrência de qualquer assassinato. Mas que se eu sequer fizer alguma pergunta sobre isso, os agente federais vão andar encima de nós porque agora esse crime envolve Fairyland. Tudo isso sem uma única prova sólida.

- Sim.

Praguejou chocado.

- A droga é que acredito em você, mas diabos me partam se consigo imaginar uma maneira de contar qualquer uma dessas coisas ao meu chefe, especialmente não sendo eu quem está a frente do caso.

Fez-se um longo silencio em ambas as partes.

- Precisa lhe arrumar um advogado. - me disse. - Ele não está falando, o que é sensato da parte dele. Mas precisa ter um advogado. Mesmo que tenha certeza que ele é inocente, especialmente se ele for inocente, precisa de um advogado muito bom.

- Tudo bem. - concordei. - Por acaso não existe a possibilidade de eu dar uma olhada... - funguei. - ...ao local do crime? - talvez conseguisse descobrir algo que a ciência moderna não tinha conseguido. Como alguém que tivesse estado em um dos outros locais do crime.

Suspirou.

- Arranje o advogado e lhe pergunte. Não me parece que vá poder ajudar com isso. Mesmo que ele faça como que entre lá, vai ter que esperar até que nossa equipe que está no local do crime termine o trabalho. No entanto, faria melhor se contratasse um detetive privado, alguém que saiba analisar o cenário de um crime.

- Tudo bem. - respondi. - Eu arranjo um advogado. - contratar um advogado humano seria ou um desperdício de dinheiro ou uma sentença de morte para o detetive caso descobrisse um ou outro segredo que os Senhores Cinzentos não queriam tornar públicos. Tony não precisava saber disso.

- Tony, se certifique de que veja além do que parece evidente na procura de um assassino. Não foi Zee.

Suspirou.

- Tudo bem. Tudo bem. Não fui destacado para esse caso, mas vou falar com alguns colegas que foram.

Despedimo-nos e olhei em volta a procura de Kyle.

O vi parado no meio de uma pequena multidão a uma distancia curta, suficientemente longe do palco para que a conversa deles não interferisse na musica do artista. Samuel e os estojos de seus instrumentos estavam no centro do grupo.

Pus o celular no bolso de trás (método que até o momento destruiu dois celulares) e tentei por no rosto uma expressão neutra. De nada serviria em relação aos lobisomens, que conseguiriam cheirar a minha inquietação, mas pelo menos evitaria que pessoas completamente desconhecidas parassem e me perguntassem o que acontecia.

Um homem jovem bonito que vestia uma blusa tingida que falava com Samuel, que o observava com um entusiasmo aparente apenas nas pessoas que o conhecessem muito bem.

- Nunca tinha ouvido aquela versão da ultima canção que tocou. - dizia o rapaz. - Não é a melodia que normalmente se usa. Queria saber onde a ouviu. Fez um trabalho excelente, com exceção da pronuncia da terceira palavra na primeira estrofe. Foi assim... - pronunciou algo que soou vagamente Galês. - ... que você disse, mas na verdade devia ser... - outra palavra impronunciável que soou idêntica à primeira que tinha dito. Posso ter crescido em um bando de lobisomens liderado por um galês, mas o inglês era a língua comum e nem o Marrok nem o seu filho Samuel usavam o Galês com uma frequência que me permitisse ter ouvido ele. - Pensei que, uma vez que todo o resto foi tão bem feito, devesse saber.

Samuel indicou ligeiramente a cabeça e disse cerca de quinze ou vinte palavras que soavam galesas.

O homem da camisa tingida franziu a sobrancelha.

- Se foi aí que aprendeu a sua pronuncia, não é de se admirar que tenha tido um problema. Tolkien baseou a sua língua élfica no Galês e no Finlandês.

- Compreendeu o que ele disse? - Adam perguntou.

- Oh, por favor. É a inscrição no Anel de Sauron, você sabe, Um Anel Para Todos Governar... todas as pessoas conhecem.

Parei onde estava, perplexa apesar da urgência da minha necessidade. Um nerd de música folclórica, quem iria adivinhar?

Samuel exibiu um sorriso.

- Muito bem. É a única coisa que sei dizer em língua élfica, mas não resisti em brincar um pouco contigo. Um velho galês me ensinou a canção. A proposito chamo-me Samuel. Você é...?

- Tim Milanovich.

- É um prazer conhece-lo, Tim. Vai apresentar mais tarde?

- Vou fazer um seminário com um amigo. - sorriu timidamente. - Talvez goste de assistir, música tradicional celta. Às 14h de domingo no Centro Comunitário. Você toca muito bem, mas se quiser entrar na indústria musical, precisa organizar melhor as canções, arranjar um tema, como canções tradicionais celtas. Apareça na minha apresentação que eu dou algumas ideias.

Samuel lhe dirigiu um sorriso grave, embora eu soubesse que as probabilidades de Samuel organizar a sua musica eram equivalentes às probabilidades da existência de gelo no inferno. Mas mentiu, educadamente.

- Tentarei aparecer. Obrigado.

Tim Milanovich apertou a mão de Samuel e depois se foi, deixando apenas os lobisomens e Kyle para trás.

Assim que ficou fora de alcance do ouvido, os olhos de Samuel se concentraram em mim.

- Qual é o problema, Mercy?


4

Kyle me arrumou uma advogada. Assegurou-me que era cara, uma chata dos diabos e a melhor advogada de defesa criminal desse lado de Seattle. Não ficou feliz com a ideia de defender um Fae, mas, segundo Kyle dissera, isso não iria afetar o seu desempenho, apenas o seu preço. Vivia em Spokane, mas concordou que o tempo era essencial. Às 15h nessa tarde, estaria em Kennewick.

Depois de ter sido garantido que Zee não falasse com a polícia, exigiu se encontrar comigo no escritório de Kyle primeiro, antes de ir para ao Departamento de Polícia. Para ouvir a história da minha boca, Kyle disse, antes de falar com Zee ou com a polícia.

Uma vez que era um sábado, a equipe eficiente de Kyle e os outros dois advogados que trabalhavam com ele estava ausentes, e tínhamos o seu luxuoso escritório só para nós.

Jean Ryan era uma mulher com cinquenta e tantos anos que mantivera a silhueta a custa de um trabalho árduo e que deixava aparentes músculos tensos por baixo do terno de linho que vestia. O seu cabelo loiro extremamente claro só podia ser proveniente de um salão de beleza, mas os olhos de um azul surpreendente suave não ficavam nada devendo a lentes de contato.

Não sei o que pensou quando olhou para mim, embora tenha reparado que os seus olhos analisaram as minhas unhas partidas e a sujeira alojada nos nós dos dedos.

O cheque que lhe passei me fez engolir em seco e esperar que o Tio Mike cumprisse a sua palavra e cobrisse a despesa, e isso era apenas para a consulta inicial. Talvez minha mãe tivesse razão e eu devesse ter sido advogada. Ela sempre afirmou que pelo menos como advogada o meu espirito contraditório seria uma vantagem.

Jean Ryan enfiou o meu cheque na sua bolsa e em seguida entrelaçou os dedos sobre a mesa na menor das duas salas de reunião de Kyle.

- Conte-me o que aconteceu. - disse.

Tinha acabado de começar quando Kyle clareou a garganta. Parei para olhá-lo.

- Zee não pode se dar ao luxo de Jean saber apenas a parte segura. - disse. - Tem que lhe contar tudo. Não há ninguém que saiba detectar melhor uma mentira do que um advogado de defesa criminal.

- Tudo? - perguntei com os olhos esbugalhados.

Bateu-me de leve no ombro.

- Jean sabe manter segredos. Se não souber de tudo, vai defender o seu amigo com uma mão presa atrás das costas.

Cruzei os braços na altura do peito e lhe dirigi um olhar longo e uniforme. Não havia nada nela que me inspirasse a confiança necessária para partilhar com ela meus segredos. Uma mulher com aparência menos maternal eu raramente via, exceto por aqueles olhos.

A sua expressão era serena e vagamente insatisfeita, se era causada por ter dirigido duzentos e quarenta quilômetros em um sábado, por defender um Fae, por defender um assassino, ou pelas três razões, não sabia dizer.

Inspirei fundo e suspirei.

- Tudo bem.

- Comece pela razão que terá levado o Sr. Adelbertsmiter a sentir a necessidade de chamar uma mecânica para examinar o local de um crime. - disse sem tropeçar no nome de Zee. Perguntei-me de forma um tanto cruel se teria praticado durante a viagem. - Deveria começar assim: "Porque eu não sou uma mecânica, eu sou...".

Cerrei os olhos na direção dela, a vaga antipatia que a sua aparência tinha me infundido desabrochou ao seu tom paternal. O fato de ter sido criada no seio de lobisomens me deixara com uma forte aversão a tons paternais. Não gostava dela, não confiava nela para defender Zee. E só a defesa de Zee faria com que merecesse a pena por lhe expor os meus segredos.

Kyle leu meu rosto.

- Ela é uma vadia, Mercy. É por isso que é tão boa. Ela safa o seu amigo se isso for possível.

Uma das suas elegantes sobrancelhas se ergueu.

- Muito obrigada pela avaliação de caráter, Kyle.

Kyle sorriu. Um sorriso relaxado e genuíno. Independentemente do que eu pensasse a seu respeito, Kyle gostava dela. Já que não podia ser pelos seus modos afáveis, deveria querer dizer que ela era uma boa pessoa.

Teria me sentido melhor se ela tivesse animais de estimação. Um cão ou mesmo um gato teriam apontado para uma afetuosidade que não conseguia ver, mas o único cheiro que emanava dela era Chanel N5 e fluido de limpeza a seco.

- Mercy. - Kyle chamou em um tom que devia ter aperfeiçoado com as mulheres cujos divórcios ele cuidava. - Tem que lhe contar.

Não ando por ai contando às pessoas que sou uma andarilha. Exceto a minha família, Kyle é o único humano que sabe.

- Libertar o seu amigo poderá significar que terá de depor e dizer em uma sala de audiências cheia de gente o que você é. - Jean Ryan disse. - Até que ponto se importa com o que acontecerá com o Sr. Adelbertsmiter?

Ela pensava que eu era uma espécie qualquer... um Fae.

- Tudo bem. - saí da cadeira pecaminosamente confortável e caminhei em direção à janela, onde por momentos fiquei olhando para o transito na Clearwater Avenue. Apenas via uma maneira de resolver isso rapidamente.

- Não sou uma mecânica. - disse usando as suas palavras. - Sou amiga do Zee. - girei velozmente e puxei minha blusa por cima da cabeça, usando os dedos dos pés para descalçar meus tênis e meias ao mesmo tempo.

- Está tentando dizer que é uma stripper também? - perguntou enquanto tirava o sutiã e o deixava cair sobre a minha blusa no chão. A julgar pelo seu tom de voz, poderia estar fazendo abdominais em vez de me despir que seria a mesma coisa.

Abri minhas calças jeans e as puxei juntamente com a minha calcinha. Quando cheguei ao ponto em que a única coisa que usava era minhas tatuagens, convoquei o coiote em mim e assumi a sua forma. Alguns momentos depois, tinha terminado.

- Mulher-loba? - Jean Ryan tinha saído disparada da cadeira e caminhava lentamente em direção a porta.

Não sabia distinguir um coiote de um lobisomem? Isso era como olhar para um Geo Metro{5} e chama-lo de Hum-Vee{6}.

Consegui cheirar o seu medo e isso satisfez algo bem no fundo de mim que vinha se contorcendo sob a sua expressão impassível e superior. Dobrei o lábio superior de modo que pudesse ver bem meus dentes. Posso pesar uns quinze quilos na forma de coiote, mas era uma predadora e podia ter matado uma pessoa se quisesse. A algum tempo, matara um lobisomem apenas com as minhas presas.

Kyle ficou de pé ao lado dela antes que pudesse correr pela porta. Agarrou-a pelo braço com firmeza.

- Se ela fosse uma mulher-loba, estaria metida em problemas. - disse Kyle. - Nunca se foge de um predador. Mesmo o mais bem comportado terá dificuldade em não perseguir a presa.

Sentei-me e, com um bocejo, coloquei fim aos últimos zumbidos da transformação. Também lhe exibi novamente os dentes, o que parecia incomodá-la. Kyle me lançou um olhar de censura, mas continuou a tranquilizar a advogada.

- Ela não é uma mulher-loba, são muito maiores e assustadores, acredite. Também não é uma Fae. É algo um pouco diferente, nativo da nossa terra, não importado como os Fae ou os lobisomens. A única coisa que ela consegue fazer é se transformar em coiote e voltar a forma humana.

Não propriamente. Conseguia matar vampiros, desde que estivessem indefesos, aprisionados pelo dia.

Engoli, tentando umedecer a minha boca que ficou seca. Detestava esse medo repentino e doloroso que me assaltava sem aviso. A cada vez que via a pequena deficiência no andar de Warren, sabia que iria destruir os vampiros novamente, mas paguei o preço da sua eliminação com esses ataques de pânico.

A explicação calma de Kyle tinha dado tempo a Jean Ryan para recuperar a sua fachada calma. Kyle provavelmente não tinha noção de quão furiosa ela estava, mas os meus sentidos mais apurados não foram ludibriados pelo controle que ela tinha readquirido. Ainda sentia medo, mas o seu medo não era tão forte quanto sua raiva.

Normalmente, o medo também me fazia sentir furiosa. Furiosa e descuidada. Perguntei-me se ter lhe mostrado aquilo que eu era teria sido boa ideia.

Voltei a minha forma humana e ignorei o ronco de fome com que as suas transformações rápidas me deixaram. Recoloquei as roupas, demorando algum tempo para apertar os cadarços, depois voltei ao meu lugar, dando a Jean Ryan tempo para readquirir a compostura.

Estava sentada quando olhei para cima, mas tinha se mudado para o lado oposto da mesa e ocupado a cadeira ao lado de Kyle.

- Zee é meu amigo. - disse novamente em uma cadencia lenta. - Ele me ensinou tudo o que sei sobre reparação de carros e me vendeu a sua oficina quando foi forçado a admitir que era um Fae.

Franziu a sobrancelha.

- É mais velha do que parece? Seria uma criança quando os Fae foram reconhecidos.

- Não foram reconhecidos todos ao mesmo tempo. - expliquei. A pergunta dela acalmou meus nervos. Era a vida de Zee que estava em jogo, não a minha. Não por enquanto. Continuei a falar para que não me perguntasse por que Zee tinha vindo a publico. Se havia alguma coisa que eu não podia contar de modo algum era a existência dos Senhores Cinzentos. - Zee só admitiu o que era a poucos anos, sete ou oito, talvez. Ele sabia que o fato de ser um Fae ia afugentar as pessoas da oficina. Eu andava trabalhando para ele a uns dois anos e gostava de mim, portanto me vendeu.

Reuni os pensamentos, tentando lhe dizer o que ela precisava saber sem demorar uma eternidade.

- Assim como lhe disse, me telefonou ontem para pedir a minha ajuda porque alguém andava matando Faes na reserva. Zee achou que com o meu faro, poderia detectar o assassino. Calculo que tenha sido uma espécie de último recurso. Quando fomos para a reserva, O’Donnel estava no portão e anotou meu nome quando entramos. Isso está registrado. Imagino que a polícia vá encontrar esse registro se pensar em procurar. Zee me levou aos locais dos crimes e descobriu que um mesmo homem tinha estado presente em cada uma das casas, O’Donnel.

Ela vinha tomando notas em um bloco mas parou de fazê-lo, pousou o lápis e franziu a sobrancelha.

- O O’Donnel esteve presente em todos os locais dos crimes e você verificou isso cheirando-o?

Ergui as sobrancelhas.

- Um coiote tem o olfato muito apurado, Sra. Ryan. Eu tenho uma memória muito boa para cheiros. Apreendi o de O’Donnel na hora que nos fez parar quando entramos. E o cheiro dele estava em todas as casas das vítimas de homicídio que visitei.

Olhou-me fixamente, mas não era uma mulher-loba, que pudesse arrancar minha garganta por eu desafiá-la, portanto também me fixei nela.

Baixou os olhos primeiro, olhando ostensivamente para as suas anotações. As pessoas podem ser muito insensíveis à linguagem corporal. Talvez nem sequer tenha se dado conta de que perdera a disputa de poder, embora o seu subconsciente tenha registrado isso.

- Ao que sei, O’’Donnel era empregado do GAF como segurança. - disse, voltando algumas páginas atrás. - Ele não poderia estar lá investigando as mortes?

- O GAF não fazia ideia de que havia quaisquer assassinatos. - informei. - Os Fae fazem seu próprio policiamento interno. Seja como for, se tivessem ido pedir ajuda aos agentes federais, tenho praticamente certeza absoluta de que teriam chamado o FBI, não o GAF. E o O’Donnel era um guarda, não um investigador. Me disseram que não havia nenhuma razão para o O’Donnel ter estado em todas as casas onde houve o assassinato, e não tenho razões para duvidar disso.

Tinha recomeçado a escrever.

- Portanto, disse ao Sr. Adelbertsmiter que o O’Donnel era o assassino?

- Disse-lhe que ele era a única pessoa cujo o cheiro detectei em todos os locais.

- Quantos locais?

- Quatro. - decidi não lhe contar que tinham sido mais, não queria lhe explicar o porque de não ter ido a todos os locais dos crimes. Se Zee não tinha querido falar comigo sobre a minha viagem à Underhill, calculei que não iria querer que discutisse com uma advogada.

Pausou novamente.

- Foram assassinadas quatro pessoas na reserva e eles não pediram ajuda?

Sorri tenuemente.

- Os Fae não gostam de atrair atenção do exterior. Pode ser perigoso para todos. Também estão muito conscientes daquilo que a maior parte dos humanos incluindo os agentes federais, sente em relação a eles. A mentalidade "um Fae bom é um Fae morto" impera no seio dos conservadores que escolhem o nível do arquivo no governo, quer seja na Segurança Interna, no FBI, no GAF, ou em qualquer outra sopa alfabética de letras.

- Tem problemas com o governo federal? - me perguntou.

- Tanto quanto sei, nenhum deles tem qualquer tipo de preconceito contra mecânicas meio índias. - respondi com a mesma suavidade. - Portanto, porque eu teria qualquer problema com eles? No entanto, consigo entender perfeitamente o motivo pelo qual os Fae se sentiriam relutantes em comunicar uma série de assassinatos a um governo cujo histórico de relações com os Fae não é propriamente imaculado. - encolhi os ombros. - Talvez se eles tivessem percebido mais cedo de que o assassino não era outro Fae pudessem tê-lo feito. Não sei.

Inclinou a cabeça na direção de suas anotações.

- Portanto, disse a Zee que O’Donnel era o assassino?

Assenti com a cabeça.

- Depois peguei o carro de Zee e dirigi até em casa. Foi de manhã cedo, talvez pelas quatro horas, que nos separamos. Fiquei a entender que ele iria à casa de O’donnel falar com ele.

- Apenas falar?

Encolhi os ombros, lancei os olhos à Kyle, e tentei decidir até que ponto confiava no seu juízo. Toda a verdade, não é? Suspirei.

- Foi o que ele disse, mas fiquei convencida de que se O’Donnel não tivesse uma boa história, não ia acordar de manhã.

O seu lápis bateu na mesa com um estalo.

- Está me dizendo que Zee foi à casa de O’Donnel para matá-lo?

Respirei fundo.

- Você não vai compreender isso. Não conhece os Fae, não verdadeiramente. Aprisionar um Fae é... impraticável. Em primeiro lugar, é difícil como o diabo. Manter uma pessoa presa já é difícil. Manter um Fae preso, seja por quanto tempo for, é quase impossível se for contra a sua vontade. Mesmo excluindo isso, uma prisão perpétua é altamente impraticável se considerarmos que os Fae podem viver centenas de anos. - ou muito mais, mas o público não sabia disso. - E quando forem libertados, não é provável que encarem a situação como um cumprimento da justiça. Os Fae são uma raça ávida de vingança. Se alguém prende um Fae, seja por qualquer motivo for, é bom que esteja morto quando libertado ou vai desejar ter estado. A justiça humana simplesmente não está equipada para lidar com os Fae, portanto eles cuidam disso. Um Fae que cometa um crime grave, como um homicídio, é simplesmente executada ali mesmo. - os lobisomens faziam o mesmo.

Apertou a ponte do nariz como se eu estivesse lhe provocando uma dor de cabeça.

- O’Donnel não era um Fae. Era humano.

Considerei a possibilidade de tentar explicar o motivo pelo qual um povo que estava acostumado a fazer a sua própria justiça de importaria menos caso o perpetrador fosse humano, mas decidi que era inútil.

- O fato é que Zee não matou O’Donnel. Alguém chegou lá primeiro.

A sua expressão branda não indicava crença, portanto perguntei: - Conhece a história de Thomas, o rimador{7}?

- O Fiel Thomas{8}? É um conto de fadas. - ela disse. - Um protótipo de Irving "Rip Van Winkle".

- Hmm. - repliquei. - Na verdade, tenho a impressão de que no essencial se tratou de uma história verdadeira. A de Thomas, quero dizer. Seja como for, Thomas foi uma figura histórica real, uma entidade política distinta do século treze. Afirmava que tinha sido capturado durante sete anos pela rainha das fadas, e que depois foi permitido seu regresso. Ou pediu a rainha das fadas um sinal de que podia mostrar aos seus parentes para que acreditassem nele quando disse onde tinha estado, ou roubou um beijo da rainha das fadas. Seja qual for o motivo, deram-lhe um presente, e, a semelhança a maior parte dos presentes de fadas, era mais uma maldição do que uma benção. A rainha transformou-o em alguém incapaz de mentir. Para um diplomata ou um amante ou um homem de negócios, isso era algo cruel a se fazer, mas os Fae são frequentemente cruéis.

- Onde quer chegar?

Não me pareceu satisfeita. Suponho que não gostasse de acreditar que qualquer conto de fadas pudesse ser verdadeiro. Era uma atitude comum.

As pessoas podiam acreditar nos Fae, mas contos de fadas eram contos de fadas. Apenas as crianças acreditariam verdadeiramente neles.

Era uma atitude que os próprios Fae promoviam. Na maior parte dos contos tradicionais, os Fae não são propriamente amigáveis. Veja João e Maria, por exemplo. Zee uma vez me disse que há vários Fae na reserva que, se lhes fosse permitido adotarem as suas dietas preferidas, de bom grado comeriam pessoas... especialmente crianças.

- Foi amaldiçoado para se tornar como os Fae. - disse. - A maior parte dos Fae, incluindo Zee, não consegue dizer uma mentira. São muito bons em fazer alguém pensar que estão dizendo uma coisa quando pretendem transmitir outra, mas não conseguem mentir.

- Todo mundo consegue mentir.

Sorri.

- Os Fae não conseguem. Não sei por quê. São capazes de fazer as coisas mais incríveis com a verdade, mas não conseguem mentir. - suspirei tristemente. Tinha tentado com muito afinco tentar deixar Tio Mike de fora, mas infelizmente não havia outra forma de contar essa parte. Zee e eu ainda não tínhamos falado desde que fora preso, isso estava registrado e do conhecimento de quem quisesse saber. Tinha que convencê-la de que Zee estava inocente. - Ainda não falei com Zee, por isso não sei a história dele...

- Ninguém falou. - ela disse. - O meu contato no departamento de polícia me garantiu que ele não falou com ninguém desde que foi preso. Uma atitude que me permitiu falar contigo antes de falar com ele.

- Zee estava acompanhado de outro Fae. Foi ele quem me contou que Zee não matou O’Donnel. Ele e Zee entraram e encontraram o cadáver mais ou menos na hora que a polícia apareceu. O outro Fae conseguiu se esconder da polícia, mas Zee não.

- Ele também teria conseguido se esconder?

Encolhi os ombros.

- Todos os Fae tem glamour, que lhes permite mudar a aparência. Alguns deles conseguem se esconder completamente. Vai ter que perguntar para ele, embora ele provavelmente não vá responder. Acho que Zee fez o que fez para que a polícia não vasculhasse e encontrasse o amigo dele.

- Altruísmo? - talvez quem não tivesse sido criado lobisomens não tivesse notado o desdém que sentiu pela minha teoria. Aparentemente, aos seus olhos, os Fae não eram capazes de gestos de altruísmo.

- Zee é um dos raros Fae capazes de tolerar o metal. O amigo dele não é. A prisão seria muito dolorosa para a maior parte dos Fae.

Bateu de leve com a extremidade do bloco de notas na mesa.

- Portanto, o que quer dizer com tudo isso é que um Fae que não consegue mentir lhe contou que Zee não matou O’Donnel. Isso não vai convencer os jurados.

- Tinha esperança que te convenceria.

Ergueu as sobrancelhas.

- Não interessa o que eu penso, Sra. Thompson.

Não sei que expressão estava estampada no meu rosto, mas ela riu.

- Um advogado tem que defender o inocente ou o culpado, Sra. Thompson. É assim que o nosso sistema jurídico funciona.

- Ele não é culpado.

Encolheu os ombros.

- Ou assim você diz. Mesmo que o amigo de Zee não consiga mentir, você não é um Fae, não é? Seja como for, ninguém é culpado até ser condenado em um tribunal. Se já disse tudo o que tinha a dizer, vou falar com o Sr. Adelbertsmiter.

- Consegue arranjar uma maneira de eu ir a casa de O’Donnel? - perguntei. - Talvez consiga descobrir alguma coisa sobre o verdadeiro assassino. - bati com o dedo de leve no nariz.

Ponderou a questão e em seguida balançou a cabeça.

- Você me contratou para ser a advogada do Sr. Adelbertsmiter, mas também me sinto de certa forma obrigada perante a você. Não seria proveitoso para você, nem para o Sr. Adelbertsmiter, provar a você mesma alguma coisa... que não seja humana neste momento. Está me pagando pelos meus serviços, portanto a polícia vai se concentrar em você. Confio que não vão descobrir nada.

- Nada que interesse.

- Ninguém sabe que você consegue... se transformar?

- Ninguém que pudesse contar a polícia.

Pegou o bloco de anotações e o colocou na mesa.

- Se tem andado lendo jornais ou seguindo os noticiários, saberá que estão sendo colocadas questões legais relacionadas com os lobisomens.

Questões legais. Suponho que fosse uma forma de colocar o problema. Os Fae, ao aceitarem o sistema de reserva, tinham aberto caminho para a introdução de uma proposta de lei no Congresso que negava aos lobisomens cidadania plena e todos os direitos constitucionais a ela associados. Ironicamente, estava sendo proposta como uma revisão da Lei das Espécies em Vias de Extinção.

A Sra. Ryan acenou contundentemente com a cabeça.

- Se ficar sabendo que você consegue se transformar em coiote, o tribunal poderá considerar o seu testemunho inadmissível, o que poderá ter mais consequências legais para você. - porque podiam decidir que eu era um animal e não humana, pensei. - O que quer que encontrasse, seriam provas sólidas, mesmo se fossem admitidas. O tribunal não vai ter a mesma visão sobre a confiança que Zee aparentemente teve. Especialmente considerando que terá que declarar como pertencendo a uma espécie diferente, o que poderá ser uma coisa muito perigosa nessa hora. - a proposta de lei dos lobisomens não iria ser aprovada. Bran tinha muita influencia no Congresso, mas eu não era nem mulher-loba e nem Fae, e a mesma proteção podia não me abranger.

Franziu a sobrancelha e mexeu inquietamente no bloco de anotações.

- Devia saber que pertenço a Sociedade John Lauren.

Olhei para Kyle. A Sociedade John Lauren era o maior dos grupos anti-Fae. Embora mantivessem uma fachada de respeito, no ano passado houve alegações que diziam que tinham financiado um pequeno grupo de jovens em idade universitária que tentara mandar pelos ares um conhecido bar de Fae em Los Angeles. Afortunadamente, a sua competência não se equiparava a sua convicção e apenas conseguiram provocar estragos menores e mandar um casal de turistas para o hospital por inalação de fumaça. As autoridades tinham os caçado muito rápido e encontrado um apartamento cheio de explosivos. Os jovens tinham sido condenados, mas as autoridades não conseguiram constituir um caso contra a organização.

Tinha acesso a informações não disponíveis para as autoridades e sabia que a Sociedade John Lauren era bem mais vil do que o próprio FBI suspeitava.

Kyle tinha me arranjado uma advogada que não se limitava a não gostar dos Fae, gostava de vê-los eliminados.

Kyle me deu um tapinha na mão.

- A Jean não vai permitir que as crenças pessoais interfiram no seu trabalho. - em seguida, sorriu. - E valerá a pena ver alguém que é tão ativo na comunidade anti-Fae defendendo seu amigo.

- Não estou fazendo isso por acreditar que ele é inocente. - disse.

Kyle desviou a atenção na direção dela e o seu sorriso se tornou feroz. Raramente mostrava aquele seu lado a qualquer um.

- Pode dizer isso aos jornais e aos jurados e juiz, que mesmo isso não vai impedi-los de acreditar que ele deverá ser inocente, porque se assim não fosse não teria aceitado o caso.

Pareceu ter ficado horrorizada, mas não discordou.

Tentei me imaginar trabalhando em um emprego onde as minhas convicções fossem um inconveniente que se aprende a ignorar, e cheguei a conclusão que preferia manusear uma chave de porcas independentemente do quão melhor paga ela fosse.

- Nesse caso, vou me manter longe do local do crime. - menti. Eu não era Fae. O que a polícia e a Sra. Ryan não soubessem não os prejudicaria. O coiote é um animal esperto e familiarizado com as coisas feitas na surdina, e não estava disposta a deixar que o destino de Zee dependesse inteiramente dessa mulher.

Iria descobrir quem matara O’Donnel e arranjaria uma maneira de provar a sua culpa sem que isso implicasse ter de contar a meia dúzia de jurados que o cheirei.

 

Fui buscar dois hambúrgueres e batatas fritas em um restaurante fast-food e segui de carro até em casa. O trailer estava com aspecto tão agradável quanto um veículo dos anos setenta poderia ter. O novo revestimento exterior tinha dado à varanda um ar desleixado, portanto havia pintado de cinza. Samuel tinha sugerido vasos de flores para enfeitar, mas não gosto de ver coisas vivas sofrerem desnecessariamente e sou uma especialista em matar plantas.

A Mercedes de Samuel não estava no lugar de costume, portanto ainda devia estar em Tumbleweed. Tinha se oferecido para ir comigo ao encontro com a advogada, e Adam também. E foi assim que acabei acompanhada apenas com Kyle, que nenhum lobisomem encarava como um rival.

Abri a porta principal e o cheiro de panela suja ainda fez meu estômago roncar.

No balcão da cozinha, ao lado da panela estava um bilhete. Samuel aprendera a escrever antes das maquinas de escrever e os computadores tornarem a caligrafia uma arte praticada pelas crianças da escola primária. Os seus bilhetes pareciam sempre convites formais de casamento. Era difícil acreditar que um médico escrevesse de fato assim.

Mercy, dizia o seu bilhete com belos floreados que faziam com que o alfabeto se assemelhasse a um conjunto de obras de arte. Desculpe não estar aqui. Ofereci-me como voluntário para o festival até o final do concerto de hoje à noite. Coma alguma coisa.

Segui o seu conselho e peguei uma tigela. Tinha fome, Samuel era um bom cozinheiro, e ainda faltavam algumas horas até o anoitecer.

 

A casa de O’Donnel estava nas páginas amarelas. Vivia em Kennewick, muito próximo da Rua Olympia, em uma casa de dimensão modesta que tinha um pátio bem cuidado e uma cerca branca de dois metros e meio de altura em volta do jardim traseiro. Era uma das casas construídas com blocos de cimento razoavelmente comuns na área. Recentemente alguém tivera a impressão errada de que pintá-la de azul e colocar persianas nas janelas daria um aspecto menos industrial.

Passei de carro, observando a fita amarela da polícia que cobria as portas e as casas escurecidas de cada um dos lados.

Demorei um tempo para encontrar um bom lugar para estacionar. Em um bairro como esse, as pessoas reparariam em um carro desconhecido estacionado em frente as suas casas. Finalmente estacionei em um parque junto a uma igreja que não ficava muito longe.

Coloquei a coleira com as etiquetas indicando o numero de telefone de Adam e seu endereço por precaução. Não me parecia muito com um cão, mas pelo menos na cidade não haveria agricultores furiosos prontos para me alvejar antes de me verem de coleira.

Encontrar um lugar para me transformar foi um pouco mais desafiador. Com o canil eu dava conta, mas não queria apanhar uma multa por atentado ao pudor. Finalmente encontrei uma casa vazia com o letreiro de um agente imobiliário em frene a um barraco aberto no jardim.

Então apenas tive de trotar dois quarteirões até a casa de O’Donnel. Felizmente, a cerca no jardim traseiro dava garantia de privacidade, uma vez que tive de voltar a me transformar e tirar os picks{9} presos na fita cola no interior da coleira.

Ainda estávamos perto do verão, então o ar da noite era agradável, uma coisa boa, considerando que tive de abrir a maldita fechadura completamente nua e demorei muito tempo. Samuel tinha me ensinado a abrir fechaduras quando eu tinha catorze anos. Não tinha praticado muito desde então, apenas um par de vezes quando tinha prendido as chaves no carro.

Assim que abri a porta, devolvi as picks para dentro do colar. Bendita fita-cola, ainda estava o suficiente pegajosa para segurá-las.

Logo na entrada estava uma máquina de lavar e uma de secar, com uma toalha suja encima da máquina de secar. Peguei-a e limpei a porta, a maçaneta, a fechadura e tudo aquilo que pudesse ter as minhas impressões digitais. Não sabia se tinham alguma coisa para detectar impressões das plantas dos pés, mas limpei o chão no local aonde tinha dado um passo para alcançar a toalha e em seguida atirei-a novamente na maquina de secar.

Deixei a porta fechada, mas sem encaixar o trinco, após isso voltei a forma de coiote, encolhendo-me sob a mira de olhos que não estavam lá. Eu sabia, sabia que ninguém tinha me visto entrar. O vento suave e estrepitoso teria transportado o cheiro de quem quer que pudesse estar me seguindo. Ainda assim, sentia alguém me observando, quase como se a casa tivesse consciência da minha presença. Assustador.

Com a minha cauda desconfortavelmente contraída, concentrei a minha atenção na minha tarefa que tinha em mãos de modo a ir embora o mais rápido possível, mas, ao contrário das casas dos Fae, essa tinha visto muitas pessoas entrar e sair recentemente. A polícia, pensei, a equipe de medicina legal, mas mesmo antes de eles terem aparecido muita gente tinha estado na entrada de trás.

Não esperava que um grosseiro odioso como O’Donnel tivesse muitos amigos.

Atravessei a entrada até a cozinha e o grande volume de pessoas se dissipou. Três ou quatro odores ligeiros, O’Donnel e alguém que usava uma água de colônia particularmente ruim tinham estado aqui.

As portas do armário da cozinha estavam escancaradas e as gavetas abertas pendiam um pouco tortas. Panos de cozinha estavam espalhados em montes bagunçados no balcão.

Talvez o Homem da Água de colônia fosse um policial que tinha revistado a cozinha, a menos que O’Donnel fosse o tipo de pessoa que enfiava a louça aleatoriamente em um lado do armário e guardasse seu material de limpeza em uma pilha no chão em vez de colocar no espaço embaixo da bancada atrás das portas que estavam abertas, revelando o espaço escuro e vazio por baixo.

A luz tênue da lua desvendava um fino pó preto espalhado pelas portas do armário e pelo balcão que reconheci como a substância que a polícia usa para revelar impressões digitais, a televisão é uma boa ferramenta educacional e Samuel é viciado nesses programas que são um misto de ciência forense, novela e série de mistério.

Lancei os olhos a porta, mas não havia nada nela. Talvez tivesse sido um pouco paranóica ao limpar o linóleo que estive descalça.

O primeiro quarto, do outro lado do corredor, era obviamente o de O’Donnel. Todas as pessoas que estiveram na cozinha também tinham estado aqui dentro, incluindo o Homem da Água de Colônia.

Uma vez mais parecia que alguém tinha revistado tudo. Estava uma bagunça. Todas as gavetas tinham sido postas sobre a cama e depois todo o roupeiro tinha sido virado do avesso. Todos os bolsos das calças tinham sido puxados para fora.

Perguntei-me se a polícia teria deixado as coisas naquele estado.

Sai e entrei no quarto seguinte. Esse era menor e não tinha cama. Em vez disso havia três mesas dobráveis que estavam tombadas. A janela do quarto estava estilhaçada e tapada com fita da polícia. Alguém tinha ficado zangado quanto tinha entrado aqui, e era capaz de apostar que não foi a polícia.

Evitando o melhor que conseguia os vidros espalhados pelo chão, olhei atentamente a armação da janela. Era uma daquelas mais recentes, em vinil, e a metade de baixo tinha sido feita para deslizar para cima. O que quer que tenha sido atirado através da janela também tinha arrancado da parede grande parte da armação.

Mas eu sabia que o assassino era forte. Afinal de contar, tinha arrancado a cabeça de um homem.

Desviei minha atenção da janela para explorar o resto do quarto mais atentamente. Apesar da confusão aparente, não havia muito que ver: três mesas dobráveis e onze cadeiras, lancei os olhos na janela e pensei que uma cadeira, atirada com muita força, era capaz de atravessar uma janela como aquela.

Uma máquina de metal que me pareceu estranhamente familiar tinha deixado um amassado na parede antes de cair no chão. Mexi com a pata e notei que era uma máquina de franquear{10} antiga. Alguém andava enviando correio em massa daqui.

Abaixei meu focinho e comecei a prestar atenção ao que vinha tentando me indicar. Em primeiro lugar, esse quarto era mais público do que a cozinha ou o primeiro quarto, mais como a porta traseira e a da entrada tinham sido.

A maioria das casas tem um cheiro básico, na maior parte dos casos uma combinação de produtos de limpeza preferidos (ou falta deles) e os odores corporais das famílias que nelas vivem. Esse quarto tinha um cheiro diferente do resto da casa. Havia, olhei novamente para a dispersão de cadeiras, talvez umas dez a doze pessoas que frequentavam esse quarto vezes o suficiente para nele deixarem mais do que um cheiro superficial.

Isso era bom, pensei. Considerando a forma como O’Donnel tinha me irritado, qualquer pessoa que o conhecesse era um provável assassino dele. No entanto, olhei novamente a janela, não tinha estado nenhum Fae ou criatura mágica que eu fosse capaz de distinguir. Nenhum humano teria destruído a janela daquela forma, ou arrancado a cabeça de O’Donnell.

Ainda assim memorizei os cheiros.

Tinha feito o que podia nesse local, o que significava que apenas faltava mais uma. Tinha deixado a sala de estar para o fim por duas razões. Em primeiro lugar, se alguém me visse, seria através da grande janela panorâmica na parte da casa que dava para a rua. Em segundo lugar, até o olfato de um humano teria notado que a sala de estar tinha sido o local onde O’Donnel fora assassinado e eu estava cada vez mais cansada de banhos de sangue.

Acho que foi o pavor do que encontrara na sala de estar que me fez olhar para trás em direção ao quarto e não tanto o instinto de que algo poderia ter me escapado.

Um coiote, pelo menos esse coiote, ficava sessenta centímetros abaixo da altura de um ombro. Julgo que essa seja a razão pela qual nunca me ocorreu olhar para cima na direção das imagens na parede. Pensava que eram apenas pôsteres, tinham a dimensão e a forma apropriadas, com acrílico barato combinando com as molduras de plástico preto. O quarto também era escuro, mais escuro do que a cozinha porque a lua estava do outro lado da casa. No entanto, a partir da porta consegui ver bem as imagens emolduradas.

Eram de fato pôsteres, pôsteres muito interessantes para um segurança que trabalhava para o GAF.

O primeiro exibia uma criança com um fofo vestido de domingo de Páscoa, sentada em um banco de mármore em um cenário semelhante a um jardim. O cabelo dela era claro e encaracolado. Olhava para a flor que tinha na mão. O rosto era redondo com um nariz pequeno e lábios cor de cereja. No topo do pôster lia-se em letras grandes: PROTEJA AS CRIANÇAS. No fundo, em letras pequenas, o pôster anunciava que o grupo Cidadãos Para Um Futuro Risonho ia se reunir no dia dezoito de novembro a dois anos atrás.

A semelhança da Sociedade John Lauren e o Cidadãos Para Um Futuro Risonho era que eram grupos anti-Fae. Era uma organização muito menor do que a SJL e dispunha de um rendimento diferente. Os membros da SJL tendiam a ser como a Sra. Ryan, relativamente ricos e instruídos. A SJL organizava convívios que no essencial se assemelhavam as antiquadas reuniões de promoção de um ressurgimento do sentimento religioso, onde os fieis eram entretidos e alvo de sermões,e depois se circulava um chapéu para recolher donativos.

Os outros pôsteres eram semelhantes ao primeiro, embora as datas fossem diferentes. Três deles diziam respeito a encontros feitos nas Tri-Cities, porém um deles era em Spokane. Eram lisos e feitos de forma profissional. Pôsteres previamente feitos, pensei, impressos no quartel-general sem datas ou locais, que podiam ser posteriormente adicionados com marcadores de tinta permanente preta.

Deviam andar se reunindo aqui e enviando a sua correspondência. Por esse motivo que tinha tido tanta gente na casa de O’Donnel.

Caminhei de forma lenta e prudente através da sala de estar. Acredito que por ter visto tanto sangue na noite anterior essa não foi a primeira coisa que me chamou a atenção, embora estivesse espalhado em abundância.

A primeira coisa que reparei foi que, debaixo do sangue e da morte, detectei o odor familiar que estava nessa sala. Havia algo que cheirava a casa do Fae da floresta. A segunda coisa em que reparei foi que o que quer que fosse, tinha uma força mágica impressionante.

Encontrá-lo era, todavia, mais problemático. Era como jogar "Quente e Frio", com o meu olfato e a força da magia que me indicariam se estava quente ou frio. Finalmente parei em frente a uma sólida bengala cinzenta enfiada no canto atrás da porta principal, ao lado de outra bengala, mais alta e intrincadamente trabalhada, que não cheirava a nada mais interessante do que poliuretano.

Quando olhei pela primeira vez para a bengala, me pareceu banal e simples, embora claramente antiga. Depois notei que a coroa metálica não era de aço inoxidável, e sim de prata, e de forma muito vaga consegui notar que algo estava gravado no metal. Mas estava escuro no local e mesmo a minha visão noturna tem limites.

Mas valia ter "Uma Pista" pintada em cor laranja na parte lateral. Pensei longa e duramente na possibilidade de levá-la, mas decidi que era improvável que fosse a alguma coisa, tendo sobrevivido ao assassinato de O’Donnel e à polícia.

Cheirava a madeira queimada e tabaco de cachimbo, O’Donnel tinha roubado da casa do Fae da floresta.

Deixei-a onde estava e comecei a analisar a sala de estar.

Prateleiras embutidas alinhavam a sala, preenchidas sobretudo por DVDs e VHS. Uma prateleira inteira era destinada ao tipo de revistas masculinas que as pessoas leem "por causa dos artigos" e discutem o tema da arte versus pornografia. As revistas na prateleira de baixo tinham abdicado de qualquer pretensão artística, a julgar pelas fotografias nas capas.

Outra estante para livros tinha portas que fechavam a metade de baixo. As prateleiras abertas no topo estavam basicamente vazias, exceto algumas porções de... pedras. Reconheci um conjunto razoável de ametistas e um cristal de quartzo particularmente belo. O’Donnel colecionava pedras.

Pousada sobre o leitor de DVD debaixo da Tv estava uma caixa aberta do filme Chitty Chitty Bang Bang. Como podia alguém como O’Donnel ser fã de Dick Van Dyke? Perguntei-me se teria tido a possibilidade de vê-lo até o fim antes de morrer.

Acho que foi por ter sentido aquele momento de pesar que escutei o ranger de uma tábua que cedia sob o peso do ocupante morto da casa.

Outras pessoas, pessoas que são completa e mundanamente humanas, também veem fantasmas. Talvez não com tanta frequência, ou em plena luz do dia, mas os veem de fato. Uma vez que não tinha havido fantasmas nos locais em que tinham ocorrido os crimes na reserva, tinha inconscientemente assumido que também não haveria aqui. Tinha me enganado.

O espirito de O’Donnel entrou na sala de estar pela entrada. Como acontece com alguns fantasmas, tornou-se mais distinto a medida que me concentrei nele. Consegui ver a costura das suas calças de ganga, mas o seu rosto era um borrão.

Gani, mas passou por mim sem me olhar.

Há poucos fantasmas que tem a capacidade de interagir com os vivos, tal como quando eram vivos. Uma vez fui pega falando com um fantasma sem saber que era até que minha mãe me perguntou com quem estava conversando.

Outros fantasmas repetem os hábitos de toda uma vida. Por vezes também reagem, embora normalmente não consiga falar com eles. Existe um lugar perto de onde fui criada onde o fantasma de um rancheiro sai de casa todas as manhãs para lançar feno às vacas que desapareceram a mais de meio século. Às vezes me via e acenava com o braço ou com a cabeça, como faria com qualquer pessoa que o abordasse quando estava vivo. Mas se tentasse conversar com ele, simplesmente continuaria a fazer as suas coisas como se eu não estivesse ali.

O terceiro tipo, corresponde aqueles que nascem em momentos de trauma. Revivem suas mortes até se dissiparem. Alguns se dissipam em poucos dias e outros ainda estão morrendo a cada dia mesmo séculos depois.

O’Donnel não me viu de frente para ele, portanto não pertencia ao primeiro, e mais útil tipo de fantasma.

Não pude fazer mais do que observar enquanto ele caminhava em direção as prateleiras que guardavam as pedras e em seguida tocava em algo na prateleira de cima. Produziu um estalo contra a prateleira de madeira falsa. Manteve-se ali por um momento, com os dedos afagando o que quer que estivesse tocando e com o corpo todo concentrado naquele pequeno item.

Por instantes, fiquei desiludida. Se estava simplesmente repetindo algo que fazia todos os dias, não descobriria nada com ele.

Depois hesitou, reagindo, pensei, a um som que não consegui ouvir e caminhou rapidamente até a porta principal. Ouvi a porta abrir com os movimentos dele, mas a porta, mais real do que a aparição permaneceu fechada.

Não se tratava de um fantasma comum. Instalei-me, preparada para observar O’Donnel morrer.

Ele conhecia a pessoa que estava na porta. Parecia impaciente com ele, mas após um momento de conversa, recuou um passo em sinal de convite. Não consegui ver a pessoa que entrou, ele não estava morto, ou ouvir nada a não ser o chiado os murmúrios do assoalho enquanto recordavam o que tinha se passado ali.

Acompanhando a atenção de O’Donnel, observei o percurso do assassino que caminhou rapidamente em direção a um lugar em frente a estante de livros. A linguagem corporal de O’Donnel tornou-se crescentemente hostil. Vi o seu peito mexer agitadamente e produziu um gesto incisivo com uma mão antes de se precipitar para enfrentar seu visitante.

Qualquer coisa agarrou-o pelo pescoço e pelo ombro. Quase consegui distinguir a forma da mão do assassino contra a palidez da forma de O’Donnel. Pareceu-me humano. Mas antes de conseguir olhar atentamente, quem quer que fosse, provou que não era humano.

Era tão rápido. Em um momento, O’Donnel estava inteiro e, no seguinte, o seu corpo estava no chão, e sua cabeça estava passeando pelo chão em uma rotação irregular que terminou a menor de um metro de mim. Pela primeira vez, vi o rosto de O’Donnel claramente. O seu olhar se tornou vago, mas a boca mexia, formando uma palavra que já não tinha folego para dizer. A raiva, não o medo, dominavam a sua expressão, como se não tivesse tido tempo para notar o que tinha acontecido.

Não sou uma leitora de lábios eximia, mas consegui notar o que tentara dizer.

Meu.

Permaneci onde estava e fiquei tremendo durante minutos após a dissipação do espectro de O’Donnel. Não era a primeira morte que testemunhava, o assassinato é uma daquelas coisas que tendem a produzir fantasmas. Tinha inclusive, chegado a cortar a cabeça de alguém, sendo essa uma das poucas maneiras que garantem que um vampiro permanecerá morto. Mas não tinha sido tão violento quanto isso, pode ser que não seja forte ao ponto de arrancar a cabeça de uma pessoa.

Por fim, lembrei-me de que tinha coisas para fazer antes de que alguém notasse que havia um coiote a solta em um local de crime. Aproximei meu focinho do tapete para ver o que ele poderia indicar.

Distinguir quaisquer cheiros aqui era difícil com o sangue de O’Donnel se infiltrando nas almofadas do sofá, nas paredes e no tapete. Detectei o toque do odor do Tio Mike em um canto do local, mas se dissipou rapidamente, e embora tivesse farejado o canto durante algum tempo, não voltei a senti-lo. O Homem da Água de Colônia tinha estado na sala de estar, junto com O’Donnel. Zee e Tony. Não tinha notado que Tony fora um dos agentes que fez a apreensão. Alguém vomitara na entrada, mas o chão tinha sido limpo e apenas ficara um pequeno vestígio.

Tirando isso, era como tentar seguir um rastro no Centro Comercial de Columbia. Simplesmente tinham estado pessoas demais aqui. Se estivesse tentando detectar um odor, seria capaz, mas tentar distinguir todos os cheiros... não ia funcionar.

Desistindo, voltei ao canto onde tinha sentido o cheiro do Tio Mike para ver se conseguia detectá-lo novamente, ou descobrir como tinha conseguido deixar apenas o mais vago dos indícios.

Quando finalmente levantei a cabeça, vi um corvo. Não sei a quanto tempo estava ali.


5

Observava-me da passagem do corredor para a sala, como se simplesmente tivesse encontrado a porta aberta e voado para o interior. Porém, os corvos não são aves noturnas, apesar da sua cor e reputação. Se não houvesse mais nada, isso por si só teria me indicado que havia algo de estranho naquela ave.

Mas isso não era a única coisa. Ou sequer a primeira.

Assim que o brilho da lua se refletiu nas suas penas, senti o cheiro, como se até aquele momento não estivesse lá.

Os corvos cheiram a carne putrefata que comem, misturado com o intenso odor picante de bolor que partilham com os outros corvos. Esse cheirava a chuva, floresta e ao solo do jardim negro na primavera. Depois tinha o seu tamanho.

Tri-Cities tem alguns corvos incrivelmente grandes, mas nada que se comparasse com essa ave. Era mais alta do que eu na minha forma de coiote, teria, sem dificuldade, o tamanho de uma águia-real.

E todos os pelos do meu corpo se eriçaram enquanto uma onda de magia varria a sala.

Dei um pulo repentino em frente, o que fez com que movesse a cabeça em direção a luz que se infiltrava pelas janelas. Tinha uma mancha branca na cabeça, como se um pedaço de neve tivesse caído ali. Mas o que sobretudo me chamou a atenção, foram os olhos, vermelho-sangue, como os de um coelho branco, que brilharam sinistramente quando me olhou diretamente... e através de mim, como se fosse cego.

Pela primeira vez na minha vida tive medo de abaixar os olhos. Os lobisomens dão uma grande importância ao contato visual, e eu tinha feito uso disso despreocupadamente toda a minha vida. Não tenho qualquer problema em abaixar os olhos, reconhecendo a superioridade de alguém e em seguida fazer o que eu quiser. Entre os lobisomens, assim que a superioridade fosse reconhecida, o lobo dominante podia, por uma questão de hábito, limitar-se a me afastar da sua frente... enquanto eu o ignorava ou pensava em uma maneira de me vingar dele da maneira que entendesse.

Mas o que tinha diante de mim não era um lobisomem, e estava consumida pela convicção de que se mexesse o mínimo que fosse, ele me destruiria, embora não estivesse dando qualquer indicio de agressividade.

Dou valor aos meus instintos, portanto, permaneci imóvel.

Abriu a boca e soltou choro tagarelado, semelhante a ossos velhos violentamente agitados em uma caixa de madeira. Depois deixou de prestar atenção em mim. Seguiu para o canto e atirou a bengala no chão. O corvo pegou no velho objeto com a boca e, lançando os olhos por cima do ombro, levantou voo atravessando a parede.

Quinze minutos depois, estava de volta em casa, na forma humana e dirigindo o meu carro.

Não sendo eu propriamente humana e tendo sido criada por lobisomens, pensava que tinha visto tudo o que havia pra ver: bruxas, vampiros, fantasmas e outras coisas que supostamente não existem. Mas aquela ave tinha sido real, tão material como eu, tinha visto suas costelas subir e descer enquanto respirava e eu mesma tinha tocado naquela bengala.

Nunca tinha visto um objeto sólido atravessar outro, a não ser através de algumas animações digitais impressionantes ou do David Copperfield.

A magia, apesar das séries A Feiticeira e Jeannie é um gênio, simplesmente não funciona assim. Se a ave tivesse desaparecido, tornado imaterial ou algo parecido antes de atingir a parede, talvez tivesse aceitado isso como magia.

Talvez se fosse o caso de eu ser como o resto do mundo, aceitando os Fae com base no seu aspecto exterior. Agindo como se eles fossem algo familiar, aceitando que viviam constrangidos por regras que eu conseguisse compreender e em relação as quais me sentisse confortável.

Se há alguém que devia ver além disso, esse alguém era eu. Afinal de contas, sabia bem que aquilo que o público sabia sobre os lobisomens era apenas a ponta polida de um sórdido iceberg. Sabia que os Fae eram piores do que os lobisomens no que se tratava de discrição. Embora Zee fosse meu amigo a uma década, sabia muito pouco sobre o lado Fae da sua vida. Sabia que era adepto dos Steelers, que a sua mulher humana tinha morrido de câncer pouco tempo antes de o conhecer, e que gostava de molho tártaro nas batatas fritas, mas não sabia que aparência tinha sob o seu glamour.

Havia luzes ligadas em minha casa quando meti o Rabbit na rampa de entrada, estacionando ao lado da Mercedes de Samuel e de um Ford Explorer desconhecido. Tinha esperança de que Samuel estivesse em casa e acordado para poder usá-lo como ouvinte, mas o SUV saldou essa ideia.

Franzi o cenho. Eram duas da manhã, uma hora imprópria para visitas. Para a maior parte das visitas.

Inalei profundamente pelo nariz, mas não consegui detectar o cheiro de vampiro, ou de qualquer outra coisa. Até o ar da noite tinha um odor mais brando do que o habitual. Provavelmente o que pairava era apenas um vestígio da transformação de coiote em humana. O meu olfato humano era mais aperfeiçoado do que o da maioria das pessoas, mas substancialmente menos apurado do que o de coiote, portanto, transformar-me em humana era um pouco como tirar um aparelho auditivo. Ainda assim...

Os vampiros podiam esconder o seu cheiro de mim se escolhessem fazê-lo.

Estremeci na atmosfera quente da noite. Penso que teria permanecido ali fora toda a noite caso não tivesse ouvido o murmúrio de um violão. Não conseguia imaginar Samuel tocando para Marsilia, a senhora do ninho de vampiros, portanto subi os degraus e entrei.

Tio Mike estava sentado na cadeira excessivamente acolchoada que Samuel colocara em substituição do meu velho achado no mercado de pulgas. Samuel estava meio esticado no sofá como um puma. Tocava pedaços de música no violão de forma indolente. Podia parecer relaxado, mas eu conhecia-o muito bem. A gata que ronronava no encosto do sofá, mesmo atrás da cabeça de Samuel, era a única relaxada na sala.

- Há água aquecida para fazer chocolate. - Samuel disse sem desviar os olhos do Tio Mike. - Porque não arranja um para você e depois vem nos falar de Zee, que te levou para seguir o rastro do assassino deles para que pudessem matá-lo? Depois me conta o que andou fazendo essa noite para ficar cheirando a sangue e magia.

Sim, Samuel estava zangado com o Tio Mike.

Vasculhei os armários até encontrar a caixa de chocolate de emergência. Não o chocolate ao leite usado com mashmallows, mas o forte, chocolate preto comum com um pouco de pimenta-jalapenho para dar sabor. Na verdade não estava chateada ao ponto de precisar dele, mas me mantinha ocupada enquanto pensava sobre como poderia manter as coisas pacificas. O verdadeiro chocolate precisa de leite, por isso coloquei algum em um tempero e comecei a aquecê-lo.

Essa manhã tinha deixado Samuel e o resto dos lobisomens sabendo que Zee estava na prisão e que precisava de um advogado. Obviamente, alguém tinha colocado Samuel a par da situação. Quase certeza de que não fora Tio Mike.

Provavelmente não teria sido Warren, que estaria a par de tudo o que tivesse passado na reunião com a advogada, tinha dito a Kyle que não tinha problema em contar o que eu dissera a advogada. Warren sabia guardar segredos.

Ah. Warren não iria guardar segredos do Alfa do seu bando, Adam. Adam não veria motivo para não contar a Samuel toda a história se ele perguntasse.

Esse é o problema dos segredos. Basta contar um a um e de repente todo mundo sabe. Ainda assim, se eu desaparecesse, gostaria de saber que os lobisomens iriam a minha procura. Felizmente, os Fae (Tio Mike em pessoa) percebiam isso, e não era provável que eu simplesmente desaparecesse: se os Senhores Cinzentos arquitetassem um suicídio para Zee, um dos da sua espécie que tinha alguma importância, certamente não hesitariam em criar um plano para que algo acontecesse a mim também. O bando tornaria isso um pouco mais difícil.

Uma porção de líquido não demora muito para aquecer. Virei em uma caneca, dei o primeiro gole, amargo e picante, em seguida, voltei para junto dos homens. As minhas ponderações na cozinha me conduziram ao sofá, onde me sentei a uma almofada de distancia de Samuel para que ele não presumisse que estaria tomando partido no antagonismo que estava se agitando em minha sala de estar como a superfície escura do Lago Ness instantes antes da erupção do monstro. Não queria nenhuma erupção na minha sala de estar, obrigada. As erupções significavam despesas de reparação e sangue. O fato de ter crescido com lobisomens me deixava hiper-alerta em relação às lutas de poder e coisas não ditas.

Se o lobisomem fosse outro, uma manifestação de apoio poderia abaixar a probabilidade de violência, porque se sentiria mais confiante. Samuel não precisava de mais confiança. Precisava, sim, de saber que eu sentia que o Tio Mike tinha feito a coisa certa ao me chamar, independentemente da opinião de Samuel em relação ao assunto.

- Arranjei uma boa advogada para Zee. - disse ao Tio Mike.

- Ela é membro da Sociedade John Lauren. - Tio Mike parecia muito mais seguro de si pessoalmente do que ao telefone. Isso significava que o seu modo "alegre dono de taberna" estava em atividade. Não consegui perceber se estava satisfeito ou não com a advogada que eu tinha escolhido.

- Kyle... - me calei e recomecei a frase. - Tenho um amigo que está entre os melhores advogados de divórcios do estado. Quando liguei, sugeriu essa tal Jean Ryan, de Spokane. Disse que ela era uma barracuda na sala de audiências, e disse que o fato de ela pertencer a um grupo anti-Fae irá inclusive ajudar. As pessoas vão pensar que, para aceitar esse caso, ela deve estar absolutamente convencida da inocência do Zee.

- Isso é verdade? Ela acredita que ele é inocente?

Encolhi os ombros.

- Não sei, mas tanto Kyle como ela dizem que isso não é importante. Fiz o que podia para convencê-la. - dei um gole no chocolate e contei-lhes tudo o que a Sra. Ryan tinha me dito, incluindo o aviso para não meter o bedelho nos assuntos da polícia.

Os lábios de Samuel se torceram.

- Então quanto tempo que você esperou até ir na casa de O’Donnel depois de ela te dizer para não ir?

Dirigi-lhe um olhar indignado.

- Não ia fazer isso antes do anoitecer. Haveria muitas pessoas ligando para o canil se vissem um coiote naquela área da cidade, com ou sem coleira. Não podia fazer uma grande investigação se estivesse no canil, e já me levaram para lá uma vez no verão.

Olhei para Tio Mike e me perguntei como poderia fazer com que ele me dissesse todas as coisas que precisava saber.

- Sabia que O’Donnel estava envolvido no Cidadãos Para Um Futuro Feliz?

Endireitou as costas.

- Achava que ele era mais inteligente do que isso. Se o GAF soubesse, ele teria perdido o emprego.

Reparei que não disse não sabia disso.

- Não me pareceu que estivesse muito preocupado com a possibilidade de alguém descobrir. - disse-lhe. - Havia vários pôsteres da Futuro Feliz espalhados pelas paredes de um dos quartos.

- O GAF não tem propriamente o hábito de fazer buscas nas casas dos seus empregados. O orçamento do gabinete acabou de sofrer um novo corte e o dinheiro foi canalizado para aquela confusão no Oriente Médio. - não parecia muito preocupado com os problemas do GAF.

Esfreguei meu rosto cansado.

- A busca não ajudou tanto como eu esperava. Não detectei o cheiro de nenhuma das pessoas que tinham estado nos locais dos crimes na reserva, com exceção do próprio O’Donnell. Não me parece que estivesse alguém com ele quando matou os Fae. - exceto talvez o homem da água-de-colônia, pensei. Não tinha como saber exatamente o seu cheiro, embora fizesse a menor ideia do motivo pelo qual teria colocado água-de-colônia para matar O’Donnell e não para matar os Fae. Certamente não estaria a espera que um lobisomem ou alguém como eu estivesse tentando seguir a pista do assassino de O’Donnell.

- Portanto não aconteceu nada na sua visita. - quem falava agora era Samuel, com a voz um pouco mais intensa do que as notas suaves, lembrando uma harpa, que tirava da guitarra. Se continuasse a tocar daquela maneira, dormiria antes de acabar. - Se assim é, porque cheira a sangue e magia.

- Não disse que não aconteceu nada. O sangue tem a ver com o fato de a sala de estar de O’Donnell estar coberta dele.

Tio Mike fez uma ligeira careta, na qual não acreditei. A minha experiência com imortais podia ser com lobisomens, mas os Fae também não são um grupo simpático e dócil. Pode ser verdade que tenha ficado abalado quando Zee foi preso, mas o sangue nunca incomodou verdadeiramente os antigos.

- A magia... - encolhi os ombros. - Pode ter sido uma série de coisas. Eu vi o homicídio acontecer.

- Magia? - Tio Mike franziu a sobrancelha. - Não sabia que você era uma visionária. Pensava que a magia não funcionasse com você por perto.

- Isso seria maravilhoso. - disse. - Mas não, na maioria dos casos a magia funciona quando estou por perto. Apenas tenho uma espécie de imunidade parcial a ela. Normalmente o que acontece é que quanto menos nociva for a magia, maior é a probabilidade de não funcionar. Aquela que é má, normalmente funciona com perfeição.

- Ela vê fantasmas. - Samuel interveio, impaciente com o meu desvaneio.

- I see dead people. - disse de forma inexpressiva. Estranhamente, foi o Tio Mike quem riu. Não julgava que ele fosse o tipo de pessoa de ir ao cinema.

- Então esses fantasmas disseram alguma coisa?

Balancei a cabeça.

- Não. Apenas vi a reprodução do homicídio com o O’Donnell como único ator. No entanto, acho que o assassino estava a procura de alguma coisa. O O’Donnell roubou alguma coisa dos Fae?

O rosto do Tio Mike ficou inexpressivo e notei duas coisas. A resposta a minha pergunta era "sim" e Tio Mike não tinha qualquer intenção de me dizer o que O’Donnell tinha roubado.

- Só por curiosidade. - disse, em vez de esperar em vão pela resposta. - Quantos Fae que conseguem assumir a forma de um corvo?

- Aqui? - Tio Mike encolheu os ombros. - Cinco ou seis.

- Havia um corvo na casa de O’Donnell e transbordava magia Fae.

Tio Mike soltou uma risada abrupta e seca.

- Se está perguntando se enviei alguém a casa de O’Donnel, a resposta é não. Se está perguntando a si mesma se um deles matou O’Donnell, a resposta continua a ser não. Nenhum dos que assume forma de corvo tem força física para arrancar a cabeça de uma pessoa.

- E o Zee, tem? - perguntei. Por vezes, quando se coloca questões inesperadas, se obtém respostas.

As suas sobrancelhas se ergueram e o seu sotaque se tornou mais cerrado.

- Claro, mas porque você está perguntando isso? Não já disse que ele não tem nada a ver com isso?

Balancei a cabeça.

- Eu sei que Zee não o matou. A polícia tem uma especialista que me disse que ele conseguiria fazê-lo. Tenho razões para duvidar da competência dela, e é possível que seja útil ao Zee eu saber exatamente quão enganada ela está.

Tio Mike respirou fundo e inclinou a cabeça para o lado.

- O Ferreiro Negro de Drontheim talvez conseguisse fazer o que eu vi, mas a muito tempo. A maior parte de nós perdeu uma parte do que em tempo foi nosso ao longo dos anos do ferro frio e do Cristianismo. Todavia, Zee perdeu menos do que a maioria. Talvez conseguisse. Talvez não.

O Ferreiro Negro de Dronthein. Já tinha dito algo semelhante. Tentar descobrir quem Zee fora em tempos era um dos meus passatempos favoritos, mas a situação atual fez com que a pequena informação preciosa se tornasse cinzas. Se Zee perdesse a vida por causa disso, o que ele fora em tempos era irrelevante.

- Quantos Fae na reserva... - pensei no que disse e reformulei ligeiramente a frase. - ...ou da área de Tri-Cities teriam conseguido fazer aquilo?

- Alguns. - respondeu Tio Mike sem esperar para refletir. - Tenho dado voltas o dia todo. Pode ter sido um dos ogros, embora se eu soubesse porque iriam querer fazê-lo seria um monge católico. E, uma vez chegados aquele ponto, não teriam parado antes de dar uma mordida ou duas. Nenhum dos ogros morria de simpatia por alguma das vítimas da reserva, ou por quem quer que fosse, talvez com exceção de Zee. Há mais alguns que talvez fossem capazes de fazê-lo a um tempo, mas a maior parte não se saiu tão bem como o Zee no mundo moderno.

Lembrei do poder do homem do mar.

- Então e o homem que eu conheci no... - lancei os olhos a Samuel e mordia a língua. Aquele oceano que conheci era um segredo, e não podia ter qualquer impacto no destino de Zee. Não ia falar dele na frente de Samuel, mas a minha frase tinha ficado suspensa.

- Que homem? - a pergunta de Samuel foi branda, embora as palavras do Tio Mike, aproximando-se mesmo por cima de Samuel, não fossem.

Conseguia sentir o cheiro do medo de Tio Mike, violento e súbito, a semelhança das suas palavras. Não era uma emoção associada a ele.

Depois de um olhar rápido pela sala, continuou em um sussurro urgente.

- Não sei como conseguiu, mas não lhe servirá de nada falar do encontro. Aquele que conheceu seria capaz de fazê-lo, mas ele não se moveu durante os últimos cem anos. - respirou fundo e se forçou a relaxar. - Acredite no que digo, não foram os Senhores Cinzentos que mataram O’Donnel, Mercedes. O assassinato foi muito desastrado para ser obra deles. Fale-me mais desse corvo Fae que encontrou.

Fitei-o por momentos. O Fae do mar era um dos Senhores Cinzentos?

- O corvo? - instigou suavemente.

Então eu disse a ele, voltando um pouco para falar do cajado e do corvo atravessando a parede com ele.

- Como que não reparei no cajado? - perguntou Tio Mike a si mesmo, parecendo profundamente abalado.

- Estava encostado a um canto. - disse. - Veio da casa de uma das vítimas, não é? Do que fumava cachimbo e cuja janela traseira dava para a floresta.

Tio Mike pareceu voltar a si e cravou os olhos em mim.

- Você conhece segredos demais a nosso respeito, Mercedes.

Samuel pousou o violão e se colocou entre nós antes de eu ter tempo de registrar a ameaça na voz de Tio Mike.

- Cuidado. - disse em tom de aviso e com um carregado sotaque galês. - Cuidado, Homem Verde. Ela pôs o pescoço em risco para ajudá-lo. Que caia vergonha em si e no seu lar se algum mal lhe acontecer por isso.

- Dois. - disse Tio Mike. - Dois dos Senhores Cinzentos viram-na envolvida nos nossos assuntos, Mercy. Um poderia esquecer, mas dois nunca. - acenou uma mão impaciente a Samuel. - Oh, acalme-se lobo. Eu não vou fazer mal a sua gatinha. Apenas disse a verdade. Há coisas que não são, nem de longe nem de perto, tão benignas que não vão ficar contentes com o fato de ela saber o que sabe. E já são dois.

- Dois? - perguntei em uma voz mais débil do que desejava.

- Aquilo que você encontrou não era um corvo. - explicou em tom sombrio. - Era uma Gralha-Negra. - olhou para mim. - Pergunto-me porque ela não a matou.

- Talvez ela pensasse que eu era um coiote. - repliquei em uma voz débil.

Tio Mike balançou a cabeça.

- Pode ser cega, mas ainda assim apreende as coisas melhor do que eu.

Fez-se um silencio. Não sabia em que os outros estavam pensando, mas estava contemplando quantas vezes tinha estado a beira de um desastre recentemente. Se os vampiros não se apressassem, os Fae ou outro monstro qualquer iam me matar antes de ela ter oportunidade para isso. O que tinha acontecido com aqueles anos em que me isolava cuidadosamente e me mantinha longe de problemas?

- Tem certeza que nenhum dos Senhores Cinzentos matou O’Donnell? - perguntei.

- Sim. - respondeu com firmeza, fazendo uma pausa em seguida. - Espero que não. Se for, a detenção de Zee foi planejada e ele está condenado, e provavelmente eu também. - passou a mão pelo queixo e algo no seu gesto me fez pensar se algum dia teria usado barba. - Não. Não foram eles. Não são imunes a cometer um crime que deixe marcas, mas não teriam deixado o cajado para a polícia encontrar. A Gralha-Negra apareceu para manter o cajado longe das mãos humanas, embora me surpreenda que não o tenha reavido mais cedo. - dirigiu-me um olhar especulativo. - Zee e eu não estivemos muito tempo naquela sala de estar, mas jamais teríamos deixado de reparar no cajado. Pergunto-me...

- Que cajado é aquele? - inquiri. - Consegui notar que era mágico, mas nada de mais.

- Não é do seu interesse, creio. - disse Tio Mike, ficando de pé. - Não é coisa em que deva se meter estando a Gralha-Negra envolvida. Há dinheiro dentro da pasta... - pela primeira vez reparei em uma mala de couro castanho enfiada contra o braço da sua cadeira. - Se não for suficiente para cobrir as despesas do Zee, me avise.

Virando-se para Samuel, tocou as pontas dos dedos em um chapéu imaginário, e em seguida pegou minha mão, inclinou-se e beijou-a.

- Mercy, estou lhe fazendo um favor ao dizer para parar. Agradecemos a ajuda que nos prestou até agora, mas a sua utilidade acaba aqui. Estão para acontecer coisas que não tenho liberdade de lhe contar. Se continuar, não vai encontrar nada. E se aqueles Seres Inomináveis descobrirem aquilo que você sabe, as coisas ficarão feias para o seu lado. E há muitos deles por perto. - acenou bruscamente com a cabeça e depois fez o mesmo com Samuel. - Desejo a ambos um bom dia.

E de repente, estava do lado de fora da porta.

- Mantenha de olho nele, Mercy. - Samuel disse, ainda de costas para mim enquanto observávamos os faróis do carro de Tio Mike ligarem a medida que saia da rampa de entrada em marcha ré. - Ele não é Zee. Deve a sua lealdade a ele próprio e a mais ninguém.

Esfreguei os ombros e também me levantei. Nunca discuta com um lobisomem estando ele de pé e você sentado, você se coloca em desvantagem e o fará pensar que pode te dar ordens.

- Não confio nele nem um milímetro. - concordei. O Tio Mike não me faria mal, mas... - Sabe, uma das coisas que aprendi sobre vocês, os lobos, enquanto crescia é que as vezes a parte mais interessante da conversa com alguém que não consegue mentir é a das perguntas as quais essa pessoa não responde.

Samuel assentiu com a cabeça.

- Também reparei nisso. O cajado, seja lá o que for, foi roubado de uma das vítimas de homicídio, e ele não quis falar sobre isso.

Bocejei duas vezes e ouvi o meu maxilar estalar da segunda vez.

- Essa noite vou dormir. - hesitei. - O que você sabe sobre o Ferreiro Negro de Drontheim?

Sorriu curtamente.

- Não tanto como você, calculo, considerando que trabalhou com ele durante dez anos.

- Samuel Cornick. - disparei.

Riu.

- Conhece alguma história sobre esse Ferreiro Negro de Drontheim? - estava cansada e cheia de preocupação que o peso me deixava cambaleando, Zee, os Senhores Cinzentos, Adam e Samuel. E a espera até que Marsilia descobrisse que Andre não tinha sido morto pelas vítimas indefesas. No entanto, tinha andado a procura de histórias sobre Zee durante anos. Os Fae que o tratavam com um profundo respeito eram muito para que não descobrisse histórias. Simplesmente não conseguia encontra-las.

- O Ferreiro Negro, Mercy, o Ferreiro Negro.

Comecei a bater o pé e Samuel cedeu.

- Desde que vi a faca dele que me pergunto se terá sido o Ferreiro Negro. Era de se esperar que tivesse forjado pelo menos uma lâmina que atravessasse tudo.

- Drontheim... - murmurei. - Trondheim? A antiga capital da Noruega? O Zee é alemão.

Samuel encolheu os ombros.

- Ou então finge que é alemão, ou a velha história pode não ser verdade. Nas histórias que ouvi, o Ferreiro Negro era um gênio e um filho da mãe malicioso, um filho do Rei da Noruega. A espada que ele fez tinha o terrível habito de se virar para o homem que a empunhava.

Pensei sobre o assunto por um momento.

- Acho que acreditaria mais rápido se ele fosse um vilão do que uma história sobre ele ser um herói bonzinho.

- As pessoas mudam com o passar dos anos. - Samuel disse.

Olhei para cima bruscamente e os meus olhos se encontraram com os dele. Já não estava falando de Zee.

Estávamos separados por poucos metros, mas o fosso histórico era muito maior: tinha-o amado tanto. Tinha dezesseis anos e ele era séculos mais velho. Tinha visto nele um protetor gentil, um cavaleiro que me salvaria e construiria o seu mundo a minha volta. Uma pessoa para quem eu não seria uma obrigação, um fardo, ou um incômodo. Ele vira em mim uma mãe que podia dar a luz filhos vivos.

Os lobisomens, salvo uma exceção, são feitos, não nascidos. É preciso mais do que uma ou duas mordidas ou, como tinha lido uma vez em um livro, o arranhão de uma garra. Um humano que se queira transformar tem que ser tão ferozmente atacado que ou morre ou se torna um lobisomem e é salvo pela rápida cura que é necessária para sobreviver como monstro entre outras bestas idênticas.

Por uma razão qualquer que desconheço, as mulheres não sobrevivem tão bem como os homens à transformação. E as mulheres que sobrevivem não podem gerar filhos. Oh, são férteis, mas a transformação mensal na Lua Cheia é muito violenta e abortam quando passam de humanas para lobas.

Os lobisomens podem acasalar com humanos, e fazem isso com frequência. Mas a probabilidade de aborto é terrivelmente elevada e a taxa de mortalidade infantil é mais elevada do que o normal. Adam teve uma filha depois da sua transformação, mas a sua ex-mulher tivera três abortos no espaço de tempo em que convivi com ela. As únicas crianças que sobreviveram são completamente humanas.

Mas Samuel tinha um irmão que nascera lobisomem. O único caso de que as pessoas que eu conhecia tinham ouvido falar. A mãe dele provinha de uma família que era dotada de magia do seu território e não da Europa, como acontece com a maior parte dos nossos humanos que usam magia. Ela conseguiu travar a transformação todos os meses até o nascimento de Charles. Enfraquecida pelo esforço que se submetera, morreu durante o nascimento do filho, mas as experiências dela tinham deixado Samuel a pensar.

Quando eu, que não sou humana nem lupina, fui levada para junto do seu pai com vista de que seu bando me criasse, Samuel vislumbrou a sua oportunidade. Eu não tenho que me transformar, e mesmo quando o faço, a transformação não é violenta. Embora os verdadeiros lobos que habitam a natureza matem quaisquer coiotes que encontrem em seu território, podem copular com probabilidades de procriar.

Samuel esperou até que eu tivesse dezesseis anos para me fazer apaixonar por ele.

- Todos nós mudamos. - disse. - Vou para a cama.

 

 

Do mesmo modo que sempre soube que existem monstros no mundo, monstros e coisas ainda mais maléficas, sempre soube que é Deus quem detém o mal. Pelo que faço questão de ir a igreja e rezar regularmente. Depois de matar Andre e a sua criação possuída pelo demônio, a igreja era o único lugar onde me sentia verdadeiramente segura.

- Está com ar cansado. - as mãos do Pastor Julio tinham nós proeminentes e estavam maltratadas. Tal como eu, trabalhara com as mãos para ganhar a vida. Tinha sido lenhador até se mudar e se tornar o nosso pastor.

- Um pouco. - concordei.

- Soube o que aconteceu ao seu amigo. - disse. - Acha que ele apreciaria uma visita?

Zee iria gostar do meu pastor, todo mundo gostava do pastor Julio. Talvez conseguisse inclusive tornar a circunstância de estar na prisão mais suportável, mas chegar perto de Zee era muito perigoso.

Balancei a cabeça.

- Ele é um Fae. - repliquei apologeticamente. - Eles não consideram o Cristianismo grande coisa. Obrigada pela sua oferta.

- Se houver alguma coisa que eu possa fazer, avise-me. - disse com firmeza. Beijou-me na testa e se despediu com a sua benção.

Com Zee na cabeça, mal cheguei em casa e liguei para Tony porque não fazia ideia de como visitar Zee.

Atendeu, soando alegre e amigável em vez de friamente profissional, portanto devia estar em casa.

- Ei, Mercedes. - disse. - Não foi simpático da sua parte incitar a Sra. Ryan contra nós. Inteligente, mas pouco simpático.

- Ei, Tony. - repliquei. - Até pediria desculpas, mas o Zee é importante para mim, e ele é inocente, portanto arranjei o melhor que consegui encontrar. No entanto, se isso te fizer sentir melhor, também tenho de lidar com ela.

Riu.

- Tudo bem. O que conta?

- Isso é estupido. - disse. - Mas nunca tive que ir visitar ninguém na prisão. O que eu faço para visitar Zee? Há horários de visita? Espero até segunda? E onde que ele está preso?

Fez-se um silêncio.

- Acho que os horários de visita são só nos fins de semana e à noite. Mas antes de ir é melhor falar com a sua advogada. - aconselhou cautelosamente. Havia algo de errado no fato de eu visitar Zee? - Ligue para sua advogada. - repetiu quando lhe perguntei.

Assim fiz. O cartão que tinha me dado tinha um numero de celular assim como o do escritório.

- O Sr. Adelbertsmiter não fala com ninguém. - disse Jean Ryan em uma voz glacial, como se eu fosse a culpada disso. - Vai ser difícil preparar uma defesa eficaz a menos que fale comigo.

Franzi a sobrancelha. Zee podia ser birrento, mas não era estupido. Se não estava falando era porque tinha um motivo.

- Preciso ir visitá-lo. - disse. - Talvez consiga persuadí-lo a falar contigo.

- Não me parece que vá persuadí-lo a nada. - havia um ligeiro toque de presunção na sua voz. - Ao vez que não me respondia, contei-lhe o que sabia sobre a morte de O’Donnell: tudo o que você tinha me dito. Essa foi a única vez em que falou. Disse que você não tinha nada que contar os segredos dele à estranhos. - hesitou. - O que vou lhe dizer agora trata-se de uma ameaça, e em circunstâncias normais não lhe transmitiria, uma vez que não serve de nada ao caso do meu cliente. Mas... entendo que deve ser avisada. Ele disse que era bom que você torcesse para que ele não fosse liberado, e que vai exigir o pagamento dos créditos imediatamente. Sabe a que se refere?

Acenei tropegamente com a cabeça antes de notar que ela não podia ver.

- A oficina que tenho, comprei dele. Ainda lhe devo dinheiro dessa compra. - vinha lhe pagando mensalmente, tal como fazia ao banco. Não foi o dinheiro, que não tinha, que me deixou com a garganta seca e a sensação de pressão crescente atrás dos olhos.

Ele achava que eu tinha o traído.

Zee era um Fae, não conseguia mentir.

- Bem. - disse ela. - Ele tornou bem claro que não tinha a menor vontade de falar com você antes de voltar a ficar mudo. Ainda pretende que eu continue a prestar os meus serviços? - soou quase esperançosa.

- Sim. - respondi. Não era o meu dinheiro que estava pagando os serviços dela. Mesmo considerando o que cobrava, havia na mala do Tio Mike dinheiro mais do que suficiente para cobrir as despesas de Zee.

- Vou ser honesta, Sra. Thompson, se ele não falar comigo, não vou lhe servir de nada.

- Faça o que puder. - disse languidamente. - Eu mesma estou cuidando de algumas coisas.

Segredos. Tremi um pouco, apesar de chegar em casa da igreja ter aumentado a temperatura dos quinze graus que Samuel programara essa manhã antes de sair para ir ao ultimo dia do Tumbleweed. Os lobisomens gostam das coisas um pouco mais frias do que eu. Estavam uns confortáveis vinte e sete graus dentro de casa, não havia porque sentir frio.

Perguntei-me a que parte do que tinha contado a advogada que ele se opunha, os homicídios na reserva ou ter contado a Sra. Ryan que tinham estado outros Fae com ele na hora em que encontrou o corpo.

Que diabos, não contei a Sra. Ryan nada que alguém não tivesse contado a polícia. Agora que penso nisso, eu tinha contado a polícia quase tudo o que tinha contado a Sra. Ryan.

No entanto, devia ter perguntado a alguém antes de ter falado com a polícia ou com a advogada. Eu sabia disso. Era a primeira regra do bando, manter a boca fechada quando se está rodeado de estranhos.

Podia ter perguntado ao Tio Mike até onde podiam ir as minhas declarações à polícia, e à advogada, em vez de depender do meu próprio juízo. Não o tinha feito... porque sabia que para a polícia procurar um assassino que não fosse Zee, ela teria que saber mais do que aquilo que o Tio Mike ou qualquer outro Fae teria contado.

É mais fácil pedir perdão do que permissão, a menos que esteja lidando com Fae, que não são muito dados ao perdão. Veem isso como uma virtude cristã, e não gostam particularmente de coisas cristãs.

Não menti a mim mesma ao dizer que Zee tinha que ultrapassar a situação. Podia não conhecer grande coisa da sua história, mas o conhecia. Convocou a sua raiva e tornou-a tão permanente como a tatuagem que eu tenho barriga. Jamais me perdoaria por ter traído a sua confiança.

Precisava de arranjar alguma coisa para fazer, algo que mantivesse as minhas mãos e mente ocupadas, para me distrair do sentimento doentio de que tinha feito algo terrível. Infelizmente trabalhara até tarde e terminara tudo que tinha a fazer na oficina na sexta-feira, pensando que iria passar a maior parte do dia de sábado no festival de música. Nem sequer tinha nenhum projeto para um carro no qual pudesse trabalhar. O projeto atual, um velho Karmann Ghia, estava fora da oficina por causa da colocação de uns estofados novos.

Depois de andar inquietamente pela casa e fazer uma fornada de biscoitos de manteiga de amendoim, fui ao pequeno terceiro quarto que servia como gabinete de trabalho, liguei o computador e a internet antes de começar a implicar por causa dos biscoitos.

Respondi a mensagens de e-mail da minha irmã e da minha mãe e depois naveguei um pouco. O biscoito que levei comigo para o quarto permanecia imperturbável no seu prato. Só porque faço comida quando estou nervosa não quer dizer que consiga comê-la.

Precisava arrumar alguma coisa para fazer. Revisei a conversa que tive com o Tio Mike e cheguei a conclusão de que provavelmente ele não sabia mesmo quem matara O’Donnell, embora estivesse muito seguro de que não tinham sido os ogros, ao contrário não os teria mencionado. Sabia que não tinha sido Zee. Tio Mike não achava que tivessem sido os Senhores Cinzentos, e eu concordava com ele. Do ponto de vista dos Fae, o homicídio de O’Donnell fora muito atrapalhado, o que os Senhores Cinzentos facilmente poderiam ter evitado.

Todavia, o velho cajado que tinha encontrado a um canto da sala de estar de O’Donnell tinha algum tipo de relação com o assassino. Era importante ao ponto de o corvo... - Não. Como que o Tio Mike tinha chamado? A Gralha-Negra. - ter ido buscá-lo, e o Tio Mike não quis falar sobre isso.

Olhei para o site de buscar que tinha definido como pagina inicial quando entrava na internet. Impulsivamente teclei cajado e fada e em seguida carreguei no botão de busca.

Obtive os resultados que seriam de esperar acaso tivesse pensado. Portanto substitui fada por folclore, mas só quando tentei cajado (depois de cajado mágico e pau mágico) é que dei por mim em uma pagina com uma pequena biblioteca de velhos livros sobre fadas e folclore digitalizados.

Encontrei a minha bengala, ou pelo menos uma bengala.

Foi dada a um agricultor que tinha o habito de deixar pão e leite na sua varanda traseira para dar de comer às fadas. Enquanto segurava aquele bastão, cada uma das suas ovelhas dava a luz a dois saudáveis cordeiros todos os anos e proporcionavam ao agricultor uma prosperidade modesta, contudo crescente. Mas ( e existe sempre um "mas" nos contos de fadas) certa noite, quando atravessava a ponte, o agricultor deixou escapar o bastão e este caiu no rio e foi levado. Quando chegou em casa, descobriu que os seus campos tinham sido inundados e a maior parte das suas ovelhas tinha morrido, portanto tudo o que tinha conseguido com o bastão desaparecera juntamente com ele. Nunca mais encontrou o bastão.

Não era provável que um bastão que garantia que todas as ovelhas do seu proprietário dessem a luz a dois carneiros saudáveis por ano fosse causa para o homicídio de pessoas, especialmente considerando que o assassino de O’Donnell não o tinha levado. Ou a bengala que tinha encontrado não era a mesma, ou não era tão importante como eu pensava que poderia ser, ou o assassino de O’Donnel não andava atrás dela. A única coisa de que tinha certeza, era que O’Donnell a tinha roubado do homem da floresta assassinado.

As vítimas, apesar de serem sobretudo nomes, tinham se tornado mais reais para mim: Connora, o homem da floresta, o selkie... É um habito de humanos rotular as coisas, Ze sempre me disse. Normalmente isso acontecia quando tentava convencê-lo a me contar quem ou o que ele tinha sido.

Impulsivamente, teclei ferreiro negro e Drontheim e encontrei a história de que Samuel falara. Li duas vezes e encostei-me à cadeira.

De certo modo encaixava. Conseguia imaginar Zee como alguém perverso ao ponto de criar uma espada que, uma vez brandida, atravessasse tudo o que lhe aparecesse no caminho, incluindo a pessoa que estivesse usando-a.

Ainda assim, não havia um Siebold ou um Adelbert na história. O último nome de Zee era Adelbertsmiter - smiter{11} de adelbert. Em tempos ouvira um Fae apresentá-lo a um outro em uma voz silenciosa como o "Adelbertsmiter".

Por capricho, pesquisei Adelbert e ri involuntariamente. A primeira entrada era sobre o Santo Adelbert, um missionário da antiga Northumbrian que procurou cristianizar a Noruega no século VIII. A única coisa que consegui descobrir dele foi que tinha morrido como mártir.

Poderia ele ser o Adelbert de Zee?

O telefone tocou, interrompendo as especulações.

Antes de ter a possibilidade de dizer o que quer que fosse, uma voz muito britânica disse: - Mercy, é bom que ponha esse rabinho aqui.

Havia um ruído de fundo, um rugido. Soava estranho e afastei a orelha do telefone o tempo necessário para confirmar que estava ouvindo da casa de Adam.

- É o Adam que está fazendo esse barulho? - perguntei.

Bem não me respondeu, limitou-se a gritar um palavrão e desligou o telefone.

Foi o suficiente para eu correr pela casa e porta fora, ainda com o telefone na mão. Deixei-o cair na varanda.

Estava saltando a cerca de arame farpado que separava o meu terreno de um hectare de terreno de Adam quando me ocorreu por que Bem teria recorrido a mim e não chamado, por exemplo Samuel, que tinha a vantagem de ser um lobisomem, um dos poucos mais dominantes do que Adam.


6

Não me dei ao trabalho de contornar a casa de Adam para alcançar a porta principal, simplesmente abri a porta da cozinha e entrei correndo. Não havia ninguém naquele local.

A cozinha de Adam tinha sido construída de acordo com as especificações da cozinha cordon bleu, a filha de Adam, Jesse, a um tempo dissera que o seu pai sabia mesmo cozinhar, mas a maior parte das vezes não se dava a esse trabalho.

Como o resto da casa, a ex-mulher de Adam tinha escolhido a decoração. Sempre me parecera estranho que, com exceção da sala de estar formal, onde predominavam tons de branco, as cores na casa fossem muito mais acolhedoras e serenas do que ela alguma vez fora. A minha casa estava decorada com um misto de objetos dispensados pelos meus pais e outros comprados em vendas de caridade com a quantidade suficiente de coisas boas (cortesia de Samuel) para fazer com que todo o resto parecesse horrível.

A casa de Adam cheirava a produto de limpeza com aroma de limão, Windex, e a lobisomens. Mas não precisava nem do meu olfato nem da minha audição para perceber que Adam estava em casa, e não estava contente. A energia da sua raiva tinha me varrido mesmo antes de ter entrado na casa.

Ouvi o sussurro de Jesse "Não, papai", proveniente da sala de estar.

O fato de em seguida ter ouvido uma rosnada grave não foi tranquilizador, mas, bem vistas as coisas, Bem não teria me ligado se as coisas estivessem bem. Ficara muito surpresa por ele ter me ligado, ele e eu não éramos propriamente grandes amigos.

Segui a voz de Jesse até a sala de estar. Os lobisomens estavam dispersos por todo o grande cômodo, mas por momentos a magia do Alfa teve efeito sobre mim e a única coisa que eu conseguia prestar atenção era em Adam, apesar de não ter o rosto virado para mim. A vista era tão agradável que precisei de algum tempo para me lembrar de que devia se tratar de um problema grave.

Os dois únicos humanos na sala estavam colados um ao outro enquanto Adam fitava intensamente seu novo sofá-cama, uma antiguidade, que substituíra os restos partidos de seu velho sofá-cama, também uma antiguidade. Se eu fosse Adam, não teria desperdiçado dinheiro em antiguidades. Coisas frágeis simplesmente não se dão bem na casa de um lobisomem Alfa.

Um dos humanos era a filha de Adam, Jesse. O outro era Gabriel, o rapaz estudante do ensino médio que trabalhava para mim. Tinha um braço em volta dos ombros de Jesse, e a sua estatura pequena o fazia parecer mais alto do que de fato era. Desde a ultima vez que tinha visto, Jesse tinha pintado o cabelo de um azul idêntico ao de algodão-doce, o que passava uma imagem alegre mas um tanto quanto estranha. A sua habitual maquiagem pesada tinha deslizado pelo rosto, manchando-a com sobra cinza-metalizada, rímel preto e manchas de lágrimas.

Por um momento pensei no obvio. Tinha avisado Gabriel no sentido de ser cuidadoso com Jesse e explicara as inconveniências de namorar com a filha do Alfa. Tinha prestado atenção ao que eu dissera e prometera solenemente que ia se comportar.

Depois notei que debaixo das manchas de maquiagem havia marcas de lesões recentes. E parte do que eu julgara ser rímel era na verdade um fio de sangue ressecado que lhe descia de uma das narinas até o lábio superior. Um dos ombros nus tinha a marca de arranhões ainda tinha cascalho. Era impossível Gabriel ter feito aquilo, e se tivesse feito, não estaria vivo.

Merda, pensei, sentindo uma frieza crescer em mim. Alguém ia morrer hoje.

A postura submissa de Gabriel devia ser uma reação a algo que Adam tinha feito, porque enquanto o observava, endireitou os ombros e levantou o olhar na direção do rosto do pai de Jesse. Não é propriamente um gesto muito inteligente perante um Alfa enfurecido, mas corajoso.

- Você conhecia-os, Gabriel? - não consegui ver o rosto de Adam, porém a sua voz me disse que seus olhos estariam dourados e brilhantes.

Avancei mais um passo para o interior da sala e uma onda de seu poder quase me derrubou sobre os joelhos, como aconteceu a todos os lobos de Adam, que caíram no chão quase como se fossem um só. O movimento fez com que de fato olhasse para eles e notasse que não eram tantos como tinha pensado inicialmente. Os lobisomens tem tendência a preencher os espaços de uma sala.

Havia apenas quatro. Honey, uma das poucas mulheres no bando de Adam, e o seu parceiro tinham as cabeças inclinadas e seguravam as mãos um do outro com uma força que os nós dos dedos estavam brancos.

Darryl se mantinha de cabeça levantada e inexpressiva, mas havia algumas gotas de suor na pele castanho-avermelhada na sua testa. Nas veias corria-lhe sangue chinês e africano, que se combinavam em uma mistura que deixava-o incrível na cor e traços. De dia era investigador no Laboratório Nacional do Pacífico Noroeste, durante o resto do tempo era o número dois de Adam.

Ao lado de Darryl, Bem estava tão pálido como o seu cabelo e parecia quase frágil, embora isso fosse falso por ser um verdadeiro durão. Assim como Honey, tinha estado de olhos ao chão, mas após cair no chão, olhou para cima e me dirigiu um olhar muito nervoso que não sabia como interpretar.

Bem tinha fugido da Inglaterra para o bando de Adam para evitar ser interrogado em um caso brutal de estupro múltiplo. Estava muito certa de que era inocente... mas existe algo em Bem que também teria feito com que ele fosse o meu primeiro suspeito.

- Papai, deixe o Bem em paz. - Jesse disse com um vestígio do seu espirito habitual.

Mas nem Adam nem Gabriel prestaram atenção ao seu protesto.

- Se eu soubesse quem eram eles e onde os podia encontrar, senhor, não estaria aqui agora. - Gabriel afirmou em uma voz triste que o fez parecer ter trinta anos. - Tinha deixado Jesse com você e ido atrás deles.

Gabriel tinha crescido como o rapaz mais velho de uma casa que tinha algo mais do que um conhecimento passageiro da pobreza ignóbil. Isso fizera dele uma pessoa ativa, trabalhadora e madura para a sua idade. Se o tinha considerado imprudente por sair com Jesse, tinha considerado Jesse muito sensata por tê-lo escolhido.

- Você está bem, Jesse? - perguntei com uma voz que soou mais um grunhido do que eu planejara.

Ela olhou para cima em um sobressalto. Depois, pulou do seu lugar, onde vinha tentando não se inclinar muito sobre Gabriel e proporcionar ao pai um algo para a sua raiva. Correu em minha direção, enterrando a face em meu ombro.

Adam se virou para nos olhar. Sendo um pouco mais perita em prudência do que Gabriel (mesmo que a usasse apenas quando me convinha), baixei os olhos na direção do cabelo de Jesse quase imediatamente, mas tinha visto o suficiente. Os seus olhos ardiam com uma chama de uma amarelo glacial, pálido como o sol de uma manhã de inverno. Linhas brancas e vermelhas alternavam nas suas largas maças do rosto em virtude da força que aplicava para cerrar as mandíbulas.

Se uma câmera de um jornal algum dia o captasse nesse estado, toda a propaganda que os lobisomens vinham fazendo ao longo do último ano seria arruinada. Ninguém veria em um Adam tão furioso, outra coisa que não um monstro muito perigoso.

Não estava apenas zangado. Não estou certa de que exista uma palavra inglesa para traduzir o grau de raiva estampada em seu rosto.

- Tem que impedí-lo. - Jesse murmurou ao meu ouvido o mais baixo que conseguiu. - Ele vai matá-los.

Podia ter lhe dito que, por muito baixo que sussurrasse, o pai dela, estando presente na mesma sala, iria ouvir.

- Está protegendo-os! - rugiu indignado, e vi a pouca humanidade a que se agarrava desaparecer por entre a fúria da besta. Se não fosse dominante, se não fosse Alfa, não sei se já não teria se transformado. No ponto em que as coisas estavam, conseguia ver as linhas do seu rosto começar a perder a consistência.

Era o que nos faltava.

- Não, não, não. - Jesse entoou ao meu pescoço, com todo o esqueleto tremendo. - Vão matá-lo se ele fizer mal a alguém. Ele não pode... não pode...

Não sei qual era a intenção da minha mãe quando me levou para ser adotada pelos lobisomens a conselho de um prezado tio-avô que era lobisomem. Não sei se teria sido capaz de confiar a minha filha a estranhos. No entanto, não sou uma mãe solteira adolescente que trabalha para ganhar o mínimo e que descobriu que a sua bebê conseguia se transformar em um coiote filhote. As coisas tinham acabado por correr bem comigo, pelo menos, tão bem como na infância da maioria das pessoas. E tinha me deixado com uma certa habilidade para lidar com lobisomens enraivecidos, o que era bom, meu pai adotivo me dissera com muita frequência, considerando que não havia dúvida de que eu tinha um especial talento para os enfurecer.

Ainda assim, era mais fácil com eles quando não tinha sido eu a irritá-los. O primeiro passo consistia em atrair a atenção deles.

- Basta! - disse em um tom firme e calmo que se sobrepunha a voz de Jesse. Não precisava do seu aviso para saber que ela tinha razão. Adam iria perseguir e matar quem quer que tivesse feito isso a sua filha, e que se lixassem as malditas consequências. E as malditas consequências seriam fatais para ele, e para todos os lobisomens em toda a parte.

Levantei os olhos ao encontro do olhar feroz de Adam e prossegui de forma mais severa.

- Não acha que já fez o suficiente? O que você tem na cabeça? Há quanto tempo é que ela está aqui sem que ninguém tenha limpado suas feridas? Devia ter vergonha.

A culpa é uma coisa maravilhosa e poderosa.

Em seguida me virei, puxando Jesse, que tropeçou surpresa, em direção as escadas. Se Darryl não estivesse na sala, não podia ter deixado Gabriel. Mas Darryl era inteligente, além de ser o numero dois de Adam, e eu sabia que ele iria manter o rapaz fora da linha de fogo.

E, de qualquer modo, não achava que Adam fosse permanecer na sala de estar por muito tempo.

Subimos apenas três degraus quando senti o bafo quente de Adam na nuca. Não disse nada, limitou-se a nos seguir até o banheiro no piso superior. O percurso me pareceu cem passos mais longo do que da ultima vez que o tinha percorrido. Tudo parece demorar mais tempo quando se tem um lobisomem atrás.

Sentei Jesse na tampa fechada do vaso e olhei para trás de soslaio, na direção de Adam.

- Vá buscar uma toalha.

Permaneceu no limiar da porta por instantes, deu meia volta e esmurrou a moldura da porta, que ficou deformada. Talvez devesse ter dito "por favor". Preocupada, olhei para cima, mas, com exceção de uma pouco de argamassa que tinha caído, o teto parecia inteiro.

Adam fitou intensamente as lascas salpicadas com o sangue dos seus nós rasgados, embora não acredite que tivesse notado o estrago que provocara.

Tive de morder o lábio para não dizer algo sarcástico como "Ora, aí está um gesto útil" ou "Está tentando manter os carpinteiros locais ocupados?". Quando fico com medo, a minha língua fica afiada, o que não é um trunfo quando se tem lobisomens por perto. Especialmente lobisomens furiosos ao ponto de destruir molduras de portas.

Tanto Jesse como eu ficamos a espera, paralisadas, e depois ele gritou, um som que era mais lupino que humano, e voltou a golpear a moldura da porta. Dessa vez a parede se desfez, com o seu punho atravessado no que restava da moldura, as duas vigas que estavam a seguir e todo o reboco entre elas.

Arrisquei olhar atrás de mim. Jesse estava tão assustada que seus olhos estavam muito abertos. Suspeito que teria conseguido ver os meus se estivesse olhando para mim em vez de olhar para o pai.

- Isso é que é um pai superprotetor. - disse em um tom apropriadamente divertido. A falta de medo na minha voz surpreendeu-me tanto como a qualquer outra pessoa. Quem poderia dizer que eu era tão boa atriz?

Adam se endireitou e se fixou em mim. Eu sabia que ele não era tão grande como aparentava, não era muito mais alto do que eu, mas naquele momento era grande quanto bastasse.

Olhei-o diretamente.

- Pode buscar uma toalha, por favor? - perguntei no tom mais amável que consegui.

Girou sobre os calcanhares e caminhou silenciosamente em direção ao seu quarto. Assim que desapareceu, notei que Darryl tinha nos seguido pela escada. Encostou-se na parede e fechou os olhos, soltando duas exalações longas. Enfiei as mãos frias nas minhas calças.

- Foi por pouco mesmo. - disse, talvez a mim, talvez a ele mesmo. Mas não olhou para mim quando se endireitou e, encolhendo os ombros, desceu as escadas parecendo mais com os garotos do ensino médio do que um doutorado em Física.

Quando me virei novamente para Jesse, estendeu uma toalha cinza com a mão tremula.

- Esconde isso. - ordenei. - Senão vai pensar que lhe pedi o favor só para me livrar dele.

Riu, como era minha intenção. Foi um riso vacilante, e parou abruptamente quando o golpe que tinha no lábio abriu. Mas foi um riso. Ela ia ficar bem.

Uma vez que não estava verdadeiramente preocupada com a possibilidade de ele descobrir que tinha pedido para fazer uma coisa inútil, peguei a toalha e usei para limpar meticulosamente o arranhão que tinha no ombro. Tinha mais uma marca por ter raspado a pele das costas na estrada, mesmo acima da linha da cintura.

- Quer contar o que aconteceu? - perguntei, enxaguando a toalha para tirar o cascalho pregado.

- Foi uma estupidez.

Ergui uma sobrancelha.

- O quê? Porque queria dar uma nova cor ao aspecto desses murros a si mesma e andou raspando a pele no pavimento?

Revirou os olhos, portanto presumo que não tenha tido assim tanta graça.

- Não. Estava no Tumbleweed com umas amigas. O meu pai me levou. A ideia era eu arranjar uma carona de volta, mas quando chegamos ao estacionamento haviam muitas crianças e não cabíamos todos no carro da Kayla. Tinha me esquecido do celular em casa, por isso comecei a caminhar no sentido inverso para encontrar um lugar onde pudesse telefonar.

Parou de falar. Entreguei-lhe a toalha para que pudesse limpar o próprio rosto.

Passei em água fria. - Não deve doer quando passar por cima das marcas negras. Acho que seu pai vai se sentir melhor se você se limpar bastante. Amanhã vai estar com um aspecto ruim, mas grande parte das marcas negras só vai aparecer daqui a algumas horas.

Olhou para o espelho e expirou de consternação, o que me deu novas garantias de que o grosso dos ferimentos era superficial. Levantou-se do vaso com um pulo e abriu o armário de medicamentos, pegando o removedor de maquiagem.

- Nem acredito que o Gabriel me viu nesse estado. - murmurou por entre dentes, consternada, enquanto removia o rímel das bochechas. - Pareço uma aberração.

- Sim. - concordei.

Olhou para mim, e começou a rir. E em seguida o seu rosto se enrugou novamente.

- Na terça tenho que ir para a escola com eles. - disse.

- Eram os filhos de Finley? - inquiri.

Fez que sim com a cabeça e voltou a limpar o rosto.

- Disseram que não queriam uma aberração na escola deles. Eu conheci...

Clareei a garganta ruidosamente, interrompendo-a e ela sorriu. O pai dela podia nos ouvir, portanto era melhor não lhe dar muitas pistas sobre os agressores. Se tivessem lhe feito mais alguma coisa, não estaria tão preocupada com eles. Mas o incidente não justificava a morte de pessoas. O necessário era uma medida pedagógica, não um homicídio. No entanto, aqueles rapazes precisavam perceber quão idiota era atacar a filha do Alfa.

- Não estava esperando por isso. Não da parte deles. - explicou. - Não sei o que teriam feito se Gabriel não tivesse visto o que estava acontecendo. - sorriu, um sorriso verdadeiro que não desapareceu quando pressionou o pano frio contra o lábio, que começava inchar consideravelmente. - Devia ter visto. Estávamos naquele estacionamento pequeno atrás da galeria de arte, sabe, aquela com os pinceis gigante na porta.

Fiz que sim com a cabeça.

- Presumo que Gabriel estivesse caminhando na ruazinha abaixo de nós e tenha me ouvido gritar. Subiu a colina e pulou a cerca tão rápido como se tivesse sido o meu pai.

Duvidava disso, os lobisomens são rápidos. Do que não duvidava era do efeito de ser salva por alguém como Gabriel, que, com a sua pele morena e aveludada, e seus olhos pretos, e a sua quantidade razoável de músculos, não era propriamente ruim de ver.

- Sabe. - disse com um sorriso cumplice. - Talvez seja bom que ele também não saiba quem eles são.

- Eu vou descobrir. - Gabriel disse atrás do meu ombro direito.

Tinha ouvido se aproximar. Talvez devesse ter avisado, mas Gabriel merecia ouvir a admiração de um herói presente na voz dela. Ele não era o único no corredor, mas os lobos, que o tinham seguido, se mantinham afastados da vista de Jesse.

Gabriel me deu um saco de gelo e observou Jesse enquanto ela se esquivava atrás do pano para esconder o seu rubor. Exibiu um rosto determinado.

- Podia tê-los apanhado, mas não sabia ao certo a gravidade do estado da Jesse. Covardes... - começou a cuspir, mas depois deu-se conta de onde estava e se conteve. - São precisos dois verdadeiros macho men para se meterem com uma garota que tem metade do tamanho deles.

Olhou para mim.

- A caminho de casa, a Jesse disse que achava que tinham armado uma cilada. Aquelas garotas com quem ela estava, uma delas, a garota que tinha o carro, tem um fraco por um dos rapazes. E os rapazes sabiam onde esperar por ela. Não há muitos lugares onde se possa espancar alguém sem pessoas para assistir. A tinham puxado para trás de um daqueles contêineres de lixo. Alguém planejou isso muito bem.

- A Escola Secundária de Finley é pequena.

- Quer se transferir para a Escola Secundária de Kennewick? - perguntei, sabendo que o pai dela estava ouvindo do quarto. Não conseguia ouví-lo, mas conseguia sentir a sua intenção e vê-las nas posturas rígidas dos lobos. Se não fôssemos muito cuidadosos, o bando inteiro iria a procura daqueles garotos estúpidos. - O Gabriel frequenta a escola de Kennewick, e eu sei que ele tem muitos amigos que podem olhar você. Ou podia ir para Richland, onde a Aurielle dá aulas. - Aurielle era mais uma das três mulheres-lobas do bando de Adam, companheira de Darryl e professora de Química.

Jesse tirou a toalha do rosto bruscamente e lançou-me um olhar que me fez lembrar que era filha do pai dela.

- Eu não vou lhes dar essa satisfação. - respondeu friamente. - Mas não vão voltar a me pegar de surpresa. Lutei com uma garota porque não acreditei que fossem de fato me bater. Também não vou voltar a cometer esse erro.

- Nesse caso, vai ter de voltar a praticar aikido. - Adam interveio, falando em uma voz tão baixa e calma que parecia impossível ter tido um ataque de fúria a poucos minutos antes. - Já não pratica há três anos, e se só tem metade do peso deles, vai ter que fazer melhor do que isso.

Saiu do seu quarto com uma toalha azul-escuro na mão. Se os seus olhos estivessem mais escuros, teria acreditado na fachada calma. Conseguira arranjar uma forma de esconder toda aquela raiva e energia de Alfa. Mas eu acreditava naqueles frios olhos amarelos antes de acreditar na voz calma. Estendeu-me a toalha, mas o seu olhar estava cravado em Jesse.

- Sim. - replicou ela com uma determinação afiada.

- Ela os feriu. - Gabriel comentou. - Um deles estava com sangue saindo pelo nariz e o outro estava agarrado ao seu flanco enquanto fugiam.

Dirigiu um olhar avaliador a Jesse, que fiquei grata por Adam não ver.

- Aposto que estão mais feridos do que ela.

Darryl clareou a garganta, e quando Adam olhou para ele, disse: - Arranje alguém que a escolte na ida e na volta da escola, - Jesse era adorada por todos. Se Adam não estivesse tão enraivecido, teria havido muito mais rosnadas dos lobos. Os olhos de Darryl também estavam mais claros do que o habitual. O dourado de sua pele morena era sinistro.

- Ela que vá com um lobisomem... - sugeri. - ...na forma de lobo. Durante os primeiros dias ele pode esperar por ela em frente a escola, em um lugar bem visível.

- Não. - Jesse disse. - Eu não vou ser um espetáculo de aberrações.

Adam ergueu uma sobrancelha.

- É uma coisa territorial. - expliquei a Jesse. - Mesmo as pessoas mundanas embarcam nesses jogos estúpidos. Eles fizeram uma jogada de poder e o seu pai não pode pura e simplesmente deixar a coisa passar. Se fizer isso, a perseguição vai piorar... até alguém morrer. - era isso que todas as politicas e modos de estar dos lobisomens de que eu tanto me queixava faziam de fato, mantinham as pessoas vivas.

- Devia ligar para a polícia e para a escola para avisá-los. - Honey disse. - Para que ninguém saia machucado.

- Façam uma apresentação. - Gabriel sugeriu. - Telefone ao professor de Biologia de Jesse. Não é verdade que está em um curso de Assuntos Atuais? Isso seria melhor. Pode trazer a sua aula para o exterior e dar-lhes informações detalhadas e pessoais sobre um lobisomem. Tem o mesmo efeito mas é menos embaraçoso para Jesse.

Adam sorriu, exibindo imensos dentes.

- Isso me agrada.

O rosto de Jesse se iluminou um pouco.

- Talvez eu consiga obter créditos extras.

- A escola jamais embarcará nisso. - Darryl comentou. - A responsabilidade seria muito elevada se acontecesse alguma coisa.

- Vou estudar a possibilidade. - Adam disse.

Jesse estava um pouco pálida, mas não estava gravemente ferida. Uma ducha quente ajudaria a atenuar a dor, e ela precisava de tomar uma ducha antes que o pai se acalmasse ao ponto de notar que não era necessário que a filha dissesse quem a tinha agredido. Se eu conseguia sentir o cheiro deles, Adam também conseguiria.

Mandei todas as pessoas embora com um gesto.

- Vão lá para baixo e arranjem uma solução. - disse. - Quero ver melhor alguns ferimentos para ter certeza de que ela não precisa que Samuel venha vê-la.

Segurei Jesse pela mão.

- Vamos usar o banheiro do Adam... - na verdade, não me lembrava se ele tinha banheiro, mas não me passava pela cabeça a ideia de essa casa não ter uma suíte principal, e, além disso, ele acabara de sair do quarto com uma toalha. - Já que Adam decidiu reformar esse. - é evidente que o meu tom foi um pouco cínico, mas se ele ficasse irritado comigo não ia ocupar a cabeça com a ideia de encontrar os agressores de Jesse.

Jesse me seguiu pelo corredor cheiro de pessoas até o quarto de Adam. No lado oposto havia uma porta aberta que só podia ser o banheiro. Puxei-a para o interior e fechei a porta.

Depois sussurrei muito baixo: - Precisa tomar uma ducha e se livrar do cheiro deles antes que o seu pai o pegue, se é que já não pegou.

Esbugalhou os olhos.

- E as roupas?

- Tudo. - respondi.

Olhou triste para as sapatilhas, mas abriu o chuveiro e entrou no box grande, calçada e vestida.

- Vou buscar roupas limpas. - disse.

Cruzei com Adam na porta de acesso ao corredor. Acenou com o queixo em direção do banheiro, onde qualquer pessoa conseguiria ouvir claramente que alguém estava tomando uma ducha.

- Odor. - pronunciou.

- As roupas dela estavam muito sujas. - presumidamente disse. - Até as sapatilhas.

- Fo... - calou-se antes de completar a palavra. Adam era um pouco mais velho do que aparentava. Tinha sido criado nos anos cinquenta, quando um homem não dizia palavrões na presença de uma mulher. - Fogo. - disse, obviamente sem sentir satisfação resultante de termos mais ordinários.

- Fruta que partiu, está tudo mofado, que raios partam os trilhos do pêssego. - concordei. Seu rosto ficou inexpressivo, portanto repeti o que tinha dito com ênfase adequada. - FrUTA que partIU. Está tudo mofADO. Raios fARTAM o carvALHO. O meu pai adotivo costumava dizer isso a toda hora. Também era um lobisomem antiquado. Gostava especialmente de "carvALHO". "Carvalho, Mercedes. Não tem noção de que isso é certo como dois e dois são quatro".

Adam fechou os olhos e inclinou a testa contra a moldura da porta.

- Vai sair caro se partir mais uma porta. - opinei tentando ajudar.

Abriu os olhos e olhou para mim.

Levantei os braços. - Tudo bem. Quer apoiar o sindicato de carpinteiros, é contigo. Agora se mova, eu disse para Jesse que levaria roupa limpa.

Recuou com exagerada cortesia. No entanto, quando passei por ele, deu um tapa na minha bunda. Com força suficiente para doer.

- Tem que ter cuidado. - grunhiu. - Se continuar a interferir nos meus assuntos, pode ser que se machuque.

Enquanto continuava meu caminho em direção ao quarto de Jesse, disse docemente: - O último homem que me deu um tapa como esse, está apodrecendo no túmulo.

- Não duvido. - a sua voz era mais de satisfação do que de pesar.

Virei-me para encará-lo com os seus olhos amarelos.

- Estou pensando em ir buscar peças de um carro para o Syncro. Tenho espaço de sobra no meu terreno.

Alguém que tivesse ouvido poderia ter considerado o meu ultimo comentário deslocado, mas Adam sabia a que me referia. Vinha-o castigando há vários anos com o Rabbit que usava para tirar peças. Claramente visível da janela do seu quarto, repousava agora sobre três rodas e faltavam varias peças. O grafite tinha sido sugestão de Jesse.

Se Adam não fosse tão tenso, não teria funcionado, mas ele era aquele tipo de pessoa que defende a ideia de "tudo no seu lugar e um lugar para tudo". Aquilo o incomodava muito.

Adam exibiu um sorriso por breves instantes, e depois seu rosto ficou sério.

- Diga-me você, pelo menos, que tem cérebro para pegar seus odores.

Ergui uma sobrancelha.

- Porque eu iria fazer isso? Nesse caso, em vez de incomodar Jesse, você me atormenta.

Um deles era completamente desconhecido, mas o outro... Havia qualquer coisa no seu cheiro que fazia algum eco, mas ia esperar até sair daqui para pensar nisso.

Soltou uma gargalhada feroz.

- Mentirosa.

Deu dois passos para frente, pôs a mão na minha nuca e me segurou para me beijar. Não estava a espera, não estando com ele tão perto de se transformar. Tenho certeza que foi essa a razão pela qual não me libertei dele.

O primeiro toque dos seus lábios foi suave, hesitante, pedindo aquilo que as mãos tinham exigido. O homem era diabólico. Poderia ter resistido a um gesto de força, mas a questão do seu beijo era uma matéria completamente diferente.

Inclinei-me contra ele porque me pediu com o toque mais suave e o afastamento dos lábios, que imploravam que o seguisse para onde me indicasse. O calor do seu corpo, bem-vindo na casa exageradamente fria, recompensou-me quando me aproximei dele, assim como as superfícies duras do seu corpo, pelo que me senti atraída a me encostar a ele ainda mais.

Também dançava assim. Conduzindo em vez de puxando. Tinha de ser deliberado, algo trabalhado por ele, porque mais dominante do que ele era difícil, como os Alfas são. Mas Adam era mais do que simplesmente dominante: também era inteligente. E não fazia jogo limpo.

Motivo pelo qual acabou encostado a parede comigo completamente colada a ele, altura em que alguém... Darryl clareou silenciosamente a garganta.

Libertei-me e pulei para trás até o meio do corredor.

- Vou então buscar as roupas da Jesse. - anunciei ao tapete, levando meu rosto corado ao quarto de Jesse e fechando a porta. Não me importava de ser pega dando um beijo, mas aquilo tinha sido mais carnal que um beijo.

As vezes ter boa audição não é uma bênção.

- Desculpa. - Darryl disse, embora a sua voz soasse mais divertida do que apologética.

- Eu aposto. - Adam grunhiu. - Diabos. Isso tinha que acabar.

Darryl soltou uma gargalhada ressoante que durou um bom tempo.

Nunca o tinha ouvido rir daquela maneira. Por norma, Darryl era muito pouco expansivo.

- Desculpa. - repetiu, dessa vez soando mais apologético. - A mim pareceu que preferia que não acabasse.

- É verdade. - Adam parecia subitamente cansado. - Eu devia ter ido atrás dela há muito tempo, mas depois que Christy terminou comigo, não tinha certeza se queria voltar a ter outra mulher. E a Mercy é mais cautelosa do que eu alguma vez fui. - Christy era a sua ex-mulher.

- E depois, Samuel veio competir pelo prêmio. - Darryl comentou.

- Não sou um prêmio. - sussurrei.

Eu sei que ambos me ouviram, mas ele se limitou a dizer: - Samuel sempre foi a competição. Prefiro que ele esteja aqui, assim pelo menos estou competindo com um homem de carne e osso, e não com uma memória.

- Se quer falar de mim pelas costas. - disse a Adam. - Pelo menos faça onde eu não consiga te ouvir.

Devem ter atendido o meu pedido porque não ouvi mais uma palavra da sua conversa. Ainda se ouvia o barulho do chuveiro, portanto sentei-me no meio do quarto de Jesse, tirei do bolso de trás um frasco de verniz para as unhas e depois aproveitei a oportunidade para me acalmar. Adam tinha razão, isso já durava há muito tempo.

De um modo geral, Samuel vinha se comportando como um anjo, e Adam também. Mas parecia que Adam andava mais inquieto do que o habitual e com um temperamento mais instável.

Isso eram noticias preocupantes, porque Adam tinha um temperamento quente, ainda pior do que o da maioria dos lobisomens. Caso contrário, Samuel me contara que, o Marrok teria usado Adam mais vezes como um porta-voz dos lobisomens. Ele possuía a beleza e os dons oratórios para isso. De qualquer maneira, Adam atraíra alguma atenção da imprensa porque andava fazendo algumas consultas e negociações em Washington D.C. O seu controle era muito bom, mas quando perdia, ficava frenético e o Marrok não arriscava.

Tinha a certeza que, de qualquer maneira, Adam teria explodido por causa dos ferimentos de Jesse, mas talvez tivesse recuperado melhor o controle se não andasse já irritado.

A porta de Jesse se abriu e Honey entrou, fechando a porta atrás de si. Honey era uma daquelas pessoas capazes de me fazer sentir uma maltrapilha, mesmo quando visto uma camisa perfeitamente apresentável. Ela podia ser uma modelo de um pôster de recrutamento para esposa troféu. Intimidava-me de uma forma completamente diferente daquela que era habitual nos outros lobisomens, e eu demorara algum tempo para ultrapassar isso.

Caminhou cuidadosamente por entre a habitual bagunça adolescente dispersa pelo chão do quarto de Jesse, o quarto de Jesse tinha um aspecto ainda pior do que o meu, o que significava que o cenário era mesmo ruim.

- Tem que fazer alguma coisa, Mercedes. - disse suavemente. Desde que o resto do bando permaneceu lá embaixo, ninguém conseguia nos ouvir. - O bando está todo inquieto e impaciente, e hoje Adam quase passou dos limites. Escolhe alguém, Adam ou Samuel, não importa. Mas tem que fazer em breve. - hesitou. - Quando Adam te anunciou como companheira dele...

Para a minha segurança, ele disse, e provavelmente tinha razão. Os lobos cinzentos norte-americanos matam qualquer coiote que esteja dentro do seu território, e os lobisomens são tão territoriais como os seus irmãos menores.

- Ele não falou comigo. - interrompi-a, com exaltação. - Eu não estava presente e só tive conhecimento depois de já ter sido anunciado. Não tive culpa.

Balançou sua juba cor de mel e aninhou-se ao meu lado. Se ela conseguisse ver o chão, creio que se sentaria como eu, uma vez que tecnicamente estava abaixo de mim na hierarquia do bando (graças ao fato de ter me declarado sua companheira), mas era muito esquisito se sentar em uma pilha de roupas sujas.

- Não estou atribuindo a culpa a ninguém. - replicou. - A culpa não muda as coisas. Nós conseguimos senti-la, a fraqueza no bando. Pode recusá-lo absolutamente, e depois as coisas vão voltar ao normal. Ou aceita-lo, e aí as coisas mudam de outra forma, uma forma melhor. Mas até lá... - encolheu os ombros.

Era fácil, mesmo para alguém como eu que estava na presença deles a todo o momento, esquecer que era mais do que magia dos lobisomens em sua transformação. Acho que é pelo fato de a transformação ser tão espetacular, e o resto da magia ser assunto do bando e não afetar mais ninguém. Não me considerava um elemento do bando, e até Adam ter declarado que eu era a sua companheira mais ninguém considerava.

O meu pai adotivo a um tempo, disse que tinha sempre um elo de comunicação com todos os restantes membros do bando. Eles sabiam quando um dos seus estava em perigo, eles sabiam quando um dos seus morria. Quando o meu pai adotivo cometeu suicídio, demoraram algum tempo para procurar o corpo, mas todos souberam quando procura-lo. Tinha visto Adam chamar o bando para junto de si com mais do que o som da sua voz e os tinha visto lhe curar ferimentos causados por prata que supostamente seriam mortais.

Não tinha notado de que poderia existir algo mais por trás do fato de Adam ter me declarado sua companheira até ter conseguido ajudar Warren a controlar o seu lobo em uma hora em que estava muito ferido para fazer isso sozinho. Tinha ficado grata, mas não tinha analisado o assunto com muita atenção.

Estava ficando com dor de cabeça, as vezes o medo faz isso.

- Conte-me isso novamente e seja clara, por favor.

- Quando ele te declarou companheira dele, fez a você um convite para se juntar a nós. Abriu uma vaga que você não ocupou. Essa vaga é uma fraqueza. Adam nos faz ocultar isso, mas só o consegue absorvendo os efeitos. O lobo nele sabe que existe uma fraqueza, um lugar pelo qual o mal pode chegar a nós, e isso o deixa alerta, nervoso, a todo o momento. Nós conseguimos sentir isso e reagimos. - dirigiu-me um ligeiro sorriso. - Foi por essa razão que fui tão desagradável contigo na hora que me mandou ser a sua guarda-costas contra os vampiros. Achava que estava fazendo joguinhos e nos deixando pagar o preço.

Não. Nada de joguinhos. Apenas muito pânico. Quem quer que fosse escolher, Adam ou Samuel, perderia o outro e isso eu não conseguiria aguentar.

- Todos nós dependemos do nosso Alfa para nos ajudar a viver entre os humanos. - Honey disse. - Alguns lobos de Adam tem mulheres humanas como parceiras. É a força de vontade dele que permite que nos controlemos, particularmente quando a Lua se aproxima ao auge.

Levei a minha cabeça aos joelhos.

- O que ele tinha na cabeça? Droga.

Ela me deu um tapinha no ombro, um toque embaraçoso que me transmitiu simultaneamente conforto e empatia.

- Acho que a única coisa que tinha na cabeça era te declarar companheira dele antes que outro lobo te matasse ou declarasse como seu companheiro.

Lancei um olhar de descrença.

- O que está acontecendo? Todo mundo está ficando louco? Não tive um encontro amoroso em dez anos e agora há Adam e Samuel e... - teria arrancado a língua a dentadas se continuar a mencionar Stefan. Não o via desde que ele e o Feiticeiro tinham matado dois inocentes para serem considerados culpados pelo assassinato de Andre para que Marsilia não me matasse. Ainda bem que ele não era a minha pessoa favorita.

- Eu sei porque Samuel me quer. - disse.

- Ele acha que vocês dois podem ter filhos, e você não consegue perdoa-lo por te querer por razões praticas. - havia algo na voz de Honey que me dizia que gostava de Samuel. Ou talvez seja a percepção de que eu fazia joguinhos com Adam e o seu bando não fosse a única razão pela qual ficara ressentida. Mas a expressão no seu rosto me disse mais. Ela compreendia a perspectiva de Samuel com base na sua experiência, também queria ter filhos.

Não sei por que comecei a falar com Honey. Não a conhecia assim tão bem, e desde que a conhecia passara a maior parte do tempo antipatizando com ela. Talvez fosse porque não conhecia mais ninguém que estivesse em uma posição que lhe permitisse compreender.

- Não censuro Samuel por achar que uma metamorfa que se transformava em coiote e não uma prisioneira da Lua pudesse ser uma boa parceira. - eu disse, bem baixinho. - Mas ele deixou que o amasse sem me dizer exatamente a razão pela qual estava tão interessado. Se o Marrok não tivesse interferido, provavelmente teria sido companheira dele quando tinha dezesseis anos.

- Dezesseis? - repetiu.

Acenei.

- O Peter é muito mais velho do que eu. - disse, falando do seu marido. - Foi difícil, mas eu não tinha dezesseis anos e... - fez uma pausa, pensativa. Finalmente acenou. - Não me lembro sequer de ouvir a idade de Samuel, mas é mais velho do que Charles, e Charles é do tempo de Meriwether Lewis e do William Clark.

A sensação de afronta que entrou em sua voz pouco a pouco, ainda que em um tom inaudível para os restantes lobisomens, foi como um bálsamo. Deu-me coragem para lhe contar um pouco mais.

- Estou feliz com quem estou. - disse. - O incidente com Samuel me permitiu quebrar qualquer vínculo com o bando e entrar no mundo humano. Sou independente e boa no meu trabalho. Não é glamuroso, mas gosto de reparar as coisas.

- E por outro lado... - disse, dando voz aquilo que eu não tinha dito.

Acenei.

- Exatamente. E por outro lado... e se eu tivesse aceitado a proposta dele? Digo a mim mesma que seria uma pessoa menor, mas Samuel não é o tipo de homem que anula a personalidade da sua mulher. Metade dos problemas que me meti quando era adolescente foram provocados por ele, e a outra metade resolvida também por ele.

- Portanto, seria a mulher de um médico, e livre para fazer o que quisesse, uma vez que Samuel não é um maníaco controlador como a maior parte dos machos dominantes.

Lá estava. Oh, o Samuel não. Ela, como acontecia com a maior parte das pessoas, via o que ele queria que ela visse. O Samuel gentil e relaxado. Bah.

Mas sempre me perguntei porque Honey tinha casado com o seu marido, estando ele em uma posição inferior na estrutura de poder do bando e ela sendo tão dominante, logo abaixo dos primeiros dois ou três lobos. Uma vez que ficou com a mesma posição do marido, estava muito mais abaixo na hierarquia do que antes de ter se tornado parceira de Peter. Na verdade não havia assim tantos lobos submissos como isso. O tipo de determinação necessária para sobreviver a transformação não é habitualmente encontrado em uma pessoa que não seja pelo menos um pouco dominante.

- Samuel é tão obcecado pelo controle como qualquer um dos outros. Simplesmente esconde melhor. - disse. - A verdade das coisas é que ele teria me metido em uma redoma e protegido do resto do mundo. Jamais teria crescido ou teria me tornado a pessoa que sou.

Ergueu uma sobrancelha.

- O que, uma mecânica? Ganha menos que o salário mínimo. Eu vi o Gabriel tratar da contabilidade. Ele ganha mais do que você.

Enganara-me. Ela jamais compreenderia.

- Uma pessoa que tem o seu próprio negocio. - repliquei, embora soubesse que era inútil esperar que ela compreendesse o que eu queria dizer. Tinha recusado tudo o que ela quisera na sua vida, estatuto, tanto no mundo lupino como no humano, e dinheiro. - Uma pessoa que é capaz de pegar em uma coisa e repará-la. Uma pessoa que hoje foi capaz de se manter firme diante de Adam em vez de se por de joelhos e olhar para o chão. Uma pessoa capaz de decidir o que vai fazer todos os dias, incluindo ir atrás daquele vampiro possuído pelo demônio que quase matou o Warren. Não sou nada de especial, inclusive comparada com os lobisomens, mas tem que admitir que eu era a pessoa adequada para eliminá-lo. Os lobisomens não conseguiram. Os vampiros e os Fae não o faziam. O que é que teria acontecido se eu não tivesse sido capaz de mata-lo? Samuel jamais deixaria que a mulher dele arriscasse a vida para fazer algo semelhante.

Nessa hora notei algo. Por muito assustador que tivesse sido ( e eu tinha os pesadelos e as cicatrizes para prová-lo), por muito estupidamente perigoso que ainda era e possivelmente mortal, eu sentia orgulho por ter conseguido fazer. Apenas eu.

Samuel jamais me deixaria fazer algo assim.

Nunca poderia ter Samuel sem abdicar de algo que prezara em relação a mim mesma. Foi a primeira ocasião em que me permiti olhar as coisas desse modo porque assim sendo teria de admitir que Samuel jamais poderia ser homem pra mim.

A questão era: Adam seria melhor? E se eu aceitasse ficar com Adam, Samuel ia embora. Parte de mim ainda amava Samuel, e não estava preparada para abrir mão dele.

Estava tão ferrada.

- Acha que Adam ia te deixar ir atrás daquela cosia se fosse a companheira dele? - Honey perguntou descrente.

Talvez.

- Não era minha intenção me intrometer em nada. - Jesse disse em uma voz tímida.

Dei-me conta de que não ouvira a agua correr no chuveiro há algum tempo. Também não tinha ouvido Jesse se aproximar.

Tinha se embrulhado em uma toalha, mas ainda assim fechou rapidamente a porta atrás de si. Dirigiu um olhar desconfiado a Honey, mas depois virou o olhar.

- Ouvi a ultima parte sem querer. - ela disse. - O meu pai disse para não me meter nos assuntos dele. Mas achei que devia saber que há não muito tempo ele me disse que se não se cair de um avião de vez em quando, nunca se aprende a voar.

- Ele me arranjou guarda-costas. - respondi secamente a Honey. Ela tinha sido um deles.

Revirou os olhos.

- Ele não é estupido. Mas se houver alguma coisa que tenha que fazer, ele vai cobrir a sua retaguarda. - lancei um olhar incrédulo e ela revirou os olhos novamente. - OK. Ok, ele vai a frente. Mas não te vai obrigar a ficar para trás. Ele não desperdiça os recursos dele dessa maneira.

Quando Jesse estava desaparecida e Adam muito ferido para fazer o que quer que fosse em relação a isso, tinha feito tudo menos me recrutar para encontrá-la, sabendo que as pessoas que a tinham raptado quase o tinham matado. Não sei qual o motivo, mas essa recordação me permitiu respirar fundo novamente.

Sabendo disso, não podia deixar Samuel magoado. Acho que desistir de Adam poderia me despedaçar, o que não queria dizer que ainda assim não tivesse que fazê-lo.

Fiquei rapidamente de pé.

- Não vou me esquecer disso. - disse, mudando de assunto em seguida. - Como está se sentindo?

Sorriu e estendeu uma mão firme como uma rocha.

- Estou bem. Tinha razão, um banho quente ajudou mesmo. Vão aparecer umas marcas negras, mas vou ficar bem. Gabriel também ajudou. Ele tem razão. De fato eu me defendi, melhor do que eles estavam esperando. Agora sei como ficar de olho neles e... - seu sorriso se abriu, até o lábio se romper novamente. - O meu pai me arranjou guarda-costas. - disse no mesmo tom exasperado que eu tinha usado.


7

Às vezes parece que a distancia entre a casa de Adam e a minha se altera. Cerca de uma hora atrás, demorara apenas um instante para chegar da minha porta à dele. Demorei muito tempo na volta para casa e me lamentei o caminho todo.

Não iria escolher Samuel. Não por não confiar nele, mas porque podia confiar nele completamente. Ele me amaria e cuidaria de mim até eu arrancar o braço à dentadas para ser livre, e não seria a única pessoa a fica magoada. Samuel já sofrera o suficiente sem que eu ajudasse nisso.

Quando lhe contasse como me sentia, ele iria embora.

Tinha esperança de que ainda estivesse fora, mas o seu carro estava estacionado ao lado do meu Rabbit cor de ferrugem. Parei na rampa de entrada, mas já era tarde demais. Ele teria notado que eu estava aqui fora.

Não tinha o que lhe dizer hoje, pensei. Não ia ter que perdê-lo hoje. Mas aconteceria em breve. Muito em breve.

Warren e Honey tinham razão. Se não fizesse alguma coisa rapidamente, ia haver sangue. O fato de até agora não ter havido nenhum confronto físico era uma demonstração do controle que tanto Adam quanto Samuel possuíam. No mais fundo de mim, sabia que se algum dia fossem lutar um com o outro, um deles morreria.

Conseguia suportar a ideia de perder Samuel novamente se assim fosse, mas não conseguiria suportar a ideia de ser a causa da sua morte. E tinha certeza de que seria Samuel a morrer em uma luta com Adam. Não que Adam fosse um lutador melhor. Já tinha visto Samuel lutar algumas vezes, e ele sabia o que estava fazendo. Mas Adam tinha momentos de crueldade que Samuel não tinha. Adam era um soldado, alguém que matava, e Samuel era alguém que curava. Ia se conter até ser tarde demais.

A parte exterior da porta dupla se abriu e olhei para cima, na direção dos olhos cinzentos de Samuel. Não era um homem bonito, mas havia nos seus traços longos e no seu cabelo quase branco uma beleza profunda.

- O que te deixou assim, com essa expressão no rosto? - Samuel perguntou. - Aconteceu alguma coisa na casa do Adam?

- Dois babacas fanáticos bateram em Jesse. - respondi. Não era mentira. Ele não tinha como saber que estava respondendo a sua segunda pergunta, não à primeira.

Por um instante uma fúria atravessou seu rosto, ele também gostava de Jesse. Depois o seu autocontrole se manifestou e o Dr. Cornick veio e mostrou-se pronto para agir.

- Ela está bem. - expliquei antes que dissesse alguma coisa. - São só marcas negras e sentimentos feridos. Durante um tempo ficamos preocupados com a possibilidade de Adam cometer um assassinato, mas acho que conseguimos acalmá-lo.

Desceu da varanda e tocou meu rosto.

- Foram apenas minutos difíceis? Seja como for, é melhor eu ir ver como Jesse está.

Assenti.

- Eu preparo alguma coisa para o jantar.

- Não. - disse. - Está com ar de quem precisa de algum ânimo. Adam está em um estado de fúria e Zee está preso, tudo em um único dia, é um pouco demais. Porque não se prepara que eu te levo para comer uma pizza?

 

 

A pizzaria estava cheia de gente e estojos de instrumentos musicais. Peguei no meu copo de refrigerante e na cerveja de Samuel e fui procurar dois lugares enquanto ele pagava a comida.

Depois de Tumbleweed encerrar no domingo à noite, a última noite, todos os artistas e todas as pessoas que tinham trabalhado no festival aparentemente se reuniam para um ultimo Hurra! E tinham convidado Samuel, que por sua vez tinha me convidado. Parecia uma multidão e tanto, e não deixavam muitos lugares desocupados.

Tive que me conformar com uma mesa já ocupada, mas com duas cadeiras vagas. Curvei-me e coloquei meus lábios perto do ouvido do homem sentado de costas para mim. Era muito íntimo, considerando que se tratava de um desconhecido, mas não havia alternativa. No meio desse barulho, um ouvido humano não teria escutado a minha voz se eu estivesse mais distante.

- Esses lugares estão ocupados? - perguntei.

O homem olhou para cima e notei que afinal não era tão desconhecido como eu pensava... Em primeiro lugar, era a pessoa que tinha se queixado do galês de Samuel, Tim Qualquer Coisa com um último nome que era da Europa Central. Em segundo lugar, ele tinha sido um dos homens que tinha estado na casa de O’Donnell, mais precisamente o Homem da água-de-colônia.

- Não há problema. - respondeu em voz alta.

Podia ser coincidência. Podia haver mil pessoas em Tri-Cities usando aquela água-de-colônia em particular, talvez não cheirasse tão mal para alguém que não tivesse o meu olfato.

Esse era um homem que conhecia a língua élfica de Tolkien e o galês (embora não tão bem como julgava, se era critico em relação a Samuel). Não são propriamente requisitos para um fanático anti-Fae. O mais provável era que fosse um dos aficionados dos Fae que dera tanto dinheiro ao ganhar o pequeno bar Fae de Walla Walla, e que transformara a reserva em uma nova Las Vegas.

Agradeci e ocupei o lugar mais próximo da parede, deixando o restante para Samuel. Talvez ele não fosse um dos elementos da Futuro Feliz de O’Donnell. Talvez ele fosse um assassino, ou um agente da polícia.

Sorri educadamente e o observei atentamente. Não estava em má forma, mas era sem duvidas humano. Não era possível ter decapitado um homem sem um machado.

Portanto, não era um membro da Futuro Feliz, nem um assassino. Ou era simplesmente um homem que partilhava o mau gosto na escolha da água-de-colônia com alguém que tinha estado na casa de O’Donnell, ou um agente da polícia.

- Sou Tim Milanovich. - disse quase gritando para que a sua voz se sobrepusesse ao som de todas as outras pessoas que estavam falando ao mesmo tempo em que estendeu cuidadosamente o braço sobre a pizza. - E esse é o meu amigo Austin. Austin Summers.

- Mercedes Thompson. - dei um aperto de mão, e ao outro homem também. O segundo homem, Austin Summers, era mais interessante do que Tim Milanovich.

Se fosse um lobisomem, pertenceria a classe dos dominantes. Exercia o mesmo tipo de atração sutil que um politico verdadeiramente bom. Não tão atraente ao ponto de as pessoas repararem nele, mas era bonito dentro do estilo jogador de futebol americano robusto. O cabelo castanho, bem mais claro do que o meu, e os olhos castanho-escuros completavam o quadro. Era alguns anos mais novo do que Tim, pensei, mas consegui notar o motivo pelo qual Tim o tinha como companhia.

O lugar estava muito cheio de gente para que conseguisse detectar o odor de Austin mesmo do outro lado da mesa, mas impulsivamente leve a mão com a qual o cumprimentei ao nariz como se tivesse uma coceira, e abruptamente a noite transformou-se em algo mais do que uma saída para me manter distraída das minhas preocupações.

Esse homem tinha estado na casa de O’Donnell, e notei porque o cheiro de um dos agressores de Jesse tinha me parecido familiar.

O cheiro é uma coisa complicada. É simultaneamente uma marca singular de identificação e uma bolsa de vários cheiros. A maior parte das pessoas usa sempre o mesmo shampoo, desodorante e pasta de dentes. Limpa as suas casas com os mesmos produtos, lava as suas roupas com o mesmo sabão e seca-as com o mesmo amaciante. Todos esses cheiros se combinavam com o seu próprio individual para criar o seu odor distinto.

Esse Austin não era o homem que tinha atacado Jesse. Era muito velho, teria pelo menos mais dois anos do que um finalista do ensino médio, e não tinha exatamente o mesmo cheiro, mas vivia na mesma casa. Um amante ou um irmão, pensei, apostando no irmão.

Austin Summers. Iria memorizar aquele nome e ver se conseguia encontrar uma casa. Não havia um rapaz chamado Summers por quem Jesse tinha sentido um fraco no ano passado? Antes de os lobisomens terem admitido a sua existência. Uma vez que Adam era apenas um homem de negócios moderadamente rico. John, Joseph... algo bíblico... Jacob Summers. Era isso. Não era de se admirar que ela estivesse tão chateada.

Beberiquei meu refrigerante e lancei os olhos a Tim, que estava comendo uma fatia de pizza. Teria apostado o meu ultimo níquel em como não era um policial, não possuía nenhuma das habituais características que distinguem um policial e não tinha o habito de transportar uma arma. Mesmo quando estão desarmados, os policiais cheiram sempre um pouco a pólvora.

As probabilidades de Tim ser o Homem da água-de-colônia tinham acabado de se aproximar dos cem por cento. Nesse caso, o que fazia um homem que adorava canções folclóricas e línguas celtas na casa de um homem que odiava os Fae?

Sorri a Tim e disse com sinceridade: - Na verdade, Sr. Milanovich, nos conhecemos esse fim de semana. Esteve falando com Samuel depois da atuação dele.

Havia lugares onde a minha pele e cor de Nativo Americano que me tornava memorável, mas não nas Tri-Cities, onde eu me passava por um dos elementos da população hispânica.

- Me chame de Tim. - disse, fazendo um grande esforço para me identificar.

Samuel poupou-o de um embaraço com a sua chegada.

- Ah, está aqui. - disse depois de murmurar um pedido de desculpas a alguém que tentava atravessar o corredor estreito no sentido inverso. - Desculpa por ter demorado tanto tempo, Mercy, mas parei algum tempo para falar com algumas pessoas. - colocou uma pequena plana plástica de cor vermelha com um 34 escrito, ao lado da pizza de Tim. - Sr. Milanovich. - disse ao mesmo tempo que se sentava ao meu lado. - Prazer em vê-lo.

É claro que Samuel se lembrava do nome dele, ele era assim. Tim se sentiu lisonjeado por ser reconhecido, estava estampado em toda a sua cara redonda.

- E este é Austin Summers. - gritei de maneira agradável, mais alto do que era necessário, uma vez que a audição de Samuel era pelo menos tão boa quanto a minha. - Austin, apresento-lhe o médico cantor de musica tradicional, Dr. Samuel Cornick. - desde que os tinha ouvido apresenta-lo como "o médico cantor de musica tradicional", notei o quanto Samuel o odiara, como também notei que teria de usar essa expressão.

Samuel me lançou um olhar irritado antes de dirigir uma expressão sorridente aos homens com quem partilhávamos a mesa.

Mantive uma expressão amena no rosto para ocultar a sensação de triunfo que senti por ter conseguido irritá-lo enquanto Samuel e Tim mantinham uma conversa em torno de temas comuns nas músicas tradicionais inglesas e galesas, Samuel encantador e Tim pedante. Tim falava cada vez menos a medida que avançavam na discussão.

Reparei que Austin observava o seu amigo e Samuel com a mesma expressão agradavelmente interessada que eu adotara, e perguntei-me o que estaria passando por sua cabeça para que sentisse necessidade de esconder.

Um homem alto se levantou de uma cadeira e deu um assovio que uma multidão maior do que essa teria escutado. Quando todo mundo se calou, deu-nos boas-vindas e endereçou algumas palavras de agradecimentos a diversas pessoas responsáveis pelo Tumbleweed.

- Agora... - disse. - ...eu sei que todos vocês conhecem os Scallywags... - curvou-se e pegou um bodhrán{12}. Derrubou água na pele do tambor com uma garrafa pequena e em seguida espalhou-a com a mão enquanto falava com uma casualidade estudada que atraía a atenção. - Os Scallywags cantam aqui desde o primeiro Tumbleweed, e eu por acaso sei algo sobre eles que todos vocês desconhecem.

- O quê? - alguém gritou da multidão.

- Que a bela cantora deles, a Sandra Hennessy, faz aniversário hoje. E não se trata de um aniversário qualquer.

- Vai apanhar e não é pouco. - soou uma voz feminina. - Você vai ver, John Martin.

- Sandra hoje faz quarenta anos. Acho que ela precisa de uma lamentação de aniversário, o que vocês acham?

A multidão irrompeu em aplausos que rapidamente se transformou em um silencio ansioso.

"Feliz Aniversário" - cantou as notas menores da abertura de "Volga Boatmen" em um baixo gloriosamente profundo que não precisava de microfone para se projetar pela multidão, e em seguida bateu uma vez no bodhrán com uma pequena baqueta de ponta dupla. THUMB.

"É o seu aniversário" - THUMB.

"Escuridão e condenação e desespero pesado"

"Pessoas a morrer em todo lado"

"Feliz Aniversário" THUMB "É o seu aniversário"

Depois o resto da sala, incluindo Samuel, começou a cantar a melodia lúgubre com grande entusiasmo.

Tinham bem mais do que cem pessoas na sala, e a maior parte delas eram músicos profissionais. Todo o restaurante vibrava como um diapasão a medida que transformavam a canção boba em um coral.

Uma vez começada a música, não parou. Outros instrumentos juntaram-se ao bodhrán: violões, banjos, violinos e um par de flautas irlandesas. Assim que uma canção chegava ao fim, alguém se levantava e iniciava outra, com a multidão entrando no refrão.

Austin era um excelente tenor. Tim não era capaz de cantar dentro do tom nem que isso dependesse da sua vida, mas havia pessoas cantando o suficiente para isso não ter importância. Cantei até a nossa pizza chegar, e depois comi enquanto todo mundo cantava.

Finalmente, levantei-me para voltar a encher o copo de refrigerante, e quando voltei, Samuel tinha pedido um violão emprestado e estava ao lado oposto da sala conduzindo um coro inflamado e alcoolizado que cantava uma musica obscena.

O único que permanecia em nossa mesa era Tim.

- Fomos abandonados. - disse. - O seu Dr. Cornick foi chamado e Austin foi ao carro buscar o violão dele.

Acenei.

- Depois que o convencerem a cantar. - acenei vagamente para indicar Samuel. - Demora um pouco para parar.

- Vocês estão juntos? - perguntou, rodando o frasco de queijo parmesão entre as mãos antes de pousa-lo.

Virei-me para olhar Samuel, que estava cantando uma estrofe sozinho. Os seus voavam através do braço do violão emprestado e no seu rosto se desenhava um sorriso.

- Sim. - respondi, embora na verdade não estivéssemos. E não iríamos estar agora. Era menos complicado dizer simplesmente que sim em vez de explicar a nossa situação.

- Ele é um musico muito bom. - Tim comentou. Depois, em uma voz tão baixa que notei que não queria que o ouvisse, murmurou: - Há quem tenha sorte em tudo.

Voltei-me para ele e disse: - Importa-se de repetir?

- Austin também é um musico muito bom. - apressou-se a dizer. - Tentou me ensinar, mas eu não consegui. - sorriu como se isso não tivesse importância, mas a pele em volta de seus olhos estava tensa de amargor e inveja.

Que interessante, pensei. Como que eu poderia usar isso para tirar informações dele?

- Eu sei o que sente. - confidenciei, bebericando meu refrigerante. - Eu fui praticamente criada com Samuel. - simplesmente acontece que Samuel fora adulto o tempo todo. - Consigo dar uns toques no piano se alguém me forçar. Consigo inclusive cantar dentro do tom, mas por muito que treinasse. - não muito. - Nunca consegui soar tão bem como Samuel. E ele nem sequer tinha que praticar. - imprimi em minha voz um tom caustico algo próximo da inveja que ele revelara. - Tudo é tão fácil para aquele homem.

Zee tinha dito para não ajudá-lo.

Tio Mike tinha dito para não me meter no assunto.

Mas acontece que eu nunca fui muito boa em ouvir ordens, pergunte a quem quiser.

Tim olhou para mim, e reparei que me registrou como uma pessoa real pela primeira vez.

- Exatamente. - replicou, e a partir dali era meu.

Perguntei-lhe onde tinha aprendido galês, e tornou-se visivelmente mais expansivo enquanto respondia.

Como acontece com muitas pessoas que não tem muitos amigos, as suas competências sociais eram um pouco escassas, mas era inteligente e por baixo de todo aquele modo nerd, era engraçado. A vasta cultura e o charme de Samuel tinham feito com que Tim se fechasse e tornasse um idiota. Com um pouco de encorajamento, e talvez a ajuda dos dois copos de cerveja que tinha bebido, Tim relaxou e deixei de tentar me impressionar. Sem que notasse, dei por mim esquecendo durante algum tempo dos meus motivos profundos e embarquem em uma discussão animada sobre as lendas do Rei Arthur.

- As histórias vem das cortes de Leonor de Aquitaine. Eles deviam ensinar os homens a se comportar de forma civilizada. - Tim explicou fervorosamente.

Alguém do outro lado da sala gritou, com mais volume do que entoação: - O Rei Luís era o rei da França antes da Re-vo-lu-ção!

- Claro. - eu disse. - Traiu o seu marido e o seu melhor amigo. A única forma de encontrar o amor é pelo adultério. Tudo belos comportamentos civilizados.

Tim sorriu perante a minha observação sarcástica, mas teve de esperar enquanto toda a sala replicava: - Ala, ala Joe.

- Não é isso. - disse. - Mas aquele povo devia se esforçar para melhorar e fazer a coisa certa.

- Depois cortaram-lhe a cabeça, deu-lhe cabo da cons-ti-tu-i-ção!

Tive de me apressar para falar antes que o refrão começasse.

- Como dormir com a irmã e provocar a própria ruina?

- Ala, ala Joe.

Bufou de frustração.

- A história de Arthur não é a única no período arturiano ou sequer a mais importante. Parcival, Gauvain e outra meia dúzia foram mais populares.

- OK. - repliquei. Estávamos perdendo o nosso timing e comecei a deixar de prestar completamente atenção a música. - Posso ceder na questão do impulso de realizarem feitos heroicos, mas os quadros que faziam das mulheres seguiam precisamente a linha que a Igreja defendia. As mulheres desencaminham os homens e nos traem assim que conquistam a sua confiança. - começou a dizer qualquer coisa mas estava no meio de um raciocínio e não parei. - Mas não tem culpa, é simplesmente o que as mulheres fazem em resultado das suas naturezas fracas. - na verdade sabia que não era assim, mas era divertido fazer uso da retórica.

- Isso é uma simplificação. - ardorosamente disse. - Talvez as versões populares que foram recontadas em meados do século XX ignorem a maior parte das mulheres. Mas leia alguns dos autores originais como Hart man Von Que ou Wolfram von Eschenbach. As mulheres deles são pessoas reais, não apenas reflexos dos ideais da Igreja.

- Cedo em relação a Eschenbach. - concedi. - Mas não em relação a van Aue. O seu Iwein é sobre um cavaleiro que deixou de se aventurar porque amava a mulher dele, falta que teve de reparar. Então começa a salvar mulheres para readquirir o seu devido estatuto de homem viril. Ugh. Não se vê nenhuma das mulheres dele se salvar. - acenei com a mão. - E não pode escapar ao fato de a história arturiana central girar em torno de Arthur, que casa com a mulher mais bela do território. Ela dorme com o melhor amigo dele, arruinando assim os dois maiores cavaleiros que algum dia existiram e provocando a ruina de Camelot, do mesmo modo que Eva provocou a ruina da humanidade. A história de Robin Hood é muito melhor. A donzela Marian se livra de Sir Guy de Gisbourne, e depois mata um veado e engana Robin se disfarçando de homem.

Riu, produzindo um som grave e atraente que pareceu apanhá-lo de surpresa tanto quanto me apanhou.

- OK. Desisto. Guinevere era uma perdedora. - o seu sorriso se dissipou lentamente enquanto olhara atrás de mim.

Samuel colocou a mão sobre o meu ombro e se inclinou.

- Está tudo bem?

Havia na sua voz uma severidade que me fez virar de forma um pouco rápida para olhá-lo.

 

- Vim te salvar do tédio. - Samuel disse, mas de olhos em Tim.

- Não estou entediada. - assegurei com um tapinha. - Pode ir tocar.

Depois olhou para mim.

- Vai. - disse com firmeza. - Tim está me entretendo. Eu sei que você não tem muitas oportunidades de tocar com outros músicos. Vai.

Samuel nunca foi o tipo de pessoa que demonstra afeto publicamente. De modo que fui apanhada de surpresa quando se curvou sobre mim e me deu um beijo na boca que teve Tim como motivação. A motivação não ficou por muito tempo.

Uma das coisas de se viver muito tempo, Samuel me disse, é que nos dá tempo para praticar.

Cheirava ao Samuel. Limpo e fresco, e embora não fosse à Montana a muito tempo, ainda cheirava a casa. Muito melhor do que a agua de colônia de Tim.

E ainda assim... e ainda assim.

Essa tarde, ao falar com Honey, tinha finalmente admitido que uma relação entre Samuel e eu não ia funcionar. Ter admitido isso estava tornando varias outras coisas claras.

Eu amava Samuel. Amava de todo o coração. No entanto, não tinha o menor desejo de me unir a ele para o resto da vida. Mesmo que Adam não existisse, não sentiria essa vontade em relação a ele.

Assim sendo, porque tinha demorado tanto tempo para admitir?

Porque Samuel precisava de mim. A cerca de quinze anos em que fugira dele e o ultimo inverno, quando finalmente o reencontrei, algo em Samuel tinha quebrado.

Os lobisomens velhos são estranhamente frágeis. Muitos deles perdem o juízo e tem que ser mortos. Outros definham e se deixam morrer de fome, um lobisomem faminto é algo muito perigoso.

Samuel ainda dizia e fazia todas as coisas certas, mas as vezes me parecia que estava seguindo um script. Como se ele pensasse que eu devia me sentir incomodada ou devia me preocupar com isso e assim ele reagiria, mas era um pouco provável ou tarde demais. E quando estava na forma de coiote, os meus instintos mais apurados diziam que ele não estava saudável.

Tinha pavor da ideia de lhe dizer que não ficaria com ele como companheira e ele, ao acreditar, fosse embora para algum lugar para morrer.

O desespero e a exasperação tornaram a minha reação ao beijo descontrolada.

Não podia perder Samuel.

Afastou-se de mim com um quê de surpresa nos olhos. Afinal de contar era um lobisomem, sem duvida tinha detectado alguma aflição que eu sentia. Levantei o braço e toquei seu rosto.

- Sam. - disse.

Ele era importante para mim e eu ia perdê-lo. Ou agora ou quando eu nos destruísse ao lutar contra o amável e profundo cuidado que me rodearia.

A sua expressão fora triunfal apesar da surpresa, mas se diluiu em algo mais terno quando pronunciei o seu nome.

- Sabe, é a única pessoa que me chama assim, e só faz isso quando está se sentindo particularmente sentimental em relação a mim. - murmurou. - Em que está pensando?

As vezes Samuel é muito inteligente.

- Vai tocar, Samuel. - empurrei-o. - Eu ficarei bem. - esperava ter razão.

- OK. - replicou suavemente, e depois estragou tudo ao dirigir um sorriso presunçoso a Tim. - Podemos conversar mais tarde. - marcando seu território em frente de outro macho.

Virei-me para Tim com um sorriso apologético pelo comportamento de Samuel que se dissipou quando vi o ar traído em seu rosto. Escondeu-se rapidamente, mas eu notei o que significava.

Para o diabo com tudo.

Tinha começado com uma intenção, mas a discussão tinha me feito esquecer completamente o que estava fazendo. De outro modo teria sido mais cuidadosa. São raras as vezes em que tenho a oportunidade de sacar do meu canudo em História a tirar o pó. Mas ainda assim devia ter notado que a discussão tinha tido muito mais significado para ele do que para mim.

Ele pensava que eu estava fazendo um jogo de sedução quando na verdade só estava curtindo o momento. E quando se trata de pessoas como Tim, incomuns e pouco simpáticas a luz da maior parte dos padrões, não é preciso muito para acharem que estão sendo seduzidas. Não sabem distinguir quando deve ser levado a serio ou não.

Se eu fosse bonita, talvez tivesse reparado mais cedo ou sido mais cuidadosa, ou Tim teria sido mais reservado. Mas o meu lado mestiço não resultava tão satisfatoriamente em mim como no numero dois de Adam, Darryl, que era africano (o seu pai era membro de uma tribo na África) e chinês, ao passo que eu era anglo-saxônica e nativa americana. Tenho os traços da minha mãe, que parecem um pouco fora do lugar no contexto do castanho e do castanho-escuro que herdei do meu pai.

Tim não era estupido. Como a maioria das pessoas que não se integram muito bem, provavelmente aprendera na escola que se uma pessoa bonita lhe prestasse muita atenção, havia outro motivo.

Não sou feia, mas não sou bonita. Sei como me arrumar, mas a maior parte das vezes não dou importância a isso. Essa noite as minhas roupas estavam limpas, mas não estava usando maquiagem e não tinha tido cuidado particular quando trançava o cabelo para que não viesse em meu rosto.

E tinha de ser obvio que estava gostando da conversa, ao pondo de ter me esquecido de que deveria estar recolhendo informações sobre a Futuro Feliz.

Tudo isso me passou pela cabeça durante o tempo em que precisou para retirar do rosto a dor e a raiva que vira nele. Mas não tinha importância. Não fazia a mais pálida ideia de como sair disso sem magoá-lo, coisa que ele não merecia.

Eu gostava dele, que diabos. Assim que se recompôs (o que precisou de algum esforço da minha parte), mostrou-se engraçado, inteligente e disposto a concordar comigo sem discutir até a exaustão, especialmente quando eu achava que ele estava mais certo do que errado. O que fazia dele uma pessoa melhor do que eu.

- Um pouco possessivo, não? - comentou. A sua voz era suave, mas os seus olhos inexpressivos.

Caiu queijo ralado sobre a mesa e me distrai com ele durante um tempo.

- Não costuma ser mau, mas nos conhecemos a muito tempo. Ele percebe quando estou me divertindo. - ali estava, se não outra coisa, pelo menos um sopro para o ego dele, pensei. - Não tinha uma discussão como aquela desde que sai da faculdade. - dificilmente poderia explicar que não o tinha seduzido de proposito sem causar embaraço a ambos, portanto isso foi o mais próximo que consegui.

Sorriu um pouco, embora não tenha chegado aos olhos.

- A maior parte dos meus amigos não saberia distinguir Troyes de Malory.

- Na verdade, nunca li de Troyes. - provavelmente o mais famoso dos autores medievais de histórias arturianas. - Frequentei uma disciplina de literatura medieval alemã e de Troyes era francês.

Encolheu os ombros... e em seguida balançou a cabeça e respirou fundo.

- Ouça, peço desculpas. Não era minha intenção ser rabugento contigo. Há um cara que conheço. Não somos próximos nem coisa parecida, mas ele foi assassinado ontem. Nunca estamos a espera que uma pessoa que conhecemos seja assassinada. Austin me trouxe aqui porque achou que os dois precisavam sair.

- Você conhecia aquele cara, o que era guarda na reserva? - perguntei. Agora teria de ser cuidadosa. Não achava que a minha ligação a Zee fosse merecedora de publicidade, mas também não queria mentir. Não queria magoá-lo ainda mais.

Acenou.

- Apesar de ser basicamente um idiota, não merecia que o matassem.

- Ouvi dizer que pegaram um Fae qualquer que eles consideram ser o responsável. - disse. - É uma coisa assustadora. Incomodaria qualquer pessoa.

Examinou o meu rosto e depois acenou.

- Ouça, talvez devesse encontrar Austin para irmos embora. São quase onze e ele tem que ir trabalhar amanha as seis. Mas se estiver interessada, eu e uns amigos vamos ter uma reunião na quarta-feira as seis da tarde. As coisas essa semana vão ter a tendência de serem um pouco diferentes. Nós costumávamos nos encontrar na casa de O’Donnell. Mas discutimos muito sobre História e folclore. Acho que você seria capaz de gostar. - hesitou e depois terminou um pouco com pressa. - É uma filiar local dos Cidadãos Para Um Futuro Feliz.

Recostei-me.

- Não sei...

- Não andamos por ai pondo bombas em carros ou coisa parecida. - explicou. - A única coisa que fazemos é conversar e escrever ao nosso congressista. - sorriu subitamente e o seu rosto se iluminou. - E à nossa congressista. Muito do que nós fazemos é investigação.

- Esse não é um papel um pouco estranho para você? - perguntei. - Quero dizer, você sabe galês e obviamente conhece todos os tipos de folclore. A maior parte das pessoas que conheço com essas características são...

- Apaixonados por fadas. - completou em tom neutro. - Vão para Nevada de férias e frequentam os bares Fae e pagar a prostitutas Fae para os fazerem acreditar durante uma hora ou duas que também não são humanos.

Ergui as sobrancelhas.

- Isso é um pouco duro, não?

- São idiotas. - respondeu. - Alguma vez leu os textos originais dos Irmãos Grimm? Os Fae não são jardineiros ou brownies de olhos grande e espirito dócil que se sacrificam pelas crianças ao seu cuidado. Vivem na floresta em casas de biscoitos e comem as crianças que seduzem. Atraem navios contra rochas e depois afogam os marinheiros sobreviventes.

Então, eu pensei, aqui estava a minha oportunidade. Ia investigar esse grupo e ver se sabiam alguma coisa que pudesse ajudar Zee? Ou ia recuar graciosamente e evitar magoar esse homem frágil e bem informado?

Zee era meu amigo e ia morrer se ninguém fizesse alguma coisa. Ao que sabia, eu era a única pessoa que estava fazendo alguma coisa.

- Isso são só histórias. - repliquei com a dose certa de hesitação.

- A bíblia também é. - disse solenemente. - Como todos os livros de Histórias que lemos também são. Aqueles contos de fadas passaram de geração em geração como um navio por pessoa que não sabiam ler nem escrever. Pessoas que queriam que seus filhos percebessem que os Fae são perigosos.

- Não há um único registro de um Fae condenado por causar mal a um humano. - disse, repetindo a informação oficial. - Não durante todos os anos que passaram desde que vieram a publico.

- Bons advogados. - disse convicto das palavras. - E suicídios suspeitos de Faes "que já não conseguiam suportar estar presos tão perto de barras de ferro frio".

Foi persuasivo, porque tinha razão.

- Ouça. - continuou. - Os Fae não morrem de amores pelos humanos. Nós para eles não somos nada. Até o Cristianismo e o ferro aparecerem, éramos brinquedos com prazo de validade curta com tendência para procriar com muita rapidez. Depois disso nos tornamos brinquedos com prazo de validade curto de natureza perigosa. Eles têm poder, Mercy, magia capaz de fazer coisas que nem imagina, mas está tudo lá nas histórias.

- Então porque não nos mataram? - perguntei. Na verdade não era uma pergunta vã. Vinha colocando essa questão a mim mesma a muito tempo. Segundo Zee, os Senhores Cinzentos eram incrivelmente poderosos. Se o Cristianismo e o ferro eram um veneno tão poderoso para eles, porque não estávamos mortos?

- Eles precisam de nós. - respondeu. - Os Fae puros não procriam com facilidade, se é que procriam. Precisa de se unir com outras espécies para permitir a sua continuidade. - colocou ambas as mãos sobre a mesa. - Nos odeiam por isso acima de tudo. São orgulhosos e arrogantes e nos odeiam porque precisam de nós. E no momento em que deixarem de precisar de nós, vão se livrar de nós como nós nos livramos das baratas e dos ratos.

Olhamos um ao outro, e ele conseguiu notar que eu acreditava nele porque retirou um bloquinho de papel e uma caneta do bolso de trás e arrancou uma folha de papel.

- A reunião vai ser na minha casa na quarta. Esse é o endereço. Acho que devia aparecer. - pegou minha mão e colocou a folha de papel.

No momento em que suas mãos envolveram a minha, senti a aproximação de Samuel. Colocou a mão em meu ombro.

Acenei para Tim.

- Obrigada por ter me feito companhia. - agradeci. - Foi uma noite interessante. Obrigada.

Samuel apertou a mão antes de soltá-la do meu ombro. Manteve-se atrás de mim enquanto eu saia da pizzaria. Abriu a porta do passageiro do seu carro e em seguida foi para o lado do motorista.

Aquele silencio nem parecia dele, e isso me preocupou.

Comecei a dizer qualquer coisa, mas levantou o braço em um pedido mudo para que eu me calasse. Não parecia zangado, o que na verdade me surpreendeu depois do que tinha feito diante de Tim. Mas não ligou o carro e nem arrancou.

- Eu te amo. - por fim disse, e não era um tom feliz.

- Eu sei. - senti um nó no estômago e esqueci por completo Tim e a Cidadãos Para Um Futuro Feliz. Não queria fazer isso agora. Não queria fazer isso nunca. - Eu também te amo. - na minha voz não havia mais alegria do que na dele.

Esticou o pescoço e ouvi as vértebras estalar.

- Nesse caso, porque não estou fazendo aquele bastando nerd em pedaços?

Engoli em seco. Seria aquilo uma pergunta com pegadinha? Haveria uma resposta certa?

- Hm.. Não parece estar muito zangado. - sugeri.

Esmurrou o painel do seu carro muito caro com uma velocidade que nem sequer vi a mão dele se mexer. Se não fosse revestido de couro, teria rachado.

Ocorreu-me dizer algo engraçado, mas decidi que não era apropriado agora. Aprendi umas coisinhas desde os dezesseis anos.

- Pelo visto estava enganada. - disse. Não. Afinal não aprendi nada.

Virou a cabeça lentamente em minha direção, os seus olhos como dois pedaços de gelo.

- Está rindo de mim?

Rapei a boca com a mão, mas não consegui evitar. Os meus ombros começaram a tremer porque de repente soltei a resposta para a sua pergunta. E isso me fez notar o motivo pelo qual se sentia perturbado com o fato de não estar em um estado de fúria assassina. Assim como eu, Samuel tivera uma revelação essa noite, e não estava feliz com ela.

- Desculpa. - acabei dizendo. - É uma merda, não é?

- O quê?

- Tinha um grande plano. Ia arranjar uma forma de ficar em minha casa e me seduzir com todo o cuidado. Mas na verdade não quer me seduzir. O que você quer mesmo é fazer festinhas, brincar e provocar. - exibi um sorriso largo, e ele deve ter conseguido sentir o cheiro do alivio que exalou de mim. - Eu não sou o amor da sua vida, sou do seu bando, e isso está consumindo o seu juízo.

Disse algo verdadeiramente rude enquanto ligava o carro, uma bela e antiga palavra inglesa.

Dei uma risadinha e ele voltou a soltar um palavrão.

O fato de ele na verdade não me considerar sua companheira respondia a muitas perguntas. E me fez compreender que Bran, que era simultaneamente o Marrok e o pai de Samuel, não sabia tudo, mesmo que ele e todas as outras pessoas achassem que sim. Bran foi quem me contou que o lobo de Samuel decidira que eu era sua companheira. Enganara-se: ia esfregar isso na sua cara da próxima vez que estivesse com ele.

Agora sabia por que que Samuel tinha conseguido se conter e não tinha atacado Adam durante todos esses meses. Tinha atribuído como causa para o autocontrole de Samuel, a magia resultante de ser mais dominante do que a maior parte dos lobos restantes no planeta. A verdadeira resposta era que eu não era companheira de Samuel. E uma vez que ele era mais dominante que Adam, o fato de não querer lutar faria com que fosse mais fácil para Adam se manter a distancia.

Samuel não me queria mais do que eu queria ele, não dessa forma. Oh, o elemento físico estava presente, faísca e efervescência de sobra. O que era desconcertante.

- Ei, Sam, se não me quer como sua companheira, porque que quando me beija eu fico ardendo? - porque que depois da primeira sensação de alivio ter terminado eu começara a me sentir irritada com o fato de ele de fato não me querer como companheira?

- Se eu fosse humano, o calor entre nós teria sido suficiente. - disse. - O maldito lobo tem pena de você e decidiu sair de cena.

Isso não fazia sentido algum.

- Desculpa?

Olhou para mim e notei que ainda estava zangado, os seus olhos brilhavam com uma fúria glacial. O lobo que existia em Samuel tem olhos branco-neve que são arrepiantes em um rosto humano.

- Porque ainda está zangado?

Encostou-se à beira da autoestrada e se fixou nas luzes de Home Depot.

- Escuta, eu sei que meu pai passa muito tempo tentando convencer os lobos novatos de que o humano e o lobo são duas metades de um todo, mas isso não é verdade. Simplesmente é mais fácil viver com essa ideia e a maior parte das vezes está tão perto de ser verdadeira que não importa. Mas somos diferentes, o lobo e o humano. Pensamos de forma diferente.

- OK. - disse. Consegui compreender mais ou menos. Parecia que várias vezes os meus instintos de coiote combatiam aquilo que eu precisava fazer.

Fechou os olhos.

- Quando tinha cerca de catorze anos e notei a dádiva que tinha caído em meu colo, te mostrei ao lobo e ele aprovou. A única coisa que tinha de fazer era te convencer, e a mim também. - se virou para me olhar decididamente nos olhos e estendeu o braço para tocar meu rosto. - Para uma verdadeira união não é necessário que a metade humana goste da parceira. Vê o caso do meu pai. Ele despreza a companheira dele, mas o lobo que existe nele decidiu que já tinha estado sozinho tempo suficiente.

Encolheu os ombros. - Talvez tivesse razão, porque quando a mãe de Charles morreu, pensei que meu pai ia morrer junto com ela.

Todo mundo sabia o quanto Bran tinha amado a sua parceira índia.

Acho que isso era parte do que fazia de Leah, a atual parceira de Bran, um pouco louca.

- Então é o lobo que determina a união. - disse. - Levando o homem ao longo da estrada quer ele queira quer não?

Sorriu.

- Não é assim tão ruim, exceto talvez no caso do meu pai, embora nunca tenha dito nada contra Leah. Jamais o faria, nem permitiria a ninguém que dissesse alguma coisa contra ela. Mas não estamos falando dele.

- Portanto, lançou o seu lobo em mim quando eu tinha catorze anos.

- Antes que mais alguém pudesse te declarar como companheira. Eu não era o único lobo antigo no bando do meu pai. E antigamente catorze anos não era uma idade incomum para o casamento. Não podia correr o risco de alguém se antecipar a mim. - baixou o vidro para permitir que o ar fresco da noite invadisse o carro abafado. O barulho do transito passando por nós aumentou drasticamente. - Eu esperei. - sussurrou. - Eu sabia que era muito nova, mas... - balançou a cabeça. - Quando partiu, foi um castigo justo. Ambos sabíamos disso, o lobo e eu. Mas certa noite, dei por mim fora de Portland onde o lobo se apoderou de nós. A necessidade... percorremos todo o caminho até o Texas para garantir que não havia a possibilidade de um encontro acidental. Sem a distancia... não sei se teria sido capaz de te deixar ir.

Então afinal Bran tinha razão em relação a Samuel. Não consegui suportar o ar fechado no seu rosto e coloquei a minha mão sobre a dele.

- Desculpa.

- Não devia se desculpar. Não teve culpa. - o seu sorriso largo no momento em que sua mão agarrou a minha com uma força que quase senti dor. - Normalmente as coisas correm melhor. O lobo é paciente e adaptável. Basicamente espera que a metade humana encontre alguém para amar e depois também a reivindica como sua companheira. Às vezes anos depois de casarem. Fiz o contrário de proposito e depois sofri as consequências. Não tem culpa. Eu sabia como eram as coisas.

Há algo de verdadeiramente perturbador em descobrir quão pouco se sabe de fato sobre uma coisa em relação a qual nos julgávamos especialistas. Eu cresci com lobisomens e tudo isso era novidade para mim.

- Mas o lobo que há em você já não me quer? - perguntei, soando patética. Não precisei que o riso dele me dissesse. - Estupido. - disse provocando-o.

- Pensava que nesse capítulo estava acima de todas as cenas de garotas. - replicou. - Você não me quer como seu companheiro, Mercy, portanto porque está aborrecida com o fato do meu lobo ter finalmente admitido a derrota?

Se ele soubesse o quanto aquela última frase me fez notar sobre o quão magoado ele estava por eu tê-lo rejeitado, creio que teria mordido a própria língua. Era melhor falar sobre o assunto, ou simplesmente não lhe prestar atenção?

Ei, podia ser mecânica e podia não usar maquiagem com muita frequência, mas não deixava de ser uma garota, estava na hora de falar.

Dei-lhe uma cotovelada.

- Eu te amo.

Cruzou os braços sobre o peito e inclinou-se para o lado de modo a conseguir me ver sem virar o pescoço.

- Ah é?

- Sim. Você é atraente, além de beijar muito bem. E se o seu pai não tivesse interferido, eu teria fugido contigo aquela vez.

O sorriso desapareceu do rosto, e não consegui notar o que ele estava sentindo. Nem pelo olhar nem pelo olfato, que normalmente é um melhor indicador. Talvez estivesse se sentindo tão confuso como eu.

- Mas agora eu sou uma pessoa diferente, Samuel. Já tomo conta de mim a muito tempo para permitir que outra pessoa o faça e com isso ser feliz. A garota que conheceu tinha certeza que você iria criar um lugar onde ela pertencesse, e você teria criado esse lugar. - tinha que dizer isso da forma certa. - Em vez disso, criei um lugar para mim mesma e o processo se transformou naquilo que sou. Não sou o tipo de pessoa com que pudesse ser feliz, Samuel.

- Eu sou feliz contigo. - disse teimosamente.

- Como companheiro de casa. - disse. - Como companheiro de bando. Como companheiro companheiro seria infeliz.

Riu.

- Companheiro companheiro?

Acenei.

- Você sabe o que quero dizer.

- E está apaixonada por Adam. - afirmou baixinho, depois deixou um toque de humor na voz. - É bom que não fique paquerando com aquele nerd em frente ao Adam.

Levantei o queixo, eu não ia me sentir culpada. Nem tão pouco compreendida aos meus sentimentos por Adam ao ponto de discuti-los essa noite.

- E você não está apaixonado por mim. - notei algo mais e isso me fez exibir um sorriso a Samuel. - Lobo ou não, não está apaixonado por mim, caso contrário não sentiria tanta vontade de provocar Adam durante todo esse tempo.

- Eu não andei provocando Adam. - replicou ofendido. - Andei te cortejando.

- Não. - disse, recostando no assento. - Andou atormentando Adam.

- Não andei. - ligou o carro e se meteu agressivamente no meio do transito.

- Está dirigindo no excesso de velocidade. - disse presunçosa.

Virou a cabeça com o intuito de me dizer algo que me pusesse no meu lugar, mas precisamente nessa hora a polícia atrás de nós ligou as sirenes.

Estávamos quase chegando em casa quando deixou de lado o papel de ofendido.

- Está bem. - disse, relaxando as mãos no volante. - Está bem.

- Não sei porque ficou tão zangado. Nem sequer pegou uma multa. Trinta quilômetros acima da velocidade e só recebeu uma advertência. Deve ser porque é médico.

Assim que a policial o reconheceu, foi toda simpática. Aparentemente, Samuel cuidara do seu irmão depois de um acidente de carro.

- Eu faço a manutenção dos carros de dois policiais. - murmurei. - Talvez se eu desse encima deles...

- Eu não estava dando encima dela. - disparou.

Ele normalmente não era tão fácil. Instalei-me para me divertir de verdade.

- Pelo menos ela estava claramente receptiva, Dr. Cornick. - disse, embora isso não tivesse acontecido de verdade. Ainda assim...

- Ela também não estava receptiva.

- Está novamente dirigindo acima da velocidade.

Grunhiu.

Dei uma palmadinha na perna.

- Viu? Não ia querer me ter como companheira.

Abrandou quando saímos da autoestrada para entrarmos em Kennewick e tivemos de percorrer as ruas da cidade durante algum tempo.

- Você é terrível. - manifestou.

Sorri afetada.

- Me acusou de paquerar com Tim.

Rosnou.

- Estava paquerando. Só porque eu não o desfiz em pedaços não quer dizer que não esteva pescando em aguas turvas, Mercy. Se a sua companhia dessa noite fosse Adam, aquele rapaz iria estar servindo de alimento aos peixes, ou para os lobos. E não estou brincando.

Voltei a dar uma palmadinha em sua perna e respirei fundo.

- Não era minha intenção que aquilo fosse um flerte, simplesmente deixe-me envolver na conversa. Devia ter sido mais cuidadosa com um rapaz vulnerável como ele.

- Ele não é um rapaz. Ficaria surpreso se ele fosse cinco anos mais novo do que você.

- Algumas pessoas são rapazes durante mais tempo do que outras. - pronunciei. - E tanto aquele rapaz como o amigo dele estiveram na casa de O’Donnell não muito antes de ele ter sido assassinado.

Contei a história toda a Samuel, desde a hora em que Zee foi me buscar até ter ficado com o papel que Tim me dera. Se deixei alguma coisa de fora, foi por achar que não era importante. Só não lhe contei que Austin Summers provavelmente era irmão de um dos garotos que agredira Jesse. Samuel podia ter um temperamento mais fácil do que Adam, mas seria capaz de matar os dois rapazes sem uma ponte de remorso. No mundo dele, não se batia em garotas. Tinha que surgir um castigo adequado, mas não achava que alguém devesse morrer por causa disso. Pelo menos desde que não voltassem a incomodar Jesse.

Essa foi a única coisa que deixei de fora. Tanto Zee como Tio Mike tinham me deixado sozinha nessa investigação. OK, tinham me dito para não investigar, o que acabava por significar a mesma coisa. Proceder sem qualquer ajuda dos Fae tornava a investigação mais arriscada do que se estivesse na sua colaboração, e Zee já tinha ficado chateado comigo por eu ter partilhado as coisas que partilhei com a advogada. Revelar mais coisas não ia deixa-lo mais zangado. O tempo de guardar segredos estritamente para mim tinha chegado ao fim.

Se havia uma coisa que tinha aprendido nos últimos e interessantes (no sentido da velha maldição chinesa "Que vivas tempos interessantes") meses, era que quando as coisas começavam a ficar perigosas, era importante que outras pessoas soubessem tanto como você. Desse modo, quando acabasse causando estupidamente a minha morte, alguém teria um ponto de partida para procurar a pessoa que tivesse me assassinado.

Quando acabei de lhe contar tudo, estávamos sentados na sala de estar bebendo chocolate.

A primeira coisa que Samuel disse foi: - Tem um verdadeiro dom para se meter em problemas, não é? Essa foi uma coisa que esqueci quando abandonou o bando.

- Que culpa eu tenho nisso? - perguntei ardorosamente.

Suspirou.

- Não sei. Interessa mesmo saber de quem é a culpa quando se está no meio do problema? - lançou um olha desesperado. - E como o meu pai costumava realçar, são muito frequentes as vezes em que da por ti em meio dos problemas para que se trate de algo puramente acidental.

Deixei de lado a ânsia de me defender. Durante mais de uma década tinha conseguido manter as coisas em segredo, vivendo como humana no contexto de uma sociedade de lobisomens (e isso apenas a pedido do Marrok, Adam decidiu interferir na minha vida mesmo antes de ter construído uma casa atrás da minha). Fora o problema de Adam que dera inicio a tudo. Depois tinha ficado em dívida para com os vampiros por terem me ajudado a resolver os problemas de Adam. Ter resolvido isso, me deixava em divida com os Fae.

Mas estava cansada, tinha que me levantar e trabalhar no dia seguinte, e se começasse a explicar, levaria horas até que voltássemos a ter uma discussão útil.

- Portanto, eu dando por mim no meio do problema uma vez mais, vim me aconselhar contigo. - repliquei. - Por exemplo, talvez possa me dizer porque que nem Tio Mike e nem Zee queriam falar do homem do mar ou explicar a existência de uma floresta e de um oceano. - de todo um oceano. - Impecavelmente encaixados em um jardim traseiro em um banheiro. E se algumas dessas coisas pode ter algum tipo de relação com a morte de O’Donnell.

Olhou para mim.

- Oh, por favor. - disse. - Eu vi a sua cara quando te falei das coisas engraçadas que aconteciam na reserva. É galês, pelo amor de Deus. Você sabe coisas dos Fae.

- Você é índia. - replicou em um falsete que acredito que se destinava a me imitar. - Sabe seguir pistas de animais e fazer fogueiras só com paus e galhos?

Dirigi-lhe um olhar altivo.

- Por acaso até sei. Charles, que também é índio, me ensinou.

Acenou com a mão, reconheci o gesto como um dos meus. Depois ri.

- Tudo bem. Tudo bem. Mas não sou um especialista em Fae só porque sou galês.

- Nesse caso me explica aquela expressão de "ah-há" na sua cara quando te falei da floresta.

- Se foi a Underhill, confirmou uma das teorias do meu pai sobre o que os Fae andam fazendo com as reservas deles.

- Como assim?

- Quando os Fae propuseram pela primeira vez que o governo os pusesse em reservas, meu pai disse que achava que eles talvez estivesse tentando criar territórios como a tempos fizeram na Grã-Bretanha e em partes da Europa, antes de os cristãos terem aparecido e começado a arruinar os seus locais de poder através da construção de capelas e catedrais. Os Fae não valorizavam as suas âncoras nesse mundo porque a magia deles funciona muito melhor em Underhill. Quando tentaram defender os seus lugares já era tarde demais. O meu pai acredita que o último portão para Underhill desapareceu em meados do século XVI, retirando-lhes muito do poder que tinham.

- Portanto criaram novas âncoras. - conclui.

- E encontraram Underhill novamente. - encolheu os ombros. - Quanto a não falar sobre o homem do mar... bom, se ele for perigoso e poderoso... não se deve falar de coisas como essa, ou nomeá-las. Pode atrair a atenção delas.

Fiquei pensando por um momento.

- Consigo notar que queiram manter o assunto em segredo se descobriram uma forma de readquirir algum do poder que perderam. Então isso tem alguma coisa a ver com descobrir quem matou O’Donnell? Ele descobriu isso? Ou estava roubando? E, se assim foi, o que ele roubou?

Olhou-me meditativamente.

- Ainda está tentando encontrar o assassino mesmo depois de Zee ter se revelado ser um bastardo?

- O que você faria se, para se defender de uma acusação forjada qualquer, dissesse a um advogado que você era o filho do Marrok?

Ergueu as sobrancelhas.

- Certamente ter contado que estava acontecendo mortes na reserva não tem comparação?

Encolhi triste os ombros.

- Não sei. Devia tê-lo consultado, ou Tio Mike, antes de ter dito alguma coisa a quem quer que fosse.

Franziu a sobrancelha, mas não discutiu mais.

- Ei. - disse com um suspiro. - Uma vez que agora somos amigos e elementos do bando em vez de potenciais companheiros, será que podia me emprestar dinheiro para pagar Zee o que ainda lhe devo da oficina? - Zee não fazia ameaças. Se disse a advogada para me transmitir a informação de que estava a espera do pagamento é porque falava sério. - Posso devolvê-lo da mesma forma de pagamento que estava usando com ele. O total do dinheiro seria devolvido, com juros, daqui a dez anos.

- Certamente arranjará uma solução. - Samuel disse simpaticamente, como se tivesse compreendido que a minha mudança de assunto se devia ao fato de eu não suportar falar mais sobre Zee e a minha estupidez. - Tem uma linha de crédito muito sólida comigo, e, com o meu pai, cujos bolsos estão bem recheados do que os meus. Parece exausta. Porque não vai dormir?

- Tudo bem. - respondi. Dormir parecia bem. Levantei-me e gemi quando o músculo da coxa, que tinha maltratado no treino de karatê ontem, protestou.

- Vou sair por um minutinho. - Samuel enunciou de forma exagerada, e detive o passo a caminho do quarto.

- Até parece que vai.

As sobrancelhas chegaram a raiz dos cabelos.

- Como?

- Você não vai dizer a Adam que basta ele querer que eu sou dele.

- Mercy. - levantou-se, caminhou em minha direção em passos largos e me beijou na testa. - Não pode interferir em nada do que eu faço ou deixo de fazer. Isso é entre mim e Adam.

Saiu, batendo suavemente a porta atrás de si. E deixando-me com repentina e assustadora consciência de que acabara de perder a minha melhor defesa contra Adam.


8

O meu quarto estava escuro, mas não me dei ao trabalho de acender a luz. Tinha coisas piores do que a escuridão para me preocupar.

Dirigi-me para o banheiro e tomei uma ducha quente. Na hora em que a água esfriou e eu sai, sabia duas coisas. A primeira era que só ia ter algum tempo até ter que encarar Adam. De outro modo ele já estaria a minha espera e o meu quarto estava vazio. A segunda era que eu não podia fazer nada em relação a Adam ou Zee até amanhã, portanto mais me valia ir dormir.

Penteei o cabelo e usei o secador até que ficasse apenas úmido. Depois trancei para que pudesse penteá-lo de manhã.

Puxei os cobertores para trás, colocando no chão a bengala que estava sobre eles. Antes de Samuel ter se mudado para a minha casa, costumava dormir sem cobertas no verão. Mas ele mantinha o ar condicionado programado para temperaturas baixas até se sentir frio, especialmente a noite.

Meti-me na cama, puxei os cobertores até o queixo e fechei os olhos.

Porque a bengala estava na minha cama afinal?

Sentei-me e olhei para a bengala no chão. Mesmo na escuridão notei que era a mesma bengala que tinha encontrado na casa de O’Donnell. Com todo o cuidado para não pisar nele, sai da cama e acendi a luz.

A bengala cinzenta de madeira espiralada estava inocuamente no chão, por cima de uma meia cinza e uma blusa suja. Inclinei-me e toquei-a cautelosamente. Senti a madeira dura e fria nas pontas dos dedos, sem o ímpeto de magia que verificara na casa de O’Donnell. Por momentos deu a sensação de ser como qualquer outra bengala, mas depois um ligeiro indicio de magia pulsou e desapareceu.

Procurei o celular e liguei para o numero que Tio Mike vinha me ligando. Tocou durante muito tempo até alguém atender.

- Bar Tio Mike. - atendeu uma voz não muito simpática de um desconhecido, quase incompreensível no meio de uma cacofonia de musica heavy metal, vozes e um súbito estrondo barulhento, como se alguém tivesse deixado cair uma pilha de louça. - Merda. Limpe isso. O que você quer?

Presumi que apenas a ultima frase era dirigida a mim.

- Tio Mike está? - perguntei. - Diga-lhe que é a Mercy e que tenho uma coisa que talvez possa lhe interessar.

- Um momento.

Alguém disparou varias palavras duras em Francês e depois gritou: - Tio Mike, telefone!

Alguém berrou: - Tirem o troll daqui.

Logo a seguir escutei alguém com uma voz muito grave murmurar: - Gostaria de ver você tentar tirar o troll daqui. Comeria seu rosto e cuspiria seus dentes.

Depois a simpática voz irlandesa do Tio Mike disse: - Aqui é o Tio Mike. Em que posso ser útil?

- Não sei. - respondi. - Tenho comigo uma bengala que alguém deixou na minha cama essa noite.

- Você sabe? - disse muito baixo. - Sabe?

- O que devo fazer com ela? - perguntei.

- O que ela permitir que você faça. - respondeu em um tom estranho. Depois clareou a voz e voltou ao seu habitual eu divertido. - Não, eu sei o que você está perguntando. Acho que vou ligar para uma pessoa e ver o que eles gostariam que fosse feito. Provavelmente também vão buscá-lo dessa vez. Já é muito tarde para você ficar a espera que eles apareçam. Porque não o deixa lá fora? Encoste-o a parede da sua casa. Não vai haver problema algum se ninguém pegar ele. E se alguém fizer isso, nesse caso eles não vão incomodar você ou o lobo, não é verdade?

- Tem certeza?

- Sim, garota. Agora tenho que cuidar de um troll. Coloque-o lá fora. - desligou.

Voltei a vestir as roupas e levei a bengala para fora. Samuel ainda não tinha voltando, e as luzes na casa de Adam ainda estavam acesas. Encarei a bengala durante alguns minutos, me perguntando quem o teria colocado sobre a minha cama e o que pretendia. Finalmente encostei-a ao novo revestimento do trailer e voltei para a cama.

A bengala tinha desaparecido e Samuel estava dormindo quando me levantei na manhã seguinte. Estive a beira de acordá-lo para saber o que tinha dito a Adam, ou se tinha reparado na pessoa que tinha levado a bengala, mas sendo ele um médico de E.R, havia horas em que o horário era brutal. Se ter ficado olhando para ele fixamente não o tinha acordado, era porque estava precisando dormir. Em breve descobriria o que tinha acontecido.

O SUV de Adam estava parado em frente a porta principal da minha oficina quando cheguei lá. Estacionei o mais longe possível, no lado oposto do estacionamento, que era onde normalmente estacionava.

Saiu do carro na hora em que parei e estava encostado na porta do motorista quando me aproximei dele.

Nunca vi um lobisomem fora de forma ou gordo, o lobo é muito inquieto para isso. Ainda assim, Adam era mais vigoroso do que o normal, embora não volumoso. Era um pouco menos moreno do que eu, mas, apesar disso, tinha um bronzeado acentuado e um cabelo castanho-escuro um pouco maior do que o estilo militar. As suas maçãs do rosto faziam com que a boca parecesse um pouco estreita, mas isso não diminuía a sua beleza. Não parecia um Deus grego... mas se houvesse deuses eslavos, seria um forte candidato. Nesse momento a boca estreita estava em uma linha amarga.

Aproximei de forma cautelosa, e desejei saber o que Samuel tinha lhe dito. Comecei a falar qualquer coisa quando me dei conta de que havia algo de diferente na porta. A tranca ainda estava lá, mas ao seu lado se encontrava um novo teclado numérico de cor preta. Adam esperou em silencio enquanto eu analisava os reluzentes botões prateados.

Cruzei os braços e virei novamente para ele.

Após alguns minutos, Adam dirigiu-me um meio sorriso de satisfação embora seus olhos estivesse muito atentos para veicularem um divertimento verdadeiro.

- Você reclamou dos guardas. - explicou.

- E porque instalou um alarme sem me pedir? - perguntei em um tom rígido.

- Não é só um alarme. - disse já sem o sorriso no rosto, como se ele nunca tivesse estado lá. - A segurança é a minha forma de sustento. Há câmeras no estacionamento e dentro da oficina também.

Não perguntei como tinha entrado. Como ele mesmo dissera, a segurança era o ramo dele.

- Não costuma trabalhar com o governo e coisas um pouco mais importantes do que uma oficina de VW? Calculo que fosse possível alguém forçar a entrada e roubar o dinheiro todo que está no cofre. Talvez uns quinhentos dólares se tiver sorte. Ou talvez roubasse uma caixa de velocidades para o Beetle 72 deles? O que você acha?

Não se deu ao trabalho de responder a minha pergunta sarcástica.

- Se abrir a porta sem usar o código, um alarme físico vai soar e um dos membros da minha equipe vai ser avisado de que o alarme disparou. - falou em uma voz rápida e clara, como se eu não tivesse dito nada. - Tem dois minutos para desliga-lo. Se o fizer, a minha equipe vai ligar para a oficina para confirmar que foi você ou Gabriel quem desligou o alarme. Se não for desligado, eles vão me notificar e a polícia.

Calou-se como se a espera de uma resposta. Ergui uma sobrancelha. Os lobisomens são impetuosos. Tive muito tempo para me habituar a isso, mas isso não quer dizer que tenha que gostar.

- O código são quatro números. - explicou. - Se digitar a data do aniversario de Jesse, mês-mês-dia-dia, o alarme é desativado. - não me perguntou se eu sabia a data de aniversario, que por acaso sabia. - Se marcar a data do seu aniversario, um sinal de alerta vai ser emitido para a minha equipe e eles vão me ligar. Nesse caso vou partir do pressuposto de que está em um problema no qual não quer ver a polícia envolvida.

Cerrei os dentes.

- Não preciso de um sistema de segurança.

- Há câmeras. - prosseguiu, ignorando as minhas palavras. - Cinco no estacionamento, quatro na oficina e duas no escritório. Das seis horas da tarde às seis da manha vão gravar quando houver alguma coisa se mexendo. Das seis da manha às seis da tarde, as câmeras vão estar desligadas, embora eu possa mudar isso se quiser. As câmeras gravam em DVDs. Deve substitui-los todas as semanas. Vou mandar alguém aqui hoje a tarde para te mostrar e à Gabriel como tudo funciona.

- Pode mandá-los para tirar o sistema. - disse.

- Mercedes. - replicou. - Nesse momento não estou muito contente em relação a você. Não me pressione.

Que razão ele tinha para estar descontente comigo?

- Muito conveniente, não? - disparei. - Também não estou contente em relação a você. Não preciso disso. - acenei com a mão, indicando as câmeras e o teclado numérico.

Afastou-se do SUV com o auxilio dos braços e veio rápido em minha direção. Sabia que não estava zangado ao ponto de me machucar, mas ainda assim recuei até encostar-se à parede da oficina. Colocou uma mão de cada lado do meu corpo e inclinou-se até sentir a sua respiração.

Ninguém podia dizer que Adam não sabia como intimidar as pessoas.

- Talvez esteja enganado. - começou friamente. - Talvez Samuel esteja mal informado e você não anda investigando os Fae sem a colaboração deles ou a aprovação de Zee ou de Tio Mike, de quem será razoável esperar que venha estar de olho em você se souber.

O calor do seu corpo não devia ter me feito sentir bem. Estava zangado e tinha todos os músculos tensos. Era como ter inclinado sobre mim um tijolo muito pesado e quente. Um tijolo sexy.

- Talvez, Mercedes. - pronunciou em uma voz que era como gelo. - A noite passada não tenham te proposto ir em uma reunião da Futuro Feliz, um grupo que esteve ligado a incidentes violentos em número suficiente para deixar os Fae, que estão de olho em você, de certo modo preocupados. Especialmente desde que descobriu uma série de coisas que eles preferiam manter segredo. Tenho certeza que vão ficar extremamente contentes quando descobrirem que contou ao filho do Marrok tudo o que sabe sobre a reserva, e que devia ter mantido em segredo. - a frieza tinha desaparecido da sua voz quando terminou, e em seu rosto quase não existia raiva.

- Humm...

- Os Fae não são propriamente cooperantes a maior parte das vezes, mas mesmo eles poderão eventualmente hesitar em te fazer alguma coisa se Samuel ou eu aparecermos. Confio na sua capacidade de sobreviver até um de nós chegar aqui. - curvou-se e me beijou energicamente uma vez, um beijo rápido que tinha acabado quase antes de ter começado. Possessivo e quase punitivo. Nada que devesse ter feito o meu pulso disparar. - E não pense que esqueci que os vampiros também tem uma boa razão para não estarem satisfeitos contigo. - então voltou a me beijar.

Assim que seus lábios tocaram os meus pela segunda vez, notei que Samuel, além de ter relatado tudo o que tinha contado, também tinha informado Adam de que já não estava interessado em ser meu companheiro.

Não tinha noção do quanto Adam tinha se controlado até ali.

Quando se afastou, estava corado e arquejava tanto como eu. Esticou o braço e pressionar quatro números com a mão esquerda.

- Há um manual de instruções ao lado da caixa registradora, se quiser ler. Se não quiser, o meu empregado pode responder todas as perguntas que tiver. - a voz dele muito grave e notei que estava a beira de perder o controle. Quando se afastou, escalou para o interior do SUV, devia ter me sentido aliviada.

Permaneci no mesmo lugar, encostada ao edifício, até deixar de ouvir o motor.

Se ele quisesse me possuir ali e naquele momento, eu teria deixado. Teria feito qualquer coisa pelo seu toque, qualquer coisa para agradá-lo.

Adam me assustava mais do que os vampiros, mais do que os Fae. Porque Adam podia roubar mais do que a minha vida. Adam era o único Alfa que eu conhecia, incluindo o próprio Marrok, capaz de me fazer cumprir as suas ordens contra a minha vontade.

Precisei de três tentativas até conseguir enfiar a chave na fechadura.

Segunda era o meu dia mais atarefado, e esse não foi exceção. Podia ser o Dia do Trabalhador, mas os meus clientes sabiam que normalmente a oficina estava aberta de forma não oficial quase todos os sábados e feriados. O segurança que trabalhava para Adam, que não era um dos lobos, apareceu pouco depois do almoço. Mostrou a mim e a Gabriel, como trocar os DVDs.

- Isso é melhor do que cassetes. - afirmou com mais entusiasmo infantil do que seria de esperar de um homem de cinquenta anos com tatuagens dos fuzileiros navais nos braços. - As pessoas normalmente não trocam de cassete muitas vezes, por isso as imagens gravadas são muito granulosas e não servem de muito, ou então acontece de gravarem por cima de um incidente importante sem notarem isso. Os DVDs são melhores. Esses não são regraváveis. Quando ficam cheios, mudam automaticamente para um disco secundário. Uma vez que só vai ativá-los quando não estiver aqui, provavelmente só vão encher o disco daqui a uma semana. Portanto só tem que muda-los uma vez por semana. A maior parte das pessoas faz isso as segundas ou as sextas. Depois os armazena durante alguns meses antes de jogá-los fora. No caso de acontecer alguma coisa ao sistema aqui, o chefe também está gravando remotamente. - era obvio que adorava o seu emprego.

Após algumas instruções adicionais e alguma conversa de vendedor para se certificar de que estávamos satisfeitos com o que tínhamos, o empregado de Adam foi embora com um aceno animado.

- Não se preocupe. - disse Gabriel. - Eu os mudo para você.

Estava tão contente por brincar com os novos brinquedos como o técnico.

- Obrigada. - repliquei carrancuda, descontente em relação a parte que o chefe também está gravando remotamente. - Faça isso. Eu vou descarregar a minha fúria naquele Passat.

Quando houve uma calmaria no aparecimento dos clientes, por volta das duas da tarde, Gabriel voltou a oficina. Andava ensinando algumas coisinhas aqui e ali. Ele ia para a faculdade, não ia se tornar mecânico, mas queria aprender.

- Para alguém que acabou de gastar uma fortuna em um sistema de segurança, não parece lá muito feliz. - comentou. - Acontece alguma coisa que eu deva saber?

Tirei um fio de cabelo dos olhos, deixando com certeza um rastro da imundície que cobria cada centímetro do motor de trinta anos em que estava trabalhando e que estava fazendo um bom trabalho em cobrir cada centímetro de mim também.

- Nada com que tenha que se preocupar. - respondi depois de um tempo. - Se achasse que havia um problema, teria te avisado. Tem sobretudo a ver com o exagero de Adam.

E era um exagero, concluíra depois de pensar arduamente sobre as coisas durante toda a manha. Só um imbecil acreditaria que eu iria me reunir com a Futuro Feliz com o proposito de protestar contra os Fae e tinha certeza que os Fae estúpidos não duravam muito tempo. Se falassem com o Tio Mike, ou com Zee (mesmo que ainda estivesse zangado), perceberiam que ainda estava tentando salvar Zee.

Podia saber algumas coisas que faziam os Fae se sentir desconfortáveis, mas se me quisessem morta por causa disso, eu já estaria morta.

Gabriel assobiou.

- O pai da Jesse instalou todo o sistema de segurança sem falar contigo? Isso me parece muito agressivo. - me dirigiu um olhar preocupado. - Eu gosto dele, Mercy. Mas se estiver te perseguindo...

- Não. - ele se afastaria se eu dissesse para fazê-lo. - Ele acha que tem razões para fazer o que está fazendo. - suspirei. As coisas estavam ficando cada vez mais complicadas. Não podia envolver Gabriel nessa trapalhada.

- Tem alguma coisa a ver com a prisão de Zee? - Gabriel riu do meu olhar. - Jesse ontem me avisou que você estaria preocupada. - Zee não fez aquilo, claro. - a convicção na sua voz evidenciou quão inocente Gabriel ainda era: jamais lhe ocorreria que a única razão pela qual Zee não tinha matado O’Donnell se devia ao fato de alguém ter chegado lá primeiro.

- Adam tem receio que eu esteja mexendo em um vespeiro. - disse. - E provavelmente tem razão. - na verdade não estava zangada com a questão do sistema de segurança. Era algo que eu não tinha como pagar, e era uma boa ideia.

Fico sempre zangada quando estou com medo e Adam me apavorava. Quando estava por perto, era tudo o que podia fazer para não andar atrás dele a espera de ordens como um belo cão pastor. Mas eu não queria ser um cão pastor. E Adam não queria isso tampouco.

Eis algo que Gabriel não precisava saber.

- Peço desculpa por estar com esse mau humor. Estou preocupada como o Zee, e o sistema de segurança serviu de pretexto para eu esbravejar.

- Tudo bem. - Gabriel replicou.

- Veio para me ajudar com esse motor ou só para conversar?

Gabriel olhou para o carro em que eu estava trabalhando.

- Existe um motor ai dentro?

- Em algum lugar. - suspirei. - Vai cuidar da papelada. Eu te chamo se precisar de ajuda, mas não há razão para ficarmos sujos se não preciso de você.

- Não me importo. - retorquiu.

Nunca se queixava do trabalho, independentemente do que pedisse para fazer.

- Tudo bem. Eu consigo cuidar disso.

O meu celular tocou cerca de quinze minutos depois, mas as minhas mãos estavam muito gordurosas para que pudesse atendê-lo, por isso deixei que fosse para a caixa de mensagens enquanto tentava limpar o motor para conseguir descobrir de onde estava saindo todo aquele óleo.

Estava quase na hora de desistir e já tinha mandado Gabriel para casa quando Tony entrou na oficina pela porta da frente.

- Ei, Mercy. - disse.

Tony é meio italiano, meio venezuelano, e tudo aquilo que decidir ser em um certo momento. Faz a maior parte do seu trabalho sob disfarce porque é um camaleão. Tinha feito um trabalho na Escola Secundária de Nennewick se fazendo passar por um aluno dez ou quinze anos mais novo, e Gabriel, que conhecia Tony muito bem porque a mãe de Gabriel trabalhava como despachante da polícia, não o reconhecera.

Hoje Tony era polícia por inteiro. A expressão controlada no seu rosto significava que tinha aparecido por questões profissionais. E trazia companhia. Uma mulher alta em calças de ganga e camisa, tinha uma mão enfiada debaixo do cotovelo dele e a outra segurava firmemente a coleira de couro de um Golden retriever. As vezes os cães e eu temos uma relação problemática. Suponho que consigam farejar o coiote, mas os retriever são muito amigáveis e alegres para serem um problema. Agitou a cauda e produziu um suave latido.

O cabelo da mulher era castanho-escuro e pendia em suaves caracóis até a altura dos ombros. No seu rosto não havia nada de notável exceto os óculos opacos.

Era cega, e era um Fae. Pensei no Fae que eu tinha cruzado recentemente. Não parecia ser alguém capaz de se transformar em um corvo, mas na verdade eu também não me parecia com um coiote.

Esperei que o poder que sentira no corvo me varresse, mas nada aconteceu. Para todos os meus sentidos, ela não era mais do que aparentava ser.

Limpei o suor da testa e sequei a mão no meu macacão de trabalho. - Ei, Tony, o que conta?

- Mercedes Thompson, gostaria de te apresentar a Dra. Stacy Altman do Departamento de Estudos Folclóricos da Universidade do Oregon. Ela é nossa consultora nesse caso. Dra. Altman, apresento-lhe Mercedes Thompson, que certamente lhe apertaria a mão se não estivesse coberta de graxa.

- Prazer em conhecê-la. - novamente.

- Sra. Thompson. - disse. - Perguntei ao Tony se não se importava que nos apresentasse. - deu uma palmadinha no braço de Tony quando pronunciou o seu nome. - Ao que sei, não acredita que o Fae preso pela polícia seja o culpado: embora tivesse motivo, meios e oportunidade. E tivesse sido encontrado ao lado do corpo recém-assassinado.

Contrai os lábios. Não tinha certeza de qual era o seu jogo, mas não ia permitir que ela despachasse Zee para a cadeia.

- Isso mesmo. O Fae que estava com ele na hora me contou. Zee não é incompetente. Se tivesse matado O’Donnel, ninguém teria descoberto.

- A polícia o surpreendeu. - sua voz era fria e precisa sem qualquer tipo de sotaque. - Um vizinho ouviu alguém lutar e chamou a polícia.

Ergui uma sobrancelha.

- Se tivesse sido Zee, não teriam ouvido nada, e se tivesse ouvido, Zee teria desaparecido muito antes da polícia aparecer. Zee não comete erros estúpidos.

- Na verdade. - interveio Tony com um breve sorriso. - O vizinho que ligou diz que viu o veiculo que Zee dirigia ser estacionado em frente a casa depois de ter ligado a polícia por ter ouvido alguém gritar.

A doutora que era um dos Senhores Cinzentos não tinha conhecimento da história do vizinho até Tony ter contado. Vi os lábios dela comprimirem de raiva. Tony não devia gostar dela, considerando que jamais faria algo semelhante a alguém de quem gostasse.

- Assim sendo, porque esta se esforçando tanto para colocar a culpa em Zee? - perguntei. - Não cabe a polícia encontrar o culpado?

- Porque está se esforçando tanto para defendê-lo? - replicou. - Porque era seu amigo? Não parece apreciar muito os seus esforços.

- Porque não foi ele. - respondi, como se estivesse surpresa por ela me colocar uma pergunta tão estupida. A julgar pela forma como se retesou, era tão fácil de irritar como Adam. - O que a preocupa? Não faz diferença se a polícia trabalhar um pouco mais. Acha que ter um Fae é melhor do que investigar a reserva a procura do culpado?

O seu rosto se contraiu e a magia se intensificou no ar. Era para impedir que a reserva fosse investigada que ela estava aqui, pensei. Pretendia uma execução rápida, talvez fosse de esperar que Zee se enforcasse e poupasse a todos a publicidade de um julgamento e o inconveniente de uma investigação que colocasse os narizes de intrusos na reserva. Estava aqui para garantir que não houvesse problemas.

Assim como eu.

Considerei-a e depois me virei para Tony.

- Colocou alguém para vigiar Zee para que ele não se suicidasse? Os Fae não se dão bem em jaulas de ferro.

Balançou a cabeça enquanto a boca da Dra. Altman se estreitava.

- A Dra. Altman disse que, como gremlin, o Sr. Adelbertsmiter não teria problemas com o metal. Mas se acha que devo por alguém para vigiá-lo, posso fazê-lo.

- Por favor. - disse. - Estou muito preocupada. - não seria infalível, mas tornaria mais difícil a tarefa de matá-lo.

Os olhos de Tony estavam atentos quando se desviaram de mim e se concentraram na Dra. Altman. Era um policial muito bom para não reparar nas correntes invisíveis que passavam entre mim e ela. Provavelmente até sabia que o que me incomodava não era a possibilidade de suicídio.

- Não me disse que tinha umas questões para colocar a Mercedes, Dra. Altman? - sugeriu com uma brandura enganadora.

- Com certeza. - respondeu. - A polícia daqui parece respeitar a sua opinião sobre os Fae, mas não sabem quais são as suas credenciais, além do fato de ter trabalhado com o Sr. Adelbertsmiter.

Ah, uma tentativa de me desacreditar. Se estava a espera de me deixar nervosa, não me conhecia muito bem. Qualquer mulher mecânica sabe como reagir a esse tipo de ataque.

Sorri simpaticamente.

- Sou licenciada em História e leio, Dra. Altman. Por exemplo, sei que a designação gremlim não existia até Zee ter decidido atribuir a si mesmo esse nome. E agora, se me der licença, é melhor eu voltar ao trabalho. Prometi que esse carro estaria pronto hoje. - virei-me para fazer precisamente isso e tropecei em uma vara que estava no chão.

Tony lançou uma mão ao meu cotovelo para me ajudar a ficar de pé.

- Torceu o tornozelo? - perguntou.

- Não, estou bem. - disse, franzindo a sobrancelha a bengala Fae que aparecera no chão da minha oficina. - É melhor me largar senão vai ficar cheio de graxa.

- Tudo bem. Um pouco de sujeira até serve para impressionar os agentes mais novos.

- O que aconteceu? - perguntou a Dra. Altman, como se a sua cegueira fosse algo que a impedisse de notar o que acontecia a sua volta. Coisa que eu estava segura que não era. Reparei que o cão dela encarava intensamente a bengala. Talvez usasse de fato o cão para ajudar a ver.

- Ela tropeçou em uma bengala. Vi Tony, que se afastara da Dra. Altman para me pegar quando tinha tropeçado, curvou-se, pegou a bengala e colocou-a no meu balcão. - Isso é uma bela peça, Mercy. O que estaria uma bengala, que nesse caso é uma antiguidade, fazendo no chão da sua oficina?

Maldito seja se eu sei.

- Não é minha. Alguém a deixou na oficina. Tenho andado tentando devolvê-la ao dono.

Tony olhou-a novamente.

- Parece muito antiga. O dono vai ficar feliz quando recuperá-la. - havia uma pergunta em sua voz. Não acredito que a Dra. Altman a tenha ouvido.

Não sei quão sensível Tony é a magia, mas foi rápido e os seus dedos se detiveram nos desenhos celtas que desenhavam na prata.

Nossos olhos se cruzaram e eu acenei curtamente com a cabeça. De outro modo, começaria a pesquisá-la minuciosamente até que inclusive a Fae cega se desse conta de que ele tinha visto mais do que devia.

- Você acharia que sim. - disse lugubremente. - E aqui está ela.

Sorri meditativamente.

- Se a Dra. Altman já estiver terminado, nós vamos apenas sair do seu caminho. - informou. - Lamento que Zee esteja insatisfeito com a forma que escolheu para defendê-lo. Mas vou fazer tudo para que ele não seja mantido na prisão sob falso pretexto.

Ou assassinado.

- Cuide-se. - disse seriamente. Não faça nada estúpido.

Ergui uma sobrancelha.

- Sou tão cuidadosa como você.

Sorri e voltei ao trabalho. Independentemente do que tivesse dito ao seu proprietário, esse carro só estaria pronto amanhã. Fechei-o com cuidado e em seguida me limpei e fui ver o telefone. Na verdade tinha duas chamadas perdidas. A segunda era de Tony, antes de ter trazido a consultora. A primeira era de um número que não conhecia e tinha o indicativo de uma área distante.

Quando o disquei, o filho de Zee, Tad, atendeu ao telefone.

Tad tinha sido o meu primeiro despachante de ferramentas, mas depois fora para a faculdade e me abandonara, igual Gabriel faria dentro de um ou dois anos. Na verdade tinha sido ele a me contratar. Estava trabalhando sozinho quando eu apareci a procura de uma correia para o meu Rabbit (logo depois de ter estragado uma entrevista na Escola Secundaria de Pasco, queriam uma treinadora e eu achava que eles deviam estar mais concentrados em que os seus professores de História soubessem ensinar História) e o ajudei a atender um cliente. Penso que teria uns nove anos de idade. A sua mãe tinha acabado de morrer e Zee estava tendo dificuldades em lidar com isso. Tad se viu forçado a contratar mais três vezes no mês seguinte até Zee ter se conformado com a minha presença, uma mulher e, foi esse o seu primeiro pensamento, uma humana.

- Mercy, onde você tem andado? Tenho tentado entrar em contato contigo desde sábado de manhã. - não me deu possibilidade de responder. - Tio Mike me disse que meu pai tinha sido preso por assassinato. A única coisa que consegui tirar dele foi que se relacionava com as mortes na reserva e que eu devia, por decreto dos Senhores Cinzentos, permanecer onde estava.

Tad e eu partilhamos uma certa desconsideração e aversão em relação a autoridade. Provavelmente já tinha uma passagem de avião na mão.

- Não venha. - disse após um breve pensamento violento. Os Senhores Cinzentos queriam ver alguém culpado e não faria diferença quem. Queriam pôr rapidamente um fim a essa confusão e quem quer que se colocasse entre eles e o seu desejo estaria em perigo.

- Que diabos aconteceu? Não consigo descobrir nada. - escutei na sua voz a frustração que também estava sentindo.

Contei-lhe o que sabia, desde a hora em que Zee me pedira para procurar o assassino até o episodio da mulher cega que tinha acabado de aparecer juntamente com Tony, incluindo a tristeza que Zee sentia em relação a mim por ter contado coisas demais para a polícia e a advogada dele. O meu olhar caiu sobre a bengala, portanto acrescentei-a ao relato.

- Foi um humano que matou os Fae? Espera aí. Espera aí. O guarda que foi morto, esse tal O’Donnell, era um homem moreno com um metro e setenta e muitos de altura? O primeiro nome dele era Thomas?

- A aparência dele era essa. Não sei qual era o primeiro nome.

- Eu bem disse que ela estava andando brincando com fogo. - Tad afirmou. - Merda. Ela achava ele engraçado porque ele pensava que ele estava fazendo um favor quando na verdade ela só estava enganando-o. Ele a divertia.

- Ela quem? - perguntei.

- Connora... a bibliotecária da reserva. Ela não gostava muito de humanos e o O’Donnel era um autentico imbecil. Ela gostava de brincar com eles.

- Ele matou-a porque ela andava fazendo joguinhos? - perguntei. - E porque ele mataria os outros?

- Essa foi a razão pela qual deixaram de olhar para ele como o assassino. Ele não tinha nenhuma ligação com o segundo que foi assassinado. Seja como for, Connora não tinha muita magia. Um humano teria sido capaz de matá-la. Mas Hendrick...

- Hendrick?

- O cara que tem a floresta no jardim traseiro. Ele era um dos Caçadores. A morte dele basicamente eliminou todos os suspeitos humanos. Ele era muito duro. - ouvi um barulho. - Desculpa. Maldito telefone com fio, puxei-o de cima da mesa. Espera um pouco. Espera um pouco. Uma bengala, você disse? Simplesmente vai aparecendo?

- Isso mesmo.

- Consegue descrevê-la?

- Tem cerca de um metro e vinte, é feita com uma madeira espiralada qualquer e tem um acabamento cinzento. Tem um anel de prata na base e uma cápsula de prata com desenhos celtas no topo. Não consigo notar porque que existe alguém que insiste em trazê-la.

- Não me parece que alguém esteja levando-a. Acho que anda te seguindo sozinha.

- O quê?

- Algumas das coisas mais antigas desenvolvem algumas excentricidades. A capacidade de gerar poder e tudo isso. Algumas das coisas que foram feitas quando o nosso poder era maior do que é agora que podem se tornar um pouco imprevisíveis. Podem fazer coisas que não seriam esperadas.

- Como me seguir. Acha que seguiu O’Donnell até a casa dele?

- Não, de maneira alguma. Não acredito nem um pouco que isso tenha acontecido. A bengala foi criada como algo útil aos humanos que ajudam os Fae. Provavelmente anda te seguindo porque anda tentando ajudar o meu pai em uma hora em que todas as outras pessoas andam distraídas.

- Então O’Donnell roubou-a.

- Mercy... - ouvi um som sufocado. - Que diabos. Mercy, não posso te contar. Estou proibido. Uma geis{13}, disse o Tio Mike, para a proteção dos Fae, para a minha proteção e para a sua proteção.

- Tem alguma coisa a ver com a situação do seu pai? - pensei. - Com a bengala? Houve mais coisas roubadas? Há alguém que possa falar comigo? Alguém a quem possa ligar e pedir isso?

- Escuta. - disse lentamente, como se estivesse a espera que a geis o calasse novamente. - Há uma livraria com antiguidades em Uptown Mall, em Richland. Você deve ir falar com o homem que comanda o lugar. Talvez consiga te ajudar a descobrir mais coisas sobre a bengala. Não se esqueça de lhe dizer que foi por recomendação minha, mas espera até que ele esteja sozinho na loja.

- Obrigada.

- Não, Mercy, obrigado eu. - fez uma pausa e depois, soando por momentos o rapaz de nove anos que conheci, disse: - Tenho medo, Mercy. Eles querem que ele assuma a culpa, não querem?

- Queriam. - respondi. - Mas acho que é capaz de ser tarde demais. A polícia não o tomou por culpado sem questionar e lhe arranjamos uma excelente advogada. Ando bisbilhotando um pouco as outras atividades de O’Donnell.

- Mercy. - disse em voz baixa. - Jesus, Mercy, você anda batendo de frente com os Senhores Cinzentos? Sabe que a mulher cega é um deles, não sabe? Foi enviada para garantir que o assunto tenha o desfecho que desejam.

- Os Fae não querem saber quem o fez. - disse. - A partir do momento em que se determinou que quem matou O’Donnel foi um Fae, não querem saber se o assassino é pego. Precisam que alguém seja culpado rapidamente e depois podem caçar o verdadeiro culpado longe dos olhos do mundo.

- E apesar do meu pai ter feito tudo o que estava ao seu alcance para te dissuadir, não vai recuar. - afirmou.

É claro. É claro.

- Ele está tentando me manter fora disso. - sussurrei.

Fez uma breve pausa.

- Não vai me dizer que achava que ele estava mesmo zangado contigo.

- Ele está exigindo o pagamento do que lhe devo. - disse a medida que um nó de dor se desfazia lentamente. Zee sabia que os Fae iriam fazer e vinha tentando me manter fora do perigo.

Como que ele tinha dito? E bom que ela torça para que eu não seja libertado. Porque se eu fizesse com que ele fosse libertado, os Senhores Cinzentos ficariam muito insatisfeitos comigo.

- É claro que está. Meu pai é brilhante e mais antigo do que o pó, mas tem um medo irracional dos Senhores Cinzentos. Ele acha que nada nem ninguém pode detê-los. Assim que percebeu para que lado soprava o vento, deu o seu melhor para manter todo mundo fora do assunto.

- Tad, fique na escola. - pedi. - Não há nada que possa fazer aqui a não ser se meter em problemas. Os Senhores Cinzentos não tem jurisdição sobre mim.

Grunhiu.

- Gostaria de te ouvir dizer isso a eles, mas acontece que gosto de você como está: viva.

- Se vier para cá, eles te matam. Em que isso vai ajudar o seu pai? Rasga essa passagem e eu vou dar o meu melhor. Não estou sozinha. Adam está a par do que acontece.

Tad respeitava muito Adam. Assim como tinha esperança, foi a frase certa.

- Tudo bem, eu fico aqui. Por agora. Deixe-me ver se posso te ajudar em mais alguma coisa, e até onde vai essa maldita geis que o Tio Mike me lançou.

Fez uma longa pausa enquanto pensava.

- OK. Acho que posso ligar para Nemane.

- Quem?

- Tio Mike disse que era a Gralha-Negra, certo? E presumo que não estivesse falando de um corvo pequeno que vive nas ilhas britânicas, mas sim da Gralha-Negra.

- Sim. As três penas brancas que tinha na cabeça pareceram importante.

- Nesse caso deve ser a Nemane. - havia satisfação na sua voz.

- Isso é bom?

- Muito bom. - respondeu. - Alguns dos Senhores Cinzentos simplesmente começariam a matar todo mundo até os problemas estarem resolvidos. Nemane é diferente.

- Ela não gosta de matar.

Tad suspirou.

- Às vezes é tão inocente. Não conheço nenhum Fae que não goste de fazer sangue derramar, e Nemane era uma das Morrigan, as deusas da guerra dos celtas. Uma das suas funções era dar o golpe fatal nos heróis moribundos após uma batalha para por fim ao seu sofrimento.

- Isso não me soa prometedor. - murmurei.

Tad ouviu.

- O que acontece com os velhos guerreiros é que tem sentido de honra, Mercy. A morte sem sentido ou a morte injusta é uma excomunhão para eles.

- Ela não vai querer matar seu pai. - disse.

Corrigiu-me suavemente.

- Ela não vai querer te matar. Tenho medo que, exceto para você, a perda do meu pai seja aceitável.

- Vou ver o que posso fazer para mudar isso.

- Vai buscar aquele livro. - disse, tossindo em seguida. - Maldita geis. - havia na sua voz uma raiva real. - Nem que isso me custe o meu pai, vou ter que falar com o Tio Mike. Vai buscar aquele livro, Mercy, e vê se consegue encontrar alguma coisa que te dê algum espaço de negociação.

- Vai ficar aí?

- Até sexta. Se até lá nada mudar, vou até aí.

Estive quase para protestar, mas em vez disso disse adeus. Zee era o pai de Tad, tive sorte em ele concordar esperar até sexta.

O Uptown Mall é uma conglomeração de edifícios grandes em um centro comercial a céu aberto. As lojas vão desde uma loja de donuts até um bazar de caridade, passando por bares, restaurantes e até uma loja de animais. Não foi difícil encontrar a livraria.

Tinha ido lá uma ou duas vezes, mas considerando que os meus gostos de leitura pendiam mais para livros de bolso do que para objetos colecionáveis, não era um dos meus locais de visita habitual. Consegui estacionar em frente a loja, ao lado de uma vaga de deficiente.

Por momentos pensei que já tinha fechado. Passava das seis e, vista de fora, a loja parecia deserta. Mas a porta abriu facilmente com um delicado chacoalhar do sino.

- Só um momento, só um momento. - gritou uma voz vinda do fundo.

- Não tem problema. - disse. Inspirei longamente para avaliar o que o meu olfato me indicava, mas a profusão de cheiros era muito para que conseguisse distinguir algo em particular: nada retém cheiros como o papel. Consegui detectar cigarros e vários tabacos de cachimbo, e também um mau cheiro.

O homem que emergiu das pilhas de estantes era mais alto do que eu e estaria os trinta e cinco e cinquenta anos. Tinha um cabelo fino cujo loiro começava a ser graciosamente substituído pelo cinzento. A sua expressão era alegre e mudou sutilmente em profissional quando viu que eu era uma estranha.

- Em que posso ajudá-la? - perguntou.

- Tad Adelbertsmiter, um amigo meu, me disse que você poderia me ajudar em um problema. - disse, mostrando a bengala que trazia comigo.

Olhou-a atentamente e empalideceu, perdendo a expressão amável.

- Só um momento. - disse. Trancou a porta da loja, rodando a tabuleta antiquada para FECHADO e correndo as venezianas pelos vidros.

- Quem é você?

- Mercedes Thompson.

Dirigiu-me um olhar penetrante.

- Você não é um Fae.

Acenei.

- Sou mecânica de VW.

Algo iluminou em seu rosto.

- Você é a protegida do Zee?

- Sim.

- Posso vê-la?- perguntei, estendendo o braço na direção da bengala.

Não lhe dei.

- Você é um Fae?

Seu rosto ficou inexpressivo e frio, o que por si só era uma resposta, não é verdade?

- Os Fae não me consideram um deles. - respondeu em uma voz abrupta. - Mas o avô da minha mãe era. Tenho o suficiente de Fae em mim para fazer um pouco de magia de toque.

- Magia de toque?

- Sabe, consigo tocar um objeto e ficar com uma ideia muito aproximada da idade que tem, e a quem pertencia. Esse tipo de coisa.

Estendi a bengala.

Pegou nela e examinou-a demoradamente. Por fim balançou a cabeça e devolveu.

- Nunca tinha visto antes, embora já tenha ouvido falar nela. É um dos tesouros Fae.

- Talvez, se você for um agricultor com ovelhas. - repliquei secamente.

Riu.

- É isso mesmo, embora por vezes essas coisas antigas possam fazer coisas inesperadas. Seja como for, é uma magia que eles já não podem fazer, encantar objetos permanentemente, e consideram essas coisas preciosas.

- O que é que Tad achava que você poderia saber sobre ela?

Balançou a cabeça.

- Se já conhece a história da bengala, suponho que saiba tanto como eu.

- Então o que ficou sabendo quando a tocou?

Riu

- Absolutamente nada. A minha magia só funciona em coisas mundanas. Só queria pegar nela um pouco. - fez uma pausa. - Ele te disse que eu poderia dar informações sobre ela? - olhou-me intensamente. - Isso não tem qualquer relação com aquele problema em que o pai dele está envolvido, não é? Não, claro que não. - os seus olhos sorriram astutamente. - Oh, julgo saber exatamente o que Tad quer que eu te arranje, rapaz esperto. Venha comigo aqui atrás.

Conduziu-me até uma pequena alcova onde os livros estavam todos em estantes com portas de vidro trancadas.

- Aqui é onde eu guardo as coisas mais valiosas, livros assinados e raridades mais antigas. - puxou um banco e subiu para destrancar a prateleira superior, que estava quase vazia provavelmente por ser de difícil acesso.

Retirou um livro encadernado com couro claro e com gravações em ouro.

- Por acaso não tem mil e quatrocentos dólares para pagar isso?

Engoli em seco.

- Não no momento. Talvez consiga arranjar dentro de poucos dias.

Balançou a cabeça ao mesmo tempo em que me entregava o livro.

- Não se preocupe. Cuide bem dele e me devolva quando tiver terminado. Está aqui a cinco ou seis anos. Não acredito que vá aparecer um comprador para ele essa semana.

Peguei-o cautelosamente, uma vez que não estava habituada a manusear livros que valessem mais do que o meu carro (não que isso quisesse dizer muito). O titulo estava gravado em alto relevo na capa e lombada: Feito por Magia.

- Estou emprestando isso para você... - disse pausadamente, considerando as palavras com cautela. - ...porque isso diz muito sobre essa bengala... - fez uma pausa e, em uma voz do tipo "preste atenção nessa parte", acrescentou. - ...e sobre algumas coisas interessantes.

Se a bengala tivesse sido roubada, talvez mais coisas tivessem desaparecido também. Agarrei o livro com mais força.

- Zee é meu amigo. - trancou a estante novamente e depois saiu de cima do banco e recolocou-o no lugar original. Depois, em um aparente non sequitur, disse casualmente: - Sabe com certeza que há coisas que estamos proibidos de discutir. Mas eu sei que a história da bengala está ai dentro. Poderá começar por essa história. Acredito que está no capitulo cinco.

- Entendo. - estava me ajudando mais do que podia sem infringir as regras.

Indicou o caminho até a porta.

- Cuide dessa bengala.

- Estou sempre tentando devolvê-la. - repliquei.

Virou-se e deu alguns passos recuando, de olhos fixos na bengala.

- Você sabe? - dito isso, sorriu brevemente, abanou a cabeça e prosseguiu até a porta da loja. - Essas coisas por vezes têm mente própria.

Abriu a porta e hesitei no limiar. Se não tivesse me dito que era parcialmente Fae, teria agradecido. Mas reconhecer que está em divida para com um Fae podia ter consequências inesperadas. Em vez de agradecer, saquei um dos cartões que Gabriel tinha imprimido e dei e lhe dei.

- Se algum dia tiver algum problema no seu carro, apareça. Trabalho sobretudo com carros alemães, mas normalmente também consigo por os outros ronronando com perfeição.

Sorriu.

- Talvez faça isso. Boa sorte.

Samuel não estava em casa quando voltei, mas deixara um bilhete explicando que tinha ido trabalhar e que havia comida na geladeira.

Abri e encontrei um recipiente de vidro tapado com papel alumínio contendo um par de enchilladas. Jantei, dei de comer à Medea, e depois lavei as mãos e levei o livro para a sala de estar para ler.

Não estava a espera de encontrar uma pagina que dissesse "Este foi o assassino de O’Donnell", mas talvez fosse agradável se cada pagina do livro de seiscentas paginas não estivessem preenchida por minúsculas palavras escritas a mão com tinta velha desbotada. Pelo menos estava escrito em Inglês.

Uma hora e meia depois tive que parar porque os meus olhos já não conseguiam focar.

Tinha aberto o livro no capitulo cinco e percorrido talvez dez paginas do texto impossível e três histórias. A primeira história era sobre a bengala, um pouco mais completa do que a história que lera na internet. Também tinha uma descrição detalhada da bengala. O autor era obviamente um Fae, o que fazia daquele livro o primeiro que conscientemente lera a partir do ponto de vista de um Fae.

Todo o capitulo cinco parecia ser sobre coisas como a bengala: dons dos Fae. Se O’Donnell tinha roubado a bengala, talvez também tivesse roubado outras coisas. Talvez o assassino, por sua vez, tivesse roubado essas mesmas coisas.

Coloquei o livro no cofre das armas no meu quarto e tranquei a porta. Não era o melhor esconderijo, mas a probabilidade de um ladrão acidentalmente fugir com ele era um pouco menor.

Lavei a louça e meditei sobre o livro. Não tanto sobre os conteúdos, mas sobre o que Tad tentava me dizer sobre ele.

O homem da livraria me disse que os Fae valorizam muito coisas como a bengala, independentemente de quão inúteis possam ser no nosso mundo moderno.

Conseguia notar isso. Para um Fae, possuir algo que contivesse o vestígio da magia perdida era sinônimo de poder. E poder no mundo Fae significava segurança. Se tivessem um registro de todos os itens produzidos pelos Fae, os Senhores Cinzentos podiam se manter a par da sua localização, e distribuí-los como quisessem. Mas os Fae são reservados. Não conseguia imaginá-los elaborando uma lista de seus itens de poder e entregá-la.

Cresci em Montana, onde uma velha espingarda sem registro valia muito mais do que uma arma nova cujo proprietário pudesse ser localizado. Não que os detentores de armas de Montana estejam planejando crimes com as suas armas não registradas, simplesmente não gostam que o governo federal saiba de todos os seus movimentos.

Portanto, e se... e se O’Donnell tivesse roubado vários itens mágicos e ninguém soubesse o que eram, ou porventura o que todos eles eram. Depois um ser Fae qualquer tinha descoberto que tinha sido O’Donnel. Alguém que tivesse um olfato como o meu, ou que o tivesse visto, ou que talvez tivesse lhe seguido até sua casa. Esse Fae podia ter matado O’Donnel para roubar para si mesmo as coisas que O’Donnel levara.

Talvez o assassino tivesse calculado o tempo para que Zee fosse pego, sabendo que os Senhores Cinzentos ficariam contentes por terem um suspeito para um final feliz.

Se conseguisse encontrar o assassino e as coisas que O’Donnel roubara, podia guardar essas coisas para a absolvição e segurança de Zee.

Conseguia perceber o motivo pelo qual um Fae iria querer a bengala, mas O’Donnel? Talvez não soubesse exatamente o que era? Tinha de saber alguma coisa em relação a ele, senão porque levá-lo? Talvez tivesse intenção de vendê-lo aos Fae. Não seria de esperar que alguém vivesse no seu seio a muito tempo fosse insensato ao ponto de achar que iria sobreviver por muito tempo vendendo aos Fae artigos deles roubados.

Claro, O’Donnel estava morto, não?

Alguém bateu na porta e não tinha ouvido nenhum carro chegar. Podia ser um dos lobisomens, vindo da casa de Adam. Inalei profundamente, mas a porta bloqueou eficazmente o que quer que meu olfato pudesse ter me indicado.

Abri a porta e a Dra. Altman estava na varanda. O cão guia não estava com ela, e não havia mais nenhum carro na rampa de entrada. Talvez tivesse vindo voando.

- Veio por causa da bengala? - perguntei. - Dou com todo o gosto.

- Posso entrar?

Hesitei. Estava muito segura de que a coisa do limiar apenas se aplicava aos vampiros, mas se não...

Sorriu discretamente e deu um passo em frente até ficar com os pés sobre o tapete.

- Tudo bem. - disse. - Entre. - peguei a bengala antiga e estendi.

- Porque está fazendo isso? - perguntou.

Fiz-me de desentendida.

- Porque a bengala não é minha, e aquilo das ovelhas não vai me servir de nada.

Lançou-me um olhar irritado.

- Não me refiro a bengala. Refiro-me a andar se metendo nos assuntos dos Fae. Está minando a minha posição junto da polícia, e isso pode ser perigoso para eles em longo prazo. A minha função é manter os humanos em segurança. Você não sabe o que está acontecendo e vai causar problemas com os quais não terá capacidade de lidar.

Ri. Não consegui me conter.

- Tanto você como eu sabemos que Zee não matou O’Donnel. Limitei-me a alertar a polícia para a possibilidade de haver mais alguém envolvido. Não deixo meus amigos abandonados à sorte.

- Os Senhores Cinzentos não vão permitir que alguém como você saiba tantas coisas a nosso respeito. - a tensão agressiva que trazia nos ombros relaxou e atravessou em passo confiante a minha sala de estar, sentando-se na cadeira excessivamente acolchoada de Samuel.

Quando voltou a falar, sua voz tinha um vestígio de melodia celta cadenciada.

- Zee é um filho da mãe perverso, e eu também o adoro. Além disso, não restam assim tantos abençoados pelo ferro que possamos nos dar ao luxo de perdê-los de animo leve. Em qualquer outra hora teria a liberdade de fazer o que estivesse ao meu alcance para salvá-lo. Mas quando os lobisomens se anunciaram ao público, causaram um ressurgimento do medo que não podemos nos dar ao luxo de intensificar. Um caso sem complicações, com a polícia disposta a manter-se calada em relação a condição da vítima de homicídio, não irá causar grande confusão. Zee compreende isso. Se sabe tanto quanto julga saber, deveria perceber que por vezes são necessário sacrifícios para que a maioria sobreviva.

Zee se sacrificara. Queria que eu ficasse chateada ao ponto de deixá-lo apodrecer porque sabia que de outro modo eu jamais desistiria, jamais permitiria que ele se sacrificasse, independentemente do custo para os Fae.

- Vim aqui essa noite por causa de Zee. - disse seriamente, com a sua vista cega olhando através de mim. - Não torne isso ainda mais difícil para ele. E não deixe também que isso custe a sua vida.

- Sei mais ou menos quem você é, Nemane. - afirmei.

- Nesse caso deverá saber que poucos são aqueles que aviso antes de atacar.

- Sei que prefere justiça à chacina. - repliquei.

- Prefiro... - disse. - ...que o meu povo sobreviva. Se pelo caminho tiver de eliminar alguns inocentes ou pessoas estupidamente obtusas, isso não permanecerá muito tempo na minha consciência.

Não disse nada. Não ia desistir de Zee, não podia desistir de Zee. Se lhe dissesse isso, me mataria naquele instante. Conseguia sentir o poder dela concentrando-se ao seu redor como uma tempestade de primavera. Camada em cima de camada, foi se intensificando a medida que encarava.

Se não mentisse, a verdade ia me custar a vida, e não restaria ninguém para ajudar Zee.

Precisamente nessa hora, ouvi um carro no cascalho da rampa de entrada. Era o carro de Samuel.

Percebi então o que podia fazer, mas seria suficiente? Que custos implicaria?

- Eu sei quem você é, Nemane. - sussurrei. - Mas você não sabe quem eu sou.

- Você é uma andarilha. - disse. - Uma metamorfa. Zee me explicou. Não restam muitas espécies sobrenaturais nativas, portanto você não pertence a lado nenhum. Nem aos Fae nem aos lobisomens, tampouco aos vampiros ou ao que quer que seja. Está completamente sozinha. - a sua expressão não se alterou, mas conseguia cheirar sua amargura, a empatia. Também era sozinha. Não sei se era sua intenção eu notar isso, ou se não tinha consciência do quanto conseguia interferir a partir do seu cheiro. - Não quero me ver forçada a matá-la, mas farei.

- Não me parece. - graças a Deus, pensei, graças a Deus que tinha contado tudo a Samuel. Não teria de partir em desvantagem. - Zee contou-lhe parte daquilo que sou. - talvez por ter pensado que isso faria com que ela hesitasse em me matar, sabendo que eu estava sozinha. - Tem razão, não conheço mais pessoas como eu, mas não estou sozinha.

Samuel abriu a porta na hora H. Tinha os olhos injetados de sangue e parecia cansado e mal disposto. Conseguia sentir nele o cheiro de sangue e desinfetante. Parou com a porta aberta, focando na presença da Dra. Altman.

- Dra. Altman. - disse em tom agradável. - Permita-me lhe apresentar Dr. Samuel Cornick, o meu companheiro de casa. Samuel, apresento-lhe a Dra. Stacy Altman, consultora da polícia, a Gralha-Negra. Os Fae a conhecem por Nemane.

Os olhos de Samuel se estreitaram.

- Você é um lobisomem. - Nemane disse. - Samuel Cornick. - fez uma pausa. - O Marrok se chama Bran Cornick.

Mantive-me de olhos cravados em Samuel.

- Estava agora mesmo explicando à Dra. Altman porque seria desaconselhável eles me eliminarem, apesar de eu andar metendo meu nariz nos assuntos deles.

Um entendimento se iluminou em seus olhos, que semicerrou na Fae.

- Matar Mercy seria um erro. - grunhiu. - O meu pai criou Mercy no nosso bando e a ama como uma filha. Por ela, declararia guerra aberta com os Fae e que se lixassem as consequências. Pode ligar e perguntar isso, se duvidar da minha palavra.

Contava que Samuel me defendesse, e os Fae não podia dar-se ao luxo de fazer mal ao filho do Marrok, não sem que os riscos se tornassem muito elevados. Tinha contado com isso para manter Samuel em segurança, senão teria arranjado uma maneira qualquer de mantê-lo fora disso. Mas o Marrok...

Sempre pensara em mim como um incomodo, a única pessoa com quem Bran não podia contar para uma obediência instantânea. Fora protetor, ainda era, mas o seu instinto protetor era uma das coisas que o tornavam dominante. Pensava que era apenas mais uma pessoa por quem ele tinha que olhar. Mas era tão impossível duvidar da verdade na voz de Samuel como era acreditar que estivesse enganado em relação a Bran.

Fiquei grata por Samuel estar concentrado em Nemane, que tinha ficado de pé quando Samuel começara a falar. Enquanto eu pestanejava para conter as lágrimas estupidas, Nemane inclinou-se sobre a bengala e disse: - Ah é?

- Adam Hauptman, o Alfa do Bando da Bacia de Columbia, nomeou Mercy sua companheira. - Samuel continuou veementemente.

Nemane sorriu subitamente, a expressão atravessando o rosto, dando-lhe uma beleza delicada na qual nunca reparei.

- Gosto de você. - me disse. - Joga de forma secreta e sutil, e como um coiote agirá a ordem do mundo. - riu. - Coiote. Ainda bem para você. Ainda bem para você. Não sei com o que vou cruzar mais, mas vou comunicar aos Outros com quem estão lidando. - bateu com a bengala no chão duas vezes. Em seguida, quase falando para si mesma, murmurou: - Talvez... talvez afinal isso não venha a ser um desastre.

Ergueu a bengala e tocou o topo na testa em um gesto de saudação. Depois deu um passo em frente e, de uma hora para outra, desapareceu do alcance de qualquer um dos meus sentidos.


9

Na noite de quarta jantei no meu restaurante chinês favorito em Richland e depois fui de carro até a casa de Tim. Uma vez que o assassino de O’Donnel era quase com toda certeza Fae, não sabia que benefícios me traria participar de uma reunião da Futuro Feliz, mas talvez alguém soubesse algo importante. Só tinha até sexta para provar a inocência de Zee, senão Tad também viria colocar a sua vida em risco.

No entanto, quanto mais pensava sobre isso, mais sentido fazia em Tad voltar. Certamente não estava mais perto de descobrir o que quer que fosse. Tad, sendo Fae, podia ir na reserva e fazer perguntas, isso se os Senhores Cinzentos não o matassem por desobediência. Talvez conseguisse persuadir Nemane a acreditar que seria do maior interesse para os Fae que o filho de Zee voltasse para casa para me ajudar a salvar o seu pai. Talvez.

Tim vivia em West Richland, a alguns quilômetros da casa de Kyle. Era em um quarteirão tão novo que várias casas nem sequer tinham jardins, e consegui ver dois edifícios em construção no quarteirão seguinte.

Metade da fachada era de tijolo bege e o resto em argila cor de aveia. Parecia luxuosa e cara, mas faltavam-lhe os toques que faziam a casa de Kyle uma mansão e não uma casa. Nada de vitrais, mármore ou portas de garagem em madeira de carvalho.

O que significava que ainda assim era incomparavelmente melhor do que o meu velho trailer, mesmo com o seu novo revestimento.

Haviam quatro carros estacionados na rampa de entrada e um Mustang 72, uma vez vermelho com um pára-choque verde-limão parado na rua em frente. Encostei atrás dele porque são raras as vezes em que encontro um carro que faça com que o Rabbit tenha bom aspecto.

Quando saí, acenei a mulher que estava me observando por trás de uma cortina quase transparente na casa do outro lado da rua. Abaixou a veneziana da janela.

Toquei a campainha e esperei que a pessoa que estava descendo uma escada acarpetada abrisse a porta. Quando ela foi aberta, não fiquei surpresa ao ver uma garota com mais ou menos vinte anos. Os seus passos tinham soado femininos, os homens tendem a caminhar de forma ruidosa, retumbante, ou, como Adam, caminhando tão silenciosamente que mal se consegue ouvir.

Vestia uma blusa quase transparente que ostentava ossos cruzados, como uma bandeira de pirata, mas em vez de um crânio humano a cabeça desbotada de um panda com um X em vez dos olhos. Era um pouco gordinha, mas os quilos a mais se assentavam bem, arredondando o rosto e suavizando os traços fortes. Por baixo da distinta aura de Juicy Fruit{14} reconheci o seu cheiro da casa de O’Donnell.

- Eu sou Mercedes Thompson. - disse. - Tim me convidou.

Olhou-me fixamente e depois me dirigiu um sorriso de Boas-vindas.

- Eu sou Courtney. Ele disse que você era capaz de aparecer. Ainda não começamos. Estamos esperando que Tim e Austin tragam doces. Entre.

Era uma daquelas mulheres amaldiçoadas com uma voz de criança. Quando tivesse cinquenta anos ainda soaria como alguém de treze.

Enquanto a seguia escada acima, fiz a coisa educada.

- Peço desculpas por ser uma intrusa nessa reunião. Tim disse que um dos seus membros foi assassinado a pouco tempo.

- E foi logo com um homem tão bom. - disse rápido, mas depois parou no patamar das escadas. - OK, isso não precisava ser dito, peço desculpas. Não é minha intenção fazê-la se sentir desconfortável.

Balancei a cabeça.

- Eu não o conhecia.

- Bom, ele deu inicio à nossa filial da Futuro Feliz, e era simpático com os homens, mas só usava as mulheres para uma coisa e já estava ficando farta de afugentá-lo toda hora. - seus olhos se concentraram de verdade em mim agora. - Ei, Tim me disse que você era hispânica, mas não é, é?

Balancei a cabeça.

- Meu pai era um cavaleiro de rodeios índio.

- Ah, é? - a sua voz tinha um quê curioso. Queria saber mais, mas não queria se intrometer.

Começava a gostar dela. Em algum lugar por baixo de todos os balões de chiclete tinha certeza que escondia um cérebro perspicaz.

- Sim.

- Um cavaleiro de rodeios? Isso é muito legal. Ainda faz isso?

Balancei a cabeça.

- Não. Morreu antes de eu nascer. Deixou a minha mãe adolescente grávida e solteira. Fui criada como uma... - tinha passado muito tempo com o bando de Adam e não tempo o suficiente com pessoas reais, pensei quando me apressei para substituir mulher-loba por mulher branca americana. Felizmente ela não era uma mulher-loba e não detectou a minha mentira.

- Quem me dera ser Nativa Americana. - desabafou um tanto melancolicamente enquanto recomeçava a subir a escada. - Aí todos os garotos iriam andar atrás de mim. É aquela coisa de índia misteriosa, entende?

Não foi por isso, mas ri porque era essa a sua intenção.

- Não há nada misterioso em mim.

Balançou a cabeça.

- Talvez não, mas se eu fosse índia, seria misteriosa.

Indicou o caminho até uma sala grande já ocupada por cinco homens enfiados em um circulo de cadeiras em um canto da sala. Estavam claramente concentrados em uma conversa muito envolvente porque nem sequer olharam para cima quando entramos.

Quatro deles eram jovens, ainda mais jovens do que Austin e Tim. O quinto tinha ar de professor universitário e usava uma barbicha e um blazer.

Mesmo com pessoas lá dentro, havia no ar do compartimento um quê de novo. Como se tudo tivesse acabado de chegar de uma loja de móveis. As paredes e o tapete berbere encaixavam no esquema de cores da sala.

Pensei nas cores vívidas da casa de Kyle e no par de estátuas de pedra a escala humana, de inspiração grega, no local. Kyle as chamava de Dick e Jane e gostava muito delas, apesar de terem sido encomendadas pelo proprietário anterior da casa.

Uma das figuras era homem, a outra mulher, e ambos os rostos tinham uma expressão sonhadora e romântica enquanto olhavam para cima em direção ao paraíso, uma expressão que de certo modo não jogava com a prova espetacular de que a estatua masculina não estava tendo pensamentos dignas do paraíso.

Kyle vestira o corpo nu de Jane com uma curta saia escocesa e um top de costa nua cor laranja. Dick normalmente usava apenas chapéu e não na cabeça. A principio era uma cartola, mas Kyle foi depois a um bazar de caridade e encontrou um gorro de ski em malha que pendia cerca de meio metro com uma franja de quinze centímetros na extremidade.

Em contraste, a casa de Tim não tinha mais personalidade do que um apartamento, como se não tivesse confiança suficiente no seu gosto para tornar a casa sua. Por muito pouco que tenha falado com ele, sabia que havia nele mais cores do que o bege e o castanho. Não sei o que outra pessoa teria pensado, mas para mim a casa gritava o desejo de Tim para se enquadrar nela.

Isso fez com que gostasse mais dele, eu sei o que é não estar enquadrado.

A sala podia ser sem inspiração, mas não deixava de ser agradável. Tudo era de boa qualidade sem ser excessivo. Um canto da sala tinha sido convertido em escritório. Havia uma geladeira do tamanho de um quarto ao lado da bem executava, mas não extravagante, mesa de escritório de carvalho. A longa parede no lado oposto da porta era dominada por uma televisão suficientemente grande para agradar Samuel, com colunas altas em casa um dos lados. Cadeiras com um aspecto confortável e um sofá, tudo estofado com uma microfibra castanha concebida para parecer com camurça, estavam dispersos de um modo apropriado a um home theather.

- Sara não conseguiu vir essa noite. - Courtney me informou como se fosse de esperar que eu soubesse quem era Sarah. - Ainda bem que você veio, de outro modo eu ia ser a única mulher. Ei, pessoal, essa é Mercedes Thompson, a mulher que Tim nos disse que era capaz de vir, estão vendo, aquela que ele conheceu no festival do ultimo fim de semana.

A sua voz penetrou onde a nossa entrada não conseguira e todos os homens olharam para cima. Courtney caminhou comigo até eles.

- Este é o Sr. Fideal. - disse, indicando o homem mais velho.

Visto de perto, seu rosto parecia mais jovem do que o seu cabelo cinza-ferro dava a entender. Tinha a pele morena e saudável e os olhos em um azul vivo, com a intensidade de uma criança de seis anos.

Não associava o seu cheiro a casa de O’Donnel, mas era evidente que se sentia confortável nesse grupo, no qual deveria ser um frequentador habitual...

- Aiden. - corrigiu-a simpaticamente.

Riu e disse: - Não consigo. - ela se virou para mim e disse. - Foi o meu professor de Economia, e, portanto para mim sempre será o Sr. Fideal.

Se não tivesse lhe dado um aperto de mão, não sei se teria notado algo estranho em seu cheiro. Embora o odor de água salgada não seja uma fragrância que normalmente associe a pessoas, podia ser que tivesse um aquário de água salgada ou coisa parecida.

Porém, o seu aperto fez a minha pele vibrar com o ligeiro toque da magia. Há outras coisas além dos Fae que transportam condigo magia: bruxas, vampiros e mais algumas criaturas. Mas a magia Fae tinha um certo toque particular, era capaz de apostar que o Sr. Fideal era tão Fae como Zee... ou pelo menos tão Fae como o cara da livraria.

Perguntei-me o que estaria fazendo em uma reunião da Futuro Feliz. Podia ser que estivesse aqui para se inteirar do que eles andavam fazendo. Ou se calhar era parcialmente Fae e nem sequer sabia o que era. Uma gota de sangue Fae poderia explicar aqueles olhos jovens no rosto mais velho e a ligeira magia que sentira.

- Prazer em conhecê-lo. - disse.

- Agora já sabe o que faço para ganhar a vida. - pronunciou de forma amigável. - O que você faz?

- Sou mecânica. - respondi.

- Vem mesmo a calhar. - Courtney disse. - O meu Mustang tem andado fazendo barulhos esquisitos nos dois últimos dias. Acha que pode dar uma olhada? Nesse momento não tenho nenhum dinheiro comigo, acabei de pagar o semestre da escola.

- Eu trabalho, sobretudo com VWs. - disse, tirando um cartão da bolsa e entregando-o. - Talvez fosse melhor levá-lo a um mecânico que trabalhe com Fords, mas pode levá-lo na minha oficina se quiser. Não posso fazer o trabalho de graça. O preço que cobro a hora é mais baixo do que o da maior parte das oficinas, mas considerando que não costumo trabalhar com Fords, provavelmente vou demorar mais tempo para consertá-lo.

Ouvi a porta principal abrir. Depois de um momento, Tim e Austin chegaram com uma grade de cerveja e um par de sacos plásticos brancos de mercearia cheios de pacotes de batatas fritas. Foram saudados com vivas e atacados por causa da comida e da cerveja.

Tim pousou as coisas em uma mesinha ao lado da porta e escapou do ataque dos jovens. Olhou-me por momentos sem sorrir.

- Pensei que fosse trazer o seu namorado.

- Já não é meu namorado. - disse, e meu alivio disso me fez sorrir.

Courtney viu o meu alivio e interpretou-o mal.

- Oh, querida. - disse. - Mais um daqueles, não é? Vai ficar melhor sem ele. Tome, aqui tem uma cerveja.

Balancei a cabeça, suavizando a minha recusa com um sorriso.

- Nunca aprendi a gostar de cerveja. - tinha intenção de me manter alerta para detectar quaisquer pistas que pudessem surgir, embora a minha esperança já-não-muito-alta de que isso fosse acontecer diminuísse a cada minuto. Pensava que ia me infiltrar em um grupo de ódio organizado, não um bando de garotos da universidade ávidos de cerveja acompanhados de seu professor.

Era capaz de jurar que não havia nenhum filho da mãe assassino entre eles.

- E uma Coca Light. - Tim sugeriu em um tom amigável. - Eu tinha uma embalagem de seis garrafas de Ginger Ale e outra de cerveja, mas aposto que esses imbecis já fizeram tudo desaparecer.

Como resposta obteve um coro de assovios de negação que pareceram agradá-lo. Bom pra você, pensei, e deixa de sentir pena dele só por não ter uma parede roxa ou uma estatua com um chapéu. Arranje o seu próprio grupo para se sentir enquadrado.

- Uma Coca Light vinha mesmo a calhar. - disse. - A sua casa é muito impressionante.

Isso o agradou mais que os assovios.

- Mandei construir depois que meus pais morreram. Não conseguia suportar ficar sozinho naquela casa velha e vazia.

Uma vez que Tim se manteve no mesmo lugar para conversar, foi Courtney quem me trouxe a lata. Entregou-a e depois deu uma palmadinha na cabeça de Tim.

- O que Tim não está contando é que os pais dele eram ricos. Morreram em um acidente de carro a poucos anos e deixaram para Tim seus bens e um seguro de vida que lhe permite ter dinheiro até morrer.

Seu rosto se contraiu de vergonha perante a sua declaração muito ousada diante de uma pessoa praticamente desconhecida.

- Preferia ter os meus pais. - afirmou severamente, embora devesse ter ultrapassado qualquer dor que pudesse ter sentido, porque o único odor que ele exalava era de irritação.

Ela riu.

- Eu conhecia o seu pai, querido. Qualquer um o trocaria pelo dinheiro. No entanto, a sua mãe era um doce.

Passou pela cabeça a ideia de ficar zangado, mas depois ignorou o assunto.

- Courtney e eu somos primos distantes. - explicou-me. - Isso faz com que ela seja controladora, e eu aprendi a tolerá-la.

Courtney exibiu-me um sorriso largo e deu um longo gole de sua cerveja.

Por cima do seu ombro consegui notar que os outros tinham colocado as cadeiras em um semicírculo e começavam a se instalar com um lanche distribuído por um par de mesas estrategicamente colocadas.

Tim ocupou um lugar providenciado por outra pessoa e fez um gesto para que me sentasse ao seu lado, enquanto Courtney pegava uma cadeira para si.

Uma vez que era a sua casa, de certo modo estava a espera que fosse assumir a liderança, mas foi Austin Summers que se colocou de pé a nossa frente e soltou um ruidoso assovio.

Desejei que tivesse me avisado. Meus ouvidos ainda estavam zumbindo quando começou a falar.

- Vamos começar. Quem tem assuntos para abordar?

Foram necessários apenas breves minutos para perceber que Austin era o líder. Tinha vislumbrado as possibilidades deste domínio na festa na pizzaria, mas tinha estado conversando com Tim em vez de observar Austin. Aqui o seu papel estava tão determinado como o de Adam no bando.

Aiden Fideal, o professor Fae, ou era o numero dois ou o três, seguido de Courtney. Tive dificuldade em decidir, porque o mesmo aconteceu com eles. Por causa do caráter incerto das posições que ocupavam, tive certeza de que O’Donnel tinha ocupado aquele lugar anteriormente. Um tirano mesquinho como O’Donnel não teria aceitado facilmente a liderança de Austin. Se Austin fosse Fae, teria colocado-o no topo da lista de suspeitos, mas ele era mais humano do que eu.

Tim foi se apagando a medida que a reunião avançou. Não pelo fato de não ter dito nada, mas porque ninguém lhe dava ouvidos a não ser quando as suas observações eram repetidas por Courtney ou Austin.

Algum tempo depois comecei a juntar algumas coisas a partir de observações casuais.

Era possível que O’Donnel tivesse criado a Futuro Feliz nas Tri-Cities, mas não tinha tido muita sorte até ter encontrado Austin. Tinham se conhecido em uma aula no colégio comunitário dois anos antes. O’Donnel estava tirando proveito do programa do GAF que financiava o prosseguimento dos estudos aos guardas da reserva. Austin dividia o seu tempo entre Washington State University e a Columbia Basin College e estava quase terminando sua licenciatura em informática.

Tim, que não tinha qualquer necessidade de arranjar emprego, era mais velho do que a maioria.

- Tim tem um mestrado em informática pela Washington State. - Courtney sussurrou. - Foi assim que ele conheceu Austin, em uma aula de informática. Tim ainda frequenta algumas disciplinas na CBC ou na WSU todos os semestres. Mantém-no ocupado.

Austin, Tim, e a maioria dos estudantes, tinham pertencido a um clube universitário que parecia ter tido alguma coisa a ver com programação de jogos de computador. O Sr. Fideal foi um Quando Austin se interessou pela Futuro Feliz, tinha conseguido o direito de tomar o clube. A CBC tinha se dissociado do grupo quando se tornou óbvio que a sua natureza tinha se alterado, mas o Sr. Fideal mantivera o privilégio de aparecer ocasionalmente.

A primeira questão a tratar nessa reunião era o envio de um ramo de flores para o funeral de O’Donnel assim que ele fosse diligenciado pela sua família. Tim aceitou sem comentários o pressuposto de que seria ele a pagar as flores.

Concluído o assunto, um rapaz se levantou e apresentou métodos que garantiam a proteção face aos Fae, entre os quais sal, aço, unhas nos sapatos e vestir a roupa interior do avesso.

Na sessão de perguntas e respostas que se seguiu, não aguentei continuar calada.

- Você fala como se os Fae fossem todos iguais. Eu sei que existem Faes capazes de manusear o ferro e me parece que os Fae marítimos, como os selkies, não teriam qualquer problema com o sal.

O apresentador, um tímido rapaz gigante, dirigiu-me um sorriso e respondeu de forma mais articulada do que a apresentação.

- Tem razão, com certeza. Parte do problema reside no fato de sabermos que algumas das histórias foram romanceadas até ficarem irreconhecíveis. E os Fae não andam propriamente ansiosos por nos contar quais as espécies de Fae que restam. O processo de registro é uma anedota. O’Donnell, que tinha acesso a toda a papelada sobre os Fae na reserva, disse que sabia com toda a certeza que pelo menos um em cada três mentiu quando respondeu o que era. Mas parte do que estamos tentando fazer é vasculhar o lixo a procura do ouro.

- Achei que os Fae não conseguiam mentir. - disse.

Encolheu os ombros.

- Não tenho certeza disso.

Tim se pronunciou. - Muitos deles inventaram uma palavra parecida com o gaélico ou o alemão e usaram-na para preencher o formulário. Se eu dissesse que era um Heeberskeeter, não estaria mentindo uma vez que acabei de inventar a palavra. Os pactos que definiram o sistema da reserva não permitiam que fosse colocada qualquer questão sobre a forma como os formulários de registro eram preenchidos.

Na hora em que a reunião se aproximava do fim, estava convencida de que nenhum desses garotos tinha qualquer relação com o homicídio de O’Donnel. Nunca tinha participado de nenhuma reunião de um grupo de ódio, sendo metade índia e não propriamente humana, estaria muito deslocada em um contexto dessa natureza. Mas não estava à espera de uma reunião levada a cabo de toda paixão e violência de um clube de xadrez. OK, menos paixão e violência do que em um clube de xadrez.

Inclusive concordava com a maior parte das coisas que tinham dito. Podia gostar de alguns Fae individualmente, mas sabia o suficiente para sentir medo. É difícil censurar esses garotos por não se deixarem enganar pelos políticos Fae e seus discursos. Como Tim me dissera, a única coisa que tinham que fazer era ler as histórias.

Tim me acompanhou até o carro após a reunião.

- Obrigado por ter vindo. - agradeceu, abrindo-me a porta. - O que achou?

Sorri para disfarçar o fato de não ter gostado da forma como agarrara a porta do meu carro antes de mim. Pareceu-me intrusivo, embora Samuel e Adam, ambos produtos de uma era anterior, também abrissem as portas para mim e isso não me incomodasse.

No entanto, não quis magoá-lo, limitei-me a dizer: - Gosto dos seus amigos... e espero que não tenham razão sobre a ameaça que os Fae representam.

- Não acha que somos um bando de riquinhos com casas a mais e competências sociais a menos que anda por ai gritando que o céu está desabando?

- Isso parece uma citação.

Sorriu ligeiramente.

- Diretamente do jornal Herald.

- Ai. E não, não acho.

Curvei-me para entrar no carro e reparei que a bengala tinha reaparecido, atravessado sobre os dois bancos dianteiros. Tive que desviar dele para poder sentar.

Depois de ter desviado, olhei de soslaio para Tim, mas não pareceu ter reconhecido a bengala. Talvez O’Donnel o tivesse mantido escondido durante as reuniões da Futuro Feliz, talvez a própria bengala tivesse se mantido escondida. E Tim tampouco pareceu ter achado estranho uma pessoa com uma bengala no banco da frente do carro. As pessoas tendem a esperar que os mecânicos de VWs sejam um pouco estranhos.

- Ouça. - disse. - Tive algum tempo para aprofundar os meus conhecimentos em torno dos mitos arturianos. Li um pouco de de Troyes e Malory depois de termos conversado. Estava pensando se não gostaria de aparecer amanhã para jantar.

Tim era um homem correto. Não ia ter de me preocupar com a possibilidade de ele exercer influencia através de qualquer encanto lupino ou se transformar em um maníaco controlador por minha causa. Jamais perderia as estribeiras e arrancaria o pescoço de alguém. Não mataria duas vítimas inocentes tentando me proteger ou qualquer pessoa da Senhora dos vampiros. Não via Stefan desde aquela vez, mas era frequente passarem meses sem que visse o vampiro.

Por um momento pensei em quão bom seria sair com uma pessoa normal como Tim.

Claro que se colocava o pequeno problema de lhe dizer o que eu era. E o pequeno fato de eu não estar nem um pouco interessada em me enfiar na cama com ele.

A verdade era que eu estava mais do que meio apaixonada por Adam, independentemente do quanto ele me amedrontava.

- Peço desculpas, mas não. - respondi balançando a cabeça. - Acabei de sair de um relacionamento. Não quero me meter em outro.

Seu sorriso se ampliou e logo se tornou triste.

- Curioso, eu também. Andávamos juntos a três anos e eu tinha acabado de ir para Washington para lhe comprar um anel. Levei-a ao nosso restaurante preferido, com o anel no bolso, e ela me disse que ia se casar com o patrão depois de duas semanas. Ela estava certa que eu ia atender.

Sibilei em sinal de compaixão.

- Ai.

- Casou-se em junho, desde então, passaram dois meses, mas para dizer a verdade também não estou com vontade de me envolver com mais alguém. - claramente cansado de se curvar, agachou-se ao lado do carro, colocando a cabeça um pouco abaixo da minha. Esticou o braço e me tocou no ombro. Usava um anel de prata liso, cuja superfície outrora macia se encontrava riscada e desgastada. Perguntei-me que significado teria para ele, porque não parecia ser o tipo de homem que normalmente usasse anéis.

- Nesse caso, porque o convite para jantar? - perguntei.

- Porque não tenho intenção alguma em me transformar em um eremita. Dentro do espirito "Não permitas que os filhos da mãe te deixem para baixo". O que nos impede de nos sentarmos a uma mesa e comermos uma refeição agradável acompanhada com uma conversa? Sem compromissos, e eu não tenho intenção de acabar a noite na cama contigo. É só uma conversa. Você, eu e Le Morte d’Arthur, de Malory. - dirigiu-me um sorriso torto. - Como bônus extra, uma das disciplinas que mais frequentei foi a de culinária.

Mais uma noite debatendo escritores arturianos da Idade Media me parecia muito divertido. Abri a boca para aceitar o convite sem pronunciar as palavras. Podia ser divertido, mas não era uma boa ideia.

- Que tal as dezenove e trinta. - dizia. - Eu sei que é tarde, mas tenho uma aula até as seis e gostaria de ter o jantar pronto quando chegasse.

Levantou-se e fechou a porta, dando-lhe um tapinha antes de voltar para a sua casa.

Tinha acabado de aceitar um encontro com ele?

Aturdida, liguei o Rabbit e me dirigi para a autoestrada que me levaria para casa. Pensei em todas as coisas que deveria ter dito. Iria ligar quando chegasse em casa e encontrasse seu número. Iria dizer obrigada, mas não, obrigada.

A minha recusa ia ferir seus sentimentos, mas se fosse poderia ficar ainda mais ferido, Adam não iria gostar que eu jantasse com Tim. Nem um pouco.

Acabava de passar pela saída para o Centro Comercial Columbia Centre quando notei que Aiden Fideal estava atrás de mim. Tinha saído da casa de Tim ao mesmo tempo que eu, junto com mais três pessoas. Tinha reparado nele apenas porque estava dirigindo um Porsche, um 911 de chassi largo como os que sempre cobicei, embora preferisse o preto ou o vermelho (por muito clichê que fosse) ao amarelo vivo. Havia uma pessoa na cidade que tinha um roxo que era simplesmente de dar água na boca.

Um Buick passou por mim e a luz dos meus faróis atingiu o adesivo que tinha no para-choque: Algumas pessoas são como Slinkies. Na verdade não servem para nada, mas mesmo assim me provocam um sorriso no rosto quando os empurro escada abaixo.

Fez-me rir e interrompeu a estranha preocupação que o fato de ter visto o Porsche atrás de mim causara. Fideal provavelmente vivia em Kennewick e estava simplesmente a caminho de casa.

Mas não demorou muito até que a sensação incomoda de estar sendo perseguida voltasse para se alojar nos nervos da nuca. Ainda estava atrás de mim.

Fideal era um Fae, mas a Dra. Altman era a assassina de serviço dos Fae e sabia que eles não podia me atacar sem retaliação. Não havia nenhuma razão para eu me sentir nervosa.

Ligar para Adam para pedir ajuda seria um exagero. No entanto, se Zee não estivesse na prisão e se estivéssemos conversando, teria ligado. Ele não teria uma reação exagerada como Adam certamente teria.

Podia ligar ao Tio Mike, presumindo que não partilhava da reação de Zee e que atenderia o meu telefonema.

Tio Mike era capaz de saber se eu estava sendo estúpida ao permitir que Fideal me deixasse em pânico desnecessariamente. Peguei o celular e abri-o, mas não vi nenhuma luz de boas-vindas. A tela do telefone estava morta. Devia ter me esquecido de por pra carregar.

Arrisquei uma multa por excesso de velocidade e abusei do Rabbit. Aqui o limite de velocidade era de noventa quilômetros, e a polícia patrulhava com frequência nesse trecho da autoestrada, portanto a maior parte dos carros se deslocava a cerca de noventa e cinco quilômetros. Avancei aos ziguezagues entre o transito e suspirei de alivio quando os faróis dianteiros bem característicos de Fideal desapareceram de vista atrás de uma minivan.

A autoestrada me deixou em Canal Street, e abrandei a velocidade. Essa deve ser a noite destinada a minha estupidez, pensei.

Primeiro, aceitara um convite para jantar com Tim, ou pelo menos não recusara, e depois entrara em pânico quando vira o carro de Fideal. Idiota.

Sabia quais seriam as implicações de aceitar uma proposta para jantar com Tim. Por muito boa que pudesse vir a ser a conversa, não era merecedora de uma briga com Adam. Devia ter dito logo que não. Agora ia ser mais difícil.

Por mais estranho que possa parecer, não era o temperamento de Adam que me amedrontava, o fato de saber que iria ficar zangado se eu fizesse alguma coisa normalmente me servia de encorajamento para fazê-lo. Provocava-o regularmente se pudesse. Havia qualquer coisa naquele homem quando estava todo zangado e se tornava perigoso que me excitava. Por vezes os meus instintos de sobrevivência não são o que deviam.

Se fosse a casa de Tim jantar uma ou duas vezes e, independentemente do que Tim dissera, jantar sozinho com uma mulher era um encontro romântico. Adam ficaria magoado. Se ficasse zangado, tudo bem, mas não queria magoar Adam, nunca.

O semáforo da Washington Street estava vermelho. Parei ao lado de um caminhão. O seu enorme motor a diesel balançou o Rabbit enquanto esperávamos um fluxo de transito inexistente. Ultrapassei-o quando arrancamos novamente e espreitei o espelho retrovisor para me certificar de que estava suficientemente distante de mim antes de encostar-me à faixa da direita, preparando-me para virar para a Chemical Drive. Estava para trás o suficiente, e mesmo ao seu lado seguia o Porsche, que brilhava como um ranúnculo amarelo{15} nas luzes da estrada.

Um medo súbito e irracional apertou meu estomago até me arrepender de ter bebido Coca Light. O fato de eu não ter nenhuma razão real para o medo não amenizou o seu impacto. A coiote tinha decidido que estava ignorando-a e insistia que ele era uma ameaça.

Respirei por entre os dentes quando a reação se transfigurou em um estado de alerta.

Até ali estivera disposta a acreditar que partilhávamos o mesmo caminho para chegar em casa. Aquele pequeno trecho de autoestrada era o caminho mais rápido para alcançar a metade oriental de Kennewick, e também era possível chegar a Pasco ou Burbank por essa via, embora fosse mais rápido pela interestadual do outro lado da rua.

Porém, quando entrei na Chemical Drive, que apenas desembocava em Finley, ele me seguiu, e eu teria dado por ela se existisse em Finley um 911 amarelo de chassi largo. Ele estava me seguindo.

Instintivamente, estiquei novamente o braço para pegar o celular e quando o peguei do assento do passageiro, verteu água para a minha mão. Notei então que o cheiro de água salgada vinha se intensificando a algum tempo. Larguei o telefone inútil e levei a mão a boca. Senti o pântano e o sal, como se tratasse de um pântano salgado do que água do mar. Embora a casa de Adam e a minha partilhassem uma cerca, viraria para a rua dele quatrocentos metros antes de virar para a minha. Não me lembrava se Samuel estava trabalhando essa noite, mas mesmo que Adam não estivesse em casa, era provável que estivesse alguém. Alguém que fosse lobisomem.

Claro que também era provável que Jesse estivesse lá também, e Jesse ainda tinha menos capacidade de se proteger do que eu.

Virei para a Finley Road para dar a mim mesma a possibilidade de pensar. Era um caminho distante e teria de voltar a Chemical antes de ir para casa, mas já tinha feito tantas coisas estúpidas essa noite que precisava de tempo para me certificar de que levar esse Fae, independentemente de suas intenções, até a casa de Adam era uma ideia inteligente.

Não devia ter me preocupado. Precisamente quando estava passando pelo Two Rivers Park, onde a estrada era agradável e deserta e as casas estavam distantes, o Rabbit tossiu, crepitou e engasgou-se antes de morrer.

Não havia nenhum meio-fio na estrada, portanto guiei o carro para fora do asfalto e esperei pelo melhor. Se o deixasse na rua, uma pobre pessoa qualquer, voltando tarde para casa, podia ir contra ele e se matar. O Rabbit ressaltou sobre algumas pedras, o que não foi nada bom para a parte inferior da carroceria, e acabou parando em um local relativamente plano.

A sensação de estar dentro do carro era como a de estar dentro de uma armadilha, portanto sai assim que as rodas pararam de girar. O Porsche parou na autoestrada e rosnava a sua canção gutural.

Tinha anoitecido enquanto dirigia, e as luzes eram difíceis de suportar por causa dos olhos sensíveis, uma das desvantagens de uma boa visão noturna. Desviei a cabeça dos faróis, e quando Fideal saiu do carro, ouvi-o em vez de vê-lo.

- Estranho ver um Fae dirigindo um Porsche. - disse friamente. - Podem ter um bloco de alumínio, mas a carroceria é de aço.

O carro produziu um ruído surdo, como se tivessem lhe dado uma palmada.

- A Porsche tem muitas camadas de tinta de qualidade nos carros da fabrica. Tenho quatro camadas de cera adicionais e assim não me causa problema nenhum. - disse.

Assim como a água no meu celular, ele cheirava a vegetação putrefata e sal. O fato de não conseguir vê-lo me incomodava, precisava me afastar dos faróis.

Podia ter corrido, mas fugir de algo que pode ser mais rápido é mais um último recurso do que uma primeira reação. Talvez apenas quisesse aquela bengala estúpida. Entrei na estrada e percorri um semicírculo grande em torno do carro até ficar voltada para a parte lateral do carro ao invés das luzes na parte da frente.

Assim que os meus sapatos tocaram os asfalto, senti um manancial de magia que parecia se alastrar concentricamente pelo chão. A forma da magia normalmente é quase dolorosa, como tocar com a minha língua em ambos os lados de uma pilha de nove volts. Essa noite havia nessa magia algo mais, algo... predatório.

Fideal não era tão fraco como parecera na festa de Tim.

Sibilei entre dentes enquanto dores intensas abalavam minhas pernas. Parei no lado oposto da estrada. Meus olhos ainda ardiam, mas pelo menos conseguia vê-lo parado ao lado da porta do motorista. Tinha um aspecto um pouco diferente daquele que vira na casa de Tim. Não conseguia vê-lo bem ao ponto de distinguir pormenores, mas parecia mais alto e largo do que antes.

Esperou cortesmente que eu parasse de me mexer antes de falar. Normalmente é mau sinal quando alguém que está nos caçando é educado. Significa que esse alguém tem certeza que pode nos pegar quando quiser.

- Então você é a cadelinha do focinho intrometido. - disse. - Devia ter mantido o seu focinho para os da sua espécie.

- Zee é meu amigo. - disse. Por alguma razão, a parte da "cadelinha" tinha me ofendido. No entanto soaria estúpido dizer "Não sou uma cadela". - Vocês, Fae, iam deixá-lo morrer por um crime cometido por outra pessoa. Eu fui a única que se mostrou disposta a procurar um assassino em outro lugar. - pensei em uma razão pela qual pudesse estar chateado comigo. - Estou olhando para um assassino nesse momento?

Lançou a cabeça para trás e riu, um riso gutural e violento. Quando voltou a falar, sua voz adquiriu um sotaque escocês e desceu uma oitava.

- Eu não matei O’Donnel. - afirmou, o que não era propriamente uma resposta.

- Eu tenho proteção. - disse baixinho, com cuidado de não colocar na voz um tom de desafio. - A minha morte significaram o inicio de uma guerra com os lobisomens. - informei. - Nemane está a par de tudo isso.

Balançou a cabeça de forma contundente, como um atleta que esticasse os músculos do pescoço. O seu cabelo estava mais longo, pensei, e murmurava úmido quando mexia.

- Nemane não é o que foi em tempos. - disse. - É fraca e cega e se preocupa muito com os humanos. - inspirou e cresceu. Quando acabou a inalação de ar, o contorno da sua forma era de trinta centímetros maior do que o de qualquer macho humano que alguma vez vira, e era quase tão largo quanto alto. Meus olhos estavam se adaptando e consegui notar que o tamanho não fora a única transformação.

- A exigência da sua morte foi determinada. - disse. - É de fato uma pena que só tenham me dito que as ordens tinham sido anuladas quando já era tarde demais.

Riu novamente e agitou os úmidos cabelos negros que o taparam como um sobretudo esfarrapado. Seus lábios eram maiores do que antes e na longa caverna da sua boca se desenhavam formas longas e pálidas.

- Já foi a tanto tempo. - sua voz era molhada e lamacenta. - A carne humana tem um sabor doce na minha língua e já se passou muito tempo que as minhas entranhas gritam por ela. - rugiu com um vento de inverno enquanto atravessava a estrada com um só salto.

Eu estava na forma de coiote e fugi a toda a velocidade pela estrada antes que ele aterrissasse. Peças de roupa iam se espalhando atrás de mim enquanto corria. Tropecei uma vez ao enfiar uma pata no sutiã, mas me sacudi e me livrei dele na queda.

Podia ter me apanhado essa hora, mas julgo que estava desfrutando da perseguição. Essa deve ter sido a razão pela qual não voltou atrás para usar o Porsche. Talvez precisasse de algum tempo para encolher para conseguir se enfiar nele, mas o carro era muito mais rápido do que eu e podia se deslocar sem cansar.

Tive que me manter na estrada até que essa atravessava o canal. Era muito largo para saltar sobre ele e não ia nadar com um Fae aquático atrás de mim.

Assim que o atravessei, virei para a estrada paralela ao canal, correndo em direção ao rio. Pulei a cerca na parte traseira da primeira casa e me apressei através do terreno. Na hora em que o cão deles reparou em mim e começou a latir, já estava no terreno vizinho e corria pela grama mais alta do que eu. Depois de ter corrido quase um quilometro, abrandei a velocidade.

O terreno era macio e havia cavalos e vacas nos campos. Um burro me perseguiu ao longo do seu cercado com intenções assassinas, mas acelerei até pular do seu cercado. A maioria dos cavalos e vacas não ligam para coiotes. As galinhas fogem, mas os burros nos odeiam.

Quando ouvi o ruído de cascos atrás de mim, achei que o burro talvez tivesse pulado a sua cerca, até o cavalo pelo qual acabara de passar soltar um guincho apavorado.

Os kelpies conseguiam assumir a forma de cavalo, pensei enquanto voltava a velocidade máxima.

Notei que o que quer que Fideal fosse, não gostava de estradas de ferro. Embora fosse capaz de atravessá-los, o deixava lento e o faziam soltar guinchos de dor. Finley é atravessada por imensas estradas de ferro e, depois disso, atravessei-os em todos os locais possíveis sem abrandar a minha corrida desenfreada em direção a casa de Adam.

Nos terrenos lisos, Fideal era mais rápido do que eu, mas não conseguia atravessar ou pular obstáculos com a mesma rapidez. Escalei uma cerca com cerca de três metros e meio de altura, que rodeava um dos enormes complexos industriais, e desejei que fosse de ferro. O arame farpado tornou a tarefa um pouco mais interessante, mas consegui.

A cerca cedeu ao seu peso e ouvi o metal chiar enquanto a cerca entrava em colapso. Isso o deixou lento, portanto evitei o portão aberto e também escalei a cerca do lado oposto do complexo.

Embora não tivesse feito qualquer desvio, o rio fazia, então tive que correr cerca de um quilometro ao longo da margem, passando por vários barcos velhos presos na linha da costa. Ganhou terreno em relação a mim até eu ter alcançado a grande cerca de amoras silvestres.

Esse era uma das minhas trilhas habituais e ao longo dos anos construíra um caminho por baixo dos arbustos, pelo qual consegui correr quase sem impedimento. Fideal, sendo muito maior, não podia se dar a esse luxo.

Quando ultrapassei a cerca de Adam, já não ouvia Fideal atrás de mim, então me transformei enquanto corria. Calculei um pouco mal o timing e tropecei, caindo dolorosamente de joelhos sobre o cascalho na rampa de entrada para a casa de Adam. O carro de Darryl estava lá, assim como o Toyota de Honey. A pequena caminhonete Chevy de cor vermelha pertencia a Ben.

- Adam. - gritei. - Problemas a caminho! - as minhas pernas se recusavam a funcionar direito como mudei rápido, de modo que tropecei quando tentava ficar de pé novamente e correr ao mesmo tempo.

Na hora em que alcancei a varanda, Darryl tinha a porta principal aberta. Cai novamente, e dessa vez me mexi até encostar-me à parede exterior da casa, abaixo da grande janela panorâmica.

- Uma espécie qualquer de Fae aquática. - disse, arquejando e tossindo com força. - Pode ter mais ou menos o aspecto de um cavalo ou de um animal qualquer com cascos. Ou pode ser um monstro do pântano tão grande como o SUV do Adam. Um monstro com presas.

Devia ter soado como uma pateta, mas isso não perturbou Darryl.

- Você continua a se meter com os monstros, Mercy, e qualquer dia acabará sendo comida. - seu tom era calmo e frio enquanto se mantinha de olhos cravados na cerca que eu saltara. Tinha uma pistola, grande pistola automática em uma das mãos, devia andar com ela escondida porque não tinha visto segurá-la quando abrira a porta.

- Oh, espero que não. - disse entre arquejos. - Não quero ser comida. Estou contando que os vampiros me matem primeiro.

Riu, embora o que dissera não tivesse assim tanta graça.

- Todos estão se transformando. - informou, e não se referia a uma mudança de roupa ou personalidade. No entanto, sentia-os, não precisava ter dito. - A que distância essa coisa estava de você?

Balancei a cabeça.

- Não muito longe. Conduzi-o até a cerca de amoras silvestres, mas... Ali! Ali! No rio.

Darryl apontou para aquele lugar e começou a disparar na direção da coisa que emergiu da água negra e começou a caminhar lentamente sobre a estrada de cascalho de Adam.

Tapei abruptamente os ouvidos em uma tentativa de salvar minha audição. Mesmo com a luz da varanda de Adam e a minha visão noturna, não conseguia me concentrar verdadeiramente na coisa que Fideal se tornara. Era como se o seu corpo engolisse a luz e me deixasse com uma impressão de vegetação de pântano e água.

As balas o deixaram lento, mas não me pareceu que estivesse causando danos suficientes para detê-lo. Tinha recuperado o fôlego, mesmo que com a sensação de que minhas pernas eram feitas de borracha, e não tinha qualquer intenção de ficar ali parada como uma presa.

Comecei a me levantar e Darryl agarrou meu braço e me puxou para baixo no momento em que o vidro da janela acima de mim se estilhaçou e um lobisomem pulou sobre a minha cabeça e pousou na varanda, a uns três metros na minha frente. Parou aí, examinando Fideal.

- Cuidado, Ben. - adverti. - É tão rápido como eu e tem dentes enormes.

O lobisomem alto e magro de pelagem vermelha olhou para trás e a varanda rangeu em sinal de aviso. Ben dirigiu-me um sorriso zombador, uma expressão infinitamente mais impressionante com reluzentes presas brancas do que quando a exibia na forma humana. Pulou a varanda e seguiu silenciosamente ao encontro de Fideal.

Um lobo negro, com as extremidades dos pelos prateados, como um gato siamês invertido, saltou vindo de trás de mim. Virou os olhos de Adam para mim, que estava coberta de pequenos vidros, e depois olhou para Darryl.

- Certo. - Darryl disse, embora soubesse que Adam não conseguia falar com seu bando quando estava na forma de lobo como o Marrok conseguia.

Darryl largou a arma que vinha disparando continuamente e pegou em mim cuidadosamente.

- Vamos tirar esses vidros de você. Se sangrar até morrer, Adam vai reduzir Ben a migalhas.

Olhei para baixo e notei que estava sangrando de pequenos cortes espalhados por toda a minha pele nua. Deixei que Darryl me tirasse de cima dos vidros e me transportasse até o interior da casa antes de me libertar.

Soltou-me e começou a rasgar as próprias roupas.

Mais um lobisomem, ou antes mulher-loba. Essa era castanho-amarelado e bela, passando por mim correndo e tombando-me para o lado. Honey. Foi seguida por mais um par de lobos, um era malhado e outro cinzento. Mais dois do bando de Adam, embora não soubesse o nome de nenhum deles.

- Mercy, o que é aquela coisa? - o marido de Honey, Peter, ainda estava na forma humana. Reparou no meu olhar e disse: Adam disse para eu me manter na forma humana. Cabe-me levar Jesse daqui se as coisas ficarem ruins.

Deixei de prestar atenção nele quando escutei um ouvi vindo do exterior. Teria sido necessária muita dor para arrancar um som de um lobisomem tão perto do centro do bando. Eram treinados para lutar silenciosamente de modo a não atrair muita atenção. Aquele uivo significava que alguém estava gravemente ferido.

Tinha-o trazido até aqui. Tinha que ajudar na luta.

- Ferro frio. - a minha voz tremeu com a adrenalina. - Sal não vai funcionar com ele, não me parece, e não tenho roupa interior para virar do avesso. Os sapatos também não servem. Preciso de alguma coisa em aço.

- Aço? - Peter perguntou.

Ignorei-o e corri em direção a cozinha, pegando uma faca de cozinha e uma talho do conjunto de facas de marca Henckels pelo qual Adam pagara uma fortuna. Não eram de aço inoxidável porque aço comum com elevado teor de carbono permite um gume melhor. Também é mais eficaz com os Fae.

No momento em que sai da cozinha, o marido de Honey parou na base das escadas, na minha frente. Acho que tinha acabado de saltar o lance inteiro, os lobisomens são capazes de fazer coisas como essa. Tinha uma espada na mão.

- Mercy. - disse. Sua voz soava de um modo diferente do que algum dia escutara. Seu agradável sotaque do Meio Oeste desapareceu e soava vagamente alemão, não exatamente como Zee, mas próximo disso. - Adam me obrigou a tomar conta de Jesse e não ajudar.

Algo atingiu a parte lateral da casa com força.

Uma espada era melhor do que duas faquinhas.

- Sabe usar essa coisa?

- Já.

Como companheira declarada de Adam, podia alterar as suas ordens, embora tivesse que responder por isso se ele ficasse chateado.

- Vá ajudar. Eu me mantenho fora da luta e levo Jesse para longe daqui se a coisa ficar feia.

Assim que as ultimas palavras saíram da minha boca, ele já tinha desaparecido!

Tentei olhar lá para fora pela janela da sala de estar, mas a varanda parcialmente coberta escondia muita coisa. Teria uma perspectiva melhor do quarto de Jesse, e talvez ela tivesse roupas que me servissem.

Subi as escadas em passo de corrida, mas na hora em que alcancei o topo, tinha sorte por ainda estar andando. Na forma de coiote, consigo trotar durante horas, mas correr em grande velocidade é outra história. Simplesmente já não tinha a menor capacidade de correr.

Jesse deve ter me ouvido, porque enfiou a cabeça do lado de fora do quarto e depois se apressou em minha direção.

- Posso ajudar?

Olhei para baixo para notar a causa da consternação em seu rosto. Não era a minha nudez. Ela tinha crescido com lobisomens, e os metamorfos não podem se dar ao luxo de grandes pudores. Para os lobos, a transformação é um processo lento e doloroso, se estiverem rasgando roupas enquanto se transformam, dói ainda mais. Torna-os ainda mais mal-humorados do que o habitual, de modo que na maior parte dos casos tiram as roupas antes.

Não, não era a minha nudez, era o sangue. Eu estava coberta dele.

Horrorizada, olhei para trás em direção ao carpete que estava manchado com o meu sangue desde a base das escadas.

- Droga. - disse. - Vai sair caro limpar isso.

Ouvi um rugido que balançou a casa e deixei de prestar atenção no carpete. Larguei o corrimão que estava usando para me manter em pé e segui aos tropeços até a janela de Jesse, que estava aberta de par a par. Ela já tinha tirado a armação de rede da janela. Ainda com uma faca em cada mão, sai pela janela e desci até o telhado da varanda, onde podia ver o que estava acontecendo.

Os lobisomens estavam seriamente maltratados. Ben estava caído contra o SUV de Adam e havia um amassado enorme.

Darryl circulava em torno do Fae, com a sua pelagem malhada se tornando indistinta na escuridão. Se não estivesse se mexendo, não sei se teria conseguido vê-lo. Adam estava empoleirado nas costas do Fae, suas patas dianteiras golpeando a frente como se fosse um gato gigante, mas não conseguia notar que danos estava provocando. Honey e seu marido estavam trabalhando como equipe. Ela atormentava o Fae com mordidas rápidas até ele se virar para ela e seu marido tirava proveito da sua falta de atenção para furar com a espada.

A partir do ponto vantajoso onde me encontrava, consegui ouvi Peter murmurar: - Não consigo encontrar carne no meio de todas essas plantas marítimas.

- Não consigo notar se estão ganhando ou perdendo. - Jesse comentou enquanto atravessava a janela. Atirou seu edredom encima de mim e se aninhou perto da beira do telhado.

- Nem eu. - comecei a dizer, mas parei a meio da ultima palavra enquanto uma onda de magia me varria dolorosamente, me fazendo cair de bunda.

- Cuidado! - gritei para os lobos abaixo. Fui para a beira do telhado o mais rápido possível que consegui, mesmo a tempo de ver o Fae se mover com uma velocidade incrível através da extensão de praia até o rio muito escuro. Adam ainda estava preso nas suas costas.

Os lobisomens não sabem nadar. Assim como os chimpanzés, tem um nível de gordura muito baixo, são muito densos para flutuar. Meu pai adotivo tinha cometido suicídio metendo-se no leito de um rio.

Preparei-me para pular do telhado. Podia ter me transformado em pleno ar, e em quatro patas teria alcançado a agua em segundos, mas prometera vigiar Jesse. Só porque uma promessa se torna desesperadamente inconveniente, isso não quer dizer que não tenhamos de nos manter fieis a ela.

Peter largou a espada e seguiu disparado em direção ao rio sem perder um segundo que fosse. A luz da varanda permitiu-me ver a sua cabeça a medida que desaparecia debaixo da água.

A mão de Jesse se fechou em torno da minha com força capaz de esmagar ossos.

- Vá lá! Vá lá! - murmurou, e em seguida soltou um berro de alegria enquanto Peter reemergia, arrastando um lobo que tossia e expelia água da boca.

Sentei-me e, aliviada, enterrei o rosto nas mãos.


10

- Está coberta de sangue e vidro. - Jesse disparou enquanto me ajudava a arrastar os ossos cansados por cima do peitoril da janela. - Essa sangue todo não vai ajudar em nada em deixar os lobos calmos.

- Tenho que ir lá embaixo e ver o que aconteceu. - insisti teimosamente, não pela primeira vez. - Alguns deles estão feridos e a culpa é minha.

- Eles gostaram de cada segundo daquela luta e você sabe disso. Seja como for, vão precisar de algum tempo até se acalmar o suficiente. Meu pai vai subir quando estiver em condições de falar. Se enfie debaixo do chuveiro antes que você arruíne o carpete.

Olhei para baixo e reparei que do meu corpo continuava a derramar sangue. Meus pés começaram a vibrar assim que me dei conta.

Com um pouco mais de incitamento da parte de Jesse, segui para o chuveiro (no banheiro de Adam, uma vez que o chuveiro do corredor ainda estava exposto ao mundo). Jesse enfiou calças de treino velhas e uma blusa que mostrava a todo mundo que eu Amava New York em meus braços e fechou a porta do banheiro atrás de mim.

Passada a excitação, estava tão cansada que mal conseguia me mexer. O banheiro de Adam era em tons de castanho que faziam com que o espaço não fosse insípido. Sua ex-mulher, independentemente dos seus defeitos, e eram muitos, tinha um excelente gosto.

Enquanto esperava que a água aquecesse, lancei os olhos ao espelho que ocupava a parede inteira desde o chuveiro às pias duplas e apesar da culpa por ter trazido o Fae até o bando de Adam que não suspeitava de nada, tive que sorrir. Parecia uma coisa saída de um filme de terror Tipo B.

Nua, estava coberta de sujeira de pântano das pontas dos dedos aos cotovelos e dos dedos dos pés aos joelhos, fico sempre admirada com a quantidade de pântanos que existem em Tri-Cities, que é basicamente um deserto. O resto de mim reluzia, como se tivesse espalhado uma loção brilhante em vez de um vidro partido ter caído encima do meu corpo coberto de suor. Aqui e ali havia vidros maiores que caiam de mim a cada vez que me mexia, o meu cabelo estava cheio deles.

E em todo o corpo tinham cortes minúsculos dos quais escorria sangue. Levantei o pé e removi um vidro grande, responsável pela piscina de sangue que crescia em minha volta. No dia seguinte os cortes iam doer de verdade. Não foi a primeira vez que desejei ter a capacidade de curar feridas, característica dos lobisomens.

Do chuveiro começou a subir vapor e me meti debaixo dele, fechando a porta de vidro atrás de mim. A água causou-me uma forte ardência e sibilei quando atingiu partes do corpo doloridas, depois praguejei quando pisei em mais um pedaço de vidro, provavelmente um dos que tinham caído do cabelo assim que fui atingida pela água.

Muito cansada para extrair o vidro, encostei-me a parede e deixei que a água caísse sobre a minha cabeça, com ela, passou por mim a sensação de alivio, retirando-me dos joelhos a rigidez que ainda existia neles. Apenas o medo de me sentar sobre os pedaços de vidro e cortar algo mais precioso do que os meus pés me impediu que me deixasse afundar no chão de azulejo.

Elaborei um inventário.

Ainda estava viva, e, com a possível exceção de Ben, os lobisomens também. Fechei os olhos e tentei não pensar no lobo vermelho estendido na grama. Provavelmente Ben ficaria bem. Os lobisomens suportam muitos ferimentos e havia os outros para manterem o Fae afastado dele enquanto estava indefeso. Ele ficaria bem, me tranquilizei, mas isso não fazia diferença. De alguma maneira ia ter que reunir a energia necessária para sair da ducha e ver o estado das coisas.

A porta do banheiro se abriu, e senti o ímpeto do poder de Adam.

- Há um Porshe parado no meio da Finley Road, em frente ao Two Rivers Park. - disse, embora só naquele momento tivesse me lembrado disso. - Alguém vai se chocar contra ele se não for retirado.

A porta se abriu novamente e escutei um murmúrio de vozes.

Mesmo com o barulho do jato de água, ouvi alguém dizer "Eu cuido disso". Era novamente o marido de Honey, pensei, porque os lobisomens não conseguem falar quando estão na forma lupina e ele tinha sido o único a permanecer na forma humana. Alguns dos lobos já podiam ter voltado a forma humana a essa hora, mas sem uma boa razão para fazer isso provavelmente permaneceriam na forma de lobos durante a noite. Com exceção de Adam.

O fato de ter se transformado tão rapidamente para lutar com o Fae que trouxera para ele, a própria luta e a circunstancia de voltar a forma humana em menos de uma hora não era uma conjugação que fosse deixá-lo bem-disposto. Tinha esperança de que tivesse comido alguma coisa antes de subir, a transformação suga muita energia e preferia que ele não estivesse com fome. Estava sangrando muito para que isso fosse uma boa ideia.

Ter dito a Adam para cuidar do carro de Fideal deveria ter me dado tempo suficiente para sair do azulejo e me embrulhar em uma toalha, mas não consegui reunir a energia para fazer mais do que permanecer onde estava.

A grande porta de vidro foi aberta, mas não olhei para cima. Adam não disse nada, mas, colocando as mãos sobre os meus ombros, virou-me para que eu ficasse voltada para o chuveiro. Inclinei a cabeça ainda mais e dei um passo em frente para que a água batesse em minha cabeça e não no rosto.

Deve ter pegado um pente, porque começou a me pentear para retirar os vidros que ainda restavam. Revelou o máximo de cuidado para não tocar em mais nenhuma parte do meu corpo.

- Tenha cuidado. - avisei. - Há vidro espalhado pelo chão todo.

O pente hesitou e depois retornou a sua tarefa.

- Estou calçado. - respondeu. O modo como respondeu indicou-me que o lobo não estava muito longe, por muito humanas e delicadas que as mãos parecessem.

- Está tudo bem? - perguntei, apesar de saber que nesse momento ele precisava de silencio.

- Ben está ferido, mas nada que não passa até amanha, e não é nada que ele não mereça depois de ter saltado pela janela. O vidro é pesado e mais afiado do que a lamina de uma guilhotina. Teve sorte em não cortar a própria garganta, e mais sorte ainda por você só ter cortes.

Conseguia sentir a raiva vibrar através dele. Os lobisomens, na forma lupina, não estão sempre zangados, do mesmo modo que um urso-pardo não está sempre zangado, apenas parece estar. Se o que Honey me dissera estava certo, o temperamento de Adam andava ainda mais instável do que o habitual. A luta não teria ajudado.

Tudo isso significava que não podia disfarçar o meu próprio estado incerto picando-o, não seria justo para ele. Merda.

Estava muito cansada para embarcar no tipo de jogos que mantinha os lobisomens calmos e ao mesmo tempo impedir que soubesse quão assustava eu estive.

- Não estou ferida. - disse. - Apenas cansada. Aquele Fae sabia correr.

Rosnou quando mencionei o seu oponente recente, e o som não era humano.

Praguejei, embora normalmente evitasse fazê-lo na presença de Adam, uma vez que ele tinha a sensibilidade de um homem criado nos anos cinquenta, quando as mulheres não praguejavam.

- Estou cansada demais para isso. Vou me calar.

Parou de pentear o meu cabelo e esperei pacientemente até ele confirmar que tirara o vidro. Desligou a água e saiu do azulejo para tirar uma toalha de um armário ao lado da porta. Olhei para ele nessa hora, enquanto tinha a cabeça virada, de modo que não houvesse possibilidade de nossos olhos se cruzarem. Embora estivesse tirado a camisa, vestia calças de gana e sapatos completamente encharcados. No momento em que ia se virar, abaixei os olhos. Voltou ao box e me secou com uma toalha fofa e perfumada. Tinha estado muito tempo na maquina de secar, de modo que não era muito absorvente, apesar da espessura do tecido. Mordi o lábio para não dizer isso.

Assim, tão perto, consegui através do cheiro perceber o quão perto da superfície a sua fúria estava, portanto mantive os olhos cravados em nossos pés e permaneci em posição submissa enquanto ele acalmava o seu estado cuidando de mim.

Consigo fingir que sou submissa diante dos melhores. É uma técnica de sobrevivência no seio dos lobisomens.

Parou quando alcançou a minha barriga. Largou a toalha e deixou-se cair sobre um joelho até o seu rosto ficar ao nível do meu umbigo. Fechou os olhos brilhantes e pressionou a testa contra a vulnerável suavidade abaixo da minha caixa torácica.

A pele da barriga é suave e delicada, desprotegida. Mas o meu faro disse que ele definitivamente não estava pensando em comida. Sem respirar, ficamos algum tempo a espera.

- Samuel falou da sua tatuagem. - disse, o ar quente da sua respiração contra minha pele.

Não a tinha visto antes? Ter muito cuidado para não provocá-lo implicava estar sempre vestida quando ele estava por perto, portanto é possível que não.

- É a pegada de um coiote. - expliquei. - Fiz quando estava na faculdade.

Ergueu o rosto até nossos olhos se cruzarem.

- Pra mim parece uma pegada de lobo.

- Foi isso que Samuel disse? - perguntei. Não me sentia indiferente ao contato próximo. Não consegui evitar que os dedos da minha mão se deslizassem pelo seu cabelo. - O que ele disse? Que tinha feito uma marca em mim como prova de que era propriedade dele? - oh, ele não iria mentir, não a outro lobisomem, não é possível. Mas um indicio aqui e ali era igualmente eficaz.

Adam pressionou a cabeça contra mim até quase não conseguir ver sua cabeça. A sua bochecha e seu queixo picava, o que a principio devia ter me causado um comichão ou dor, mas não era essa a sensação que eu tinha. Suas mãos deslizaram pelas minhas pernas acima até as nádegas, onde foram apertadas, pressionando-me ainda com mais força contra o seu rosto.

Seus lábios eram macios, mas não tão macios como a sua língua.

Estávamos a beira de dar um passo além daquilo para me sentir preparada, e durante um longo período de tempo considerei o que estava acontecendo. Fechei os olhos. Talvez se tivesse sido outra pessoa que não Adam eu tivesse deixado. Mas uma das cosias que o Marrok tinha me ensinado é que com os lobisomens estamos sempre lidando com dois tipos de instintos. O primeiro pertencia a besta, mas o segundo pertencia ao homem. Adam não era um homem moderno, disposto a saltar de cama em cama. Na época dele não se tinha relações sexuais a menos que se fosse casado ou se estivesse noivo, e eu sabia que ele acreditava nisso.

Tendo eu sido o resultado de uma noite de sexo de ocasião e crescido sem pertencer a ninguém, também acreditava nisso. Oh, tinha tido os meus casos, mas já não era um hábito meu.

Seria assim tão ruim me tornar companheira de Adam? Tudo o que eu tinha que fazer para que essa relação desse mais um passo era não fazer nada.

- Minha colega de quarto na faculdade tinha crescido para ajudar os pais a gerenciar uma loja de tatuagens e pagou os estudos fazendo tatuagem. Dei-lhe explicações de algumas disciplinas e ela se ofereceu para me fazer uma tatuagem em troca. - disse, tentando distrair um de nós.

- Ainda com medo de mim? - perguntou.

Não sabia como responder por que na verdade não era isso. O que temia era a pessoa que eu me tornaria perto dele.

Suspirou e se afastou até deixar de haver qualquer contato entre as nossas peles, ficando de pé logo em seguida. Atirou a toalha úmida para o chão e saiu do box.

Também me preparei para sair do box.

- Fique ai.

Pegou outra toalha e me embrulhou nela. Depois me pegou e me deixou no balcão entre as pias.

- Vou tirar essas roupas molhadas e arrumar qualquer coisa para calçar. Há vidro espalhado no piso de baixo e em todos os lugares por onde andou. Fica sentada aqui até eu voltar.

Não esperou que eu concordasse, o que provavelmente foi a melhor opção porque se respondesse teria vacilado. Aquela ultima frase teria me deixado indignada mesmo que o seu tom de voz não tivesse sido de natureza militar. Porque era sempre eu a tentar lidar com lobisomens e não o contrário?

Talvez pelo fato da outra forma de Adam ter garras enormes e dentes grandes.

Conseguia alcançar as roupas de Jesse sem sair do balcão e por isso me livrei da toalha e me enfiei nas calças de treino e depois a camisa. Minhas camisas eram feitas de algodão grosso a moda antiga, mas Jesse vestia blusas finas da moda que colavam a cada contorno do corpo. Uma vez que minha pele ainda estava úmida e a camisa era justa, parecia uma refugiada de um concurso de miss camisa molhada.

Peguei a toalha a usei-a para tapar os meus bens pessoais precisamente no momento em que Adam voltou. Vestia um par de calças de ganga lavadas e secas e calçava outro par de sapatos. Não tinha se dado ao trabalho de vestir uma camisa, depois de duas transformações em menos de uma hora, devia estar com a sensação de pele esfolada, como se tivesse uma queimadura. O chuveiro não teria servido para amenizar isso.

Concentrei-me nos pés dele e apertei a toalha um pouco mais contra o peito.

Para a minha surpresa, observou-me atentamente e soltou uma risada de repente.

- Parece tão dócil. Acho que nunca tinha te visto dócil.

- As aparências enganam. - repliquei. - O que estou é exausta e assustada além de ser estúpida. Desculpa por tê-lo trazido pra cá e ter colocado Jesse em perigo.

Mantive-me de olhos fixos em seus sapatos a medida que se aproximava do balcão. Inclinou-se para frente, envolvendo-me no seu poder e cheiro. Friccionou o rosto no meu cabelo, os pelos da barba que despontavam prenderam-se nos fios de cabelo molhados.

- Tem alguns cortes no couro cabeludo. - disse.

- Desculpe por tê-lo trazido. - repeti para Adam. - Pensei que ia conseguir despistá-lo durante a perseguição, mas ele era muito rápido. Ele assumiu outra forma, uma espécie de cavalo, acho, apesar de estar muito preocupada em fugir para olhar.

Sua cabeça parou e respirou fundo, avaliando o meu estado de espírito.

- Exausta, assustada e estúpida, você disse. - calou-se como se tivesse avaliando o que eu disse. - Exausta sim. - se conseguia cheirar a exaustão, o seu olfato era muito melhor do que o meu, algo que não acreditava. - E consigo detectar um ligeiro vestígio de medo, embora a ducha tenha cuidado disso. Mas estúpida eu não acredito. O que mais você podia ter feito senão trazê-lo para cá onde alguém poderia encará-lo de frente?

- Podia tê-lo levado para outro lugar.

Empurrou meu queixo com as pontas dos dedos e me obrigou a olhar diretamente para seus olhos dourados brilhantes.

- Teria morrido.

A sua voz era suave, mas os olhos de lobo estavam incandescentes com o fogo da batalha.

- Jesse poderia ter morrido... você quase morreu. - por momentos revivi a sensação das minhas vísceras se revolverem, quando o vira desaparecer debaixo da água.

Deixou-me esconder o rosto contra o seu ombro para que não notasse a minha expressão, mas senti o poder que vinha vibrando na minha pele perder a intensidade. A minha reação ao seu quase afogamento agradou-o.

- Shhh. - disse, e uma das suas grandes e endurecidas mãos deslizou por baixo do meu cabelo e na minha nuca, segurando-me contra ele. - Tossi cinco litros de água do rio e estou como novo. Muito melhor do que estaria se tivesse morrido por não confiar em mim para cuidar da saúde de um Fae solitário.

Deixar a minha cabeça encostada a ele era tão perigoso quanto qualquer uma das coisas que tinha feito essa noite, e eu sabia disso. Simplesmente não conseguia ficar preocupada. Cheirava tão bem e a sua pele era tão quente.

- Muito bem. - disse por fim. - Deixe-me dar uma olhada em seus pés.

Fez mais do que isso. Lavou-os com água quente na pia e friccionou-os com uma escova que tirou de uma gaveta, um gesto que teria sido desconfortável mesmo se os meus pés não estivessem cortados.

Em resposta aos meus gritos de dor, ronronou muito, mas não abrandou. Tão pouco tinha a possibilidade de puxar o pé da mão dele porque o mantinha firmemente agarrado pelo tornozelo. Mergulhou meus pés em peróxido de hidrogênio e depois os secou com uma toalha escura.

- Vai acabar ficando com pontos brancos na toalha. - disse, puxando os pés.

- Cala a boca, Mercy. - replicou, agarrando-me pelo tornozelo e me arrastando até conseguir segurar o pé com uma mão e usar a toalha para limpá-lo com a outra.

- Pai? - Jesse espreitou cuidadosamente pela porta. Quando nos viu, entrou e estendeu um telefone sem fio. - Tem uma chamada do Tio Mike.

- Obrigada. - disse, pegando o telefone e encostando-o ao ouvido.

- Pode acabar isso por mim, Jesse? Basta secá-los, coloque bandagens e arranje qualquer coisa par ela calçar antes de a deixarmos ir embora.

Esperei que levasse o telefone para fora do quarto e para o andar de baixo até atirar a toalha em Jesse, que estava dando risadinhas.

- Se pudesse ver a sua cara agora. - disse. - Parece um gato em uma banheira.

Sequei os pés e em seguida abri a caixa de bandagens que Adam colocara no balcão ao meu lado.

- Consigo secar os meus próprios pés. - disparei. - Senta aqui, fique aqui.

Estava sentada entre as pias, por isso havia espaço no lado oposto ao que estava mais próximo da porta para Jesse encostar o quadril e ficar meio sentada.

- Porque deu ouvidos às ordens dele?

- Porque acabou de salvar meu bacon e não preciso deixá-lo mais nervoso do que já está. - apenas três cortes precisavam de bandagens, todos eles no meu pé esquerdo.

- Vai. Admite, gostou que ele tivesse ficado aflito por sua causa.

Cravei os olhos nela. Ao ver que não recuava, concentrei-me em tirar o papel de uma bandagem para poder colocá-lo. Não ia admitir nada. Não com Adam no andar de baixo, que poderia ouvir algo que eu não queria que ele ouvisse.

- Porque está com uma toalha em volta? - perguntei.

Mostrei-lhe e ela deu uma risadinha.

- Ops. Esqueci que não tinha sutiã. Vou te buscar um moletom para vestir por cima disso.

Quando se ausentou, ri de mim. Ela tinha razão. Há alguma coisa especial em ter alguém cuidando de nós, mesmo quando não precisamos, talvez especialmente quando não precisamos.

No entanto, havia uma outra coisa que me deixava feliz. Apesar de Adam estar irritado, apesar de ter estado dando ordens a torto e a direito, não sentira aquele desejo de fazer o que quer que ele pedisse e que fazia parte da sua magia como Alfa. Se conseguia fazer isso nessas circunstancias... Talvez pudesse ser sua companheira e me preservar ao mesmo tempo.

Os sapatos de Jesse que Adam me trouxera eram muito pequenos, mas além do moletom, Jesse providenciara um par de chinelos que me serviam.

O marido de Honey entrou na casa na hora em que eu descia as escadas. Ao seu lado estava Honey, tão bela na forma lupina como era na humana. Dirigiu-me um sorriso amigável quando me viu.

- Não encontrei o Porshe, mas o seu Rabbit estava parado ao lado da estrada com as chaves na ignição. Não consegui ligá-lo, por isso tranquei-o. - entregou as chaves.

- Obrigada, Peter. Fideal deve ter voltado ao carro. Isso significa que não estava gravemente ferido. - ia para minha casa, mas com Fideal a solta, não me pareceu uma ideia muito boa.

Peter obviamente partilhava comigo a frustração em relação ao estado de saúde do Fae.

- Lamento. O aço teria resolvido o assunto, acho, mas não consegui encontrar o corpo dele por baixo de toda a folhagem.

- Como que maneja uma espada tão bem? - perguntei. - E porque Adam tinha uma espada aqui?

- A espada é minha. - Jesse interveio. - Comprei-a na Feira Renascentista no ano passado e Peter tem me ensinado a manejá-la.

Peter sorriu.

- Eu era um oficial da cavalaria antes da Transformação. - explicou. - Usávamos armas de fogo, claro, mas a precisão delas não era grande coisa. A espada continuava a ser a nossa primeira arma. - soou como sempre tinha soado, com o sotaque do Meio Oeste firmemente retornado.

Tinha sofrido a Transformação durante a Guerra da Independência ou um pouco antes, pensei, para usar armas de fogo mas confiar mais em espadas. Isso fazia dele, excluindo Samuel e o próprio Marrok, o lobisomem mais velho que algum dia conhecera. Os lobisomens podem não morrer de velhice, mas a violência era parte integrante do seu modo de vida.

Reparou na minha surpresa.

- Não sou um dominante, Mercy. Tendemos a durar um pouco mais. - Honey enfiou o focinho debaixo de sua mão e Peter afagou-a de leve atrás das orelhas.

- Legal. - comentei.

- Fideal está em boas mãos. - Adam disse detrás de mim.

Virei-me e o vi recolocar o telefone na base, sobre o balcão da cozinha.

- Tio Mike me garantiu que foi um erro, uma avidez excessiva da parte do Fideal para cumprir as ordens dos Senhores Cinzentos.

Ergui as sobrancelhas.

- Ele disse que estava ávido de carne humana. Acho que isso pode ser interpretado como avidez excessiva.

Olhou para mim e não consegui interpretar seu rosto ou cheiro.

- Falei com Samuel a pouco. Lamenta por não ter participado da excitação, mas está em casa agora. Se Fideal te seguir até em casa, Samuel vai ter que dar conta. - acenou com a mão a sua volta. - E temos muitos aqui para ir a seu auxilio.

- Está me mandando para casa? - estava flertando com ele? Merda, estava mesmo.

Sorriu, primeiro com os olhos e depois com os lábios, só um pouco, o suficiente para transformar seu rosto em algo que fez meu pulso disparar.

- Pode ficar aqui se quiser. - respondeu, também flertando. Depois, com uma luz perversa iluminando seus olhos, foi longe demais. - Mas, considerando o motivo pelo qual gostaria que ficasse, acho que há homens demais aqui.

Contornei o marido de Honey e sai porta fora, com os chinelos produzindo pequenos estalidos que apesar disso não sobrepuseram o comentário final de Adam.

- Gosto da sua tatuagem, Mercy.

Certifiquei-me de que os meus ombros estavam rígidos enquanto me afastava. Ele não podia suspeitar do sorriso em meu rosto... que depressa se dissipou.

A partir da varanda consegui ver os estragos que a luta provocara tanto na casa como no SUV. O amassado na parte lateral do reluzente veiculo preto ia ser cara de reparar. A parte lateral da casa também tinha sofrido alguns estragos, e não fazia ideia de quanto iria custar o conserto. Quando tive que substituir o revestimento do meu trailer, os vampiros tinham pagado as despesas.

Comecei a calcular os custos da luta. Não sabia ao certo o que Fideal fizera ao meu carro, mas iria demorar horas para arrumar, mesmo se conseguisse retirar todas as peças do Rabbit morto que estava em meu terreno traseiro servindo de motivo de irritação para Adam. Em algum lugar ia ter que arrumar dinheiro para pagar Zee (e na verdade não queria pedir emprestado para Samuel), a menos que Zee tivesse planejado um jogo elaborado para me impedir de investigar o assassino.

Esfreguei o rosto, sentindo-me subitamente cansada. Desde que deixara o bando do Marrok aos dezesseis anos, praticamente não tinha me metido na vida de ninguém. Os únicos problemas onde metera o bedelho tinham sido os meus. Mantinha-me fora dos assuntos dos lobisomens e Zee me mantinha longe dos dele. No entanto, de uma maneira ou de outra, durante o ultimo ano toda essa gestão cuidadosa tinha ido pelo cano.

Não estava certa de que houvesse uma forma de voltar a minha antiga existência pacifica, ou sequer se a queria. Mas o meu novo estilo de vida começava a se tornar dispendioso.

Um pedaço de cascalho enfiou-se entre o chinelo e o meu pé machucado e soltei um grito. Também começava a se tornar doloroso.

Samuel estava a minha espera na varanda com uma caneca de chocolate e um olhar especializado que avaliava meus ferimentos.

- Estou bem. - disse, transpondo a soleira e pegando a caneca. Foi instantâneo, mas os mashmallows eram precisamente o que precisava. - Ben que ficou ferido, e acho que vi Darryl mancar.

- Adam não me pediu para ir lá, portanto nenhum deles deve ter ficado gravemente ferido. - replicou, fechando a porta. Quando me sentei na cadeira na sala de estar, sentou-se no sofá a minha frente. - Porque não me conta o que aconteceu essa noite? Por exemplo, o que aconteceu para o Fideal ter te perseguido?

- O Fideal?

- Costumava viver em um pântano e comer crianças perdidas. - disse. - Você é um pouco mais velha do que o alimento habitual dele. O que fez para chateá-lo?

- Nada. Rigorosamente nada.

Fez um daqueles barulhos que costumava fazer quando não acreditava no que eu estava dizendo.

Dei um gole demorado. Talvez outro ponto de vista reparasse em alguma coisa que tenha me escapado. Contei-lhe o essencial da história, deixando apenas de fora o que tinha acontecido entre eu e Adam depois de ter me enfiado no chuveiro.

Enquanto falava, reparei que Samuel parecia cansado. Adorava trabalhar no E.R, mas pagava um preço por isso. Não apenas o horário, embora pudesse ser mesmo ruim. Era sobretudo o stress de manter o controle quando rodeando de sangue, medo e morte.

Quando acabei de contar a história, pareceu-me melhor.

- Então foi a uma reunião da Futuro Feliz na esperança de encontrar mais alguém que pudesse ter matado o guarda e se deu com um bando de garotos da universidade, e um Fae que decidiu que te comer seria divertido.

Acenei.

- Foi basicamente isso.

- Então o Fae poderia ser o assassino?

Fechei os olhos e visualizei a luta de Fideal com os lobisomens. Ele teria sido capaz de arrancar a cabeça de um homem?

- Talvez. Mas ele não me pareceu preocupado com a investigação.

- Disse que ele estava zangado por estar na reunião. Será que ele estava preocupado com a possibilidade você querer se aproximar dele?

- Pode ter sido isso. - respondi. - Vou ligar para Tio Mike e ver se existe alguma razão que pudesse levar o Fideal a desejar a morte de outros Fae. Não há duvida de que conhecia O’Donnel, e quanto mais descubro coisas sobre ele, mais estranho me parece que ninguém o tenha matado anos atrás.

Samuel sorriu ligeiramente.

- Mas não está convencida de que o Fideal tenha sido responsável.

Balancei a cabeça.

- Passou para o topo da minha lista, mas...

- Mas o que?

- Estava tão ávido. Não de comida, embora também fosse isso em parte, mas da caça. - o Samuel lobisomem compreenderia o que eu queria dizer. - Acho que se o Fideal tivesse matado o guarda, a morte de O’Donnel teria sido diferente. Teria sido encontrado afogado, ou comido, ou então nunca encontrado. - ter colocado as ideias em palavras transformara-as em mais do que suspeita. - Vou ligar para o Tio Mike para saber o que ele acha, mas não acredito que tenha sido Fideal.

Lembrei-me que tinha outro assunto sobre o qual queria falar com Tio Mike.

- E aquela bengala voltou a aparecer no meu carro.

Comecei a me levantar para ir buscar o telefone, mas as minhas pernas tinham levado muita porrada e então caí para trás.

- Maldição.

- O que aconteceu? - o relaxamento cansado deixou Samuel sobressaltado. Lancei um olhar exasperado.

- Já te disse que estou bem. Nada que uns alongamentos, Icy Hot{16} e uma boa noite de sono não resolvam. - pensei em todos os pequenos cortes e decidi ficar sem Icy Hot. - Pode me atirar o telefone?

Tirou-o da base na mesa ao lado do sofá e atirou-o.

- Obrigada. - tinha ligado tantas vezes nos últimos dias que já tinha memorizado o numero do Tio Mike. Tive de passar alguns minutos convencendo os empregados até finalmente chegar a falar com ele.

- O Fideal poderia ter matado O’Donnel? - perguntei sem cerimônias.

- Podia, mas não o fez. - Tio Mike respondeu. - O corpo de O’Donnel ainda estava se contorcendo quando eu e Zee o encontramos. Quem quer que o tenha matado, o fez enquanto nós ainda estávamos na soleira. O glamour de Fideal não é bom ao ponto de conseguir se esconder de mim quando estamos tão próximos. E ele teria arrancado a cabeça de O’Donnel e depois a teria comido, não a atiraria para o lado.

Engoli em seco.

- Então o que o Fideal estava fazendo na reunião da Futuro Feliz e porque o cheiro dele não estava na casa de O’Donnel?

- O Fideal foi a algumas reuniões para ficar de olho neles. Ele nos disse que eles eram mais de conversa do que de ação e deixou praticamente de ir às reuniões. Quando O’Donnel foi morto, foi pedido a ele que voltasse lá. E viu uma coiote intrometida com uma sentença de morte inscrita na cabeça. Um belo lanche de fim de tarde. - Tio Mike parecia irritado, e não era com Fideal.

- E quando que a coiote ficou com a cabeça a premio e porque não me avisou? - perguntei, sentindo-me indignada.

- Eu lhe disse para sair de cena. - respondeu com a voz subitamente fria de poder. - Você sabe demais e fala demais. Precisa fazer o que é dito.

Talvez se ele estivesse na sala eu tivesse sido intimidada. Mas não estava, portanto disse: - E Zee seria condenado por homicídio.

Fez uma longa pausa, interrompida por mim. - E depois seria sumariamente executado em conformidade com as exigências das leis Fae.

Samuel, cuja audição apurada lhe permitia ouvir facilmente a conversa rosnou. - Não tente atirar isso para cima da Mercy, Tio Mike. Você sabe que ela não podia sair de cena, especialmente depois de você ter lhe dito para ela fazê-lo. Teimosa é o segundo nome dela e você a incitou a procurar por mais. O que os Senhores Cinzentos fizeram? Deram ordens a si e ao resto dos Fae para que deixassem de procurar o verdadeiro assassino? Exceto apenas a captura de Zee, na verdade não tem qualquer desavença com a pessoa que matou O’Donnel, não é? Foi ele quem matou os Fae e foi morto em resposta. Fez-se justiça.

- Zee estava cooperando com os Senhores Cinzentos. - Tio Mike disse. A desculpa que tinha substituído a raiva me indicou não só que Samuel tinha razão, Tio Mike queria que eu continuasse a investigar, mas também que a audição do Tio Mike era tão apurada como a de um lobisomem. - Não achei que fossem enviar outra pessoa para reforçar a punição e eu tenho algum controle sobre os Fae daqui. Se eu soubesse que iam enviar Nemane, teria avisado. Mas ela concedeu uma prorrogação.

- Ela é uma assassina. - Samuel replicou.

- Vocês, lobos, tem o seu próprio assassino, não é verdade, Samuel filho do Marrok? - Tio Mike disparou. - Quantos lobos que seu irmão matou para manter a sua espécie em segurança? Condena-nos a mesma necessidade?

- Quando vem atrás da Mercy, condeno. E Charles só mata os culpados, não os inconvenientes.

Clareei a garganta.

- Não vamos desviar do ponto essencial. Nemane podia ter matado O’Donnel?

- Ela é mais hábil do que isso. - Tio Mike respondeu. - Se ela tivesse matado O’Donnel, ninguém suspeitaria de outra coisa que não um acidente.

Bom, se Tio Mike queria que eu investigasse, talvez respondesse a algumas perguntas.

- O’Donnel andava roubando coisas das pessoas que matava, não é? - perguntei. - A bengala, que está no meu Rabbit, estacionado ao lado da Finley Road, em Two Rivers, foi uma dessas coisas. Mas havia outras, não é? O primeiro Fae assassinado, Connora, era bibliotecária. Ela teria em sua posse alguns dos artefatos, não teria? Coisas pequenas, porque não era suficientemente poderosa para manter um objeto que outra pessoa desejasse. A bengala veio da casa do Fae que tinha uma floresta no lugar do jardim traseiro. Consegui sentir o cheiro dele no objeto. O que mais foi roubado?

Andava lendo o livro do amigo de Tad. Havia muitas coisas que eu não gostaria de ver nas mãos de qualquer pessoa. Havia algumas coisas que eu não gostaria e ver nas mãos de nenhuma pessoa.

Fez uma longa pausa, até Tio Mike dizer: - Apareço aí daqui a pouco. Não saia daí.

Atirei o telefone a Samuel e ele desligou. Depois me coloquei de pé e fui ao cofre das armas no meu quarto buscar o livro que tinha me emprestado.

Na verdade, havia varias bengalas, uma que nos conduzia a casa independentemente do lugar onde estivéssemos, uma que nos permitia ver as pessoas por aquilo que eram, e a terceiro, a que vinha me seguindo, era a bengala que multiplicava as ovelhas do agricultor. Nenhum deles parecia ruim até ler as histórias. Por muito bons que parecessem, os artefatos Fae arranjavam uma maneira de tornar as vidas de seus proprietários humanos miseráveis.

Também tinha encontrado a faca de Zee. O livro chamava-lhe de espada, mas a ilustração desenhada à mão retratava, sem margem para duvidas, a arma que Zee me emprestara duas vezes.

Samuel, que tinha saído do sofá para se ajoelhar ao lado da minha cadeira enquanto eu folheava a seção que lera, sibilou por entre dentes e tocou na ilustração: ele também tinha visto a faca de Zee.

Tio Mike entrou sem bater.

Notei que era ele pelo som deliberado dos seus passos e pelo seu cheiro, especiarias e cerveja velha, mas não levantei os olhos do livro quando perguntei: - Havia alguma coisa que permitisse ao assassino esconder-se da magia? Foi por isso que teve que me chamar para identificar o assassino?

No livro constavam umas coisas que protegeriam uma pessoa da raiva de um Fae ou a tornariam invisível.

Tio Mike fechou a porta, mas permaneceu em frente a ela.

- Recuperamos sete artefatos da casa de O’Donnel. Foi por esse motivo que Zee não teve tempo para se esconder da polícia e eu o deixei para levar a culpa sozinho. As coisas que encontramos eram feitas de poder reduzido, nada importante a não ser pelo fato de existirem, e o poder Fae nas mãos humanas normalmente não é uma coisa boa.

- Deixaram escapar a bengala. - disse, olhando para cima. Tio Mike parecia mais enrugado e cansado do que a camisa e calças que vestia.

Acenou.

-E não encontramos nada que pudesse ter nos impedido de encontrar O’Donnel, portanto tempo que acreditar que o assassino se foi com pelo menos mais um item.

Samuel, assim como eu, não olhava para Tio Mike quando ele entrara, um pequeno jogo de poder que sutilmente nos colocava em uma posição de comando. O fato de Samuel tê-lo feito indicava que ele também não acreditava inteiramente que Tio Mike estava do nosso lado. Samuel ficou de pé antes de desviar a atenção do livro e se concentrar no Fae. Usou os seus centímetros a mais para encarar Tio Mike de cima a baixo.

- Você não sabe o que O’Donnel roubou? - perguntou.

- Nossa bibliotecária andava tentando compilar uma lista de tudo o que os Fae possuíam. Uma vez que foi a primeira a morrer... - encolheu os ombros. - Ele roubou a lista e não há cópias, pelo menos que eu tenha conhecimento. Talvez Connora tenha dado uma aos Senhores Cinzentos.

- O’Donnel andava procurando os artefatos quando começou a andar com ela? - perguntei.

Franziu a sobrancelha.

- Como você sabe que eles andavam juntos? - balançou a cabeça. - Não. Não responda. É melhor eu não saber se há Faes que andam falando contigo.

Estava tentando manter Tad fora disso, pensei.

Tio Mike se deixou cair no sofá e fechou os olhos, cedendo a exaustão que obviamente sentia e cedendo a vantagem a Samuel sem oferecer resistência.

- Em primeiro lugar, não acredito que ele tivesse planejado os roubos. Falamos com os amigos dela. Connora o escolheu. Ele achava que estava lhe fazendo um favor, ela achava que O’Donnel merecia o que tinha planejado fazer com ele. - olhou para mim. - A nossa Connora podia ser simpática, mas desprezava os humanos, especialmente alguém que estivesse ligado ao GAF. Brincou com ele durante algum tempo até se cansar do jogo. No dia anterior a sua morte, disse a uma das amigas que ia acabar o relacionamento com ele.

- Então porque precisou da Mercy? - Samuel perguntou. - Ele era o suspeito obvio.

Tio Mike suspirou.

- Já andávamos de olho nele na hora em que a segunda vítima apareceu morta. Demorou algum tempo até que alguém falasse conosco sobre o caso amoroso dela. Existe um encorajamento para que um Fae comece a andar com um humano. Ter filhos de um cruzamento de espécies é melhor do que não ter filhos. Mas o O’Donnel... Na verdade todos os guardas são inimigos. E um Fae não se une ao inimigo... especialmente quando esse inimigo é alguém como O’Donnel.

- Ela estava chafurdando. - afirmei.

Considerou as minhas palavras.

- Se um dos seus amigos se unisse a uma cadela, seria considerado chafurdar?

- Ele acha que está lhe fazendo um favor e ela lhe diz o que de fato pensa dele... e ele a mata.

- É o que nós achamos. Quando a segunda vítima foi encontrada, achamos improvável que um humano conseguisse matá-la, por isso não voltamos a considerar O’Donnel. Só quando ocorreu o terceiro homicídio é que percebemos que o motivo era roubo. Connora tinha alguns itens, mas não ocorreu a ninguém verificar se faltava algum. Ela também devia ter mais alguma coisa, algo que teria permitido esconder-se da nossa magia. Algo muito mais poderoso do que qualquer coisa que alguém como ela pudesse ter.

Olhou para mim e dirigiu-me um sorriso cansado.

- Somos uma espécie reservada, e nem mesmo o risco de desobedecer as ordens dos Senhores Cinzentos merece que abramos mão de todos os nossos segredos. Se alguém possuir algo muito poderoso, eles confiscam o objeto. Se eles soubesse que ela tinha algum objeto poderoso, ela teria sido forçada a dá-lo a alguém que pudesse tomar conta dele.

- Portanto, em vez disso, O’Donnel fica com ele. - fechei o livro e pousei-o ao meu lado.

- E com a lista que ela tinha compilado para os Senhores Cinzentos, a lista dos itens que eles queriam registrados. - abriu as mãos. - Não temos certeza se ela tinha uma cópia em casa. Uma das amigas dela a viu, mas deve tê-la entregado aos Senhores Cinzentos sem ficar com uma cópia.

Aquela não me parecia ser a mulher cuja casa eu revistara. Uma mulher como ela guardaria uma cópia de tudo. Ela adorava o armazenamento do conhecimento.

- O’Donnel leva a lista. - eu disse. - E depois de se divertir com os brinquedos que roubou de Connora, decide que quer mais. Olha para a lista e vai à procura das coisas que quer. - a dimensão da minha amostra era limitada, mas... - Parece-me que começou a matar a menos poderosa, Connora, e chegou ao mais poderoso, o Fae da floresta que foi assassinado por ultimo. Certo?

- Sim. Ela pode ter lhe dito ou se calhar tinha a lista organizada dessa forma. A propósito, ele não fez a coisa cem por centro bem, mas muito perto disso. Acredito que os itens que roubou, sejam eles quais forem, lhe permitiram matar pessoas que de outra forma jamais teria sido capaz de sequer tocar.

- Faz alguma ideia das coisas que o assassino de O’Donnel poderá ter? - Samuel grunhiu.

Tio Mike suspirou.

- Não. Mas ele também não. A lista dizia coisas como "bengala" ou "bracelete de prata", mas não explicava o que eram. Mercy, a bengala não estava no seu carro. O Fideal diz que não tocou nele. Suspeito que vai voltar a aparecer, a tem seguido persistentemente.

- É a bengala que faria com que as minhas ovelhas parissem gêmeos, não é? - perguntei, apesar de ter quase certeza. As histórias sobre os outros tinham me preocupado ao ponto de ficar grata por essa bengala me ser útil.

Riu. Começou na sua barriga e subiu até os olhos, que cintilaram.

- Pretende fazer criação de ovelhas?

- Não, mas gostaria de me deslocar mais do que oito quilômetros sem dar por mim na entrada da minha casa. Ou pior, ter a capacidade de ver todos os defeitos nas pessoas ao meu redor sem vislumbrar nenhuma das virtudes. - não que alguma dessas coisas estivesse acontecendo, mas, ao que sabia, a bengala tinha de ser ativada de alguma forma para funcionar.

- Não se preocupe. - disse, ainda com um sorriso largo no rosto. - Se decidir ter criação de ovelhas, todas elas vão ter gêmeos saudáveis até a bengala decidir desaparecer outra vez.

Soltei um suspiro de alivio e voltei a me concentrar no que precisava saber.

- Quando O’Donnel foi morto, você e Zee eram os únicos que sabiam que ele era o assassino?

- Ele não tinha contado a mais ninguém.

- Vocês eram os únicos que sabiam que ele andava roubando artefatos? - captei o sopro de algo mágico e tentei impedir que meu rosto denunciasse o súbito estado de alerta.

- Não. Não foi falado, mas assim que descobrimos que a lista de Connora tinha sido levada, começamos a fazer perguntas. Qualquer pessoa poderia ter feito a ligação obvia.

Ao meu lado, Samuel acenou em sinal de animada concordância. Não que ele devesse ter ido contra o que quer que Tio Mike tivesse dito, mas...

- Largue isso. - disse ao Tio Mike. Reparei que o cansaço que tinha notado quando entrara tinha desaparecido e uma vez mais parecia um homem amável que ganhava a vida fazendo as pessoas felizes.

- Como?

Semicerrei os olhos.

- Não gosto de você nesse momento, e nenhuma magia Fae vai mudar isso. - Samuel virou a cabeça na minha direção. Talvez não tivesse notado que Tio Mike estava usando uma espécie qualquer de magia de carisma, ou talvez tivesse notado pelo olfato que eu estava mentindo. Na verdade eu gostava do Tio Mike, mas ele não precisava saber isso. Seria mais fácil sacar informações dele se conseguisse continuar a fazê-lo se sentir culpado.

- Minhas desculpas, garota. - disse, soando tão chocado como aparentava. - Estou cansado e é um reflexo.

É possível que seja verdade, é possível que seja reflexo, mas também não disse que não estava fazendo deliberadamente.

- Eu também estou cansada.

- Tudo bem. - disse. - Permita-me contar o que vamos fazer agora. Concordamos que o Fideal transgrediu pela primeira vez. Concordamos que a sua morte traria mais custos do que ganhos aos Fae. Pode agradecer ao Samuel e Nemane por isso.

Inclinou-se para frente.

- Por isso, eis o que podemos lhe propor. Uma vez que parece importante para você que a inocência de Zee seja provada, podemos cuidar disso, para que não nos cause problemas ainda maiores. Temos permissão para ajudar a polícia, com o pormenor de não podermos lhe falar sobre os objetos roubados. São poderosos, alguns deles, e é melhor que os mortais não façam sequer ideia de que eles possam existir.

Um alivio frio desceu pela minha espinha. Se os Senhores Cinzentos estavam dispostos a aceitar o tempo e a notoriedade da investigação, então as possibilidades de Zee tinham subido exponencialmente. Porém, Tio Mike ainda não tinha acabado de falar.

- ... Portanto pode deixar a investigação conosco e com a polícia.

- Ótimo. - Samuel disse.

Era verdade que eu não fazia ideia de onde procurar o assassino de O’Donnel. Talvez tivesse sido Fideal, ou outro Fae, talvez alguém que gostasse de uma das vítimas, que tivesse de alguma maneira descoberto que O’Donnel era o assassino. Se tivesse sido um dos Fae, o que era provável, não tinha a menor possibilidade de descobrir o que quer que fosse. Talvez se Samuel não tivesse dito "ótimo" a minha resposta para o Tio Mike teria sido diferente, mas provavelmente não.

- Verificarei e os manterei informados quando descobrir alguma coisa. - lhes disse educadamente.

- É muito perigoso. - Tio Mike replicou. - Mesmo para os heróis, Mercy. Não sei que relíquias o assassino tem, mas as coisas que recuperamos são itens menores, e sei que Herrick, o senhor da floresta, era guardião de uns itens maiores.

- Zee é meu amigo. Não vou deixar a vida dele nas mãos de pessoas que estavam dispostas que ele morresse por isso só porque lhes era mais conveniente.

Os olhos do Tio Mike cintilaram com uma emoção forte qualquer, mas não percebi qual.

- Zee raramente perdoa transgressões, Mercy. Ouvi dizer que ele ficou tão zangado por você ter traído a confiança dele que não voltará a falar contigo.

- Ouvi o mesmo. - disse. - Mas ainda assim sou amiga do Zee. E agora, se me der licença, preciso ir me deitar. O trabalho começa bem cedo.

Levantei-me da cadeira, enfiei o livro debaixo do braço e acenei a ambos os machos de rostos desaprovadores enquanto abandonava a sala de estar mancando. Fechei a porta do quarto e me esforcei ao máximo por não ouvi-los discutir a meu respeito. Não foi muito educado da parte deles. E Samuel, pelo menos, devia me conhecer melhor e não achar que eu podia ser persuadida a ficar parada e deixar o meu amigo Zee nas mãos dos Fae.


11

Na manhã seguinte, liguei para Tim antes de ir trabalhar. Ainda era cedo, mas não queria deixar de falar com ele. Ele me pegara desprevenida na noite anterior, mas eu não tinha nada que arrastar um humano para a confusão que era a minha vida amorosa, mesmo que gostasse dele dessa maneira, o que nem sequer era o caso.

Talvez eu não pudesse viver com Adam mas, pelo visto, ia tentar. Se fosse a casa de Tim, esse ficaria com a ideia errada e Adam ficaria magoado. Tinha sido estúpido da minha parte não recusar logo no dia anterior...

- Ei, Mercy. - disse ele, assim que atendeu ao telefone. - Ouça, Fideal ligou ontem a noite... Você fez alguma coisa para ele ficar tão chateado? Bem, seja como for, ele me disse que a Mercy veio a nossa reunião para investigar a morte de O’Donnel. Que conhece o suspeito que está preso.

Não havia absolutamente qualquer vestígio de irritação na sua voz, o que significava que devia estar falando a verdade quando disse que não estava interessado em um envolvimento romântico. Se ele estivesse interessado em mim, teria se sentido usado.

- Sim. - respondi cautelosamente. - É um velho amigo. Eu sei que não foi ele, o que é mais do que qualquer outra pessoa na investigação pode dizer. - o nome de Zee ainda estava escondido da imprensa, bem como o fato de ser um Fae. - Como ninguém andava fazendo nada, andei por ai sondando.

- Calculo que nós estejamos no topo da lista dos suspeitos. - disse Tim em uma voz pratica. - O’Donnel não era propriamente muito popular.

- No topo da minha lista, até ter ido a uma das suas reuniões. - disse.

Ele riu.

- Sim, nenhum de nós tem propriamente ar de assassino.

Eu não concordava com ele, qualquer pessoa pode ser levada a matar, dada a razão certa. No entanto, exceto Fideal, nenhum deles seria capaz de matar uma pessoa da maneira como O’Donnel fora morto.

- Na hora não liguei ao assunto. - ele disse. - Mas, depois de Fideal falar comigo, comecei a pensar. Aquela bengala no seu carro era de O’Donnel, não era? Ele tinha acabado de comprar no eBay, uns dias antes de morrer.

- Era.

- Acha que isso teria alguma coisa a ver com a sua morte? Eu sei que a polícia diz que não acredita que o motivo seja um roubo, mas o O’Donnel começou a colecionar tralha céltica a uns meses. Dizia que era muito valiosa.

- Ele disse onde arranjou? - perguntei.

- Disse que algumas coisas eram herdadas e o resto comprou no eBay. - fez uma pausa. - Sabe, ele me disse que eram coisas mágicas de Fae, mas não conseguia por nada daquilo para funcionar. Eu assumi que ele estava simplesmente sendo enganado... mas acha que ele teria mesmo alguma coisa que pertencia, de fato, aos Fae e que eles tentaram recuperar?

- Não sei. Viu bem a coleção?

- Eu reconheci aquelas coisas. - lentamente disse. - Mas só quando Fideal me disse que a Mercy estava ligada ao O’Donnel. Havia uma pedra com umas coisas escritas, algumas velhas peças de joalheria que podia ser de prata... ou banhadas... Se eu desse uma olhada na coleção, acho que conseguia lhe dizer se falta alguma coisa.

- Eu acredito que desapareceu a coleção toda. Tirando a bengala. - não tinha necessidade de lhe dizer que os Fae tinham recuperado algumas coisas.

Ele assobiou.

- Então foi mesmo um roubo.

- É o que parece. Se eu conseguir provar, então o meu amigo deixa de ser um bom suspeito.

Os Senhores Cinzentos não queriam que os mortais fossem possuidores de artefatos mágicos, e eu conseguia perceber o por que. O único problema era que os Senhores Cinzentos podiam ser impiedosos no seu objetivo de impedir que qualquer noticia do assunto se espalhasse. Tim já sabia demais.

- E o Fideal sabia dessa coleção? - perguntei.

Tim pensou um pouco.

- Não. Não acho. O’Donnel não gostava dele, e Fideal nunca foi a casa de O’Donnel. Acho que ele só mostrou ao Austin e a mim.

- Tudo bem. - inspirei profundamente. - Ouça, pode ser perigoso ter conhecimento dessa coleção. Se ele conseguiu mesmo encontrar alguma coisa que pertencia aos Fae, eles não iam querer que isso se tornasse publico. E você, de todas as pessoas sabe como eles são implacáveis. Não fale com a polícia nem com mais ninguém sobre o assunto, por enquanto.

- Acha, então, que foi um Fae que o matou. - Tim disse, parecendo um pouco surpreso.

- A coleção desapareceu. - eu disse. - Talvez algum dos Fae tenham mandado alguém atrás dela, ou então mais alguém acreditou nas histórias de O’Donnel e quis roubá-la. Eu podia descobrir mais coisas, se soubesse o que ele tinha. Consegue me fazer uma lista dos artigos de que se lembra?

- Talvez. - respondeu. - Só os vi uma vez. Posso ver se consigo escrever tudo e depois damos uma olhada na lista, essa noite...

Lembrei-me de que tinha ligado para cancelar o jantar.

Ele não me deu chance de dizer mais nada.

- Se tiver um dia para pensar no assunto, devo conseguir me lembrar de quase tudo. Devo encontrar Austin na escola, normalmente almoçamos juntos. Ele também viu a coleção de O’Donnel, e é um artista muito razoável. - soltou uma risada triste. - Sim, eu sei. Bonito, inteligente e também talentoso. Ele pode fazer tudo o que quiser. Se não fosse tão simpático, eu também o odiaria.

- Seria espetacular ter alguns desenhos. - eu disse. Poderia depois compará-los com os desenhos no livro do amigo de Tad. - Mas não se esqueça, isso é perigoso.

- Não me esqueço. Até logo.

Desliguei o telefone.

Devia ligar para Adam e dizer o que ia fazer. Apertei o primeiro numero e depois desliguei. Era mais fácil conseguir perdão do que permissão, não que precisasse dela. Arranjar uma lista do que O’Donnel roubara era razão suficiente para Adam compreender porque fora na casa de Tim. Ele podia ficar zangado, mas não ficaria magoado.

E Adam zangado era uma visão verdadeiramente fabulosa. Serei uma pessoa muito má por gostar?

Rindo para mim mesma, fui trabalhar.

 

 

Dessa vez foi o próprio Tim que abriu a porta, e a casa cheirava a alho, orégano, manjericão e pão acabado de fazer.

- Olá. - cumprimentei. - Desculpe o atraso. Levei muito tempo para tirar o óleo de debaixo das unhas. - eu tinha levado Gabriel e umas correntes para o Rabbit depois do trabalho e rebocara-o para casa com o meu Vaganon. Levara mais tempo do que tinha calculado. - Esqueci-me de lhe perguntar o que devia trazer, por isso parei e comprei chocolate para a sobremesa.

Ele pegou no saco de papel e sorriu.

- Não precisava trazer nada, mas chocolate é...

Eu suspirei.

- Eu sei, coisa de garota.

O sorriso dele se ampliou.

- Eu ia dizer que é sempre bom. Entre.

Conduziu-me ao longo da casa até a cozinha, onde tinha uma pequena tigela com salada césar.

- Gosto da sua cozinha. - era a única divisão que parecia ter personalidade. Eu esperara armários de carvalho e bancadas de granito, e acertara nas bancadas. Mas os armários eram de cerejeira e contrastavam lindamente com as bancadas de granito cinzento. Nada muito ousado, mas , pelo menos não era impessoal.

Ele olhou em volta, sobrancelha franzida.

- Acha que está boa? A minha noiva... ou ex-noiva... disse que eu precisava de um decorador para a cozinha.

- Está linda. - tranquilizei-o.

Ouviu-se uma campainha e ele abriu a porta do forno e retirou uma pequena pizza. O timer do meu forno soa como uma abelha zangada.

O cheiro da pizza distraiu-me da inveja que sentia daquele forno.

- Bem, isso cheira maravilhosamente. - disse, fechando os olhos para cheirar melhor.

Um rubor cobriu as faces ao ouvir o meu elogio, enquanto cortava a pizza com experiente rapidez.

- Se pegar a salada e me seguir, podemos começar a comer.

Obedientemente, peguei a tigela de madeira com os vegetais e segui-o pela casa.

- Aqui é a sala de jantar. - disse ele desnecessariamente, uma vez que a grande mesa redonda de mogno a denunciava. - Mas, quando como sozinho ou só com uma ou duas pessoas, prefiro comer aqui.

"Aqui" era uma pequena sala circular rodeada por janelas. O formato da sala era inovador, mas ficava sem graça pelos azulejos bege e a relação das janelas. O seu arquiteto ficaria triste se soubesse como a sua visão artística fora engolida pela insipidez.

Tim pousou a pizza na pequena mesa de carvalho e abriu as cortinas japonesas, nos oferecendo a vista do seu jardim traseiro.

- Tenho quase sempre as cortinas levantadas, senão fica um forno aqui dentro. - ele disse. - Suponho que vai ser agradável no inverno.

Ele já pusera a mesa e, tal como a cozinha, a sua louça foi uma surpresa. Pratos de cerâmica pintados a mão que não eram exatamente iguais, nem em tamanho nem em cor, mas que, de alguma forma, se completavam mutuamente, e copos de cerâmica pintados a mão. O dele era azul, com um acabamento rachado e um ar antigo. Havia um jarro na mesa, mas ele já enchera os copos.

Pensei na casa de Adam e perguntei-me se ele ainda usaria a louça da ex-mulher, assim como Tim obviamente usava as coisas que a ex-noiva, ou talvez o decorador, tinha escolhido.

- Sente-se, sente-se. - ele disse, seguindo o seu próprio conselho. Colocou uma fatia de pizza no meu prato, mas deixou-me servir a minha salada e uma generosa dose de um prato de pêra cozida.

Provei cautelosamente o conteúdo do meu copo.

- O que é isso? - perguntei. Não era alcoólico, o que me surpreendeu, mas qualquer coisa ao mesmo tempo doce e acida.

Ele sorriu.

- É segredo. Talvez lhe mostre como se faz, depois do jantar.

Bebi mais um pouco.

- Sim, por favor.

- Reparei que está mancando.

Sorri. - Tropecei em alguns degraus. Nada de preocupante.

Desistimos de falar enquanto mergulhávamos na refeição com apetite.

- Fale-me do seu amigo. - ele disse enquanto comia. - Aquele que a polícia pensa ter assassinado O’Donnel.

- É um velho rabugento e mal disposto. - comecei. - E eu o amo. - as peras pareciam ter alguma espécie de glacê de açúcar mascavo. Eu esperava que fossem muito doces, mas eram ácidas e derretiam na boca. - Mmmmm. Isso é bom. Seja como for, nesse momento ele está zangado comigo por ter metido o nariz nessa investigação. - bebi um longo gole. - Ou então pensa que isso é perigoso e que vou desistir da investigação se ele me fizer pensar que está muito zangado. - Zee tinha razão, eu falava demais. Estava na gora de passar a conversa para Tim. - Sabe, eu julguei que ia ficar zangado comigo quando descobrisse que eu tinha um motivo oculto para ir na sua reunião.

- Eu sempre quis ser detetive particular. - Tim confessou. Terminara a sua comida e estava me vendo comer com uma expressão satisfeita. - Se eu gostasse de O’Donnel, talvez tivesse ficado mais zangado.

- Conseguiu fazer uma lista? - perguntei.

- Oh, sim. - mentiu.

Olhei-o com a testa franzida, e pousei o meu garfo. Não sou tão boa para cheirar uma mentira como alguns lobos. Talvez tivesse interpretado mal a reação dele. Parecia estranho mentir a respeito daquilo.

- Tem certeza que Austin não vai falar disso a ninguém?

Ele acenou e seu sorriso cresceu.

- Austin não vai contar a ninguém. Termine as suas peras, Mercy.

Eu já tinha comido duas garfadas quando notei que havia alguma coisa errada. Talvez não tivesse reparado em nada se não tivesse combatido esse tipo de compulsão com Adam. Respirei fundo e me concentrei, mas não conseguia sentir nenhuma magia no ar.

- Isso está maravilhoso. - disse. - Mas estou completamente cheia.

- Beba mais um pouco. - ele disse.

O suco ou o que quer que aquilo fosse, sabia melhor a cada gole, mas eu não tinha sede. Ainda assim, bebera duas vezes antes de pensar. Não era nada normal fazer uma coisa que alguém me ordenara, quanto mais fazer tudo. Talvez fosse o suco.

Assim que a duvida tocou a minha mente, comecei a senti-lo. O liquido doce ardia de magia e o copo palpitava sob a minha mão, que estava tão quente que fiquei surpresa por não vê-la fumegar.

Pousei aquela coisa velha na mesa e desejei que o estúpido livro tivesse incluído uma fotografia do Cálice de Orfino, o copo que a fada usara para roubar dos cavaleiros de Roland a capacidade de resistir a sua vontade. Aposto que seria igual ao copo rústico ao lado do meu prato.

- Foi o Tim. - sussurrei.

- Sim, claro. - ele disse. - Fale-me do seu amigo. Porque a polícia acha que ele matou O’Donnel?

- Encontraram-no lá. - disse. - Zee podia ter fugido, mas ele e o Tio Mike estavam tentando reunir todos os artefatos para a polícia não os encontrar.

- Eu pensei que tinha todos os artefatos. - Tim disse. - O sacana deve ter ficado com mais coisas do que aquelas que o mandei ir buscar. Provavelmente pensou que conseguiria mais dinheiro por elas em outro lado qualquer. O anel não é tão bom como o copo.

- Anel?

Ele mostrou-me o gasto anel de prata em que eu reparara na noite anterior.

- E deixa a língua do seu utilizador mais doce do que o mel. É um anel de político... ou vai ser... - ele disse. - Mas o copo funciona melhor. Se eu o tivesse obrigado a beber antes de ele sair, não teria sido capaz de ficar com mais coisas. Eu lhe disse que, se levasse demais, os Fae iam começar a procurar os seus assassinos fora de Fairyland. Ele devia ter dado ouvidos ao que lhe disse. Calculo que o seu amigo seja um Fae e que tenha ido falar com O’Donnel sobre os assassinatos.

- Sim. - tinha que responder, mas conseguia reter informação, se tentasse. - Contratou O’Donnel para obter os artefatos mágicos e matar os Fae?

Riu.

- Matar os Fae era uma coisa dele, Mercy. Eu só lhe dei os recursos.

- Como?

- Fui a casa dele para conversarmos sobre a reunião da Futuro Feliz e ele tinha esse anel e um par de braceletes em cima da estante dos livros. Ofereceu-se para nos vender por cinquenta dólares. - Tim soltou um riso de escarnio. - Grande idiota. Não fazia ideia do que tinha ali. Mas eu sabia. Experimentei o anel e persuadi-o a me contar o que tinha feito. Foi quando ele me falou do verdadeiro tesouro... embora não soubesse o que tinha.

- A lista. - eu disse.

Lambeu o dedo e apontou na minha direção.

- Um ponto para a pequena esperta. Sim, a lista. Com nomes. O’Donnel sabia onde viviam e eu sabia o que eles eram e o que tinham. Ele tinha medo dos Fae, sabe. Detestava-os. Por isso, emprestei-lhe novamente os braceletes e mais algumas coisas e disse para usá-los. Ele ia buscar os artefatos para mim... pelos quais eu lhe pagava... e ele conseguia matar os Fae. Foi mais fácil do que eu tinha pensado. Seria de imaginar que um estúpido como O’Donnel teria um pouco mais de dificuldade com um Guardião da Caça com mil anos de idade, não acha? Os Fae se tornam complacentes.

- Porque o matou? - perguntei.

- Pensei que o Caçador se encarregasse disso, para dizer a verdade. O’Donnel era um perigo. Queria ficar com o anel.. e me ameaçou com chantagem. Eu lhe disse "tudo bem" e mandei-o roubar mais umas coisas. Quando fiquei com o suficiente para poder roubar pessoalmente sem grande perigo, mandei O’Donnel atrás do Caçador. Quando isso não funcionou... bem... - encolheu os ombros.

Olhei para o anel de prata.

- Um político não se pode dar ao luxo de conviver com homens estúpidos que sabem demais. Beba mais um pouco, Mercy.

O copo estava novamente cheio, embora estivesse apenas na metade quando o pousara. Bebi. Era cada vez mais difícil pensar, era quase como se estivesse embriagada.

Tim não podia se dar ao luxo de me manter viva.

- Você é um Fae?

- Oh, não. - balancei a cabeça.

- Então. - ele disse. - É Nativa Americana, não é? Não há nenhum Nativo Americano que seja Fae.

- Não. - ninguém procuraria por Faes entre os índios, os Fae, com o seu glamour, eram um povo europeu. Os índios tinham a sua própria tradição de mágica. Mas não fora isso que Tim me perguntara, por isso eu não precisava lhe responder. Não pensava que o fato de ele pensar que eu era um humano indefeso em vez de uma Caminhante indefesa pudesse me salvar. Mas ia tentar manter qualquer vantagem que conseguisse.

Tim pegou o seu garfo e começou a brincar com ele.

- Então, como que acabou ficando com a bengala? Procurei-o por toda a parte e não consegui encontrar essa coisa maldita. Onde estava?

- Na sala de O’Donnel. - disse. - Tio Mike e Zee também não a viram. - devia ser da bebida, mas não consegui me deter antes de dizer: - Algumas das coisas mais antigas têm vontade própria.

- Como que entrou na sala de O’Donnel? Tem amigos na polícia? Pensei que era uma simples mecânica.

Ponderei o que ele me perguntara e responde com a absoluta verdade. Da maneira como teria respondido um Fae. Ergui o dedo para a primeira pergunta. - Entrei. - dois dedos. - Sim, de fato, tenho mesmo um amigo na polícia. - três dedos. - Sou malditamente boa como mecânica... embora não tão boa como Zee.

- Pensei que Zee era um Fae, como que pode ser um mecânico?

- Ele recebeu o beijo do ferro. - se ele queria informação, talvez pudesse protelar e balbuciar mais. - Gosto mais desse termo do que de gremlin, porque ele não pode ser um gremlin se só inventaram essa palavra no século passado, não é? Ele é muito mais velho do que isso. Na verdade, eu descobri uma história...

- Pare. - ele disse.

Parei.

Ele me olhou com a sobrancelha franzida.

- Beba. Duas vezes.

Merda. Quando pousei o copo, as minhas mãos estavam dormentes com a magia Fae, e os meus lábios pareciam paralisados

- Onde que está a bengala? - perguntou.

Suspirei. Aquela bengala idiota me seguia por todo o lado, mesmo quando não estava no mesmo lugar.

- Onde ela quiser estar.

- O que?

- Provavelmente no meu escritório. - disse. Ele gostava de aparecer nos lugares onde eu ia para encontrá-la inesperadamente. Mas a necessidade de lhe responder me fez continuar a dar informação. - Pensava que estava no meu carro. Agora já não está. Não foi o Tio Mike que o levou.

- Mercy. - ele disse. - Qual era a coisa que menos queria que eu soubesse quando entrou aqui?

Pensei nisso. Eu ficara tão preocupada com a possibilidade de o magoar, no dia anterior, e, quando parara na sua porta, continuava ainda um pouco preocupada. Inclinei-me para frente e disse, em uma voz baixa: - Eu não me sinto atraída por você. Não o acho sensual nem atraente. O Tim parece um nerd rico, sem inteligência para fazer com que as coisas funcionem.

Ele se levantou de súbito, e o seu rosto empalideceu. Depois ruborizou de fúria.

Mas ele que tinha perguntado, por isso continuei.

- Sua casa é sem graça e não tem qualquer personalidade. Talvez devesse tentar por uma estatuas nuas...

- Pare! Pare!

Recostei-me na cadeira e observei-o. Ele não passava de um pequeno que se julgava mais esperto do que era, na realidade. A sua fúria não me assustava, nem me intimidava. Ele percebeu e isso o deixou ainda mais zangado.

- Queria saber o que O’Donnel tinha? Venha comigo.

Eu ia obedecer, mas ele agarrou o meu braço e torceu-o para baixo. Ouvi um estalo, mas foi um momento antes de registrar a dor.

Ele partira o meu pulso.

Puxou-me pela porta da sala, pela sala de jantar, e para dentro do seu quarto. Quando me empurrou para cima da cama, ouvi um segundo osso se partir no meu braço, dessa vez a dor limpou um pouco a minha cabeça. Acima de tudo, porem, havia dor.

Ele abriu um grande armário de tv em madeira de carvalho, mas não havia tv na prateleira. Em vez disso, vi duas caixas de sapatos encima de uma pele volumosa qualquer, parecia quase pele de iaque, só que cinzenta.

Tim colocou as caixas no chão e retirou a pele, abanou-a para que eu pudesse ver que era uma capa. Depois a colocou a sua volta e, uma vez encaixada, a pele desapareceu. Ele não parecia diferente de quando a tinha vestido.

- Sabe o que é isso?

E eu sabia, porque tinha lido o meu livro emprestado e porque a pele de aspecto estranho cheirava a cavalo, não a iaque.

- É o Esconderijo do Druida. - disse, respirando pelos dentes para não chorar. Ao menos não era o mesmo braço que eu fraturara no inverno anterior. - O druida tinha sido condenado a usar a forma de um cavalo, mas, quando mudou de pele, recuperou a sua forma humana. Mas a pele de cavalo fazia uma coisa... - tentei me lembrar das palavras corretas, porque sabia que isso era importante. - Impedia que os inimigos o encontrassem ou lhe fizessem mal.

Ergui o olhar e percebi que ele não queria que eu respondesse. Ele queria saber mais do que eu. Acho que era o comentário do "não suficientemente inteligente" que ainda estava incomodando. Mas parte de mim queria agradar, e, a medida que a dor diminuía, essa compulsão ia se tornando mais forte.

- É muito mais forte do que eu pensava. - eu disse, para me distrair daquela nova faceta do efeito do copo. Ou talvez o tivesse dito para lhe agradar.

Ele me olhou intensamente. Não percebi se tinha gostado de ouvir aquilo ou não. Finalmente, puxou as mangas da camisa para cima para me mostrar que usava um bracelete de prata em cada pulso.

- Braçais de força gigante. - ele disse.

Balancei a cabeça.

- Não são braçais. São braceletes, ou talvez pulseiras. Os braçais são mais compridos. São usados...

- Cala a boca. - disse com dentes cerrados. Fechou o armário e se manteve de costas para mim por um momento. - Você me ama. - ele disse. - Pensa que sou o homem mais atraente que alguma vez já viu.

Eu lutei. Mesmo. Lutei contra a voz dele, mais do que alguma vez tinha lutado contra alguma coisa.

Mas era difícil lutar contra o próprio coração, especialmente porque ele era tão atraente. Até aquele momento, nenhum homem conseguira competir com Adam em termos de pura e arrebatadora beleza masculina, mas o rosto de Adam, e a sua forma, empalideciam agora ao lado de Tim.

Tim voltou-se para mim e olhou fixamente nos olhos.

- Você me deseja. - ele disse. - Mais do que alguma vez desejou aquele médico feio com que andava saindo.

Claro que desejava. O desejo tornava o meu corpo languido e arqueei um pouco as costas. A dor do meu braço não era nada comparada com o desejo que sentia.

- A bengala torna uma pessoa rica. - disse quando ele pôs um joelho encima da cama. - Os Fae sabem que eu o tenho e a querem de volta. - tentei forçar o meu cotovelo a se erguer para poder beijá-lo, mas o braço não funcionava. A outra mão funcionava, mas já estava estendida para lhe acariciar a pele suave do pescoço. - E vão conseguir. Eles tem alguém que sabe como encontrá-lo.

Ele desviou da minha mão.

- Está no seu escritório?

- Deve estar. - afinal, me seguia para onde quer que eu fosse. E eu ia para o meu escritório. Aquele lindo homem ia me levar para lá.

Ele passou uma mão sobre os meus seios, apertou-os com muita força, depois os soltou e se levantou.

- Isso pode esperar. Vamos.

O meu amor me fez beber mais do copo antes de entrarmos no carro dele para irmos para o escritório. Não me lembrava do que íamos procurar lá, mas ele diria quando chegássemos. Foi o que ele me disse. Estávamos na 395 em direção a East Kennewick quando ele desabotoou seus jeans.

Um caminhoneiro, ao passar por nós, buzinou com força. Assim como o carro na outra faixa, quando Tim guinou forte e quase causou um acidente.

Soltou uma praga e me afastou.

- Fazemos isso quando não houver tantos carros. - ele disse, parecendo ofegante e quase estonteante. Mandou-me abotoar as calças novamente, porque não aguentava. Era difícil, só com uma mão, por isso usei também a outra, ignorando a dor que me causava.

Quanto terminei, olhei pela janela e me perguntei porque me doeria tanto o braço e porque estava enjoada. Depois ele pegou o copo, que caíra no chão, me dando.

- Toma, bebe isso.

Havia sujeira no exterior do copo, mas o interior estava cheio, o que não fazia sentido. Eu o vira caído de lado no tapete debaixo dos meus pés. Não devia haver qualquer liquido lá dentro.

Depois me lembrei de que era uma coisa Fae.

- Bebe. - ele disse novamente.

Desisti de me preocupar com o que tinha acontecido e bebi um gole.

- Não assim. - ele disse. - Bebe o copo todo. Austin bebeu dois goles essa manhã e fez exatamente o que lhe disse. Tem certeza de que não é Fae?

Eu ergui o copo e bebi o mais depressa possível, mas entornei um pouco, e um liquido pegajoso escorreu pelo meu pescoço. Quando o copo ficou vazio, procurei um lugar onde colocar. Não me parecia bem deixá-lo no chão. Finalmente, consegui enfiá-lo no suporte para copos da minha porta.

- Não. - disse. - Não sou um Fae.

Pousei as mãos no colo e as vi cerrarem em punhos. Quando a autoestrada nos levou até East Kennewick, eu disse como chegar a minha oficina.

- Importa-se de calar a boca? - disse ele. - Esse barulho está me dando nos nervos. Bebe mais um copo.

Eu não tinha percebido que estava fazendo barulho. Levei a mão ao peito e senti as cordas vocais, que estavam, de fato, vibrando. Então devia ser eu que estava fazendo os grunhidos que estava ouvindo. Parei assim que notei. O copo estava novamente cheio quando peguei.

- Assim está melhor.

Ele entrou no estacionamento e parou em frente ao escritório.

Eu estava tão nervosa que tive dificuldade em abrir a porta do carro e, quando saí,, estava tremendo como uma drogada.

- Qual é o código? - ele perguntou, parando em frente à porta.

- Um, um, dois, zero. - disse, com os dentes batendo. - É o meu aniversario.

A luz encima passou de vermelha para verde, qualquer coisa em mim relaxou e os meus tremores acalmaram.

Ele pegou as minhas chaves, abriu a porta e trancou-a depois de entrarmos. Procurou pelo escritório durante algum tempo, chegando mesmo a puxar as escadas para chegar as prateleiras mais altas. Passados alguns minutos, começou a puxar as coisas das prateleiras e atirá-las ao chão. Uma carcaça de termostato caiu no chão de cimento e se partiu. Teria de me lembrar de pegar, pensei. Talvez Gabriel pudesse dar uma olhada nas peças e ver o que seria possível recuperar. Se tivesse de pagar Zee, não poderia me dar ao luxo de perder muito inventario.

- Mercy! - de súbito, o rosto de Tim substituiu a carcaça do termostato no meu campo de visão. Ele parecia zangado, mas não me pareceu que tivesse alguma coisa a ver com a carcaça.

Depois me bateu, por isso devia ser eu a culpada da sua fúria. Era óbvio que ele não estava acostumado a lutar. Mesmo com a sua força emprestada, conseguira apenas me fazer recuar alguns passos. Depois me custou a respirar, reconheci a sensação. Uma as minhas costelas estava rachada ou partida.

- O quê? - ele perguntou.

Pigarreei e repeti.

- Tem que tirar o polegar de entre os dedos antes de bater em alguém, senão pode parti-lo.

Ele praguejou, saiu tempestuosamente do escritório e voltou ao carro. Quando voltou, trazia o copo.

- Bebe. - ele disse. - Bebe tudo.

Eu obedeci, e comecei a tremer ainda mais.

- Eu quero que se concentre. - ele disse. - Onde está a bengala?

- Não deve estar aqui. - respondi solenemente. - Só fica em lugares onde vivo. Como o Rabbit, ou a minha cama.

- O que?

- Deve estar na garagem. - conduzi-o para o coração da loja.

O espaço de trabalho mais perto do escritório estava vazio, mas o outro também estava, o que me preocupou até me lembrar que o Karmann Ghia que eu andava recuperando estava fora, sofrendo mais transformações. Estofamento.

- Fico contente por saber. - ele disse secamente. - Quem quer que seja esse Carmine. E, agora, onde está a bengala?

Estava encima do meu segundo maior armário de ferramentas, como se eu tivesse deixado lá casualmente quando fora buscar qualquer outra coisa. Bengala esperta. Não estava lá quando entramos na garagem, mas duvido que Tim tenha reparado.

Tim pegou nela e percorreu-a com a mão.

- Te peguei. - ele disse.

Não por muito tempo. Não devo ter dito isso em voz alta ou então foi ele que não me ouviu. Eu estava outra fez falando muito, por isso talvez tenha dito juntamente com todas as outras palavras que estavam saindo da minha boca. Respirei fundo e tentei comandar o que dizia.

- Valeu a pena matar O’Donnel por ele? - perguntei. Uma pergunta simples, mas talvez conseguisse manter os meus pensamentos focados. Ele me dissera isso, que eu tinha que me concentrar.

Assim que o pensamento me ocorreu, minha cabeça deixou de parecer tão embaçada.

Ele acariciava a bengala.

- Eu teria matado O’Donnel só pelo prazer. - ele disse. - Assim como matei o meu pai. A bengala e o copo, foram um bônus. - riu. - Um belo bônus.

Encostou a bengala ao armário de ferramentas e depois se virou para mim.

- Acho que esse é um local perfeito. - disse.

Ele podia ser atraente, mas a expressão no seu rosto não era nada.

- Então foi tudo um jogo. - ele disse. - Toda a conversa sobre o Rei Arthur, os olhos que me fez. E aquele cara alguma vez foi seu namorado?

Referia-se a Samuel.

- Não.

Era a verdade. Mas eu podia tê-lo dito de uma maneira que não o deixasse tão zangado. Porque eu queria o meu amor zangado comigo?

Porque gostava quando ele ficava zangado. Mas a imagem que passou pela minha cabeça foi de Adam esmurrando a soleira da porta do banheiro. Tão zangado. Magnífico. E eu sabia, no fundo da minha alma, que ele nunca voltaria aquela enorme força contra alguém que amasse.

- Então, estava só usando o médico para agitar a situação, não? E invadiu... - ele gostou do som da palavra, por isso repetiu-a. - ... invadiu a minha casa. Pensava o que? Coitado do nerd, nunca arranja alguém. Quebrado. Vai ficar agradecido por receber umas migalhas, não? - agarrou-me pelos ombros. - Pensou o que? Vou namorar um pouco o nerd e ele vai ser apaixonar por mim?

Eu me preocupava com a possibilidade de ele levar aquilo muito a serio, depois de notar que fiquei flertando com ele.

- Sim. - respondi.

Ele me empurrou com um som desumano e eu tropecei e caí com força no chão, batendo no carrinho de ferramentas que derrubou alguns dos seus conteúdos no chão.

- Agora vai fazer comigo. - disse, respirando com força. - Vai fazer com o pobre quebrado patético... E vai gostar... Não, não, vai ficar agradecida. - olhou freneticamente a sua volta, depois reparou que eu trazia o copo. - Beba. Beba tudo.

Era difícil. O meu estomago estava tão cheio. Eu não tinha sede, mas, com as suas palavras tinindo nos meus ouvidos, não podia fazer outra coisa. E a magia lá dentro me ardeu.

Ele tirou-me o corpo e pousou-o no chão, ao lado da bengala.

- Vai ficar agradecida e saber que nunca se sentirá assim novamente. - ele se ajoelhou na minha frente. A sua linda pele estava ruborizada, em um vermelho feio. - Quando eu terminar... quando eu for embora... não vai suportar ficar sozinha, porque perceberá que nunca ninguém te amará depois disso. Ninguém. Irá até o rio e irá nadar até não conseguir mais nadar. Como Austin fez.

Desabotoou as calças, e eu soube com uma sombria certeza que ele tinha razão. Nunca ninguém me amaria depois disso. Adam nunca me amaria depois disso. Eu bem que podia me afogar, quando perdesse o meu amor, assim como meu pai fizera.

- Pare de chorar. - ele disse. - Porque que está chorando? Você quer isso. Diz. Você me deseja.

- Eu te desejo. - obedeci.

- Não é assim. Assim não. - estendeu a mão, agarrou a ponta da bengala e usou-a para puxar o copo, que se agitou na direção dele. Ele largou a bengala e pegou o copo.

- Beba. - ele disse.

Não me lembro exatamente do que aconteceu a partir daí. O pensamento remotamente lúcido que tive a seguir foi quando a minha mão tocou qualquer coisa macia e velha, qualquer coisa que espalhou o frescor ao longo do meu braço quando segurei na minha mão.

Olhei para o rosto de Tim. Seus olhos estavam fechados, enquanto ele fazia uns grunhidos animais, mas, quase como se sentisse a intensidade do meu olhar, eles abriram.

O ângulo era ruim, por isso não tentei nada complicado. Enfiei a ponta de prata da bengala no rosto dele, observando-a entrar pelo olho e sair pela parte de trás do crânio.

Não foi o que aconteceu, claro. Eu não tinha a força de gigantes, nem mesmo de lobisomens. Há um limite para a força que se consegue fazer quando se está deitado de costas no chão batendo em alguém que está por cima. Mas machuquei.

Ele recuou e me afastei atrapalhadamente, deixando cair a bengala. Eu sabia onde havia uma arma melhor. Corri para o balcão, onde deixara o meu pé-de-cabra depois de abrir o motor que estivera substituindo naquela tarde.

Eu podia ter fugido. Podia ter tomado a minha forma de coiote e fugido enquanto ele estava distraído. Mas não tinha para onde fugir. Ninguém poderia me amar depois daquela noite. Eu estava completamente sozinha.

Aprendera a fazer ruídos estranhos que parecem acompanhar todas as artes marciais, embora parte de mim sempre ficasse chocada com os estúpidos sons. Quando ergui o pé-de-cabra como se fosse uma lança, o som que produzi veio do mais profundo da minha fúria e desespero. De alguma forma, não me pareceu absolutamente nada estúpido.

Tim era forte, mas eu era mais rápida. Quando me aproximei, ele agarrou meu braço direito, aquele que já machucara, e apertou-o.

Eu gritei, mas não de dor. Já era muito tarde para sentir qualquer coisa tão finita como a dor física. Bati a ponta do pé-de-cabra na barriga com a mão esquerda.

Ele caiu no chão vomitando e com dificuldade para respirar. Mesmo apenas com a mão esquerda, o pé-de-cabra era suficientemente pesado para lhe esmagar o crânio, quando o baixei sobre a sua cabeça.

Parte de mim queria lhe bater na cabeça até não restar nada senão estilhaços de osso. Parte de mim sabia que o amava. Mas eu não cedia ao amor. Nem por Samuel, a um tempo, nem por Adam e nem por Tim.

Não bati com o pé-de-cabra na sua cabeça, tinha uma coisa mais importante para fazer.

Mas, por mais força que usasse, a barra de ferro não tinha qualquer efeito sobre o copo. Não fazia sentido, porque o copo era claramente feito de cerâmica e o ferro quebrava a maior parte dos encantamentos Fae. O chão de cimento ficou todo lascado, mas não consegui por uma única marca naquele maldito copo com o pé-de-cabra.

Andava a procura de um martelo de forja, espalhando sangue e outras coisas por todo o lado na minha garagem, quando ouvi o motor de um carro em alta velocidade virar a esquina.

Eu conhecia aquele motor.

Era Adam, mas vinha muito tarde. Ele nunca mais poderia me amar.

Ia ficar tão zangado comigo.

Eu tinha que me esconder. Ele não me amava, por isso podia me machucar, quando se zangasse. E, quando se acalmasse, isso iria magoá-lo. Eu não queria que ele sofresse por minha causa.

Não havia lugar para uma pessoa se esconder. Por isso não ia ser uma pessoa. Meus olhos caíram sobre as prateleiras que cobriam o canto no fundo. Um coiote podia se esconder ali.

Transformei-me, dirigi-me sobre três patas para as prateleiras e me enfiei atrás de um par de caixas de correias. As sombras eram escuras.

Ouviu-se um estrondo no escritório quando Adam provou que um cadeado não era proteção contra um lobisomem zangado. Encolhi um pouco mais.

- Mercy. - não gritou. Não precisava.

A voz me transportou e a atirou ao ar com sua raiva liquida. Não soava como Adam, mas era ele. Desencostei-me das caixas para que elas parassem de tremer.

O que passou pela porta da garagem não se parecia com nada que alguma vez tivesse visto. O mais parecido que vira fora uma das formas intermediárias que um lobisomem assume quando se está se transformando. Mas aquilo era mais completo, como se a forma intermediária estivesse terminada, e tivesse uma utilidade. Ele estava totalmente coberto de pelo negro e as suas mãos pareciam muito funcionais, assim como o focinho carregado de dentes. Estava de pé, mas não como um homem. Suas pernas estavam a meio caminho entre as de humano e lobo.

Adam.

Tive apenas um instante para olhá-lo, porque Adam viu o corpo de Tim. Com um rugido que machucou os ouvidos, caiu encima dele, e as enormes garras começaram a rasgar e a arrancar. Era horrível, assustador... e parte de mim queria que fosse eu a ser rasgada em pedaços.

Só doeria por um instante, e depois tudo ficaria acabado. Eu suava de dor e medo, mas fiquei onde estava porque Tim me disse que eu devia ir para o rio. E eu não queria magoar Adam.

Os lobisomens iam entrando cautelosamente pela porta do escritório. Ben e Honey, ambos ainda em forma humana, perguntei-me como o faziam, com Adam tão frenético. Talvez alguma coisa naquela forma intermediaria os protegesse... mas depois Darryl se seguiu. Ele tinha uma careta no rosto, e o suor cintilava na testa e escurecia a camisa. O seu controle permitia que os outros não fossem apanhados pela raiva de Adam.

Eles olharam em volta da garagem, embora se mantivessem perto da porta e longe de Adam.

- Estão vendo ela? - Darryl perguntou suavemente.

- Não. - Ben disse. - Não consigo perceber se ainda está aqui... sente o cheiro...

A sua voz deteve-se porque Adam deixou cair um braço (não um dos seus) e se concentrou em Ben.

- Obviamente. - Darryl disse em voz tensa. - Que todos conseguimos cheirar o seu terror. - levou um joelho ao chão, como um homem pedindo sua amada em casamento.

Ben se ajoelhou e abaixou a cabeça. Honey fez o mesmo, e a sua atenção ia toda para Adam.

- Onde ela está? - a voz dele era gutural e tinha uma pronuncia estranha, por sair de uma boca concebida para uivar, não para falar.

- Vamos procurar, senhor. - Darryl falava em voz muito baixa.

- Ela está aqui. - Ben disse rapidamente. - Está se escondendo de nós.

A grande boca de Adam se abriu e ele rugiu, mais parecendo um urso, naquele momento do que um lobo. Ficou em quatro patas, e eu pensei que ia completar a transformação, se tornar um lobo completo. Mas isso não aconteceu. Senti-o convocar o poder do bando, e eles o deram. Ou era mais fácil a transformação a partir de um estado intermediário ou foi o bando que a acelerou, mas não passaram cinco minutos antes de Adam ficar de pé, nu e humano, sob a áspera luz fluorescente.

Ele respirou fundo e esticou o pescoço, o estalo que saiu das suas vértebras foi bem alto, no silencio da garagem. Quando terminou, a única coisa que restava do lobo era o odor da sua raiva e o âmbar em seus olhos.

- Ela ainda está aqui? - ele perguntou. - Consegue perceber?

- Seu cheiro está por toda parte. - Ben respondeu. - Não consigo seguir o seu rastro. Mas ela deve ter encontrado um canto onde se esconder. Não deve ter fugido. - disse a ultima frase em um tom ausente, enquanto seus olhos vagavam pela sala.

- Porque não? - Darryl perguntou em uma voz surpreendentemente suave.

Ben suspirou, como se a pergunta o surpreendesse.

- Porque você só foge quando tem esperança. Viu o que ele fez, ouviu o que lhe disse. Ela está aqui.

Eles tinham visto tudo, pensei, recordando que o técnico dissera que Adam também tinha uma gravação daquelas câmeras. Eles tinham visto tudo: eu estava tão envergonhada que queria morrer. Depois me lembrei de que era o que ia acontecer, e me tranquilizei com a ideia do rio, tão fresco e convidativo.

- Mercy? - Adam deu uma volta, lentamente. Escondi o focinho com a cauda e fiquei muito quieta, de olhos fechados, confiando que os meus ouvidos me diriam se eles se aproximassem demais. - Está tudo bem. Pode sair.

Ele estava enganado. Não estava tudo bem. Ele não me amava, ninguém me amava, eu ia ficar completamente sozinha.

- Podia chamá-la. - Darryl sugeriu.

Ouviu-se um baque e um som sufocado. Incapaz de resistir, espreitei.

Adam encostara Darryl a parede, com o antebraço contra sua garganta.

- Você viu. - ele sussurrou. - Você viu o que ele lhe fez. E agora sugere que eu faça o mesmo? Que a traga até mim com a magia que ela não pode resistir?

Eu sabia que a bebida do copo Fae ainda estava me afetando. Ardia o meu estômago e o meu corpo tremia como uma viciada em metanfetamina. Mas havia alguma coisa me incomodando. Eu devia ter sido capaz de compreender as reações de Adam, certo? Ele estava tão preocupado... tão zangado por minha causa. Mas se ele viu...

Ele sabia que eu tinha sido infiel.

Adam me declarara sua companheira perante o seu bando. E eu acabava de aprender que havia outros resultados, resultados paranormais, compreendia enfim a política envolvida.

Um lobisomem cuja companheira é infiel é visto como fraco. Se é o Alfa... bem, eu sabia que houvera um Alfa cuja companheira o traíra, mas ela o fizera com a sua permissão. Ao não aceitar Adam, eu já o enfraquecera. Se o seu bando soubesse que Tim... que eu deixara Tim...

Adam abaixou o braço, soltando Darryl.

- Ouviram isso?

Eu parara de ganir assim que notei que estava fazendo o ruído. Mas já tinha sido tarde demais.

- Veio dali. - Honey disse. Passou por cima de alguns pedações de Tim a caminho do meu lado da garagem, seguida por Darryl e Ben. Adam ficou no mesmo lugar, de costas para mim, as mãos sobre os próprios ombros, encostado a parede.

Por isso foi Adam que o Fae atacou quando entrou pela porta do meu escritório.

Nemane parecia muito pouco com a mulher que aparecera no meu escritório com Tony. O seu cabelo escuro brilhava com madeixas prateadas e vermelhas, e flutuava a sua volta, como que afastadas do seu corpo pelo poder da magia. Atingiu Adam com uma onda de magia que o fez voar pela metade da garagem e pousar em cheio no chão, no meio de uma poça de sangue escuro. Ele se ergueu de imediato e correu para ela.

Guerra, pensei. Se ele a matasse, ou ela o matasse, seria a guerra.

Eu estava fora da minha prateleira e correndo o mais rápido que as minhas três pernas me permitiam antes de o pensamento se completar.

Embora não houvesse hesitação nos movimentos de Adam, ela devia tê-lo machucado, porque eu atingi-a primeiro.

Transformei-me para poder falar, mas não tive chance de fazer, porque Adam me atingiu como um jogador de futebol americano, com o ombro na minha barriga. Não acredito que ele quisesse me acertar, porque depois se voltou para ficar por baixo de mim, atirando-me ao chão com ele. Nunca cheguei a tocar no chão.

Com um espasmo no diafragma, caí encima dele em uma posição que deixava um dos meus joelhos na sua axila e o meu braço inteiro preso debaixo do seu ombro. No instante seguinte, ele estava de pé e eu encostada contra ele, os outros três lobisomens entre nós e a Fae enraivecida.

Tentei falar, mas ele tirou-me o folego.

- Shhh. - Adam disse, sem nunca desviar os olhos da inimiga. - Shh, Mercy. Vai ficar tudo bem. Eu te protejo.

Engoli em seco para controlar a sombria mágoa. Ele estava enganado. A partir de agora, ia ficar sempre sozinha. Fora o que Tim dissera. Ele me possuíra, e agora eu ficaria sozinha para sempre. Não, para sempre não, porque havia um rio correndo ali perto, com quase um quilometro e meio de largura e tão fundo que podia parecer negro. A minha oficina era suficientemente perto para às vezes captar o cheiro de água do Columbia.

Pensar no rio me acalmou, e consegui pensar um pouco melhor.

Os lobisomens estavam a espera que Nemane atacasse outra vez. Não sei porque Nemane aguardou, mas a pausa deu-me a oportunidade para falar antes que alguém se machucasse.

- Esperem. - eu disse, recuperando o fôlego. - Esperem. Adam, essa é Nemane, a Fae que foi enviada para lidar com a morte do guarda.

- Aquela que preferia deixar Zee morrer a ter que procurar o verdadeiro assassino? - ergueu o lábio superior em desprezo.

- Adam? - Nemane disse friamente. - Adam Hauptman? O que o Alfa lobisomem está fazendo com a propriedade que nos foi roubada?

- Eles vieram me ajudar. - eu disse.

- E quem é você? - ela inclinou a cabeça para o lado, e percebi que a minha voz estava irreconhecível. Estava rouca, como se fumasse por vários anos... ou tivesse passado a noite gritando. E Nemane era cega.

- Mercedes Thompson. - respondi.

- A coiote. - ela disse. - Que estragos você causou essa noite? - ela deu um passo em frente para o centro do local, e todos os lobisomens assumiram uma posição tensa. - E de quem é o sangue que alimenta a noite?

- Descobri o seu assassino. - eu lhe disse, cansada, pousando meu rosto na pele nua de Adam. O seu cheiro me inundou em uma onda falsamente reconfortante: ele não me amava. Eu estava tão esgotada que aceitei o conforto enquanto podia. Em breve, estaria sozinha. - E foi ele que trouxe a morte sobre si mesmo.

A tensão no ar diminuiu visivelmente quando a magia de Nemane desistiu de cheirar o ar. Mas os lobisomens esperaram que Adam lhes dissesse que o perigo terminara.

- Darryl, chame Samuel e vê se ele pode vir aqui. - Adam disse calmamente. - Depois ligue ao policial da Mercy. Honey, tenho uma manta e algumas roupas sobressalentes no carro. Vá buscá-los.

- Ligo para Warren também? - Ben perguntou, desviando o olhar de Nemane para poder ver Adam, mas os seus olhos detiveram-se no meu braço. - Merda. Olhem para o pulso dela.

Eu não queria olhar, por isso me virei para Nemane, que era a única que não parecia horrorizada. É preciso muito para horrorizar um lobisomem. Eu, certamente, nunca o conseguira.

- Está esmagado. - Nemane disse, na sua fria voz professoral. - E o braço por cima também está partido.

- Como sabe? - Honey perguntou, voltando com as mantas e roupas. - É cega.

A Fae sorriu. Não era uma expressão feliz.

- Há outras maneiras de ver.

- Como que vão curar isso? - Ben perguntou, olhando para o meu braço. Parecia muito mais abalado do que eu esperaria dele. Os lobisomens estão acostumados com a violência e os seus resultados.

Nemane passou por Adam como um lobo atrás de um cheiro. Baixou-se e apanhou a pele de cavalo do druida. Devia ter caído de cima de Tim quando Adam o rasgara em pedaços.

Aqueles pedações poderiam assombrar os meus sonhos durante um bom tempo, mas, naquele momento, estava muito atordoada para ficar horrorizada com eles.

Nemane acariciou a capa e balançou a cabeça.

- Não me admira que não conseguíssemos encontrá-la. Tome, é disso que ela precisa. - encontrara o copo debaixo do meu armário de ferramentas, para onde tinha caído.

- O que é isso? - Adam perguntou.

- O Cálice de Orfino, como foi chamado tempos atrás, ou taça de Huon, ou dádiva de Manannan. Tem algumas utilidades, e uma delas é a cura.

- Não é isso que ele faz. - eu disse a Adam em um sussurro horrorizado.

Nemane olhou para mim.

- Ele obrigou-a a beber desse copo. - Adam disse. - Pensei que continha alguma espécie de droga... mas é magia Fae?

Ela fez um aceno.

- Nas mãos de um ladrão humano, o copo permite-o escravizar outro humano, dado como presente por curar, e, nas mãos dos Fae, vai testemunhar a verdade.

- Não vou beber. - eu disse para o ombro de Adam, remexendo-me entre os seus braços até ficar o mais longe possível do copo.

- E vai curá-la? - ele perguntou.

Ouvimos um carro lá fora.

- É um dos meus. - Adam disse. Assumi que ele estava falando com a Fae, porque todos os outros reconheciam o som do carro de Samuel. Para chegar tão depressa, devia ter vindo do trabalho. O hospital ficava a alguns quarteirões de distancia. - Ele é médico. Eu gostaria de ouvir a sua opinião.

Quando entrou, Samuel soltou um único e tremendo palavrão perante o que viu na garagem, pedaços de Tim espalhados por onde quer que Adam os depositara, sangue por todo o lado, um par de pessoas nuas (Adam e eu), e, Nemane em toda a sua gloria Fae.

- Preciso que veja o braço de Mercy. - Adam disse.

Eu não queria que ele lhe tocasse. Naquele momento, o braço estava dormente, mas eu sabia que isso podia mudar a qualquer momento. Parecia mais um pretzel do que um braço, com ângulos em lugares errados. Ainda estava funcionando quando entramos no escritório. Mais ou menos. Tim devia tê-lo maltratado ainda mais enquanto eu o matava.

Ninguém se importava com o que eu queria.

A principio, Samuel se limitou a ajoelhar-se para poder olhar o braço, caído ao longo das minhas coxas. Depois assoviou entre os dentes.

- Tem que arrumar amigos novos, Mercy. O pessoal com que anda é muito bruto para você. Se as coisas continuam assim, vai estar morta antes do ano chegar ao fim.

Mostrava-se tão alegre que eu soube que o caso estava feio. Suas mãos eram leves sobre o meu braço, mas a dor cauterizante fazia com que relâmpagos de luz dançassem na frente dos meus olhos. Se Adam não estivesse me segurando, eu teria me esquivado, mas ele me apoiava, murmurando coisas suaves e reconfortantes que eu não conseguia ouvir sobre o zumbido nos meus ouvidos.

- Samuel? - foi Ben quem o chamou, com a voz cortante e clara.

Samuel parou de tocar o meu braço e se levantou.

- O braço dela parece um tudo de pasta de dentes cheio de bolas de gude. Não me parece que seja algo que possa ser tratado com uma centena de pinos ou parafusos.

Não sou o tipo de desmaiar, mas a imagem que Samuel estava usando era muito horrível e comecei a ver coisas pretas nadando em meus olhos. Foi como se piscasse duas vezes e alguém fizesse os acontecimentos saltarem para frente um minuto ou dois. Se tivesse me lembrado do rio mais cedo, o prognostico de Samuel não teria me feito desmaiar.

Eu sabia que tinha desmaiado porque juntar a quantidade de poder que Adam estava convocando não acontecia de um momento para outro. Quando percebi porque ele o estava fazendo era muito tarde.

- Já não tem que se preocupar, Mercy. - Adam murmurou, com a cabeça inclinada para sussurrar ao meu ouvido.

Contraí-me. Tentei. Mas, cansada, machucada e aterrorizada, não tinha a mínima hipótese de combater a sua voz. E também não desejava isso realmente. Adam não estava zangado. Não estava me machucando.

Deixei-o convocar o poder do seu bando sobre mim como um cobertor quente e relaxei contra ele. Meu braço ainda doía, mas a sensação de paz que crescia sobre mim me separava da dor, me separava do terror. Estava tão cansada de ter medo.

- Pronto. - ele disse. - Respira fundo, Mercy. Não vou deixar que se machuque, tudo bem? Pode confiar em mim.

Não era uma pergunta, mas eu disse "sim".

Em uma voz tão baixa que acredito que nem os outros lobisomens ouviam, ele disse: - Por favor, não me odeie tanto quando isso acabar. - não havia qualquer tom de ordem na sua voz.

- Não estou gostando disso. - eu disse.

Ele passou o queixo e o rosto sobre o lado do meu rosto em uma rápida caricia.

- Eu sei. Vamos te dar uma coisa que vai te curar.

Essa informação quebrou a paz que ele me dera. Ele ia me fazer beber daquele copo outra vez.

- Não. - eu disse. - Não quero. Não quero.

- Shh. - o poder de Adam pairou sobre mim e asfixiou a minha resistência.

- Eu conheço a Fae. - Samuel disse em tom duro. - Por que está tão ansiosa em ajudar?

- Independentemente do que possa pensar, lobo. - a voz de Nemane era gelada. - Os Fae não esquecem os amigos e nem as dívidas. Isso aconteceu porque ela estava tentando ajudar um dos nossos. Eu só posso curar o seu corpo, mas me parece que não foi o seu corpo o mais machucado essa noite. A dívida ainda não está saldada.

Um copo foi pressionado contra os meus lábios e, assim que reconheci o seu cheiro, meu estômago se revoltou e eu vomitei impotentemente, enquanto Adam me mudou de posição nos seus braços até eu não estar vomitando encima de nenhum de nós. Quando terminei, voltou a me colocar onde eu estava.

- Aperta-lhe o nariz. - Darryl sugeriu e Samuel pressionou as minhas narinas.

- Engole depressa. - Adam disse. - Beba depressa.

Eu obedeci.

- Chega. - Nemane disse. - Vai levar uma hora, mais ou menos, mas juro que isso vai curá-la.

- Só espero que não a tenhamos quebrado com isso. - a voz de Adam trovejou do meu ouvido, e suspirei de contentamento. Eu ainda não estava completamente sozinha. Os braços dele tremeram, e tive medo que o meu peso estivesse cansando-o.

- Não. - ele disse, posso ter dito alguma coisa. - Não é pesada.

Samuel, habituado a emergências, assumiu o controle.

- Honey, me dê a manta e as roupas. Vai buscar uma cadeira no escritório... uma que tenha costas. Darryl, leve Mercy, e... - o braço de Adam se apertou em volta das minhas pernas e ele rosnou, fazendo com que Samuel mudasse de ideia. - Tudo bem, tudo bem. Esperamos que Honey volte com a cadeira. Aqui está ela. Vamos enrolar Mercy na manta, você pode colocá-la para dormir, e depois vamos lavar isso e trocar de roupa antes que a polícia chegue.

Adam não se mexeu.

- Adam... - o tom de voz de Samuel era cauteloso, a sua postura, cuidadosamente neutra. Um carro estacionou lá fora e a tensão na garagem diminuiu notavelmente. Ninguém disse nada, porém, até Warren entrar na garagem. Ele parecia pálido e tenso, e abrandou o passo ao olhar a sua volta.

Dirigiu-se para o centro da garagem e tocou um pedaço de carne com ponta da sua bota. Depois olhou para Adam.

- Bom trabalho, chefe.

Seus olhos desviaram para Samuel e para a manta que ele tinha na mão. Depois olhou para a cadeira pousada no chão na frente de Honey.

A linguagem corporal de Samuel disse a Warren o que acontecia e o que ele queria, sem ser preciso dizer uma palavra.

Warren se aproximou de nós e pegou na manta que Samuel tinha na mão, abrindo-a.

- Vamos aquecê-la e cobri-la.

Adam deixou Warren me levar sem discutir. Em vez de me sentar na cadeira, no entanto, foi Warren que se sentou encima dela e me instalou no seu colo. Adam nos olhou por um momento, eu não consegui ler o seu rosto. Depois se inclinou para frente e me beijou na testa.

- Se chamou a polícia, não vão demorar muito para chegar. - Nemane disse assim que Adam foi ao banheiro para se lavar. - Tenho que ir embora com essas coisas antes de chegarem.

- Há um anel. - eu disse, ainda usufruindo da paz que Adam me concedera.

- O que?

- Um anel de prata, no dedo dele. - bocejei. - Acho que há mais algumas coisas na casa de Tim. Ele as guarda em um armário, no quarto dele..

- O anel MacOwen. - Nemane disse. - Podem me ajudar a procurá-lo?

- Talvez Adam tenha engolido. - sugeri e Warren riu.

- Você não vê mais filmes de terror. - ele murmurou. - Mas Adam não comeu nenhuma parte dele.

- Aqui está. - Honey disse, baixando-se para pegar qualquer coisa. Em vez de dar a Nemane, fechou a mão. - Se for embora e levar o copo, vão acusar Mercy de homicídio.

- Dê-me. - a temperatura diminuiu notavelmente com o gelo na voz de Nemane.

- Nós temos o vídeo. - Darryl disse. - Deve ser o suficiente.

Honey riu e se virou para ele.

- Porque? Só mostra que a Mercy estava bêbada. Ela bebia mais sempre que ele pedia. Podia ter recusado, mas ele nunca parece estar abrigando-a a beber. Com o vídeo, um procurador pode argumentar que ela estava com o discernimento afetado pelo álcool, mas isso não é o suficiente para deixa-la livre da prisão. Ela incapacitou-o e depois se levantou, pegou um pé-de-cabra e bateu com ele.

- Então, terá que ser assim. - Nemane disse. - É muito perigoso que os humanos saibam que temos essas coisas.

- Nem tudo. - Honey disse. - Só o copo.

- O copo sozinho poderia responder a maior parte das perguntas da polícia. - Samuel disse. - Embora tivesse que explicar como que um ser humano conseguiu arrancar a cabeça de um homem.

- Ele tinha braceletes. - disse. - Dizia que eram braçais de força gigante... mas não eram braçais. Também devem estar por ai.

- Ben. - Adam disse, parecendo calmo e controlado quando voltou para a garagem. - Vá buscar meu laptop. - vestira calças jeans e uma camisa cinza de mangas. Tinha o cabelo molhado. - Nemane, vamos combinar uma coisa. Se vir o que aconteceu essa noite, eu a deixo levar os seus brinquedos e ir embora... se ainda quiser fazer isso.

- Eu sou a Gralha-Negra. - Nemane disse. - Já vi mais mortes e violações do que podem imaginar.

A vergonha se insinuou por entre a morna paz que Adam me transmitira. Eu não queria que ninguém visse aquilo.

- Ela é cega. - eu disse. - Não pode ver nada.

- Pode usar os meus olhos. - Samuel disse.

Vi Nemane se contrair.

- Meu pai é um bardo Galês, além de ser Marrok. - Samuel lhe disse. - Ele sabe das coisas. Pode usar os meus olhos, se Adam acha importante que assista isso.

Ben trouxe o laptop de Adam e entregou-o. Adam pousou-o no balcão. Encostei a cabeça em Warren e tentei ignorar os sons que vinham do laptop. Os autofalantes não eram tão bons, por isso fingi que não conseguia ouvir os sons de impotência que eu fazia ou os sons úmidos....

Ele deixou o filme correr até o momento em que Nemane se aproximou e desligou.

- Ela devia estar morta. - Nemane disse prontamente quando terminou. - Se tivesse visto o filme antes, nunca teria lhe dado para beber tão cedo.

- Ela vai ficar bem? - Warren perguntou asperamente.

- Se ainda não teve convulsões e nem morreu, não parece que isso vá acontecer. - Nemane afagou a capa que segurava sobre o braço, parecendo perturbada. - Não sei como conseguiu matá-lo, se ele estava vestido nisso. A capa devia tê-la impedido de lhe tocar.

- A capa só protegia dos seus inimigos. - eu disse para a camisa de Warren. - Eu não era sua inimiga, porque ele me disse para não ser.

Um turbilhão de sirenes de polícia crescia lá fora.

- Muito bem. - Nemane disse. - Podem ficar com os braceletes para explicarem como um ser humano matou O’Donnel. E com o copo. Adam Hauptman, Alfa do Bando Bacia do Columbia, pela sua honra, tomará posse dessas coisas para devolvê-las ao Tio Mike, quando deixarem de ser úteis.

- Samuel. - Warren disse, e notei que estava tremendo descontroladamente.

- Ela precisa dormir. - Nemane lhe disse.

Adam se ajoelhou ao nosso lado e me olhou nos olhos.

- Mercedes, vá dormir.

Eu estava muito cansada para lutar contra a compulsão, mesmo que quisesse.


12

Acordei com o cheiro de Adam no meu nariz e dores no estômago. Não tive tempo de pensar onde estava. Levantei-me da cama e cheguei ao banheiro a tempo de vomitar.

As poções Fae tem sabor pior na segunda rodada.

Mãos suaves seguraram o meu cabelo, embora fosse já muito tarde, e limparam meu rosto com uma toalha molhada. Alguém me vestira com um par de roupas íntimas e uma das blusas de Adam.

— Pelo menos dessa vez chegou ao vaso. — Ben disse de forma aborrecida. E depois, para eu ter certeza absoluta de que era mesmo ele, e não um clone mais simpático, disse, sem afeição: — Ainda bem. Estamos quase sem lençóis.

— Ainda bem que pude ser agradável. — consegui dizer antes de vomitar mais um pouco... e com tanta força que o vomito saiu tanto pelo nariz como pela boca. Quando terminei, teria ficado chorando no chão se a ideia de fazê-lo na frente de Ben não fosse tão repugnante.

Ele esperou até se tornar evidente que chegar no banheiro esgotara todas as minhas forças, depois suspirou e me pegou com mais esforço do que eu sabia que ele estava sentindo. Ele era um lobisomem, provavelmente conseguia levantar um piano. O meu peso não era suficiente para fazê-lo transpirar.

Ben me meteu na cama com uma eficiência surpreendente.

— A Fae nos disse que devia dormir bastante. O vômito foi uma surpresa. Provavelmente tem alguma coisa a ver com a sua resistência a magia e a quantidade que bebeu. O melhor é dormir. — fez uma pausa. — A não ser que tenha fome.

Voltei a cabeça o suficiente na almofada para ele conseguir ver meu rosto.

Ele sorriu.

— Sim, bem, também não aguento limpar mais vomito.

Ainda estava escuro, quando acordei novamente, por isso não deve ter sido muito tempo depois. Fiquei deitada e imóvel. Sabia que Ben ainda estava no quarto e não queria atrair a sua atenção. Não queria que ninguém me olhasse.

Sem a náusea para me distrair, os acontecimentos da noite anterior, aqueles que lembrava claramente, pelo menos, passavam na minha cabeça como um filme de Ed Wood: tão horríveis que não conseguimos parar de olhar. Pior, eu conseguia senti-los em mim. A bebida Fae, sangue... e Tim. O pior de tudo era saber o que tinha feito... e o que não fizera.

No fim, sai da cama e fui sorrateiramente para o banheiro. Mantive os olhos baixos para Ben saber que eu compreendia o que tinha feito.

Ele chegou a porta antes de mim e abriu-a. Hesitei. O protocolo me obrigava a me deitar de costas e lhe oferecer a minha garganta e barriga... mas não suportava ficar novamente tão vulnerável. Não naquele momento. Talvez, se fosse Adam.

— Pobrezinha. — ele disse suavemente. — Vai se lavar. Eu te protejo dos vilões.

Fechou a porta atrás de mim.

Levantei-me, com os pés trêmulos, e liguei a água quente. Despi-me e lavei-me repetidamente, mas não conseguia me livrar dos cheiros. Finalmente, sai da ducha e procurei nos armários de Adam. Encontrei três frascos de perfume, mas nenhum cheirava como ele.

Finalmente, usei o seu pós barba. Ardeu minhas feridas e arranhões que fizera no chão de cimento da garagem, mas cobria o cheiro de Tim.

Não consegui vestir as roupas que acabara de despir porque ainda cheiravam a... tudo. Embora a camisa cheirasse apenas a Adam e a roupa interior fosse minha, eu tinha certeza que alguém me lavara antes de me vestir, porque me lembrava de estar coberta de sangue...

Assim que o pensamento me ocorreu, lembrei-me de estar no chuveiro de Adam e da voz de Honey no meu ouvido. Vai ficar bem. Deixe-me só tirar isso do seu corpo...

Comecei a hiperventilar, por isso agarrei uma toalha e coloquei-a na frente do rosto até a sensação de pânico desaparecer.

Muito bem, não tinha roupas e não podia ficar ali muito tempo, ou alguém viria.

Ninguém perguntaria ao coiote coisas que ele não podia responder.

Por um momento assustador, não tive certeza se conseguiria me transformar, quando a transformação sempre fora para mim uma segunda natureza.

Tem que se manter humana, Mercy. Estamos no hospital e precisa ficar conosco só mais um pouco. A voz de Samuel.

Eu não me preocupava com a polícia e aquilo não era o hospital. Senti finalmente o pelo cobrir minha pele e minhas unhas se transformarem em garras. Levou mais tempo do que nunca, mas, no fim, eu estava sobre quatro patas. Soltei um ganido, porque, mesmo assim, não queria sair.

A porta se abriu antes de eu poder pensar em uma alternativa, o que era normal, uma vez que não havia bons esconderijos no banheiro nem mesmo para um coiote.

Ben cheirou o ar.

— Pós barba. Ótimo. Alguém teve tempo de lavar os lençóis e os colocou na cama. Por isso, os lençóis estão limpos.

Percebi que estava olhando para o seu rosto, e baixei o olhar e escondi a cauda.

— Então é assim? — ele disse. — Mercy... — soltou um suspiro. — Esquece. Anda logo. Volte para a cama.

Eu não precisava dormir, mas enrosquei-me nos lençóis limpos e esperei que Ben fosse embora para eu poder ir... para qualquer lado. Não podia voltar para casa porque Samuel estava lá, e ele sabia.

Todo mundo sabia, e Tim tinha razão: eu ia ficar sozinha.

Devia ir nadar... mas isso não estava certo. Isso fora o que fizera o meu pai adotivo. Não, eu nunca me mataria, nunca faria a outra pessoa o que ele me fez.

Depois de um tempo, a porta de abriu e Adam entrou. Não devia ter tido tempo para se lavar como se deve, porque ainda cheirava vagamente ao sangue de Tim e as coisas que Tim me obrigara a beber. Eu vomitara encima dele, lembrei-me com lamentável clareza.

— Zee vai ser posto em liberdade assim que tenham os papeis prontos. — Adam disse. Devia ter falado para Bem, porque eu estava fingindo com muita força que estava dormindo. Ele não disse mais nada por um minuto, como se esperasse por alguma resposta. Depois suspirou. — Vou tomar uma ducha. Quando sair, pode fazer uma pausa.

Ben esperou para começar ouvir o chuveiro antes de começar a falar.

— Não sei até que ponto se lembra do que aconteceu. Aquela Fae, Nemane, ia pegar suas coisas e desaparecer antes que a polícia chegasse, mas Adam pensou que a sua parte da história era necessária para provar sem sobra de duvida que o gremlin era inocente. E que você tinha razões para matar Tim. Por isso lhe mostrou o vídeo das câmeras de segurança e ela mudou de ideia e nos deu algumas coisas para provar a sua inocência. Ficou muito impressionada por ter conseguido lutar e se libertar da influencia do copo.

Puxei a cauda com mais força por cima do rosto. Eu não tinha lutado, somente no fim. Eu deixara que Tim... eu desejara-o. Por um momento, senti o impulso da sua beleza, como sentira na hora.

— Shhh. — Ben disse com um olhar nervoso para o banheiro. — Tem que ficar quieta. Ele está enervado e não queremos descontrolá-lo.

Eu não queria ouvir mais nada, Zee estava livre. Amanhã eu ficaria feliz por isso. Ele podia ficar com a oficina de volta como pagamento da minha parte. Eu encontraria outro lugar qualquer para onde ir. O México, talvez. Havia montes de VWs no México. E montes de coiotes, também. Talvez pudesse me manter como coiote.

Sem se deixar afetar pela minha atitude, Ben continuou.

— Parece que Tim matou o seu melhor amigo, ontem, antes de ir a casa dele. Pelo menos é o que pensamos. — mesmo em seu estado atual, percebi que faltava ao discurso de Ben a sua dose habitual de palavrões. Talvez estivesse preocupado com Adam, que desaprovava que se praguejasse na frente de senhoras. Porém, a minha curiosidade a esse respeito desapareceu quando percebi o que ele estava dizendo.

— Austin Summers foi para o rio e se afogou. Um velho qualquer o viu e disse que ele estava sorrindo. Tentou salvá-lo, mas Austin continuou a nadar e depois mergulhou. Nunca voltou a superfície. Encontraram o corpo a alguns quilômetros rio abaixo. Ninguém percebeu porque até a Fae lhe mostrar como o copo funcionava e verem o vídeo. Ainda bem que o querido Timmy confessou.

Austin sabia demais, pensei. Devia ter descoberto qualquer coisa sobre os artefatos e, quando Tim percebeu que eu sabia deles e que podia ter dito a outras pessoas, Austin se tornara um perigo. Mas a culpa não era minha.

Tim tinha ciúmes de Austin e o odiava por ser tão bom em tudo. Teria assassinado Austin mais cedo ou mais tarde. A culpa não era minha. Não totalmente.

Ben puxou a ponta do cobertor sobre mim e sentou-se na beira do colchão.

— Também mostramos o vídeo a polícia. Não se preocupe, a sua transformação não deu para ver. Ninguém sabe que é um coiote. Adam também escolheu as imagens que não mostravam nenhum dos lobisomens exceto ele. É muito rápido com aquele computador. — ouvi a aprovação profissional na sua voz: Ben fora contratado como perito em computadores e era bom no seu trabalho.

— Adam ia acompanhar a polícia, de qualquer forma. — continuou. — Tinha que ir, uma vez que Nemane o encarregou de zelar pelos artefatos. Mas a polícia ficou um pouco assustada com a condição do corpo do velho Tim. Não havia perigo de o prenderem... tinham provas claras de que foi você quem o matou. Mas Adam não criou confusão. Para dizer a verdade, acho que Adam também estava assustado. Eles, eehhhh... — havia um súbito sorriso satisfeito em sua voz. — Solicitaram muito educadamente que Adam os acompanhasse ao Departamento. Warren também foi, para o caso de a polícia decidir fazer Adam passar por problemas. Afinal de contas, foi bom Tim já estar morto quando nós entramos, senão Adam teria passado mais do que poucas horas.

— Não é bem assim. — Adam disse do banheiro. Desligou o chuveiro. — Eu preferia ter chegado muito mais cedo e cuidado das consequências com a polícia.

Ben endireitou-se na cama, mas, ao ver Adam não disse mais nada, relaxou um pouco.

Eu não devia ter levado Tim a minha garagem. Certeza que podia ter descoberto o que acontecia de qualquer maneira. Mais uma vez, correra para Adam em busca de ajuda, como se não tivesse levado Fideal a sua porta no dia anterior e colocado perigo a sua casa, ao seu bando, a sua filha. Adam podia ter morrido.

Se Adam estivesse mais próximo da minha oficina quando marquei o meu aniversario no alarme para pedir ajuda, se ele tivesse matado Tim... Eu nem tinha considerado os riscos. Sabia simplesmente que Adam viria e que me salvaria da minha própria estupidez. Outra vez.

Adam saiu do banheiro, apenas com calças jeans limpas vestidas e esfregando o cabelo curto com uma toalha. Deixou-a cair ao chão e ajoelhou ao lado da cama. Ben levantou-se e foi para junto da janela.

O rosto de Adam estava tenso de preocupação e cansaço.

— Desculpa. — ele disse, em um tom exausto. — Desculpa ter te obrigado. Eu te disse que tentaria não fazê-lo e quebrei a minha promessa.

Estendeu a mão para me tocar, e não suportei. Não suportei que ele me pedisse desculpa quando eu o pusera em perigo. Quando eu o traíra.

Desviei da sua mão antes que ele pudesse me tocar e encolhi no outro lado da cama. Seu rosto estava muito quieta quando ele baixou a mão.

— Entendo. — ele disse. — Desculpa, Ben, vai ter que ficar aqui mais alguns minutos. Vou a procura de Warren e mando-o subir.

— Não seja estúpido, Adam. Adam se levantou e deu dois longos passos para a porta. — Ela tem medo de mim. Eu mando outra pessoa para cima.

Fechou a porta muito devagar ao sair.

Ben ficou parado no meio do quarto e usou todas as palavras que tinha contido enquanto falava comigo antes. Com um movimento brusco, arrancou o celular do bolso da frente das calças jeans e clicou em um botão.

— Warren. — ele disse em uma voz tensa. — Importa-se de dizer ao nosso mestre e senhor que ponha o rabo aqui encima? Eu tenho umas coisas para lhe dizer.

Desligou o celular sem esperar por uma resposta e começou a andar de um lado para outro, balbuciando palavrões para si mesmo. Começara a suar e cheirava a ansiedade e fúria.

A porta se abriu de repente e Adam aproximando-se da entrada. Estava tão zangado que eu me levantei.

— Entre e feche a porta. — Ben disse severamente, com uma voz que não deveria, de fato, usar para falar com o seu Alfa.

Sem um único olhar na minha direção, Adam entrou e fechou a porta com horrível precisão, o que era uma forte indicação de como estava perto de perder o controle, se a forma como o puxador da porta se deformou na sua mão não o tivesse já demonstrado.

Quando Adam avançou para o meio do quarto, eu me afundei na cama, não me deitando, propriamente, mas colocando os pés prontos para fugir.

Ben pareceu não reparar como ele estava perturbado. Ou talvez não se importasse.

— Até que ponto você gosta dela? — incapaz de suportar o olhar escaldante de Adam, ele se virou e olhou para a janela. — Gosta o suficiente para por de lado a suas preocupações e a sua mágoa?

Havia qualquer coisa na voz de Ben... Adam também a ouviu. Não o acalmou, não propriamente, mas ele começou a prestar atenção. Um Alfa diferente, menos seguro de si, já teria colocado Ben em seu lugar.

Ben não parou de andar enquanto continuava a falar em uma voz rápida e nervosa.

— Se lidar bem com isso, amanhã, ou na próxima semana... a essa hora, provavelmente ela vai ficar toda irritada por causa da maneira como a obrigou a beber aquela merda Fae. Vai arrancar uma porta daquele velho carro ali fora... aquele velho carro que faz sempre com que pense nela mesmo quando lhe rogue pragas. — ele olhou para mim e eu abaixei as orelhas. Os olhos de Adam não eram os únicos que tinha se tornado de lobo. Antes de eu poder recuar, Ben voltou a se concentrar em Adam.

Como se fossem iguais, Ben deu dois passos para frente, e eu vi que ele era, de fato, mais alto do que Adam.

— Há uma hora e meia ela ainda estava vomitando aquela merda que você e Sr. Maravilhoso lhe enfiaram pela garganta abaixo. Ouviu Nemane. Ela disse que os efeitos levariam algum tempo para desaparecer completamente. E você ainda a está responsabilizando pelo que ela faz.

Adam rosnou, mas eu percebi que ele estava tentando se controlar e ouvir. Passado um momento, ele perguntou “O que quer dizer com isso?" Em uma voz relativamente civilizada.

— Está tratando-a como um ser racional, quando ela ainda está em Fairyland. — Ben estava respirando com força, e aquele fedor de medo crescia... tornando cada vez mais difícil para Adam se controlar. Mas isso não deteve Ben. — Você a ama?

— Sim. — não havia hesitação na sua voz. Nenhuma. E, no entanto, ele vira... ele não devia ter visto, não devia ter percebido...

— Então ponha de lado essa sua maldita auto aversão e olhe para ela.

Olhos dourados se viraram para mim e, incapaz de suportar o olhar de Adam, virei-me para a parede, enquanto a minha barriga se revirava.

— Ela tem medo de mim.

— Aquela estúpida cadela nunca teve miolos para ter medo de você, de mim, ou seja quem for. — Ben disse com mais convicção do que verdade.

— Esqueça-se de você e olhe outra vez, merda. Supostamente, devia ser capaz de ler postura corporal.

Eu não o vi, mas ouvi Adam respirando com força por um momento.

— Merda. — ele disse, em uma voz embargada.

— Ela rastejou. — Ben disse. Havia lagrimas na sua voz. Aquilo estava errado. Ben mal me tolerava nos melhores dias. — Ela rastejou para o banheiro para se lavar outra vez. Se não fossem os dois submissos no bando, eu estaria no fundo da cadeia. E ela não foi capaz de ficar de pé na minha presença, com a culpa que sente.

Incapaz de suportar mais tempo aquele escrutínio, mergulhei completamente na cama e me escondi entre a parede e o colchão.

— Não, espera. Deixe-a em paz por um minuto e me escuta. Ali, ela está em segurança.

— Eu estou ouvindo. — toda aquela fúria fora engolida até a única emoção que eu conseguia cheirar no quarto era de Ben.

— Uma vítima de estupro... uma vítima de estupro que resiste... Ser estuprada, a torna impotente e com medo. Perde a confiança na segurança do seu pequeno mundo. Fica com medo. — havia terror e fúria e qualquer outra coisa fazendo Ben andar entre a porta do banheiro e o quarto em passos frenéticos.

— Tudo bem. — concordou. Adam em uma voz suave, como se compreendesse alguma coisa que me escapara. Não era de surpreender. Depois de Ben observá-lo, eu percebi que não estava exatamente funcionando com todos os circuitos.

— Se... se não luta. Se o estuprador é alguém a quem tem, supostamente, de obedecer, por isso você não luta, nem pensa que pode lutar, ou então se te drogaram para você... — Ben gaguejou, parou, e depois soltou uma praga. — Não estou dizendo coisa com coisa.

— Eu compreendo. — a voz de Adam era uma caricia.

— Então, ótimo. — Ben parou de andar. — Ótimo. Se não luta, não é a mesma coisa. Se te obrigam a ajudar, se te obrigam a colaborar, tudo deixa de ser claro. É estupro? Você se sente sujo, violado e culpado. Acima de tudo, culpado, porque devia ter resistido. Especialmente se for a Mercy que resiste a tudo. — a respiração de Ben era agitada, a sua voz, suplicante.

— Tem que ver as coisas do ponto de vista dela.

Rastejei debaixo da cama até, ainda escondida pela parede de cobertores, conseguir ver o rosto deles.

— Diga-me.

— Samuel te disse... nos disse que ela deu atenção aquele cara. Não o queria fazer, mas nem sempre isso é visível antes de acontecer. Certo?

— Certo. — Adam concordou.

— Samuel disse que a avisou para não fazer aquilo na sua frente.

Ele esperou pelo aceno de cabeça de Adam para continuar.

— Mas ela precisava ajudar o amigo, e isso significa ir a casa do homem. Mas está tudo bem, porque vai haver muito mais gente, e ela não vai flertar com ele porque sabe que isso é perigoso. E não o faz. Comporta-se apenas como uma convidada interessada... o que vai fazer é irritá-lo.

— Como que sabe que ela não flertou com ele? — Adam perguntou, e depois, em resposta a qualquer coisa que eu não peguei, moveu uma mão em um gesto negativo. — Não, não duvido de você. Mas como sabe?

— É a Mercy. — disse Ben. — Ela não saberia como trair alguém de quem gosta. Quando reparasse no que estava fazendo, pararia e não começaria de novo.

Ela manteve o olho no rosto de Adam, mas a sua cabeça estava inclinada, fazendo-o olhar de baixo para os olhos do Alfa, em vez de desafiá-lo.

— Mas ela sabe que está em risco. Sabe que você não ia gostar que ela fosse a casa dele... não que tivesse feito nada de errado... mas ela sabe. — ele começara a andar novamente de um lado para o outro, mas estava mais calmo. Agora que estava falando sobre mim. — Eu não sei porque ela voltou lá. Talvez ele tenha lhe dito que sabia quem matou O’Donnel, ou que sabia alguma coisa sobre Zee, ou sobre as coisas roubadas. Ele devia saber, não devia? Atraiu-a a sua casa porque pensou que ela era um perigo para ele... ou talvez apenas porque sabia que ela tinha aquela maldita bengala que a seguia para todo o lado e queria ficar com ela. Ou talvez quisesse se vingar por ela o ter rejeitado.

— Certo.

— Certo. Por isso, ela sabe que você não vai gostar que ela volte lá. Sabe que vai se mostrar todo territorial, se souber que ela vai a casa de outro homem, mesmo que esteja só tentando salvar Zee. Sabia que, até poucos dias, ela pensava que o fato de a ter declarado como sua companheira era apenas um ato político? Apenas uma maneira de a proteger do bando?

Houve um pequeno silêncio.

— Honey me contou, ontem à noite. Ela explicou a Mercy que era um pouco mais do que isso. Por isso, Mercy soube mais do que aquilo que você queria que soubesse.

— A pressão faz com que ela corra na direção contrária. — Adam disse secamente. — Eu pensei que era melhor esperar para lhe explicar quando as coisas se tornassem críticas.

— Então, ela sabe que é mais do que apenas palavras. Ela percebe que a sua declaração te torna vulnerável.

— Vá direto ao assunto.

— Por isso, ela sabia que tinha que ligar e contar que ia a casa do sacana. Mas também sabe que vai lhe dizer não, e sente que precisa ir por causa de Zee... ou por qualquer outra razão que Tim arranjou para convencê-la.

— Tudo bem.

— E talvez ela não goste de te pedir autorização por casa coisa que queira fazer. Seja como for, ela sabe que devia te ligar e não liga. Opta por ir a casa de Tim, mas também sente, de alguma forma, que está fazendo a coisa errada. A escolha foi dela. A culpa é dela. A culpa é dela por ter bebido daquele maldito copo Fae. A culpa é dela por ele...

No momento seguinte, Adam atirara Ben ao chão e estava encima dele rosnando.

— Ela não tem culpa por ter sido estuprada! — rugiu.

Ben ficou no chão e ofereceu a garganta a Adam, mas não desistiu de falar, embora uma lagrima lhe corresse pelo resto.

— Ela pensa que é!

Adam se tranquilizou.

— Pior ainda. — continuou ele, com a voz rouca. — Aposto que ela se questiona se foi mesmo estuprada.

Adam se sentou no chão, soltando Ben completamente.

— Explique isso. — sua voz era muito suave.

Ben acenou e pôs um braço por cima dos olhos.

— Você viu o que aconteceu. Você ouviu. Aquela bebida lhe roubou a capacidade de resistir, mas ele não se limitou a mandá-la se despir. Ele a fez sentir, a fez desejar.

Adam acenou.

— E você a ouviu... Você viu. Ela disse “não”. Ele fez o seu amigo se afogar com um sorriso no rosto... e não conseguiu manter Mercy sob controle enquanto estava com ela. Teve que lhe enfiar aquela maldita coisa pela garganta abaixo. — era orgulho que ouvi na voz dele? — Mas ela se despiu e lhe tocou.

— Ela resistiu. — Adam rosnou. — Você viu. Ouviu. Viu o choque de Nemane ao ver a resistência de Mercy. Ela mal podia acreditar quando Mercy lhe bateu com a bengala.

Ben sussurrou: — Quando ele lhe disse que ela o desejava, que ela o amava... ela sentiu isso mesmo. Viu o rosto dela? Para ela foi real. Foi por isso que ela conseguiu matá-lo enquanto ele estava vestido com a merda daquela pele de cavalo. Não foi o que ela disse? Naquele momento, Mercy amava-o, por isso não podia ser sua inimiga... caso contrário, não teria podido matá-lo enquanto ele estava vestido naquilo.

Adam acreditou. Eu vi o rosto dele mudar, e ouvi o gemido que trovejou no seu peito. Agora, ele compreendia. Agora, ele me odiava por traí-lo.

O chão rangeu quando Ben se levantou subitamente. Ele sacudiu as calças, um gesto de nervosismo, porque o chão estava limpo. Adam cobriu o rosto com a mão.

— Então, foi um estupro? — Ben perguntou em um tom descontraído, enquanto esfregava o rosto bruscamente, para limpar quaisquer vestígios de lágrimas. Era uma bela encenação. Se as outras duas pessoas no quarto fossem humanas, podiam ter acreditado naquele Ben despreocupado, e não no ser atormentado que ele deixara transparecer. — Vai ter que decidir por si mesmo. Se a culpa pela maneira como ele a fez sentir, então volte a descer aquelas escadas e manda Warren para cima. Ele toma conta dela e, quando conseguir, ela vai embora e não terá que voltar a se preocupar. Ela não vai te censurar porque sabe que é a única culpada. Foi tudo culpa dela. Vai se lamentar de ter te magoado e vai nos deixar para que possamos esquecê-la.

Estupefata, olhei para Ben. Como que ele sabia que eu planejava ir embora?

Adam se levantou com lenta determinação.

— Você vai viver. — ele disse com a voz rouca. — Vai viver porque sei o que sente realmente. Claro que foi estupro. — Adam olhou para a cabeça baixa de Bem e senti o súbito aumento de poder que me disse que ele estava usando um pouco do poder que lhe pertencia como Alfa de Ben. Ele esperou até o outro lobisomem erguer o olhar e até eu senti a súbita faísca daquela conexão. Depois, lentamente, ele disse: — Assim como é estupro quando um adulto coage ou persuade uma criança. Não importa se a criança coopera ou não. Por mais que pareça bom ou não. Porque aquela criança não é capaz de fazer senão o que lhe mandam.

Alguma coisa mudou no rosto de Ben, uma súbita alteração que Adam também viu, porque abandonou a magia.

— E agora sabe que eu compreendo e acredito nisso.

Ben sofrera abusos quando criança. Não era de se surpreender, dada a sua personalidade calorosa e alegre. E eu nunca pensara muito na razão de ele ser como era.

— Obrigado por partilhar o seu discernimento. — Adam disse formalmente.

Ben caiu de joelhos como se tivessem se transformado subitamente em água. Era um movimento muito gracioso.

— Desculpa por não tê-lo feito... melhor. Mais respeitosamente.

Adam afagou-o gentilmente.

— Eu não teria ouvido. Levante-se e vá descansar um pouco. — mas, quando Ben se levantou, Adam o puxou para um abraço que provava que os lobisomens não são pessoas. Dois homens, heterossexuais e humanos, nunca teriam se tocado depois de uma revelação daquelas.

— Ser um lobisomem te dá tempo para ultrapassar a sua infância. — Adam sussurrou ao ouvido de Ben. — Ou lhe dá tempo para deixar isso te destruir. Eu prefiro que seja um dos sobreviventes, está ouvindo? — deu um passo atrás. — Agora, pode ir lá para baixo.

Esperou que a porta se fechasse atrás de Ben e depois balançou a cabeça.

— Estou em divida com você. — disse para a porta. — Não me esquecerei.

Deixou-se cair ao lado da cama como se estivesse muito cansado para permanecer de pé. Com a mesma rapidez, embora eu pensasse que estava muito bem escondida, estendeu a mão, agarrou a pela do pescoço e me puxou de debaixo da cama para o seu colo.

Estremeci, dilacerada entre a noção de que não merecia que me tocasse e a hesitante compreensão de que ele não me culpava, por mais que eu julgasse que devia.

— Meu pai sempre me disse que, quando eu ouvisse bons conselhos, devia segui-los. — ele disse.

Continuou a me segurar firme pela pele do pescoço com uma mão, mas a outra acariciou meu rosto.

— Vamos esperar que essa coisa desapareça completamente para depois conversarmos. — sua caricia se deteve. — Não me interprete mal, Mercedes Thompson. Eu estou zangado contigo.

Mordeu meu nariz com força, uma vez. É o que os lobos fazem para disciplinar os mais jovens ou os membros da matilha mal comportados. Depois abaixou a cabeça para pousar sobre a minha e suspirou.

— A culpa não é sua. — disse. — Mas ainda estou zangado contigo... muito zangado por me assustar dessa maneira. Droga, Mercy, quem teria imaginado que um par de humanos causaria toda essa angustia? Mesmo que tivesse me ligado, eu não teria impedido que fosse... pelo menos por pensar que seria perigoso. Não teria enviado um guarda contigo só para ir fala com um humano qualquer. — voltou a colar o rosto ao meu pescoço e depois deu uma pequena gargalhada. — Cheira ao meu pós-barba.

Braços duros me apertaram fortemente enquanto ele dizia em voz baixa: — Mas é justo que te avise que hoje selou o seu destino. Quando soube que tinha problemas, veio atrás de mim. Isso foram duas vezes, Mercy, e duas vezes é quase equivalente a uma declaração. Agora você é minha.

As mãos dele, que estavam se movendo em círculos sobre o meu pelo, pararam e me agarraram.

— Ben disse que pode fugir. Se fizer isso, eu te encontro e te trago de volta. Sempre que fugir, Mercy. Não vou te forçar, mas... não vou embora nem te deixar ir embora. Se pode lutar contra essa maldita bebida Fae, pode certamente ultrapassar qualquer vantagem que ser um Alfa me dá, se quiser. Chega de desculpas, Mercy. Você é minha, e eu vou ficar contigo.

A minha natureza independente, que sem duvida não demoraria a se reafirmar, ficaria ultrajada perante esse conceito possessivo, arrogante e medieval. Mas...

O desejo de Tim de eu ficar para sempre sozinha me atingira particularmente... porque era algo que eu já sabia. Nada como ser um coiote criado no meio de lobisomens para me fazer compreender que ser diferente equivalia a não pertencer a um grupo. Eu também não pertencia a minha família humana, embora a amasse e eles me amassem.

Sob o peso dos direitos abertamente possessivos que começavam nas palavras de Adam e se transportavam pelo corpo dele, todo o meu mundo foi abalado em seu eixo.

Ele acabou adormecendo, enroscado a minha volta como se estivesse em forma de lobo, mas as linhas de tensão permaneceram, fazendo-o parecer mais velho, como se tivesse trinta anos. Com Adam me rodeando, fiquei vendo o céu se iluminar e um novo dia nascer.

Em algum lugar na casa um telefone tocou.

Adam também ouviu. A porta de Jesse se abriu e ela correu pelas escadas abaixo para atender.

Não consegui ouvir o que dizia, uma vez que ela estava no andar de baixo, na cozinha, mas o tom da sua voz passou de educado para cuidadosamente respeitoso.

Adam se levantou comigo nos braços, depois me pousou na cama.

— Fique aqui.

— Pai? Bran está no telefone.

Ele abriu a porta.

— Obrigado, Jesse.

Ela lhe entregou o telefone e enfiou a cabeça no quarto para olhar para mim. Tinha os olhos inchados. Teria chorado?

— Vai se preparar para ir para a escola. — Adam disse. — Mercy vai ficar bem.

Era quinta de manhã. A ideia me energizou, eu tinha que trabalhar... Depois voltei a me instalar na cama. Não queria voltar para a minha garagem, com os pedaços de Tim espalhados por todo o lado. Devia ligar para Gabriel e lhe dizer para não aparecer depois da escola. Devia...

— ...alguém lhes mandou o vídeo onde aparece despedaçando o estuprador de Mercy. Embora eu aprecie o sentimento e tivesse certamente feito a mesma coisa, isso nos deixa em uma posição complicada. Aquela lei não pode passar. — a voz de Bran vagou sobre mim como uma brisa de calma que não tinha nada a ver com o que ele estava dizendo e tudo a ver com o fato de ser Bran.

— Quanto tempo do filme receberam? — Adam rosnou.

— Não muito, ao que parece. Quem quer que o tenha mandado representou-o como um lobisomem Alfa atacando um humano sem provocação. Eu gostaria que levasse o vídeo inteiro... suponho que não mostre a nossa Mercy mudando de forma.

— Mercy não se importará, mas talvez seja possível acrescentar aqueles retângulos negros que os novos jornalistas usam.

— Sim. Tenho certeza que Ben pode fazer isso. — Adam parecia cansado. — Quer que eu o leve, não quer?

— Vou mandar Charles com você. Tenho certeza de que, quando virem o filme inteiro, a maior parte dos homens na comissão ficará pronta para te aplaudir. Os outros ficarão de bocas fechadas.

— Eu não quero que aquele vídeo chegue a internet. — Adam disse. — Com a Mercy...

— Eu acho que podemos garantir que isso não acontecerá. O congressista foi muito claro a respeito de quem lhe enviou o vídeo. Vou mandar cuidar desse assunto.

Adam não olhava para mim. Saltei da cama e passei pela porta, que ainda estava aberta.

Não queria ouvir mais. Não queria pensar que haveria pessoas vendo um filme da noite anterior. Queria ir para casa.

Warren estava parado no fundo das escadas falando com Ben, por isso enfiei-me no quarto de Jesse antes que olhasse para cima.

— Mercy? — Jesse estava sentada na cama com os trabalhos de casa espalhados na sua frente.

Eu saltara para o peitoril da sua janela aberta, que ainda estava sem vidro, mas alguma coisa na sua voz me fez parar. Saltei para cima da cama e encostei o focinho ao seu pescoço. Ela me deu um rápido abraço antes de eu me soltar e correr para a janela.

Tinha me esquecido que Tim partira meu braço, ou pata dianteira, nas forma de coiote, mas ela se aguentou quando saltei de um ponto mais baixo no telhado para o chão. Nemane cumprira a sua palavra quanto as outras coisas que o copo podia fazer.

Corri até em casa e parei na varanda da frente. Não conseguia abrir a porta, com aquela forma, mas não queria voltar para humana até a próxima década.

Antes de ter tempo de me preocupar muito, Samuel abriu a porta. Depois fechou-a e me seguiu para o meu quarto, abrindo também a porta.

Eu saltei para a minha cama e me enrolei toda, enfiando o queixo na almofada. Samuel se sentou aos pés da cama, dando-me muito espaço.

— Consegui, de maneira inteiramente ilegal, bisbilhotar os registros médicos de um Timothy Milanovich. — ele disse. — O médico dele é meu amigo e concordou em me deixar entrar em seu gabinete durante alguns minutos. Quando a noiva de Milanovich o deixou, ele fez exames e o resultado foi negativo para quaisquer doenças com que possa se preocupar.

E também não tinha de me preocupar com uma gravidez. Assim que percebera que havia a possibilidade de acabar na cama de Adam ou de Samuel, começara a tomar a pílula. O fato de ser ilegítima deixa uma pessoa sensível a coisas como essa.

Suspirei e fechei os olhos, e Samuel se levantou da cama. Fechou a porta atrás de si.

Ela voltou a se abrir depois de alguns minutos, mas não era Samuel. Warren na sua forma de lobo, entrou solenemente atrás do seu Alfa.

— Eu estava falando serio, Mercy. — Adam disse. — Não fuja. Tenho que ir para Washington, e é melhor que esteja aqui quando eu voltar. Até lá, um do meu bando vai ficar contigo.

A cama se afundou pesadamente sob o peso de Warren quando o enorme lobo se enroscou ao meu lado. Lambeu meu rosto com sua língua áspera.

Ergui a cabeça e meus olhos se cruzaram com os de Adam.

Ele sabia. Ele sabia tudo e ainda queria estar comigo. Talvez fosse mudar de ideia, mas eu o conhecia a muito tempo, e ele era tão inconstante quanto uma rocha. Seria possível movê-lo com uma escavadora mecânica, mas nada além disso.

Ele fez um aceno com a cabeça e desapareceu.


13

Durante um dia inteiro, deixei-me mimar. Dormi na minha cama com qualquer lobo que tivesse sido enviado para ficar comigo. Quando começava a ter algum pesadelo, alguém sempre estava ali. Samuel, Warren, Honey e a companheira de Darryl, Aurielle. Samuel arrastou uma das cadeiras da cozinha para o meu quarto e tocou violão durante horas.

Na manhã seguinte, acordei e percebi que tinha que fazer alguma coisa, ou toda aquela piedade e culpa iam me fazer enlouquecer. Se os deixasse me trataram como se estivesse quebrada, como iria alguma vez me convencer de que não estava?

Era sexta-feira. Devia estar trabalhando... Meus pulmões imobilizaram perante a ideia de voltar a oficina. Respirei fundo para afastar o ataque de pânico.

Então, não iria trabalhar. Nesse dia, pelo menos.

O que ia fazer...

Ergui a cabeça, olhei a pilha de lobos que ameaçava quebrar a minha cama com o seu peso e considerei os meus carcereiros. Com Darryl não funcionaria. Não lhe daria a volta sem a autorização de Adam e Aurielle não iria contra o seu companheiro. Ela abriu os olhos e olhou para mim. Assim como eu, ambos deviam ter ido trabalhar. Aurielle na escola secundária e Darryl na sua equipe consultora de luxo. Nenhum deles serviria para o objetivo principal, mas, por agora, não importava. Aquele seria o dia do reconhecimento.

Acabou sendo Warren a ir comigo, passando para a sua forma humana para poder brincar de “ir passear com o coiote”, enquanto Darryl e Aurielle ficavam na casa de Adam para cuidarem de Jesse.

— Vamos andar por quanto tempo? — Warren perguntou.

Tropecei, caí de lado e depois me arrastei para frente antes de voltar a me levantar e continuar a andar rapidamente pela estrada.

— Se as coisas ficarem muito ruins, ligo para Kyle e lhe digo que tem que nos buscar. — Warren disse secamente.

Eu lhe fiz um sorriso canino e sai da via rápida para uma estrada secundária. A casa dos Summers era uma bela moradia de dois andares, construída na década passada em uma propriedade de dois acres. Tinham um cão, que olhou para mim e veio correndo com pressa silenciosa, mas congelou assim que Warren rosnou, ou então foi simplesmente porque cheirou o lobisomem que havia nele.

Levei o nariz ao chão e procurei o rastro que esperava encontrar. Era verão e a uns quatrocentos metros dali tinha um rio. Qualquer garoto com respeito próprio teria... sim. Ali estava.

Tinha pensado que encontraria Jacob Summers em casa, mas seria difícil explicar porque precisava conversar com ele a sós. Eu nem sequer tinha certeza do que eu ia lhe dizer, ou se ia mesmo dizer alguma coisa afinal.

A estrada continuava quase todo o caminho até o rio e depois se desvanecia, logo depois de atravessar o canal. Encontrei o lugar favorito de Jacob seguindo pelo cheiro. Havia um pedregulho bem grande na beira do rio.

Saltei para cima dele e olhei a água, como Jacob devia ter feito.

— Não está pensando em saltar, não é, Mercy? — Warren perguntou. — Eu não era grande nadador quando era humano, e as coisas não melhoraram com os anos.

Olhei-o desdenhosa, depois me lembrei que Tim me mandara me afogar por amor.

— Feliz em ouvir. — ele disse, e sentou-se na margem rochosa ao meu lado.

Ele se inclinou e pegou em um emaranhado de linha de pesca onde estava preso um anzol e uma par de velhas latas de cerveja. Colocou o anzol nas latas. De súbito, endireitou-se e olhou em volta.

— Sentiu isso? — me perguntou. — A temperatura deve ter baixado uns dez graus. Acha que o seu amigo Fideal está por aqui?

Eu sabia porque estava mais frio. Austin Summers estava ao meu lado e acenava com a mão fresca e morta. Quando ergui o olhar, ele olhava o rio, como eu estivera fazendo.

Warren andava de um lado para outro ao longo da linha da margem, a procura de Fideal, sem notar que eu estava acompanhada por outra pessoa.

— Diga ao meu irmão. — Austin não desviou o olhar da agua azul profunda. — Aos meus pais não, eles não iriam compreender. Prefeririam acreditar que me suicidei a ouvir dizer que sucumbi a poção mágica do Tim. Eles confundem esse tipo de coisas com satanismo. — sorriu vagamente, com uma ponta de desprezo na voz. — Mas meu irmão precisa saber que não o abandonei, tá? E, tem razão. Esse é um bom lugar. É o lugar onde ele vem pensar.

Inclinei-me um pouco para a sua mão.

— Obrigado. — ele disse.

Ficamos ali sentados muito tempo até ele desaparecer. Perdi o seu cheiro logo depois, mas sentir os seus dedos no meu pelo até saltar de cima da rocha e começar a voltar, com Warren caminhando ao meu lado com duas latas de cerveja na mão.

— Então, queria fazer alguma coisa? — Warren perguntou. — Ou queria apenas olhar o rio... o que podia ter feito sem andar esse caminho todo.

Abanei a cauda, mas não fiz nenhum esforço para lhe responder de qualquer outra forma.

O passo seguinte exigia que me tornasse humana. Levei vinte minutos no banheiro com a porta trancada antes de conseguir. Era estúpido, mas, por alguma razão, me sentia mais vulnerável como humana do que como coiote.

Warren bateu a porta para me dizer que ia para casa dormir um pouco e que Samuel estava em casa e ficaria durante a noite.

— Tudo bem. — respondi.

Ouvi o sorriso na sua voz. — Vai ficar bem, pequena. — bateu mais uma vez com os nós dos dedos na porta e foi embora.

Olhei o meu rosto humano no espelho e desejei que ele tivesse razão. A vida seria mais simples como coiote.

— Sua covarde. — disse para mim mesma, e me meti no chuveiro sem aquecer a água antes.

Tomei uma ducha até a água voltar a ficar fria, o que ainda demorou algum tempo. Um dos melhoramentos que Samuel fizera fora um enorme deposito de água quente, embora não houvesse nada de errado com o antigo.

Com pele de ganso em mim, trancei meu cabelo sem me olhar ao espelho. Esquecera de trazer roupas para o banheiro, por isso me embrulhei em uma toalha. Mas o quarto estava vazio, e me vesti em paz.

Já vestida com uma camisa com a imagem dos dois mastros Lady Washington na frente e calças jeans pretas, fui para a cozinha procurar um jornal, para ver quando seria o funeral de Austin Summers, se não tivesse já ocorrido. Pensei que depois do funeral seria uma boa hora para Jacob Summers ir para o rio.

Encontrei o jornal de ontem em um balcão na cozinha e fiz uma xícara de chocolate com a água que já estava quente na chaleira. Era instantâneo, mas não estava com vontade de fazer o bom. Por isso lhe atirei uma mão cheira de velhos mashmallows em miniatura.

Peguei o jornal e minha xícara e me sentei a mesa ao lado de Samuel. Desdobrando o jornal, comecei a ler.

— Se sente melhor? — ele perguntou.

— Sim, obrigada. — disse educadamente. E voltei para a leitura, ignorando-o quando puxou a minha trança.

Eu tinha lido a primeira pagina. Não estava a espera. Quando se convive com lobisomens e outras coisas das quais as pessoas não sabem muito, nos habituamos a noticias falsas. HOMEM MORRE EM INCENDIO MISTERIOSO, INCENDIARIO PROCURADO ou MULHER ENCONTRADA MORTA POR ESFAQUEAMENTO. Coisas desse tipo.

MECANICA LOCAL MATA ESTUPRADOR vinha por cima de ESTUDANTE AFOGADO NO COMUMBIA. Li primeiro a minha história.

Quando terminei, pousei o jornal e bebi um pensativo gole de chocolate, onde os mashmallows tinham derretido ao pondo de se tornarem comestíveis.

— Agora já pode falar, diz como se sente. — Samuel disse.

Olhei para ele. Parecia calmo e cheiro de autodomínio, mas não era a isso que cheirava.

— Acho que Tim Milanovich está morto. Fui eu que o matei, e Adam o rasgou em pedaços tão pequenos que nem Elizabeta Arkadyevna seria bruxa o suficiente para chamá-lo para a não-vida, se decidisse fazer zumbis ao invés de dinheiro. — bebi mais um pouco de chocolate, mastiguei um mashmallow e disse pensativa. — Será que matar o próprio estuprador alguma vez se tornara uma pratica terapêutica conhecida? Comigo funcionou.

— Sério?

— Sério. — eu disse, pousando minha xícara com força na mesa. — Quero dizer, se todo mundo parar de andar por aí como se a sua melhor amiga tivesse morrido e a culpa fosse deles.

Ele sorriu, apenas um pouco e apenas com os lábios.

— Mensagem recebida. Nessa casa não há vítimas.

— Pode acreditar. — peguei o jornal

Quinta-feira. Hoje era sexta. Tad viria na sexta, se seu pai ainda corresse perigo.

— Alguém ligou para o Tad? — perguntei.

Ele acenou. — Você nos pediu. Adam lhe ligou quando voltou do departamento de polícia. Mas parece que o Tio Mike já tinha lhe contado.

Não me lembrava de ter pedido isso. As minhas recordações de quarta-feira eram confusas, mas eu não gostava de não me lembrar do que tinha feito. Fazia me sentir indefesa. Por isso mudei de assunto.

— Então, vamos acusar Tim pela morte de O’Donnel?

— Amanhã. — ele disse. — A polícia e os Fae ainda querem resolver algumas pontas soltas e garantir que todo mundo percebeu bem a história. Uma vez que Milanovich está morto, não haverá julgamento. Os objetos encontrados na casa dele serão ligados a O’Donnel e a alguns roubos na reserva. As autoridades vão concluir que O’Donnel e Milanovich estavam trabalhando juntos e que Milanovich se tornou ganancioso e apagou O’Donnel. Zee ligou O’Donnel aos roubos e foi a casa dele para conversarem, encontrando O’Donnel morto. Foi levado para interrogatório, mas o puseram em liberdade quando as provas mostraram que não foi ele. Eles estão sendo vagos a respeito das provas. Milanovich decidiu experimentar uma das coisas que roubou com O’Donnel em você, mas você o matou para se defender.

Ele deu um sorriso.

— Deve gostar de saber que os jornais vão dizer que os objetos mágicos que roubaram não eram, obviamente, tão poderosos como os ladrões pensavam, e que foi por essa razão que foi capaz de matar Milanovich.

— E os objetos mágicos fracos são consideravelmente menos assustadores do que se fossem poderosos. — observei. — E Austin Summers?

— Vão tentar mantê-lo fora disso... mas a sua ligação a Milanovich e a O’Donnel é muito próxima para deixar a família com dúvidas. A polícia vai lhes dizer suavemente que há algumas indicações de que ele estava envolvido mas que ninguém sabe exatamente como... e nunca saberá, uma vez que todos morreram.

— Adam tem falado contigo?

— Não, mas Bran ligou. A polícia que enviou a versão reduzida do filme foi repreendida e a cópia que fizeram foi confiscada. Bran acha que Adam e Charles estão causando uma forte impressão. Adam deve estar de volta na segunda.

Eu não queria pensar no que aconteceria quando Adam voltasse para casa. Hoje ia ser muito bom em pensar apenas no que me concernisse.

Peguei o jornal e li o artigo de Austin.

— O funeral é amanhã de manhã. Acho que vou visitar o irmão do Austin a seguir. Quer vir?

— Amanhã tenho que ir trabalhar... tive folga no ultimo fim de semana. — suspirou. — Será que eu quero saber porque vai visitar o irmão do Austin?

Sorri.

— Acho que vou levar o Ben.

Os olhos de Samuel se ergueram rapidamente.

— O Ben? Adam não vai gostar disso.

Acenei para se calar.

— Adam não vai se importar, e o Ben é o único em quem confio para levar as coisas justamente ao ponto necessário. Warren pode parecer um doce, mas algumas coisas o fazer se irritar. Além disso, Ben vai gostar.

Samuel fechou os olhos.

— Você gosta de fazer isso. Tudo bem, seja misteriosa. Ben pode ser um pobre diabo, mas é o pobre diabo de Adam. — podia parecer exasperado, mas eu vi o alívio em seu corpo. Ele estava disposto a fingir que estava tudo normal, se era isso que eu queria. E começava até a acreditar nisso. Eu o via na maneira como os músculos do seu ombro se descontraíam e se desvanecia o cheiro da sua raiva protetora.

Ele tinha que ir embora antes que eu estragasse tudo. Além disso, precisava ir me lavar.

— Acho que vou só tomar uma ducha. — eu disse.

Foi só quando Samuel se endireitou que me lembrei que tinha acabado de sair do chuveiro. E queria mostrar que estava tudo normal.

No sábado, levei Ben para dar um passeio. Ele se mostrava muito circunspecto quando entrei na casa de Adam e lhe disse que ele ia ser a minha escolta, nesse dia.

Aurielle, que fora a minha guarda nessa manhã, tentara se convidar para nos acompanhar, mas eu a conhecia bem. Ela não tinha qualquer complacência por quem quer que magoasse aqueles de quem gostava. Se soubesse que Jacob Summers era um dos rapazes que tinham tentado atacar Jesse, ela lhe arrancaria a cabeça. Sério.

Quanto a mim, acredito na vingança mas acredito também na redenção.

Por isso, disse a Aurielle que não podia ir e, uma vez que o bando decidira me tratar como se eu tivesse já concordado em ser a companheira de Adam, não havia nada que ela pudesse fazer.

A meu pedido, Ben se transformou, por isso fui caminhar com um lobisomem ao meu lado.

Seria de imaginar que atrairíamos mais atenções. Só recentemente que eu começara a reparar que as pessoas, na maior parte das vezes, não vêem os lobisomens quando eles andam a vista. Eu costumava pensar que era apenas porque não sabiam da sua existência, mas agora sabem e continuam sem vê-los. Provavelmente é alguma espécie de magia que os mantém fora de vista. Não exatamente invisíveis, mas facilmente despercebidos.

Não tinha ninguém na rocha de Jacob, e eu fui com Ben a procura de um lugar onde pudéssemos ver sem sermos vistos. Encontramos um bom lugar no meio de uns arbustos perto do canal e nos instalamos a espera. Ou, pelo menos, Ben ficou a espera. Eu adormeci. Andava dormindo bem mais do que o habitual. Samuel me disse que julgava ser um resultado do tratamento forçado, mas eu vi a preocupação nos seus olhos.

Sim, eu tivera momentos de negra depressão, mas os tratava da maneira como sempre tratava as coisas que me aborreciam. Tinha o congelador cheio de biscoitos e havia brownies na geladeira de Adam. A minha geladeira estava cintilando e o banheiro também estaria se os anos não tivessem desgastado o acabamento brilhante do chão de linóleo.

Algum dia, iria arrumar aquele banheiro, se Samuel não se adiantasse. Eu estava mesmo farta do verde-abacate. Meu banheiro estava em um amarelo mostarda, quando me mudara. Quem enfiaria um vaso de cor mostarda em um banheiro? Agora, a pia, o chuveiro e o vaso eram monotonamente brancos mas monótono era melhor do que amarelo.

Debaixo da minha cabeça, Ben se moveu, me acordando.

Eu me virei e olhei. Sim, vinha um rapaz descendo a estrada que era muito parecido com Austin. Mancava um pouco. Calculo que Jesse tenha causado alguns estragos. A satisfação que senti significava que eu não era tão boa pessoa como gostava de parecer.

Fiquei onde estava até ele chegar à rocha e se sentar. Depois me levantei e sacudi as roupas até parecer relativamente normal.

— Espere aqui até eu te chamar. — disse a Ben. — Olá, Jacob. — disse quando estava ainda um pouco afastada.

Ele esfregou o rosto rapidamente antes de se virar. Quando se dissipou o pânico inicial por ser encontrado chorando, olhou para mim de sobrancelha franzida.

— Você é aquela garota que foi estuprada. A que matou o amigo do meu irmão.

Eu mudei de imediato a abordagem simpática. — Mercedes Thompson. A que foi estuprada e que matou Tim Milanovich. E você é Jacob Summers, o filho da mãe que decidiu se juntar com um amigo para ver como seria fácil bater na minha querida amiga Jesse.

Seu rosto empalideceu, e eu senti o cheiro de culpa nele. Culpa era bom.

— Ela não quis dizer a ninguém quem foi porque sabia que o pai mataria os dois. — esperei pelo medo, mas tive de me contentar com a culpa. Suponho que ele julgava que eu estava falando figurativamente. — Mas não foi por isso que vim aqui. — disse. — Ou, pelo menos, não é a única razão. Pensei que devia saber a verdade sobre a morte do seu irmão. A história que não vai aparecer nos jornais. — e lhe contei o que Tim fizera ao irmão dele, e como.

— Então essa coisa Fae fez o meu irmão se matar? Eu pensei que aquelas coisas eram brinquedos.

— Até brinquedos podem ser perigosos, nas mãos erradas. — respondi. — Mas não. Tim assassinou o seu irmão assim como tinha assassinado O’Donnel. Se não tivesse o copo, teria usado uma arma.

— Porque está me dizendo isso? Não tem medo que eu diga as pessoas que aqueles artefatos são perigosos?

Era uma boa pergunta, e exigiria um pouco de persuasão intercalado com a verdade.

— A polícia conhece a verdadeira história. Os jornais nunca te levarão a sério. "Como descobriu?" "Foi Mercy Thompson que me contou". Depois posso dizer, "bem, não senhor, nunca o vi na minha vida." É uma bela história, mas não foi isso que aconteceu. Os seus pais... — suspirei. — Acho que os seus pais ficarão mais contentes se pensarem que ele se suicidou, não é?

Vi pela cara dele que concordava com o seu irmão naquele ponto. Eu não compreendo algumas pessoas. Se uma pessoa está contra o mal, não devia confundir com outra coisa qualquer, nem com lobisomens, nem com adolescentes vestidos de preto e com piercings por cima de piercings, nem com magia Fae, por mais poderosa que ela seja.

— A verdadeira razão porque quase não te contei sobre isso é que quem vai acreditar em você são os Fae. E se eles pensarem que está lhes causando problema, pode sofrer um acidente conveniente em alguma noite escura. Dizem que não querem fazer isso. Nenhum de nós, nem os fae, nem eu, nem você queremos que isso aconteça. Seria melhor que o guardasse apenas para você.

— Então, porque me contou?

Olhei para ele e depois olhei para Austin, que estava atrás de seu irmão. Jacob tinha pele de ganso nos braços, mas não estava prestando atenção.

— Porque uma vez, quando eu era pequena, alguém de quem gostasse se suicidou. — lhe disse. — Pensei que seria importante saber que o seu irmão não foi assim tão egoísta, que não te abandonou. — virei o meu rosto para o rio. — Não sei se isso ajuda, mas Tim não se safou.

A resposta dele me disse que eu tivera razão em acreditar que uma pessoa de quem Jesse gostara não podia ser sem salvação.

— Ajuda a saber que ele está morto? — perguntou.

Mostrei-lhe a resposta no meu rosto. — Por vezes. Na maior parte do tempo. Em outras vezes, nada.

— Acho... acho que acredito em você. Austin tinha muitas coisas porque viver... e você não teria nenhuma razão para estar mentindo. — ele fungou, depois limpou o nariz no ombro, tentando fingir que não estava chorando. — E ajuda. Obrigado.

Balancei a minha cabeça. — Não me agradeça ainda. Essa não foi a única razão porque vim aqui. Tem que saber porque não vai querer machucar Jesse. Ben? Pode vir aqui um momento?

Atirei um galho e Ben correu atrás dele. Eu estava certa. Ele se divertiu muito. Assustar adolescentes valentões era mesmo a sua onda.

Tínhamos sido meigos com Jacob. Ben desempenhara o papel com perfeição. Suficientemente assustador para convencer Jacob de que Jesse tinha razão em temer que o pai matasse quem quer que a machucasse, mas também suficientemente meigo para Jacob perguntar se poderia tocá-lo.

Ben, assim como Honey, era bonito e vaidoso o suficiente para gostar da atenção. Jacob, pensei, era inteiramente redimível e estava envergonhado por ter machucado Jesse. Não voltaria a fazê-lo.

Eu conseguira o nome do amigo dele... e da namorada do amigo, que inventara aquilo tudo. Também receberiam uma visita. Ben daria um bicho-papão assustador, não que um lobisomem não fosse sempre. Não sei se eles alguma vez seriam pessoas que eu iria querer conhecer, mas, pelo menos, nenhum deles voltaria a se aproximar de Jesse.

Às vezes, não sou uma boa pessoa. Assim como Ben.

No domingo, fui a igreja e tentei fingir que todos os olhares estavam concentrados em Warren e Kyle, que tinham me acompanhado. Mas o pastor Julio me deteve na saída. — Como se sente? — perguntou.

Eu gostava dele, por isso não rosnei, nem explodi, nem fiz nenhuma das coisas que deu vontade de fazer.

— Se mais alguma pessoa me perguntar isso, vou me atirar no chão e começar a espumar pela boca. — lhe disse.

Ele sorriu.

— Ligue-me se precisar de alguma coisa. Eu conheço um ou dois bons psicólogos.

— Obrigada, eu ligo.

Estávamos no carro antes de Kyle começar a rir. — Espumar pela boca?

— Você lembra. — eu disse. — Vimos O Exorcista a uns meses.

— Eu também conheço alguns bons psicólogos. — ele disse e, esperto como é, continuou sem me dar chance de responder. — Então, o que vamos fazer essa tarde?

— O que vamos fazer eu não sei. — lhe disse. — Eu vou ver se consigo pôr o meu Rabbit andando outra vez.

O celeiro que me servia de garagem em casa estava bem mais fresco que o ar queimado pelo sol á fora. Fiquei no escuro por um minuto, lidando com o pânico momentâneo que o cheiro de óleo e graxa provocavam. Era o primeiro ataque de pânico do dia, o que correspondia a um terço do numero de ataques de pânico que tive ontem.

Warren não disse nada, nem enquanto eu me esforçava por respirar, nem quando recuperei, o que é uma das razões por amá-lo.

Acendi a luz assim que o suor começou a secar na minha camisa.

— Não estou muito otimista a respeito das chances do Rabbit. — disse a Warren. — Quando Gabriel e eu o trouxemos para casa, dei uma olhada. Parece que Fideal transformou meu diesel em água salgada... que tem estado no meu tanque e tubos desde terça-feira.

— Isso é ruim. — Warren sabia tanto de automóveis quanto eu sabia de vacas. Ou seja: absolutamente nada. Kyle era melhor, mas, se pudesse escolher, preferiria ficar em casa com ar condicionado e biscoitos com gotas de chocolate.

Abri o capô e olhei para o velho motor.

— Não sei se seria mais barato ir procurar outro em uma lixeira e ir usando esse como partes ou tentar arranjá-lo.

O problema é que eu tinha mais lugares onde pôr dinheiro do que dinheiro para pôs ali. Devia a Adam pelos estragos na sua casa e no carro.

Ele não dissera nada, mas eu sabia eu estava em divida. E não tinha ido trabalhar desde quarta-feira.

Amanhã seria segunda-feira.

— Quer tentar fazer isso mais tarde? — o olhar atento de Warren demorou-se em meu rosto.

— Não, estou bem.

— Você tem sabor de medo. — não era a voz de Warren.

Tirei a cabeça de debaixo do capô com força suficiente para machucar o pescoço.

— Ouviu isso? — perguntei. Nunca tinha encontrado um fantasma na minha casa, mas havia uma primeira vez para tudo.

Mas mesmo de ele dizer alguma coisa, vi a resposta na postura corporal de Warren. Ele também ouvira.

— Sente algum cheiro estranho? — perguntei.

Alguma coisa riu, mas Warren ignorou. — Não.

Vejamos. Estávamos em um edifício bem iluminado, sem lugares onde alguém pudesse se esconder, e nem eu nem Warren conseguíamos ver ou cheirar fosse o que fosse. Isso deixava duas hipóteses e, uma vez que era dia lá fora, os vampiros poderiam ser excluídos.

— Fae. — eu disse.

Warren devia ter pensado o mesmo, porque pegou uma barra de ferro que eu tinha atrás de porta. Tinha um metro e meio de comprimento e pesava oito quilos, e ele agarrou-a com uma mão como eu agarraria uma faca.

Peguei a bengala, que estava aos meus pés no lugar onde um momento antes não havia nada senão cimento. Não era de ferro, mas já me salvara a vida. Depois esperamos, com os sentidos em alerta... não aconteceu nada.

— Liguei para a casa de Adam. — Warren me disse.

— Não posso. Meu celular ainda não funciona.

Warren atirou a cabeça para trás e uivou.

— Isso não vai funcionar. — sussurrou o intruso. Eu inclinei a cabeça. A voz era diferente, mais forte, e tinha uma distinta pronuncia escocesa. Era Fideal, mas eu não conseguia saber onde estava. — Ninguém te ouve, lobo. Ela é minha presa, e você também.

Warren olhou para mim e balançou a cabeça, também não percebia de onde vinha a voz.

Ouvi um estalo e vi uma faísca pelo canto do olho no mesmo momento em que as luzes se apagaram.

— Merda. — grunhiu. — Não tenho dinheiro para chamar um eletricista.

Não tenho janelas no meu celeiro, mas ainda estava um dia luminoso lá fora e o sol se infiltrava em volta das portas da garagem. Ainda via bem, mas havia muito mais sombras para Fideal se esconder.

— Porque está aqui? — Warren rugiu. — Ela agora está a salvo dos seus amigos. Pergunte aos seus queridos Senhores Cinzentos.

Fideal emergiu do seu esconderijo para lhe bater. O vi por um momento, uma figura escura com uma vaga forma de cavalo, do tamanho de um burro grande. Seus cascos dianteiros atingiram o peito de Warren, atirando-o ao chão.

Bati no Fae com a bengala, que vibrou nas minhas mãos como um aguilhão para gado. Fideal relinchou como um garanhão se desviou e desapareceu novamente nas sombras.

Warren usou a distração para se levantar.

— Estou bem, Mercy. Sai da frente.

Eu não via mas Warren ergueu a Fideal, barra de ferro como um bastão de baseball, deu dois passos para a direita, depois investiu e bateu em qualquer coisa.

Warren conseguia sentir Fideal, mas eu ainda não. Ele tinha razão, eu precisava sair da frente antes que cometesse um erro estúpido e machucasse Warren.

Pus o Rabbit entre eu e a luta e depois comecei a olhar em volta a procura de qualquer coisa que pudesse ser uma melhor arma contra o Fae.

Havia montes de grades de alumínio para cercas e velhos tubos de canalização. Todos os meus pés-de-cabra e boas ferramentas de aço estavam no outro lado da garagem.

Fideal guinchou, um terrível som penetrante que ecoou violentamente. Foi seguido por um sonoro clank, como uma barra de ferro sendo atirada para o chão do cimento.

Depois não houve mais qualquer som e Warren jazia imóvel no chão.

— Warren?

Nem sequer o som de respiração. Atravessei a garagem correndo para me aproximar de seu corpo, ainda armada com a bengala. Não havia sinal de Fideal.

Alguma coisa cortou meu rosto. Investi as cegas e dessa vez a bengala vibrou como uma cauda de uma cascavel quando atingi alguma coisa. Fideal sibilou e fugiu, tropeçando em um macaco e em uma pequena caixa de ferramentas.

Ainda não conseguia ver, mas ele estava deixando minha garagem em uma confusão.

Saltei por cima do macaco caído, sabendo que Fideal não podia estar longe. Quando contornei a caixa de ferramentas, fui atingida por alguma coisa.

Caí de queixo, cotovelo e joelho no chão de cimento. Impotente. Levei um segundo inteiro para notar que o zumbido na minha cabeça era alguém soltando frases furiosas de alemão.

Mesmo atordoada e de cara no chão, percebi quem viera em meu socorro. Só conhecia um homem que rosnava em alemão.

Não sei o que ele disse, mas, seja o que for, fez Fideal perder o controle da magia que estava fazendo bloquear o meu nariz. Todo o edifício, subitamente fedia a pântano. Mas fedia mais em um lugar.

Corri para o lugar onde as sombras eram mais escuras.

— Mercy, halt. — Zee disse.

Investi com a bengala com todas as minhas forças. Ele atingiu alguma coisa e ficou preso por um momento, depois começou a brilhar com a luz do sol.

Fideal guinchou outra vez e deu um daqueles saltos impossíveis, passando por cima do Rabbit, indo contra a parede do outro lado e derrubando a bengala das minhas mãos pelo caminho. Não estava sequer machucado. Apenas se agachou de uma maneira que nenhum cavalo podia adotar e olhou para Zee.

Zee não parecia uma pessoa digna da cautela de um monstro. Tinha o mesmo aspecto de sempre, o de um homem que já ultrapassara a meia-idade, magro e ossudo, tirando a pequena barriga proeminente. Inclinou-se sobre Warren, que começou a tossir assim que Zee o tocou. Ele não olhou para mim quando falou. — Ele está bem. Deixe-me cuidar do assunto, por favor, Mercy. Devo-te pelo menos isso.

— Tudo bem. — mas peguei a bengala.

— Fideal. — Zee disse. — Ela está sob a minha proteção.

Fideal sibilou qualquer coisa em gaélico.

— Está velho, Fideal. Esqueceu-se de quem sou.

— Minha presa. Ela é minha. Eles disseram. Eles disseram que podia comê-la, e é o que vou fazer. Animais de curral, é o que me dão. Que o Fideal pudesse ficar reduzido a comer vaca ou porco como um cão. — Fideal cuspiu no chão, mostrando caninos mais negros do que o pelo cinzento que lhe revestia o corpo. — O Fideal cobra o seu tributo aos humanos que entram no seu território para colher a rica turfa para aquecerem as suas casas ou as crianças que se aproximam demais. Porco, bah!

Zee se aproximou... A área em sua volta se iluminou estranhamente, como se alguém estivesse virando devagar um holofote na sua direção. E ele se transformou, abandonando o seu encanto. Aquele Zee era uns bons vinte e cinto centímetros mais alto do que o meu, e a sua pele era branca polida, em vez da pálida pele alemã machada pela idade. O cabelo cintilante que podia ser dourado ou cinzento com mais luz estava preso em uma trança que passava sobre o ombro e descia até a cintura. As orelhas de Zee eram pontiagudas e decoradas com pequenas lascas de osso branco enfiadas nos piercings que as percorriam de cima abaixo. Com uma mão escura, erguia uma espada que era idêntica aquela que me emprestara, só que essa tinha o dobro do tamanho.

As sombras se afastavam também de Fideal. Por um momento, vi o monstro que Adam e o seu bando tinham enfrentado, mas ele deu lugar a uma criatura que parecia um pequeno pônei, só que os pôneis não tem guelras no pescoço, nem dentes. Finalmente, ele se tornou o homem que eu conhecera na reunião da Futuro Feliz. E estava chorando.

— Vá para casa, Fideal. — Zee disse. — E deixe essa. Deixe a minha menina em paz e o seu sangue não alimentará a minha espada. Ela também tem fome, e se alimenta melhor de coisas menos indefesas do que uma criança humana. — acenou com uma mão e um motor ganhou vida, abrindo a porta da garagem ao lado de Fideal.

O Fae saiu atrapalhado do celeiro e desapareceu em uma esquina.

— Ele não voltará a te incomodar. — Zee disse, que voltara a se parecer com o velho Zee. A faca também desaparecera. — Eu vou falar com o Tio Mike e nós cuidaremos disso. — estendeu uma mão e Warren usou-a para se levantar.

Warren estava pálido e as suas roupas estavam todas molhadas, como se tivesse mergulhado em água, água do mar, pelo cheiro. Ele se endireitou lentamente, como se estivesse dolorido.

— Você está bem?

Warren fez um sinal de assentimento, mas ainda estava apoiado em Zee.

A bengala estava em frente ao pé de Zee, sua cúpula de prata fumegava ligeiramente.

Peguei nela com cuidado, mas ele era tão inerte ao meu toque como o graveto que atirara a Ben no sábado.

— Pensei que isso só servia para fazer com que as ovelhas tivessem gêmeos.

— É muito antigo. — Zee disse. — E coisas antigas tem uma vontade própria.

— Então. — eu disse, ainda olhando para a bengala fumegando. — Ainda está zangado comigo?

O queixo de Zee ficou rígido.

— Eu quero que você saiba uma coisa. Preferia ter morrido naquela cela, para voce não ter que sofrer o ataque daquele louco.

Contrai os lábios e lhe dei a minha verdade em troca.

— Estou viva. Você está vivo. Warren está vivo. Os nossos inimigos estão mortos ou vencidos. Por isso, hoje é um dia bom.

Fui trabalhar na segunda de manhã e soube que Elizaveta, a muito dispendiosa bruxa do bando, passara por ali para fazer a limpeza. Os únicos vestígios do meu confronto com Tim eram as cicatrizes que eu deixara no cimento enquanto tentara destruir o copo. Até a porta que Adam destruíra fora substituída.

Zee aparecera na sexta e no sábado, por isso tinha o trabalho todo em dia. Passei alguns momentos ruins, que tive que esconder de Honey, a minha guarda de segunda-feira, mas na hora do almoço reclamei a oficina como minha. Nem a presença de Gabriel (depois da escola) nem Honey acampando no meu escritório me perturbaram tanto como eu esperava. Terminei às cinco em ponto e mandei Gabriel para casa. Honey me seguiu até a minha porta antes de continuar para ir até a sua.

Samuel e eu pedimos comida chinesa e vimos um velho filme de ação dos anos oitenta. No meio, Samuel recebeu uma chamada do hospital e teve que ir lá.

Desliguei a televisão assim que ele saiu e tomei uma longa ducha quente. Depilei as pernas na pia e sequei demoradamente o cabelo. Fiz uma trança, depois pensei melhor e soltei de novo o cabelo.

— Se continuar com isso, terei que ir aí te buscar. — Adam me disse.

Eu sabia que ele estava ali, claro. Mesmo que não tivesse ouvido estacionar à porta e entrar, saberia. Só havia uma razão para Samuel não ter pedido para ser substituído. Ele sabia que Adam apareceria em breve.

Olhei o meu reflexo no espelho. Minha pele estava mais morena nos braços e rosto do que o resto do corpo, por causa do sol do verão, mas ao menos eu nunca fui propriamente pálida. Além do corte no queixo, onde Samuel fizera dois pontos, e uma bela mancha roxa no ombro, que não me lembrava de como fizera, não havia nada de errado no meu corpo. O karatê e a mecânica me mantinham em forma.

Meu rosto não é bonito, mas meu cabelo era forte e chegava a meus ombros.

Adam não forçaria nada. Não faria nada que eu não quisesse, e eu queria a muito tempo.

Podia pedir para ir embora. Para me dar mais tempo. Olhei para a mulher no espelho, mas ela se limitou a devolver o olhar.

Eu iria deixar que Tim tivesse a vitória final?

— Mercy.

— Cuidado. — lhe disse, vestindo roupa interior limpa e uma camisa velha. — Eu tenho uma bengala antiga e sei como usá-lo.

— A bengala está encima da sua cama. — ele disse.

Quando sai do banheiro, Adam também estava deitado na minha cama.

— Quando Samuel sair do hospital, vai passar o resto da noite em minha casa. — Adam disse. — Temos tempo para conversar.

Ele estava de olhos fechados, e vi olheiras que os rodeavam. Ele não andava dormindo bem.

— Está horrível. Não tem camas em Washington?

Ele olhou para mim, olhos tão escuros que eram quase negros àquela luz, mas eu sabia que eram um pouco mais claros do que os meus.

— Então, decidiu? — ele perguntou.

Eu pensei na sua raiva quando ele quebrara a porta da minha garagem, no seu desespero quando me persuadiu a beber novamente do copo, na maneira como me tirara de debaixo da cama e mordera o meu nariz e depois me abraçara durante a noite toda.

Tim estava morto. E sempre fora um perdedor.

— Mercy.

Em resposta, tirei a camisa e atirei-a no chão.

 

 

 

{1} Do romance Mulheres Perfeitas (The Stepord Wives), de Ira Levin, que narra a história de um grupo de donas de casa assustadoramente submissas que se suspeita serem robots criados pelos maridos. (N. do T.)
{2} Bulldozer: escavadora mecânica.
{3} Over the Sea to Skye: música tradicional escocesa que conta a fuga do Príncipe Carlos Eduardo Stuart, após a sua derrota na Batalha de Culloden, em 1746.
{4} Tema dos Led Zeppelin.
{5} Geo Metro: modelo subcompacto da Chevrolet desenvolvido em parceria com a Suzuki.
{6} Hum-Vee: veiculo utilitário militar.
{7} Thomas Learmonth, proprietário de terras e profeta escocês que viveu no sec XIII.
{8} Um dos nomes pelos quais Thomas Learmonth era conhecido.
{9} Picks: instrumentos usados para arrombar fechaduras
{10} Máquina de franquear: imprime selos estampados em correspondências.
{11} Smiter: aquele que bate.
{12} Bodhrán: instrumento musical de percussão irlandês.
{13} Geis: no folclore e mitologia irlandeses, uma géis é um tabu idiossincrático, por obrigação ou proibição, semelhante a condição de se estar preso por um voto ou feitiço.
{14} Juicy Fruit: Marca de pastilha.
{15} Flor
{16} Analgésico

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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