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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IT, A COISA - P.4 / Stephen King
IT, A COISA - P.4 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

DERRY:

QUARTO INTERLÚDIO

6 de abril de 1985

 

Vou contar uma coisa, amigos e vizinhos: estou bêbado hoje. Bêbado pra cacete. Uísque. Fui até o Wally’s e comecei, fui até o mercado na rua Center meia hora antes de fechar e comprei um quinto de garrafa de uísque vagabundo. Sei em que estou me metendo. Bebida barata hoje, uma baita ressaca amanhã. Então, aqui está ele, um negro bêbado em uma biblioteca pública depois de fechar, com este caderno aberto na frente e a garrafa de Old Kentucky à esquerda. “Diga a verdade e que se dane o diabo”, dizia minha mãe, mas ela se esqueceu de me dizer que às vezes não dá para mandar o sr. Capiroto se danar quando se está sóbrio. Os irlandeses sabem, mas é claro que eles são os negros brancos de Deus e, quem sabe, talvez estejam um passo à frente.

 

Quero escrever sobre beber e o diabo. Lembram-se de Ilha do tesouro? O velho lobo do mar na Hospedaria Almirante Benbow. “Ainda vamos fazer, Jacky!” Aposto que o merdinha amargo até acreditava nisso. Cheio de rum (ou uísque), você consegue acreditar em qualquer coisa.

 

A bebida e o diabo. Certo.

 

 

 

 

Acho engraçado às vezes pensar quanto tempo eu duraria se publicasse algumas dessas coisas que escrevo na calada da noite. Se eu exibisse alguns dos esqueletos no armário de Derry. Há um Comitê de Diretores da biblioteca. São 11 pessoas. Um é um escritor de 70 anos que teve um derrame dois anos atrás e agora precisa de ajuda para encontrar seu lugar na agenda de cada reunião (e que às vezes é visto tirando melecas grandes e secas das narinas peludas e colocando na orelha, como se para guardar com cuidado). Outra é uma mulher controladora que veio para cá de Nova York com o marido médico e que fala em monólogo constante e reclamão sobre o quanto Derry é provinciana, que ninguém aqui entende A EXPERIÊNCIA JUDAICA e que é preciso ir a Boston para comprar uma saia com a qual se gostaria de ser vista usando. Na última vez que essa gata anoréxica falou comigo sem os serviços de um intermediário foi na festa de Natal do comitê um ano e meio atrás. Ela tinha ingerido uma grande quantidade de gim e me perguntou se alguém em Derry entendia A EXPERIÊNCIA NEGRA. Eu também tinha ingerido uma grande quantidade de gim e respondi: “Sra. Gladry, os judeus podem ser um grande mistério, mas os negros são compreendidos no mundo inteiro.” Ela se engasgou com a bebida, se virou tão rapidamente que a calcinha ficou visível por um segundo embaixo da saia leve (não foi uma visão muito interessante; se ao menos tivesse sido Carole Danner!), e assim acabou minha última conversa informal com a sra. Ruth Gladry. Não foi uma grande perda.

 

Os outros integrantes do comitê são descendentes dos barões da madeira. O apoio à biblioteca é um ato de expiação herdada: eles estupraram a floresta e agora cuidam dos livros como um libertino poderia decidir na meia-idade cuidar dos filhos bastardos que teve por inconsequência durante a juventude. Foram os avós e bisavós deles que abriram as pernas da floresta ao norte de Derry e Bangor e estupraram as virgens de verde com machados e ganchos. Eles cortaram, arrancaram e carregaram sem nem olhar para trás. Destruíram o hímen daquelas grandes florestas quando Grover Cleveland era presidente e tinham terminado o serviço quando Woodrow Wilson teve o derrame. Aqueles rufiões com roupas de babados estupraram as grandes florestas, as engravidaram de lixo de tocos de árvores e transformaram Derry de uma cidadezinha tranquila em cidade agitada onde os bares não fechavam nunca e as prostitutas trabalhavam a noite toda. Um dos antigos, Egbert Thoroughgood, agora com 93 anos, me contou de quando pegou uma prostituta magra como uma tábua em uma cama na rua Baker (uma rua que não existe mais; condomínios de classe média ocupam agora a área onde antes a rua Baker fervia).

 

— Só percebi depois de gozar dentro dela que ela estava deitada em uma poça de porra de uns 2 centímetros de profundidade. A porcaria parecia geleia. “Garota”, eu digo, “você nunca se cuida?” Ela olha para baixo e diz: “Posso colocar outro lençol se você quiser fazer de novo. Tem dois no armário do corredor, eu acho. Eu sei direitinho onde estou deitada até as nove ou dez horas, mas quando chega a meia-noite, minha boceta está tão dormente que não sei se está aqui ou em Ellsworht.”

 

Assim era Derry nos primeiros vinte anos do século XX: agito, bebida e sexo. O Penobscot e o Kenduskeag viviam cheios de troncos flutuando do degelo em abril até o congelamento em novembro. Os negócios começaram a diminuir nos anos 1920, sem a Grande Guerra e sem madeira de lei para alimentá-los, e parou completamente durante a Depressão. Os barões da madeira investiram o dinheiro nos bancos de Nova York e Boston que sobreviveram à quebra da bolsa e deixaram a economia de Derry viver ou morrer sozinha. Recolheram-se a suas lindas casas na West Broadway e mandaram os filhos para escolas particulares em New Hampshire, Massachusetts e Nova York. E todos viveram de renda e ligações políticas.

 

O que sobrou da supremacia deles mais de setenta anos depois que Egbert Thoroughgood gastou seu amor com uma prostituta de um dólar em uma cama cheia de esperma na rua Baker são as florestas selvagens nos condados de Penobscot e Aroostook e as grandes casas vitorianas que ocupam dois quarteirões na West Broadway... e minha biblioteca, é claro. Só que a coisa ficaria preta (o trocadilho é intencional, sem dúvida) e a boa gente da West Broadway tiraria “minha biblioteca” de mim se eu publicasse qualquer coisa sobre a Legião da Decência, o incêndio no Black Spot, a execução da gangue Bradley... ou o caso de Claude Heroux e o Silver Dollar.

 

O Silver Dollar era um bar, e o que pode ter sido o assassinato em massa mais estranho na história dos Estados Unidos aconteceu lá em setembro de 1905. Ainda há moradores antigos em Derry que alegam lembrar, mas o único relato em que confio é o de Thoroughgood. Ele tinha 18 anos quando aconteceu.

 

Thoroughgood agora mora no Lar para Idosos Paulson. Não tem dentes, e o sotaque é tão forte que talvez só outro habitante antigo do Maine fosse capaz de entender o que ele estava dizendo se a fala fosse anotada foneticamente. Sandy Ives, o folclorista da Universidade do Maine que mencionei antes nessas páginas, me ajudou a traduzir minhas fitas.

 

De acordo com Thoroughgood, Claude Heroux era “Un canaense fidaputa cuns zôio quigirava comuma égua nuluar.”

 

(Tradução: Um canadense filho da puta com um olho que girava como o de uma égua ao luar.)

 

Thoroughgood disse que ele (e todo mundo que trabalhou com Heroux) acreditava que o homem era astucioso como um cachorro ladrão de galinhas... o que tornava o ataque à machadinha que cometeu no Silver Dollar ainda mais assustador. Não era da personalidade. Até o momento, os lenhadores de Derry acreditavam que os talentos de Heroux eram mais voltados a botar fogo na floresta.

 

O verão de 1905 foi longo e quente, e houve muitos incêndios na floresta. O maior de todos, que Heroux depois admitiu ter iniciado ao acender apenas uma vela no meio de um monte de lascas de madeira, aconteceu na floresta de Big Injun, em Haven. Queimou 20 mil acres de madeira de lei, e dava para sentir o cheiro da fumaça a quase 60 quilômetros de distância, quando os carrinhos puxados a cavalo subiam a colina Up-Mile em Derry.

 

Na primavera daquele ano, houve uma breve conversa sobre sindicatos. Havia quatro lenhadores envolvidos na organização (não que houvesse muito a organizar; os trabalhadores do Maine eram antissindicato na época e continuam sendo até agora), e um dos quatro era Claude Heroux, que provavelmente via suas atividades no sindicato como chance de falar bonito e passar muito tempo bebendo nas ruas Baker e Exchange. Heroux e os outros três se autointitulavam “organizadores”; os barões da madeira os chamavam de “líderes da corja”. Uma proclamação presa nos refeitórios dos acampamentos de lenhadores de Monroe a Haven Village, a Sumner Plantation e Millinocket informava aos lenhadores que qualquer homem ouvido falando sobre sindicato seria despedido imediatamente.

 

Em maio daquele ano, houve uma greve curta perto de Trapham Notch e, apesar de ter sido interrompida imediatamente, tanto por fura-greves quanto por “policiais do município” (e isso era um tanto peculiar, sabe, considerando que havia quase trinta “policiais do município” balançando cabos de machados e partindo crânios, mas antes daquele dia de maio, não havia um único policial em Trapham Notch, que tinha uma população de 79 pessoas de acordo com o censo de 1900, até onde as pessoas sabiam), Heroux e seus amigos organizadores consideraram uma grande vitória para a causa deles. Por causa disso, foram para Derry encher a cara e fazer mais “planejamentos”... ou “reunião da corja”, dependendo de que lado você estava. Fosse qual fosse, deve ter sido trabalho árduo. Eles foram a todos os bares no Meio Acre do Inferno e terminaram no Sleepy Silver Dollar, com os braços nos ombros uns dos outros, bêbados de mijar nas calças, alternando músicas do sindicato com melodias piegas como “My Mother’s Eyes Are Looking Down from Heaven”, embora eu mesmo ache que qualquer mãe olhando do céu e vendo o filho em um estado daqueles não seria criticada por virar a cara.

 

De acordo com Egbert Thoroughgood, o único motivo que se podia pensar para Heroux estar no movimento era Davey Hartwell. Hartwell era o “organizador” ou “líder da corja”, e Heroux estava apaixonado por ele. E ele não era o único; a maior parte dos homens do movimento amava Hartwell profunda e apaixonadamente com aquele amor orgulhoso que os homens guardam para pessoas do mesmo sexo donas de um magnetismo que parece beirar a divindade.

 

— Davvey Ardwell erum homi quiandava como si fôss dono de meimundo e controlass todo resto.

 

(Tradução: “Davey Hartwell era um homem que andava como se fosse dono de metade do mundo e controlasse todo o resto.”)

 

Heroux foi atrás de Hartwell nessa área de sindicato como o teria seguido se ele tivesse decidido ser construtor de barcos em Brewer ou mesmo Bath, ou ajudar a fazer a ponte de Vermont subir, ou tentar trazer o Pony Express de volta para o oeste, na verdade. Heroux era astuto e cruel, e acho que em um livro isso excluiria qualquer qualidade. Mas, às vezes, quando um homem passou a vida desconfiando dos outros e com os outros desconfiando dele, sendo sozinho (ou fracassado) tanto por escolha quanto pelas opiniões que a sociedade tem dele, ele consegue encontrar um amigo ou um amor e simplesmente viver para essa pessoa, da forma como um cachorro vive para seu dono. É assim que parecia ser entre Heroux e Hartwell.

 

Havia quatro ou cinco homens que passaram aquela noite no Brentwood Arms Hotel, que era chamado de Cachorro Flutuante pelos lenhadores (o motivo está perdido na obscuridade, tão defunto quanto o próprio hotel). Quatro fizeram check-in; nenhum fez check-out. Um deles, Andy DeLesseps, nunca mais foi visto. Pelo que a história conta, ele pode ter passado o resto da vida vivendo agradavelmente em Portsmouth, mas, por algum motivo, eu duvido. Dois dos outros “líderes da corja”, Amsel Bickford e o próprio Davey Hartwell, foram encontrados flutuando virados para baixo no Kenduskeag. Bickford estava sem a cabeça; alguém a tinha arrancado com um golpe de machado. As duas pernas de Hartwell tinham sumido, e as pessoas que o encontraram juraram nunca ter visto uma expressão de dor e horror daquelas em um rosto humano. Alguma coisa tinha alargado a boca dele e estufado as bochechas, e quando as pessoas que o encontraram o viraram e abriram os lábios, sete dos dedos dos pés dele caíram na lama. Alguns achavam que ele devia ter perdido os outros três durante os anos trabalhando no bosque; outros eram da opinião que devia ter engolido antes de morrer.

 

Preso nas costas da camisa de cada homem havia um papel com a palavra SINDICATO escrita.

 

Claude Heroux nunca foi levado a julgamento pelo que aconteceu no Silver Dollar na noite de 9 de setembro de 1905, então não há como saber exatamente como escapou do mesmo destino dos outros naquela noite de maio. Podemos fazer suposições: ele vivia sozinho havia muito tempo, tinha aprendido a fugir rápido e talvez tivesse desenvolvido o talento que alguns vira-latas tinham de ir embora antes do verdadeiro problema surgir. Mas por que ele não levou Hartwell junto? Ou será que foi levado para o bosque junto com o resto dos “agitadores”? Talvez estivessem deixando-o para o final, e ele conseguiu escapar mesmo com os gritos de Hartwell (som que teria ficado abafado quando enfiaram os dedos dos pés dentro da boca) ecoando na escuridão e espantando os passarinhos de seus ninhos. Não há como saber ao certo, mas essa última suposição me parece a certa.

 

Claude Heroux virou um homem-fantasma. Ele entrava caminhando em um acampamento no vale do rio Saint John, entrava na fila do refeitório com o resto dos lenhadores, pegava uma tigela de ensopado, comia e ia embora antes de alguém reparar que ele não fazia parte do grupo. Semanas depois, aparecia em um bar em Winterport, falando sobre sindicato e jurando que se vingaria do homem que tinha assassinado seus amigos. Hamilton Tracker, William Mueller e Richard Bowie eram os nomes que ele citava com mais frequência. Todos moravam em Derry, e as casas com telhados inclinados e cúpulas em que eles moravam estão até hoje na West Broadway. Anos depois, eles e seus descendentes incendiariam o Black Spot.

 

Que existiam pessoas que gostariam de ver Claude Heroux fora da jogada não há dúvidas, particularmente depois que os incêndios começaram em junho daquele ano. Mas, apesar de Heroux ser visto com frequência, ele era rápido e tinha a percepção de um animal para o perigo. Até onde consegui descobrir, nenhum mandato oficial foi emitido contra ele, e a polícia nunca fez nada. Talvez houvesse medo sobre o que Heroux poderia dizer se fosse levado a julgamento por provocar incêndios.

 

Fosse qual fosse o motivo, os bosques ao redor de Derry e de Haven queimaram por todo aquele verão quente. Crianças desapareceram, houve mais brigas e assassinatos do que o habitual, e uma camada de medo tão real quanto a fumaça cujo cheiro era sentido vindo do alto da colina Up-Mile se espalhou pela cidade.

 

As chuvas finalmente chegaram no dia 1º de setembro, e choveu durante uma semana inteira. O centro de Derry ficou alagado, o que não era incomum, mas as casas grandes na West Broadway eram em um nível bem acima do centro, e em algumas dessas casas deve ter havido suspiros de alívio. Que o canadense maluco se esconda no bosque durante todo o inverno se for o que quer, eles podem ter dito. O trabalho dele de verão acabou, e vamos pegá-lo antes que as raízes sequem no próximo mês de junho.

 

Chegou o dia 9 de setembro. Não sei explicar o que aconteceu; Thoroughgood não sabe explicar; até onde descobri, ninguém sabe explicar. Só posso relatar os eventos que ocorreram.

 

O Sleepy Silver Dollar estava cheio de lenhadores tomando cerveja. Do lado de fora, o dia estava terminando, escurecendo sob a névoa. O Kenduskeag estava alto e cinzento, ocupando o canal de uma margem a outra, e, de acordo com Egbert Thoroughgood, “um vento de outono estava soprando, do tipo que sempre acha o buraco na sua calça e joga poeira dentro da sua bunda”. As ruas pareciam de areia. Havia um jogo de cartas em andamento em uma das mesas do salão dos fundos. Eram os homens de William Mueller. Mueller era sócio da ferrovia GS&WM, assim como magnata lenhador dono de milhões de acres de madeira de primeira, e os homens que estavam jogando pôquer no Dollar naquela noite eram lenhadores em meio período, patrulheiros ferroviários em meio período e problema em tempo integral. Dois deles, Tinker McCutcheon e Floyd Calderwood, já tinham cumprido pena na cadeia. Com eles estavam Lathrop Rounds (o apelido dele, tão obscuro quanto o do Hotel Cachorro Flutuante, era El Katook), David “Stugley” Grenier e Eddie King, um homem barbudo com óculos quase tão grandes quanto sua barriga. Parece provável que eles fossem pelo menos alguns dos homens que passaram os últimos dois meses e meio de olhos abertos atrás de Claude Heroux. Parece igualmente provável, embora não haja nem um traço de prova, que estivessem no grupinho agressor de maio, quando Hartwell e Bickford deram baixa.

 

O bar estava lotado, disse Thoroughgood; dezenas de homens estavam entulhados lá, tomando cerveja e comendo e pingando no chão de terra coberto de serragem.

 

A porta se abriu e Claude Heroux entrou. Estava com um machado de lâmina dupla na mão. Ele foi até o bar e abriu espaço. Egbert Thoroughgood estava à esquerda dele; ele disse que Heroux fedia a ensopado de gambá. O barman levou para ele uma caneca de cerveja, dois ovos cozidos em uma tigela e um saleiro. Heroux pagou com uma nota de dois dólares e colocou o troco, um dólar e 85 centavos, em um dos bolsos da jaqueta de lenhador. Colocou sal nos ovos e comeu. Colocou sal na cerveja, bebeu toda e deu um arroto.

 

— Tem mais espaço fora do que dentro, Claude — disse Thoroughgood, como se metade dos homens da lei do norte do Maine não estivesse procurando Heroux durante todo o verão.

 

— Sabe, isso é verdade — disse Heroux, só que, sendo canadense, o que ele disse deve ter sido parecido com “sabe, issé verdade”.

 

Ele pediu outra caneca de cerveja, bebeu toda e deu outro arroto. A conversa no bar prosseguiu. Várias pessoas falaram com Claude, e Claude assentiu e acenou, mas não sorriu. Thoroughgood disse que ele parecia um homem meio em estado de sonho. À mesa dos fundos, o jogo de pôquer prosseguiu. El Katook estava distribuindo as cartas. Ninguém se deu ao trabalho de dizer para nenhum dos jogadores que Claude Heroux estava no bar... embora, como a mesa deles ficasse a menos de 6 metros, e como o nome de Claude foi gritado mais de uma vez pelas pessoas que o conheciam, seja difícil saber como eles puderam seguir jogando, alheios à presença potencialmente assassina. Mas foi isso que aconteceu.

 

Depois de beber a segunda caneca de cerveja, Heroux pediu licença para Thoroughgood, pegou o machado e foi até a mesa em que os homens de Mueller jogavam pôquer. E então, começou a cortar.

 

Floyd Calderwood tinha acabado de se servir de um copo de uísque e estava colocando a garrafa na mesa quando Heroux chegou e cortou a mão dele no pulso. Calderwood olhou para a mão e gritou; ela ainda estava segurando a garrafa, mas de repente não estava presa a nada além de tecido elástico úmido e veias penduradas. Por um momento, a mão cortada agarrou a garrafa com mais força, depois caiu sobre a mesa como uma aranha morta. Sangue jorrava do pulso dele.

 

No bar, alguém pediu mais cerveja e alguma outra pessoa perguntou ao barman, cujo nome era Jonesy, se ele ainda pintava o cabelo.

 

— Nunca pintei — disse Jonesy com irritação; ele era vaidoso com o cabelo.

 

— Conheci uma prostituta em Ma Courtney’s que disse que o que cresce ao redor do seu pinto é branco como neve — disse o cara.

 

— Ela mentiu — respondeu Jonesy.

 

— Baixa a calça e mostra pra nós — disse um lenhador chamado Falkland, com quem Egbert Thoroughgood vinha bebendo desde que Heroux entrou. Isso provocou gargalhadas generalizadas.

 

Atrás deles, Floyd Calderwood estava berrando. Alguns dos homens encostados no bar deram uma olhada casual para trás a tempo de ver Claude Heroux enfiar o machado na cabeça de Tinker McCutcheon. Tinker era um homem grande com barba preta ficando grisalha. Ele começou a se levantar com sangue jorrando do rosto, mas voltou a se sentar. Heroux tirou o machado da cabeça dele. Tinker começou a se levantar de novo, e Heroux bateu com o machado de lado e afundou nas costas dele. Thoroughgood disse que fez um som de pilha de roupas sendo jogada em um tapete. Tinker caiu sobre a mesa com as cartas se soltando da mão.

 

Os outros jogadores estavam gritando e berrando. Calderwood, ainda aos berros, estava tentando pegar a mão direita com a esquerda enquanto o sangue vital escorria pelo cotoco de pulso em um fluxo constante. Stugley Grenier tinha o que Thoroughgood chamava de “pistola de saque” (querendo dizer uma arma em coldre de ombro) e estava tentando pegá-la sem sucesso nenhum. Eddie King tentou se levantar e caiu da cadeira de costas. Antes que conseguisse se levantar, Heroux ficou em pé acima dele, com uma perna de cada lado do corpo e o machado erguido acima da cabeça. King gritou e levantou as duas mãos em um gesto de afastar.

 

— Por favor, Claude, eu me casei mês passado! — gritou King.

 

O machado desceu e a cabeça quase desapareceu na barriga ampla de King. Sangue jorrou até o teto curvo do Dollar. Eddie começou a rastejar para trás no chão. Claude tirou o machado do corpo dele da forma como um bom lenhador tira o machado de uma árvore de madeira-branca, meio que balançando de um lado para o outro para afrouxar o aperto da madeira macia. Quando estava solto, ele o levantou bem acima da cabeça. Deu outro golpe, e Eddie King parou de gritar. Mas Claude Heroux não tinha terminado com ele; começou a picar King como se ele fosse lenha.

 

No bar, a conversa era sobre como seria o inverno. Vernon Stanchfield, um fazendeiro de Palmyra, alegava que seria brando; a explicação dele era que chuvas no outono gastavam a água da neve do inverno. Alfie Naugler, que tinha uma fazenda na estrada Naugler em Derry (não existe mais agora; o local onde Alfie Naugler plantava ervilha, feijão e beterraba deu lugar à extensão de quase 15 quilômetros e seis pistas da interestadual), discordava com veemência. Alfie alegou que o inverno seria rigorosíssimo. Ele tinha visto até oito anéis em algumas das lagartas, disse ele, um número inédito. Outro homem defendia que haveria gelo; outro, lama. A nevasca de 1901 foi relembrada. Jonesy empurrou canecas de cerveja e tigelas de ovos cozidos pelo balcão do bar. Atrás deles, a gritaria prosseguiu e o sangue jorrava em rios.

 

Nesse ponto das minhas perguntas a Egbert Thoroughgood, eu desliguei o gravador e perguntei:

 

— Como foi isso? Você está dizendo que não sabia que estava acontecendo, ou que sabia, mas deixou acontecer, ou o quê?

 

Thoroughgood encostou o queixo no botão do alto do colete sujo de comida. As sobrancelhas se aproximaram. O silêncio no quarto de Thoroughgood, pequeno, lotado e com cheiro de remédio, se prolongou por tanto tempo que eu estava prestes a repetir a pergunta quando ele respondeu:

 

— Nós sabíamos. Mas não pareceu importar. Era como política, de certa forma. É, isso aí. Como negócios da cidade. Era melhor deixar as pessoas que entendem de política cuidarem do assunto e as pessoas que entendem dos negócios da cidade cuidarem daquele assunto. É melhor os trabalhadores não se misturarem com essas coisas.

 

— Você está mesmo falando de destino e com medo de falar claramente? — eu perguntei de repente. A pergunta foi simplesmente arrancada de mim, e eu não esperava que Thoroughgood, que estava velho, lento e era analfabeto, respondesse... mas ele respondeu, e sem surpresa nenhuma.

 

— É — disse ele. — Talvez esteja.

 

Enquanto os homens no bar continuavam a falar sobre o tempo, Claude Heroux continuava cortando. Stugley Grenier conseguiu finalmente pegar a pistola. O machado estava descendo para cortar mais Eddie King, que já estava em pedaços. A bala que Grenier disparou atingiu a cabeça do machado e ricocheteou com uma fagulha e um estalo.

 

El Katook ficou de pé e começou a recuar. Ainda segurava o maço de cartas que estava distribuindo antes; as cartas caíam no chão. Claude foi atrás dele. El Katook esticou as mãos. Stugley Grenier deu outro tiro, que não chegou nem a 3 metros de Heroux.

 

— Pare, Claude — disse El Katook. Thoroughgood disse que pareceu que Katook estava tentando sorrir. — Eu não estava com eles. Não me misturei.

 

Heroux só rosnou.

 

— Eu estava em Millinocket — disse El Katook, com a voz começando a ficar aguda e virar um grito. — Eu estava em Millinocket, eu juro pelo nome da minha mãe! Pergunta para qualquer pessoa se não acredita em miiiim...

 

Claude levantou o machado molhado, e El Katook jogou o resto das cartas no rosto dele. O machado desceu assobiando. El Katook desviou. A cabeça do machado afundou na madeira que formava a parede de trás do Silver Dollar. El Katook tentou correr. Claude arrancou o machado da madeira e bateu nos tornozelos dele. El Katook caiu esparramado. Stugley Grenier disparou de novo em Heroux, desta vez com um pouco mais de sorte. Ele estava mirando na cabeça do lenhador enlouquecido; a bala acertou a parte mais grossa da coxa de Heroux.

 

Enquanto isso, El Katook rastejava em direção à porta com o cabelo caindo no rosto. Heroux golpeou de novo com o machado, rosnando e balbuciando, e, um momento depois, a cabeça cortada de Katook rolou pelo piso coberto de serragem, com a língua enfiada de forma bizarra entre os dentes. Ela rolou até parar nos pés de um lenhador chamado Varney, que tinha passado a maior parte do dia no Dollar e que, àquela altura, estava tão bêbado que não sabia se estava em terra ou no mar. Ele chutou a cabeça para longe sem olhar para ver o que era e gritou para Jonesy servir outra cerveja.

 

El Katook rastejou mais um metro, com sangue jorrando do pescoço em um jato, até que percebeu que estava morto e despencou. Só sobrou Stugley. Heroux se virou para ele, mas Stugley tinha saído correndo para o banheiro lá fora e trancado a porta.

 

Heroux deu machadadas para conseguir entrar, gritando e balbuciando e delirando, com baba caindo da boca. Quando entrou, Stugley tinha sumido, apesar de o pequeno aposento gelado não ter janelas. Heroux ficou ali de pé por um momento, com a cabeça baixa e os braços fortes sujos e manchados de sangue, mas, com um rugido, levantou a tampa com os três buracos. Foi bem a tempo de ver as botas de Stugley desaparecerem debaixo da tábua irregular, fugindo pela parede da casinha. Stugley Grenier correu gritando pela rua Exchange na chuva, coberto de merda da cabeça aos pés, chorando e dizendo que estava sendo assassinado. Ele sobreviveu ao massacre do Silver Dollar, foi o único sobrevivente, mas, depois de três meses ouvindo piadas sobre seu método de fuga, ele foi embora da área de Derry para sempre.

 

Heroux saiu do banheiro e ficou de pé em frente a ele como um touro depois de atacar, com a cabeça baixa e o machado à frente do corpo. Estava bufando e soprando e coberto de sangue da cabeça aos pés.

 

— Fecha a porta, Claude, esse buraco de merda fede até o céu — disse Thoroughgood.

 

Claude largou o machado no chão e fez o que foi pedido. Andou até a mesa coberta de cartas onde as vítimas estavam sentadas e chutou uma das pernas de Eddie King para tirar do caminho. E então, simplesmente se sentou e apoiou a cabeça nos braços. A bebida e a conversa no bar prosseguiram. Cinco minutos depois, mais homens chegaram, com três ou quatro policiais junto (o que estava no comando era o pai de Lal Machen e, quando viu a confusão, teve um ataque cardíaco e precisou ser levado para o consultório do dr. Shratt). Claude Heroux foi levado. Estava dócil quando o prenderam, mais adormecido do que acordado.

 

Naquela noite, os bares por todas as ruas Exchange e Baker explodiram com notícias do massacre. Uma fúria bêbada e virtuosa começou a crescer e, quando os bares fecharam, mais de setenta homens seguiram para o centro, na direção da cadeia e do fórum. Estavam com tochas e lampiões. Alguns carregavam armas, alguns levavam machados e alguns tinham lanças com ganchos nas pontas.

 

O xerife do condado só viria de Bangor ao meio-dia do dia seguinte, portanto, não estava lá, e Goose Machen estava na enfermaria do dr. Shratt com seu ataque cardíaco. Os policiais que se encontravam no escritório jogando cribbage ouviram a multidão chegando e saíram rapidamente de lá. Os bêbados invadiram e arrastaram Claude Heroux para fora da cela. Ele não protestou muito; parecia atordoado, perdido.

 

Eles o carregaram no ombro como um herói de futebol americano; foram até a rua Canal com ele no alto e lá o lincharam pendurado no velho olmo acima do canal.

 

— Ele estava tão distante que só chutou duas vezes — disse Egbert Thoroughgood. Até onde os registros da cidade mostram, foi o único linchamento a acontecer nessa parte do Maine. É quase desnecessário dizer que não foi relatado no Derry News. Muitos dos que continuaram a beber enquanto Heroux cometia sua carnificina no Silver Dollar eram do grupo que o enforcou. À meia-noite, o humor deles já tinha mudado.

 

Fiz uma pergunta final a Thoroughgood: ele tinha visto alguém que não conhecia durante a violência daquele dia? Alguém que pareceu estranho, deslocado, esquisito, até meio parecido com um palhaço? Alguém que estaria bebendo no bar naquela tarde, alguém que talvez tivesse entrado no meio dos baderneiros daquela noite enquanto a bebedeira prosseguia e eles começaram a falar em linchamento?

 

— Pode ser que tivesse — respondeu Thoroughgood. Ele já estava cansado, exausto, pronto para a soneca da tarde. — Foi há muito tempo, moço. Muito e muito.

 

— Mas você se lembra de alguma coisa — eu disse.

 

— Me lembro de pensar que devia haver uma feira para os lados de Bangor — disse Thoroughgood. — Eu estava tomando uma cerveja no Bloody Bucket naquela noite. O Bucket ficava a umas seis portas do Silver Dollar. Tinha um sujeito lá... um sujeito meio cômico... fazendo cabriolas e cambalhotas... malabarismo com copos... truques... colocou quatro moedas na testa e elas ficaram no lugar... cômico, sabe...

 

O queixo ossudo tinha caído sobre o peito de novo. Ele ia dormir bem na minha frente. O cuspe começou a borbulhar nos cantos da boca, que tinha tantas rugas e dobras quanto uma bolsinha de moedas de senhora.

 

— Vi o sujeito de vez em quando depois disso — disse Thoroughgood. — Achei que tinha se divertido tanto naquela noite... que decidiu ficar por aqui.

 

— É. Ele anda por aqui há muito tempo — eu disse.

 

A resposta dele foi um ronco fraco. Thoroughgood adormeceu na cadeira ao lado da janela, com os remédios e panaceias enfileirados no parapeito, como soldados da idade avançada em alerta. Desliguei o gravador e fiquei olhando para ele por um momento, esse estranho viajante do tempo do ano de 1890 aproximadamente, que se lembrava de quando não existiam carros, nem luz elétrica, nem aviões, nem o estado do Arizona. Pennywise estava lá, guiando-os pelo caminho em direção a outro sacrifício exagerado, apenas mais um na longa história de sacrifícios exagerados de Derry. Aquele de setembro de 1905 levou a um período acentuado de terror que incluiria a explosão da Siderúrgica Kitchener na Páscoa do ano seguinte.

 

Isso levanta algumas perguntas interessantes (e, até onde eu sei, vitalmente importantes). O que a Coisa realmente come, por exemplo? Sei que algumas das crianças foram parcialmente comidas, ou pelo menos exibem marcas de mordida, mas talvez sejamos nós que levemos a Coisa a fazer isso. O que nos ensinaram desde a primeira infância é que o monstro te come quando finalmente te alcança no meio da floresta. É talvez a pior coisa que possamos conceber. Mas é de fé que os monstros vivem, não é? Sou levado irresistivelmente a essa conclusão: a comida pode ser vida, mas a fonte de poder é a fé, não a comida. E quem é mais capaz de um ato total de fé do que uma criança?

 

Mas há um problema: as crianças crescem. Na igreja, o poder é perpetuado e renovado por atos ritualistas periódicos. Em Derry, o poder parece ser perpetuado e renovado por atos ritualistas periódicos também. Seria possível que a Coisa se proteja pelo simples fato de que, quando as crianças crescem e viram adultos, se tornem ou incapazes de atos de fé, ou aleijadas por uma espécie de artrite espiritual e da imaginação?

 

Sim. Acho que é esse o segredo aqui. E, se eu fizer as ligações, o quanto eles vão lembrar? O quanto vão acreditar? O bastante para encerrar esse horror de uma vez por todas, ou o bastante só para fazer com que sejam mortos? Eles estão sendo chamados, disso eu sei. Cada assassinato nesse novo ciclo foi um chamado. Quase matamos a Coisa duas vezes, e no final fomos fundo na rede de túneis e aposentos fedidos dela debaixo da cidade. Mas acho que a Coisa sabe de outro segredo: apesar de a Coisa poder ser imortal (ou quase), nós não somos. Ela só precisava esperar que o ato de fé, o que nos tornava potenciais matadores de monstros tanto quanto fontes de poder, se tornasse impossível. Vinte e sete anos. Talvez um período de sono para a Coisa, curto e refrescante como uma soneca da tarde seria para nós. E, quando a Coisa acorda, é a mesma, mas um terço de nossas vidas se passou. Nossas perspectivas se estreitaram; nossa fé na magia, que a torna possível, sumiu como o brilho de um novo par de sapatos depois de um dia exaustivo de caminhada.

 

Por que nos chamar de volta? Por que não nos deixar morrer? Porque quase matamos a Coisa, porque botamos medo na Coisa, eu acho. Porque a Coisa quer vingança.

 

E agora, agora que não acreditamos mais no Papai Noel, na Fada do Dente, em João e Maria nem no troll debaixo da ponte, a Coisa está pronta para nós. Voltem, diz a Coisa. Voltem, vamos terminar nosso assunto em Derry. Tragam seus jogos da bugalha, suas bolas de gude e seus ioiôs! Vamos brincar! Voltem e vamos ver se vocês se lembram da coisa mais simples de todas: como é ser criança, segura na crença e, portanto, com medo do escuro.

 

Quanto a isso, pelo menos, eu marco mil por cento: estou com medo. Estou com muito medo.

 

O RITUAL DE CHÜD

Nas vigílias da noite

Biblioteca Pública de Derry — 1h15

 

Quando Ben Hanscom terminou a história das bolinhas de prata, eles queriam conversar, mas Mike disse que gostaria que todos dormissem um pouco.

 

— Vocês já tiveram o bastante por hoje — disse ele, mas Mike foi quem parecia ter tido o bastante; seu rosto estava cansado e tenso, e Beverly achou que ele parecia fisicamente doente.

 

— Mas não acabamos — disse Eddie. — E o resto da história? Ainda não lembro...

 

— Mike está c-c-certo — disse Bill. — Ou vamos lembrar, ou não v-vamos. Acho que v-vamos. Já nos lembramos de tudo de que p-precisávamos.

 

— Talvez tudo que era bom pra nós? — sugeriu Richie.

 

Mike assentiu.

 

— Vamos nos encontrar amanhã. — E então, olhou para o relógio. — Mais tarde, ainda hoje, é o que quero dizer.

 

— Aqui? — perguntou Beverly.

 

Mike balançou a cabeça devagar.

 

— Sugiro que a gente se encontre na rua Kansas. Onde Bill escondia a bicicleta.

 

— Vamos pro Barrens — disse Eddie, e tremeu de repente.

 

Mike assentiu de novo.

 

Houve um momento de silêncio enquanto todos se entreolhavam. Bill ficou de pé, e os outros se levantaram também.

 

— Quero que vocês todos tomem cuidado pelo resto da noite — disse Mike. — A Coisa esteve aqui; pode ir onde quer que vocês estejam. Mas esse encontro me fez sentir melhor. — Ele olhou para Bill. — Eu diria que ainda pode ser feito, não é, Bill?

 

Bill assentiu lentamente.

 

— Sim. Acho que ainda pode ser feito.

 

— A Coisa também deve saber — disse Mike — e vai fazer o que puder para aumentar as chances dela.

 

— O que fazemos se ela aparecer? — perguntou Richie. — Tapamos o nariz, fechamos os olhos, giramos três vezes e pensamos em coisas boas? Jogamos pozinho mágico na cara da Coisa? Cantamos músicas velhas de Elvis Presley? O quê?

 

Mike balançou a cabeça.

 

— Se eu pudesse te dizer isso, não haveria problema, não é? Só sei que existe outra força, ou pelo menos existia quando a gente era criança, que queria que a gente ficasse vivo e fizesse o trabalho. Talvez ela ainda esteja aqui. — Ele deu de ombros. Foi um gesto cansado. — Pensei que dois ou talvez até três não estariam presentes quando começamos o encontro desta noite. Estariam desaparecidos ou mortos. Só de ver vocês aparecerem, tive motivo para ter esperanças.

 

Richie olhou para o relógio.

 

— Uma e quinze. Como o tempo voa quando a gente está se divertindo, hein, Monte de Feno?

 

— Bip-bip, Richie — disse Ben, e deu um sorriso cansado.

 

— Quer andar até o T-T-Town House comigo, Beverly? — perguntou Bill.

 

— Tudo bem.

 

Ela estava colocando o casaco. A biblioteca parecia muito silenciosa agora, cheia de sombras, assustadora. Bill sentiu os últimos dois dias pesando nele, se empilhando em suas costas. Se fosse apenas cansaço, não haveria problema, mas era mais do que isso: uma sensação de que ele estava surtando, sonhando, tendo ilusões de paranoia. Uma sensação de ser observado. Talvez eu não esteja aqui, pensou ele. Talvez eu esteja no asilo para lunáticos do dr. Seward, com a casa em ruínas do Conde ao lado e Renfield do outro lado do corredor, ele com as moscas e eu com meus monstros, nós dois seguros de que a festa está realmente acontecendo e vestidos perfeitamente para elas, não de smoking, mas de camisas de força.

 

— E você, R-Richie?

 

Richie balançou a cabeça.

 

— Vou deixar Monte de Feno e Kaspbrak me levarem pra casa — disse ele. — Certo, rapazes?

 

— Claro — disse Ben. Ele olhou brevemente para Beverly, que estava de pé perto de Bill, e sentiu a dor que tinha quase esquecido. Uma nova lembrança tremeu quase a seu alcance, mas escapou.

 

— E você, M-M-Mike? — perguntou Bill. — Quer andar com Bev e com-migo?

 

Mike balançou a cabeça.

 

— Tenho que...

 

Foi nessa hora que Beverly gritou, com um som agudo no meio do silêncio. O domo acima captou o som, e os ecos foram como gargalhada de banshees, voando e flutuando ao redor deles.

 

Bill se virou para ela; Richie largou o casaco que estava pegando nas costas da cadeira; houve um estrondo de vidro quando o braço de Eddie empurrou a garrafa vazia de gim no chão.

 

Beverly estava se afastando deles, com as mãos esticadas, o rosto branco como papel. Os olhos, fundos em pálpebras roxas, saltaram.

 

— Minhas mãos! — gritou ela. — Minhas mãos!

 

— O que... — Bill começou a perguntar, mas viu o sangue escorrendo lentamente por entre os dedos trêmulos dela. Ele começou a se aproximar e sentiu linhas repentinas de calor doloroso em suas próprias mãos. A dor não era aguda; parecia a dor de um ferimento há muito cicatrizado.

 

As velhas cicatrizes nas palmas das mãos dele, as que reapareceram na Inglaterra, tinham se aberto e estavam sangrando. Ele olhou para o lado e viu Eddie Kaspbrak olhando estupidamente para as próprias mãos. Elas também estavam sangrando, assim como as de Mike. E de Richie. E de Ben.

 

— Estamos nisso até o final, não estamos? — disse Beverly. Ela tinha começado a chorar. O som também foi ampliado no vazio da biblioteca; o próprio prédio parecia estar chorando com ela. Bill pensou que ficaria louco se tivesse que ouvir esse som por muito tempo. — Que Deus nos ajude, estamos nisso até o final. — Ela deu um soluço, e um fio de meleca ficou pendurado em uma das narinas. Ela limpou com as costas da mão trêmula, e mais sangue pingou no chão.

 

— R-R-Rápido! — disse Bill, e segurou a mão de Eddie.

 

— O que...

 

— Rápido!

 

Ele esticou a outra mão e, depois de um momento, Beverly a segurou. Ela ainda estava chorando.

 

— Sim — disse Mike. Ele parecia atordoado, quase drogado. — Sim, está certo, não está? Está começando de novo, não é, Bill? Está começando a acontecer de novo.

 

— S-S-Sim, eu a-acho...

 

Mike segurou a mão de Eddie e Richie segurou a outra de Beverly. Por um momento, Ben só ficou olhando para eles, mas então, como um homem em um sonho, ele ergueu as mãos sangrentas de cada lado e entrou entre Mike e Richie. Segurou as mãos deles. O círculo se fechou.

 

(Ah, Chüd, esse é o Ritual de Chüd, e a Tartaruga não pode nos ajudar)

 

Bill tentou gritar, mas nenhum som saiu. Ele viu a cabeça de Eddie inclinada para trás, com os tendões do pescoço se destacando. Os quadris de Bev tremeram duas vezes, com força, como se em um orgasmo curto e intenso como o disparo de uma pistola calibre 22. A boca de Mike se moveu estranhamente, parecendo rir e fazer careta ao mesmo tempo. No silêncio da biblioteca, portas se abriram e fecharam, e o som rolou como bolas de boliche. Na Sala de Periódicos, revistas voaram em um furacão sem vento. No escritório de Carole Danner, a máquina de escrever IBM da biblioteca ganhou vida e digitou:

 

elesoca

 

postesdemontão

 

einsistequevêassombração

 

elesocapostesde

 

A fita da máquina emperrou. A máquina de escrever estalou e deu um arroto grave e eletrônico, quando tudo dentro sobrecarregou. Na Estante Dois, a prateleira de livros ocultos se inclinou de repente e derrubou Edgar Cayce, Nostradamus, Charles Fort e os Livros Apócrifos para todos os lados.

 

Bill teve uma sensação exultante de poder. Ficou levemente ciente de que estava com uma ereção e todos os cabelos de sua cabeça estavam de pé. A sensação de força no círculo completo era incrível.

 

Todas as portas da biblioteca bateram ao mesmo tempo.

 

O relógio de piso atrás da bancada de empréstimo de livros soou uma vez.

 

E então, tudo sumiu, como se alguém tivesse virado um interruptor.

 

Eles soltaram as mãos e se entreolharam, atordoados. Ninguém disse nada. Conforme a sensação de poder sumia, Bill teve um prenúncio terrível de desgraça que surgiu lentamente. Olhou para os rostos brancos e tensos e para as próprias mãos. Havia sangue espalhado ali, mas os ferimentos que Stan Uris fez com um caco de garrafa de Coca-Cola em agosto de 1958 tinham se fechado e deixaram só as linhas tortas e brancas como arame torcido. Ele pensou: Aquela foi a última vez que nós sete ficamos juntos... o dia em que Stan fez esses cortes no Barrens. Stan não está aqui; está morto. E esta é a última vez que nós seis vamos ficar juntos. Eu sei, eu sinto.

 

Beverly estava espremida nele, tremendo. Bill passou o braço ao redor do corpo dela. Todos olharam para ele, com olhos arregalados e intensos na escuridão. A longa mesa à qual eles se sentaram estava cheia de garrafas vazias, copos e cinzeiros lotados, uma pequena ilha de luz.

 

— Já chega — disse Bill com voz rouca. — Já nos divertimos bastante por uma noite. Vamos guardar a dança pra outra noite.

 

— Eu lembrei — disse Beverly. Ela olhou para Bill com olhos enormes e as bochechas pálidas molhadas. — Eu me lembrei de tudo. Do meu pai descobrindo sobre vocês. De correr. De Bowers, Criss e Huggins. Como corri. O túnel... os pássaros... a Coisa... Eu me lembrei de tudo.

 

— É — disse Richie. — Eu também.

 

Eddie assentiu.

 

— A estação de bombeamento...

 

Bill disse:

 

— E como Eddie...

 

— Vão agora — disse Mike. — Descansem. Está tarde.

 

— Vem com a gente, Mike — disse Beverly.

 

— Não. Tenho que trancar a biblioteca. E tenho que anotar algumas coisas... a minuta do encontro, podemos dizer assim. Não vou demorar. Podem ir.

 

Eles se encaminharam para a porta sem falar muito. Bill e Beverly seguiram juntos, com Eddie, Richie e Ben logo atrás. Bill segurou a porta para ela e ela agradeceu. Quando desceu pelos degraus de granito, Bill pensou no quanto ela parecia jovem, no quanto parecia vulnerável... Ficou ciente com uma certa tristeza de que talvez estivesse se apaixonando por ela de novo. Tentou pensar em Audra, mas Audra parecia distante. Ela estaria dormindo na casa deles em Fleet agora, enquanto o sol estava nascendo e o leiteiro fazia suas entregas.

 

O céu de Derry estava nublado de novo, e uma névoa baixa ocupava a rua vazia em camadas densas. Mais ao longe encontrava-se a Casa Comunitária de Derry, uma casa vitoriana estreita, alta e envolta em escuridão. Bill pensou: E o que andava pela Casa Comunitária andava sozinho. Ele precisou sufocar uma gargalhada louca. Os passos deles pareciam muito altos. A mão de Beverly tocou na dele, e Bill a segurou com gratidão.

 

— Começou antes de estarmos prontos — disse ela.

 

— Será que a-a-alguma hora estaríamos p-prontos?

 

— Você estaria, Big Bill.

 

O toque da mão dela ficou de repente maravilhoso e necessário ao mesmo tempo. Ele se perguntou como seria tocar os seios dela pela segunda vez na vida e desconfiou que saberia antes de esta longa noite acabar. Estavam maiores agora, maduros... e sua mão encontraria pelos quando cobrisse a protuberância do mons veneris. Ele pensou: Eu te amava, Beverly... eu te amo. Ben amava você... ele te ama. Nós amávamos você na época... nós amamos você agora. É melhor amarmos, porque está começando. Não dá pra voltar agora.

 

Ele olhou para trás e viu a biblioteca a meio quarteirão de distância. Richie e Eddie estavam no degrau mais alto; Ben estava de pé no de baixo, olhando para eles. As mãos estavam enfiadas nos bolsos, os ombros estavam caídos, e, visto pelas lentes deformadoras da névoa baixa, era quase como se ele tivesse 11 anos de novo. Se pudesse enviar um pensamento para Ben, Bill enviaria o seguinte: É o amor que importa, o cuidado... é sempre o desejo, nunca o tempo. Talvez seja tudo que possamos levar conosco quando saímos do azul para o negro. Consolo frio, talvez, mas é melhor do que consolo nenhum.

 

— Meu pai sabia — disse Beverly de repente. — Eu cheguei em casa do Barrens um dia e ele simplesmente sabia. Eu já te contei o que ele dizia pra mim quando estava furioso?

 

— O quê?

 

— “Eu me preocupo com você, Bevvie.” Era isso que ele dizia. “Eu me preocupo muito.” — Ela deu uma gargalhada e tremeu ao mesmo tempo. — Acho que ele pretendia me machucar, Bill. Quero dizer... ele já tinha me machucado antes, mas nessa última vez foi diferente. Ele estava... bem, de muitas formas, ele estava agindo como um homem estranho. Eu o amava. Eu o amava muito, mas...

 

Ela olhou para ele, talvez querendo que ele dissesse por ela. Ele não diria; era uma coisa que ela mesma teria que dizer, mais cedo ou mais tarde. Mentiras e enganações a si mesmos eram coisas que eles não podiam permitir.

 

— Eu também o odiava — disse ela, e a mão apertou convulsivamente a de Bill por um longo segundo. — Nunca contei isso pra ninguém antes. Pensei que Deus mandaria um raio pra me matar se eu dissesse em voz alta.

 

— Então diz de novo.

 

— Não, eu...

 

— Diz. Vai doer, mas talvez esteja pútrido aí dentro por tempo suficiente. Diz.

 

— Eu odiava meu pai — disse ela, e começou a soluçar sem parar. — Eu odiava ele, tinha medo dele, odiava ele, nunca era capaz de ser uma garota boa o bastante para agradar ele e odiava ele, mas amava também.

 

Ele parou e a abraçou com força. Os braços dela envolveram o corpo dele em um aperto em pânico. As lágrimas dela molharam a lateral do pescoço dele. Ele estava muito consciente do corpo dela, maduro e firme. Afastou o tronco do dela de leve, sem querer que ela sentisse a ereção que estava surgindo... mas ela se apertou contra ele.

 

— A gente tinha passado a manhã lá no Barrens — disse ela —, brincando de pique ou de alguma coisa parecida. Alguma coisa inofensiva. Nem conversamos sobre a Coisa naquele dia, pelo menos não naquele dia... mas chegou uma época em que a gente falava sobre a Coisa todos os dias. Lembra?

 

— Lembro — disse ele. — Em uma é-época. Lembro.

 

— Estava nublado... e quente. Brincamos durante quase toda a manhã. Fui pra casa por volta das 11h30. Pensei em comer um sanduíche e uma tigela de sopa depois de tomar um banho. Depois, eu voltaria e brincaria mais. Meus pais estavam trabalhando. Mas ele estava lá. Ele estava em casa. Ele

 

Rua Lower Main — 11h30

 

a jogou do outro lado da sala antes mesmo de ela ter passado completamente pela porta. Um grito assustado saiu de dentro dela e foi interrompido quando ela bateu na parede com força suficiente para deixar seu ombro dormente. Ela caiu no sofá bambo e olhou ao redor desesperada. A porta do corredor da frente bateu. O pai estava de pé logo atrás.

 

— Eu me preocupo com você, Bevvie — disse ele. — Às vezes, eu me preocupo muito. Você sabe. Eu falo isso, não falo? Pode apostar que falo.

 

— Papai, o que...

 

Ele estava andando lentamente na direção dela pela sala, com o rosto pensativo, triste, fatal. Ela não queria ver essa última característica, mas estava lá como o brilho cego de terra em água parada. Ele estava mordendo distraidamente a dobra de um dedo da mão direita. Estava com a calça cáqui e, quando ela olhou para baixo, viu que os sapatos de cano alto estavam deixando marcas no tapete da mãe. Vou ter que pegar o aspirador, pensou ela com incoerência. Vou ter que aspirar isso. Se ele me deixar capaz de aspirar. Se ele...

 

Era lama. Lama negra. A mente dela derrapou com alarme. Ela estava de volta no Barrens com Bill, Richie, Eddie e os outros. Havia lama preta e viscosa como a dos sapatos do pai lá no Barrens, no local pantanoso onde as coisas que Richie chamava de bambu cresciam em um bosque branco esqueletal. Quando o vento soprava, os galhos batiam uns nos outros secamente e produziam sons como tambores vodu, e o pai dela tinha ido ao Barrens? O pai dela...?

 

WHAP!

 

A mão dele disparou em uma órbita ampla e atingiu o rosto dela. A cabeça dela bateu na parede. Ele prendeu os polegares no cinto e olhou para ela com aquela expressão de curiosidade morta e desconectada. Ela sentiu um filete de sangue escorrendo quente pelo canto esquerdo do lábio inferior.

 

— Eu vi você ficando grande — disse ele, e ela pensou que ele diria mais alguma coisa, mas aquilo pareceu ser tudo naquele momento.

 

— Papai, de que você está falando? — perguntou ela com voz baixa e trêmula.

 

— Se você mentir pra mim, vou bater em você até só sobrar um fiapo de vida, Bevvie — disse ele, e ela percebeu com horror que ele não estava olhando para ela; estava olhando para a gravura de Currier e Ives acima da cabeça dela, na parede acima do sofá. A mente dela derrapou loucamente de novo e ela voltou a ter 4 anos e estava sentada na banheira com o barquinho azul de plástico e o sabonete do Popeye; o pai, tão grande e tão amado, estava ajoelhado ao lado, usando calça cinza de sarja e camiseta de alças, com um paninho na mão e um copo de refrigerante de laranja na outra, ensaboando as costas dela e dizendo: Me deixa ver essas orelhas, Bevvie; sua mãe precisa de batatas pro jantar. E ela conseguia ouvir seu eu pequeno rindo, olhando para o rosto um pouco grisalho que ela acreditava na época que devia ser eterno.

 

— Eu... não vou mentir, papai — disse ela. — Qual é o problema? — A visão que ela tinha dele estava desmontando gradualmente quando as lágrimas surgiram.

 

— Você esteve no Barrens com um grupo de meninos?

 

O coração dela pulou; os olhos desceram até os sapatos cobertos de lama de novo. Aquela lama preta e grudenta. Se você pisasse nela muito fundo, ela podia sugar seu tênis ou seu mocassim do pé... e tanto Richie quanto Bill acreditavam que, se você descesse completamente, ela virava areia movediça.

 

— Eu brinco lá embaixo às vez...

 

Whap! fez a mão coberta de calos duros. Ela gritou, com dor, com medo. Aquele olhar no rosto dele a assustava, e a forma como ele não olhava para ela também a assustava. Havia alguma coisa errada com ele. Ele estava piorando... E se ele pretendesse matá-la? E se

 

(ah, pare, Beverly, ele é seu PAI e PAIS não matam FILHAS)

 

ele perdesse o controle? E se...

 

— O que você deixou eles fazerem com você?

 

— Fazer? O que...? — Ela não fazia ideia do que ele queria dizer.

 

— Tira a calça.

 

A confusão dela aumentou. Nada que ele dizia parecia ligado a nada. Tentar acompanhar a estava deixando enjoada... quase com vontade de vomitar.

 

— O que...? Por que...?

 

Ele ergueu a mão; ela se encolheu.

 

— Tira a calça, Bevvie. Quero ver se você está intacta.

 

Agora havia uma nova imagem, mais maluca do que as outras: ela se viu tirando a calça jeans e uma das pernas se soltando junto. O pai tentando bater nela com o cinto enquanto ela tentava pular para longe dele com a perna boa. Papai gritando: Eu sabia que você não estava intacta! Eu sabia! Eu sabia!

 

— Papai, não sei o que...

 

A mão dele desceu, não batendo desta vez, mas agarrando. Afundou no ombro dela com força furiosa. Ela gritou. Ele a puxou para cima e, pela primeira vez, olhou diretamente nos olhos dela. Ela gritou de novo pelo que viu lá. Era... nada. Seu pai tinha sumido. E Beverly entendeu de repente que estava sozinha no apartamento com a Coisa, sozinha com a Coisa nessa manhã tranquila de agosto. Não havia a sensação densa de poder e maldade pura que ela sentiu na casa da rua Neibolt uma semana e meia antes, pois a Coisa tinha sido diluída de alguma maneira pela humanidade essencial do pai, mas a Coisa estava ali, trabalhando através dele.

 

Ele a jogou de lado. Ela bateu na mesa de centro, tropeçou e caiu esparramada no chão com um grito. É assim que acontece, pensou ela. Vou contar para Bill, para ele entender. Está em todas as partes de Derry. Ela simplesmente... ocupa os espaços vazios, só isso.

 

Ela rolou. O pai estava andando na direção dela. Ela se empurrou para longe dele sentada no chão, com cabelo nos olhos.

 

— Eu sei que você esteve lá embaixo — disse ele. — Me contaram. Eu não acreditei. Não acreditei que minha Bevvie andaria com uma gangue de garotos. Mas vi você hoje de manhã. Minha Bevvie com um bando de garotos. Com menos de 12 anos e já andando com um bando de garotos! — Esse último pensamento pareceu provocar uma nova onda de ira; fez o corpo dele tremer como se fosse eletricidade. — Antes mesmo de fazer 12 anos! — gritou ele, e deu um chute na coxa dela que a fez gritar. Seu maxilar se fechou após esse fato ou conceito ou o que quer que fosse para ele como o maxilar de um cachorro faminto sobre um pedaço de carne. — Antes mesmo de fazer 12 anos! Antes mesmo de fazer 12 anos! Antes mesmo de fazer 12 ANOS!

 

Ele deu um chute. Beverly se afastou. Eles tinham se deslocado agora para a cozinha do apartamento. A bota dele bateu na gaveta debaixo do forno, o que fez as panelas e potes dentro balançarem.

 

— Não fuja de mim, Bevvie — disse ele. — É melhor não fazer isso, senão vai ser pior pra você. Acredite em mim. Acredite no seu pai. Isso é sério. Andar com os garotos, deixar eles fazerem Deus sabe o que com você, antes mesmo dos 12 anos, isso é sério, Cristo sabe.

 

Ele a segurou e puxou-a pelo ombro até que ficasse de pé.

 

— Você é uma garota bonita — disse ele. — Tem muita gente que fica feliz em estragar uma garota bonita. Tem muitas garotas bonitas dispostas a serem estragadas. Você foi piranha mirim com aqueles garotos, Bevvie?

 

Ela enfim entendeu o que a Coisa colocou na cabeça dele... só que parte dela sabia que o pensamento devia estar lá o tempo todo; que a Coisa devia só ter usado as ferramentas que estavam lá esperando para serem aproveitadas.

 

— Não, papai. Não, papai...

 

— Eu vi você fumando! — gritou ele. Desta vez, ele bateu nela com a palma da mão, com força suficiente para mandá-la cambaleando para trás em passos trôpegos até a mesa da cozinha, onde ela caiu com uma pontada de dor na lombar. O saleiro e o pimenteiro caíram no chão. O pimenteiro quebrou. Flores pretas desabrocharam e desapareceram aos olhos dela. Os sons pareceram profundos demais. Ela viu o rosto dele. Alguma coisa no rosto dele. Ele estava olhando para o peito dela. Ela percebeu de repente que a blusa tinha saído de dentro da calça e que não estava usando sutiã (até o momento ela só tinha um, que era top de ginástica). A mente dela derrapou para a casa na rua Neibolt, quando Bill deu a camisa a ela. Ela ficou ciente da forma como os seios empurravam o tecido fino de algodão, mas os olhares ocasionais e de soslaio deles não a incomodaram; eles pareceram perfeitamente naturais. E o olhar de Bill pareceu mais do que natural; pareceu caloroso e desejado, mesmo que profundamente perigoso.

 

Agora, ela sentiu a culpa se misturar ao terror. Será que o pai estava tão errado? Ela não tinha

 

(você foi piranha mirim com aqueles garotos)

 

tido pensamentos? Pensamentos ruins? Pensamentos do que quer que ele estivesse falando?

 

Não é a mesma coisa! Não é a mesma coisa que a forma

 

(você foi piranha mirim)

 

como ele está me olhando agora! Não é a mesma coisa!

 

Ela enfiou a blusa dentro da calça.

 

— Bevvie?

 

— Papai, nós só brincamos. Só isso. Nós brincamos... nós... nós não fazemos nada como... nada ruim. Nós...

 

— Eu vi você fumando — disse ele de novo enquanto andava na direção dela. Os olhos dele observaram o peito dela e os quadris estreitos e sem curvas. Ele cantarolou de repente, com voz aguda de estudante que a assustou ainda mais: — Uma garota que masca chiclete também fuma! Uma garota que fuma também bebe! E uma garota que bebe, todo mundo sabe o que uma garota assim faz!

 

— EU NÃO FIZ NADA! — gritou ela para ele quando as mãos dele desceram na direção de seus ombros. Ele não estava beliscando nem machucando agora. As mãos estavam delicadas. E isso era mais assustador do que tudo.

 

— Beverly — disse ele com a lógica inargumentável e louca dos completamente obcecados. — Eu vi você com garotos. Agora você quer me dizer o que uma garota faz com garotos naquele lixo de lugar se não é aquilo que uma garota faz deitada de costas?

 

— Me deixa em paz! — gritou ela para ele. A raiva subiu de um poço profundo do qual ela nunca desconfiou. A raiva criou uma chama azul-amarelada na cabeça dela. Ameaçou os pensamentos dela. Todas as vezes que ele a tinha assustado; todas as vezes que ele a tinha envergonhado; todas as vezes que ele a tinha machucado. — Só me deixa em paz!

 

— Não fale assim com seu papai — disse ele, parecendo assustado.

 

— Eu não fiz o que você está dizendo! Nunca fiz!

 

— Talvez sim. Talvez não. Vou verificar pra ter certeza. Sei fazer isso. Tira a calça.

 

— Não.

 

Os olhos dele se arregalaram e deixaram à mostra a córnea amarelada em torno das íris azuis.

 

— O que você disse?

 

— Eu disse não. — Os olhos dele estavam fixos nos dela, e talvez ele tenha visto a raiva ardente ali, a onda intensa de rebelião. — Quem contou pra você?

 

— Bevvie...

 

— Quem contou que nós brincamos lá? Foi um estranho? Foi um homem vestido de laranja e prateado? Ele usava luvas? Parecia um palhaço mesmo não sendo palhaço? Qual era o nome dele?

 

— Bevvie, é melhor parar...

 

— Não. É melhor você parar — disse ela para ele.

 

Ele a golpeou com a mão de novo, não aberta, mas desta vez fechada, com intenção de quebrar alguma coisa. Beverly desviou. O punho dele passou assobiando por cima da cabeça dela e bateu na parede. Ele gritou, soltou-a e colocou a mão na boca. Ela recuou para longe dele em passinhos rápidos.

 

— Volte aqui!

 

— Não — disse ela. — Você quer me machucar. Eu te amo, papai, mas te odeio quando fica assim. Você não pode fazer mais isso. Ela está fazendo você fazer, mas você deixou a Coisa entrar.

 

— Não sei de que você está falando — disse ele —, mas é melhor você vir até aqui. Não vou mandar mais.

 

— Não — disse ela, começando de novo a chorar.

 

— Não me faça ir até aí pegar você, Bevvie. Você vai ser uma garotinha muito arrependida se eu tiver que fazer isso. Venha até aqui.

 

— Me diz quem te contou — disse ela — e eu vou.

 

Ele pulou para cima dela com agilidade tão felina que, apesar de ela desconfiar que um pulo assim estava a caminho, quase foi pega. Ela girou a maçaneta da porta da cozinha com dificuldade, abriu a porta o bastante para conseguir passar e saiu correndo pelo corredor em direção à porta da frente, saiu correndo em um sonho de pânico, como correria da sra. Kersh 27 anos depois. Atrás dela, Al Marsh se chocou contra a porta, acabou fechando-a com o movimento e a rachou no centro.

 

— VOLTA AQUI AGORA MESMO, BEVVIE! — gritou ele, abrindo a porta com toda força e indo atrás dela.

 

A porta da frente estava fechada com a tranca; ela tinha entrado pelos fundos. Uma das mãos trêmulas mexeu na tranca enquanto a outra girava a maçaneta sem resultado. Atrás dela, o pai berrou de novo; o som de um

 

(tira essa calça piranha mirim)

 

animal. Ela girou a tranca e a porta finalmente se abriu. A respiração quente descia e subia pela garganta dela. Ela olhou por cima do ombro e viu-o logo atrás, esticando a mão, sorrindo e fazendo uma careta, com os dentes amarelos de cavalo parecendo uma armadilha naquela boca.

 

Beverly passou correndo pela porta de tela e sentiu os dedos dele deslizarem pelas costas da blusa sem conseguir agarrar. Ela voou pelos degraus, perdeu o equilíbrio e caiu estatelada na calçada, ralando os dois joelhos.

 

— VOLTA AQUI AGORA BEVVIE, SENÃO JURO POR DEUS QUE VOU ESFOLAR VOCÊ!

 

Ele desceu os degraus e ela conseguiu ficar de pé, com buracos nas pernas da calça jeans,

 

(tira a calça)

 

os joelhos com sangue escorrendo e as terminações nervosas expostas cantando “Onward Christian Soldiers”. Ela olhou para trás, e ele já estava vindo de novo, Al Marsh, zelador e porteiro, um homem grisalho de camisa e calça cáqui com bolsos com abas, um chaveiro preso ao cinto por uma corrente, o cabelo voando. Mas ele não estava nos olhos dele, a essência do homem que esfregava as costas dela e socava a barriga dela e fazia as duas coisas porque se preocupava com ela, se preocupava muito, o homem que uma vez tentou fazer trança no cabelo dela quando ela tinha 7 anos, fez um serviço horroroso e ficou rindo com ela por causa do jeito como o penteado ficou torto, o homem que sabia fazer um eggnog com canela aos domingos que era mais gostoso do que qualquer coisa que você pudesse comprar por 25 centavos no Derry Ice Cream Bar, o homem-pai, o macho da vida dela, que passava uma mensagem confusa daquele outro estado sexual. Nada daquilo estava nos olhos dele agora. Ela viu puro instinto assassino ali. Ela viu a Coisa ali.

 

Ela correu. Ela correu da Coisa.

 

O sr. Pasquale, sobressaltado, ergueu o olhar do ponto em que estava molhando o gramado e ouvindo um jogo do Red Sox em um rádio portátil na amurada da varanda. Os filhos dos Zinnerman se afastaram do Hudson Hornet que compraram por 25 dólares e lavavam quase todos os dias. Um deles estava segurando uma mangueira, o outro, um balde com água e sabão. Os dois estavam boquiabertos. A sra. Denton olhou do apartamento de segundo andar, com um vestido de uma das seis filhas no colo e mais roupas para serem consertadas em uma cesta no chão, com a boca cheia de alfinetes. O pequeno Lars Theramenius puxou o carrinho Red Ball Flyer da calçada rachada e ficou de pé no gramado de Bucky Pasquale. Ele começou a chorar quando Bevvie, que tinha passado uma paciente manhã naquela primavera ensinando a ele como amarrar os tênis de forma que permanecessem amarrados, passou correndo por ele gritando e com olhos arregalados. Um momento depois, o pai dela passou gritando com ela, e Lars, que tinha 3 anos e morreria 12 anos depois em um acidente de moto, viu uma coisa terrível e desumana no rosto do sr. Marsh. Ele teve pesadelos pelas três semanas seguintes. Neles, ele via o sr. Marsh virando uma aranha dentro das roupas.

 

Beverly correu. Ela estava perfeitamente ciente de que talvez estivesse correndo para salvar a própria vida. Se o pai a pegasse agora, não importaria o fato de eles estarem na rua. As pessoas faziam coisas loucas em Derry às vezes; ela não precisava ler os jornais nem saber a história peculiar da cidade para entender isso. Se ele a pegasse, a estrangularia, bateria nela ou a chutaria. E quando acabasse, alguém viria prendê-lo e ele ficaria sentado em uma cela como o padrasto de Eddie Corcoran estava, atordoado e sem entender.

 

Ela correu na direção do centro e passou por cada vez mais pessoas no caminho. Elas ficaram olhando, primeiro para ela, depois para o pai correndo atrás, e pareceram surpresas, algumas até impressionadas. Mas o que surgia nos rostos delas não passava disso. Elas olhavam e voltavam a fazer o que estavam fazendo antes. O ar circulando nos pulmões dela estava ficando pesado agora.

 

Ela atravessou o canal, com os pés batendo no cimento enquanto carros retumbavam sobre a madeira que formava a ponte à direita. À esquerda, ela conseguia ver o semicírculo de pedra onde o canal entrava na área que passava por baixo da cidade. Ela atravessou a rua Main de repente, alheia às buzinas e aos freios cantando. Ela foi para a direita porque o Barrens ficava naquela direção. Ainda faltava quase um quilômetro e meio, e se ela ia chegar lá, teria que abrir distância do pai de alguma forma na extenuante ladeira da colina Up-Mile (ou uma das ruas laterais ainda mais íngremes). Mas era a única opção.

 

— VOLTA AQUI SUA PUTINHA ESTOU AVISANDO!

 

Quando chegou à calçada do outro lado da rua, ela lançou mais um olhar para trás, com o peso do cabelo ruivo passando por cima do ombro com o movimento. O pai estava atravessando a rua, tão alheio ao tráfego quanto ela, com o rosto vermelho e brilhando de suor.

 

Ela entrou em uma viela que passava atrás da Warehouse Row, que eram os fundos de prédios que davam para a colina Up-Mile: Star Beef, Armour Meatpacking, Hemphill Storage & Warehousing, Eagle Beef & Kosher Meats. A viela era estreita e com piso de pedra, e ainda mais estreita por causa das latas e dos latões de lixo colocados ali. As pedras estavam escorregadias com só Deus sabia que tipo de lixo e restos. Havia uma mistura de cheiros, alguns insossos, alguns intensos, alguns simplesmente horríveis... mas todos remetiam a carne e matança. Moscas voavam em nuvens. De dentro de alguns prédios ela conseguia ouvir o som apavorante de serras de cortar ossos. Os pés tropeçaram nas pedras escorregadias. Um quadril bateu em uma lata de lixo galvanizada, e pacotes de tripas enroladas em jornal caíram como flores selvagens feitas de carne.

 

— VOLTA AQUI AGORA MESMO BEVVIE! ESTOU FALANDO AGORA! NÃO PIORE AS COISAS, GAROTA!

 

Dois homens descansavam na porta de carga e descarga da Kirshner Packing Works, mastigando sanduíches, com marmitas abertas por perto.

 

— Você está em situação complicada, garota — disse um deles sem entusiasmo. — Parece que vai levar uma coça do seu pai. — O outro riu.

 

Ele estava chegando perto. Ela conseguia ouvir os passos trovejantes e a respiração pesada quase atrás dela agora; ao olhar para a direita, ela conseguiu ver as asas negras da sombra dele voando pela cerca alta daquele lado.

 

Mas ele gritou de surpresa e fúria quando seus pés deslizaram e ele caiu sobre as pedras. Levantou-se um momento depois, não mais berrando as palavras, mas dando um grito agudo para expressar a fúria incoerente enquanto os homens na porta riam e davam tapas nas costas um do outro.

 

A viela virou para a esquerda... e Beverly parou de repente, com a boca aberta de consternação. Um caminhão de lixo da cidade estava parado na entrada da viela. Não havia nem 25 centímetros de espaço de cada lado. O motor estava ligado. Por baixo daquele som, quase inaudível, ela conseguia captar o murmúrio de conversa vindo da cabine do caminhão. Mais homens no intervalo do almoço. Faltavam só três ou quatro minutos para o meio-dia; em pouco tempo, o relógio do fórum começaria a anunciar a virada da hora.

 

Ela conseguia ouvi-lo chegando, se aproximando. Ela se jogou para a frente e começou a passar por baixo do caminhão, usando os cotovelos e os joelhos ralados para rastejar. O fedor de escapamento e diesel misturado com o cheiro de carne crua provocou uma espécie de náusea nela. De certa forma, a facilidade com que ela estava se deslocando era pior: ela estava deslizando em uma camada de gosma e água de lixo. Ela continuou a se movimentar e chegou a se afastar muito do chão em um momento, quando suas costas tocaram no cano de descarga quente do caminhão. Ela precisou engolir um grito.

 

— Beverly? Você está aí embaixo? — Cada palavra vinha separada da seguinte por uma respiração ofegante. Ela olhou para trás e viu os olhos dele quando ele se inclinou e olhou debaixo do caminhão.

 

— Me deixa... em paz! — ela conseguiu dizer.

 

— Sua piranha — respondeu ele com voz rouca e cheia de cuspe. Ele se jogou no chão, com as chaves tilintando, e começou a rastejar atrás dela, usando um movimento grotesco de natação para se impulsionar.

 

Beverly saiu de debaixo da cabine do caminhão, agarrou um dos pneus enormes (seus dedos entraram em uma reentrância até a segunda dobra) e se levantou. Ela bateu com a base das costas no para-choque da frente e saiu correndo de novo, em direção à colina Up-Mile agora, com a blusa e a calça jeans manchadas de gosma e fedendo mais do que o lixão. Ela olhou para trás e viu as mãos e os braços com sardas do pai saírem de debaixo da cabine do caminhão como as garras de um monstro imaginário da infância saindo de debaixo da cama.

 

Rapidamente e quase sem pensar, ela entrou entre a Feldman’s Storage e o Anexo dos Irmãos Tracker. Esse espaço, estreito demais para ser chamado de viela, estava cheio de caixas quebradas, ervas daninhas, girassóis e, é claro, mais lixo. Beverly mergulhou atrás de uma pilha de caixas e se agachou. Alguns momentos depois, viu o pai passar pela entrada do corredor indo em direção à colina.

 

Beverly se levantou e correu para a extremidade do corredor. Havia uma cerca estilo de galinheiro ali. Ela escalou até o alto, passou por cima e se esforçou para descer do outro lado. Agora estava em território do Seminário Teológico de Derry. Ela correu pelo gramado bem cuidado e contornou a lateral do prédio. Conseguia ouvir alguém lá dentro tocando alguma coisa clássica em um órgão. As notas pareciam entalhar sua calma e agradabilidade no ar parado.

 

Havia uma cerca viva alta entre o seminário e a rua Kansas. Ela espiou por entre as plantas e viu o pai do outro lado da rua, respirando pesadamente, com manchas de suor escurecendo a camisa debaixo dos braços. Ele estava olhando ao redor com as mãos nos quadris. O chaveiro brilhava sob o sol.

 

Beverly o observou, também respirando pesadamente, com o coração disparado na garganta como o de um coelho. Ela estava com muita sede e seu cheiro a enojava. Se eu fosse um desenho em quadrinhos, pensou ela distraidamente, haveria aquelas listrinhas onduladas de fedor saindo de mim.

 

O pai atravessou lentamente para o lado do seminário.

 

Beverly parou de respirar.

 

Por favor, Deus, eu não consigo mais correr. Me ajude, Deus. Não deixe que ele me encontre.

 

Al Marsh andou lentamente pela calçada e passou diretamente pelo local onde a filha estava agachada, do outro lado da cerca viva.

 

Querido Deus, não permita que ele sinta meu cheiro!

 

Ele não sentiu, talvez porque, depois de uma queda na viela e de rastejar embaixo do caminhão, Al fedia tanto quanto ela. Ele continuou a andar. Ela o viu ir para a colina Up-Mile até estar fora de seu campo de visão.

 

Beverly se levantou devagar. Suas roupas estavam cobertas de lixo, seu rosto estava sujo, suas costas doíam no ponto da queimadura no cano de descarga do caminhão. Essas coisas físicas não eram nada perto dos pensamentos confusos em sua cabeça; ela sentia que tinha velejado para fora da beira do mundo e nenhum dos padrões normais de comportamento pareciam ser mais válidos. Ela não conseguia imaginar ir para casa, mas não conseguia imaginar não ir para casa. Ela tinha desafiado o pai, desafiado...

 

Ela tinha que afastar aquele pensamento, porque ele a fazia se sentir fraca, trêmula e enjoada. Ela amava o pai. Um dos Dez Mandamentos não era “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os seus dias na terra”? Sim. Mas ele não era ele mesmo. Não era seu pai. Era, na verdade, uma pessoa completamente diferente. Um impostor. Ela...

 

De repente, ela ficou gelada, quando uma pergunta terrível surgiu na mente dela: Será que isso estava acontecendo com os outros? Ou alguma coisa parecida? Ela tinha que avisá-los. Eles tinham ferido a Coisa, e talvez agora a Coisa estivesse tentando garantir que eles jamais fizessem isso de novo. E para onde mais ela podia ir? Eles eram os únicos amigos que ela tinha. Bill. Bill saberia o que fazer. Bill diria a ela o que fazer, forneceria o e agora.

 

Ela parou no ponto em que a calçada do seminário se juntava com a da rua Kansas e espiou pela beirada. O pai tinha mesmo ido embora. Ela virou para a direita e começou a andar pela rua Kansas na direção do Barrens. Era provável que nenhum deles estivesse lá agora; eles estariam em casa almoçando. Mas voltariam. Enquanto isso, ela podia ir para a sede do clube para tentar se acalmar um pouco. Ela deixaria a janelinha bem aberta para poder ter um pouco de luz do sol e talvez até conseguisse dormir. Seu corpo todo e sua mente exausta aceitaram o pensamento com ansiedade. Dormir, sim, isso seria bom.

 

Ela baixou a cabeça quando passou pelas últimas casas antes de o terreno ficar íngreme demais para casas e desceu para o Barrens; o Barrens, onde, por mais incrível que pudesse parecer a ela, o pai andou espionando e se escondendo.

 

Ela não ouviu passos atrás dela. Os garotos se esforçaram muito para fazer silêncio. Ela já tinha corrido deles antes; eles não queriam que isso acontecesse de novo. Eles se aproximaram cada vez mais dela, andando com passos de gato. Arroto e Victor estavam sorrindo, mas o rosto de Henry estava vazio e sério. O cabelo estava despenteado e desgrenhado. Os olhos estavam tão desfocados quanto os de Al Marsh no apartamento. Ele estava com um dedo sujo sobre os lábios em um gesto de silêncio conforme eles diminuíam a distância de 20 metros para 15 e depois para dez.

 

Durante todo aquele verão, Henry estava seguindo com firmeza acima de algum tipo de abismo mental, andando sobre uma ponte que ia ficando cada vez mais estreita. No dia em que permitiu que Patrick Hockstetter o acariciasse, aquela ponte se estreitou e virou uma corda bamba. A corda bamba arrebentou naquela manhã. Ele desceu para o jardim, quase nu, usando apenas a cueca amarelada, e olhou para o céu. O fantasma da lua da noite anterior ainda estava lá, e quando ele olhou, a lua mudou de repente para uma cara sorridente de esqueleto. Henry caiu de joelhos ante esse rosto, exaltado com terror e alegria. Vozes-fantasma saíam da lua. As vozes mudavam, às vezes pareciam se misturar em um balbuciar suave que mal era compreensível... mas ele sentia a verdade, que era que todas essas vozes eram uma voz, uma inteligência. A voz mandou que ele procurasse Arroto e Victor e que fossem para a esquina da rua Kansas com a avenida Costello por volta do meio-dia. A voz disse para ele que ele saberia o que fazer no momento. E naquela hora, a vaca surgiu saltitando. Ele esperou para ouvir o que a voz o mandaria fazer em seguida. A resposta veio quando eles estavam diminuindo a distância. A voz não veio da lua, mas da grade do bueiro pelo qual eles estavam passando. A voz estava baixa, mas clara. Arroto e Victor olharam para a grade de uma forma atordoada e quase hipnotizada, depois para Beverly de novo.

 

Mate-a, disse a voz do bueiro.

 

Henry Bowers enfiou a mão no bolso da calça jeans e tirou um instrumento fino de 20 centímetros com camadas de imitação de marfim nas laterais. Um pequeno botão cromado brilhava em uma ponta desse duvidoso objet d’art. Henry o apertou. Uma lâmina de 15 centímetros surgiu em uma fenda no cabo. Ele balançou a faca na palma da mão. Começou a andar um pouco mais rápido. Victor e Arroto, ainda com aparência vidrada, aumentaram a velocidade de caminhada para acompanhá-lo.

 

Beverly não os ouviu, precisamente; não foi isso que a fez virar na hora em que Henry Bowers estava diminuindo a distância. Com os joelhos meio flexionados, andando com passos arrastados e com um sorriso grudado no rosto, Henry estava silencioso como um índio. Não; foi apenas uma sensação, clara, direta e poderosa demais para ser negada, de

 

Biblioteca Pública de Derry — 1h55

 

alguém estar observando.

 

Mike Hanlon colocou a caneta de lado e olhou pela forma de tigela invertida que era o aposento principal da biblioteca. Ele viu ilhas de luz emitidas pelos globos pendurados; viu livros desaparecendo na escuridão; viu as escadarias de ferro com as espirais graciosas que seguiam até as estantes. Não viu nada fora do lugar.

 

Ao mesmo tempo, não acreditava estar sozinho ali. Não mais.

 

Depois que os outros foram embora, Mike arrumou tudo com um cuidado que era puro hábito. Ele estava no piloto automático, com a mente a um milhão de milhas (e 27 anos) de distância. Ele limpou cinzeiros, jogou fora garrafas vazias de bebida (colocando uma camada de lixo por cima para Carole não se assustar) e guardou as latas retornáveis em uma caixa atrás da escrivaninha. Depois, pegou uma vassoura e varreu os restos da garrafa de gim que Eddie quebrou.

 

Quando a mesa estava limpa, ele foi até a Sala de Periódicos e pegou revistas espalhadas. Enquanto fazia essas tarefas simples, sua mente relembrou as histórias que eles contaram, concentrando-se mais, talvez, no que eles tinham deixado de fora. Eles acreditavam que se lembravam de tudo; ele achava que Bill e Beverly quase lembravam. Mas havia mais. Voltaria à mente deles... se a Coisa lhes desse tempo. Em 1958, não houve oportunidade de preparação. Eles conversaram infinitamente, com as conversas interrompidas apenas pela guerra de pedras e pelo ato de heroísmo em grupo no número 29 da rua Neibolt, e, no final, talvez não tivessem feito mais do que falar. Mas então chegou o dia 14 de agosto, e Henry e os amigos simplesmente correram atrás deles até o esgoto.

 

Talvez eu devesse ter contado pra eles, pensou ele, colocando as últimas revistas no lugar. Mas alguma coisa o fazia se opor à ideia; a voz da Tartaruga, supunha ele. Talvez fosse parte de tudo, e talvez essa sensação de circularidade também. Talvez o último ato também fosse se repetir de alguma maneira atualizada. Ele tinha separado lanternas e capacetes de mineiro para o dia seguinte; estava com as plantas do esgoto e do sistema de drenagem de Derry enroladas e presas com elásticos no mesmo armário. Mas, quando eles eram crianças, toda a conversa e todos os planos, parciais ou não, não serviram de nada no final; no final, eles foram simplesmente perseguidos até os esgotos, levados ao confronto que se seguiu. Será que isso aconteceria de novo? Ele tinha passado a acreditar que a fé e o poder eram intercambiáveis. Será que a verdade final era mais simples? Que nenhum ato de fé era possível até você ser jogado no meio das coisas como um recém-nascido sendo empurrado sem paraquedas do útero da mãe? Quando você estava caindo, era forçado a acreditar no paraquedas, era forçado à existência, não? Puxar a cordinha enquanto você caía se tornava sua declaração final sobre o assunto, de uma maneira ou de outra.

 

Jesus Cristo, é o Fulton Sheen preto, pensou Mike, e deu uma gargalhada.

 

Mike limpou, arrumou e pensou seus pensamentos, enquanto outra parte de seu cérebro esperava que ele terminasse e percebesse estar cansado o suficiente para ir para casa e dormir por algumas horas. Mas quando ele finalmente terminou, viu-se tão desperto quanto antes. Assim, ele foi até a única sala fechada atrás do escritório, destrancou a porta de grade com uma chave do chaveiro e entrou. Essa sala, supostamente à prova de fogo quando a porta do estilo de cofres estava fechada e trancada, continha as valiosas primeiras edições da biblioteca, autografadas por autores há muito mortos (dentre as edições autografadas havia Moby Dick e Folhas de relva, de Walt Whitman), assuntos históricos relacionados à cidade e os papéis pessoais dos bem poucos escritores que moraram e trabalharam em Derry. Se tudo isso terminasse bem, Mike esperava convencer Bill a deixar seus manuscritos para a Biblioteca Pública de Derry. Ao andar no terceiro corredor da sala sob lustres de latão e sentir os aromas familiares de biblioteca de mofo e poeira e papel envelhecido, ele pensou: Quando eu morrer, acho que vou com um cartão de biblioteca em uma das mãos e um carimbo de ATRASADO na outra. Bem, talvez haja maneiras piores.

 

Ele parou na metade desse terceiro corredor. O caderno com os cantos marcados, que continha as histórias anotadas de Derry e suas reflexões perturbadas, estava guardado entre o Old Derry-Town de Fricke e o History of Derry de Michaud. Ele tinha enfiado o caderno tão para trás que estava quase invisível. Ninguém conseguiria encontrar sem querer, só se estivesse procurando.

 

Mike pegou o caderno e voltou até a mesa onde eles fizeram a reunião, fazendo uma pausa para apagar as luzes na salinha e retrancar a porta. Ele se sentou e folheou as páginas que tinha escrito, pensando no quanto era uma declaração estranha e aleijada: parte história, parte escândalo, parte diário, parte confessionário. Ele não escrevia nada desde o dia 6 de abril. Preciso comprar logo um caderno, pensou ele enquanto folheava as poucas páginas em branco que sobraram. Ele pensou com perplexidade por alguns momentos no primeiro rascunho de Margaret Mitchell de E o vento levou, escrito à mão em pilhas e pilhas e pilhas de cadernos escolares de redação. Em seguida, abriu a caneta e escreveu 31 de maio duas linhas abaixo do último texto. Fez uma pausa, olhou vagamente pela biblioteca vazia e começou a escrever sobre tudo que aconteceu nos três primeiros dias, começando com a ligação para Stanley Uris.

 

Ele escreveu em silêncio durante 15 minutos, mas logo a concentração começou a sumir. Ele fazia pausas cada vez mais frequentes. A imagem da cabeça cortada de Stan Uris na geladeira tentou atrapalhar, a cabeça sangrenta de Stan, com a boca aberta e cheia de penas, caindo da geladeira e rolando pelo chão na direção dele. Ele a afastou com esforço e continuou a escrever. Cinco minutos depois, ele levantou a cabeça de repente e olhou ao redor, convencido de que veria aquela cabeça rolando pelo piso antigo preto e vermelho do salão principal, com olhos vidrados e ávidos como em uma cabeça empalhada de cervo.

 

Não havia nada. Nada de cabeça, nenhum som exceto os batimentos abafados de seu coração.

 

Você precisa se controlar, Mikey. São os nervos, só isso. Mais nada.

 

Mas não adiantava. As palavras começaram a fugir dele, os pensamentos pareciam pairar fora do alcance. Havia uma pressão na sua nuca que pareceu ficar mais pesada.

 

Estou sendo observado.

 

Ele colocou a caneta sobre a mesa e se levantou.

 

— Tem alguém aí? — disse ele, e sua voz ecoou pela rotunda, dando um susto nele. Ele lambeu os lábios e tentou de novo. — Bill?... Ben?

 

Bill-ill-ill... Ben-en-en...

 

De repente, Mike decidiu que queria estar em casa. Ele simplesmente levaria o caderno junto. Ele esticou a mão para pegá-lo... e ouviu um passo leve e deslizante.

 

Ele ergueu o rosto de novo. Círculos de luz estavam cercados de lagoas profundas de sombras. Mais nada... pelo menos nada que ele conseguisse ver. Ele esperou com o coração disparado.

 

O passo soou de novo, e desta vez ele identificou a localização. Vinha da passagem de vidro que ligava a biblioteca adulta com a infantil. De lá de dentro. Alguém. Alguma coisa.

 

Em silêncio, Mike foi até a bancada principal. A porta dupla que levava à passagem estava presa por calços de madeira, e ele conseguia ver um pouco lá dentro. Ele conseguiu ver o que pareciam pés, e com horror vertiginoso e repentino, perguntou-se se Stan Uris tinha vindo, afinal, se Stan sairia das sombras com sua enciclopédia de pássaros em uma das mãos, o rosto branco, os lábios roxos, os pulsos e antebraços cortados. Finalmente vim, Stan diria. Demorei um pouco porque precisei sair de um buraco no chão, mas finalmente vim...

 

Houve outro passo, e agora Mike conseguia ver sapatos, sem dúvida. Sapatos e pernas de calça jeans surrada. Tiras azuis caíam sobre tornozelos sem meias. E na escuridão quase 1,80 metro acima daqueles tornozelos, Mike conseguiu ver olhos brilhantes.

 

Ele tateou na superfície da bancada semicircular e passou a mão do outro lado sem tirar o olhar daqueles olhos. Seus dedos tocaram no canto de madeira de uma pequena caixa, a dos livros atrasados. Depois, de uma caixa menor, de clipes de papel e elásticos. Tocaram em alguma coisa de metal e seguraram. Era um abridor de cartas com as palavras JESUS SALVA impressas no punho. Era uma coisa frágil que tinha chegado pelo correio da Igreja Batista da Graça como parte de uma campanha de arrecadação de fundos. Mike não ia à missa havia 15 anos, mas a Batista da Graça era a igreja da mãe dele, e ele mandou cinco dólares que não podia desperdiçar. Ele pretendia jogar o abridor de cartas no lixo, mas acabou ficando ali, no meio da confusão que era o lado dele da bancada (o lado de Carole era sempre impecável) até agora.

 

Ele agarrou com força e olhou para o corredor escuro.

 

Houve outro passo... outro. Agora, a calça jeans surrada estava visível até os joelhos. Ele conseguia ver a forma a quem essas pernas pertenciam: era grande, volumosa. Os ombros eram arredondados. Havia uma sugestão de cabelo irregular. A pessoa parecia um macaco.

 

— Quem é você?

 

A forma apenas ficou ali, contemplando-o.

 

Apesar de ainda estar com medo, Mike tinha superado a ideia debilitante de que podia ser Stan Uris saído da cova, chamado pelas cicatrizes nas palmas das mãos por algum magnetismo sobrenatural que o trouxe de volta como um zumbi em um filme de terror de Hammer. Fosse lá quem fosse, não era Stan Uris, que tinha chegado a 1,70 metro de altura quando terminou de crescer.

 

A sombra deu outro passo, e agora a luz do globo mais próximo da passagem caiu nas passadeiras sem cinto da calça jeans ao redor da cintura dela.

 

De repente, Mike soube. Antes mesmo de a forma falar, ele soube.

 

— Oi, crioulo — disse a forma. — Andou jogando pedras em alguém? Quer saber quem envenenou a porra do seu cachorro?

 

A forma deu outro passo à frente, e a luz caiu no rosto de Henry Bowers. Tinha ficado gordo e flácido; a pele tinha um tom gorduroso doentio; as bochechas tinham se tornado bolsas frouxas cobertas de barba por fazer, com tantos pelos brancos quanto pretos. Linhas onduladas, três linhas, estavam entalhadas na testa acima das sobrancelhas peludas. Outras linhas formavam parênteses nos cantos da boca de lábios carnudos. Os olhos eram pequenos e cruéis dentro de poças de carne sem cor, injetados de sangue e ausentes. Era o rosto de um homem sendo levado ao envelhecimento prematuro, um homem com 39 anos que parecia ter 73. Mas também era o rosto de um garoto de 12 anos. As roupas de Henry ainda estavam verdes dos arbustos em que ele tinha passado o dia escondido.

 

— Não vai dizer oi, crioulo? — perguntou Henry.

 

— Oi, Henry. — Ele se deu conta de que não ouvia rádio havia dois dias, e também não tinha lido o jornal, um ritual que costumava fazer. Tinha muita coisa acontecendo. Ele estava muito ocupado.

 

Que pena.

 

Henry saiu do corredor que ficava entre a biblioteca das crianças e a dos adultos e ficou olhando para Mike com olhos de porco. Seus lábios se abriram em um sorriso indescritível e deixaram à mostra dentes podres do Maine de antigamente.

 

— Vozes — disse ele. — Você ouve vozes, crioulo?

 

— Que vozes são, Henry? — Ele colocou as duas mãos nas costas, como um estudante chamado a falar, e passou o abridor de cartas da mão esquerda para a direita. O relógio de piso, dado por Horst Mueller em 1923, tiquetaqueava os solenes segundos no lago suave que era o silêncio da biblioteca.

 

— Da lua — disse Henry. Ele colocou a mão no bolso. — Vieram da lua. Muitas vozes. — Ele fez uma pausa, franziu a testa de leve e balançou a cabeça. — Muitas, mas na verdade é uma só. A voz dela.

 

— Você viu a Coisa, Henry?

 

— Vi — disse ele. — Frankenstein. Arrancou a cabeça de Victor. Você devia ter ouvido. Fez um som como o de um grande zíper sendo aberto. Depois, ela foi atrás de Arroto. Arroto lutou com a Coisa.

 

— É mesmo?

 

— É. Foi assim que eu fugi.

 

— Você deixou que ele morresse.

 

— Não diz isso! — As bochechas de Henry ficaram vermelhas. Ele deu dois passos para a frente. Quanto mais ele se distanciava do corredor que ligava a biblioteca infantil à dos adultos, mais jovem parecia a Mike. Ele viu a mesma crueldade no rosto de Henry, mas também viu outra coisa: a criança que foi criada pelo louco Butch Bowers em uma boa fazenda que foi à ruína ao longo dos anos. — Não diz isso! A Coisa também teria me matado!

 

— Não matou a gente.

 

Os olhos de Henry brilharam de humor rançoso.

 

— Ainda não. Mas vai. A não ser que eu não deixe nenhum de vocês pra ela.

 

Ele tirou a mão do bolso. Nele havia um instrumento fino de 20 centímetros com camadas de imitação de marfim nas laterais. Um pequeno botão cromado brilhava em uma ponta desse duvidoso objet d’art. Henry o apertou. Uma lâmina de 15 centímetros surgiu em uma fenda no cabo. Ele balançou a faca na palma da mão e começou a andar um pouco mais rápido na direção da bancada.

 

— Olha o que eu encontrei — disse ele. — Eu sabia onde procurar. — Uma pálpebra avermelhada deu uma piscadela obscena. — O homem na lua me contou. — Henry mostrou os dentes de novo. — Me escondi hoje. Peguei uma carona esta noite. Era um coroa. Bati nele. Matei ele, eu acho. Larguei o carro em Newport. Bem perto da fronteira de Derry, ouvi aquela voz. Olhei no bueiro. Achei essas roupas. E a faca. Minha velha faca.

 

— Você está se esquecendo de uma coisa, Henry.

 

Sorrindo, Henry só balançou a cabeça.

 

— Nós escapamos e você escapou. Se a Coisa quer a gente, ela também quer você.

 

— Não.

 

— Acho que sim. Talvez vocês tenham feito o trabalho dela, mas ela não exatamente tinha favoritos, não é? Ela pegou seus dois amigos, e enquanto Arroto lutava com ela, você fugiu. Mas agora, você voltou. Acho que você é parte dos negócios interminados da Coisa, Henry. Acho mesmo.

 

— Não!

 

— Talvez o Frankenstein seja o que você vai ver. Ou o Lobisomem? Um Vampiro? O Palhaço? Ou, Henry! Talvez você vá ver como a Coisa realmente é, Henry. Nós vimos. Quer que eu te conte? Quer que eu...?

 

— Cala a boca! — gritou Henry e partiu para cima de Mike.

 

Mike deu um passo ao lado e esticou um pé. Henry tropeçou nele e caiu deslizando pelo piso gasto como uma pedra escorregadia. Sua cabeça bateu na perna da mesa onde os Otários se sentaram naquela noite e contaram suas histórias. Por um momento, ele ficou desnorteado; a faca ficou frouxa em uma das mãos.

 

Mike foi atrás dele, foi atrás da faca. Naquele momento, ele poderia ter acabado com Henry; teria sido possível enfiar o abridor de cartas JESUS SALVA que veio pelo correio enviado pela antiga igreja da mãe na nuca de Henry e depois chamar a polícia. Haveria uma certa quantidade de blá-blá-blá oficial, mas não muito. Não em Derry, onde eventos estranhos e violentos não eram uma grande exceção.

 

O que o fez parar foi a percepção, quase tão parecida com um relâmpago para ser algo consciente, de que, se ele matasse Henry, estaria fazendo o trabalho da Coisa tanto quanto Henry estaria fazendo o trabalho dela se matasse Mike. E outra coisa: aquele outro olhar que ele viu no rosto de Henry, o olhar cansado e perplexo da criança maltratada que foi colocada em um caminho ruim para um propósito desconhecido. Henry tinha crescido no âmbito envenenado da mente de Butch Bowers; sem dúvida ele pertencia à Coisa antes mesmo de desconfiar da existência dela.

 

Portanto, em vez de enfiar o abridor de cartas no pescoço vulnerável de Henry, ele caiu de joelhos e agarrou a faca. Ela girou na mão dele, parecendo ter vontade própria, e seus dedos se fecharam sobre a lâmina. Não houve dor imediata, só sangue vermelho escorrendo pelos primeiros três dedos da mão direita até a palma da mão com as cicatrizes.

 

Ele recuou. Henry rolou e segurou a faca de novo. Mike ficou de joelhos e os dois se encararam dessa forma, os dois sangrando: os dedos de Mike, o nariz de Henry. Henry balançou a cabeça e gotas voaram pela escuridão.

 

— Vocês achavam que eram espertos! — gritou ele com voz rouca. — Um bando de bichinhas, era isso que vocês eram! A gente daria uma surra em vocês em uma luta justa!

 

— Solte a faca, Henry — disse Mike baixinho. — Vou chamar a polícia. Ela vem te buscar pra te levar de volta pra Juniper Hill. Você vai sair de Derry. Vai ficar em segurança.

 

Henry tentou falar e não conseguiu. Não conseguiu dizer para esse preto odioso que não estaria em segurança em Juniper Hill, nem em Los Angeles nem nas florestas tropicais do Timbuctu. Mais cedo ou mais tarde a lua subiria, branca como osso e fria como a neve, e as vozes-fantasma começariam, e a cara da lua mudaria para a cara da Coisa, balbuciando, rindo e dando ordens. Ele engoliu o sangue grudento.

 

— Vocês nunca lutaram de forma justa!

 

— Vocês sim? — perguntou Mike.

 

— Seu crioulofilhodamãetrapaceirofedidomacacosujo! — gritou Henry, e partiu para cima de Mike de novo.

 

Mike se inclinou para trás para fugir do golpe repentino e desconjuntado, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Henry bateu na mesa de novo, quicou, se virou e agarrou o braço de Mike. Mike golpeou com o abridor de cartas e sentiu-o penetrar fundo no antebraço de Henry. Henry gritou, mas em vez de soltar, apertou ainda mais. Ele se puxou na direção de Mike, com o cabelo nos olhos e sangue escorrendo do nariz quebrado sobre os lábios grossos.

 

Mike tentou bater com o pé na lateral de Henry para empurrá-lo para longe. Henry golpeou com a faca em movimento de arco. Os 15 centímetros entraram na coxa de Mike. Ela entrou sem esforço nenhum, como se em um pedaço morno de manteiga. Henry a puxou pingando, e com um grito de dor e esforço, Mike o empurrou para longe.

 

Ele ficou de pé com dificuldade, mas Henry se levantou mais rápido, e Mike mal conseguiu evitar o próximo ataque. Ele conseguia sentir o sangue jorrando pela perna em um fluxo alarmante, encharcando o mocassim. Ele acertou minha artéria femoral, eu acho. Meu Deus, ele me acertou feio. Tem sangue pra todo lado. Sangue no chão. Os sapatos não vão prestar mais, merda, comprei só dois meses atrás...

 

Henry veio de novo, ofegando e bufando como um touro enfezado. Mike cambaleou para o lado e o golpeou com o abridor de cartas de novo. Ele cortou a camisa velha de Henry e abriu um corte profundo sobre as costelas. Henry grunhiu quando Mike o empurrou para longe de novo.

 

— Seu crioulo que luta sujo! — berrou ele. — Olha o que você fez!

 

— Solta a faca, Henry — disse Mike.

 

Uma risadinha soou atrás deles. Henry olhou... e deu um grito de pavor enquanto apertava as mãos nas bochechas como uma donzela ofendida. Mike dirigiu o olhar para a recepção. Houve um som alto e vibrante, e a cabeça de Stan Uris surgiu atrás da bancada. Uma mola entrava no pescoço cortado. O rosto estava branco de tinta oleosa. Havia uma bolota vermelha em cada bochecha. Grandes pompons laranja ocupavam o lugar dos olhos. Essa cabeça grotesca de Stan assentia para a frente e para trás sobre a mola como um dos girassóis gigantescos ao lado da casa da rua Neibolt. A boca se abriu e uma voz aguda e risonha começou a cantarolar:

 

— Mata ele, Henry! Mata o crioulo, mata o preto, mata ele, mata ele, MATA ELE!

 

Mike se virou para Henry, percebendo que foi enganado, perguntando-se que cabeça Henry viu na ponta da mola. A de Stan? A de Victor Criss? A do pai, talvez?

 

Henry berrou e partiu para cima de Mike, movimentando a faca para cima e para baixo como a agulha de uma máquina de costura.

 

— Gaaaah, crioulo! — gritava Henry. — Gaaaah, crioulo! Gaaaah, crioulo!

 

Mike empurrou o corpo para trás, e a perna que Henry esfaqueou falhou quase na mesma hora, fazendo com que ele caísse no chão. Não havia sensação nenhuma naquela perna. Parecia fria e distante. Ao olhar para baixo, ele viu que a calça creme estava agora vermelha.

 

A lâmina de Henry brilhou em frente ao seu nariz.

 

Mike atacou com o abridor de cartas JESUS SALVA quando Henry se preparou para outro golpe. Henry foi direto para cima dele como um inseto em um alfinete. Sangue quente encharcou a mão de Mike. Houve um estalo, e quando ele puxou a mão, só estava com o cabo do abridor de cartas. O resto estava enfiado na barriga de Henry.

 

— Gaaaah! Crioulo! — gritou Henry, e colocou a mão em cima da ponta da lâmina que estava para fora. Sangue jorrou pelos dedos dele. Ele olhou com olhos arregalados e saltados.

 

A cabeça sobre a mola em movimento gritou e riu. Mike, sentindo-se agora enjoado e tonto, olhou para trás e viu a cabeça de Arroto Huggins, uma rolha humana de champanhe usando um boné do New York Yankees virado para trás. Ele gemeu alto, e o som estava distante e ecoante em seus ouvidos. Ele percebeu que estava sentado em uma poça de sangue quente. Se eu não fizer um torniquete na minha perna, vou morrer.

 

— Gaaaaaaaaaaah! Criooooooooulooooooooo! — gritou Henry. Ainda segurando a barriga sangrando com uma das mãos e a faca com a outra, ele cambaleou para longe de Mike e na direção da porta da biblioteca. Ele bambeou como bêbado de um lado para o outro e seguiu pelo salão principal como uma bola de pinball. Bateu em uma das cadeiras de leitura e a derrubou. A mão esticada virou um suporte de jornais no chão. Ele chegou à porta, empurrou uma e saiu para a noite.

 

Mike estava perdendo a consciência agora. Ele abriu a fivela do cinto com dedos que nem conseguia sentir direito. Finalmente conseguiu soltá-lo e tirar dos passadores. Ele o amarrou ao redor da perna sangrenta logo abaixo da virilha e apertou com força. Segurando com uma das mãos, ele começou a rastejar na direção da recepção. O telefone ficava ali. Ele não sabia direito como faria para pegá-lo, mas no momento isso não importava. O importante era chegar lá. O mundo tremeu, ficou embaçado e indistinto em ondas cinzentas. Ele enfiou a língua para fora e mordeu com força. A dor foi imediata e horrível. O mundo ganhou foco de novo. Ele viu que ainda estava segurando o cabo quebrado do abridor de cartas e jogou-o longe. Aqui, finalmente, estava a bancada da recepção, parecendo tão alta quanto o Everest.

 

Mike colocou a perna boa por baixo do corpo e se empurrou para cima, apoiando-se na beirada da bancada com a mão que não estava apertando o cinto. A boca estava repuxada em uma careta trêmula, os olhos estavam apertados. Ele acabou conseguindo se levantar completamente. Ele ficou ali de pé como uma cegonha e puxou o telefone para perto. Na lateral havia três números: bombeiros, polícia e hospital. Com um dedo trêmulo que parecia estar a 15 quilômetros de distância, Mike ligou para o hospital: 555-3711. Ele fechou os olhos quando o telefone começou a tocar... e arregalou-os quando a voz de Pennywise, o palhaço, atendeu.

 

— Oi, crioulo! — gritou Pennywise, depois gargalhou em tom tão agudo quanto vidro quebrado no ouvido de Mike. — O que tem de novo? Como você está? Acho que você está morto, e você, o que acha? Acho que Henry fez o trabalho dele com você! Quer um balão, Mikey? Quer um balão? Como está? Olá!

 

Mike virou os olhos para o relógio de piso, o relógio Mueller, e viu sem surpresa nenhuma que o mostrador tinha sido substituído pelo rosto do pai, cinzento e tomado pelo câncer. Os olhos estavam virados e mostrando apenas os brancos. De repente, o pai mostrou a língua, e o relógio começou a tocar.

 

Mike perdeu o apoio na bancada da recepção. Ele oscilou por um momento sobre a perna boa e caiu de novo. O telefone se balançou à frente dele pendurado na cordinha como um amuleto de hipnotizador. Estava ficando muito difícil segurar o cinto agora.

 

— Oi, Amos! — gritou Pennywise com alegria pelo fone balançando. — Aqui é eu, o Kingfish! Eu é o Kingfish em Derry, é verdade verdadeira. Você não acha, garoto?

 

— Se houver alguém aí — gemeu Mike —, uma voz de verdade por trás da que estou ouvindo, por favor, me ajude. Meu nome é Michael Hanlon e estou na Biblioteca Pública de Derry. Estou sangrando e vou morrer. Se você está aí, não consigo ouvir você. Não consigo ouvir você. Se você está aí, por favor, venha rápido.

 

Ele ficou deitado de lado e puxou as pernas até ficar em posição fetal. Deu duas voltas com o cinto na mão direita e se concentrou em puxar enquanto o mundo se afastava em nuvens cinzentas de algodão e balões.

 

— Oi, como você está? — gritou Pennywise do fone balançando. — Como está, pretinho imundo? Oi,

 

Rua Kansas — 12h20

 

— ... como vai? — disse Henry Bowers. — Como está, sua piranha?

 

Beverly reagiu instantaneamente e se virou para correr. Foi uma reação mais rápida do que qualquer um deles esperava. Ela talvez tivesse conseguido ganhar vantagem... se não fosse o cabelo. Henry a agarrou, pegou uma parte do comprimento e a puxou para trás. Ele sorriu na cara dela. O hálito dele estava denso, quente e fedido.

 

— Como vai? — perguntou Henry Bowers. — Onde está indo? Brincar mais com seus amigos babacas? Acho que vou cortar seu nariz e te fazer comer. O que você acha disso?

 

Ela lutou para se soltar. Henry riu e balançou a cabeça dela para a frente e para trás pelo cabelo. A faca brilhou perigosamente no sol de agosto.

 

Abruptamente, uma buzina de carro soou... longamente.

 

— Ei! Ei! O que vocês estão fazendo, garotos? Soltem a garota!

 

Era uma senhora atrás do volante de um bem cuidado Ford 1950. Ela encostou no meio-fio e estava inclinada sobre o assento coberto de uma manta para espiar pela janela do passageiro. Ao ver o rosto zangado e sincero dela, o olhar atordoado sumiu dos olhos de Victor Criss pela primeira vez e ele olhou com nervosismo para Henry.

 

— O que...?

 

— Por favor! — gritou Beverly em voz aguda. — Ele está com uma faca! Uma faca!

 

A raiva da velha senhora virou preocupação, surpresa e medo também.

 

— O que vocês estão fazendo? Deixem ela em paz!

 

Do outro lado da rua, Bev viu isso claramente, Herbert Ross se levantou da espreguiçadeira na varanda, se aproximou da amurada da varanda e olhou. O rosto estava vago como o de Arroto Huggins. Ele dobrou o jornal, se virou e entrou em casa sem falar nada.

 

— Deixem ela em paz! — gritou a velha senhora com voz aguda.

 

Henry mostrou os dentes e saiu correndo em direção ao carro, arrastando Beverly atrás pelo cabelo. Ela tropeçou, se apoiou em um joelho, foi arrastada. A dor no joelho foi excruciante, monstruosa. Ela sentiu algumas mechas de cabelo sendo arrancadas.

 

A velha senhora gritou e fechou a janela do passageiro freneticamente. Henry bateu com a faca, que deslizou no vidro. O pé da mulher soltou a embreagem do Ford e ele saiu pela rua Kansas em movimentos engasgados, subindo no meio-fio, onde parou. Henry foi atrás, ainda puxando Beverly junto. Victor lambeu os lábios e olhou ao redor. Arroto empurrou para trás o boné dos New York Yankees que estava usando e puxou a orelha em um gesto de incompreensão.

 

Bev viu o rosto branco e assustado da velha senhora por um momento, e a viu fechando as trancas das portas, primeiro do lado do passageiro, depois do dela. O motor do Ford gemeu e pegou. Henry levantou um pé calçando bota e chutou um farol traseiro.

 

— Sai daqui, sua puta velha e seca!

 

Os pneus cantaram quando a velha senhora saiu pela rua. Uma picape que se aproximava desviou para evitá-la; a buzina dela soou. Henry se virou para Bev de novo, começando a sorrir, e ela bateu com o pé calçado de tênis direto nas bolas dele.

 

O sorriso no rosto de Henry virou uma careta de dor. A faca caiu da mão dele e estalou na calçada. A outra mão soltou o ponto onde agarrava o cabelo dela (puxando mais uma vez, terrivelmente antes de soltar) e ele caiu de joelhos, tentando gritar, segurando a virilha. Ela conseguia ver fios do cabelo acobreado em uma das mãos dele, e naquele instante todo o pavor dela virou puro ódio. Ela inspirou fundo, puxou do fundo da garganta e lançou um escarro enorme na cabeça dele.

 

Em seguira, se virou e saiu correndo.

 

Arroto deu três passos atrás dela e parou. Ele e Victor foram até Henry, que os empurrou de lado e cambaleou até ficar de pé, com as duas mãos ainda em cima das bolas; não era a primeira vez naquele verão que ele levava um chute lá.

 

Ele se inclinou e pegou a faca.

 

— ... lá — ofegou ele.

 

— O quê, Henry? — disse Arroto com ansiedade.

 

Henry virou um rosto tão cheio de suor, dor e ódio fervente que Arroto deu um passo para trás.

 

— Eu disse... vamos... lá! — ele conseguiu dizer, e começou a cambalear e se arrastar pela rua atrás de Beverly, segurando a virilha.

 

— Não vamos conseguir pegar ela agora, Henry — disse Victor com desconforto. — Caramba, você nem consegue andar direito.

 

— A gente vai pegar ela — disse Henry, ofegante. O lábio superior estava subindo e descendo em uma expressão inconsciente que parecia de um cachorro rosnando. Havia gotas de suor na testa dele que escorriam pelas bochechas vermelhas. — A gente vai pegar ela sim. Porque sei pra onde ela está indo. Ela está indo pro Barrens, pra encontrar os babacas dos

 

Derry Town House — 2h

 

— ... amigos — disse Beverly.

 

— Hã? — Bill olhou para ela. Estava com os pensamentos distantes. Eles estavam andando de mãos dadas, com um silêncio companheiro entre os dois e levemente energizados com a atração mútua. Ele tinha ouvido só a última palavra do que ela falou. Um quarteirão depois, as luzes do Town House brilhavam pela névoa baixa.

 

— Eu falei que vocês eram meus melhores amigos. Os únicos amigos que tive naquela época. — Ela sorriu. — Fazer amigos nunca foi meu forte, eu acho, apesar de ter uma boa amiga em Chicago. Uma mulher chamada Kay McCall. Acho que você iria gostar dela, Bill.

 

— Provavelmente. Eu também nunca fiz amigos rapidamente. — Ele sorriu. — Naquela época, nós éramos tudo de que p-p-precisávamos. — Ele viu gotas de umidade no cabelo dela, apreciou a forma como as luzes formavam uma aura ao redor da cabeça dela. Os olhos dela estavam sérios e virados para os dele.

 

— Preciso de uma coisa agora — disse ela.

 

— De q-quê?

 

— Preciso que você me beije — disse ela.

 

Ele pensou em Audra, e pela primeira vez ocorreu a ele que ela se parecia com Beverly. Ele se perguntou se talvez tenha sido essa a atração o tempo todo, o motivo de ele ter arrumado coragem para convidar Audra para sair perto do final da festa de Hollywood em que eles se conheceram. Ele sentiu uma pontada de culpa infeliz... e tomou Beverly, sua amiga de infância, nos braços.

 

O beijo dela foi firme, quente e doce. Os seios se forçaram contra a jaqueta aberta, e os quadris se moveram contra ele... para longe... e de novo contra ele. Quando os quadris se afastaram uma segunda vez, ele enfiou as duas mãos no cabelo dela e se aproximou dela. Quando ela o sentiu ficando duro, deu um suspiro e colocou o rosto na lateral do pescoço dele. Ele sentiu as lágrimas dela na pele, quentes e secretas.

 

— Vamos lá — disse ela. — Rápido.

 

Ele segurou a mão dela e eles andaram o resto do caminho até o Town House. O saguão era velho, tomado de plantas, e ainda tinha um certo charme. A decoração era muito Lenhador do Século XIX. Estava deserto a essa hora exceto pelo funcionário da recepção, que podia ser visto no escritório com os pés sobre a mesa, vendo TV. Bill apertou o botão do terceiro andar com um dedo ligeiramente trêmulo. Excitação? Nervosismo? Culpa? Todos os anteriores? Ah, sim, claro, e uma espécie quase insana de alegria e medo também. Esses sentimentos não se misturavam de forma agradável, mas pareciam necessários. Ele a levou pelo corredor em direção ao quarto, decidindo de uma maneira confusa que, se era para ser infiel, o ato de infidelidade devia ser completo, consumado no apartamento dele, e não no dela. Ele se viu pensando em Susan Browne, sua primeira agente literária, quando ele não tinha nem 20 anos, sua primeira amante.

 

Traindo. Traindo minha esposa. Ele tentou tirar o pensamento da cabeça, mas ele parecia real e irreal ao mesmo tempo. O que parecia mais forte era uma sensação infeliz de saudade de casa: um sentimento antiquado de distanciamento. Audra estaria acordada agora, fazendo café, sentada à mesa da cozinha de roupão, talvez estudando as falas, talvez lendo um livro de Dick Francis.

 

A chave dele balançou na fechadura do quarto 311. Se eles tivessem ido para o quarto de Beverly no quinto andar, teriam visto a luz de mensagens no telefone dela piscando, o recepcionista vendo TV teria dado a ela a mensagem de que era para ela ligar para a amiga Kay em Chicago (depois da terceira ligação desesperada, ele finalmente se lembrou de anotar o recado), e as coisas poderiam ter tomado um rumo diferente. Os cinco poderiam não ser fugitivos da polícia de Derry quando o dia finalmente nascesse. Mas eles foram para o quarto dele, como talvez as coisas tivessem sido planejadas para acontecer.

 

A porta se abriu. Eles entraram. Ela olhou para ele com olhos brilhando, bochechas vermelhas, o peito subindo e descendo rapidamente. Ele a tomou nos braços, e ela foi dominada pela sensação de coisa certa, a sensação do círculo do passado e do presente se fechando de forma triunfante. Ele chutou a porta para fechá-la com um dos pés, desajeitado, e ela riu com o hálito quente na boca dele.

 

— Meu coração... — disse ela, e colocou a mão dele sobre o seio esquerdo. Ele conseguia senti-lo abaixo da maciez firme e quase enlouquecedora, disparado como um motor.

 

— Seu c-c-coração...

 

— Meu coração.

 

Eles estavam na cama, ainda vestidos, se beijando. A mão dela foi para dentro da camisa dele e voltou para fora. Ela passou o dedo pela fileira de botões, fez uma pausa na cintura... e o mesmo dedo foi mais para baixo, acompanhando a dureza grossa do pênis. Músculos que ele não conhecia pularam e tremeram na virilha. Ele interrompeu o beijo e afastou o corpo do dela na cama.

 

— Bill?

 

— Preciso p-p-parar por um m-m-minuto — disse ele. — Senão vou gozar na c-c-cueca como um m-moleque.

 

Ela riu de novo baixinho e olhou para ele.

 

— É isso mesmo? Ou você está em dúvida?

 

— Em dúvida — disse Bill. — S-S-Sempre tenho isso.

 

— Eu não. Eu odeio ele — disse ela.

 

Ele olhou para ela e o sorriso sumiu.

 

— Eu não sabia disso conscientemente até duas noites atrás — disse ela. — Ah, eu sabia em alguma parte de mim o tempo todo, eu acho. Ele bate e machuca. Eu me casei com ele porque... porque meu pai sempre se preocupava comigo, eu acho. Não importava o quanto eu tentasse, ele se preocupava. Ele se preocupava muito. E enquanto houvesse alguém se preocupando comigo, eu ficaria em segurança. Mais do que em segurança. Ficaria real. — Ela olhou para ele solenemente. A blusa tinha se soltado da cintura da calça, deixando uma parte branca da barriga à mostra. Ele queria beijar aquela barriga. — Mas não era real. Era um pesadelo. Ser casada com Tom era como voltar pro pesadelo. Por que uma pessoa faria isso, Bill? Por que uma pessoa voltaria pro pesadelo por vontade própria?

 

Bill disse:

 

— O ú-ú-único motivo em que consigo p-pensar é que as p-pessoas voltam para se e-encontrarem.

 

— O pesadelo é aqui — disse Bev. — O pesadelo é Derry. Tom parece pequeno em comparação. Consigo ver ele melhor agora. Eu me odeio pelos anos que passei com ele... Você não sabe... as coisas que ele me fez fazer, e, ah, eu ficava bem feliz em fazer essas coisas, sabe, porque ele se preocupava comigo. Eu chorava... mas às vezes tem vergonha demais. Entende?

 

— Não faça isso — disse ele baixinho, e colocou a mão sobre as dela. Ela a segurou com força. Os olhos estavam brilhando demais, mas as lágrimas não caíram. — Todo mundo f-f-faz besteira. Mas não é uma p-prova. A gente precisa seguir da m-m-melhor maneira que der.

 

— O que quero dizer — disse ela — é que não estou traindo Tom, nem tentando usar você pra me vingar dele, nem nada assim. Pra mim, seria uma coisa... sã, normal e doce. Mas não quero te magoar, Bill. Te levar a fazer uma coisa da qual você pode se arrepender depois.

 

Ele pensou sobre isso, pensou com seriedade profunda e real. Mas a frase estranha (ele soca postes, e assim por diante) começou a voltar e atrapalhar os pensamentos. O dia tinha sido longo. A ligação de Mike e o convite para almoçar no Jade do Oriente pareciam ter acontecido cem anos antes. Tantas histórias vieram depois. Tantas lembranças, como fotografias no álbum de George.

 

— Amigos não l-l-levam amigos a fazer c-coisas — disse ele, e se inclinou na direção dela na cama. Os lábios deles se tocaram, e ele começou a desabotoar a blusa dela. Uma das mãos dela foi para a nuca dele e o segurou bem próximo, enquanto a outra primeiro abriu o zíper da própria calça e a empurrou para baixo. Por um momento, a mão dele estava quente em sua barriga; no seguinte, a calcinha dela sumiu em um sussurro. Ele se aproximou ainda mais, e ela o guiou.

 

Quando ele a penetrou, ela arqueou as costas delicadamente na direção do movimento sexual e murmurou:

 

— Seja meu amigo... Eu te amo, Bill.

 

— Eu também te amo — disse ele, sorrindo contra o ombro nu dela. Eles começaram devagar, e ele sentiu o suor começando a fluir de sua pele enquanto ela acelerava embaixo dele. A consciência dele se deslocou para baixo e o foco passou a ser a ligação entre os dois. Os poros dela tinham se aberto e estavam exalando um delicioso aroma almiscarado.

 

Beverly sentiu o clímax se aproximando. Ela seguiu na direção dele, trabalhou para que ele chegasse e nunca duvidou que viria. Seu corpo tremeu de repente e pareceu saltar para o alto, não em um orgasmo, mas atingindo um platô bem acima de qualquer outro que ela tivesse alcançado com Tom ou os dois amantes que teve antes de Tom. Ela percebeu que isso não seria apenas um orgasmo; seria uma explosão nuclear. Sentiu um pouco de medo... mas seu corpo retomou o ritmo. Ela sentiu o comprimento de Bill endurecer contra ela e o corpo todo dele ficou tão duro quanto a parte dele dentro dela, e naquele mesmo momento ela atingiu o clímax, ou melhor, começou a atingir o clímax. Um prazer tão grande que era quase dor jorrou por comportas inesperadas, e ela mordeu o ombro dele para sufocar os gritos.

 

— Ah, meu Deus — ofegou Bill, e apesar de nunca conseguir ter certeza, ela teve a impressão de que ele estava chorando. Ele se afastou, e ela pensou que ele ia sair de dentro dela (ela tentou se preparar para aquele momento, que sempre trazia uma sensação fugidia e inexplicável de perda e vazio, algo como uma pegada), mas ele fez um movimento forte de penetração de novo. Na mesma hora, ela teve um segundo orgasmo, uma coisa que ela não sabia ser possível, e a janela da memória se abriu de novo e ela viu pássaros, milhares de pássaros descendo em todos os telhados e fios de telefone e caixas de correio em Derry, pássaros de primavera em um céu branco de abril, e havia dor misturada com o prazer, mas foi uma dor leve, como um céu branco de primavera parece leve. Uma dor física leve misturada com um leve prazer físico e uma sensação maluca de afirmação. Ela tinha sangrado... ela tinha... ela...

 

— Todos vocês? — gritou ela de repente, arregalando os olhos, perplexa.

 

Ele saiu de dentro dela desta vez, mas com o choque repentino da revelação, ela nem sentiu-o sair.

 

— O quê? Beverly? V-Você está b...?

 

— Todos vocês? Eu fiz amor com todos vocês?

 

Ela viu a surpresa chocada no rosto de Bill, o queixo caindo... e a compreensão repentina. Mas não era a revelação dela; mesmo com a sensação de choque, ela via isso. Era dele.

 

— Nós...

 

— Bill? O que é?

 

— Foi a s-s-sua maneira de nos t-tirar de lá — disse ele, e agora os olhos dele ardiam com tanta intensidade que ela ficou com medo. — Beverly, você n-n-não e-entende? Foi a s-s-sua maneira de nos tirar de lá! Todos nós... mas estávamos... — De repente, ele pareceu assustado, inseguro.

 

— Você se lembrou do resto agora? — perguntou ela.

 

Ele balançou a cabeça devagar.

 

— Não os d-d-detalhes. Mas... — Ele olhou para ela, e ela viu que ele estava com muito medo. — O que realmente a-a-aconteceu foi que nós d-d-desejamos sair. E não sei... Beverly, não sei se adultos são capazes de fazer isso.

 

Ela olhou para ele sem falar por um longo momento, depois se sentou na beirada da cama sem sentir vergonha nenhuma. Seu corpo era delicado e lindo, e a linha da espinha dorsal mal era discernível na escuridão quando ela se inclinou para tirar as meias de náilon até as coxas que estava usando. O cabelo era uma massa passada por cima de um ombro. Ele pensou que a desejaria de novo antes do amanhecer, e a sensação de culpa surgiu de novo, sufocada apenas pelo consolo envergonhado de que Audra estava a um oceano de distância. Coloque outra moeda na jukebox, pensou ele. Essa canção se chama “O Que Ela Não Souber Não Vai Magoá-la”. Mas magoa em alguma parte. Nos espaços entre as pessoas, talvez.

 

Beverly se levantou e puxou a coberta da cama.

 

— Venha para a cama. Precisamos dormir. Nós dois.

 

— T-T-Tudo bem. — Porque aquilo era o certo, era uma grande verdade. Mais do que qualquer outra coisa, ele queria dormir... mas não sozinho, não naquela noite. O choque mais recente estava se apagando, e rápido demais, talvez, mas ele estava tão cansado agora, tão exausto. A realidade segundo a segundo tinha jeito de sonho, e apesar da culpa, ele sentia que era um lugar seguro. Seria possível ficar deitado aqui por um tempo, dormir nos braços dela. Ele queria o calor e a amizade dela. Os dois estavam sexualmente energizados, mas isso não faria mal a nenhum deles agora.

 

Ele tirou as meias e a camisa e se deitou ao lado dela. Ela grudou nele, com os seios quentes e as longas pernas frias. Bill a abraçou, ciente das diferenças: o corpo dela era mais longo do que o de Audra, mais farto nos seios e nos quadris. Mas era um corpo bem-vindo.

 

Devia ser Ben com você, querida, pensou ele, sonolento. Acho que era assim que deveria ser. Por que não foi Ben?

 

Porque foi você antes e é você agora, só isso. Porque o que vai sempre volta. Acho que foi Bob Dylan quem disse isso... ou talvez Ronald Reagan. E talvez seja eu agora porque é Ben que tem que levar a dama para casa.

 

Beverly se contorceu contra ele, não de uma forma sexual (embora, mesmo enquanto ele resvalava para o sono, ela tenha ficado feliz ao sentir o membro dele tremer sobre a perna dela), mas só querendo o calor dele. Ela já estava meio adormecida. A felicidade dela aqui com ele, depois de todos aqueles anos, era real. Ela sabia disso por causa do sabor amargo por baixo. Havia esta noite, e talvez houvesse outra ocasião para eles na manhã seguinte. Depois eles iriam para o esgoto como já tinham ido antes e encontrariam a Coisa. O círculo se fecharia ainda mais, as vidas atuais se misturariam delicadamente com a infância e eles se tornariam como criaturas em uma tirinha doida de Moebius.

 

Ou isso, ou eles morreriam lá embaixo.

 

Ela se virou. Ele passou um braço pela lateral do corpo dela e aninhou delicadamente um seio. Ela não precisou despertar e se perguntar se aquela mão de repente daria um beliscão.

 

Os pensamentos dela começaram a sumir quando o sono tomou conta dela. Como sempre, ela viu estampas brilhantes de flores selvagens quando adormeceu, grandes amontoados balançando intensamente sob um céu azul. A imagem sumiu, e ela teve uma sensação de queda, do tipo que às vezes a despertava suando quando criança, com um grito pronto para sair. Ela tinha lido no livro de psicologia da faculdade que os sonhos infantis de queda eram uma coisa comum.

 

Mas ela não despertou desta vez; ela conseguia sentir o peso e o calor reconfortante do braço de Bill, com a mão aninhando o seio. Ela pensou que, se estava caindo, pelo menos não estava caindo sozinha.

 

E então, ela tocou no chão e saiu correndo. Este sonho, fosse lá o que fosse, se movia rápido. Ela correu atrás dele, seguindo o sono, o silêncio, talvez apenas o tempo. Os anos passaram rápido. Os anos correram. Se você se virasse e corresse atrás da sua infância, tinha que apertar o passo e correr de verdade. Vinte e nove, a idade em que ela fez mechas no cabelo (mais rápido). Vinte e dois, a idade em que ela se apaixonou por um jogador de futebol americano chamado Greg Mallory, que praticamente a estuprou depois de uma festa da fraternidade (mais rápido, mais rápido). Dezesseis, quando ela ficou bêbada com duas amigas no mirante de Bluebird Hill, em Portland. Catorze... doze...

 

... mais rápido, mais rápido, mais rápido...

 

Ela correu para o sono, correndo atrás dos 12 anos, pegando-os, correndo pela barreira da memória que a Coisa tinha lançado sobre eles (o gosto era de névoa fria nos pulmões esforçados do sonho), correndo de volta ao décimo primeiro ano, correndo, correndo como louca, correndo para vencer o diabo, olhando para trás agora, olhando para trás

 

Barrens — 12h40

 

por cima do ombro em busca de algum sinal deles enquanto descia escorregando pela margem. Não havia sinal, pelo menos ainda não. Ela tinha “acertado ele de jeito”, como o pai às vezes dizia... e só o fato de pensar no pai trouxe outra onda de culpa e tristeza para cima dela.

 

Ela olhou embaixo da ponte frágil na esperança de ver Silver presa na lateral, mas Silver não estava lá. Havia uma pilha de armas de brinquedo que eles não se davam mais ao trabalho de levar para casa e só. Ela começou a descer pelo caminho, olhou para trás... e ali estavam eles, Arroto e Victor sustentando Henry, de pé na beirada da descida como sentinelas indígenas em um filme de Randolph Scott. Henry estava horrivelmente pálido. Ele apontou para ela. Victor e Arroto começaram a ajudá-lo a descer. Terra e cascalho rolaram debaixo dos pés dele.

 

Beverly olhou para eles por um longo momento, quase hipnotizada. Em seguida, virou-se e correu pelo filete de água que corria por baixo da ponte, ignorando as pedras de Ben e espalhando água com os tênis. Ela correu pelo caminho com a respiração quente na garganta. Conseguia sentir os músculos da perna tremendo. Não tinha mais muita energia. A sede do clube. Se ela conseguisse chegar lá, talvez ficasse em segurança.

 

Ela correu pela trilha. Os galhos trouxeram ainda mais cor às bochechas dela, e um bateu no olho e o fez lacrimejar. Ela virou para a direita, passou no meio da vegetação e saiu em uma clareira. Tanto a portinhola camuflada quanto a janelinha estavam abertas; o som de rock-‘n’-roll saía lá de dentro. Ao ouvir a aproximação dela, Ben Hanscom botou a cabeça para fora. Ele estava com uma caixa de Junior Mints em uma das mãos e uma revistinha de Archie na outra.

 

Ele deu uma boa olhada em Bev e o queixo caiu. Em outras circunstâncias, teria sido quase engraçado.

 

— Bev, que diabos...

 

Ela não se deu ao trabalho de responder. Atrás dela, mas não muito atrás, ela conseguia ouvir galhos estalando e batendo; houve um palavrão gritado e meio abafado. Parecia que Henry estava ficando mais animado. Assim, ela correu para a abertura, com o cabelo voando, agora emaranhado com folhas verdes e galhos, assim como com a sujeira da passagem por baixo do caminhão de lixo.

 

Ben viu que ela ia pular como paraquedista e desapareceu tão rapidamente quanto apareceu. Beverly caiu, e ele a segurou, desajeitado.

 

— Fecha tudo — disse ela, ofegante. — Anda, Ben, pelo amor de Deus! Eles estão vindo!

 

— Quem?

 

— Henry e os amigos! Henry ficou maluco, está com uma faca...

 

Aquilo bastou para Ben. Ele largou a bala e a revistinha. Puxou a porta com um grunhido. A parte de cima estava coberta de terra e grama; a cola ainda estava segurando de forma incrível. Alguns pedaços tinham se soltado, mas só. Beverly ficou na ponta dos pés e fechou a janelinha. Eles ficaram na escuridão.

 

Ela tateou em busca de Ben, encontrou-o e o abraçou com força e pânico. Depois de um momento, ele a abraçou também. Eles estavam de joelhos. Com horror repentino, Beverly percebeu que o rádio de Richie ainda estava tocando em algum lugar na escuridão: Little Richard cantando “The Girl Can’t Help It”.

 

— Ben... o rádio... eles vão ouvir...

 

— Ah, Deus!

 

Ele a empurrou com um quadril volumoso e quase a derrubou na escuridão. Ela ouviu o rádio cair no chão. “A garota não consegue evitar que os homens parem e olhem”, disse Little Richard com o entusiasmo rouco de sempre. “Não consegue evitar!”, confirmou o coro, “A garota não consegue evitar!” Ben agora também estava ofegando. Eles pareciam um par de locomotivas a vapor. De repente, houve um estalo... e silêncio.

 

— Ah, merda — disse Ben. — Eu acabei de esmagar o rádio. Richie vai ter um treco.

 

Ele esticou a mão para ela no escuro. Ela sentiu a mão dele tocar um dos seios e afastar-se de repente, como se queimada. Ela tateou em busca dele, segurou a camisa e o puxou para perto.

 

— Beverly, o que...?

 

— Shhh!

 

Ele ficou em silêncio. Eles ficaram sentados juntos, com os braços ao redor um do outro, olhando para cima. A escuridão não era total; havia uma linha fina de luz em um dos lados da porta e três outras na janelinha. Uma das três era ampla o bastante para deixar entrar um raio de sol. Ela só podia rezar para que eles não vissem.

 

Ela conseguia ouvi-los se aproximando. A princípio, não conseguiu decifrar as palavras... mas depois, sim. Ela apertou Ben com mais força.

 

— Se ela tiver ido pros bambus, podemos encontrar as marcas dela com facilidade — disse Victor.

 

— Eles brincam por aqui — respondeu Henry. A voz dele estava tensa, as palavras surgiam em pequenas bufadas, como se com grande esforço. — Meleca Taliendo falou. E no dia da guerra de pedras, eles vieram daqui.

 

— É, eles brincam de armas, essas coisas — disse Arroto.

 

De repente, passos soaram bem acima deles; a tampa coberta de terra e grama vibrou. Terra caiu no rosto de Beverly, virado para cima. Um, dois, talvez os três estivessem de pé em cima do clube. Ela teve uma sensação de cólica na barriga; ela precisou apertar os dentes para não dar um grito. Ben colocou uma mão grande na lateral do rosto dela e o apertou contra seu braço enquanto olhava para cima, esperando para ver se eles descobririam... ou se já sabiam e só estavam de brincadeira.

 

— Eles têm um lugar — disse Henry. — Foi o que Meleca disse. Uma casa na árvore, sei lá. Eles chamam de clube.

 

— Por mim eles podem enfiar o clube no cu — disse Victor. Arroto deu uma gargalhada estridente ao ouvir isso.

 

Bum, bum, bum acima. A porta subiu e desceu mais desta vez. Eles acabariam reparando; o chão comum não balançava daquele jeito.

 

— Vamos olhar perto do rio — disse Henry. — Aposto que ela está lá.

 

— Tá — disse Victor.

 

Bum, bum. Eles estavam se afastando. Bev soltou um suspiro de alívio por entre dentes... e então, Henry disse:

 

— Você fica aqui e vigia o caminho, Arroto.

 

— Tudo bem — disse Arroto, e começou a andar de um lado para o outro, às vezes saindo de cima da porta, às vezes andando por ela. Mais terra caiu pela abertura. Ben e Beverly se olharam com rostos tensos e sujos. Bev percebeu que havia mais do que o cheiro de fumaça na sede do clube; um fedor suado com cheiro de lixo estava se espalhando também. Sou eu, pensou ela com consternação. Apesar do cheiro, ela abraçou Ben com mais força. O tamanho dele de repente pareceu muito bem-vindo, muito reconfortante, e ela ficou feliz de ele ter bastante corpo para ela abraçar. Ele talvez não passasse de um garoto gordo e medroso quando as férias começaram, mas era mais do que isso agora; assim como todos eles, ele também tinha mudado. Se Arroto os descobrisse ali embaixo, Ben talvez o surpreendesse.

 

— Por mim eles podem enfiar o clube no cu — disse Arroto, e riu. Uma risada de Arroto Huggins era um som baixo e parecido com o de um troll. — Enfiar o clube no cu. Essa foi boa. Foi bem engraçada.

 

Ela percebeu que o torso de Ben estava subindo e descendo em movimentos curtos e ligeiros; ele estava puxando ar para os pulmões e soltando em pequenas expirações. Por um momento alarmado, ela pensou que ele estivesse começando a chorar, mas olhou o rosto dele mais de perto e percebeu que ele estava lutando para não rir. Os olhos dele, vertendo lágrimas, se grudaram nos dela, se reviraram loucamente e se desviaram para o outro lado. Na luz fraca que entrava pelas aberturas ao redor da porta e da janelinha, ela conseguia ver que o rosto dele estava quase roxo pelo esforço.

 

— Eles podem enfiar o clube no cuzinho — disse Arroto, e se sentou pesadamente bem no meio da porta. Desta vez, ela tremeu de forma mais alarmante, e Bev ouviu um estalo baixo, mas ameaçador, vindo de um dos apoios. A cobertura foi feita para suportar os pedaços de terra de camuflagem em cima... mas não os 72 quilos adicionais do peso de Arroto Huggins.

 

Se ele não se levantar, vai cair no nosso colo, pensou Bev, e começou a sentir a mesma histeria de Ben. Ela estava tentando explodir para fora dela em gritos e zurros rançosos. Em pensamento, ela se viu empurrando a janelinha o bastante para enfiar a mão e dar um belo susto nas costas de Arroto Huggins, enquanto ele ficava ali sentado no sol da tarde, murmurando e rindo. Ela enfiou o rosto no peito de Ben em um esforço final para manter a gargalhada dentro de si.

 

— Shhh — sussurrou Ben. — Pelo amor de Deus, Bev... — Crrrrackk. Mais alto desta vez.

 

— Será que vai aguentar? — sussurrou ela.

 

— Pode ser, se ele não peidar — disse Ben, e um momento depois, Arroto soltou mesmo um, um estrondo alto e ressonante que pareceu durar pelo menos três segundos. Eles se abraçaram com mais força e abafaram as risadas desesperadas um do outro. A cabeça de Beverly doía tanto que ela achou que teria um derrame.

 

E então, baixinho, ela ouviu Henry gritar o nome de Arroto.

 

— O quê? — gritou Arroto, levantando-se com um empurrão e um baque que jogou mais terra em Ben e Beverly. — O quê, Henry?

 

Henry gritou alguma coisa em resposta; Beverly só conseguiu entender as palavras margem e arbustos.

 

— Tudo bem! — gritou Arroto, e os pés dele atravessaram a porta pela última vez. Houve um estalo final, bem mais alto, e uma lasca de madeira caiu no colo de Bev. Ela a pegou com assombro.

 

— Mais cinco minutos — disse Ben em um sussurro baixo. — Só teria sido preciso isso.

 

— Você ouviu quando ele soltou? — perguntou Beverly, começando a rir de novo.

 

— Parecia a Terceira Guerra Mundial — disse Ben, também começando a rir.

 

Foi um alívio poder rir sem se segurar, e eles gargalharam, mas tentaram fazer isso em sussurros.

 

Por fim, sem perceber que ia falar (e certamente não por ter qualquer importância discernível nessa situação), Beverly disse:

 

— Obrigada pelo poema, Ben.

 

Ben parou de rir na mesma hora e a olhou com seriedade e cautela. Ele tirou um lenço sujo do bolso de trás e limpou o rosto lentamente.

 

— Poema?

 

— O haicai. O haicai no cartão-postal. Você mandou, não foi?

 

— Não — disse Ben. — Não mandei haicai nenhum. Porque se um garoto como eu, um garoto gordo como eu, fizesse uma coisa assim, a garota provavelmente ia rir dele.

 

— Eu não ri. Achei lindo.

 

— Eu nunca ia conseguir escrever uma coisa linda. O Bill talvez. Não eu.

 

— Bill vai escrever — concordou ela. — Mas nunca vai escrever uma coisa bonita daquelas. Posso usar seu lenço?

 

Ele deu o lenço para ela, e ela começou a limpar o rosto da melhor maneira que conseguiu.

 

— Como você soube que fui eu? — perguntou ele por fim.

 

— Sei lá — disse ela. — Eu apenas soube.

 

A garganta de Ben trabalhou convulsivamente. Ele olhou para as mãos.

 

— Eu não quis dizer nada com ele.

 

Ela olhou para ele com seriedade.

 

— É melhor você não estar falando sério — disse ela. — Se você estiver, vai estragar muito meu dia, e vou te dizer que ele já está bem ruim.

 

Ele continuou a olhar para as mãos e falou com uma voz que ela mal conseguia ouvir.

 

— Bem, eu quero dizer que te amo, Beverly, mas não quero estragar nada.

 

— Não vai — disse ela, e o abraçou. — Preciso de todo amor que puder receber agora.

 

— Mas você gosta especialmente de Bill.

 

— Pode ser — disse ela —, mas isso não importa. Se a gente fosse adulto, talvez importasse um pouco. Mas gosto de vocês todos de uma forma especial. Vocês são os únicos amigos que eu tenho. Eu também te amo, Ben.

 

— Obrigado — disse ele. Ele fez uma pausa, se esforçou e falou. Até conseguiu olhar para ela quando falou. — Eu escrevi o poema.

 

Eles ficaram sentados sem dizer nada por um tempo. Beverly se sentiu segura. Protegida. As imagens do rosto do pai e da faca de Henry pareciam menos vívidas e ameaçadoras com eles sentados pertinho assim. Aquela sensação de proteção era difícil de definir e ela nem tentou, embora bem mais tarde ela fosse reconhecer a fonte da força: ela estava nos braços de um homem que morreria por ela sem hesitação nenhuma. Era um fato que ela simplesmente sabia. Estava no cheiro que saía dos poros dele, uma coisa primitiva à qual as glândulas dela podiam reagir.

 

— Os outros estavam voltando — disse Ben de repente. — E se eles forem pegos?

 

Ela se empertigou e percebeu que estava quase cochilando. Ela se lembrou de que Bill tinha convidado Mike Hanlon para almoçar na casa dele. Richie ia para a casa de Stan comer sanduíches. E Eddie tinha prometido trazer o tabuleiro de Parcheesi. Eles chegariam em pouco tempo, totalmente alheios ao fato de que Henry e os amigos estavam no Barrens.

 

— Temos que chegar até eles — disse Beverly. — Henry não está só atrás de mim.

 

— Se sairmos e eles voltarem...

 

— Sim, mas pelo menos a gente sabe que eles estão aqui. Bill e o resto do pessoal não sabem. Eddie não consegue nem correr, já quebraram o braço dele.

 

— Minha nossa senhora — disse Ben. — Acho que vamos ter que arriscar.

 

— É. — Ela engoliu em seco e olhou para o relógio. Era difícil ver na escuridão, mas ela achou que passava pouco das 13h. — Ben...

 

— O quê?

 

— Henry ficou mesmo maluco. Ele parece aquele garoto de Sementes da violência. Ele ia me matar e os outros dois iam ajudar.

 

— Ah, não — disse Ben. — Henry é maluco, mas não tão maluco. Ele é só...

 

— Só o quê? — disse Beverly. Ela pensou em Henry e Patrick no cemitério de automóveis no sol pesado. Nos olhos vazios de Henry.

 

Ben não respondeu. Ele estava pensando. As coisas tinham mudado, não? Quando você estava no meio das mudanças, era mais difícil percebê-las. Você tinha que recuar para enxergar... ou ao menos tinha que tentar. Quando as férias começaram, ele tinha medo de Henry, mas só porque Henry era maior e porque era um valentão, o tipo de garoto que pegaria um garoto do primeiro ano, daria uma chave de braço e o soltaria para ir embora chorando. Era só isso. Mas então ele marcou a barriga de Ben. Depois houve a guerra de pedras, e Henry jogou M-80s nas cabeças das pessoas. Dava para matar alguém com uma daquelas. Dava para matar alguém fácil. Ele começou a ficar diferente... assombrado, quase. Parecia que você sempre tinha que ficar alerta para ver se ele estava por perto, da mesma forma como você sempre tinha que estar alerta para tigres ou cobras venenosas se estivesse na selva. Mas você se acostumava; tanto que nem parecia mais estranho, só a forma como as coisas eram. Mas Henry era maluco, não era? Sim. Ben sabia disso no dia do começo das férias, mas se recusou a acreditar ou a lembrar. Não era o tipo de coisa em que você queria acreditar ou da qual queria se lembrar. E de repente um pensamento (um pensamento tão forte que foi quase uma certeza) surgiu na mente dele com toda a força, tão gelada quanto lama de outubro. A Coisa está usando Henry. Talvez os outros também, mas ela está usando eles por meio de Henry. E se isso for verdade, então ela provavelmente está certa. Não são só chaves de braço ou petelecos no pescoço durante o horário do estudo perto do final do dia enquanto a sra. Douglas lê o livro à mesa dela, não só um empurrão no parquinho que faz você cair e ralar o joelho. Se a Coisa está usando ele, então Henry vai usar a faca.

 

— Uma velha senhora viu eles tentando bater em mim — disse Beverly. — Henry foi pra cima dela. Ele quebrou o farol traseiro dela com um chute.

 

Isso alarmou Ben mais do que qualquer coisa. Ele entendeu instintivamente, como a maioria das crianças entendia, que eles viviam abaixo do campo de visão, e portanto do campo de pensamento, da maioria dos adultos. Quando um adulto estava caminhando pela rua, pensando seus pensamentos adultos sobre trabalho, compromissos e comprar carros ou qualquer outra coisa em que os adultos pensavam, ele nunca reparava nas crianças pulando amarelinha, brincando de armas, de chutar a lata ou de pique-esconde ou de pique-pega. Valentões como Henry conseguiam se safar quando machucavam outras crianças com frequência se tomassem cuidado de ficar abaixo da linha do campo de visão. No máximo, um adulto passando poderia dizer alguma coisa do tipo “Por que você não para com isso?”, para prosseguir caminhando sem ver se o valentão parou ou não. Assim, o valentão só precisava esperar que o adulto dobrasse a esquina... e podia continuar o que estava fazendo. Parecia que os adultos achavam que a vida de verdade só começava quando a pessoa tinha um metro e meio de altura.

 

Se Henry foi atrás de uma senhora, ele passou da linha que separava o campo de visão. E aquilo, mais do que qualquer outra coisa, sugeria a Ben que ele estava mesmo maluco.

 

Beverly viu a crença no rosto de Ben e sentiu o alívio tomar conta de si. Ela não teria que contar para ele que o sr. Ross simplesmente dobrou o jornal e entrou em casa. Ela não queria contar isso. Era assustador demais.

 

— Vamos pela rua Kansas — disse Ben, e abriu abruptamente a porta. — Prepare-se pra correr.

 

Ele ficou de pé na abertura e olhou ao redor. A clareira estava em silêncio. Ele conseguia ouvir o som do Kenduskeag ali perto, canto de pássaros, o ronco de um motor a diesel chegando no pátio de trens. Não ouviu mais nada, e isso o deixou desconfortável. Ele teria se sentido bem melhor se tivesse ouvido Henry, Victor e Arroto xingando enquanto andavam pela vegetação pesada ao lado do rio. Mas ele não conseguia ouvi-los.

 

— Vem — disse ele, e ajudou Beverly a subir. Ela também olhou ao redor com desconforto e empurrou o cabelo para trás com as mãos enquanto fazia uma careta pela textura oleosa dele.

 

Ele segurou a mão dela e eles passaram por uma área de arbustos na direção da rua Kansas.

 

— É melhor ficarmos fora do caminho.

 

— Não — disse ela. — Temos que ir rápido.

 

Ele assentiu.

 

— Tudo bem.

 

Eles chegaram ao caminho e começaram a ir na direção da rua Kansas. Uma vez, ela tropeçou em uma pedra no caminho e

 

Jardim do Seminário — 02h17

 

caiu pesadamente na calçada iluminada pela lua. Um grunhido saiu dele e um jorro de sangue saiu junto, espalhando-se no concreto rachado. Sob o luar, parecia preto como sangue de besouro. Henry olhou atordoado para o sangue por um tempo, depois ergueu a cabeça e olhou ao redor.

 

A rua Kansas estava mergulhada no silêncio da madrugada, com as casas fechadas e escuras exceto por algumas luzes noturnas.

 

Ah. Aqui havia uma grade de bueiro.

 

Um balão com uma carinha smiley estava preso a uma das barras de ferro. O balão balançava na brisa leve.

 

Henry ficou de pé novamente, com uma mão grudenta apertando a barriga. O crioulo o tinha acertado em cheio, mas Henry o acertou melhor. Acertou mesmo. No que dizia respeito ao crioulo, Henry sentia que estava numa boa.

 

— O garoto já era — murmurou Henry, e seguiu seu caminho cambaleante e trêmulo passando pelo balão. Sangue fresco brilhou em sua mão após jorrar da barriga. — O garoto está frito. Acabei com o mané. Vou acabar com todos eles. Vou ensinar a jogarem pedras.

 

O mundo estava existindo em ondas lentas bem grandes, como mostravam no começo de cada episódio de Havaí 5-0 na TV da ala dele

 

(prende eles, Danno, haha, a porra do Jack Lord era legal. A porra do Jack Lord era bem legal)

 

e Henry conseguia Henry conseguia Henry quase conseguia

 

(ouvir o som que aqueles garotos de Oahu faziam ao deslizar, surfar e sacudir

 

(sacudirsacudirsacudir

 

(a realidade do mundo. “Pipeline.” The Chantays. Se lembra de “Pipeline”? “Pipeline” era bem legal. “Wipe-Out”. Uma risada louca no começo. Parecia Patrick Hockstetter. Aquele veado de merda. Ele também já era, até onde eu)

 

ele estava com medo de ser

 

(que porra muito melhor do que legal, era DEMAIS, era DEMAIS PRA CARAMBA

 

(tudo bem Pipeline manda ver não recua agora meus garotos vão pegar uma onda e

 

(disparar

 

(disparardisparardisparar

 

(uma onda e surfar na calçada comigo

 

(a linha dispara no mundo mas mantenha)

 

um ouvido dentro da cabeça dele: ele ficava ouvindo aquele som estridente; um olho dentro da cabeça dele: ele ficava vendo a cabeça de Victor surgindo na ponta daquela mola, com pálpebras e bochechas e testa tatuados com rosetas de sangue.

 

Henry olhou vagamente para a esquerda e viu que as casas tinham sido substituídas por uma cerca viva alta e preta. Bem acima dela ficava a casa vitoriana estreita e sombria do Seminário Teológico. Nenhuma janela estava iluminada. O seminário formou sua última turma em junho de 1974. Ele fechou as portas naquele verão, e agora qualquer coisa que andasse ali dentro andava sozinha... e só com a permissão do clube tagarela de mulheres que se intitulava a Sociedade Histórica de Derry.

 

Ele chegou até o caminho que levava à porta da frente. Ela estava fechada com uma corrente pesada na qual havia uma placa de metal: PROPRIEDADE PARTICULAR PRESERVADA PELO DEPTO DE POLÍCIA DE DERRY.

 

Os pés de Henry se embolaram e ele caiu de novo com força na calçada. À frente, um carro entrou na rua Kansas vindo da Hawthorne. Os faróis iluminaram a rua. Henry lutou contra o brilho tempo o bastante para ver as luzes no alto: era uma viatura da polícia.

 

Ele rastejou por baixo da corrente e engatinhou para a esquerda, para ficar atrás da cerca viva. A sensação do orvalho noturno no rosto quente foi maravilhosa. Ele ficou deitado com o rosto para baixo, virando a cabeça para um lado e para o outro, molhando as bochechas, bebendo o que conseguia.

 

A viatura passou sem diminuir.

 

E então, de repente, as luzes de cima se acenderam e iluminaram a escuridão com pulsações azuis. Não havia necessidade da sirene nas ruas desertas, mas Henry ouviu o motor frear de repente. A borracha cantou no asfalto.

 

Pego, fui pego, balbuciou sua mente... mas então ele percebeu que o carro de polícia estava indo para longe dele, subindo a rua Kansas. Um momento depois o som dos infernos preencheu a noite e chegou até ele do sul. Ele imaginou um enorme gato preto sedoso pulando pela escuridão, só olhos verdes e corpo flexível, a Coisa em nova forma, indo atrás dele, indo comê-lo inteiro.

 

Pouco a pouco (e só quando a sirene começou a desaparecer), ele percebeu que era uma ambulância seguindo na mesma direção que a viatura tomou. Ele ficou tremendo na grama molhada, com frio agora, lutando

 

(polícia primo agito primo rock-and-roll temos galinhas no celeiro que celeiro meu)

 

para não vomitar. Ele tinha medo de que, se vomitasse, todas as suas entranhas saíssem... e ele ainda tinha cinco para pegar.

 

Ambulância e carro da polícia. Pra onde estão indo? Pra biblioteca, é claro. O crioulo. Mas vão chegar tarde demais. Eu acabei com ele. Podem desligar as sirenes, rapazes. Ele não vai ouvir. Está morto como uma cerca. Ele...

 

Mas será que estava?

 

Henry lambeu os lábios rachados com a língua árida. Se ele estivesse morto, não haveria sirene tocando na noite. A não ser que o crioulo tenha ligado. Então talvez, era apenas uma possibilidade, o crioulo não estivesse morto.

 

— Não — sussurrou Henry. Ele rolou até ficar de costas e olhou para o céu, para os bilhões de estrelas lá em cima. A Coisa tinha vindo de lá, ele sabia. De algum lugar naquele céu.

 

... a Coisa

 

(veio do espaço sideral com desejo por mulheres da Terra veio roubar todas as mulheres e estuprar todos os homens e aí Frank você não quer dizer roubar todos os homens e estuprar todas as mulheres quem é o dono desse show, idiota, você ou Jesse? Victor sempre falava isso e era bem)

 

veio dos espaços entre as estrelas. Olhar para aquele céu estrelado provocava arrepios nele: era grande demais, preto demais. Era bem possível imaginá-lo ficando vermelho-sangue, bem possível imaginar um rosto se formando em linhas de fogo...

 

Ele fechou os olhos, tremendo e segurando os braços cruzados sobre a barriga, e pensou: O crioulo está morto. Alguém ouviu a gente lutando e mandou a polícia pra investigar, só isso.

 

Então para que a ambulância?

 

— Cala a boca, cala a boca — gemeu Henry. Ele sentiu a velha raiva confusa de novo; ele se lembrou de como eles bateram nele repetidamente no passado, no passado que parecia tão perto e tão vital agora, que todas as vezes que ele acreditou que os tinha capturado, eles de alguma forma escorriam por entre os dedos dele. Foi assim no último dia, depois que Arroto viu a vadia correndo pela rua Kansas na direção do Barrens. Ele se lembrava disso, ah, sim, ele lembrava claramente. Quando você levava um chute nas bolas, você lembrava. Aconteceu com ele repetidas vezes naquele verão.

 

Henry lutou para se sentar e fez uma careta pela dor profunda na barriga.

 

Victor e Arroto o ajudaram no Barrens. Ele andou o mais rápido que conseguiu apesar da dor que repuxava e revirava sua virilha e a base da barriga. Tinha chegado a hora de acabar com tudo. Eles tinham seguido o caminho até uma clareira da qual cinco ou seis caminhos irradiavam como partes de uma teia. Sim, houvera crianças brincando ali; não era preciso ser Tonto para ver isso. Havia papéis de bala, restos de balas de ar comprimido disparadas, vermelhas e pretas. Algumas tábuas e áreas com serragem, como se alguma coisa tivesse sido construída ali.

 

Ele se lembrava de ficar de pé no centro da clareira e observar as árvores em busca da casa na árvore dos bebês. Ele a veria e subiria, e a garota estaria escondida ali, e ele usaria a faca para cortar a garganta dela e sentir os peitinhos gostosos até eles pararem de se mexer.

 

Mas ele não conseguiu ver nenhuma casa na árvore; Victor e Arroto também não. A velha frustração familiar subiu pela garganta dele. Ele e Victor deixaram Arroto cuidando da clareira enquanto desciam até o rio. Mas também não havia sinal dela lá. Ele se lembrava de se inclinar e pegar uma pedra e

 

Barrens — 12h55

 

jogar longe no rio, furioso e perplexo.

 

— Pra onde ela foi, porra? — perguntou ele, virando-se na direção de Victor.

 

Victor balançou a cabeça devagar.

 

— Não sei — disse ele. — Você está sangrando.

 

Henry olhou para baixo e viu um ponto vermelho do tamanho de uma moeda de 25 centavos no frente da calça jeans. A dor tinha virado um latejar suave, mas a cueca parecia pequena e apertada demais. As bolas estavam inchando. Ele sentiu a raiva dentro de si de novo, algo como uma corda amarrada no coração. Ela tinha feito isso.

 

— Onde ela está? — sibilou ele para Victor.

 

— Não sei — disse Victor de novo com o mesmo tom de voz. Ele parecia hipnotizado, com insolação, não exatamente presente. — Fugiu, eu acho. Ela já poderia estar em Old Cape a essa altura.

 

— Não está — disse Henry. — Está escondida. Eles têm um lugar e ela se escondeu aqui. Talvez não seja uma casa na árvore. Talvez seja outra coisa.

 

— O quê?

 

— Eu... não... sei! — gritou Henry, e Victor se encolheu.

 

Henry ficou de pé no Kenduskeag, com a água fria borbulhando por cima dos tênis, olhando ao redor. Os olhos se fixaram em um cilindro que saía da terra uns 6 metros rio abaixo, uma estação de bombeamento. Ele saiu da água e andou até lá, sentindo uma espécie de medo necessário tomar conta dele. Sua pele parecia estar ficando apertada, seus olhos se arregalaram de forma que pudessem conseguir ver mais e mais; parecia que ele conseguia sentir os pelinhos nas orelhas tremendo e se movendo como algas submarinas no movimento da maré.

 

Um zumbido baixo saía da estação de bombeamento, e mais para a frente ele conseguia ver um cano saindo da terra por cima do Kenduskeag. Um fluxo contínuo de lodo saía do cano e caía na água.

 

Ele se inclinou por cima da tampa de ferro redonda do cilindro.

 

— Henry? — disse Victor com nervosismo. — Henry? O que você está fazendo?

 

Henry não prestou atenção. Ele colocou um olho em um dos buracos redondos no ferro e não viu nada além de escuridão. Depois, colocou a orelha.

 

— Espere...

 

A voz chegou a ele vinda da escuridão lá embaixo, e Henry sentiu sua temperatura interior despencar para zero, suas veias e artérias se congelarem em tubos de cristais de gelo. Mas com essas sensações veio um sentimento quase desconhecido: amor. Seus olhos se arregalaram. Um sorriso de palhaço se espalhou nos lábios em um arco relaxado. Era a voz da lua. Agora a Coisa estava na estação de bombeamento... lá nos esgotos.

 

— Espere... Observe...

 

Ele esperou, mas não houve mais nada: só o som regular e soporífero do maquinário de bombeamento. Ele andou até onde Victor estava na margem, observando-o com atenção. Henry o ignorou e gritou para chamar Arroto. Em pouco tempo, Arroto chegou.

 

— Vem — disse ele.

 

— O que a gente vai fazer, Henry? — perguntou Arroto.

 

— Esperar. Observar.

 

Eles voltaram até a clareira e se sentaram. Henry tentou puxar a cueca de cima das bolas doloridas, mas doeu demais.

 

— Henry, o que... — começou Arroto.

 

— Shhh!

 

Arroto obedeceu e ficou em silêncio. Henry tinha cigarros Camel, mas decidiu não fumar. Ele não queria que a puta sentisse cheiro de fumaça de cigarro se estivesse por perto. Ele poderia ter explicado, mas não havia necessidade. A voz só disse duas palavras para ele, mas elas pareceram explicar tudo. Eles brincavam aqui. Em pouco tempo, os outros voltariam. Por que pegar só a putinha se ele podia pegar os sete merdinhas?

 

Eles esperaram e observaram. Victor e Arroto pareceram ter adormecido de olhos abertos. Não foi uma longa espera, mas houve tempo para Henry pensar em muitas coisas. Como encontrou a faca naquela manhã, por exemplo. Não era a mesma que ele tinha no último dia de aula; ele tinha perdido aquela em algum lugar. Essa era mais legal.

 

Chegou pelo correio.

 

Mais ou menos.

 

Ele ficou de pé na varanda olhando a caixa inclinada e velha de correspondência, tentando entender o que estava vendo. A caixa estava decorada com balões. Dois estavam amarrados ao gancho de metal em que o carteiro às vezes pendurava os pacotes; os outros estavam amarrados à bandeira. Vermelho, amarelo, azul, verde. Parecia que um circo estranho tinha passado pela rua Witcham na calada da noite e deixou aquele sinal.

 

Quando ele se aproximou da caixa, viu que havia rostos nos balões, os rostos das crianças que o infernizaram durante todo o verão, as crianças que pareciam debochar dele a cada oportunidade.

 

Ele olhou boquiaberto para aquelas aparições, e os balões estouraram, um a um. Isso foi bom; foi como se ele os tivesse fazendo estourar só de pensar, matando-os com o pensamento.

 

A parte da frente da caixa de correspondência se abriu de repente. Henry andou até ela e olhou dentro. Apesar de o carteiro só chegar na rua dele no meio da tarde, Henry não ficou surpreso ao ver um pacote retangular e achatado lá dentro. Ele o tirou. SR. HENRY BOWERS, RFD Nº 2, DERRY, MAINE, dizia o espaço do destinatário. Havia até uma espécie de endereço de remetente: SR. ROBERT GRAY, DERRY, MAINE.

 

Ele abriu o pacote e deixou o papel pardo cair aos seus pés. Havia uma caixa branca dentro. Ele a abriu. Em uma camada de algodão branco, estava a faca com mecanismo automático de ejeção da lâmina. Ele a levou para dentro de casa.

 

O pai estava deitado no colchão no quarto que eles compartilhavam, cercado de latas de cerveja vazias, com a barriga inchada por cima do elástico da cueca amarela. Henry se ajoelhou ao lado dele, ouviu o ronco e o tremor na respiração do pai e observou os lábios de cavalo do pai se repuxarem e inflarem a cada movimento de ar.

 

Henry colocou o lado da faca com a abertura da lâmina no pescoço do pai. O pai se mexeu um pouco e voltou ao sono embriagado. Henry manteve a faca na mesma posição por cinco minutos, com olhos distantes e pensativos, a ponta do polegar esquerdo acariciando o botão prateado que ficava no cabo. A voz da lua falou com ele. Ela sussurrou como o vento de primavera que é quente, mas tem um toque frio no meio, zumbiu como um ninho cheio de vespas furiosas, discursou como um político rouco.

 

Tudo que a voz disse pareceu bem legal a Henry, então ele apertou o botão de prata. Houve um clique dentro da faca quando a mola soltou a lâmina, e 15 centímetros de aço entraram no pescoço de Butch Bowers. Entrou com a mesma facilidade que os dentes de um garfo no peito de um frango bem assado. A ponta da faca saiu do outro lado, pingando.

 

Os olhos de Butch se abriram. Ele olhou para o teto. Sua boca se abriu. Sangue escorreu pelos cantos e pelas bochechas até os lóbulos das orelhas. Ele começou a gorgolejar. Uma bolha grande de sangue se formou entre os lábios frouxos e estourou. Uma das mãos dele foi até o joelho de Henry e apertou convulsivamente. Henry não se importou. A mão imediatamente soltou. Os barulhos gorgolejantes pararam um momento depois. Butch Bowers estava morto.

 

Henry tirou a faca, limpou no lençol sujo que cobria o colchão do pai e empurrou a lâmina até a mola fazer um clique. Ele olhou para o pai sem muito interesse. A voz contou para ele sobre o trabalho do dia enquanto ele estava ajoelhado ao lado de Butch com a faca no pescoço de Butch. A voz explicou tudo. Assim, ele foi para o outro aposento ligar para Arroto e Victor.

 

Agora eles estavam todos aqui, os três, e embora suas bolas ainda doessem horrivelmente, a faca fazia um volume reconfortante no bolso esquerdo da frente da calça. Ele sentiu que a hora de cortar chegaria logo. Os outros voltariam para retomar as brincadeiras de bebê, e então chegaria a hora de cortar. A voz da lua explicou para ele enquanto ele estava ajoelhado ao lado do pai, e a caminho da cidade ele não conseguiu tirar os olhos daquele disco-fantasma pálido no céu. Ele viu que havia mesmo um homem na lua, um rosto-fantasma apavorante e cintilante com buracos de crateras no lugar dos olhos e um sorriso fino que parecia chegar até metade das bochechas. Ele falou

 

(nós flutuamos aqui embaixo Henry todos nós flutuamos você também vai flutuar)

 

durante todo o caminho até a cidade. Mata eles todos, Henry, disse a voz-fantasma da lua, e Henry conseguia entender; Henry sentia que conseguia compartilhar essa emoção. Ele mataria todos, seus atormentadores, e então aqueles sentimentos sumiriam, aqueles sentimentos de que ele estava perdendo a cabeça, de que estava chegando inexoravelmente em um mundo maior que ele não seria capaz de dominar como havia dominado o parquinho na Escola Derry, que no mundo maior o gordo, o crioulo e o gago bizarro poderiam ficar maiores enquanto ele de alguma forma só ficaria mais velho.

 

Ele mataria todos eles, e as vozes (as dentro dele e as que falavam com ele da lua) o deixariam em paz. Ele os mataria e voltaria para casa e se sentaria na varanda de trás com a espada japonesa de souvenir do pai no colo. Ele beberia uma das cervejas Rheingold do pai. Também ouviria o rádio, mas nada de beisebol. Beisebol era uma coisa muito quadrada. Ele ouviria rock-and-roll. Apesar de Henry não saber (e de que não ligaria se soubesse), naquele assunto, ele e os Otários concordavam: o rock-and-roll era muito legal. Temos galinhas no celeiro, celeiro de quem, que celeiro, meu celeiro. Tudo ficaria bem então; tudo ficaria joia; tudo ficaria belezinha, e qualquer coisa que viesse depois não importaria. A voz cuidaria dele, ele sentia isso. Se você cuidasse da Coisa, a Coisa cuidava de você. As coisas sempre foram assim em Derry.

 

Mas as crianças tinham que ser impedidas, impedidas logo, impedidas hoje. A voz disse isso para ele.

 

Henry tirou a nova faca do bolso, olhou para ela, virou-a para um lado e para outro e admirou a forma como o sol piscou e deslizou pela parte cromada. E então, Arroto agarrou o braço dele e sibilou:

 

— Olha aquilo, Henry! Jesus do céu! Olha aquilo!

 

Henry olhou e sentiu a luz clara da compreensão tomar conta dele. Uma área quadrada da clareira estava se elevando como se por magia, revelando uma escuridão crescente embaixo. Por um momento, ele sentiu uma pontada de terror, quando ocorreu a ele que poderia ser o dono da voz... pois sem dúvida a Coisa morava em algum lugar embaixo da cidade. Mas ele ouviu o gemer de terra em dobradiças e entendeu. Eles não viram a casa na árvore porque ela não existia.

 

— Por Deus, a gente estava de pé bem em cima deles — resmungou Victor, e quando a cabeça e os ombros de Ben surgiram no quadrado no centro da clareira, ele ameaçou sair correndo. Henry o segurou e puxou para trás.

 

— A gente não vai pegar eles, Henry? — perguntou Victor quando Ben se levantou.

 

— Vamos pegar, sim — disse Henry sem tirar os olhos do gordo odiado. Outro chutador de bolas. Vou chutar suas bolas com tanta força que você vai poder usar elas de brincos, seu merda gordo. Espera pra ver. — Não se preocupe.

 

O gordo estava ajudando a putinha a sair do buraco. Ela olhou ao redor em dúvida, e por um momento Henry acreditou que ela olhou diretamente para ele. Mas os olhos dela prosseguiram. Os dois murmuraram alguma coisa, entraram na vegetação e sumiram.

 

— Venham — disse Henry, quando o som de galhos estalando e folhas em movimento ficou quase inaudível. — Vamos atrás deles. Mas fiquem longe e em silêncio. Quero todos juntos.

 

Os três atravessaram a clareira como soldados em patrulha, agachados, com os olhos arregalados e em movimento. Arroto fez uma pausa para olhar para baixo, para a sede do clube, e balançou a cabeça de surpresa e admiração.

 

— Sentado bem em cima da cabeça deles, eu estava — disse ele.

 

Henry fez um sinal impaciente para ele andar.

 

Eles seguiram o caminho porque era mais silencioso. Eles estavam na metade do caminho até a rua Kansas quando a putinha e o gordo, de mãos dadas (Não é fofo?, pensou Henry em uma espécie de êxtase), surgiram quase diretamente na frente deles.

 

Por sorte, eles estavam de costas para o grupo de Henry, e nenhum dos dois olhou para trás. Henry, Victor e Arroto ficaram paralisados e depois se recolheram às sombras nas laterais do caminho. Em pouco tempo, Ben e Beverly eram apenas duas camisas vistas por um emaranhado de arbustos e galhos. Os três começaram a segui-los de novo... com cautela. Henry tirou a faca do bolso de novo e

 

Henry pega uma carona — 2h30

 

apertou o botão de cromo no cabo. A lâmina saltou para fora. Ele olhou para ela com ar sonhador sob o luar. Ele gostava da forma como a luz percorria a lâmina. Não fazia ideia de que horas eram. Ele estava resvalando entre realidade e sonho agora.

 

Um som invadiu sua percepção e começou a crescer. Era o motor de um carro. Foi se aproximando. Henry arregalou os olhos no escuro. Ele apertou a faca com mais força e esperou o carro passar.

 

O carro não passou. Parou no meio-fio atrás da cerca do seminário e ficou ali, com o motor ligado. Fazendo uma careta (a barriga estava endurecendo agora; estava dura como uma tábua, e o sangue escorrendo lentamente entre os dedos dele tinha a consistência de seiva pouco antes de você tirar os extratores dos bordos no final de março ou começo de abril), ele ficou de joelhos e empurrou os galhos rígidos da cerca viva. Ele conseguia ver os faróis e a forma de um carro. Polícia? A mão dele apertou a faca e relaxou, apertou e relaxou, apertou e relaxou.

 

Mandei uma carona pra você, sussurrou a voz. Um tipo de táxi, se é que você consegue entender. Afinal, temos que levar você pro Town House rapidinho. A noite está passando.

 

A voz deu uma risadinha crua e ficou em silêncio. Agora os únicos sons eram os grilos e o ronco constante do carro parado. Parecem ter silenciadores Cherry Bomb, pensou Henry distraidamente.

 

Ele ficou de pé com dificuldade e foi até a calçada em frente ao seminário. Olhou para o carro. Não era uma viatura: não tinha luzes no alto e o formato era outro. O formato era... velho.

 

Henry ouviu aquela risadinha de novo... ou talvez tenha sido só o vento.

 

Ele saiu da sombra da cerca, passou por baixo da corrente, ficou de pé de novo e começou a andar na direção do carro parado, que existia em um mundo branco e preto de foto de Polaroid com luar claro e sombras impenetráveis. Henry estava um desastre: a camisa estava preta de sangue, que tinha escorrido pela calça jeans até quase os joelhos. O rosto era uma mancha branca debaixo de um corte de cabelo curto de instituição.

 

Ele chegou à interseção do caminho do seminário e a calçada e olhou para o carro, tentando entender o volume atrás do volante. Mas foi o carro que ele reconheceu primeiro, era o que o pai sempre jurava que teria um dia, um Plymouth Fury 1958. Era vermelho e branco, e Henry sabia (o pai não tinha contado para ele repetidas vezes?) que o motor roncando por baixo do capô era um V-8 327. A potência era de 255, capaz de chegar a 110 quilômetros por hora em uns nove segundos e queimava gasolina no carburador de quatro cilindros. Vou comprar esse carro, e quando eu morrer, podem me enterrar nele, Butch gostava de dizer... só que, é claro, ele nunca comprou o carro, e o estado o enterrou depois que Henry foi levado para o manicômio, delirando e gritando sobre monstros.

 

Se for ele lá dentro, acho que não consigo suportar, pensou Henry enquanto apertava a faca, se balançava para a frente e para trás como um bêbado e olhava para a forma atrás do volante.

 

A porta do passageiro do Fury se abriu, a luz interna se acendeu e o motorista se virou para olhar para ele. Era Arroto Huggins. O rosto dele estava uma ruína. Um dos olhos tinha sumido, e um buraco podre na bochecha com textura de papel deixava dentes pretos à mostra. Na cabeça de Arroto estava o boné do New York Yankees que ele usava no dia em que morreu. Estava virado para trás. Mofo cinza-esverdeado cobria a aba.

 

— Arroto! — gritou Henry, e a dor subiu da barriga, fazendo-o gritar de novo sem dizer nada específico.

 

Os lábios mortos de Arroto se esticaram em um sorriso, abrindo-se em dobras branco-acinzentadas sem sangue. Ele levantou a mão retorcida na direção da porta em um convite.

 

Henry hesitou, mas andou até a grade dianteira do Fury, tocando com a mão o emblema em forma de V que ficava ali, assim como sempre tinha feito nas ocasiões em que o pai o levava para o showroom em Bangor quando ele era criança, para olhar o mesmo carro. Ao chegar ao lado do passageiro, sua visão ficou cinza em uma onda suave e ele precisou se segurar na porta aberta para não cair. Ele ficou ali com a cabeça baixa, respirando com dificuldade. Por fim, o mundo retomou suas cores, ao menos em parte, e ele conseguiu contornar a porta e cair no banco. A dor repuxou suas entranhas de novo, e sangue fresco jorrou pela mão dele. Parecia geleia quente. Ele encostou a cabeça, trincou os dentes, e os tendões em seu pescoço saltaram. Por fim, a dor começou a diminuir um pouco.

 

A porta se fechou sozinha. A luz interior se apagou. Henry viu uma das mãos podres de Arroto se fechar sobre o câmbio e engatar. Os nós brancos dos dedos de Arroto cintilavam pela carne podre das mãos.

 

O Fury começou a percorrer a rua Kansas na direção da colina Up-Mile.

 

— Como você está, Arroto? — Henry se ouviu dizer. Era burrice, é claro; Arroto não podia estar aqui, pessoas mortas não podiam dirigir carros. Mas foi a única coisa em que ele conseguiu pensar.

 

Arroto não respondeu. O olho afundado observava a rua. Os dentes brilhavam de forma doentia para Henry pelo buraco na bochecha. Henry percebeu vagamente que o velho Arroto tinha um cheiro bem intenso. Na verdade, o velho Arroto tinha cheiro de um cesto de tomates que estragou e ficou aguado.

 

O porta-luvas se abriu e bateu nos joelhos de Henry, e na luz da pequena lâmpada lá dentro ele viu uma garrafa pela metade de Texas Driver. Ele a pegou, abriu e tomou um grande gole. Desceu como seda e bateu em seu estômago como uma explosão de lava. Ele tremeu todo, gemendo... e começou a se sentir um pouco melhor, um pouco mais conectado ao mundo.

 

— Obrigado — disse ele.

 

A cabeça de Arroto se virou na direção dele. Henry conseguiu ouvir os tendões no pescoço de Arroto; o som foi como o grito de dobradiças enferrujadas em uma porta de tela. Arroto observou-o por um momento com um olho único morto, e Henry percebeu pela primeira vez que quase todo o nariz dele não existia mais. Parecia que alguma coisa tinha arrancado o nariz do velho Arroto. Um cachorro, talvez. Ou quem sabe ratos. Parecia mais provável que tivessem sido ratos. Os túneis pelos quais eles tinham corrido atrás dos garotos naquele dia estavam cheios de ratos.

 

Deslocando-se lentamente, a cabeça de Arroto virou-se para a rua de novo. Henry ficou feliz. O velho Arroto olhando para ele daquele jeito, bem, Henry não conseguiu apreciar muito. Tinha alguma coisa no único olho de Arroto. Reprovação? Raiva? O quê?

 

Tem um garoto morto atrás do volante deste carro.

 

Henry olhou para o próprio braço e viu a pele toda arrepiada. Ele rapidamente tomou outro gole da garrafa. Esse segundo desceu um pouco melhor e espalhou mais o calor.

 

O Plymouth deslizou pela colina Up-Mile e contornou o círculo no sentido anti-horário... só que nessa hora da noite, não havia trânsito; todos os sinais de trânsito tinham passado a piscar em amarelo iluminando as ruas vazias e os prédios da área com pulsações regulares de luz. Estava tão silencioso que Henry conseguia ouvir os cliques dentro de cada sinal... ou será que era sua imaginação?

 

— Eu não pretendia largar você naquele dia, Arroto — disse Henry. — Pro caso de isso ter passado pela sua cabeça, sabe?

 

Aquele grito de tendões ressecados soou de novo. Arroto olhou para ele de novo com o olho afundado. E seus lábios se esticaram em um sorriso terrível que revelou gengivas cinza-enegrecidas que tinham sua própria cultura de mofo de jardim. Que tipo de sorriso é esse?, Henry se perguntou enquanto o carro deslizava delicadamente pela rua Main, passando pela Freese’s de um lado, pela Lanchonete Nan’s e pelo Cinema Aladdin do outro. É um sorriso de perdão? Um sorriso de velhos camaradas? Ou é o tipo de sorriso que diz vou te pegar, Henry, vou te pegar por me largar e largar Vic? Que tipo de sorriso?

 

— Você precisa entender como foi — disse Henry, e parou. Como foi? Tudo estava confuso em sua mente, com pedaços misturados como peças de um quebra-cabeça que acabou de ser espalhado sobre uma das mesas vagabundas de cartas na sala de recreação de Juniper Hill. Como foi exatamente? Eles seguiram o gordo e a putinha até a rua Kansas e esperaram nos arbustos, observando-os subirem a ladeira até o alto. Se eles tivessem desaparecido, ele, Victor e Arroto teriam deixado o jogo de tocaia de lado e ido atrás dos dois; dois era melhor do que nenhum, e o resto chegaria a qualquer momento.

 

Mas eles não desapareceram. Apenas se encostaram na cerca, conversando e observando a rua. De vez em quando, eles olhavam para a ladeira que levava ao Barrens, mas Henry manteve sua tropa bem escondida.

 

Henry lembrava que o céu estava nublado, com nuvens chegando do leste e o ar ficando denso. Haveria chuva naquela tarde.

 

O que aconteceu depois? O que...?

 

Uma mão ossuda e com textura de couro se fechou em seu antebraço, e Henry gritou. Ele estava resvalando de novo para aquele mundo cinzento de algodão, mas o toque horrível de Arroto e a pontada de dor na barriga causada pelo grito o trouxeram de volta. Ele olhou para o lado, e o rosto de Arroto estava a menos de 5 centímetros do de Henry; ele inspirou fundo e desejou não ter feito isso. O velho Arroto realmente estava podre. Henry lembrou-se de novo de tomates estragando em um canto escuro de depósito. Seu estômago se revirou.

 

Ele se lembrou de repente do final, ao menos do que foi o final para Arroto e Vic. Que uma coisa saiu da escuridão enquanto eles estavam em um túnel com uma grade de esgoto acima, perguntando-se que caminho tomar. Alguma coisa... Henry não conseguiu identificar o quê. Até que Victor gritou: “Frankenstein! É o Frankenstein!” E era mesmo, era o monstro Frankenstein, com parafusos no pescoço e uma enorme cicatriz de pontos na testa, andando arrastado com sapatos como blocos de criança.

 

— Frankenstein! — gritou Vic. — Fr...

 

E então, a cabeça de Vic sumiu, a cabeça de Vic estava voando pelo túnel até atingir a parede de pedras do outro lado com um baque desagradável e grudento. Os olhos aguados e amarelos do monstro se dirigiram a Henry, e Henry congelou. Sua bexiga afrouxou, e ele sentiu o fluxo quente escorrendo pelas pernas.

 

A criatura andou na direção dele, e Arroto... Arroto...

 

— Olha, eu sei que saí correndo — disse Henry. — Eu não devia ter feito isso. Mas... mas...

 

Arroto só ficou olhando.

 

— Eu me perdi — sussurrou Henry, como se para contar para o velho Arroto que ele também pagou o preço. Pareceu um argumento fraco, como dizer É, eu sei que você morreu, Arroto, mas acabei com uma porra de farpa debaixo da unha. Mas foi ruim... muito ruim. Ele vagou em um mundo de escuridão fedorenta durante horas, e por fim lembrou e começou a gritar. Em algum ponto, ele caiu (foi uma queda longa e vertiginosa, na qual ele teve tempo de pensar Ah, que bom, em um minuto vou estar morto, vou estar fora disso), mas logo estava em água corrente. Debaixo do Canal, supunha ele. Ele saiu na luz do sol, se debateu até a margem e saiu do Kenduskeag a menos de 50 metros do local em que Adrian Mellon se afogaria 26 anos depois. Ele escorregou, caiu, bateu a cabeça, apagou. Quando acordou, já estava escuro. Ele conseguiu chegar à autoestrada 2 e pediu carona para ir para casa. E os policiais estavam esperando por ele.

 

Mas aquilo foi outra época, agora era diferente. Arroto entrou na frente do monstro Frankenstein, que arrancou o lado esquerdo do rosto dele até o crânio, e isso foi tudo que Henry viu antes de fugir. Mas agora Arroto estava de volta, e apontando para alguma coisa.

 

Henry viu que eles tinham parado em frente ao Derry Town House e de repente entendeu perfeitamente. O Town House era o único hotel de verdade que tinha sobrado em Derry. Em 1958, havia também o Eastern Star no final da rua Exchange, e o Traveller’s Rest na rua Torrault. Os dois desapareceram durante a reforma urbana (Henry sabia tudo sobre isso; ele lia o Derry News fielmente todos os dias em Juniper Hill). Só tinha sobrado o Town House e uma série de motéis vagabundos na estrada interestadual.

 

É onde eles estarão, pensou ele. Bem ali. Todos os que sobraram. Dormindo em suas camas, com visões de balas e doces, ou talvez de esgotos, dançando na mente. E vou pegar eles. Um a um, eu vou pegar eles.

 

Ele pegou a garrafa de Texas Driver e sufocou uma gargalhada debochada. Ele conseguia sentir sangue fresco escorrendo no colo, e o assento estava grudento embaixo dele, mas o vinho o deixava melhor; o vinho parecia fazer não importar. Ele gostaria de um bom Bourbon, mas o Driver era melhor do que nada.

 

— Olha — disse ele para Arroto. — Me desculpe por ter corrido. Não sei por que corri. Por favor... não fique zangado.

 

Arroto falou pela primeira e única vez, mas a voz não era a voz dele. A voz que saiu da boca podre de Arroto era grave e poderosa, apavorante. Henry choramingou ao ouvir. Era a voz da lua, a voz do palhaço, a voz que ele ouvia nos sonhos de esgotos e ralos, onde a água sempre corria.

 

— Cala a boca e pega eles — disse a voz.

 

— Claro — choramingou Henry. — Claro, tudo bem, eu quero, não tem problema...

 

Ele colocou a garrafa de volta no porta-luvas. O gargalo bateu brevemente como dentes. E ele viu um papel onde a garrafa estava antes. Ele o pegou e desdobrou, deixando marcas de sangue nos cantos. Em alto-relevo no topo havia este logo, em escarlate:

 

UM BILHETE DE PENNYWISE!

 

Abaixo, havia isto, escrito cuidadosamente em letra de fôrma:

 

BILL DENBROUGH

311

BEN HANSCOM

404

EDDIE KASPBRAK

609

BEVERLY MARSH

518

RICHIE TOZIER

217

 

Os números dos quartos deles. Isso era bom. Poupava tempo.

 

— Obrigado, Ar...

 

Mas Arroto tinha sumido. O assento do motorista estava vazio. Só havia o boné do New York Yankees no local, com musgo na aba. E uma coisa grudenta na bolota do câmbio.

 

Henry ficou olhando enquanto sentia o coração batendo dolorosamente na garganta... e então pareceu ouvir alguma coisa se mover no banco de trás. Ele saiu rapidamente, abriu a porta e quase caiu na rua com a pressa. Passou bem longe do Fury, que ainda roncava suavemente pelo silencioso duplo Cherry Bomb (esse tipo de silenciador foi proibido no estado do Maine em 1962).

 

Era difícil andar; cada passo repuxava e cortava a barriga. Mas ele chegou à calçada e ficou ali, olhando para o prédio de tijolos de oito andares que, junto com a biblioteca e o cinema Aladdin e o seminário, era um dos poucos do qual ele se lembrava com clareza de antigamente. A maior parte das luzes nos andares de cima estava apagada agora, mas os globos de vidro fosco que ladeavam a entrada principal estavam acesos e emitindo uma luz suave na escuridão, com uma aura de umidade provocada pela névoa.

 

Henry seguiu com dificuldade até lá e abriu uma das portas com o ombro.

 

O saguão estava tomado pelo silêncio da madrugada. Havia um tapete turco surrado no chão. O teto era um mural enorme, executado em painéis retangulares, que mostrava cenas da época madeireira de Derry. Havia sofás acolchoados, poltronas e uma enorme lareira agora apagada e silenciosa, com um tronco de bétula sobre os suportes. Era um tronco de verdade, nada de gás; a lareira do Town House não era só uma peça de cenário de saguão. Havia plantas em vasos baixos. A porta dupla de vidro que levava ao bar e ao restaurante estava fechada. De algum escritório vinha o som de uma TV em volume baixo.

 

Ele andou pelo saguão, com a calça e a camisa manchadas de sangue. Havia sangue entranhado nas dobras de suas mãos; ele escorria pelas bochechas dele e marcava a testa como pintura de guerra. Os olhos estavam saltados. Qualquer pessoa no saguão que o tivesse visto teria saído correndo e gritando de pavor. Mas não havia ninguém.

 

A porta do elevador se abriu assim que ele apertou o botão. Ele olhou para o papel na mão, depois para os botões dos andares. Depois de pensar um momento, ele apertou 6 e a porta fechou. Houve um leve zumbido de máquina quando o elevador começou a subir.

 

É melhor começar pelo alto e ir descendo.

 

Ele se encostou na parede de trás do elevador, com olhos semicerrados. O zumbido do elevador era tranquilizante. Como o zumbido das máquinas nas estações de bombeamento do sistema de esgotos. Aquele dia: ele ficava voltando à mente de Henry. A forma como tudo parecia planejado, como se todos eles só estivessem executando papéis. A forma como Vic e o velho Arroto pareceram... bem, quase drogados. Ele lembrou...

 

O elevador parou, o movimento o sacudiu e gerou uma nova onda de dor na barriga. A porta se abriu. Henry saiu no corredor silencioso (havia mais plantas aqui, clorofitos, e ele não queria tocar em nenhuma delas, não essas verdes melequentas, que o faziam se lembrar das coisas penduradas lá embaixo, no escuro). Ele verificou o papel de novo. Kaspbrak estava no 609. Henry começou a ir na direção do quarto, com a mão apoiada na parede, deixando uma marca leve de sangue no papel de parede no caminho (ah, mas ele se afastava sempre que chegava perto de uma daquelas plantas; ele não queria nada com elas). A respiração dele estava pesada e seca.

 

Aqui estava. Henry tirou a faca do bolso, molhou os lábios secos com a língua e bateu na porta. Nada. Ele bateu de novo, mais alto desta vez.

 

— Quem é? — Sonolento. Ótimo. Ele estaria de pijama, só meio acordado. E quando abrisse a porta, Henry enfiaria a faca direto na área oca na base do pescoço, a parte logo embaixo do pomo de adão.

 

— Mensageiro, senhor — disse Henry. — Recado da sua esposa. — Será que Kaspbrak tinha esposa? Talvez tenha sido burrice dizer aquilo. Ele esperou, alerta e com frieza. Ele ouviu passos, o arrastar de chinelos.

 

— De Myra? — Ele pareceu alarmado. Ótimo. Ficaria mais alarmado em alguns segundos. O sangue pulsava na têmpora direita de Henry.

 

— Acho que sim, senhor. Não tem nome. Só diz que é sua esposa.

 

Houve uma pausa, depois um estalo metálico quando Kaspbrak tentou abrir a corrente. Sorrindo, Henry apertou o botão no cabo da faca. Clique. Ele elevou a faca até a bochecha, preparando-se. Ouviu a tranca girar. Em um momento, ele enfiaria a lâmina na garganta do magrelo maldito. Ele esperou. A porta se abriu e Eddie

 

Os Otários todos juntos — 13h20

 

viu Stan e Richie saindo do mercado da avenida Costello, cada um comendo um Rocket em um palito.

 

— Ei! — gritou ele. — Ei, esperem!

 

Eles se viraram, e Stan acenou. Eddie correu para se juntar a eles o mais rápido que conseguiu, que na verdade não foi muito rapidamente. Um braço estava imobilizado no gesso, e ele estava com o tabuleiro de Parcheesi debaixo do outro.

 

— Como está, Eddie? Como está, meu rapaz? — perguntou Richie na estrondosa Voz de Cavalheiro Sulista (a que parecia mais com a de Foghorn Leghorn nos desenhos da Warner Brothers do que qualquer outra coisa). — Ah, veja... Ah, veja... o rapaz está de braço quebrado! Veja isso, Stan, o rapaz está de braço quebrado! Ah, veja... seja gentil e carregue o tabuleiro de Parcheesi do rapaz para ele!

 

— Eu posso carregar — disse Eddie, um pouco sem fôlego. — Que tal uma lambida no seu Rocket?

 

— Sua mãe não aprovaria, Eddie — disse Richie com tristeza. Ele começou a comer mais rápido. Tinha acabado de chegar na parte de chocolate no meio, sua parte favorita. — Germes, rapaz! Ah, veja... Ah, veja, você pode pegar germes se comer a comida de outra pessoa!

 

— Vou arriscar — disse Eddie.

 

Com relutância, Richie levou o Rocket até a boca de Eddie... e puxou rapidamente assim que Eddie deu duas lambidas moderadamente caprichadas.

 

— Pode ficar com o resto do meu se quiser — disse Stan. — Ainda estou cheio por causa do almoço.

 

— Judeus não comem muito — informou Richie. — É da religião.

 

Os três estavam andando com companheirismo, seguindo na direção da rua Kansas e do Barrens. Derry parecia perdido em um cochilo profundo da tarde. As janelas da maioria das casas pelas quais eles passaram estavam fechadas. Havia brinquedos abandonados em gramados, como se os donos tivessem sido chamados para entrar às presas ou colocados para dormir. Um trovão ribombou ao oeste.

 

— É verdade? — Eddie perguntou a Stan.

 

— Não, Richie está de brincadeira — disse Stan. — Judeus comem igual a pessoas normais. — Ele apontou para Richie. — Como ele.

 

— Sabe, você é mau pra cacete com o Stan — Eddie disse para Richie. — Você ia gostar se alguém dissesse um monte de coisa inventada sobre você, só porque você é católico?

 

— Ah, católicos fazem um monte de coisa — disse Richie. — Meu pai me contou uma vez que Hitler era católico, e Hitler matou bilhões de judeus. Certo, Stan?

 

— É, acho que sim — disse Stan. Ele pareceu constrangido.

 

— Minha mãe ficou furiosa quando meu pai me contou isso — prosseguiu Richie. Um sorrisinho pela recordação surgiu no rosto dele. — Completamente fu-riosa. Nós católicos também tivemos a Inquisição, que foi uma historinha aí com instrumentos de tortura e tal. Acho que todas as religiões têm coisas estranhas.

 

— Eu também acho — disse Stan baixinho. — Não somos ortodoxos, nem nada do tipo. A gente come presunto e bacon. Nem sei direito o que é ser judeu. Nasci em Derry, e às vezes vamos à sinagoga em Bangor em ocasiões como o Yom Kipur, mas... — Ele deu de ombros.

 

— Presunto? Bacon? — Eddie estava intrigado. Ele e a mãe eram metodistas.

 

— Judeus ortodoxos não comem coisas assim — disse Stan. — Tem alguma coisa na Torá sobre não comer nada que anda pela lama ou anda no fundo do oceano. Não sei exatamente o que está escrito. Mas porcos estão fora, e lagosta também. Mas meus pais comem. Eu também.

 

— Que estranho — disse Eddie, e caiu na gargalhada. — Nunca ouvi falar de uma religião que dizia o que você pode comer. Logo vão querer dizer que tipo de gasolina você pode comprar.

 

— Gasolina kosher — disse Stan e caiu na gargalhada. Nem Richie e nem Eddie entenderam de que ele estava rindo.

 

— Você tem que admitir, Stanny, é bem estranho — disse Richie. — Imagine, não poder comer salsicha só porque você por acaso é judeu.

 

— É? — disse Stan. — Você come carne às sextas?

 

— Caramba, não! — disse Richie, chocado. — A gente não pode comer carne às sextas porque... — Ele começou a sorrir um pouco. — Ah, tudo bem, entendi o que você quer dizer.

 

— Os católicos vão mesmo pro inferno se comerem carne às sextas? — perguntou Eddie com fascinação, totalmente alheio ao fato de que, até duas gerações atrás, sua família era de poloneses católicos devotos que não teriam comido carne às sextas tanto quanto não teriam saído na rua sem roupas.

 

— Olha, vou te dizer, Eddie — disse Richie. — Não acredito que Deus fosse me mandar pro Lugar Quente só por esquecer e comer um sanduíche de mortadela no almoço de sexta, mas pra que correr o risco? Né?

 

— Acho que é — disse Eddie. — Mas parece tão... — Tão idiota, ele ia dizer, mas então se lembrou da história que a sra. Portleigh contou na aula da escola dominical quando ele era pequenininho, ainda no primeiro ano dos Pequenos Fiéis. De acordo com a sra. Portleigh, um garoto mau roubou um pedaço de pão da comunhão quando passaram a bandeja e colocou no bolso. Ele levou para casa e jogou na privada só para ver o que ia acontecer. Imediatamente, ou ao menos foi o que a sra. Portleigh relatou para os atentos Pequenos Fiéis, a água na privada ficou vermelha. Era o Sangue de Cristo, disse ela, e apareceu para aquele garotinho porque ele tinha feito um ato muito feio chamado BLASFÊMIA. Apareceu para avisá-lo de que, ao jogar o corpo de Cristo na privada, ele colocou sua alma imortal em risco de ir para o Inferno.

 

Até aquele momento, Eddie gostava do ato da comunhão, que ele só tinha permissão de fazer desde o ano anterior. Os metodistas usavam suco de uva em vez de vinho, e o Corpo de Cristo era representado por cubos cortadinhos de pão fresco. Ele gostava da ideia de comer e beber como rito religioso. Mas depois da história da sra. Portleigh, o assombro dele pelo ritual virou uma coisa mais potente e apavorante. O mero ato de pegar um cubo de pão virou um gesto de coragem, e ele sempre tinha medo de tomar um choque... ou pior, de que o pão fosse de repente mudar de cor em sua mão, virasse um coágulo de sangue, e uma voz desencarnada fosse começar a trovejar na igreja: Indigno! Indigno! Danado ao Inferno! Danado ao Inferno! Era comum que depois de ele comungar, sua garganta se fechasse, sua respiração ficasse assobiada e ele precisasse esperar com impaciência e pânico que a benção acabasse para ele correr para o vestíbulo e usar a bombinha.

 

Você não quer ser bobo, ele disse para si mesmo conforme foi crescendo. Aquilo não passou de uma história, e a sra. Portleigh sem dúvida não era santa. Mamãe diz que ela se divorciou em Kittery e que joga bingo no Saint Mary’s em Bangor, e que cristãos de verdade não jogam, cristãos de verdade deixam o jogo para pagãos e católicos.

 

Tudo isso fazia perfeito sentido, mas não aliviou a mente dele. A história do pão da comunhão que transformou a água da privada em sangue o preocupava, o corroía, até fazia com que ele perdesse o sono. Ocorreu a ele uma noite que a maneira de deixar isso para trás de uma vez por todas seria pegar um pedaço do pão, jogar na privada e ver o que acontecia.

 

Mas um experimento desses estava muito além de sua coragem; sua mente racional não conseguia suportar aquela imagem sinistra de sangue espalhando sua nuvem de acusação e potencial danação na água. Não conseguia enfrentar aquele sortilégio mágico talismânico: Este é meu corpo, pegue e coma; este é meu sangue, derramado por você e por muitos.

 

Não, ele nunca fez o experimento.

 

— Acho que todas as religiões são estranhas — disse Eddie agora. Mas poderosas, acrescentou sua mente, quase mágicas... ou será que isso era BLASFÊMIA? Ele começou a pensar na coisa que eles tinham visto na rua Neibolt, e pela primeira vez viu um paralelo maluco: afinal, o Lobisomem tinha saído da privada.

 

— Cara, acho que todo mundo está dormindo — disse Richie, jogando a embalagem vazia de Rocket indiferentemente na vala. — Vocês já viram a rua tão silenciosa? Será que todo mundo foi passar o dia em Bar Harbor?

 

— E-E-E-Ei, p-p-pessoal! — gritou Bill Denbrough atrás deles. — E-E-Esperem!

 

Eddie se virou, feliz como sempre em ouvir a voz de Big Bill. Ele estava empurrando Silver pela esquina da avenida Costello na frente de Mike, embora a Schwinn de Mike fosse novinha em folha.

 

— Hi-yo Silver, VAMOOOOOS! — gritou Bill. Ele chegou até eles fazendo talvez 30 quilômetros por hora, com as cartas de baralho presas ao raio gritando. De repente, ele pedalou para trás, acionou os freios e deixou uma marca admirável no chão.

 

— Bill Gago! — disse Richie. — Como vai, rapaz? Ah, veja... Ah, veja... Como vai, rapaz?

 

— Estou b-b-bem — disse Bill. — Viram Ben ou B-B-Beverly?

 

Mike chegou até eles. Seu rosto estava tomado de gotículas de suor.

 

— Que velocidade essa bicicleta faz, afinal?

 

Bill riu.

 

— N-N-Não sei e-exatamente. M-Muita.

 

— Eu não vi eles — disse Richie. Já devem estar lá embaixo. Cantando duetos. “Sh-boom, sh-boom... ya-da-da-da-da-da-da... você parece um sonho, querida.”

 

Stan Uris fez barulhos de vômito.

 

— Ele está com inveja — disse Richie para Mike. — Judeus não sabem cantar.

 

— B-B-B...

 

— Bip-Bip, Richie — disse Richie por ele, e todos riram.

 

Todos voltaram a andar na direção do Barrens, com Mike e Bill empurrando as bicicletas. A conversa foi enérgica no começo, mas foi rareando. Ao olhar para Bill, Eddie viu uma expressão preocupada e pensou que o silêncio também o estivesse incomodando. Ele sabia que Richie falou como piada, mas realmente parecia que todo mundo em Derry tinha ido passar o dia em Bar Harbor... ou em algum lugar. Não havia um carro na rua; não havia uma única velha senhora empurrando um carrinho de compras a caminho de casa.

 

— Está silencioso demais, não? — arriscou Eddie, mas Bill só assentiu.

 

Eles atravessaram para o lado do Barrens na rua Kansas e viram Ben e Beverly correndo na direção deles e gritando. Eddie ficou chocado pela aparência de Beverly. Ela costumava estar sempre arrumada e limpa, com o cabelo lavado e preso em um rabo de cavalo. Agora ela estava suja com o que parecia todo o tipo de sujeira do universo. Os olhos estavam arregalados e loucos. Havia um arranhão em uma bochecha. A calça jeans estava coberta de lixo e a blusa estava rasgada.

 

Ben veio atrás dela, bufando e com a barriga balançando.

 

— Não podemos ir pro Barrens. — Beverly estava ofegante. — Os garotos... Henry... Victor... estão lá em algum lugar... a faca... ele tem uma faca...

 

— Ca-calma — disse Bill, assumindo o comando imediatamente daquele jeito automático e quase inconsciente dele. Ele olhou para Ben se aproximando, com as bochechas vermelhas e o peito considerável arfando.

 

— Ela disse que Henry ficou maluco, Big Bill — disse Ben.

 

— Porra, você quer dizer que ele era normal? — perguntou Richie, e cuspiu por entre dentes.

 

— C-Cala a b-boca, R-Richie — disse Bill, e olhou para Beverly. — C-Conta — disse ele. A mão de Eddie foi até o bolso e segurou a bombinha. Ele não sabia o que era isso tudo, mas já sabia que não era bom.

 

Obrigando-se a falar o mais calmamente possível, Beverly conseguiu contar uma versão editada da história, uma versão que começava com Henry, Victor e Arroto pegando-a na rua. Ela não contou sobre o pai, estava morrendo de vergonha daquilo.

 

Quando ela terminou, Bill ficou em silêncio por um momento, com as mãos nos bolsos, o queixo baixo, o guidão de Silver apoiado no peito. Os outros esperaram, olhando com frequência para a grade que bloqueava a encosta. Bill pensou por bastante tempo, e ninguém o interrompeu. Eddie percebeu de repente e sem esforço nenhum que esse poderia ser o ato final. Era essa a sensação do silêncio do dia, não era? A sensação de que a cidade toda tinha ido embora, deixando apenas as cascas vazias das casas e construções.

 

Richie estava pensando na foto do álbum de George que ganhou vida de repente.

 

Beverly estava pensando no pai, no quanto os olhos dele estavam pálidos.

 

Mike estava pensando no pássaro.

 

Ben estava pensando na múmia e em um cheiro como canela morta.

 

Stan Uris estava pensando em uma calça jeans preta e pingando, e em mãos tão brancas como papel amassado, também pingando.

 

— V-V-Vamos — disse Bill por fim. — N-N-Nós v-v-vamos d-descer.

 

— Bill... — disse Ben. Seu rosto estava perturbado. — Beverly disse que Henry estava maluco mesmo. Que pretendia matar...

 

— N-Não é deles — disse Bill, apontando para a área verde que era o Barrens, à direita e abaixo deles; a vegetação, as folhas das árvores, o bambu, o brilho da água. — N-N-Não é pr-pr-propriedade deles. — Ele olhou para os amigos com expressão séria. — Estou c-c-cansado de s-ser a-assustado por eles. A g-gente venceu eles na g-g-guerra de p-pedras, e se t-t-tiver que vencer de n-n-novo, a gente v-v-vence.

 

— Mas Bill — disse Eddie —, e se não forem só eles?

 

Bill se virou para Eddie, e com verdadeiro choque Eddie viu o quanto o rosto de Bill estava cansado e tenso. Havia alguma coisa assustadora naquele rosto, mas só bem mais tarde, quando já era adulto resvalando para o sono depois da reunião na biblioteca, ele entendeu o que era aquela coisa assustadora: era o rosto de um garoto levado à beira da loucura, um garoto que talvez não estivesse muito mais são ou no controle das próprias ações do que Henry. Mas o Bill essencial ainda estava ali, olhando por aqueles olhos assombrados e assustados... um Bill furioso e determinado.

 

— Bem — disse ele — e s-s-se n-n-não f-for?

 

Ninguém respondeu. Um trovão rimbombou perto agora. Eddie olhou para o céu e viu as nuvens de tempestade chegando do oeste, pretas. A chuva seria forte pra cachorro, como sua mãe dizia às vezes.

 

— A-A-Agora vou dizer uma c-c-coisa — disse Bill, olhando para eles. — Nenhum de vocês precisa i-i-ir c-comigo se n-não quiser. V-Vocês d-decidem.

 

— Eu vou, Big Bill — disse Richie baixinho.

 

— Eu também — disse Ben.

 

— Claro — disse Mike, dando de ombros.

 

Beverly e Stan concordaram, e Eddie por último.

 

— Acho que não, Eddie — disse Richie. — Seu braço não está muito bem, sabe.

 

Eddie olhou para Bill.

 

— Eu q-q-quero e-ele — disse Bill. — Você a-a-anda c-comigo, E-E-Eddie. Vou ficar de olho em v-você.

 

— Obrigado, Bill — disse Eddie. O rosto cansado e meio louco de Bill pareceu lindo de repente aos olhos dele, lindo e amado. Ele teve uma leve sensação de admiração. Eu morreria por ele, eu acho, se ele mandasse. Que tipo de poder é esse? Se faz você parecer como Bill está agora, talvez não seja um poder de se ter.

 

— É, Bill tem a arma mais poderosa — disse Richie. — Bombas de cecê. — Ele levantou o braço esquerdo e balançou a mão direita embaixo da axila exposta. Ben e Mike riram um pouco, e Eddie sorriu.

 

Outro trovão estourou, perto e bem alto desta vez a ponto de fazê-los pularem e se aproximarem uns dos outros. O vento estava aumentando, balançando o lixo na vala. A primeira das nuvens pretas passou em frente ao disco brilhante do sol, e as sombras deles sumiram. O vento estava frio e gelou o suor no braço descoberto de Eddie. Ele tremeu.

 

Bill olhou para Stan e disse uma coisa peculiar.

 

— Trouxe seu livro de pa-pássaros, Stan?

 

Stan bateu no bolso.

 

Bill olhou para eles de novo.

 

— Vamos d-d-descer — disse ele.

 

Eles desceram o barranco em fila, exceto Bill, que ficou com Eddie, como prometido. Ele deixou que Richie levasse Silver, e quando chegaram embaixo, Bill colocou a bicicleta no local costumeiro debaixo da ponte. Eles ficaram de pé juntos e olharam ao redor.

 

A tempestade que se aproximava não produziu escuridão; nem mesmo uma penumbra. Mas a qualidade da luz mudou, e as coisas se destacavam em uma espécie de alívio sonhador: sem sombra, claras, esculpidas. Eddie sentiu um horror e uma apreensão crescente nas entranhas ao perceber por que esse tipo de luz parecia tão familiar. Era o mesmo tipo de luz da qual ele se lembrava da casa 29 da rua Neibolt.

 

Um relâmpago tatuou as nuvens, brilhante o bastante para fazê-lo se encolher. Ele colocou a mão no rosto e se viu contando: Um... dois... três... E então, o trovão soou em um estrondo único, um som explosivo, o som de uma bomba M-80, e eles se aproximaram ainda mais uns dos outros.

 

— A previsão de hoje de manhã não era de chuva — disse Ben com desconforto. — O jornal dizia quente e nebuloso.

 

Mike estava observando o céu. As nuvens lá em cima eram barquinhos de fundo preto, altas e pesadas, obstruindo rapidamente o azul que cobria o céu de um horizonte a outro quando ele e Bill saíram da casa dos Denbrough depois do almoço.

 

— Está chegando rápido — disse ele. — Nunca vi uma tempestade chegar tão rápido. — E, como se em confirmação, um trovão estourou.

 

— V-V-Vamos — disse Bill. — V-Vamos colocar o tabuleiro de Parchee-eesi de E-E-Eddie na s-s-sede do clube.

 

Eles começaram a descer o caminho que fizeram de tanto percorrê-lo nas semanas seguintes ao incidente da represa. Bill e Eddie estavam na frente da fila, com os ombros roçando nas folhas amplas dos arbustos e os outros atrás. O vento soprou de novo e fez as folhas nas árvores e nos arbustos sussurrarem. Mais à frente, os bambus estalaram de forma sinistra, como tambores em uma história sobre a selva.

 

— Bill? — disse Eddie em voz baixa.

 

— O quê?

 

— Pensei que era só nos filmes, mas... — Eddie riu um pouco. — Sinto como se alguém estivesse me observando.

 

— Ah, eles e-e-estão a-aqui s-sim — disse Bill.

 

Eddie olhou ao redor com nervosismo e segurou o tabuleiro de Parcheesi com mais força. Ele

 

Quarto de Eddie — 3h05

 

abriu a porta e deu de cara com um monstro saído de um gibi de terror.

 

Uma aparição coberta de sangue estava ali de pé, e só podia ser Henry Bowers. Henry parecia um cadáver saído do túmulo. O rosto de Henry era uma máscara congelada de ódio e instinto assassino. A mão direita estava erguida na altura da bochecha, e enquanto os olhos de Eddie se arregalavam e ele começava a inspirar a primeira lufada de ar em estado de choque, a mão desceu e a faca brilhou como seda.

 

Sem pensar (não havia tempo; se ele tivesse parado para pensar, teria morrido), Eddie bateu a porta. Ela bateu no antebraço de Henry e desviou o curso da faca de forma que ela desceu em um arco lateral a menos de 3 centímetros do pescoço de Eddie.

 

Houve um som de coisa esmagada quando a porta prendeu o braço de Henry contra a moldura. Henry deu um grito abafado. Sua mão se abriu. A faca caiu no chão com um estalo. Eddie a chutou. Ela deslizou para baixo da TV.

 

Henry jogou o peso contra a porta. Ele era 50 quilos mais pesado do que Eddie, que foi jogado para trás como uma boneca; seus joelhos bateram na cama e ele caiu sobre ela. Henry entrou no quarto e fechou a porta. Ele girou a tranca quando Eddie se sentou com olhos arregalados, com a garganta já começando a assobiar.

 

— Muito bem, veado — disse Henry. Ele desviou os olhos momentaneamente para o chão em busca da faca, mas não a viu. Eddie tateou na mesa de cabeceira e encontrou uma das duas garrafas de Perrier que tinha pedido mais cedo. Essa era a cheia; ele tinha tomado a outra antes de ir para a biblioteca porque seus nervos estavam à flor da pele e ele estava com muita azia. Perrier era bom para a digestão.

 

Quando Henry desistiu de procurar a faca e partiu para cima dele, Eddie pegou a garrafa verde em formato de pera pelo gargalo e quebrou na beirada da mesa de cabeceira. A água fez espuma e efervesceu pela superfície, molhando os vidros de comprimidos que estavam ali.

 

A camisa e a calça de Henry estavam cobertas de sangue, tanto fresco como meio seco. A mão direita agora estava em um ângulo estranho.

 

— Veadinho — disse Henry —, vou te ensinar a jogar pedras.

 

Ele foi para a cama e esticou a mão para Eddie, que ainda não tinha entendido direito o que estava acontecendo. Apenas quarenta segundos tinham se passado desde que ele abriu a porta. Henry tentou segurá-lo. Eddie atacou com a parte quebrada da garrafa de Perrier. Ela cortou o rosto de Henry, abriu a bochecha em um corte fundo e irregular e perfurou o olho direito.

 

Henry deu um grito sem fôlego e cambaleou para trás. O olho cortado, com fluido branco-amarelado escorrendo, ficou pendurado pelo buraco. A bochecha jorrava sangue como um chafariz. O grito de Eddie foi mais alto. Ele se levantou da cama e foi na direção de Henry (para ajudá-lo, talvez, ele não sabia ao certo), e Henry partiu para cima dele de novo. Eddie atacou com a garrafa de Perrier como se fosse um florete de esgrima, e desta vez os pontos irregulares de vidro verde perfuraram fundo a mão esquerda de Henry e cortaram os dedos. Sangue fresco jorrou. Henry deu um grunhido rouco, quase o som de um homem limpando a garganta, e empurrou Eddie com a mão direita.

 

Eddie voou para trás e bateu na escrivaninha. Seu braço esquerdo de alguma forma se torceu atrás dele, e ele caiu em cima pesadamente. A dor foi uma chama repentina e enlouquecedora. Ele sentiu o osso ceder na linha da velha fratura e precisou trincar os dentes para não gritar de dor.

 

Uma sombra bloqueou a luz.

 

Henry Bowers estava de pé acima dele, balançando para a frente e para trás. Seus joelhos cederam. A mão esquerda estava pingando sangue na parte da frente do roupão de Eddie.

 

Eddie ficou segurando o pedaço de garrafa de Perrier e agora, quando os joelhos de Henry se dobraram completamente, ele o colocou na frente dele, com a parte irregular apontando para cima e o gargalo apoiado no esterno. Henry caiu como uma árvore e se empalou com a garrafa. Eddie sentiu uma pontada nova de dor no braço esquerdo, que ainda estava preso debaixo do corpo. Um calor novo caiu sobre ele. Ele não sabia se esse banho era do sangue de Henry ou do dele.

 

Henry se contorceu como uma truta fora da água. Seus sapatos provocaram um batuque quase musical no tapete. Eddie conseguia sentir o hálito podre. De repente, Henry se enrijeceu e rolou para o lado. A garrafa se projetava de forma grotesca do meio do tronco, com a ponta tampada apontando para o teto, como se tivesse crescido ali.

 

— Gug — disse Henry, e não falou mais nada. Ele olhou para o teto. Eddie pensou que ele talvez estivesse morto.

 

Eddie lutou contra as ondas de vertigem que queriam tomar conta dele e levá-lo à inconsciência. Ficou de joelhos primeiro e depois de pé. A dor se renovou quando o braço quebrado se balançou na frente do corpo, e isso o deixou um pouco mais alerta. Respirando com dificuldade, lutando para inspirar, ele chegou à mesa de cabeceira. Pegou a bombinha em uma poça de água gaseificada, enfiou na boca e apertou o gatilho. Ele tremeu com o gosto, mas deu outra bombeada. Eddie olhou para o corpo no tapete... será que podia ser Henry? Seria possível? Mas era. Crescido, com o cabelo curto mais grisalho do que preto, o corpo agora gordo e branco como o de uma lesma, mas ainda era Henry. E Henry estava morto. Finalmente Henry estava...

 

— Gug — disse Henry, e se sentou. Suas mãos tentaram agarrar o ar, como se querendo se segurar em apoios que só Henry conseguia ver. O olho perfurado escorria e pingava; o arco inferior agora estava inchado sobre a bochecha. Ele olhou ao redor, viu Eddie se encolhendo contra a parede e tentou se levantar.

 

Ele abriu a boca, e um jorro de sangue saiu. Henry despencou de novo.

 

Com o coração em disparada, Eddie procurou o telefone e só conseguiu derrubá-lo da mesa sobre a cama. Ele o pegou e discou zero. O telefone tocou sem parar.

 

Anda, pensou Eddie, o que você está fazendo aí embaixo, batendo punheta? Atende, por favor, atende a porra do telefone!

 

Ele tocou sem parar. Eddie manteve o olhar grudado em Henry, esperando que ele começasse a tentar ficar de pé a qualquer momento. Sangue. Meu Deus, tanto sangue.

 

— Recepção — disse uma voz rouca e ressentida por fim.

 

— Ligue para o quarto do sr. Denbrough — disse Eddie. — O mais rápido que puder. — Com o outro ouvido, ele agora estava prestando atenção nos quartos ao redor. O quanto eles fizeram barulho? Será que alguém bateria na porta e perguntaria se tudo estava bem lá dentro?

 

— Tem certeza de que quer que eu ligue? — perguntou o recepcionista. — São três e dez.

 

— Sim, ligue! — Eddie quase gritou. A mão segurando o telefone estava tremendo em pulinhos convulsivos. Havia uma fonte de dor horrível no outro braço. Será que Henry tinha se movido de novo? Não, claro que não.

 

— Tudo bem, tudo bem — disse o recepcionista. — Acalme-se, amigo.

 

Houve um clique, e o som rouco de um telefone de quarto tocando. Vamos, Bill, vamos, v...

 

Um pensamento repentino, horrivelmente plausível, ocorreu a ele. E se Henry tivesse visitado o quarto de Bill primeiro? Ou o de Richie? O de Ben? O de Bev? Ou será que Henry fez uma visita à biblioteca? Ele certamente foi a outro lugar primeiro; se alguém não tivesse dado um jeito em Henry antes, teria sido Eddie deitado morto no chão, com uma faca enfiada no peito do mesmo jeito que a garrafa de Perrier estava enfiada na barriga de Henry. Mas e se Henry tivesse visitado todos os outros primeiro, os tivesse pegado tontos e meio adormecidos, como ele mesmo estava? E se estivessem todos mortos? E aquele pensamento foi tão horrível que Eddie acreditou que começaria a gritar em pouco tempo se alguém não atendesse o telefone no quarto de Bill.

 

— Por favor, Big Bill — sussurrou Eddie. — Por favor, esteja aí, cara.

 

O telefone foi atendido, e a voz de Bill, cautelosa de forma nada característica, falou:

 

— A-A-Alô?

 

— Bill — disse Eddie... quase sem sentido. — Bill, graças a Deus.

 

— Eddie? — A voz de Bill ficou momentaneamente mais fraca, falou com outra pessoa, contou para alguém quem era. Mas logo voltou com a mesma intensidade. — O q-que f-foi, Eddie?

 

— É Henry Bowers — disse Eddie. Ele olhou para o corpo no chão de novo. Será que ele tinha mudado de posição? Desta vez, não foi tão fácil persuadir a si mesmo que sim. — Bill, ele veio aqui... e eu matei ele. Ele estava com uma faca. Eu acho... — Ele baixou a voz. — Acho que era a mesma faca daquele dia. Você lembra?

 

— Eu l-l-lembro — disse Bill de forma sombria. — Eddie, me escuta. Eu quero que você

 

Barrens — 13h55

 

— v-v-volte e diga pra B-B-Ben v-vir a-a-aqui em cima.

 

— Tudo bem — disse Eddie, e voltou imediatamente. Eles estavam se aproximando da clareira. Trovões ribombavam no céu encoberto, e os arbustos suspiravam na brisa crescente.

 

Ben se juntou a ele quando eles entraram na clareira. A porta da sede do clube estava aberta, um quadrado improvável de escuridão no meio do verde. O som do rio estava muito claro, e Bill de repente foi atingido por uma certeza louca: que estava vivenciando aquele som e este lugar pela última vez em sua infância. Ele inspirou fundo, sentiu o cheiro da terra e do ar e do lixão distante, soltando vapores como um vulcão aborrecido que não consegue decidir se vai entrar em erupção. Ele viu um bando de pássaros sair voando da ponte da linha férrea na direção de Old Cape. Ele olhou para as nuvens pretas.

 

— O que foi? — perguntou Ben.

 

— Por q-q-que eles não tentaram p-p-pegar a g-gente? — perguntou Bill. — Eles estão a-aqui. E-E-Eddie estava c-certo quanto a isso. Consigo s-s-sentir eles.

 

— É — disse Ben. — Acho que eles podem ser burros o bastante pra pensar que vamos voltar pra sede do clube. Aí a gente ficaria encurralado.

 

— P-P-Pode ser — disse Bill, e sentiu uma repentina fúria impotente contra a gagueira, que tornava impossível que ele falasse rápido. Talvez houvesse coisas que ele achasse impossíveis de dizer de qualquer jeito: que sentia que quase conseguia ver pelos olhos de Henry Bowers, que sentia que, apesar de em lados opostos, como peões controlados por forças opostas, ele e Henry tinham ficado muito próximos.

 

Henry esperava que eles resistissem e lutassem.

 

A Coisa esperava que eles resistissem e lutassem.

 

E fossem mortos.

 

Uma explosão branca e fria pareceu preencher sua cabeça. Eles seriam vítimas do assassino que estava de tocaia em Derry desde a morte de George, todos os sete. Talvez os corpos deles fossem encontrados, talvez não. Tudo dependia se a Coisa conseguiria ou quereria proteger Henry, e, em menor grau, Arroto e Victor. Sim. Para os outros, para o resto da cidade, seremos todos vítimas do assassino. E é verdade, de uma forma meio esquisita, isso é mesmo verdade. A Coisa nos quer mortos. Henry é a ferramenta para chegar a isso, para que a Coisa não precise sair. Eu primeiro, eu acho; Beverly e Richie talvez consigam segurar os outros, ou Mike, mas Stan está com medo, e Ben também, apesar de eu achar que ele é mais forte do que Stan. E Eddie está com o braço quebrado. Por que eu os trouxe aqui? Meu Deus! Por quê?

 

— Bill? — disse Ben com ansiedade. Os outros se juntaram a eles ao lado da sede do clube. Outro trovão explodiu, e os arbustos começaram a balançar com mais vigor. Os bambus estalaram na luz cada vez mais fraca da tempestade.

 

— Bill... — Era Richie agora.

 

— Shhh! — Os outros ficaram em um silêncio desconfortável sob os olhos assombrados e chamejantes.

 

Ele olhou para a vegetação, para o caminho que se afastava na direção da rua Kansas, e sentiu sua mente de repente subir um grau, como se para um plano mais alto. Não havia gagueira em sua mente; ele sentia como se seus pensamentos tivessem sido gerados em um fluxo louco de intuição, como se tudo estivesse vindo para ele.

 

George em uma ponta, eu e meus amigos na outra. E então, vai parar

 

(de novo)

 

de novo, sim, porque isso já aconteceu antes, e sempre tem que ter um sacrifício no final, uma coisa terrível para fazer parar, não sei como posso saber disso, mas eu sei

 

... e eles... eles...

 

— Eles d-d-deixam acontecer — murmurou Bill, com olhos arregalados para o caminho serpenteante. — C-C-Claro que deixam.

 

— Bill? — perguntou Bev, suplicante. Stan estava de pé do lado dela, pequeno e arrumado com uma camisa polo azul e calça cáqui. Mike estava do outro lado, olhando para Bill intensamente, como se lendo os pensamentos dele.

 

Eles deixam acontecer, sempre deixam, e as coisas se tranquilizam, as coisas continuam, a Coisa... a Coisa...

 

(dorme)

 

dorme... ou hiberna como um urso... e então, tudo começa de novo, e eles sabem... as pessoas sabem... elas sabem que tem que ser, para que a Coisa possa existir.

 

— Eu t-t-t-t-t-t...

 

Ah por favor Deus ah por favor Deus ele soca postes por favor Deus de montão me deixa falar isso e insiste que vê ah Deus ah Cristo AH POR FAVOR ME DEIXA CONSEGUIR FALAR!

 

— Eu t-t-trouxe vocês a-aqui p-p-p-p-porque n-n-nenhum lugar é s-s-seguro — disse Bill. Havia cuspe escorrendo dos lábios dele; ele limpou com as costas da mão. — D-D-Derry é a Coisa. V-V-Vocês m-m-me e-e-entendem? — Ele olhou intensamente para eles; eles se afastaram um pouco, com olhos brilhando, quase mortos de medo. — De-erry é a C-C-Coisa! P-P-Pra qualquer l-l-lugar que a gente v-v-vá... quando a C-C-Coisa p-p-p-pegar a g-gente, as p-p-p-pessoas não v-vão v-ver, não v-v-vão o-o-ouvir, não v-v-vão s-s-saber. — Ele olhou para eles, suplicante. — V-Vocês n-n-não e-entendem c-c-como é? A g-g-gente s-só p-p-pode t-t-tentar a-a-acabar o que a g-g-gente c-c-começou.

 

Beverly viu o sr. Ross se levantando, olhando para ela, dobrando o jornal e simplesmente entrando em casa. Eles não vão ver, não vão ouvir, não vão saber. E meu pai

 

(tira essa calça, piranha mirim)

 

pretendia matá-la.

 

Mike pensou no almoço com Bill. A mãe de Bill estava em seu mundo de sonhos, parecendo não ver nenhum dos dois enquanto lia um livro de Henry James e os garotos faziam sanduíches e comiam de pé em frente à bancada. Richie pensou na casa arrumada, mas completamente vazia de Stan. Stan ficou um pouco surpreso; sua mãe estava quase sempre em casa na hora do almoço. Nas poucas ocasiões em que não estava, ela deixava um bilhete dizendo onde podia ser encontrada. Mas não havia bilhete hoje. O carro tinha sumido, só isso. “Deve ter ido fazer compras com Debbie, amiga dela”, disse Stan, franzindo um pouco a testa, e foi fazer sanduíches de salada de ovo. Richie esqueceu o acontecido. Mas lembrou agora. Eddie pensou na mãe. Quando ele saiu com o tabuleiro de Parcheesi, não houve nenhum dos avisos habituais: Tome cuidado, Eddie, se proteja se chover, Eddie, não ouse fazer brincadeiras violentas, Eddie. Ela não perguntou se ele estava levando a bombinha, não disse que horas ele tinha que voltar, não deu nenhum aviso em relação “àqueles garotos violentos com quem você brinca”. Ela apenas continuou assistindo à novela na TV, como se ele não existisse.

 

Como se ele não existisse.

 

Uma versão desse mesmo pensamento percorreu a mente de todos eles: em algum ponto entre a hora que acordaram naquela manhã e a hora do almoço, eles tinham simplesmente virado fantasmas.

 

Fantasmas.

 

— Bill — disse Stan com voz tensa —, e se a gente cortar caminho? Por Old Cape?

 

Bill balançou a cabeça.

 

— N-N-Não v-vai d-d-dar c-certo. A g-g-gente f-ficaria p-preso nos b-b-bam-bam-b-b-bus... na l-l-lama m-movediça... ou haveria p-p-piranhas de v-v-verdade no K-K-Kenduskeag... ou a-a-alguma o-outra c-c-coisa.

 

Cada um tinha um visão diferente do mesmo fim. Ben via arbustos que de repente viravam plantas comedoras de gente. Beverly via lesmas voadoras como as que saíram da geladeira velha. Stan via o solo gosmento dos bambus vomitando cadáveres vivos de crianças presas lá pela famosa lama movediça. Mike Hanlon imaginava pequenos répteis jurássicos com dentes horríveis de serra saindo de repente do tronco de uma árvore podre, atacando-os, mordendo-os em pedacinhos. Richie via o Olho Rastejante escorrendo para cima deles enquanto eles corriam por baixo da ponte férrea. E Eddie os viu subindo o barranco de Old Cape só para dar de cara com o leproso de pé no alto, com a pele frouxa coberta de besouros e vermes, esperando-os.

 

— Se a gente pudesse chegar à cidade de alguma maneira... — murmurou Richie, mas fez uma careta quando um trovão gritou uma furiosa negativa do céu. Mais chuva caiu; estava só chuviscando, mas logo começaria a cair com força, em gotas grossas. A paz nebulosa do dia tinha sumido completamente, como se nunca tivesse existido — Estaríamos seguros se pudéssemos sair dessa porra de cidade.

 

Beverly começou a dizer:

 

— Bip-b...

 

Mas uma pedra veio voando dos arbustos e atingiu Mike na lateral da cabeça. Ele cambaleou para trás, com sangue escorrendo pelo cabelo crespo, e teria caído se Bill não o tivesse segurado.

 

— Vou ensinar vocês a jogarem pedras! — a voz de Henry chegou com tom debochado neles.

 

Bill conseguia ver os outros olhando ao redor, com olhos arregalados, prontos para correr em seis direções diferentes. E se eles fizessem isso, tudo estaria mesmo acabado.

 

— B-B-Ben! — disse ele com tom urgente.

 

Ben olhou para ele.

 

— Bill, a gente precisa correr. Eles...

 

Mais duas pedras voaram dos arbustos. Uma atingiu Stan no alto da coxa. Ele gritou, mais surpreso do que machucado. Beverly desviou da segunda. Ela bateu no chão e rolou pela porta da sede do clube.

 

— V-V-Você se l-l-l-lembra do p-p-primeiro d-dia em que v-v-veio a-aqui? — gritou Bill acima dos trovões. — No d-d-d-dia do c-começo das f-f-férias?

 

— Bill... — gritou Richie.

 

Bill levantou a mão para silenciá-lo; seus olhos permaneceram grudados em Ben, deixando-o imóvel.

 

— Claro — disse Ben, tentando olhar com desespero para todos os lados ao mesmo tempo. Os arbustos agora estavam balançando e dançando loucamente, com movimento quase como o de uma maré.

 

— O e-e-esgoto — disse Bill. — A e-estação de b-b-bombeamento. É p-pra lá que a gente t-t-tem que ir. Leva a gente!

 

— Mas...

 

— L-L-Leva a g-g-gente!

 

Uma chuva de pedras voou dos arbustos, e por um momento Bill viu o rosto de Victor Criss, de alguma forma assustado, drogado e ávido, tudo ao mesmo tempo. Nessa hora, uma pedra bateu em sua maçã do rosto, e foi a vez de Mike de ajudar a não deixar Bill cair. Por um momento, ele não conseguiu ver direito. Sua bochecha parecia dormente. Mas logo a sensação voltou em latejos dolorosos, e ele sentiu sangue escorrendo pelo rosto. Ele passou a mão na bochecha, fez uma careta ao sentir o calombo doloroso crescendo lá, olhou para o sangue e limpou na calça jeans. Seu cabelo voava loucamente no vento fresco.

 

— Vou te ensinar a jogar pedras, seu babaca gago! — disse Henry, meio gargalhando, meio gritando.

 

— L-L-Leva a gente! — gritou Bill. Ele entendia agora por que tinha mandado Eddie buscar Ben; era para a estação de bombeamento que eles tinham que ir, aquela mesma, e só Ben sabia exatamente qual era, pois elas ocupavam as duas margens do Kenduskeag em intervalos regulares. — É-É o l-l-local! A e-e-entrada! O c-c-caminho pra C-C-Coisa!

 

— Bill, você não tem como saber disso! — gritou Beverly.

 

Ele gritou furiosamente para ela, para todos eles.

 

— Eu sei!

 

Ben ficou ali de pé por um momento, molhando os lábios, olhando para Bill. Então seguiu pela clareira na direção do rio. Um raio brilhante cortou o céu, roxo-esbranquiçado, seguido de um trovão que fez Bill tremer. Uma pedra do tamanho de um punho passou na frente do nariz dele e bateu na bunda de Ben. Ele deu um gritinho de dor e colocou a mão no ponto de choque.

 

— Iá, seu gordo! — gritou Henry naquela mesma voz em parte gargalhada, em parte grito. Os arbustos balançavam e estalavam, e Henry apareceu quando a chuva parou de brincar e caiu de verdade. Água escorria do cabelo de Henry, nas sobrancelhas, nas bochechas. O sorriso mostrava todos os dentes. — Vou te ensinar a jogar p...

 

Mike tinha encontrado um dos pedaços de madeira que sobraram da construção da sede do clube e jogou nele. A madeira girou duas vezes e acertou a testa de Henry. Ele gritou, colocou a mão no local como um homem que acabou de ter uma tremenda ideia, e se sentou com força.

 

— C-C-Corram! — gritou Bill. — A-Atrás de B-B-Ben!

 

Mais batidas e ruídos nos arbustos, e quando o resto dos Otários saiu correndo atrás de Ben Hanscom, Victor e Arroto apareceram, Henry ficou de pé e os três saíram atrás.

 

Mesmo depois, quando o resto daquele dia voltou à mente de Ben, ele só se lembrou de imagens aleatórias da corrida pelos arbustos. Ele se lembrou de galhos tomados de folhas pingando batendo no rosto dele, encharcando-o de água fria. Lembrou que os trovões e relâmpagos pareceram ficar quase constantes, e lembrou que os gritos de Henry para que eles voltassem e lutasse pareciam se misturar com o som do Kenduskeag conforme eles chegavam mais perto. Cada vez que ele diminuía a velocidade, Bill batia nas costas dele para fazê-lo se apressar.

 

E se eu não conseguir encontrar? E se não conseguir achar aquela estação de bombeamento específica?

 

A respiração entrava e saía dolorosamente dos pulmões, quente e com gosto de sangue no fundo da garganta. Ele estava com uma pontada na lateral do corpo. A bunda latejava onde a pedra atingira. Beverly disse que Henry e os amigos pretendiam matá-los, e Ben acreditava agora, acreditava mesmo.

 

Ele chegou ao barranco do Kenduskeag tão de repente que quase caiu na margem. Conseguiu se equilibrar, mas o barranco, amolecido pelo degelo da primavera, despencou e ele caiu de qualquer jeito, até a beira da água corrente, com a camisa subindo nas costas e a lama grudando na pele.

 

Bill caiu atrás dele e o puxou para que ficasse de pé.

 

Os outros saíram dos arbustos nas margens do barranco um atrás do outro. Richie e Eddie foram os últimos, Richie com um braço passado na cintura de Eddie, com os óculos pingando pendurados na ponta do nariz.

 

— O-O-Onde? — gritou Bill.

 

Ben olhou primeiro para a direita e depois para a esquerda, ciente de que o tempo estava suicidamente curto. O rio já parecia mais alto, e o céu escuro pela chuva o deixou de uma cor cinza perigosa enquanto fluía. As margens eram cheias de vegetação e árvores, todas agora dançando a música do vento. Ele conseguia ouvir Eddie soluçando para respirar.

 

— O-O-Onde?

 

— Não s... — ele começou a dizer, mas viu a árvore inclinada e a caverna erodida embaixo. Foi ali que ele se escondeu no primeiro dia. Ele cochilou e, quando acordou, ouviu Bill e Eddie brincando. E então os garotos grandes chegaram... viram... conquistaram. Tchau, tchau, garotos. Era uma barragem de bebê mesmo, acreditem.

 

— Ali! — gritou ele. — Por ali!

 

Um relâmpago piscou de novo, e desta vez Ben conseguiu ouvi-lo, um zumbido como um transformador de trens Lionel sobrecarregado. Ele atingiu a árvore, e um fogo azul elétrico partiu a base torta em farpas e palitos de dente para um gigante de contos de fadas. Ela caiu na direção do rio com um estrondo e jogou água para o alto. Ben inspirou com consternação e sentiu um cheiro quente e queimado e selvagem. Uma bola de fogo rolou da raiz da árvore caída, pareceu ficar mais forte e se apagou. Um trovão explodiu, não acima deles, mas ao redor, como se eles estivessem no centro da trovoada. A chuva caiu mais forte.

 

Bill bateu nas costas dele e o despertou da contemplação atordoada.

 

— V-V-VAI!

 

Ben foi, pisando na água e cambaleando na margem do rio, com o cabelo caindo nos olhos. Ele chegou à árvore (a caverna de raízes embaixo tinha sido obstruída) e passou por cima, apoiando os pés no tronco molhando e arranhando as mãos e antebraços.

 

Bill e Richie empurram Eddie para ajudá-lo a subir, e quando ele cambaleou por cima do tronco da árvore, Ben o segurou. Os dois caíram no chão. Eddie deu um grito.

 

— Você está bem? — gritou Ben.

 

— Acho que sim — gritou Eddie em resposta, ficando de pé. Ele pegou a bombinha com ansiedade e quase deixou cair. Ben segurou para ele, e Eddie deu um olhar de gratidão enquanto a enfiava na boca e disparava.

 

Richie subiu, depois Stan e Mike. Bill ajudou Beverly a subir, e Ben e Richie a seguraram do outro lado, com o cabelo grudado no rosto e a calça jeans agora preta.

 

Bill subiu por último, dando impulso no tronco e depois passando as pernas por cima. Ele viu Henry e os outros dois descendo pelo rio atrás deles, e quando deslizou pela árvore caída, gritou:

 

— P-P-Pedras! Joguem pedras!

 

Havia muitas no barranco, e a árvore atingida pelo raio formava uma ótima barricada. Em um momento ou dois, os sete estavam jogando pedras em Henry e nos amigos dele. Eles tinham quase chegado à árvore; a distância era quase à queima-roupa. Eles recuaram, gritando de dor e fúria, enquanto pedras batiam em seus rostos, peitos, braços e pernas.

 

— Ensina a gente a jogar pedras! — gritou Richie, e jogou uma do tamanho de um ovo em Victor. Ela bateu no ombro dele e quicou quase reta no ar. Victor berrou. — Eu digo... Eu digo... pode nos ensinar, rapaz. Nós aprendemos bem.

 

— Yeeeeh-aaaah! — gritou Mike. — Estão gostando? Estão gostando?

 

Não houve resposta. Eles recuaram até estarem fora do alcance e reunidos. Um momento depois, eles subiram o barranco, escorregando e tropeçando na terra molhada e escorregadia, que já estava tomada de filetes de água escorrendo, segurando-se em galhos para ficarem de pé.

 

Eles desapareceram na vegetação.

 

— Eles vão contornar a gente, Big Bill — disse Richie, empurrando os óculos no nariz.

 

— T-T-Tudo bem — disse Bill. — V-Vai, B-B-Ben. Vamos a-a-atrás de v-você.

 

Ben seguiu em frente, fazendo uma pausa (e esperando que Henry e os outros surgissem na cara dele a qualquer momento) e viu a estação de bombeamento 20 metros rio abaixo. Os outros foram atrás dele. Ele conseguia ver outros cilindros na margem oposta, um bem perto, outro 40 metros rio acima. Os dois estavam lançando torrentes de água lamacenta no Kenduskeag, mas só um filete saía do cano que saía do barranco abaixo desse. Ele também não estava zumbindo, Ben reparou. A bomba tinha quebrado.

 

Ele olhou para Bill, pensativo... e com um pouco de medo.

 

Bill estava olhando para Richie, Stan e Mike.

 

— A g-g-gente t-t-tem que t-t-tirar a t-t-tampa — disse ele. — M-Me a-ajudem.

 

Havia alças no ferro, mas a chuva as tinha deixado escorregadias e a tampa era incrivelmente pesada. Ben ficou ao lado de Bill, e Bill moveu um pouco as mãos para abrir espaço. Ben conseguia ouvir água pingando dentro, um som ecoante e desagradável, como água pingando em um poço.

 

— A-A-AGORA! — gritou Bill, e os cinco puxaram na mesma hora. A tampa se moveu com um som desagradável de arranhado.

 

Beverly segurou ao lado de Richie, e Eddie puxou com o braço bom.

 

— Um, dois, três, empurre! — gritou Richie.

 

A tampa deslizou mais um pouco de cima do cilindro. Agora, um crescente de escuridão aparecia.

 

— Um, dois, três, empurre!

 

O crescente aumentou.

 

— Um, dois, três, empurre!

 

Ben empurrou até pontos vermelhos dançarem em frente aos seus olhos.

 

— Pra trás! — gritou Mike. — Lá vai, lá vai!

 

Eles se afastaram e viram a grande tampa circular balançar e cair. A queda provocou uma abertura na terra molhada e a tampa caiu de cabeça para baixo como uma enorme peça de jogo de damas. Besouros saíram correndo da superfície para a grama molhada.

 

— Eca — disse Eddie.

 

Bill espiou lá dentro. Degraus de ferro desciam até uma poça circular de água preta, com a superfície agora pontilhada pelas gotas de chuva. A bomba silenciosa estava no meio dela, parcialmente submersa. Ele conseguia ver água entrando na estação pela boca do cano interno e, com desespero, ele pensou: É pra lá que a gente tem que ir. Lá dentro.

 

— E-E-E-Eddie. S-Segura em m-mim.

 

Eddie olhou para ele sem entender.

 

— Monta nas m-minhas c-c-costas. Segura com o b-b-braço b-bom. — Ele demonstrou.

 

Eddie entendeu, mas ficou relutante.

 

— Rápido! — disse Bill. — E-E-Eles v-vão c-c-chegar!

 

Eddie passou o braço ao redor do pescoço de Bill; Stan e Mike o levantaram, para que ele conseguisse passar as pernas ao redor da cintura. Quando Bill passou desajeitado pela borda do cilindro, Ben viu que Eddie estava com os olhos bem fechados.

 

Acima da chuva, ele conseguia ouvir outro som: galhos estalando, quebrando, vozes. Henry, Victor e Arroto. A cavalaria mais feia do mundo.

 

Bill agarrou a beirada áspera de concreto do cilindro e desceu com cuidado, um degrau de cada vez. As tiras de metal estavam escorregadias. Eddie o estava segurando quase que eu um abraço mortal, e Bill supôs que estava tendo uma demonstração bem gráfica de como era a asma de Eddie.

 

— Estou com medo, Bill — sussurrou Eddie.

 

— E-E-Eu também.

 

Ele soltou a beirada de concreto e segurou no degrau mais alto. Apesar de Eddie o estar quase sufocando e parecer que ele já tinha ganhado 20 quilos, Bill fez uma pausa e olhou para o Barrens, para o Kenduskeag e para as nuvens em movimento. Uma voz dentro dele (não uma voz com medo, apenas firme) mandou-o dar uma boa olhada, para o caso de ele nunca mais ver o mundo.

 

Assim, ele olhou, e começou a descer com Eddie agarrado nas costas.

 

— Não vou conseguir segurar muito tempo — Eddie conseguiu dizer.

 

— N-N-Não vai ser p-preciso — disse Bill. — Estamos quase l-lá.

 

Um dos pés dele entrou na água fria. Ele procurou o degrau de baixo e encontrou. Havia outro abaixo, e a escada terminava. Ele estava de pé com água até os joelhos ao lado da bomba.

 

Ele se agachou, fez uma careta quando a água fria encharcou a calça e soltou Eddie. Ele respirou fundo. O cheiro não era muito bom, mas era ótimo não estar com o braço de Eddie ao redor do pescoço.

 

Ele olhou para a boca do cilindro. Estava a uns 3 metros acima da cabeça dele. Os outros estavam agrupados ao redor da beirada, olhando para baixo.

 

— V-V-Venham! — gritou ele. — U-Um de c-c-cada vez! Rápido!

 

Beverly desceu primeiro, passando com facilidade pela borda e segurando a escada, e Stan foi depois. Os outros seguiram. Richie foi o último, e fez uma pausa para ouvir o progresso de Henry e dos amigos. Ele pensou, pelo som do progresso desajeitado, que eles passariam um pouco à esquerda da estação, mas quase certamente não o bastante para fazer diferença.

 

Naquele momento, Victor gritou:

 

— Henry! Ali! Tozier!

 

Richie olhou e os viu se aproximando rapidamente. Victor estava na frente... mas Henry o empurrou para o lado com tanta selvageria que Victor caiu de joelhos. Henry estava mesmo com uma faca enorme. Gotas de água escorriam da lâmina.

 

Richie olhou para dentro do cilindro, viu Ben e Stan ajudando Mike a descer da escada e passou por cima da borda. Henry entendeu o que ele estava fazendo e gritou. Richie, rindo loucamente, colocou a mão esquerda na dobra atrás do cotovelo direito e levantou o antebraço para o céu, com a mão fechada, no que talvez fosse o gesto mais antigo do mundo. Para ter certeza de que Henry tinha entendido, ele mostrou o dedo do meio.

 

— Vocês vão morrer aí embaixo! — gritou Henry.

 

— Prove! — gritou Richie, rindo. Ele estava morrendo de medo de entrar pelo cano de concreto, mas não conseguia parar de gargalhar. E, com a Voz do Policial Irlandês, ele berrou: — Não tenha a menor dúvida, a sorte irlandesa nunca acaba, belo rapaz!

 

Henry escorregou na grama molhada e caiu sentado a menos de 6 metros de onde Richie estava, com os pés no primeiro degrau da escada presa na curva interna da estação de bombeamento, com a cabeça e o peito para fora.

 

— Ei, pé de banana! — gritou Richie, delirante de triunfo, e desceu pela escada. Os degraus de ferro estavam escorregadios, e ele quase caiu uma vez. Mas logo Bill e Mike o seguraram, e ele estava de pé com água até os joelhos junto com os outros, em um círculo ao redor da bomba. Ele estava todo tremendo, sentia calor e frio subindo pelas costas, mas não conseguia parar de rir.

 

— Você devia ter visto ele, Big Bill, desajeitado como sempre, ainda não consegue nem andar direito...

 

A cabeça de Henry apareceu na abertura circular no alto. Havia arranhões de galhos e folhas nas bochechas dele. A boca estava em movimento e os olhos pareciam pegar fogo.

 

— Tudo bem — gritou ele para o grupo. As palavras tinham uma ressonância estranha dentro do cilindro de concreto, não exatamente um eco. — Estou indo. Peguei vocês agora.

 

Ele passou uma perna por cima da borda, procurou o degrau mais alto com o pé, encontrou e passou a outra perna.

 

Falando alto, Bill disse:

 

— Q-Quando e-e-ele chegar a-a-aqui p-p-perto, a g-g-gente a-a-agarra e-ele. P-p-puxa pra b-b-baixo. M-M-Mergulha na á-á-água. E-E-Entenderam?

 

— Certinho, governador — disse Richie, e bateu uma continência com a mão trêmula.

 

— Pegamos você — disse Ben.

 

Stan deu uma piscadela para Eddie, que não entendeu o que estava acontecendo, só que parecia a ele que Richie tinha ficado maluco. Ele estava rindo como um louco enquanto Henry Bowers, o temido Henry Bowers se preparava para descer e matar todos eles como ratos em um barril cheio de chuva.

 

— Todos prontos pra ele, Bill! — gritou Stan.

 

Henry ficou imóvel faltando três degraus. Ele olhou para os Otários por cima do ombro. Seu rosto pareceu, pela primeira vez, em dúvida.

 

Eddie de repente entendeu. Se eles descessem, teriam que vir um de cada vez. Era alto demais para pular, principalmente para cair em cima da bomba, e eles estavam os sete esperando em um círculo pequeno.

 

— V-V-Vem, Henry — disse Bill em tom agradável. — E-E-Está e-e-esperando o quê?

 

— Isso aí — disse Richie. — Você gosta de bater em garotos menores, né? Vem, Henry.

 

— Estamos esperando, Henry — disse Beverly com voz doce. — Acho que você não vai gostar quando chegar aqui embaixo, mas vem se quiser.

 

— A não ser que você seja covarde — acrescentou Ben. Ele começou a fazer barulhos de galinha. Richie se juntou a ele imediatamente, e logo todos os sete estavam fazendo. Os cacarejos debochados ecoaram nas paredes úmidas. Henry olhou para eles, com a faca na mão esquerda, o rosto da cor de tijolos velhos. Ele demorou uns trinta segundos e voltou a subir. Os Otários assobiaram e gritaram insultos.

 

— C-C-Certo — disse Bill. Ele falou em tom mais baixo. — T-Temos que e-entrar n-n-naquele c-cano. R-Rápido.

 

— Por quê? — perguntou Beverly, mas Bill foi poupado do esforço de responder. Henry reapareceu na beirada do cilindro e jogou uma pedra do tamanho de uma bola de futebol. Beverly gritou e Stan puxou Eddie contra a parede circular com um grito rouco. A pedra bateu na parte externa e enferrujada da bomba e produziu um bong musical. Ela ricocheteou para a esquerda e bateu na parede de concreto, passando a menos de 30 centímetros de Eddie. Uma lasca de concreto bateu dolorosamente na bochecha dele. A pedra caiu na água com um som alto.

 

— R-R-Rápido! — gritou Bill de novo, e eles entraram no cano da estação de bombeamento. O diâmetro interno era de cerca de 1,5 metro. Bill mandou um entrar atrás do outro (uma vaga imagem de circo, com os palhaços grandes saindo do carrinho, passou pela mente dele em um brilho meteórico; anos depois, ele usaria a mesma imagem em um livro chamado A correnteza negra) e entrou por último, depois de desviar de outra pedra. Enquanto eles olhavam, mais pedras caíram, a maioria batendo na bomba e desviando em ângulos loucos.

 

Quando elas pararam de cair, Bill espiou e viu Henry descendo a escada de novo, o mais rápido possível.

 

— P-P-Peguem e-e-ele! — gritou ele para os outros. Richie, Ben e Mike se juntaram atrás de Bill. Richie pulou alto e agarrou o tornozelo de Henry. Henry falou um palavrão e balançou a perna, como se tentando chutar um cachorro pequeno com dentes grandes, talvez um terrier ou um pequinês. Richie segurou um degrau, subiu ainda mais alto e conseguiu enfiar os dentes no tornozelo de Henry. Henry gritou e começou a subir rapidamente. Um dos sapatos caiu na água, onde afundou tranquilamente.

 

— Me mordeu! — gritou Henry. — O filho da puta me mordeu!

 

— É, ainda bem que tomei vacina de tétano na primavera! — gritou Richie.

 

— Bate neles! — gritou Henry, delirante. — Bate neles, joga bombas da era da pedra, esmaga os cérebros deles!

 

Mais pedras voaram. Os garotos voltaram para o cano rapidamente. Mike foi atingido no braço por uma pedra pequena e ficou segurando com força, fazendo careta, até a dor começar a diminuir.

 

— Estamos em um impasse — disse Ben. — Eles não podem descer e a gente não pode subir.

 

— N-Não é pra gente s-subir — disse Bill baixinho — e v-v-vocês sabem. N-Não é pra g-g-gente s-subir n-n-nunca mais.

 

Eles olharam para Bill, com olhos magoados e com medo. Ninguém disse nada.

 

A voz de Henry, com a fúria disfarçada de deboche, chegou até lá embaixo:

 

— Podemos esperar aqui o dia todo, pessoal!

 

Beverly tinha se virado e estava olhando pelo comprimento do cano. A luz ficava difusa rapidamente e ela não conseguia ver muito. O que conseguia ver era um túnel de concreto com um terço da altura tomado de água corrente. Ela percebeu que a água estava mais alta do que quando eles se espremeram ali dentro pela primeira vez; isso acontecia porque a bomba não estava funcionando e só parte da água estava saindo no lado do Kenduskeag. Ela sentiu a claustrofobia tocar sua garganta e transformar a pele ali em uma coisa que parecia flanela. Se a água subisse muito, eles se afogariam.

 

— Bill, a gente precisa?

 

Ele deu de ombros. O gesto dizia tudo. Sim, eles precisavam; o que mais havia? Serem mortos por Henry, Victor e Arroto no Barrens? Ou por outra coisa, talvez alguma coisa pior, na cidade? Ela entendia bem esse pensamento agora; não havia gagueira no movimento de ombros dele. Era melhor eles irem até a Coisa. Encará-la, como o enfrentamento em um filme de faroeste. Era mais limpo. Mais corajoso.

 

Richie disse:

 

— Qual era o nome daquele ritual sobre o qual você contou pra gente, Big Bill? O do livro da biblioteca?

 

— Ch-Ch-Chüd — disse Bill, sorrindo um pouco.

 

— Chüd. — Richie assentiu. — Você morde a língua da Coisa e a Coisa morde a sua, né?

 

— É-É.

 

— E então, vocês contam piadas.

 

Bill assentiu.

 

— Engraçado — disse Richie, olhando para o cano escuro. — Não consigo pensar em nenhuma.

 

— Nem eu — disse Ben.

 

O medo estava pesado em seu peito, quase sufocante. Ele sentia que a única coisa impedindo-o de se sentar na água e choramingar como um bebê, ou simplesmente ficar maluco, era a presença calma e tranquilizadora de Bill... e Beverly. Ele sentia que preferia morrer a mostrar para Beverly o quanto estava com medo.

 

— Você sabe aonde o cano vai? — perguntou Stan.

 

Bill balançou a cabeça.

 

— Sabe como encontrar a Coisa?

 

Bill balançou a cabeça de novo.

 

— Vamos saber quando estivermos chegando perto — disse Richie de repente. Ele inspirou fundo, tremendo. — Se temos que fazer isso, então vamos.

 

Bill assentiu.

 

— Eu vou p-p-primeiro. Depois E-Eddie. B-B-Ben. Bev. Sta-an, o C-C-Cara. M-M-Mike. Você por ú-ú-último, R-Richie. T-Todo m-mundo f-f-fica com a m-m-mão no o-o-ombro da p-p-pessoa na f-f-frente. Vai estar e-e-escuro.

 

— Vão sair? — gritou Henry Bowers para eles.

 

— Vamos sair em algum lugar — murmurou Richie. — Eu acho.

 

Eles formaram uma procissão de cegos. Bill olhou para trás uma vez, para confirmar que cada um estava com a mão no ombro da pessoa à frente. E então, inclinando-se de leve para a frente contra o fluxo de água, Bill Denbrough guiou os amigos para a escuridão onde o barco que ele tinha feito para o irmão foi parar quase um ano antes.

 

O círculo se fecha

 

Tom Rogan estava tendo uma porra de sonho louco. Nele, ele estava matando o pai.

 

Parte da mente dele entendia o quanto isso era loucura; o pai morreu quando Tom estava no terceiro ano. Bem... talvez “morreu” não fosse uma palavra muito boa. Talvez “cometeu suicídio” fosse a verdade. Ralph Rogan preparou para si mesmo um coquetel de gim com desinfetante. A saideira, poderíamos dizer. Tom foi colocado como responsável pelos irmãos e irmãs, e começou a levar “surras” se alguma coisa errada acontecia com eles.

 

Assim, ele não podia ter matado o pai... só que ali estava ele, nesse sonho assustador, segurando o que parecia um tipo de cabo inofensivo no pescoço do pai... só que não era realmente inofensivo, era? Havia um botão na ponta do cabo, e se ele o apertasse, uma lâmina surgiria e penetraria no pescoço do pai. Não vou fazer nada assim, papai, não se preocupe, sua mente sonhadora pensou logo antes de seu dedo apertar o botão e a lâmina pular. Os olhos fechados do pai se abriram e olharam para o teto; a boca do pai se abriu e um som gorgolejante e sangrento saiu. Papai, eu não fiz isso!, gritou sua mente. Outra pessoa...

 

Ele lutou para acordar, mas não conseguiu. O melhor que conseguiu fazer (e acabou não sendo muito bom) foi entrar em um novo sonho. Nesse sonho, ele estava andando com dificuldade em um túnel longo e escuro cheio de água. Suas bolas doíam e seu rosto ardia porque estava coberto de cortes. Havia outros com ele, mas ele só conseguia identificar formas vagas. O que importava eram as crianças em algum ponto à frente. Elas precisavam pagar. Elas precisavam

 

(de uma surra)

 

serem punidas.

 

Independente de que purgatório fosse aquele, era fedorento. Água pingava e ecoava. Seus sapatos e sua calça estavam encharcados. Os merdinhas estavam à frente nesse labirinto de túneis, e talvez pensassem que

 

(Henry)

 

Tom e os amigos fossem se perder, mas eles iriam ver só,

 

(ha-ha, esperem só!)

 

porque ele tinha outro amigo, ah, sim, um amigo especial, e esse amigo tinha marcado o caminho que eles tinham que seguir com... com...

 

(Balões-Lua)

 

negocinhos que eram grandes e redondos e de alguma forma iluminados por dentro, de forma que emitiam um brilho como o que sai misteriosamente de postes de luz antiquados. Um desses balões flutuou e deslizou até a interseção, e nos lados de cada um havia uma seta apontando a direção no túnel que ele e

 

(Victor e Arroto)

 

seus amigos desconhecidos tinham que pegar. E era o caminho certo, era sim; ele conseguia ouvir os outros à frente, com os passos fazendo barulho na água e ecoando, e os murmúrios distorcidos das vozes. Eles estavam chegando mais perto, alcançando. E quando conseguissem... Tom olhou para baixo e viu que ainda estava com a faca na mão.

 

Por um momento, ele sentiu medo. Essa era como uma daquelas experiências astrais malucas sobre as quais lia às vezes nos tabloides semanais, quando seu espírito saía do corpo e entrava no de outra pessoa. A forma do seu corpo parecia diferente, como se ele não fosse Tom, mas

 

(Henry)

 

outra pessoa, alguém mais novo. Ele começou a lutar para sair do sonho, em pânico, e então a voz estava falando com ele, sussurrando em seu ouvido: Não importa quando estamos e não importa quem você é. O que importa é que Beverly está lá na frente, ela está com eles, meu bom amigo, e quer saber? Ela está fazendo umas coisas bem piores do que fumar escondido. Quer saber o quê? Ela anda fodendo com o velho amigo Bill Denbrough! É mesmo! Ela e aquele garoto gago bizarro, fazendo sexo! Eles...

 

É mentira!, ele tentou gritar. Ela não ousaria!

 

Mas ele sabia que não era mentira. Ela tinha usado um cinto nas suas

 

(me chutou nas)

 

bolas e saiu correndo, e agora ela o traiu, a piranha

 

(mirim)

 

promíscua realmente o traiu, e ah, bons amigos, ah, bons vizinhos, ela ia levar a surra das surras; primeiro ela e depois Denbrough, o amigo escritor. E qualquer pessoa que tentasse atrapalhar teria espaço garantido na surra.

 

Ele acelerou o passo, embora a respiração já estivesse assobiando em sua garganta. À frente, ele conseguia ver outro círculo luminoso flutuando na escuridão, outro Balão-Lua. Ele conseguia ouvir as vozes das pessoas à frente, e o fato de serem vozes infantis não o incomodava mais. Era como a voz dizia: não importava onde, quando nem quem. Beverly estava lá, e ah, queridos amigos, ah, queridos vizinhos...

 

— Vamos, pessoal, andem mais rápido — disse ele, e nem importava o fato de sua voz não ser a sua, mas a voz de um garoto.

 

E então, quando eles se aproximaram do Balão-Lua, ele olhou ao redor e viu os companheiros pela primeira vez. Os dois estavam mortos. Um não tinha cabeça. O rosto do outro tinha sido rasgado como por uma grande garra.

 

— Estamos indo o mais rápido que conseguimos, Henry — disse o garoto com o rosto partido, e os lábios se moveram em duas partes grotescamente fora de sincronia, e foi nessa hora que Tom gritou no sonho e voltou a si, oscilando à beira do que parecia um grande espaço vazio.

 

Ele lutou para manter o equilíbrio, perdeu e caiu no chão. O chão era acarpetado, mas a queda ainda provocou uma onda horrível de dor no joelho ferido, e ele sufocou outro grito contra o antebraço.

 

Onde estou? Onde estou, porra?

 

Ele ficou ciente de uma luz branca leve, mas clara, e por um momento assustador pensou que estava no sonho de novo, que a luz era emitida por um daqueles balões malucos. Mas então lembrou-se de ter deixado a porta do banheiro parcialmente aberta e a luz fluorescente lá dentro acesa. Ele sempre deixava a luz acesa quando dormia em um lugar estranho; poupava a canela de algumas batidas se precisasse levantar no meio da noite para mijar.

 

Isso fez a realidade estalar e encaixar no lugar. Tinha sido um sonho, tudo um sonho maluco. Ele estava em um Holiday Inn. Aqui era Derry, Maine. Ele tinha ido lá atrás da esposa e, no meio de um pesadelo maluco, caiu da cama. Foi só isso; essa era a história toda.

 

Não foi só um pesadelo.

 

Ele pulou como se as palavras tivessem sido ditas ao lado de seu ouvido em vez de em sua mente. Não pareceu sua voz interior; era estranha, alienígena... mas de alguma forma hipnótica e verossímil.

 

Ele se levantou lentamente, procurou um copo de água na mesinha ao lado da cama e bebeu tudo. Passou mãos trêmulas pelo cabelo. O relógio da mesinha dizia 3h10.

 

Volte a dormir. Espere até de manhã.

 

Aquela voz alienígena respondeu: Mas vai haver gente por perto de manhã, gente demais. Além disso, você pode chegar antes deles lá embaixo desta vez. Desta vez, você pode ser o primeiro.

 

Lá embaixo? Ele pensou no sonho: a água, a escuridão úmida.

 

A luz de repente pareceu mais forte. Ele virou a cabeça, sem querer, mas incapaz de parar. Um gemido saiu de sua boca. Um balão estava preso na maçaneta da porta do banheiro. Ele flutuava na ponta de um barbante de uns 90 centímetros. O balão brilhava, cheiro de uma luz branca fantasmagórica; ele parecia um fogo-fátuo visto em um pântano, flutuando de forma sonhadora entre árvores cobertas de cordas cinzentas de musgo. Havia uma seta desenhada na superfície curva do balão, uma seta vermelho-sangue.

 

Estava apontando para a porta que levava ao corredor.

 

Não importa muito quem eu sou, disse a voz em tom tranquilizador, e Tom percebeu agora que não estava vindo de sua cabeça nem do lado do ouvido; estava vindo do balão, do centro daquela luz estranha e adorável. Só o que importa é que vou cuidar para que tudo saia de forma a satisfazer você, Tom. Quero ver ela tomar uma surra; quero ver todos tomarem uma surra. Eles atravessaram o meu caminho vezes demais... e tarde demais para eles agora. Então escute, Tom. Escute com atenção. Todos juntos agora... siga o balão flutuante...

 

Tom escutou. A voz do balão explicou.

 

Ela explicou tudo.

 

Quando terminou, deu um último brilho de luz, e Tom começou a se vestir.

 

Audra também teve pesadelos.

 

Ela acordou com um susto e se sentou na cama com o lençol ao redor da cintura; os pequenos seios se mexiam junto com a respiração rápida e agitada.

 

Assim como o de Tom, o sonho dela foi uma experiência confusa e angustiante. Assim como Tom, ela teve a sensação de ser outra pessoa, ou melhor, de ter sua própria consciência depositada (e parcialmente submersa) em outro corpo e outra mente. Ela estava em um lugar escuro, com várias outras pessoas com ela, e percebeu uma sensação opressiva de perigo. Eles estavam indo para o perigo deliberadamente, e ela queria gritar para que eles parassem, que explicassem a ela o que estava acontecendo... mas a pessoa com quem ela estava mesclada parecia saber e acreditar que era necessário.

 

Ela também sabia que eles estavam sendo perseguidos e que os perseguidores estavam alcançando-os, pouco a pouco.

 

Bill estava no sonho, mas a história dele sobre o esquecimento da infância devia estar na cabeça dela, porque no sonho Bill era apenas um garoto de 10 ou no máximo 12 anos, e ainda tinha cabelo! Ela estava de mão dada com ele e percebia vagamente que o amava muito, e que sua disposição de ir em frente era baseada na certeza firme de que Bill a protegeria e a todos eles, que Bill, Big Bill, de alguma forma os faria passar por isso e voltar para a luz do dia.

 

Ah, mas ela estava tão apavorada.

 

Eles chegaram a uma ramificação de muitos túneis, e Bill ficou ali de pé, olhando de um para o outro, e um dos outros, um garoto com o braço engessado que brilhava em um tom branco fantasmagórico na escuridão, falou:

 

— Aquele, Bill. O de baixo.

 

— T-T-Tem c-c-certeza?

 

— Tenho.

 

E assim, eles seguiram por ali, e havia uma porta, uma portinha de madeira com uns 90 centímetros de altura, do tipo que se poderia ver em um livro de contos de fadas, com uma marca na porta. Ela não conseguia lembrar que marca era, que runa ou símbolo estranho era. Mas concentrou todo o terror dela em um ponto só, e ela se arrancou daquele outro corpo, daquele corpo de garota, fosse lá quem

 

(Beverly-Beverly)

 

ela pudesse ser. Ela acordou imediatamente em uma cama estranha, suada, de olhos arregalados, ofegante, como se tivesse acabado de apostar corrida. As mãos voaram para as pernas, meio esperando encontrá-las molhadas e frias pela água na qual ela estava andando na mente. Mas ela estava seca.

 

A desorientação veio em seguida: essa não era a casa deles em Topanga Canyon nem a casa alugada em Fleet. Era lugar nenhum, um limbo equipado com cama, cômoda, duas cadeiras e uma TV.

 

— Ah, Deus, acorde, Audra...

 

Ela esfregou as mãos com força no rosto, e aquela sensação enjoativa de vertigem mental diminuiu. Ela estava em Derry. Derry, Maine, onde o marido cresceu em uma infância que alegava não lembrar mais. Não era um lugar familiar para ela, nem um local particularmente bom, mas pelo menos era um lugar conhecido. Ela estava aqui porque Bill estava aqui, e ela o veria amanhã no Derry Town House. Fosse lá qual fosse a coisa horrível que havia de errado aqui, fosse lá o que aquelas cicatrizes na mão dele quisessem dizer, eles encarariam juntos. Ela ligaria para ele, diria que estava aqui e se juntaria a ele. Depois disso... bem...

 

Na verdade, ela não fazia ideia do que viria depois. A vertigem, a sensação de estar em um lugar que não era lugar nenhum, estava ameaçando de novo. Quando ela tinha 19 anos, fez uma turnê de várias paradas com uma companhia pequena, e eles fizeram quarenta apresentações de Arsenic and Old Lace em quarenta cidades não muito boas. Eles começaram no Peabody Dinner Theater em Massachusetts e terminaram no Play It Again Sam em Sausalito. E em algum ponto no meio, em alguma cidade do Meio-Oeste como Ames, Iowa ou Grand Isle, Nebraska, ou talvez Jubilee, Dakota do Norte, ela acordou assim no meio da noite, em pânico pela desorientação, sem saber em que cidade estava, que dia era ou por que estava onde estava. Até o nome dela pareceu irreal.

 

Aquela sensação voltou agora. O sono ruim invadiu seu estado acordado e ela sentiu um terror flutuante de pesadelo. A cidade parecia ter se enrolado nela como uma jiboia. Ela conseguia senti-la, e os sentimentos produzidos não eram bons. Ela se viu desejando ter aceitado o conselho de Freddie e ficado longe.

 

Sua mente se fixou em Bill, agarrando-se ao pensamento nele como uma mulher se afogando se agarraria a um mastro, a uma boia ou a qualquer coisa que

 

(todos flutuamos aqui embaixo, Audra)

 

flutue.

 

Um tremor percorreu o corpo dela, e ela cruzou os braços sobre os seios nus. Ela tremeu e viu um arrepio surgir em sua pele. Por um momento, pareceu a ela que a voz tinha falado em voz alta, mas dentro da cabeça dela. Como se houvesse uma presença alienígena ali.

 

Estou ficando maluca? Deus, é isso?

 

Não, a mente dela respondeu. É só desorientação... o fuso horário... preocupação com seu homem. Ninguém está falando dentro da sua cabeça. Ninguém...

 

— Todos flutuamos aqui, Audra — disse uma voz vinda do banheiro. Era uma voz real, real como uma casa. E dissimulada. Dissimulada e desonesta e má. — Você também vai flutuar. — A voz deu uma risadinha que foi ficando grave até parecer um ralo entupido borbulhando. Audra gritou... e colocou as mãos sobre a boca.

 

Eu não ouvi isso.

 

Ela falou em voz alta, desafiando a voz a contradizê-la. Ela não fez isso. O quarto ficou em silêncio. Em algum lugar distante, um trem apitou na noite.

 

De repente, ela precisou tanto de Bill que esperar até a manhã pareceu impossível. Ela estava em um quarto de motel comum exatamente idêntico às outras 39 unidades, mas de repente foi demais. Tudo. Quando você começava a ouvir vozes, era demais. Assustador demais. Ela parecia estar resvalando de novo para o pesadelo do qual tinha acabado de escapar. Ela estava com medo e terrivelmente solitária. É pior do que isso, pensou ela. Eu me sinto morta. O coração dela de repente pulou duas batidas no peito, fazendo-a ofegar e dar uma tossidinha assustada. Ela sentiu um instante de pânico de prisão, de claustrofobia dentro do próprio corpo, e se perguntou se todo esse terror não tinha uma raiz física comum e idiota, afinal. Talvez ela fosse ter um ataque cardíaco. Ou já estivesse tendo um.

 

O coração dela se acalmou, mas com inquietação.

 

Audra acendeu a luz na mesa de cabeceira e olhou para o relógio. Três horas e 12 minutos. Ele estaria dormindo, mas isso não importava para ela agora; nada importava exceto ouvir a voz dele. Ela queria terminar a noite com ele. Se Bill estivesse ao lado dela, o relógio biológico dela entraria em sintonia com o dele e se acalmaria. Os pesadelos ficariam longe. Ele vendia pesadelos para os outros, essa era a área dele, mas, para ela, ele nunca deu nada além de paz. Fora daquela estranha noz fria incrustada na imaginação dele, a paz parecia ser tudo para que ele foi feito. Ela pegou as Páginas Amarelas, encontrou o número do Derry Town House e ligou.

 

— Derry Town House.

 

— Você poderia fazer o favor de ligar para o quarto do sr. Denbrough? O sr. William Denbrough?

 

— Esse cara por acaso recebe ligações durante o dia? — disse o recepcionista, e antes que ela pudesse pensar em perguntar o que isso queria dizer, ele passou a ligação. O telefone tocou uma, duas, três vezes. Ela conseguia imaginá-lo dormindo todo coberto, exceto pelo alto da cabeça; conseguia imaginar uma das mãos saindo, procurando o telefone. Ela o tinha visto fazer isso antes, e um sorrisinho amoroso tocou seus lábios. O sorriso sumiu quando o telefone tocou uma quarta vez... e uma quinta, e uma sexta. Na metade do sétimo toque, a ligação foi interrompida.

 

— O quarto não atende.

 

— Jura, Sherlock? — disse Audra, mais perturbada e assustada do que nunca. — Você tem certeza de que ligou pro quarto certo?

 

— Tenho — disse o recepcionista. — O sr. Denbrough recebeu uma ligação de outro quarto há menos de cinco minutos. Sei que ele atendeu, porque a luz ficou acesa no painel durante um ou dois minutos. Ele deve ter ido para o quarto da pessoa.

 

— E de que quarto foi?

 

— Não lembro. Do sexto andar, eu acho. Mas...

 

Ela colocou o fone no gancho. Uma certeza estranha e desanimadora tomou conta dela. Era uma mulher. Uma mulher tinha ligado para ele... e ele foi até ela. Bem, e agora, Audra? Como lidamos com isso?

 

Ela sentiu a ameaça de lágrimas. Os olhos e o nariz dela arderam; ela conseguia sentir o caroço de um soluço no fundo da garganta. Nada de raiva, pelo menos ainda não... só uma sensação doentia de perda e abandono.

 

Audra, controle-se. Você está tirando conclusões. Estamos no meio da noite, você teve um sonho ruim e agora concluiu que Bill está com outra mulher. Mas não é necessariamente assim. O que você vai fazer é se sentar, pois não vai mesmo voltar a dormir agora. Acenda as luzes e termine o livro que trouxe para ler no avião. Lembra o que Bill diz? O melhor tipo de droga. O Valium-Livro. Nada de frescura agora. Nada de medo e de ouvir vozes. Dorothy Sayers e Lord Peter, esse é o bilhete. The Nine Tailors. Ele vai levar você até o amanhecer. Vai...

 

A luz do banheiro se acendeu de repente, ela conseguiu ver debaixo da porta. Então a tranca estalou e a porta se abriu. Ela olhou para lá com olhos arregalados, cruzando os braços instintivamente por cima dos seios de novo. O coração disparou na caixa torácica, e o gosto amargo da adrenalina encheu sua boca.

 

Aquela voz, baixa e arrastada, disse:

 

— Todos flutuamos aqui embaixo, Audra. — A última palavra se tornou um grito comprido, baixo e fraco, Audraaaaa, que terminou de novo naquele som entalado e gorgolejante que parecia uma gargalhada.

 

— Quem está aí? — gritou ela, recuando. Isso não foi imaginação minha, de jeito nenhum, você não vai me dizer isso...

 

A TV ligou. Ela se virou e viu um palhaço de roupa prateada com grandes botões laranja pulando pela tela. Havia buracos pretos onde os olhos deveriam estar, e quando os lábios pintados se esticaram ainda mais em um sorriso, ela viu dentes como lâminas. Ele estava segurando uma cabeça cortada pingando sangue. Os olhos estavam revirados até a parte branca e a boca estava aberta, mas ela conseguia enxergar o bastante para perceber que era a cabeça de Freddie Firestone. O palhaço gargalhou e dançou. Ele girou a cabeça, e gotas de sangue voaram na parte interna da tela da TV. Ela conseguia sentir as gotas fervilhando ali.

 

Audra tentou gritar, mas só o que saiu foi um choramingo. Ela tateou cegamente em busca do vestido nas costas da cadeira e da bolsa. Correu para o corredor e bateu a porta, ofegante e com o rosto branco como papel. Ela largou a bolsa entre os pés e colocou o vestido pela cabeça.

 

— Flutuam — disse uma voz baixa e risonha atrás dela, e ela sentiu um dedo frio acariciar o calcanhar nu.

 

Ela deu outro grito agudo e sem fôlego e pulou para longe da porta. Dedos brancos como os de um cadáver estavam se mexendo para a frente e para trás por baixo dela, com as unhas levantadas deixando à mostra a carne sensível por baixo. Elas faziam sons roucos de sussurro no carpete áspero do corredor.

 

Audra agarrou a alça da bolsa e correu descalça até a porta no final do corredor. Estava em pânico cego agora, só pensando que tinha que encontrar o Derry Town House e Bill. Não importava se ele estivesse na cama com outras mulheres para montar um harém. Ela o encontraria e faria com que ele a levasse da coisa indescritível que era essa cidade.

 

Ela correu pela passagem até o estacionamento, procurando loucamente o carro. Por um momento, sua mente pareceu congelar, e ela não conseguia nem lembrar que carro tinha alugado. Mas então, a lembrança veio: um Datsun marrom. Ela o viu com névoa até as calotas e correu para ele. Mas não conseguia achar a chave na bolsa. Ela remexeu no interior com pânico crescente, empurrando lenços de papel, cosméticos, moedas, óculos de sol e chicletes na confusão sem sentido. Ela não reparou no sedã LTD velho estacionado de frente para seu carro alugado, nem no homem sentado atrás do volante. Ela não reparou quando a porta do LTD foi aberta e o homem saiu; ela estava tentando lidar com a certeza crescente de que tinha deixado a chave do Datsun no quarto. Ela não podia voltar lá; não podia.

 

Seus dedos tocaram em metal duro e denteado debaixo de uma caixa de balinhas Altoid, e ela agarrou a chave com um gritinho de triunfo. Por um momento terrível, ela achou que podia ser a chave do Rover deles, agora parado no estacionamento da estação de Fleet a quase 5 mil quilômetros, mas sentiu o chaveiro de acrílico da locadora. Ela enfiou a chave na porta do carro, respirando ofegante, e girou. Foi nessa hora que a mão pesada caiu em seu ombro, e ela gritou... gritou alto desta vez. Em algum lugar, um cachorro latiu em resposta, mas isso foi tudo.

 

A mão, dura como aço, afundou com crueldade e a obrigou a girar. O rosto que ela viu acima do dela estava inchado e cheio de marcas. Os olhos brilhavam. Quando os lábios inchados se abriram em um sorriso grotesco, ela viu que alguns dos dentes da frente do homem estavam quebrados. Os cotocos pareciam irregulares e selvagens.

 

Ela tentou falar, mas não conseguiu. A mão apertou com mais força e afundou mais.

 

— Eu não vi você no cinema? — sussurrou Tom Rogan.

 

Quarto de Eddie

 

Beverly e Bill se vestiram rapidamente, sem falar, e subiram para o quarto de Eddie. A caminho do elevador, eles ouviram um telefone tocar em algum lugar atrás deles. Foi um som abafado de coisa que parece estar em outro lugar.

 

— Bill, foi o seu?

 

— P-Podia s-s-ser — disse ele. — Um dos o-outros l-ligando, t-talvez. — Ele apertou o botão de subir.

 

Eddie abriu a porta para eles, com o rosto branco e tenso. O braço esquerdo estava dobrado em um ângulo peculiar e estranhamente evocativo de velhos tempos.

 

— Estou bem — disse ele. — Tomei dois Darvon. A dor não está muito ruim agora. — Mas era claro que também não estava boa. Os lábios dele, tão apertados que quase desapareceram, estavam roxos de choque.

 

Bill olhou para trás dele e viu o corpo no chão. Um olhar foi o bastante para satisfazê-lo em dois aspectos: era Henry Bowers e ele estava morto. Ele passou por Eddie e se ajoelhou ao lado do corpo. O gargalo de uma garrafa de Perrier tinha sido enfiado no tórax de Henry, repuxando os farrapos da camisa junto. Os olhos estavam entreabertos, vidrados. A boca, cheia de sangue coagulado, parecia rosnar. As mãos eram como garras.

 

Uma sombra caiu acima dele, e Bill ergueu o olhar. Era Beverly. Ela olhou para Henry sem expressão no rosto.

 

— Ele nos p-p-perseguiu t-tantas vezes — disse Bill.

 

Ela assentiu.

 

— Ele não parece velho. Você percebe, Bill? Ele não parece nem um pouco velho. — Ela olhou abruptamente para Eddie, que estava sentado na cama. Eddie parecia velho; velho e exausto. O braço estava no colo, inerte. — Temos que chamar o médico para Eddie.

 

— Não — disseram Bill e Eddie ao mesmo tempo.

 

— Mas ele está machucado! O braço...

 

— É igual à ú-ú-última v-v-vez — disse Bill. Ele ficou de pé e a segurou pelos braços, olhando nos olhos dela. — Quando a g-gente s-sair... quando a g-g-gente e-e-envolver a c-c-cidade...

 

— Eles vão me prender por assassinato — disse Eddie, sem energia na voz. — Ou vão prender todos nós. Ou vão nos levar pra delegacia. Ou alguma coisa. Depois, vai haver um acidente. Um dos acidentes especiais que só acontecem em Derry. Talvez enfiem a gente na cadeia e um policial fique doido e atire na gente. Talvez a gente morra de contaminação por ptomaína, ou decida se enforcar nas celas.

 

— Eddie, isso é loucura! É...

 

— É? — perguntou ele. — Lembre-se, estamos em Derry.

 

— Mas somos adultos agora! Você não pode achar... quero dizer, ele veio aqui no meio da noite... atacou você...

 

— C-Com o quê? — disse Bill. — Onde está a f-f-faca? — Ela olhou ao redor, não encontrou e ficou de joelhos para olhar embaixo da cama.

 

— Não se dê ao trabalho — disse Eddie com aquela mesma voz baixa e assobiada. — Bati a porta no braço dele quando ele tentou me acertar. Ele largou, e eu chutei pra debaixo da TV. Não está mais lá. Já olhei.

 

— B-B-Beverly, l-liga pros outros — disse Bill. — A-Acho que consigo b-botar uma t-t-tala no braço de E-E-Eddie.

 

Ela olhou para ele por um tempo, depois olhou de novo para o corpo no chão. Ela achava que a imagem fornecida pelo quarto contava uma história perfeitamente clara do que tinha acontecido para qualquer policial com meio cérebro. O local estava uma confusão. O braço de Eddie, quebrado. O homem, morto. Era um caso claro de legítima defesa contra um invasor noturno. Mas ela se lembrou do sr. Ross. Do sr. Ross se levantando, olhando e simplesmente dobrando o jornal e entrando em casa.

 

Quando a gente sair... quando a gente envolver a cidade...

 

Aquilo a fez se lembrar de Bill quando criança, com o rosto branco, cansado e meio maluco, Bill dizendo Derry é a Coisa. Vocês me entendem?... Pra qualquer lugar que a gente vá... quando a Coisa pegar a gente, as pessoas não vão ver, não vão ouvir, não vão saber. Vocês não entendem como é? A gente só pode tentar acabar o que a gente começou.

 

De pé aqui agora, olhando para o cadáver de Henry, Beverly pensou: os dois estão dizendo que nos tornamos fantasmas de novo. Que tudo está se repetindo. Tudo. Quando criança, eu conseguia aceitar isso, porque crianças são quase como fantasmas. Mas...

 

— Tem certeza? — perguntou ela com desespero. — Bill, você tem certeza?

 

Ele estava sentado na cama com Eddie, tocando com delicadeza no braço dele.

 

— V-Você n-n-não? — perguntou ele. — Depois de t-t-tudo que a-aconteceu ho-hoje?

 

Sim. Tudo que aconteceu. A confusão repugnante no final do reencontro. A bela senhora que virou bruxa na frente dos olhos dela,

 

(meu pai também era minha mãe)

 

a rodada de histórias na biblioteca com os fenômenos que acompanharam. Todas aquelas coisas. Mesmo assim... a mente dela gritou desesperadamente com ela para parar com isso agora, para destruir com a sanidade, porque se ela não fizesse isso, eles terminariam a noite indo para o Barrens atrás de uma certa estação de bombeamento e...

 

— Não sei — disse ela. — Eu só... não sei. Mesmo depois de tudo que aconteceu, Bill, me parece que poderíamos chamar a polícia. Talvez.

 

— L-L-Liga pros o-outros — disse ele de novo. — V-V-Vamos v-ver o que eles a-acham.

 

— Tudo bem.

 

Ela ligou para Richie primeiro, depois para Ben. Os dois concordaram em ir imediatamente. Ela encontrou o número de telefone de Mike e ligou. Não houve resposta; depois de dez toques, ela desligou.

 

— T-T-Tenta a b-b-biblioteca — disse Bill. Ele tinha soltado os trilhos curtos das cortinas das duas janelas menores do quarto de Eddie e os estava prendendo com firmeza no braço de Eddie com o cinto do roupão e o cadarço do pijama.

 

Antes que ela pudesse encontrar o número, houve uma batida na porta. Ben e Richie chegaram juntos, Ben de calça jeans e camisa para fora, Richie de calça cinza de algodão e camisa do pijama. Seus olhos vagaram pelo quarto por trás dos óculos.

 

— Meu Deus, Eddie, o que aconteceu...

 

— Ah, meu Deus! — gritou Ben. Ele tinha visto Henry no chão.

 

— S-S-Silêncio! — disse Bill intensamente. — E fechem a p-p-porta!

 

Richie fechou a porta com os olhos grudados no corpo.

 

— Henry?

 

Ben deu três passos na direção do corpo e parou, como se com medo de que fosse mordê-lo. Ele olhou indefeso para Bill.

 

— C-C-Conta v-você — disse ele para Eddie. — A m-m-maldita g-gague-eira está p-p-piorando sem p-p-parar.

 

Eddie explicou o que tinha acontecido enquanto Beverly procurava o número da Biblioteca Pública de Derry e ligava. Ela achava que talvez Mike tivesse adormecido lá; talvez tivesse até uma cama no escritório. O que ela não esperava foi o que aconteceu: o telefone foi atendido no segundo toque, e uma voz que ela nunca tinha ouvido antes disse alô.

 

— Alô — respondeu ela, olhando para os outros e fazendo um gesto de silêncio com a mão. — O sr. Hanlon está?

 

— Quem é? — perguntou a voz.

 

Ela molhou os lábios com a língua. Bill estava olhando para ela intensamente. Ben e Richie também estavam olhando. O princípio de uma verdadeira sensação de alarme surgiu dentro dela.

 

— Quem é você? — respondeu ela. — Você não é o sr. Hanlon.

 

— Sou o chefe de polícia de Derry, Andrew Rademacher — disse a voz. — O sr. Hanlon está no Derry Home Hospital neste momento. Ele foi agredido ainda há pouco e está muito ferido. Agora quem é você, por favor? Quero seu nome.

 

Mas ela mal ouviu o final. Ondas de choque tomaram conta do corpo dela, fazendo-a se levantar vertiginosamente cada vez mais, até ficar fora de si. Os músculos do estômago, pernas e virilha ficaram frouxos e dormentes, e ela pensou com distanciamento: Deve ser assim que acontece quando as pessoas sentem tanto medo que molham a calça. Claro. Você perde controle daqueles músculos...

 

— O quanto os ferimentos são graves? — ela se ouviu perguntar com voz fina, e logo Bill estava ao lado dela, com a mão em seu ombro; Ben estava lá, e Richie, e ela sentiu uma onda de gratidão. Ela esticou a mão livre e Bill a segurou. Richie colocou a mão em cima da de Bill, e Ben colocou em cima da de Richie. Eddie se aproximou e colocou a mão boa em cima.

 

— Quero seu nome, por favor — disse Rademacher bruscamente, e por um momento a bruxa sorrateira que existia dentro dela, a que foi criada por seu pai e cultivada pelo marido, quase respondeu: Sou Beverly Marsh e estou no Derry Town House. Mande o sr. Nell pra cá. Tem um homem morto aqui que ainda é em parte garoto, e estamos todos com muito medo.

 

Ela disse:

 

— Eu... infelizmente não posso dizer. Ainda não.

 

— O que você sabe sobre isso?

 

— Nada — disse ela, chocada. — O que faz você pensar que sei? Meu Deus!

 

— Você tem o hábito de ligar para a biblioteca todas as madrugadas, por volta das três e meia — disse Rademacher —, é isso? Chega de baboseira, moça. Isso aqui foi agressão, e pela aparência do sujeito, pode ser assassinato até a hora de o sol nascer. Vou perguntar de novo: quem é você e o quanto sabe sobre isso?

 

Ela fechou os olhos, apertou a mão de Bill com toda a força e perguntou:

 

— Ele pode morrer? Você não está dizendo isso só pra me assustar? Ele pode mesmo morrer? Por favor, me diga.

 

— Ele está muito ferido. E se isso não assusta você, moça, deveria. Agora quero saber quem você é e por que...

 

Como se em um sonho, ela viu sua mão flutuar pelo espaço e colocar o fone no gancho. Ela olhou para Henry e sentiu um choque tão grande quanto um tapa de uma mão fria. Um dos olhos de Henry tinha se fechado. O outro, o destruído, continuava úmido como antes.

 

Henry parecia estar piscando para ela.

 

Richie ligou para o hospital. Bill levou Beverly até a cama, onde ela se sentou com Eddie, olhando para o espaço. Ela achou que choraria, mas nenhuma lágrima veio. O único sentimento do qual ela estava fortemente ciente foi um desejo de que alguém cobrisse Henry Bowers. Aquele olhar que parecia piscar não era nada legal.

 

Em um instante vertiginoso, Richie se tornou um repórter do Derry News. Ele sabia que o sr. Michael Hanlon, bibliotecário-chefe da cidade, tinha sido agredido enquanto trabalhava até tarde. Será que o hospital poderia informar sobre a condição do sr. Hanlon?

 

Richie ouviu, assentindo.

 

— Eu entendo, sr. Kerpaskian. Seu nome se soletra com dois k? Certo. Tudo bem. E você está...?

 

Ele escutou, agora já mergulhado demais no papel a ponto de fazer movimentos com um dedo como se estivesse escrevendo em um bloco.

 

— Aham... aham... sim. Sim, eu entendo. Bem, o que costumamos fazer em casos assim é citar você como “fonte”. Mais tarde, podemos... aham... certo! Isso mesmo! — Richie riu com vontade e tirou uma camada de suor da testa. Ele voltou a prestar atenção. — Certo, sr. Kerpaskian. Sim. Eu... sim, entendi, K-E-R-P-A-S-K-I-A-N, certo! Judeu tcheco, é? Nossa! É... É muito incomum. Sim, pode deixar. Boa noite. Obrigado.

 

Ele desligou e fechou os olhos.

 

— Jesus! — disse ele com voz baixa e grave. — Jesus! Jesus! Jesus!

 

Ele quase empurrou o telefone da mesa, mas simplesmente baixou a mão. Ele tirou os óculos e limpou na camisa do pijama.

 

— Ele está vivo, mas em condições graves — disse ele para os outros. — Henry cortou ele como um peru de Natal. Um dos cortes partiu a artéria femoral, e ele perdeu todo o sangue que um homem pode perder e permanecer vivo mesmo assim. Mike conseguiu fazer uma espécie de torniquete, e se não tivesse feito isso, estaria morto quando o encontraram.

 

Beverly começou a chorar. Ela chorou como uma criança, com as mãos grudadas no rosto. Por um tempo, os soluços dela e o assobiar da respiração de Eddie foram os únicos sons no quarto.

 

— Mike não foi o único cortado como um peru de Natal — disse Eddie por fim. — Eddie parecia que tinha lutado 12 assaltos com Rocky Balboa dentro de um liquidificador.

 

— V-Você ainda q-q-quer ch-ch-chamar a p-p-polícia, Bev?

 

Havia Kleenex na mesa de cabeceira, mas estavam uma massa molhada e emaranhada em uma poça de Perrier. Ela foi até o banheiro, contornando Henry de longe no caminho, pegou uma toalha de rosto e passou água fria nela. A sensação no rosto quente e inchado foi deliciosa. Ela sentiu que conseguia pensar claramente de novo; não racionalmente, mas claramente. Ela teve certeza repentina de que a racionalidade os mataria se eles tentassem usá-la agora. Aquele policial. Rademacher. Ele estava desconfiado. Por que não? As pessoas não ligavam para a biblioteca às 3h30 da madrugada. Ele supusera conhecimento culpado. O que ele suporia se descobrisse que ela ligou de um quarto em que havia um homem morto no chão com um pedaço de garrafa quebrada enfiado na barriga? Que ela e outros quatro estranhos tinham chegado na cidade no dia anterior para uma pequena reunião e esse cara por acaso apareceu? Será que ela acreditaria se ela estivesse na outra posição? Será que alguém acreditaria? É claro que eles poderiam reforçar a história acrescentando que tinham voltado para terminar com o monstro que morava nos esgotos debaixo da cidade. Isso certamente acrescentaria uma nota convincente de realismo.

 

Ela saiu do banheiro e olhou para Bill.

 

— Não — disse ela. — Não quero chamar a polícia. Acho que Eddie está certo, alguma coisa poderia acontecer com a gente. Alguma coisa definitiva. Mas esse não é o verdadeiro motivo. — Ela olhou para os quatro. — Nós juramos — disse ela. — Nós juramos. O irmão de Bill... Stan... todos os outros... e agora, Mike. Estou pronta, Bill.

 

Bill olhou para os outros.

 

Richie assentiu.

 

— Tudo bem, Big Bill. Vamos tentar.

 

Ben disse:

 

— As chances parecem piores do que nunca. Estamos desfalcados por duas pessoas agora.

 

Bill não disse nada.

 

— Tudo bem. — Ben assentiu. — Ela está certa. Nós juramos.

 

— E-E-Eddie?

 

Eddie sorriu fracamente.

 

— Acho que vou ganhar outra carona nas costas naquela escada, né? Se a escada ainda estiver lá.

 

— Mas não vai ter ninguém jogando pedras desta vez — disse Beverly.

 

— Eles estão mortos. Os três.

 

— Vamos agora, Bill? — perguntou Richie.

 

— S-S-Sim — disse Bill. — A-Acho que a hora é a-a-agora.

 

— Posso dizer uma coisa? — perguntou Ben abruptamente.

 

Bill olhou para ele e deu um sorrisinho.

 

— Q-Q-Quando q-quiser.

 

— Vocês ainda são os melhores amigos que já tive na vida — disse Ben. — Independente de como isso terminar. Eu só... queria dizer isso pra vocês, sabe?

 

Ele olhou para eles, e todos olharam solenemente para ele.

 

— Estou feliz de ter me lembrado de vocês — acrescentou ele.

 

Richie deu uma gargalhada roncada. Beverly riu. De repente, estavam todos gargalhando, olhando uns para os outros do jeito antigo, apesar do fato de que Mike estava no hospital, talvez morrendo ou já morto, apesar do fato de que o braço de Eddie estava quebrado (de novo), apesar do fato de ser a hora mais escura da madrugada.

 

— Monte de Feno, você tem um talento com as palavras — disse Richie, gargalhando e secando os olhos. — Ele devia ter sido o escritor, Big Bill.

 

Ainda sorrindo um pouco, Bill disse:

 

— E quanto a i-i-isso...

 

Eles usaram a limusine emprestada de Eddie. Richie foi dirigindo. A névoa estava mais densa agora, espalhando-se pelas ruas como fumaça de cigarro, sem chegar aos postes de luz. As estrelas acima eram pedaços brilhantes de gelo, estrelas de primavera... mas, ao inclinar a cabeça na janela entreaberta do lado do passageiro, Bill pensou conseguir ouvir trovões de verão ao longe. A chuva estava sendo encomendada em algum lugar do horizonte.

 

Richie ligou o rádio, e Gene Vincent estava cantando “Be-Bop-A-Lula”. Ele apertou um dos botões e mudou para Buddy Holly. Um terceiro aperto levou a Eddie Cochran cantando “Summertime Blues”.

 

— Eu gostaria de te ajudar, filho, mas você é jovem demais para votar — disse uma voz grave.

 

— Desliga, Richie — disse Beverly baixinho.

 

Ele esticou a mão para o rádio, mas sua mão ficou paralisada.

 

— Fiquem ligados para ouvir mais do show de rock “tudo morto” de Richie Tozier! — disse a voz risonha e gritada do palhaço acima dos estalos e da guitarra de Eddie Cochran. — Não toquem nesse dial, mantenham a estação sintonizada no rock, eles saíram das paradas de sucesso, mas não de nossos corações, e continuem vindo, venham logo, venham todos! Vamos tocar tooooodos os sucessos aqui embaixo! Tooooodos os sucessos! E se vocês não acreditam, escutem esse DJ convidado da madrugada, Georgie Denbrough! Conta pra eles, Georgie!

 

E, de repente, o irmão de Bill estava gritando no rádio.

 

— Você me mandou pra rua e a Coisa me matou! Eu pensei que a Coisa estava no porão, Big Bill, pensei que a Coisa estava no porão, mas a Coisa estava no bueiro e me matou, você deixou a Coisa me matar, Big Bill, você deixou a Coisa...

 

Richie desligou o rádio com tanta força que o botão caiu no tapete do carro.

 

— O rock dos anos 1960 é uma droga — disse ele. A voz não estava muito firme. — Bev está certa, vamos deixar desligado, o que vocês acham?

 

Ninguém respondeu. O rosto de Bill estava pálido, imóvel e pensativo sob o brilho da luz da rua, e quando o trovão ribombou de novo no oeste, todos ouviram.

 

No Barrens

 

A mesma velha ponte.

 

Richie estacionou ao lado dela e eles saíram, foram até a amurada, a mesma velha amurada, e olharam para baixo.

 

O mesmo velho Barrens.

 

Parecia intocado pelos últimos 27 anos; para Bill, o viaduto da via expressa, que era a única coisa nova, parecia irreal, uma coisa tão efêmera quanto uma pintura fosca ou o efeito de uma projeção de fundo de tela em um cinema. Pequenas árvores e arbustos brilhavam na névoa, e Bill pensou: Acho que é isso que queremos dizer quando falamos sobre a persistência da memória, isso ou alguma coisa assim, uma coisa que você vê na hora certa do ângulo certo, uma imagem que desperta emoções como um motor. Você vê tão claramente que todas as coisas que aconteceram no meio-tempo somem. Se o desejo é o que fecha o círculo entre o mundo e a vontade, então o círculo fechou.

 

— V-V-Venham — disse ele, e passou por cima da amurada.

 

Eles o seguiram pelo barranco em um movimento de terra e pedrinhas. Quando chegaram ao fundo, Bill automaticamente olhou para ver se Silver estava ali e riu de si mesmo. Silver estava apoiada na parede da garagem de Mike. Parecia que Silver não tinha papel nisso tudo, embora isso fosse estranho depois da forma como tudo aconteceu.

 

— L-Leva a gente lá — Bill disse para Ben.

 

Ben olhou para ele, e Bill leu o pensamento nos olhos dele: Tem 27 anos, Bill, vai sonhando. Mas ele assentiu e seguiu em direção à vegetação rasteira.

 

O caminho, o caminho deles, já tinha desaparecido sob as plantas, e eles precisaram forçar passagem entre emaranhados de arbustos com espinhos e hidrângeas tão cheirosas que o aroma era sufocante. Grilos cantavam solenemente ao redor deles, e alguns vaga-lumes, chegados precoces à festa do verão, surgiram na escuridão. Bill achava que crianças ainda brincavam ali, mas tinham feito seus caminhos e locais secretos.

 

Eles chegaram à clareira onde ficava a sede do clube, mas agora não havia clareira nenhuma. Arbustos e mato ocuparam toda a área.

 

— Olhem — sussurrou Ben, e atravessou a clareira (na lembrança deles, ela ainda estava ali, apenas coberta com outra daquelas pinturas foscas). Ele puxou alguma coisa. Era a porta de mogno que eles encontraram na beirada do lixão, a que eles usaram como teto da sede do clube. Estava jogada de lado aqui como se não tivesse sido tocada em mais de dez anos. Havia hera espalhada na superfície.

 

— Deixa pra lá, Monte de Feno — murmurou Richie. — Está velha.

 

— L-L-Leva a gente l-lá, B-Ben — repetiu Bill atrás deles.

 

Assim, eles desceram para o Kenduskeag atrás deles, para a esquerda e para longe da clareira que não existia mais. O som de água corrente foi ficando cada vez mais alto, mas ainda assim eles quase caíram dentro do Kenduskeag antes que qualquer um deles visse: a folhagem tinha crescido como um muro emaranhado na beirada do barranco. A beirada rompeu sob os calcanhares da bota de caubói de Ben, e Bill o puxou para trás pela nuca.

 

— Obrigado — disse Ben.

 

— De nada. A-A-Antigamente, você t-teria me l-l-levado com v-você. P-Por a-aqui?

 

Ben assentiu e os guiou pela margem cheia de plantas, lutando para passar pelos arbustos e pelo mato, pensando no quanto era mais fácil quando você só tinha 1,35 metro e conseguia passar por baixo de quase todos (os que existiam na sua mente e os no caminho, supunha ele) com uma abaixadinha indiferente. Mas tudo mudava. Nossa lição de hoje, meninos e meninas, é que quanto mais as coisas mudam, mais as coisas mudam. Quem disse que quanto mais as coisas mudam, mais elas ficam iguais obviamente estava sofrendo de severo retardo mental. Porque...

 

O pé dele prendeu em alguma coisa, e ele caiu com um baque, quase batendo a cabeça no cilindro de concreto da estação de bombeamento. Ela estava quase toda escondida no meio de arbustos de amoras. Quando ele ficou de pé, percebeu que os braços e as mãos tinham sido cortados por espinhos de amoreira em duas dezenas de pontos.

 

— Três dezenas, eu diria — disse ele, sentindo sangue fino escorrer pelas bochechas.

 

— O quê? — perguntou Eddie.

 

— Nada. — Ele se inclinou para ver em que tinha tropeçado. Uma raiz, provavelmente.

 

Mas não era uma raiz. Era a tampa de ferro. Alguém a tinha aberto.

 

É claro, pensou Ben. Fomos nós. Vinte e sete anos atrás.

 

Mas ele percebeu que isso era loucura antes mesmo de ver o metal reluzente brilhando na ferrugem em marcas paralelas de arranhado. A bomba não estava funcionando naquele dia. Mais cedo ou mais tarde, alguém teria ido ali para consertar e teria substituído a tampa também.

 

Ele ficou de pé, e os cinco se reuniram ao redor do cilindro e olharam lá dentro. Eles conseguiam ouvir o som baixo de água pingando. Só isso. Richie tinha levado todos os fósforos do quarto de Eddie. Ele acendeu uma carteira inteira e jogou lá dentro. Por um momento, eles conseguiram ver a parte interior e úmida do cilindro e a forma silenciosa da bomba. Isso foi tudo.

 

— Pode estar desligada há muito tempo — disse Richie com desconforto. — Não necessariamente aconteceu ho...

 

— Aconteceu bem recentemente — disse Ben. — Ao menos, desde a última chuva. — Ele pegou outra carteira de fósforos da mão de Richie, acendeu um e apontou para os arranhões recentes.

 

— Tem a-a-alguma c-coisa e-embaixo — disse Bill quando Ben apagou o fósforo.

 

— O quê? — perguntou Ben.

 

— N-N-Não c-c-consegui s-saber. Parecia uma t-t-tira. Você e R-Richie, me ajudem a v-v-virar.

 

Eles seguraram a tampa e viraram como uma moeda gigante. Desta vez, Beverly acendeu o fósforo, e Ben pegou com cuidado a bolsa que estava embaixo da tampa. Ele a segurou pela alça. Beverly começou a apagar o fósforo, mas olhou para o rosto de Bill. Ela ficou paralisada até a chama tocar nas pontas de seus dedos, e então largou o fósforo com um gritinho.

 

— Bill? O que foi? Qual é o problema?

 

Os olhos de Bill pareciam pesados demais. Eles não conseguiam se afastar da bolsa de couro com a longa alça de couro. De repente, conseguiu lembrar o nome da música que estava tocando no rádio na sala dos fundos da loja de artigos de couro quando ele comprou para ela. “Sausalito Summer Nights.” Era a coisa mais estranha do mundo. Sua boca estava completamente seca, e a língua e a parte interna das bochechas estavam lisas e secas como cromo. Ele conseguia ouvir os grilos, ver os vaga-lumes e sentir o cheiro de coisas verdes e grandes crescendo descontroladamente ao redor, e pensou: É outro truque, outro ilusionismo, ela está na Inglaterra, e isso é um ataque vagabundo, porque a Coisa está com medo, ah, sim, a Coisa não está tão segura quanto estava quando nos chamou, e de verdade, Bill, pensa bem, quantas bolsas de couro com alças compridas você acha que existem no mundo? Um milhão? Dez milhões?

 

Provavelmente mais. Mas só uma assim. Ele comprou para Audra em uma loja de artigos de couro de Burbank enquanto “Sausalito Summer Nights” tocava no rádio da sala dos fundos.

 

— Bill? — A mão de Beverly estava em seu ombro, balançando-o. De longe. Vinte e sete léguas submarinas. Qual era o nome do grupo que cantava “Sausalito Summer Nights”? Richie saberia.

 

— Eu sei — disse Bill calmamente para o rosto assustado e com olhos arregalados de Richie, e sorriu. — Era Diesel. Que tal uma lembrança dessas?

 

— Bill, o que foi? — sussurrou Richie.

 

Bill gritou. Ele arrancou os fósforos da mão de Beverly, acendeu um e arrancou a bolsa de Ben.

 

— Bill, meu Deus, o que...

 

Ele abriu a bolsa e a virou. O que caiu era tão Audra que por um momento ele ficou desarmado demais para gritar de novo. Em meio aos lenços de papel, chicletes e itens de maquiagem, ele viu uma latinha de Altoid... e o espelho compacto com pedras que Freddie Firestone deu para ela quando ela assinou o contrato para fazer Sótão.

 

— Minha e-e-esposa está lá embaixo — disse ele, e caiu de joelhos e começou a recolocar as coisas dela na bolsa. Ele afastou o cabelo que não existia mais dos olhos sem nem pensar no que estava fazendo.

 

— Sua esposa? Audra? — O rosto de Beverly estava chocado e seus olhos estavam enormes.

 

— A b-b-bolsa dela. As c-c-coisas dela.

 

— Jesus, Bill — murmurou Richie. — Não pode ser, você sabe...

 

Ele encontrou a carteira de pele de crocodilo. Abriu-a e levantou-a. Richie acendeu outro fósforo e olhou para um rosto que já tinha visto em mais de seis filmes. A foto na habilitação de Audra do estado da Califórnia era menos exuberante, mas totalmente conclusiva.

 

— Mas He-He-Henry está morto, e Victor e A-A-Arroto... então quem pegou ela? — Ele ficou de pé e olhou para eles com intensidade febril. — Quem pegou ela?

 

Ben colocou a mão no ombro de Bill.

 

— Acho que é melhor a gente descer e descobrir, hein?

 

Bill olhou para ele, como se em dúvida de quem Ben poderia ser, mas então seus olhos ficaram lúcidos.

 

— É-É — disse ele. — E-E-Eddie?

 

— Bill, sinto muito.

 

— Você consegue s-s-subir?

 

— Já subi uma vez.

 

Bill se inclinou e Eddie passou o braço direito ao redor do pescoço de Bill. Ben e Richie o levantaram até ele conseguir passar as pernas ao redor da barriga de Bill. Quando Bill passou uma perna desajeitada pela borda do cilindro, Ben viu que os olhos de Eddie estavam bem fechados... e por um momento pensou ter ouvido a cavalaria mais feia do mundo atacar pelos arbustos. Ele se virou, esperando ver os três saírem da névoa e do mato, mas só ouviu a brisa crescente balançar o bambu a uns 400 metros de distância. Os antigos inimigos estavam mortos.

 

Bill se segurou na beirada áspera do concreto e foi descendo, passo a passo e degrau a degrau. Eddie o estava segurando com tanta força que Bill mal conseguia respirar. A bolsa dela, meu bom Deus, como a bolsa dela veio parar aqui? Não importa. Mas se o Senhor estiver aí, Deus, e se estiver atendendo pedidos, faça com que ela esteja bem, não permita que ela sofra pelo que Bev e eu fizemos hoje nem pelo que eu fiz no verão quando era criança... e foi o palhaço? Foi Bob Gray quem a pegou? Se foi, não sei nem se Deus pode ajudar ela.

 

— Estou com medo, Bill — disse Eddie com voz baixa.

 

O pé de Bill tocou em água fria e parada. Ele se baixou nela, lembrando-se da sensação e do cheiro desagradável, lembrando-se da forma claustrofóbica que aquele lugar o fez sentir... e aliás, o que tinha acontecido com eles? Como eles andaram por esses esgotos e túneis? Para onde exatamente eles foram e como exatamente saíram? Ele ainda não conseguia se lembrar de nada daquilo; só conseguia pensar em Audra.

 

— Eu t-t-também estou. — Ele se agachou um pouco e fez uma careta quando a água fria subiu pela calça até as bolas, e soltou Eddie. Eles ficaram com água até as panturrilhas e observaram os outros descerem a escada.

 

Debaixo da cidade

A Coisa — agosto de 1958

 

Uma coisa nova tinha acontecido.

 

Pela primeira vez desde sempre, uma coisa nova.

 

Antes do universo, só havia duas coisas. Uma era a própria Coisa e a outra era a Tartaruga. A Tartaruga era uma coisa velha e idiota que nunca saía do casco. A coisa achava que talvez a Tartaruga estivesse morta, tivesse morrido há um bilhão de anos mais ou menos. Mesmo se não estivesse, era uma coisa velha e idiota, e mesmo que a Tartaruga tivesse vomitado o universo inteiro, isso não mudava sua idiotice.

 

A Coisa veio para cá bem depois que a Tartaruga se encolheu para dentro do casco, aqui para a Terra, e a Coisa descobriu uma profundidade de imaginação aqui que era quase nova, quase digna de atenção. Essa qualidade de imaginação deixava os alimentos muito suculentos. Os dentes da Coisa destroçavam carne dura de tantos terrores exóticos e medos voluptuosos: eles sonhavam com animais noturnos e lamas em movimento; contra a própria vontade, eles contemplavam abismos infinitos.

 

Com esse alimento suculento, a Coisa existia em um ciclo simples de acordar para comer e dormir para sonhar. Ela criou um local em sua própria imagem, e olhava para esse lugar com carinho pelos postigos que eram seus olhos. Derry era seu abatedouro, as pessoas de Derry eram as ovelhas. As coisas seguiram em frente.

 

E então... essas crianças.

 

Uma coisa nova.

 

Pela primeira vez desde sempre.

 

Quando a Coisa surgiu na casa da rua Neibolt pretendendo matar todos eles, um pouco insatisfeita por já não ter conseguido fazer isso (e sem dúvida essa insatisfação foi a primeira coisa nova), aconteceu uma coisa totalmente inesperada, completamente impensada, e houve dor, dor, uma dor terrível por toda a forma que ela assumiu, e por um momento também houve medo, porque a única coisa que a Coisa tinha em comum com a Tartaruga velha e idiota e com a cosmologia do macroverso fora do ovinho que era esse universo era apenas isso: todas as coisas vivas precisam se submeter às leis da forma que habitam. Pela primeira vez, a Coisa percebeu que talvez a habilidade que tinha de mudar a forma também pudesse funcionar contra ela. Nunca tinha havido dor antes, nunca tinha havido medo antes, e por um momento a Coisa achou que pudesse morrer — ah, sua cabeça ficou tomada por uma dor enorme e prateada, e ela rugiu, gritou e berrou, e de alguma forma as crianças escaparam.

 

Mas agora, elas estavam vindo. Elas tinham entrado no domínio da Coisa debaixo da cidade, sete crianças tolas andando pela escuridão sem luzes e sem armas. A Coisa as mataria agora, sem dúvida.

 

Ela fez uma grande autodescoberta: não queria mudanças nem surpresas. Não queria nunca coisas novas. Só queria comer e dormir e sonhar e comer de novo.

 

Depois da dor e daquele breve medo intenso, outra nova emoção surgiu (assim como todas as emoções genuínas eram novas para a Coisa, embora a Coisa fosse uma grande imitadora de emoções): raiva. Ela mataria essas crianças porque elas tinham, por algum acidente incrível, ferido a Coisa. Mas ela faria com que elas sofressem primeiro porque por um breve momento fizeram a Coisa ter medo delas.

 

Venham até mim então, pensou a Coisa, escutando a aproximação delas. Venham até mim, crianças, e vejam como flutuamos aqui embaixo... que todos nós flutuamos.

 

Mas havia um pensamento que se insinuava, não importando o quanto a Coisa tentasse afastá-lo. Era simplesmente o seguinte: se todas as coisas fluíam da Coisa (como faziam desde que a Tartaruga vomitou o universo e desmaiou dentro do casco), como alguma criatura deste mundo ou de qualquer outro podia enganar a Coisa ou machucá-la, mesmo que brevemente ou de forma ineficiente? Como isso era possível?

 

E assim, a última coisa nova ocorreu à Coisa, não uma emoção, mas uma especulação fria: e se a Coisa não estivesse sozinha, como ela sempre acreditou?

 

E se houvesse Outra?

 

E se essas crianças fossem agentes da Outra?

 

E se... e se...

 

A Coisa começou a tremer.

 

O ódio era novidade. A dor era novidade. Ser contrariada em seus objetivos era novidade. Mas a coisa nova mais terrível era esse medo. Não medo das crianças, isso passou, mas o medo de não estar sozinha.

 

Não. Não havia outra. Sem dúvida que não. Talvez por serem crianças, a imaginação delas tinha um certo poder puro que a Coisa havia rapidamente subestimado. Mas agora que elas estavam chegando, a Coisa deixaria que viessem. Elas chegariam, e a Coisa jogaria uma a uma no macroverso... nos postigos dos olhos dela.

 

Sim.

 

Quando elas chegassem aqui, a Coisa as jogaria, gritando e insanas, dentro dos postigos.

 

Nos túneis — 14h15

 

Bev e Richie tinham talvez uns dez fósforos os dois, mas Bill não os deixou usar. Por enquanto, pelo menos, ainda havia uma luz leve no esgoto. Não muita, mas ele conseguia enxergar um pouco mais de um metro à frente, e enquanto ele conseguisse fazer isso, eles poupariam os fósforos.

 

Ele supunha que a pouca luz que eles estavam tendo deviam vir de aberturas no meio-fio acima da cabeça deles, talvez até dos buracos circulares em tampas de bueiros. Parecia incrivelmente estranho eles estarem debaixo da cidade, mas é claro que agora eles deveriam estar.

 

A água estava mais funda agora. Três vezes, animais mortos tinham passado flutuando: um rato, um filhote de gato e uma coisa inchada e brilhante que talvez fosse uma marmota. Ele ouviu um dos outros murmurar com asco quando esse último passou por eles.

 

A água pela qual eles estavam passando estava relativamente plácida, mas tudo isso acabaria em pouco tempo: havia um rugido oco não muito à frente. Foi ficando cada vez mais alto. O cano virava para a direita. Eles acompanharam a virada e aqui havia três canos jogando água nos canos. Estavam alinhados verticalmente como as lentes de um sinal de trânsito. O cano acabava ali. A luz estava mais intensa. Bill olhou para cima e viu que eles estavam em um uma plataforma quadrada de pedra de uns 5 metros de altura. Havia uma grade de bueiro lá em cima, e a água descia neles aos jorros. Era como estar em um chuveiro primitivo.

 

Bill avaliou os três canos com impotência. O de cima estava derramando água quase límpida, embora houvesse folhas e galhos e pedaços de lixo nela, como guimbas de cigarro, embalagens de chiclete, coisas assim. O cano do meio estava vertendo água cinza. E do mais baixo saía um fluxo cinza-amarronzado de esgoto cheio de sólidos.

 

— E-E-Eddie!

 

Eddie chegou ao lado dele. Seu cabelo estava grudado na cabeça. O gesso estava uma sujeira encharcada e melequenta.

 

— Q-Q-Qual? — Se você quisesse saber como construir alguma coisa, perguntava a Ben; se queria saber que caminho seguir, perguntava a Eddie. Eles não falavam sobre isso, mas todos sabiam. Se você estivesse em um bairro estranho e quisesse voltar para um local que conhecesse, Eddie conseguia fazer você chegar lá, dobrando à direita e à esquerda com confiança firme até você ficar reduzido a apenas segui-lo e torcer para que as coisas dessem certo... e sempre pareciam dar. Bill disse para Richie uma vez que quando ele e Eddie começaram a brincar no Barrens, ele, Bill, vivia com medo de se perder. Eddie não tinha esse medo e sempre levava os dois bem para onde dizia que estava indo. “Se eu m-me p-p-perdesse em Hainesville Woods e E-Eddie estivesse comigo, eu não me p-p-preocuparia n-nada”, Bill disse para Richie. “Ele apenas s-s-sabe. Meu p-p-pai diz que algumas pessoas p-p-parecem que t-têm uma bu-bu-bússola na cabeça. Eddie é a-a-assim.”

 

— Não consigo te ouvir! — gritou Eddie.

 

— Eu falei q-qual?

 

— Qual o quê? — Eddie estava com a bombinha na mão boa, e Bill achou que ele parecia mais um rato almiscarado do que um garoto.

 

— Qual a gente p-p-pega?

 

— Bem, isso depende de pra onde a gente quer ir — disse Eddie, e Bill poderia facilmente tê-lo esganado, apesar de a pergunta fazer sentido. Eddie estava olhando para os três canos em dúvida. Eles conseguiam caber em todos eles, mas o de baixo parecia bem apertado.

 

Bill chamou os outros para se juntarem em círculo.

 

— Onde é que a C-C-Coisa está? — perguntou ele.

 

— No meio da cidade — respondeu Richie imediatamente. — Bem debaixo do meio da cidade. Perto do canal.

 

Beverly estava assentindo. Ben também. E Stan também.

 

— M-M-Mike?

 

— É — disse ele. — É lá que a Coisa está. Perto do Canal. Ou debaixo dele.

 

Bill olhou de novo para Eddie.

 

— Q-Q-Qual?

 

Eddie apontou com relutância para o cano de baixo... e, apesar de Bill ter ficado tomado de desânimo, ele não ficou nada surpreso.

 

— Aquele.

 

— Ah, que nojento — disse Stan com infelicidade. — É um cano de merda.

 

— Nós não... — começou Mike, mas parou. Ele tinha inclinado a cabeça em um gesto de escutar. Agora, Bill também conseguia ouvir: sons de água. Aproximando-se. Grunhidos e palavras abafadas. Henry ainda não tinha desistido.

 

— Rápido — disse Ben. — Vamos.

 

Stan olhou para o caminho de onde eles tinham vindo, depois olhou para o cano de baixo. Ele apertou bem os lábios e assentiu.

 

— Vamos — diz ele. — A merda se lava depois.

 

— Stan, o Cara Manda Bem! — gritou Richie. — Wacka-wacka-wa...

 

— Richie, quer calar a boca? — sibilou Beverly para ele.

 

Bill os guiou até o cano, fazendo uma careta devido ao cheiro, e entrou de quatro. O cheiro: era esgoto, era merda, mas também havia outro cheiro aqui, não? Um cheiro mais profundo e vital. Se o grunhido de um animal pudesse ter cheiro (e Bill supunha que, se o animal em questão estivesse comendo as coisas certas, teria), seria esse cheiro oculto. Estamos indo na direção certa mesmo. A Coisa está aqui... e está muito aqui.

 

Quando eles tinham se deslocado 6 metros, o ar ficou rançoso e tóxico. Ele continuou a engatinhar lentamente, movendo-se por coisas que não eram lama. Ele olhou por cima do ombro e disse:

 

— V-V-Vem logo atrás de m-mim, E-E-Eddie. Vou p-precisar de v-você.

 

A luz foi diminuindo até um cinza-escuro, ficou assim por um tempo e sumiu, e eles ficaram

 

(longe do céu azul e)

 

em um ambiente todo preto. Bill continuou seguindo pelo fedor, sentindo que estava quase cortando-o fisicamente, com uma das mãos esticada à frente e parte dele esperando a qualquer momento encontrar cabelo crespo e olhos verdes como lâmpadas que se abririam na escuridão. O final viria em um golpe quente de dor quando a Coisa arrancasse a cabeça dele dos ombros.

 

A escuridão estava cheia de sons, todos ampliados e ecoando. Ele conseguia ouvir os amigos se deslocando atrás dele, às vezes murmurando alguma coisa. Havia gorgolejos e grunhidos estranhos com estalos. Uma vez, um jorro terrivelmente quente passou por ele entre as pernas, molhando-o até as coxas e fazendo-o se balançar. Ele sentiu Eddie se agarrar freneticamente às costas de sua camisa, mas então a pequena inundação diminuiu. Do fim da fila, Richie gritou com lamentável bom humor:

 

— Acho que o Gigante Verde acabou de mijar na gente, Bill.

 

Bill conseguia ouvir água ou esgoto escorrendo em explosões controladas pela rede de canos menores que agora deveria estar acima das cabeças deles. Ele se lembrou da conversa com o pai sobre os esgotos de Derry e pensou que sabia o que esse cano era: para lidar com o transbordamento que só ocorria em chuvas pesadas e na temporada de enchentes. O que passava lá estaria saindo de Derry para ser despejado no riacho Torrault e no rio Penobscot. A cidade não gostava de bombear a merda para o Kenduskeag porque isso faria o canal feder. Mas toda a chamada água cinza ia para o Kenduskeag, e se houvesse demais para os canos do esgoto aguentarem, haveria um despejo... como o que tinha acabado de acontecer. Se houve um, poderia haver outro. Ele olhou para cima com desconforto, sem conseguir ver nada, mas sabendo que devia haver grades no arco de cima do cano, possivelmente nas laterais também, e que a qualquer momento poderia haver...

 

Ele só percebeu que eles tinham chegado ao fim do cano quando caiu e cambaleou para a frente, balançando os braços em um esforço inútil para manter o equilíbrio. Ele caiu de barriga em uma massa semissólida cerca de 60 centímetros abaixo da boca do cano do qual ele tinha acabado de cair. Alguma coisa saiu correndo e guinchando por cima da mão dele. Ele gritou e se sentou, agarrando a mão com força contra o peito, ciente de que um rato tinha acabado de correr por cima dela; ele sentiu o contato repugnante e duro do rabo sem pelos da coisa.

 

Ele tentou ficar de pé e bateu com a cabeça no teto baixo do novo cano. Foi um impacto forte, e Bill caiu de joelhos com flores vermelhas grandes explodindo na escuridão na frente dos olhos.

 

— Tomem c-cuidado! — ele se ouviu gritando. Suas palavras ecoaram pelo cano. — Tem uma queda aqui! E-Eddie! Onde v-você e-e-está?

 

— Aqui! — Uma das mãos de Eddie passou pelo nariz de Bill. — Me ajuda, Bill, não consigo enxergar! Está...

 

Houve um estrondo com som líquido. Beverly, Mike e Richie gritaram ao mesmo tempo. À luz do dia, a harmonia quase perfeita dos três teria sido engraçada; aqui embaixo no escuro, no esgoto, foi apavorante. De repente, todos saíram despencando. Bill agarrou Eddie com força para tentar poupar o braço dele.

 

— Ah, Cristo, pensei que fosse me afogar — gemeu Richie. — Tomamos um banho, ah, cara, um banho de merda, ah, que ótimo, deviam fazer excursão da escola aqui embaixo alguma hora, Bill, a gente podia ver se o sr. Carson viria de guia...

 

— E a srta. Jimmison poderia dar uma palestra sobre saúde depois — disse Ben com voz trêmula, e todos riram de forma tensa. Quando as gargalhadas estavam sumindo, Stan de repente caiu em lágrimas de infelicidade.

 

— Não, cara — disse Richie, passando um braço desajeitado nos ombros grudentos de Stan. — Você vai fazer a gente chorar, cara.

 

— Eu estou bem! — disse Stan em voz alta, ainda chorando. — Consigo suportar sentir medo, mas odeio ficar sujo assim, odeio não saber onde estou...

 

— V-V-Você a-acha que a-a-algum dos f-fósforos ainda f-funciona? — Bill perguntou a Richie.

 

— Dei os meus pra Bev.

 

Bill sentiu o toque da mão dela na escuridão e a forma de uma carteira de fósforos. Eles pareciam secos.

 

— Deixei debaixo do meu sovaco — disse ela. — Pode ser que ainda funcionem. Pode experimentar pra ver.

 

Bill tirou um fósforo da embalagem de papel e riscou. O palito acendeu, e Bill o ergueu. Os amigos estavam reunidos, fazendo caretas pela luz intensa e breve. Eles estavam molhados e cobertos de excrementos, e todos pareciam muito jovens e com medo. Atrás deles, ele conseguia ver o cano do qual eles saíram. O cano em que eles estavam agora era ainda menor. Seguia em ambas as direções, com o piso coberto de camadas de sedimentos imundos. E...

 

Ele inspirou rapidamente e apagou o fósforo quando seus dedos foram queimados. Ele escutou e ouviu os sons de água correndo rápido e pingando, o rugido ocasional das válvulas de escape mandando mais esgoto para o Kenduskeag, que agora estava Deus sabia o quanto para trás deles. Ele não ouvia Henry e os outros... ainda.

 

Ele disse baixinho:

 

— Tem um c-c-cadáver à minha d-d-direita. A uns 3 m-m-metros de n-nós. Acho que p-pode ser P-P-P...

 

— Patrick? — perguntou Beverly, com a voz tremendo e à beira da histeria. — É Patrick Hockstetter?

 

— É-É-É. Quer que eu a-acenda o-o-outro f-fósforo?

 

Eddie disse:

 

— Você precisa acender, Bill. Se eu não observar como é o cano, não vou saber pra onde ir.

 

Bill acendeu o fósforo. No brilho da chama, eles viram a coisa verde e inchada que foi Patrick Hockstetter. O cadáver sorria para eles no escuro com alegria horrenda, mas só com meio rosto; ratos do esgoto tinham arrancado o resto. Os livros da recuperação de Patrick estavam espalhados ao redor dele, inchados ao tamanho de dicionários na umidade.

 

— Cristo — disse Mike com voz rouca, com olhos arregalados.

 

— Estou escutando eles de novo — disse Beverly. — Henry e os outros.

 

A acústica deve ter levado a voz dela até eles também; Henry gritou no cano e, por um momento parecia que ele estava bem ali de pé.

 

— Vamos pegar vocêêêêês...

 

— Pode vir! — gritou Richie. Os olhos dele estavam brilhando, dançantes, febris. — Continue vindo, pé de casca de banana! Aqui é igual à piscina da ACM! Continue...

 

E então, um grito de medo tão louco e de dor se espalhou pelo cano, e o fósforo caiu da mão de Bill e se apagou. O braço de Eddie o tinha envolvido, e Bill abraçou Eddie também, sentindo o corpo tremer como vara verde enquanto Stan Uris se aproximava do outro lado. Aquele grito aumentou e aumentou... e então, houve um som denso e obsceno de movimento e o grito foi interrompido.

 

— Alguma coisa pegou um deles — disse Mike, com a voz engasgada e apavorado na escuridão. — Alguma coisa... algum monstro... Bill, a gente tem que sair daqui... por favor...

 

Bill conseguia ouvir quem tinha sobrado (se um ou dois, com a acústica era impossível dizer) cambaleando e seguindo pelo cano na direção deles.

 

— Pra q-que l-lado, E-Eddie? — perguntou ele com urgência. — V-Você s-sabe?

 

— Na direção do canal? — perguntou Eddie, tremendo nos braços de Bill.

 

— É!

 

— Pra direita. Passando por Patrick... ou por cima dele. — A voz de Eddie de repente ficou mais dura. — Não ligo tanto. Ele foi um dos que quebraram meu braço. Cuspiu na minha cara também.

 

— V-Vamos — disse Bill, olhando para trás, para o cano do qual eles tinham saído. — F-Fila ú-única! Fiquem t-t-tocando o da f-f-frente, como a-a-antes!

 

Ele tateou à frente, arrastando o ombro direito na porcelana grudenta do cano, trincando os dentes, sem querer pisar em Patrick... ou dentro dele.

 

Assim, eles seguiram para mais escuridão enquanto as águas corriam ao redor deles e enquanto, lá fora, a tempestade seguia e trazia uma escuridão precoce a Derry, uma escuridão que gritava com o vento, gaguejava com fogo elétrico e tremia com árvores caídas que pareciam o grito de morte de enormes criaturas pré-históricas.

 

A Coisa — maio de 1985

 

Agora eles estavam vindo de novo, e, apesar de tudo ter sido bem como a Coisa previu, uma coisa que a Coisa não previu voltou: aquele medo enlouquecedor, irritante... aquela sensação de Outro. A Coisa odiava o medo, teria se virado contra ele e comido se pudesse... mas o medo dançava com deboche fora de alcance, e a Coisa só podia matar o medo matando-os.

 

Claro que não havia necessidade para esse medo; eles estavam mais velhos agora, e o número foi reduzido de sete para cinco. Cinco era um número de poder, mas não tinha a qualidade talismânica mística do sete. Era verdade que o pau-mandado da Coisa não conseguiu matar o bibliotecário, mas ele morreria no hospital. Mais tarde, antes de a alvorada tocar o céu, a Coisa enviaria um enfermeiro com vício em comprimidos para acabar com o bibliotecário de uma vez por todas.

 

A mulher do escritor agora estava com a Coisa, viva, mas não exatamente viva; a mente dela foi completamente destruída pela primeira visão da Coisa como ela realmente era, com todas as pequenas máscaras e glamoures jogados de lado. E todos os glamoures eram apenas espelhos, é claro, que devolviam para a pessoa apavorada a pior coisa na mente dele ou dela, cristalizando imagens como um espelho devolveria um reflexo do sol para um olho aberto que nem desconfia a ponto de deixá-lo cego.

 

Agora, a mente da mulher do escritor estava com a Coisa, dentro da Coisa, além do final do macroverso; na escuridão além da Tartaruga; no território além de todas as terras.

 

Ela estava no olho da Coisa; ela estava na mente da Coisa.

 

Ela estava nos postigos.

 

Ah, mas os glamoures eram divertidos. Hanlon, por exemplo. Ele não lembraria, não conscientemente, mas a mãe poderia ter contado a ele de onde tinha vindo o pássaro que ele viu na siderúrgica. Quando ele era um bebê de apenas seis meses de idade, a mãe o deixou dormindo no carrinho no pátio lateral enquanto ia para o quintal para pendurar lençóis e fraldas para secar. Os gritos dele a fizeram ir correndo. Um corvo enorme tinha pousado na beirada do carrinho e estava bicando o bebê Mike como uma criatura do mal em uma história de ninar. Ele estava gritando de dor e pavor, sem conseguir afastar o corvo, que pressentiu a presença de uma presa fraca. Ela bateu no pássaro com o punho e o espantou, viu que tinha tirado sangue em dois ou três lugares no braço do bebê Mike e o levou até o dr. Stillwagon para tomar vacina antitetânica. Uma parte de Mike sempre se lembrou disso, um bebê pequeno, um pássaro enorme, e quando a Coisa foi até Mike, Mike viu o pássaro gigante de novo.

 

Mas quando o pau-mandado marido da garota de antes trouxe a mulher do escritor, a Coisa não colocou rosto nenhum; ela não se vestia quando estava em casa. O pau-mandado marido olhou uma vez e caiu morto de choque, com o rosto cinza e os olhos se enchendo do sangue que jorrou do cérebro dele em uma dezena de lugares. A mulher do escritor teve um pensamento poderoso e horrorizado (AH, JESUS AMADO, É FÊMEA), e todos os pensamentos sumiram. Ela nadou nos postigos. A Coisa saiu de seu lugar e cuidou dos restos físicos dela; preparou-os para se alimentar mais tarde. Agora, Audra Denbrough estava pendurada no alto, no meio das coisas, coberta de seda, com a cabeça caída sobre o ombro, os olhos arregalados e vidrados, os dedos apontando para baixo.

 

Mas ainda havia poder neles. Diminuído, mas ainda presente. Eles tinham vindo quando crianças e, de alguma forma, contra todas as expectativas, contra tudo que deveria ser, tudo que poderia ser, eles machucaram a Coisa demais, quase a mataram, a forçaram a fugir para as profundezas da terra, onde ficou encolhida, sentindo dor e ódio e tremendo em uma poça cada vez maior de seu próprio e estranho sangue.

 

Então, houve mais uma coisa nova: pela primeira vez em sua infinita história, a Coisa precisava fazer um plano; pela primeira vez, ela se viu com medo de apenas tirar o que queria de Derry, sua área de caça particular.

 

A Coisa sempre se alimentou bem de crianças. Muitos adultos poderiam ser usados sem saber que foram usados, e a Coisa até já tinha se alimentado de alguns mais velhos ao longo dos anos. Os adultos tinham seus próprios pavores, e as glândulas deles podiam ser invadidas, abertas, para que todos os componentes químicos do medo jorrassem pelo corpo e salgassem a carne. Mas os medos das crianças eram mais simples e normalmente mais poderosos. Os medos das crianças costumavam ser invocados com um único rosto... e se fosse preciso usar isca, ora, que criança não adorava um palhaço?

 

Ela entendia vagamente que essas crianças de alguma forma viraram as ferramentas dela contra ela; que, por coincidência (é claro que não foi de propósito, é claro que não foi com orientação da mão de Outro), a união de sete mentes extraordinariamente criativas, a Coisa foi levada a uma zona de grande perigo. Qualquer um daqueles sete sozinhos teria sido carne e bebida para ela, e se eles não tivessem por acaso ido juntos, ela certamente os teria escolhido um a um, atraída pela qualidade das mentes delas como um leão poderia se sentir atraído por uma lagoa devido ao cheiro de uma zebra. Mas juntos eles descobriram um segredo alarmante do qual nem a Coisa sabia: aquela crença tem um outro lado. Se houver 10 mil camponeses medievais que criam vampiros por acreditarem que eles são reais, pode ser que haja um, provavelmente uma criança, que vai imaginar a estaca necessária para matá-los. Mas uma estaca é apenas madeira idiota; a mente é o martelo que a enfia no lugar certo.

 

Mas no final a Coisa escapou; ela foi fundo, e as crianças exaustas e apavoradas decidiram não segui-la quando ela estava mais vulnerável. Elas decidiram acreditar que ela estava morta ou morrendo e se retiraram.

 

A Coisa estava ciente do juramento delas e sabia que voltariam, assim como um leão sabe que a zebra vai acabar voltando para a lagoa para beber água. Ela começou a planejar antes mesmo de começar a cochilar. Quando a Coisa acordasse, estaria curada, renovada, mas as infâncias deles estariam apagadas como sete velas gordas. O antigo poder da imaginação deles estaria mudo e fraco. Eles não imaginariam mais que havia piranhas no Kenduskeag ou que, se você pisasse em uma rachadura, sua mãe podia mesmo quebrar a espinha, nem que, se você matasse uma joaninha que pousou na sua camisa, sua casa pegaria fogo naquela noite. Em vez disso, eles acreditariam em seguros. Em vez disso, eles acreditariam em vinho no jantar, algo bom, mas não pretensioso demais, como um Pouilly-Fuissé 1983, e deixe respirar, garçom, pode ser? Em vez disso, eles acreditariam na televisão pública, em Gary Hart, em correr para prevenir ataques cardíacos, em parar de comer carne vermelha para prevenir câncer do colo do útero. Eles acreditariam na dra. Ruth quando a questão fosse foder bem e em Jerry Falwell quando a questão fosse a salvação. A cada ano que passasse, os sonhos deles ficariam menores. E quando a Coisa acordasse, ela os chamaria de volta, sim, de volta, porque o medo era fértil, o filho dela era a ira, e a ira exigia vingança.

 

A Coisa os chamaria e os mataria.

 

Só que, agora que eles estavam chegando, o medo tinha voltado. Eles tinham crescido, e a imaginação deles tinha enfraquecido, mas não tanto quanto a Coisa acreditava. Ela sentiu um crescimento ameaçador e incômodo no poder deles quando eles se juntaram, e se perguntou pela primeira vez se talvez não tivesse cometido um erro.

 

Mas por que desanimar? O dado estava lançado, e nem todos os prenúncios eram ruins. O escritor estava meio louco por causa da mulher, e isso era bom. O escritor era o mais forte, o que tinha conseguido treinar a mente para esse confronto ao longo dos anos, e quando o escritor estivesse morto com as tripas para fora do corpo, quando o precioso “Big Bill” estivesse morto, os outros seriam dela rapidamente.

 

A Coisa se alimentaria bem... e então, talvez fosse para as profundezas de novo. Para dormir. Por um tempo.

 

Nos túneis — 4h30

 

— Bill! — gritou Richie no cano ecoante. Ele estava indo o mais rápido que conseguia, mas isso não era muito rápido. Ele lembrava que, quando eles eram crianças, eles andaram inclinados naquele cano, que levava para longe da estação de bombeamento no Barrens. Agora ele estava de quatro, e o cano parecia impossivelmente apertado. Os óculos ficavam querendo escorregar pela ponta do nariz, e ele ficava empurrando-os para cima. Ele conseguia ouvir Bev e Ben atrás.

 

— Bill! — gritou ele de novo. — Eddie!

 

— Estou aqui. — A voz de Eddie veio flutuando.

 

— Onde está Bill? — gritou Richie.

 

— À frente! — gritou Eddie. Ele estava bem perto agora, e Richie mais sentiu do que o viu à frente. — Ele não quis esperar!

 

Richie bateu com a cabeça na perna de Eddie. Um momento depois, a cabeça de Bev bateu na bunda de Richie.

 

— Bill! — gritou Richie com o tom mais alto de voz. O cano canalizou o grito e o trouxe de volta, fazendo seus próprios ouvidos doerem. — Bill, espera a gente! A gente tem que ir junto, você não sabe?

 

Baixinho, ecoante, Bill:

 

— Audra! Audra! Onde você está?

 

— Porra, Big Bill! — gritou Richie baixinho. Os óculos caíram. Ele falou um palavrão, tateou em busca deles e os colocou pingando no nariz. Ele inspirou e gritou de novo: — Você vai se perder sem Eddie, seu babaca escroto! Espera! Espera a gente! Está me ouvindo, Bill? ESPERA A GENTE, CACETE!

 

Houve um momento agonizante de silêncio. Pareceu que ninguém estava respirando. Richie só conseguia ouvir um som de água pingando ao longe; o cano estava seco desta vez, exceto por ocasionais poças estagnadas.

 

— Bill! — Ele passou a mão trêmula pelo cabelo e lutou contra as lágrimas. — PARA COM ISSO... POR FAVOR, CARA! ESPERA! POR FAVOR!

 

E, ainda mais baixa, a voz de Bill chegou a eles.

 

— Estou esperando.

 

— Agradeço a Deus pelos pequenos favores — murmurou Richie. Ele bateu no traseiro de Eddie. — Vai.

 

— Não sei quanto tempo mais consigo com um braço só — disse Eddie, como se pedindo desculpas.

 

— Vai mesmo assim — disse Richie, e Eddie recomeçou a engatinhar.

 

Bill, parecendo exausto e quase completamente consumido, estava esperando por eles na plataforma onde os três canos estavam enfileirados como lentes de um sinal de trânsito. Havia espaço suficiente ali para eles ficarem de pé.

 

— Ali — disse Bill. — C-Criss. E A-A-Arroto.

 

Eles olharam. Beverly gemeu e Ben passou o braço ao redor dos ombros dela. O esqueleto de Arroto Huggins, usando trapos mofados, parecia mais ou menos intacto. O que sobrou de Victor estava sem cabeça. Bill olhou para a outra extremidade e viu um crânio sorridente.

 

Ali estava o resto dele. Vocês deviam ter deixado pra lá, caras, pensou Bill, e tremeu.

 

Essa parte do sistema de esgotos tinha deixado de ser usada; Richie pensou que o motivo era bem claro. A estação de tratamento de esgoto tinha passado a ser usada. Em algum momento durante os anos em que eles estavam ocupados aprendendo a se barbear, dirigir, fumar, foder um pouco por aí, essas merdas boas, a Agência de Proteção Ambiental ganhou vida e decidiu que jogar esgoto puro, até mesmo água cinza, em rios e riachos era proibido. Assim, essa parte do sistema de esgotos simplesmente apodreceu, e os corpos de Victor Criss e Arroto Huggins apodreceram junto. Como os Garotos Perdidos de Peter Pan, Victor e Arroto nunca cresceram. Aqui estavam os esqueletos de dois garotos com restos de camisetas e calças jeans que apodreceram e viraram trapos. Musgo cresceu no xilofone curvo que era a caixa torácica de Victor e na águia na fivela do cinto.

 

— O monstro pegou eles — disse Ben baixinho. — Vocês lembram? A gente ouviu acontecer.

 

— Audra está m-morta. — A voz de Bill estava mecânica. — Eu sei.

 

— Você não sabe de nada disso! — disse Beverly com tanta fúria que Bill se mexeu e olhou para ela. — A única coisa da qual você tem certeza é que um monte de outras pessoas morreu, a maioria crianças. — Ela andou até ele e ficou de pé com as mãos nos quadris. O rosto e as mãos estavam sujos e o cabelo cheio de terra. Richie achou que ela estava simplesmente deslumbrante. — E você sabe o que fez isso.

 

— Eu n-nunca devia ter c-c-contado pra ela pra onde eu estava i-indo — disse Bill. — Por que fiz aquilo? Por que eu...?

 

As mãos dela subiram de repente e o agarraram pela camisa. Impressionado, Richie viu-a sacudi-lo.

 

— Chega! Você sabe por que viemos! Nós juramos e vamos até o fim! Está entendendo, Bill? Se ela estiver morta, ela está morta... mas a Coisa não está! Agora, precisamos de você. Entende? Precisamos de você! — Ela estava chorando agora. — Então fique do nosso lado! Fique do nosso lado como antes, senão nenhum de nós vai sair daqui!

 

Ele olhou para ela por um tempo sem falar nada, e Richie se viu pensando: Vamos lá, Big Bill. Vamos lá, vamos lá...

 

Bill olhou para os outros e assentiu.

 

— E-Eddie.

 

— Estou aqui, Bill.

 

— V-Você a-ainda l-l-lembra qual c-c-cano?

 

Eddie apontou para trás de Victor e disse:

 

— Aquele. Parece bem pequeno, né?

 

Bill assentiu de novo.

 

— Você consegue? Com o b-b-braço quebrado?

 

— Consigo por você, Bill.

 

Bill sorriu; foi o sorriso mais cansado e terrível que Richie já tinha visto.

 

— L-Leva a gente, E-Eddie. Vamos a-a-acabar com isso.

 

Nos túneis — 4h55

 

Enquanto engatinhava, Bill se lembrou da queda no final do cano, mas ela ainda assim o surpreendeu. Em um momento, suas mãos estavam se arrastando na superfície cascuda do velho cano; no seguinte, estavam deslizando no ar. Ele caiu para a frente, rolou instintivamente e caiu sobre o ombro com um estalo doloroso.

 

— C-C-Cuidado! — ele se ouviu gritando. — A q-queda é aqui! E-E-Eddie?

 

— Aqui! — A mão de Eddie passou na testa de Bill. — Você pode me ajudar a descer?

 

Ele passou os braços ao redor de Eddie e o levantou, tentando tomar cuidado com o braço machucado. Ben veio em seguida, depois Bev e Richie.

 

— Tem algum f-f-fósforo, R-Richie?

 

— Eu tenho — disse Beverly. Bill sentiu o toque da mão dela na escuridão e uma carteira de fósforos sendo colocada em sua mão. — Só tem oito ou dez, mas Ben tem mais. Do quarto.

 

Bill disse:

 

— Você guardou no s-s-sovaco, B-Bev?

 

— Não desta vez — disse ela, e passou os braços ao redor dele no escuro. Ele a abraçou com força, com olhos fechados, tentando aceitar o consolo que ela queria tanto oferecer.

 

Ele a soltou delicadamente e acendeu um fósforo. O poder da memória era incrível: todos olharam ao mesmo tempo para a direita. O que havia sobrado do corpo de Patrick Hockstetter ainda estava ali, entre algumas coisas pedaçudas e inchadas que podiam ser os livros. A única coisa realmente reconhecível era um semicírculo de dentes, dois ou três com obturações.

 

E uma coisa ali perto. Um círculo cintilante quase não visto na luz tremeluzente do fósforo.

 

Bill apagou o fósforo e acendeu outro. Ele se abaixou e pegou o objeto.

 

— A aliança de Audra — disse ele. Sua voz estava oca, sem expressão.

 

O fósforo se apagou nos dedos dele.

 

Na escuridão, ele colocou a aliança.

 

— Bill? — disse Richie com hesitação. — Você faz ideia de

 

Nos túneis — 14h20

 

quanto tempo eles estavam vagando pelos túneis debaixo de Derry desde que saíram do local em que Patrick Hockstetter estava, mas Bill tinha certeza de que jamais conseguiria encontrar o caminho de volta. Ele ficava pensando no que o pai tinha dito: Você poderia ficar andando por semanas. Se o senso de direção de Eddie falhasse agora, eles não precisariam da Coisa para matá-los; ficariam andando até morrerem... ou, se entrassem nos canos errados, até se afogarem como ratos em um barril.

 

Mas Eddie não parecia nada preocupado. De vez em quando, ele pedia que Bill acendesse um dos poucos fósforos que restavam, olhava ao redor pensativo e voltava a andar. Ele virava à direita e à esquerda de uma forma que parecia aleatória. Às vezes, os canos eram tão grandes que Bill não conseguia alcançar o alto nem se esticasse bem a mão. Às vezes eles precisavam engatinhar e, uma vez, durante cinco horríveis minutos (que mais pareceram cinco horas), eles rastejaram de barriga, com Eddie agora na frente e os outros atrás com o nariz nos calcanhares da pessoa à frente.

 

A única coisa da qual Bill tinha certeza absoluta era que eles haviam entrado em uma parte sem uso do sistema de esgotos de Derry. Eles deixaram os canos ativos ou bem para trás, ou bem para cima. O rugido de água corrente tinha virado um trovão distante. Esses canos eram mais velhos, não de cerâmica, mas de uma substância como argila que às vezes liberava um fluido de aroma desagradável. Os aromas de detritos humanos, aqueles cheiros intensos que ameaçaram sufocar todos eles, tinham diminuído, mas foram substituídos por outro cheiro, amarelo e antigo, que era bem pior.

 

Ben achava que era o cheiro da múmia. Para Eddie, tinha o cheiro do leproso. Richie achou que o cheiro era da jaqueta de flanela mais antiga do mundo, agora mofando e apodrecendo, a jaqueta de um lenhador, bem grande, grande o bastante para caber em alguém como Paul Bunyan, talvez. Para Beverly, o cheiro era o da gaveta de meias do pai. Em Stan Uris, o cheiro despertou uma lembrança horrível da primeira infância, uma lembrança estranhamente judaica em um garoto que tinha uma percepção bem leve de seu judaísmo. Era cheiro de argila misturada com óleo, e o fez pensar em um demônio sem olhos e sem boca chamado Golem, um homem de argila que judeus renegados supostamente despertaram na Idade Média para salvá-los dos goyim que roubavam e estupravam as mulheres deles e os mandavam embora. Mike pensou no cheiro seco das penas em um ninho morto.

 

Quando finalmente chegaram ao final do cano estreito, eles deslizaram como enguias pela superfície curva de outro que ficava em um ângulo oblíquo em comparação com o cano no qual eles estavam, e logo descobriram que conseguiam novamente ficar de pé. Bill tateou pelas cabeças dos fósforos que haviam sobrado na carteira. Quatro. Ele apertou a boca e decidiu não contar aos outros o quanto eles estavam próximos do fim da luz... a não ser que realmente precisasse.

 

— C-C-Como v-v-vocês e-estão?

 

Eles murmuraram respostas, e ele assentiu no escuro. Nada de pânico e nenhuma lágrima desde as de Stan. Isso era bom. Ele procurou as mãos deles, e eles ficaram juntos no escuro daquele jeito por um tempo, dando e recebendo com o toque. Bill sentiu uma exultação clara com isso, uma sensação certa de que eles estavam de alguma forma produzindo mais do que a soma das sete partes; eles foram acrescentados em um todo mais potente.

 

Ele acendeu um dos fósforos que restaram e eles viram um túnel estreito e inclinado para baixo. A parte de cima desse cano estava coberta de teias de aranha, algumas destruídas e penduradas em tiras. Olhar para elas provocou um arrepio em Bill. O piso estava seco, mas coberto de um mofo antigo e o que poderia ter sido folhas, fungos... ou restos inimagináveis. Mais à frente, ele viu uma pilha de ossos e trapos verdes. No passado, poderiam ter sido o que chamavam de “algodão polido”, roupas de trabalho. Bill imaginou algum funcionário do Departamento de Esgotos ou do Departamento de Águas que se perdeu, andou até lá embaixo e foi descoberto...

 

A chama diminuiu. Bill virou-o de cabeça para baixo para fazer a chama durar mais.

 

— V-V-Você s-sabe onde e-e-estamos? — perguntou ele para Eddie.

 

Eddie apontou para a curva do cano.

 

— O canal fica pra lá — disse ele. — A menos de 800 metros, a não ser que essa coisa vire pra uma direção diferente. Estamos debaixo da colina Up-Mile agora, eu acho. Mas Bill...

 

O fósforo queimou os dedos de Bill, e ele soltou-o. Eles estavam na escuridão de novo. Alguém, Bill achou que foi Beverly, suspirou. Mas antes de o fósforo apagar, ele viu preocupação no rosto de Eddie.

 

— O q-q-quê? O que f-foi?

 

— Quando digo que estamos embaixo da colina Up-Mile, quero dizer embaixo mesmo. Estamos descendo já faz um tempo. Ninguém nunca colocaria um cano de esgoto tão fundo. Quando você coloca um túnel fundo assim, o nome dele é mina.

 

— A que profundidade você acha que a gente está, Eddie? — perguntou Richie.

 

— Quatrocentos metros — disse Eddie. — Talvez mais.

 

— Meu Deus do céu — disse Beverly.

 

— Não são canos de esgoto, de qualquer modo — disse Stan por trás deles. — Dá pra perceber pelo cheiro. É ruim, mas não é um cheiro de esgoto.

 

— Acho que eu preferiria sentir o cheiro do esgoto — disse Ben. — Tem cheiro de...

 

Um grito chegou até eles, vindo da boca do cano do qual eles tinham acabado de sair, deixando os cabelos na nuca de Bill arrepiados. Os sete se juntaram e se agarraram uns nos outros.

 

— ... vou pegar vocês seus filhos da puta. Vamos pegar vocêêêêêês...

 

— Henry — sussurrou Eddie. — Ah, meu Deus, ele ainda está vindo.

 

— Não estou surpreso — disse Richie. — Algumas pessoas são burras demais para desistir.

 

Eles conseguiam ouvir ofegos baixos, o movimento de sapatos, o sussurro de tecido.

 

— ... vocêêêêêês...

 

— V-V-Vamos — disse Bill.

 

Eles seguiram pelo cano, agora andando de dois a dois, exceto por Mike, que estava no fim da fila: Bill e Eddie, Richie e Bev, Ben e Stan.

 

— A q-q-que d-distância v-você acha que Henry e-está?

 

— Não consegui perceber, Big Bill — disse Eddie. — Os ecos atrapalham. — Ele baixou a voz. — Você viu aquela pilha de ossos?

 

— V-V-Vi — disse Bill, também baixando a voz.

 

— Tinha um cinto de ferramentas junto com as roupas. Acho que era um funcionário do Departamento de Águas.

 

— A-A-Acho que s-s-sim.

 

— Quanto tempo você acha...?

 

— N-N-Não s-s-sei.

 

Eddie fechou a mão boa sobre o braço de Bill na escuridão.

 

Talvez uns 15 minutos depois, eles ouviram alguma coisa vindo na direção deles na escuridão.

 

Richie parou, gelado até a alma. De repente, ele tinha 3 anos de novo. Ele ouviu aquele movimento sorrateiro e úmido, se aproximando deles, chegando perto, e os sons sussurrantes como de galhos que acompanhavam, e mesmo antes de Bill acender um fósforo, ele sabia o que seria.

 

— O Olho! — gritou ele. — Meu Deus, é o Olho Rastejante!

 

Por um momento, os outros não entenderam bem o que estavam vendo (Beverly teve a impressão de que o pai a tinha encontrado, mesmo lá embaixo, e Eddie teve uma visão passageira de Patrick Hockstetter de volta à vida, de alguma forma Patrick tinha contornado e passado à frente deles), mas o grito de Richie, a certeza de Richie, fez todos eles ficarem paralisados. Eles viram o que Richie viu.

 

Um Olho gigantesco ocupava o túnel, com a pupila preta vítrea com 60 centímetros de diâmetro e a íris de uma cor de lama castanha. A parte branca era protuberante, membranosa, coberta de veias vermelhas que pulsavam sem parar. A Coisa era um horror gelatinoso sem pálpebra e sem cílios que se movia sobre uma camada de tentáculos de aparência rudimentar. Eles se movimentavam na superfície suja do túnel e afundavam como dedos, de forma que a impressão no brilho do fósforo fraco de Bill era de um Olho que de alguma forma cresceu dedos de pesadelo que o estavam arrastando.

 

A Coisa olhou para eles com cobiça pura e febril. O fósforo se apagou.

 

Na escuridão, Bill sentiu aqueles tentáculos acariciarem seus tornozelos, suas panturrilhas... mas não conseguiu se mexer. Seu corpo estava paralisado. Ele sentiu a Coisa se aproximando, conseguiu sentir o calor se irradiando dela e conseguiu ouvir a pulsação úmida de sangue umedecendo as membranas do Olho. Ele imaginou a aderência que sentiria quando a Coisa tocasse nele, mas continuou sem conseguir gritar. Mesmo quando tentáculos novos envolveram sua cintura e se prenderam nos passadores do cinto e começaram a puxá-lo para a frente, ele não conseguiu gritar nem lutar. Uma sonolência mortal parecia estar dominando todo o corpo dele.

 

Beverly sentiu um dos tentáculos deslizar ao redor da orelha dela e apertar de repente. A dor surgiu e ela foi arrastada para a frente, se contorcendo e gemendo, como se uma professora idosa estivesse dando um puxão de orelha sem paciência até os fundos da sala, onde ela seria obrigada a se sentar em um banco e usar um chapéu de burro. Stan e Richie tentaram recuar, mas uma floresta de tentáculos invisíveis se balançava e sussurrava ao redor deles. Ben colocou um braço ao redor de Beverly e tentou puxá-la de volta. Ela agarrou as mãos dele com força e pânico.

 

— Ben... Ben, a Coisa me pegou...

 

— Não pegou, não... Espere... Vou puxar...

 

Ele puxou com toda força, e Beverly gritou quando a dor explodiu em sua orelha e o sangue começou a escorrer. Um tentáculo, seco e duro, deslizou sobre a camisa de Ben, fez uma pausa e deu um nó doloroso ao redor do ombro dele.

 

Bill esticou a mão, e ela bateu em uma umidade grudenta. O Olho!, gritava sua mente. Ah, Deus, estou com a mão no Olho! Ah, Deus! Ah, meu bom Deus! O Olho! Minha mão está no Olho!

 

Ele começou a lutar agora, mas os tentáculos o puxavam para a frente inexoravelmente. Sua mão desapareceu naquele calor ávido e molhado. Agora, seu braço estava enfiado no Olho até o cotovelo. A qualquer momento, o resto do corpo dele encostaria naquela superfície grudenta, e ele sentia que ficaria louco naquele instante. Ele lutou freneticamente, batendo nos tentáculos com a outra mão.

 

Eddie parecia um garoto em um sonho, ouvindo gritos abafados e sons de luta enquanto os amigos estavam sendo puxados. Ele sentiu os tentáculos ao redor dele, mas nenhum tinha encostado ainda.

 

Corre pra casa!, mandou sua mente em tom alto. Corre pra casa pra sua mamãe, Eddie! Você consegue encontrar o caminho!

 

Bill gritou no escuro, um som alto e desesperado seguido de sons úmidos.

 

A paralisia de Eddie acabou naquele momento: a Coisa estava tentando pegar Big Bill!

 

— Não! — gritou Eddie. Foi um rugido a plenos pulmões. Ninguém jamais poderia imaginar que um grito de guerreiro norueguês poderia sair de um peito tão magro, o peito de Eddie Kaspbrak, dos pulmões de Eddie Kaspbrak, que obviamente sofriam do caso mais terrível de asma de Derry. Ele correu para a frente, pulou sobre os tentáculos em movimento sem vê-los, com o braço quebrado batendo no peito ao balançar para a frente e para trás no gesso molhado. Ele mexeu no bolso e tirou a bombinha.

 

(ácido é esse o gosto de ácido de ácido de bateria de ácido)

 

Ele colidiu com as costas de Bill Denbrough e empurrou-o para o lado. Houve um som aquoso de coisa rasgando, seguido de um choramingo baixo que Eddie não ouviu bem com os ouvidos, mas sentiu com a mente. Ele ergueu a bombinha

 

(ácido é ácido se eu quiser então toma toma toma)

 

— ÁCIDO DE BATERIA, BABACA! — gritou Eddie, e disparou um jato.

 

Ao mesmo tempo, ele chutou o Olho. O pé entrou na geleia que era a córnea. Houve um fluxo de fluido quente em sua perna. Ele puxou o pé de volta, sem nem perceber direito que tinha perdido o sapato.

 

— FODA-SE! COMIGO NÃO, VIOLÃO! SOME DAQUI, SACI! SE MANDA! FODA-SE!

 

Ele sentiu tentáculos tocando nele, mas com hesitação. Eddie disparou o aspirador de novo, cobriu o Olho e sentiu/ouviu aquele choramingo de novo... agora um som ferido e surpreso.

 

— Lutem contra a Coisa! — gritou Eddie para os outros. — É só uma porra de Olho! Lutem! Estão ouvindo? Luta, Bill! Chuta esse merda! Jesus Cristo seus covardes estou sapateando na cara dele e ESTOU DE BRAÇO QUEBRADO!

 

Bill sentiu a força voltar. Ele arrancou o braço pingando do Olho... e bateu com o punho de novo. Um momento depois, Ben estava ao lado dele. Ele correu para cima do Olho, grunhindo de surpresa e nojo, e começou a encher de socos a superfície gelatinosa e trêmula.

 

— Solta ela! — gritou ele. — Está ouvindo? Solta ela! Sai daqui! Sai daqui!

 

— É só um Olho! Só uma porra de Olho! — gritou Eddie em tom delirante. Ele disparou a bombinha de novo e sentiu a Coisa recuar. Os tentáculos que tinham se apoiado nele se afastaram agora. — Richie! Richie! Pega ele! É só um Olho!

 

Richie cambaleou para a frente, sem acreditar que estava fazendo isso, chegando perto do pior e mais terrível monstro do mundo. Mas estava.

 

Ele deu apenas um soco fraco, e a sensação do punho afundando no Olho (era densa e molhada e meio cartilaginosa) o fez vomitar em uma única convulsão sem gosto. Um som saiu dele, glurt!, e o pensamento de que ele tinha vomitado no Olho o fez dar outro soco. Foi um único soco, mas como ele tinha criado esse monstro em particular, talvez fosse a única coisa necessária. De repente, os tentáculos sumiram. Eles conseguiam ouvir o Olho se afastando... e então, os únicos sons eram Eddie ofegando e Beverly chorando baixinho com a mão na orelha sangrando.

 

Bill acendeu um dos três últimos fósforos e eles se olharam com rostos atordoados e chocados. O braço esquerdo de Bill estava coberto de uma gosma densa e esbranquiçada que parecia em parte clara de ovo ressecada e em parte catarro. Sangue escorria lentamente pela lateral do pescoço de Beverly, e havia um corte novo na bochecha de Ben. Richie empurrou lentamente os óculos no nariz.

 

— E-E-Estamos b-b-bem? — perguntou Bill com voz rouca.

 

— Você está, Bill? — perguntou Richie.

 

— E-E-Estou. — Ele se virou para Eddie e abraçou o garoto menor com força. — Você s-s-salvou minha v-vida, cara.

 

— A Coisa comeu seu sapato — disse Beverly, e deu uma gargalhada. — Não é tão ruim.

 

— Vou comprar um par novo de Keds pra você quando a gente sair daqui — disse Richie. Ele deu um tapa nas costas de Eddie no escuro. — Como você fez aquilo, Eddie?

 

— Disparei minha bombinha. Fingi que era ácido. É esse o gosto depois de um dia ruim sabe. Funcionou superbem.

 

— “Estou sapateando na cara dele e ESTOU DE BRAÇO QUEBRADO!” — disse Richie, e riu como louco. — Nada mau, Eds. Na verdade, foi demais, quer saber?

 

— Odeio quando você me chama de Eds.

 

— Eu sei — disse Richie, abraçando-o com força —, mas alguém tem que ajudar você a ficar durão, Eds. Quando você parar de levar a existência protegida de uma criança e crescer, você vai dizer, vai dizer, vai dizer, você vai descobrir que a vida nem sempre é fácil assim, garoto!

 

Eddie começou a berrar de tanto gargalhar.

 

— É a voz mais merda que já ouvi, Richie.

 

— Bem, fica com essa bombinha na mão — disse Beverly. — A gente pode precisar de novo.

 

— Você não viu a Coisa em lugar nenhum? — perguntou Mike. — Quando acendeu o fósforo?

 

— A C-C-Coisa foi e-e-embora — disse Bill, e acrescentou com voz sombria: — Mas estamos chegando perto. Do lu-ugar em que ela f-f-fica. E a-acho que m-m-machucamos a C-Coisa n-naquela vez.

 

— Henry ainda está vindo — disse Stan. A voz dele estava baixa e rouca. — Consigo ouvir ele lá atrás.

 

— Então vamos andando — disse Ben.

 

Eles seguiram. O túnel descia sempre, e aquele cheiro, aquele fedor obscuro e penetrante, foi ficando cada vez mais forte. Às vezes, eles conseguiam ouvir Henry atrás, mas agora os gritos dele pareciam distantes e nada importantes. Havia um sentimento em todos eles similar àquele de distorção e desconexão que eles sentiram na casa da rua Neibolt, de que eles tinham chegado à beirada do mundo e em um estranho nada. Bill sentia (embora não tivesse o vocabulário para expressar o que sabia) que eles estavam se aproximando do coração negro e arruinado de Derry.

 

Parecia a Mike Hanlon que ele quase conseguia sentir os batimentos doentes e arrítmicos daquele coração. Beverly teve uma sensação de poder maligno crescendo ao redor dela, parecendo envolvê-la, tentando separá-la dos outros e deixá-la sozinha. Ela esticou as duas mãos com nervosismo e segurou a mão de Bill e a de Ben. Pareceu que ela precisou esticar demais as mãos, e ela falou com nervosismo:

 

— Deem as mãos! Parece que estamos nos afastando uns dos outros!

 

Foi Stan quem percebeu primeiro que conseguia enxergar de novo. Havia uma radiância baixa e estranha no ar. A princípio, ele só conseguiu ver mãos; as dele, segurando a de Ben de um lado e a de Mike do outro. Depois, ele percebeu que conseguia ver os botões na camisa suja de lama de Richie e o anel do Captain Midnight, um brinde vagabundo de caixa de cereal que Eddie gostava de usar no mindinho.

 

— Vocês conseguem enxergar, pessoal? — perguntou Stan, parando de repente. Os outros também pararam. Bill olhou ao redor, primeiro percebendo que conseguia enxergar, ao menos um pouco, e depois que o túnel estava incrivelmente mais largo. Eles estavam agora em uma câmara curva do tamanho do túnel Summer em Boston. Maior, consertou ele ao olhar ao redor com sensação crescente de assombro.

 

Eles inclinaram as cabeças para trás para ver o teto, que agora ficava a 15 metros ou mais acima deles e era sustentado por vigas curvas de pedra como costelas. Redes de teias sujas estavam penduradas entre elas. O piso agora era de pedra, mas coberto de tanta sujeira antiga que a sensação ao caminhar não mudou. As paredes curvas ficavam facilmente a 5 metros uma da outra.

 

— O sistema de distribuição de água deve ter ficado doido aqui — disse Richie, e deu uma gargalhada desconfortável.

 

— Parece uma catedral — disse Beverly baixinho.

 

— De onde está vindo a luz? — quis saber Ben.

 

— Está v-vindo direto das p-p-paredes, ao que p-parece — disse Bill.

 

— Não estou gostando — disse Stan.

 

— V-Vamos. Henry d-deve estar b-bem atrás da g-gente...

 

Um grito alto e vibrante fez o local tremer, seguido do movimento pesado de asas. Uma forma surgiu da escuridão, com um olho brilhando; o outro era uma lâmpada apagada.

 

— O pássaro! — gritou Stan. — Cuidado, é o pássaro!

 

O bicho mergulhou para cima deles como um avião de guerra obsceno, com o bico laranja abrindo, fechando e deixando à mostra o interior rosado da boca, fofo como um travesseiro de cetim em um caixão.

 

Ele foi direto para cima de Eddie.

 

O bico perfurou o ombro dele, e Eddie sentiu a dor penetrar sua pele como ácido. Sangue escorreu pelo peito dele. Ele gritou quando o movimento das asas soprou um túnel tóxico de ar no rosto dele. O pássaro deu a volta, com os olhos brilhando de malevolência e se revirando, se enevoando apenas quando a pálpebra desceu para cobrir o olho com uma camada fina. As garras procuravam Eddie, que se abaixou gritando. Elas cortaram as costas da camisa, cortaram o tecido e fizeram linhas vermelhas rasas nos ombros dele. Eddie gritou e tentou rastejar para longe, mas o pássaro atacou de novo.

 

Mike se inclinou para a frente e enfiou a mão no bolso. Tirou uma faca com lâmina retrátil. Quando o pássaro mergulhou para cima de Eddie de novo, ele atacou em um arco rápido uma das garras do pássaro. O corte foi fundo, e o sangue jorrou. O pássaro se afastou e voltou, fechando as asas e atacando como uma bala. Mike caiu de lado no último momento e atacou com a faca. Ele errou, e a garra do pássaro acertou o pulso dele com tanta força que a mão ficou dormente e formigando. O hematoma que surgiu mais tarde ia quase até o cotovelo. A faca voou no ar.

 

O pássaro voltou, gritando com triunfo, e Mike rolou o corpo por cima de Eddie e esperou o pior.

 

Stan andou na direção dos dois garotos encolhidos no chão quando o pássaro estava voltando. Ele ficou de pé, pequeno e um tanto arrumado apesar da sujeira grudada nas mãos e braços e calça e camisa, e de repente esticou as mãos em um gesto curioso, com as palmas para cima e os dedos para baixo. O pássaro deu outro grito e desviou, passando ao lado de Stan e errando por centímetros, levantando o cabelo dele, que caiu depois da passagem do bicho. Ele deu a volta para encarar a volta da Coisa.

 

— Eu acredito em sanhaço-de-fogo mesmo nunca tendo visto um — disse ele com voz alta e clara. O pássaro gritou e se afastou como se tivesse levado um tiro. — Assim como em abutres, pega-cotovias da Nova Guiné e flamingos do Brasil. — O pássaro gritou, voou em círculo e de repente voou para cima no túnel, piando. — Eu acredito na águia-de-cabeça-branca! — gritou Stan atrás do pássaro. — E acho que pode mesmo existir uma fênix em algum lugar! Mas não acredito em você, então sai daqui, porra! Sai! Pé na estrada!

 

Ele parou nesse momento, e o silêncio pareceu enorme.

 

Bill, Ben e Beverly foram até Mike e Eddie; ajudaram Eddie a ficar de pé, e Bill olhou os cortes.

 

— N-Não são p-p-profundos — disse ele. — Mas a-aposto que d-doem pra c-c-caramba.

 

— Ele rasgou minha camisa, Big Bill. — As bochechas de Eddie brilhavam com as lágrimas, e ele estava respirando assobiado de novo. A voz de berro bárbaro tinha desaparecido; era difícil acreditar que já tinha saído de dentro dele. — O que vou dizer pra minha mãe?

 

Bill sorriu um pouco.

 

— Por que a g-g-gente n-não se p-preocupa com isso quando s-s-sair daqui? Usa a b-b-bombinha, Eddie.

 

Eddie fez isso e inspirou profundamente, para depois ofegar.

 

— Isso foi demais, cara — Richie disse para Stan. — Foi simplesmente demais!

 

Stan estava tremendo todo.

 

— Não existe pássaro assim, só isso. Nunca existiu e nunca vai existir.

 

— Estamos chegando! — gritou Henry atrás deles. A voz estava completamente demente. Ele estava rindo e uivando agora. O som era de alguma coisa que rastejou para fora de uma rachadura no teto do inferno. — Eu e Arroto! Estamos chegando e vamos pegar vocês, malditos! Vocês não podem escapar!

 

Bill gritou:

 

— S-S-Sai daqui, Henry! E-E-Enquanto você ainda tem t-t-tempo!

 

A resposta de Henry foi um grito seco e inarticulado. Eles ouviram uma movimentação de passos, e em uma explosão de compreensão, Bill entendeu o propósito de Henry: ele era real, era mortal, não podia ser detido por uma bombinha nem por um livro de pássaros. A magia não funcionaria em Henry. Ele era burro demais.

 

— V-V-Vamos. A gente t-tem que ficar à f-f-frente d-dele.

 

Eles voltaram a andar de mãos dadas, com a camisa rasgada de Eddie pendurada nas costas dele. A luz foi ficando mais intensa, o túnel foi ficando maior. Conforme ele descia, o teto subiu tanto que eles mal conseguiam ver. Agora parecia que eles não estavam andando em um túnel, mas seguindo por um pátio subterrâneo gigantesco, o caminho até um castelo ciclope. A luz das paredes tinha ficado verde-amarelada de fogo. O cheiro estava mais forte, e eles começaram a captar uma vibração que poderia ser real ou estar apenas na cabeça deles. Era firme e rítmico.

 

Era um batimento cardíaco.

 

— Acaba ali na frente! — gritou Beverly. — Olhem! É uma parede vazia!

 

Mas quando eles se aproximaram, parecendo formigas nessa enorme área de blocos de pedra sujos, cada bloco maior do que o parque Bassey, ao que parecia, eles viram que a parede não estava completamente vazia. Havia uma única porta. E apesar de a parede subir dezenas de metros acima deles, a porta era bem pequena. Não passava de 90 centímetros de altura, uma porta do tipo que você poderia ver em um livro de contos de fadas, feita de tábuas fortes de carvalho presas com tiras de ferro em forma de X. Eles perceberam todos ao mesmo tempo que era uma porta feita apenas para crianças.

 

Ben ouviu na mente a voz fantasmagórica da bibliotecária lendo para os pequeninos: Quem está passando pela minha ponte? As crianças se inclinam para a frente, com toda a velha fascinação brilhando nos olhos: será que o monstro será vencido... ou vai se alimentar?

 

Havia uma marca na porta, e empilhados na frente dela havia vários ossos. Ossos pequenos. Os ossos de só Deus sabia quantas crianças.

 

Eles tinham chegado ao lar da Coisa.

 

A marca na porta, o que era aquilo?

 

Bill viu como um barco de papel.

 

Stan viu como um pássaro subindo para o céu; uma fênix, talvez.

 

Michael viu um rosto encapuzado. O rosto do maluco do Butch Bowers, talvez, se ele pudesse ser visto.

 

Richie viu dois olhos atrás de um par de óculos.

 

Beverly viu a mão fechada de alguém.

 

Eddie acreditou ser o rosto do leproso, com olhos afundados e boca murcha rosnando, cheio de doença, cheio de podridão, tudo isso estampado naquele rosto.

 

Ben Hanscom viu uma pilha de farrapos e pareceu sentir o cheiro de temperos velhos e azedos.

 

Mais tarde, ao chegar à mesma porta com os gritos de Arroto ainda ecoando nos ouvidos, sozinho no final de tudo, Henry Bowers veria como a lua, cheia, inchada... e preta.

 

— Estou com medo, Bill — disse Ben com voz trêmula. — A gente precisa mesmo?

 

Bill empurrou os ossos com o pé e espalhou-os de repente em um movimento. Ele também estava com medo... mas havia George para considerar. A Coisa tinha arrancado o braço de George. Será que aqueles ossos pequenos e frágeis estavam entre esses aqui? Sim, claro que estavam.

 

Eles estavam aqui por causa dos donos dos ossos, George e todos os outros, os que tinham sido levados para lá, os que ainda poderiam ser levados, os que foram largados para apodrecer em outros lugares.

 

— Precisa — disse Bill.

 

— E se estiver trancada? — perguntou Beverly com voz baixa.

 

— Não e-está t-trancada — disse Bill, e contou a ela o que sabia bem dentro de si. — Luga-ares assim n-nunca ficam t-trancados.

 

Ele colocou os dedos abertos da mão direita na porta e empurrou. Ela se abriu em um fluxo de luz doentia amarelo-esverdeada. Aquele cheiro de zoológico chegou até eles, incrivelmente forte, incrivelmente potente agora.

 

Um a um, eles passaram pela porta de contos de fadas e entraram no lar da Coisa. Bill

 

Nos túneis — 4h59

 

parou tão de repente que os outros se chocaram como vagões de trem quando a locomotiva para de repente em pane.

 

— O que foi? — perguntou Ben.

 

— F-F-Foi a-a-aqui. O O-O-Olho. V-V-Vocês l-l-lembram?

 

— Eu lembro — disse Richie. — Eddie acabou com ele usando a bombinha. Fingindo que era ácido. Ele disse alguma coisa sobre dançar. Foi engraçado pra caramba, mas não consigo lembrar direito.

 

— N-N-Não im-im-importa. Não vamos v-v-ver nada que vimos a-a-antes — disse Bill. Os rostos deles estavam luminosos no brilho do fósforo, luminosos e místicos. E eles pareciam muito jovens. — C-C-Como vocês e-estão?

 

— Estamos bem, Big Bill — disse Eddie, mas o rosto dele estava contorcido de dor. A tala improvisada de Bill estava se desmontando. — E você?

 

— T-T-Tudo bem — disse Bill, e apagou o fósforo antes de seu rosto poder contar uma história diferente.

 

— Como aconteceu? — perguntou Beverly a ele, tocando no braço dele no escuro. — Bill, como ela poderia...?

 

— P-P-Porque m-mencionei o n-nome da cidade. E-Ela v-v-veio a-atrás de m-m-mim. Na hora em q-que eu estava f-f-falando, a-a-alguma co-oisa d-dentro de mim estava me m-m-mandando c-c-c-calar a b-boca. M-Mas eu n-não e-e-escutei. — Ele balançou a cabeça com impotência no escuro. — Mas mesmo se e-e-ela v-veio para D-D-Derry, n-n-não entendo c-c-como ela v-veio pa-arar a-a-aqui embaixo. Se Henry não t-t-trouxe ela, quem t-t-trouxe?

 

— A Coisa — disse Ben. — A Coisa não precisa parecer má, a gente sabe. Ela poderia ter aparecido e dito que você estava com problemas. Trazido ela aqui pra... afetar você, eu acho. Pra tirar nossa coragem. Porque é isso que você sempre foi, Big Bill. Nossa coragem.

 

— Tom? — disse Beverly com voz baixa e quase reflexiva.

 

— Q-Q-Quem? — Bill acendeu outro fósforo.

 

Ela estava olhando para ele com um tipo de honestidade desesperada.

 

— Tom. Meu marido. Ele também sabia. Pelo menos, acho que mencionei o nome da cidade pra ele, da mesma forma que você mencionou pra Audra. Eu... Eu não sei se ele prestou atenção. Estava com muita raiva de mim na hora.

 

— Meu Deus, o que é isso, uma novela maluca em que todo mundo aparece mais cedo ou mais tarde? — disse Richie.

 

— Não é novela — disse Bill, com voz doente —, é um show. Como um circo. A Bev aqui se casou com Henry Bowers. Quando ela foi embora, por que ele não viria pra cá? Afinal, o Henry de verdade veio.

 

— Não — disse Beverly. — Eu não me casei com Henry. Eu me casei com meu pai.

 

— Se ele batia em você, que diferença faz? — perguntou Eddie.

 

— V-V-Venham comigo — disse Bill. — E-E-Entrem.

 

Eles foram. Bill esticou a mão para os dois lados e encontrou a mão boa de Eddie e uma das mãos de Richie. Em pouco tempo, eles estavam em círculo, como tinham feito uma vez antes, quando o número deles era maior. Eddie sentiu alguém passar o braço ao redor de seus ombros. A sensação foi calorosa e reconfortante e profundamente familiar.

 

Bill teve a sensação de poder da qual se lembrava de antes, mas entendeu com certo desespero que as coisas tinham mesmo mudado. O poder não estava tão forte, ele lutava e piscava como uma chama de vela na brisa. A escuridão pareceu mais densa e mais fechada, mais triunfante. E ele conseguia sentir o cheiro da Coisa. Depois dessa passagem, pensou ele, e não muito longe, há uma porta com uma marca. O que havia atrás daquela porta? É a única coisa da qual ainda não consigo me lembrar. Consigo me lembrar de esticar os dedos porque eles queriam tremer, e consigo me lembrar de empurrar a porta para abri-la. Consigo me lembrar até de um fluxo de luz que saiu dela e de como parecia quase viva, como se não fosse apenas luz, mas cobras fluorescentes. Eu me lembro do cheiro, como a jaula dos macacos em um zoológico grande, mas pior até. E então... nada.

 

— A-A-Algum de v-v-v-vocês se le-embra de como a Coisa e-e-era de v-verdade?

 

— Não — disse Eddie.

 

— Eu acho... — começou Richie, mas Bill quase conseguiu senti-lo balançando a cabeça no escuro. — Não.

 

— Não — disse Beverly.

 

— Hã-hã. — Esse foi Ben. — É a única coisa da qual não consigo me lembrar. Como a Coisa era... e como lutamos com ela.

 

— Chüd — disse Beverly. — Foi assim que lutamos. Mas não lembro o que isso quer dizer.

 

— Fiquem do m-meu lado — disse Bill — e eu vou f-f-ficar do l-l-lado de v-v-vocês.

 

— Bill — disse Ben. A voz dele estava muito calma. — Alguma coisa está vindo.

 

Bill prestou atenção. Ele ouviu passos arrastados e mancos se aproximando no escuro... e sentiu medo.

 

— A-A-Audra? — disse ele... e soube imediatamente que não era ela.

 

Aquilo que estava se arrastando para perto deles chegou mais perto.

 

Bill acendeu um fósforo.

 

Derry — 5h

 

A primeira coisa errada aconteceu naquele dia de fim de primavera de 1985 dois minutos antes do nascer oficial do sol. Para entender o quanto foi errada, era preciso saber dois fatos que Mike Hanlon (que estava deitado inconsciente no Derry Home Hospital quando o sol nasceu) sabia bem, os dois relacionados à Igreja Batista da Graça, que ficava na esquina das ruas Witcham e Jackson desde 1897. A igreja tinha um pináculo estreito e branco que era a apoteose de todas as torres de igreja da Nova Inglaterra. Havia mostradores de relógio nos quatro lados da base da torre, e o relógio em si foi construído e enviado da Suíça no ano de 1898. O único outro relógio igual ficava na praça da cidade de Haven, a 65 quilômetros de distância.

 

Stephen Bowie, um barão madeireiro que morou na West Broadway, doou o relógio para a cidade pelo custo de 17 mil dólares. Bowie tinha dinheiro para pagar. Ele era devoto e assíduo na igreja e foi diácono durante quarenta anos (durante vários dos últimos anos, ele também foi presidente da filial de Derry da Legião da Decência Branca). Além do mais, era conhecido por seus sermões ardorosos no Dia das Mães, ao qual ele sempre se referia com reverência como Domingo das Mães.

 

Da época da instalação até o dia 31 de maio de 1985, aquele relógio bateu regularmente cada hora e cada meia hora, com uma notável exceção. No dia da explosão da Siderúrgica Kitchener, ele não bateu o meio-dia. Os residentes acreditavam que o reverendo Jollyn silenciou o relógio para mostrar que a igreja estava de luto pelas crianças mortas, e Jollyn nunca os contradisse, embora não fosse verdade. O relógio simplesmente não tocou.

 

Ele também não bateu a hora de cinco da manhã no dia 31 de maio de 1985.

 

Naquele momento, em toda Derry, cidadãos antigos abriram os olhos e se sentaram nas camas, perturbados sem motivo aparente. Remédios foram tomados, dentaduras foram colocadas e charutos foram acesos.

 

O pessoal antigo ficou alerta.

 

Um deles era Norbert Keene, agora com mais de 90 anos. Ele foi até a janela e olhou para o céu que escurecia. A previsão do tempo da noite anterior dizia que o céu estaria limpo, mas seus ossos diziam que ia chover muito. Ele sentiu um medo bem dentro de si; de alguma forma obscura, ele se sentiu ameaçado, como se um veneno estivesse seguindo implacavelmente na direção de seu coração. Ele pensou aleatoriamente no dia em que a gangue Bradley entrou em Derry sem noção do que estava acontecendo, na mira de 75 pistolas e rifles. Aquele tipo de coisa deixava um homem se sentindo quente e preguiçoso por dentro, como se tudo fosse... fosse confirmado. Ele não conseguia expressar melhor, nem para si mesmo. Um trabalho assim deixava um homem sentindo que poderia viver para sempre, e Norbert Keene quase conseguiu. Ele faria 96 anos no dia 24 de junho e ainda caminhava quase 5 quilômetros por dia. Mas agora, sentiu medo.

 

— Aquelas crianças — disse ele, olhando pela janela, sem perceber que tinha falado. — O que está acontecendo com essas malditas crianças? O que estão aprontando agora?

 

Egbert Thoroughgood, de 99 anos, que estava no Silver Dollar quando Claude Heroux afinou o machado e tocou “A Marcha Fúnebre” em quatro homens lá dentro, acordou no mesmo momento, se sentou e soltou um grito enferrujado que ninguém ouviu. Ele tinha sonhado com Claude, só que Claude estava indo atrás dele, e o machado desceu, e um momento depois, Thoroughgood viu sua própria mão cortada se remexendo e fechando na bancada.

 

Tem alguma coisa errada, pensou ele de sua maneira enevoada, assustado e tremendo na ceroula manchada de mijo. Tem alguma coisa terrivelmente errada.

 

Dave Gardener, que encontrou o corpo mutilado de George Denbrough em outubro de 1957 e cujo filho encontrou a primeira vítima desse novo ciclo no começo da primavera, abriu os olhos bem às cinco horas e pensou, antes mesmo de olhar para o relógio na cômoda: O relógio da Igreja da Graça não bateu a hora... Qual é o problema? Ele sentiu um medo enorme e indefinido. Dave havia prosperado ao longo dos anos; em 1965, comprou o The Shoeboat, e agora havia um segundo Shoeboat no Derry Mall e um terceiro em Bangor. De repente, todas essas coisas, as coisas pelas quais ele passou a vida trabalhando, pareceram em risco. De quê?, disse ele para si mesmo, olhando para a esposa adormecida. De quê, por que você está tão agitado só porque aquele relógio não tocou? Mas não houve resposta.

 

Ele se levantou e foi até a janela, puxando o elástico da cintura do pijama. O céu estava agitado com nuvens vindas do oeste, e a inquietação de Dave cresceu. Pela primeira vez em muito tempo ele se viu pensando nos gritos que o levaram até a varanda 27 anos antes, para ver aquela pessoa de capa amarela se debatendo. Ele olhou para as nuvens que se aproximavam e pensou: Estamos em perigo. Todos nós. Derry.

 

O chefe Andrew Rademacher, que realmente acreditava ter feito o melhor para resolver a nova série de assassinatos de crianças que assolou Derry, ficou de pé na varanda de casa, com os polegares no cinto, olhando para as nuvens, e sentiu a mesma inquietação. Alguma coisa está se preparando para acontecer. Parece que vai chover canivete, primeiro de tudo. Mas não é só isso. Ele tremeu... e enquanto estava ali de pé na varanda, com o cheiro de bacon que a esposa preparava saindo pela porta de tela, as primeiras gotas grossas de chuva escureceram a calçada na frente da casa na agradável rua Reynolds e, em algum lugar no horizonte depois do Parque Bassey, um trovão ribombou.

 

Rademacher tremeu de novo.

 

George — 5h01

 

Bill ergueu o fósforo... e deu um grito longo e trêmulo de desespero.

 

Era George andando pelo túnel na direção dele, George, ainda vestido com a capa amarela manchada de sangue. Uma das mangas pendia inutilmente. O rosto de George estava branco como queijo, e os olhos eram prateados e brilhantes. Estavam fixos nos de Bill.

 

— Meu barco! — A voz perdida de George cresceu trêmula no túnel. — Não consigo encontrar, Bill! Já procurei em toda parte e não consigo encontrar e agora estou morto e é sua culpa, sua culpa, SUA CULPA...

 

— G-G-Georgie! — gritou Bill. Ele sentiu a mente oscilando, soltando-se do que a mantinha firme.

 

George cambaleou na direção dele, e agora o braço que restava se levantou na direção de Bill, com a mão branca na ponta meio fechada, como uma garra. As unhas estavam sujas e irregulares.

 

— Sua culpa — sussurrou George, e sorriu. Os dentes eram presas; eles se abriram e fecharam lentamente, como dentes em uma armadilha de ursos. — Você me mandou pra rua e é tudo... sua... culpa.

 

— N-N-Não, G-G-Georgie! — gritou Bill. — Eu n-n-não s-s-s-sabia...

 

— Vou matar você! — gritou George, e uma mistura de sons caninos saíram daquela boca cheia de presas: latidos, uivos. Uma espécie de gargalhada. Bill conseguia sentir o cheiro dele agora, conseguia sentir o cheiro de George apodrecendo. Era um cheiro de porão, desagradável, o cheiro de um monstro definitivo encolhido com olhos amarelos em um canto, esperando para arrancar as entranhas do garotinho.

 

Os dentes de George bateram uns nos outros. O som era como de bolas de bilhar batendo umas nas outras. Pus amarelo começou a escorrer dos olhos dele e pelo rosto... e o fósforo se apagou.

 

Bill sentiu os amigos desaparecerem. Eles saíram correndo, é claro que saíram, estavam deixando Bill sozinho. Eles o estavam afastando, assim como os pais o tinham afastado, porque George estava certo: era tudo culpa dele. Em pouco tempo, ele sentiria aquela mão única agarrar seu pescoço, em pouco tempo ele sentiria aqueles dentes arrancando a pele dele, e isso seria o certo. Seria justo. Ele tinha enviado George para a morte e passado toda a vida adulta escrevendo sobre o horror daquela traição; ah, ele colocou muitos rostos nela, quase a mesma quantidade de rostos que a Coisa colocou para eles, mas o monstro no fundo de tudo era apenas George, correndo na direção da enchente com o barco de papel coberto de parafina. Agora viria a expiação.

 

— Você merece morrer por me matar — sussurrou George. Ele estava bem perto agora. Bill fechou os olhos.

 

Mas o túnel foi invadido por amarelo e ele abriu os olhos. Richie estava segurando um fósforo.

 

— Lute contra a Coisa, Bill! — gritou Richie. — Pelo amor de Deus! Lute!

 

O que vocês estão fazendo aqui? Ele olhou para os amigos com perplexidade. Eles não tinham fugido, afinal. Como isso era possível? Como isso era possível depois que eles viram com que crueldade ele matou o próprio irmão?

 

— Lute contra a Coisa! — gritou Beverly. — Ah, Bill, lute! Só você consegue fazer essa! Por favor...

 

George estava a menos de um metro e meio agora. Ele de repente mostrou a língua para Bill. Ela estava tomada de fungos brancos. Bill gritou de novo.

 

— Mata a Coisa, Bill! — gritou Eddie. — Isso aí não é seu irmão! Mata a Coisa enquanto ela está pequena! Mata a Coisa AGORA!

 

George olhou para Eddie, virando os olhos prateados e brilhantes na direção dele por um momento; Eddie recuou e bateu na parede como se tivesse sido empurrado. Bill ficou hipnotizado, vendo o irmão ir para cima dele, George de novo depois de todos aqueles anos, era George no final, assim como foi George no começo, ah, sim, e ele conseguia ouvir o estalo da capa amarela de George enquanto ele diminuía a distância, ele conseguia ouvir o estalo das fivelas dos sapatos e conseguia sentir o cheiro de alguma coisa como folhas molhadas, como se por baixo da capa o corpo de George fosse feito delas, como se os pés dentro das galochas de George fossem pés-folhas, sim, um homem-folha, era isso, George era isso, ele era uma cara podre de balão e um corpo feito de folhas mortas, do tipo que às vezes entope ralos depois de uma inundação.

 

Ao longe, ele ouviu Beverly gritar.

 

(ele soca postes)

 

— Bill, por favor, Bill...

 

(de montão e insiste)

 

— Vamos procurar meu barco juntos — disse George. Pus denso e amarelo, imitação de lágrimas, escorria pelas bochechas dele. Ele esticou a mão para Bill e inclinou a cabeça para o lado, mostrando aqueles dentes-presas.

 

(que vê assombração que vê assombração QUE VÊ)

 

— A gente vai encontrar — disse George, e Bill conseguiu sentir o cheiro dele; era um cheiro de animais explodidos deitados na estrada à meia-noite. Quando a boca de George se abriu, ele conseguiu ver coisas se contorcendo lá dentro. — Ainda está aqui embaixo, vamos flutuar, Bill, vamos todos flutuar...

 

A mão de George, da cor de uma barriga de peixe, se fechou no pescoço de Bill.

 

(ELE VÊ ASSOMBRAÇÃO NÓS VEMOS ASSOMBRAÇÃO ELES NÓS VOCÊ VÊ ASSOMBRAÇÃO...)

 

O rosto contorcido de George se aproximou do pescoço de Bill.

 

— ... flutuamos...

 

— Ele soca postes de montão! — gritou Bill. Sua voz estava mais grave, nem parecia ser a sua, e em um brilho lancinante de memória Richie lembrou que Bill só gaguejava com a própria voz; quando ele fingia ser outra pessoa, nunca gaguejava.

 

A coisa-George se encolheu sibilando, colocando a mão sobre o rosto em um gesto de afastamento.

 

— É isso! — gritou Richie de forma delirante. — Você pegou a Coisa, Bill! Pega a Coisa! Pega a Coisa! Pega a Coisa!

 

— Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração! — trovejou Bill. Ele avançou para cima da coisa-George. — Você não é fantasma! George sabe que eu não queria que ele morresse! Meus pais estavam errados! Eles descontaram em mim e isso foi errado! Você está me ouvindo?

 

A coisa-George se virou abruptamente, guinchando como um rato. Ela começou a correr e ondular debaixo da capa amarela. A capa parecia estar pingando, escorrendo em pedaços amarelados. A Coisa estava perdendo sua forma, se tornando amorfa.

 

— Ele soca postes de montão, seu filho da puta! — gritou Bill Denbrough. — E insiste que vê assombração! — Ele pulou na Coisa e seus dedos agarraram a capa amarela que não era mais uma capa de chuva. O que ele segurou parecia caramelo estranho e quente que derreteu sob os dedos dele assim que ele fechou a mão para segurar. Ele caiu de joelhos. Em seguida, Richie gritou quando o fósforo queimou seus dedos, e eles foram mergulhados na escuridão de novo.

 

Bill sentiu alguma coisa começar a crescer no peito, uma coisa quente e sufocante e tão dolorosa quanto urtigas pegando fogo. Ele segurou os joelhos e levou até o queixo na esperança de acabar com a dor, ou talvez aliviá-la; ficou ligeiramente agradecido pela escuridão, feliz porque os outros não conseguiam ver esse sofrimento.

 

Ele ouviu um som saindo dele, um gemido trêmulo. Houve um segundo; um terceiro.

 

— George! — gritou ele. — George, me desculpe! Eu nunca quis que alguma coisa r-r-ruim a-a-acontecesse!

 

Talvez houvesse mais alguma coisa a dizer, mas ele não conseguia. Ele estava chorando, deitado de costas com um braço sobre os olhos, lembrando-se do barco, lembrando-se do som regular da chuva nas janelas do quarto, lembrando-se dos remédios e dos lenços de papel na mesa de cabeceira, da leve dor da febre na cabeça e no corpo, lembrando-se de George, mais do que tudo: lembrando-se de George, George de capa amarela com capuz.

 

— George, me desculpe! — gritou ele em meio às lágrimas. — Me desculpe, me desculpe, por favor, me d-d-DESCULPE...

 

E eles estavam ao redor dele, seus amigos, e ninguém acendeu um fósforo, e alguém o abraçou, ele não sabia quem, Beverly, talvez, ou quem sabe Ben, ou Richie. Eles estavam com ele, e por aquele tempo curto, a escuridão foi gentil.

 

Derry — 5h30

 

Às 5h30, estava chovendo forte. A previsão do tempo nas estações de rádio de Bangor demonstrava leve surpresa, e locutores pediram desculpas a todas as pessoas que fizeram planos de piqueniques e passeios baseadas na previsão do dia anterior. Que azar, pessoal; era só uma dessas coisas estranhas que às vezes acontecia no vale do Penobscot com surpresa repentina.

 

Na WZON, o meteorologista Jim Witt descreveu o que chamou de sistema de baixa pressão “extraordinariamente disciplinado”. Isso era ser delicado. As condições foram de nublado em Bangor a chuvas intensas em Hampden a chuviscos em Haven a chuva moderada em Newport. Mas em Derry, a apenas 50 quilômetros do centro de Bangor, o céu estava desabando. Viajantes na autoestrada 7 tiveram que seguir por água com 20 centímetros de profundidade em algumas partes, e depois das fazendas Rhulin, um bueiro entupido cobriu o asfalto de tanta água que o caminho ficou intransponível. Às seis da manhã, a patrulha rodoviária de Derry tinha colocado placas laranja de DESVIO dos dois lados do trecho.

 

Os que esperavam no abrigo da rua Main pelo primeiro ônibus do dia, que os levaria ao trabalho, ficaram olhando pela amurada do canal, onde a água estava ameaçadoramente alta no caminha de concreto. Não haveria enchente, é claro; todos concordavam com isso. A água ainda estava 1,20 metro abaixo da marca mais alta da água de 1977, e não houve enchente naquele ano. Mas a chuva caiu com persistência firme, e os trovões ribombavam nas nuvens baixas. A água descia pela colina Up-Mile em riachos e rugia nos bueiros e valas.

 

Nada de enchente, as pessoas concordaram, mas havia uma camada de inquietação em todos os rostos.

 

Às 5h45, um transformador em um poste ao lado da transportadora dos Irmãos Tracker explodiu em um brilho de luz roxa, espalhando pedaços retorcidos de metal no telhado. Um dos pedaços de metal cortou um fio de alta-tensão, que também caiu no telhado, pulando e se contorcendo como uma cobra, disparando um fluxo quase líquido de fagulhas. O telhado pegou fogo apesar da chuva intensa, e em pouco tempo a transportadora estava em chamas. O cabo de energia caiu do telhado na área cheia de mato que levava para a parte de trás do terreno, onde garotos pequenos jogavam beisebol no passado. O Corpo de Bombeiros de Derry saiu pela primeira vez naquele dia às 6h02 e chegou na transportadora às 6h09. Um dos primeiros bombeiros a sair do carro foi Calvin Clark, um dos gêmeos Clark com quem Ben, Beverly, Richie e Bill estudaram. Seu terceiro passo depois de descer do carro de bombeiros fez com que ele colocasse a sola da bota de couro no fio desencapado. Calvin foi eletrocutado quase instantaneamente. Sua língua pulou para fora da boca, e o casaco de borracha de bombeiro começou a fumegar. Ele ficou com cheiro de pneus queimados no lixão da cidade.

 

Às 6h05, os moradores da rua Merit em Old Cape sentiram uma coisa que poderia ter sido uma explosão subterrânea. Pratos caíram de prateleiras e quadros de paredes. Às 6h06, todas as privadas na rua Merit explodiram de repente em um gêiser de merda e esgoto puro, quando uma reversão inimaginável aconteceu nos canos que alimentavam os tanques de armazenamento da nova estação de tratamento de esgoto no Barrens. Em alguns casos, essas explosões foram fortes o bastante para abrir buracos em tetos de banheiros. Uma mulher chamada Anne Stuart foi morta quando uma antiga roda dentada foi catapultada da privada em um jorro de esgoto. A roda passou pelo vidro fosco da porta do chuveiro e cortou o pescoço dela como uma bala terrível enquanto ela lavava o cabelo. Ela foi quase decapitada. A roda dentada era uma relíquia da Siderúrgica Kitchener e tinha ido parar nos esgotos quase três quartos de século antes. Outra mulher morreu quando a reversão repentina e violenta do esgoto, gerada pela expansão de gases metano, fez a privada dela explodir como uma bomba. A infeliz mulher, que estava sentada no vaso no momento lendo um catálogo da Banana Republic, ficou em pedaços.

 

Às 6h19, um relâmpago atingiu a chamada Ponte do Beijo, que cobria o canal entre o Parque Bassey e a Derry High School. Os fragmentos foram jogados no ar e caíram no canal em movimento, sendo carregados para longe.

 

O vento estava aumentando. Às 6h30, o medidor do prédio do fórum registrou em pouco mais de 25 quilômetros por hora. Às 6h45, tinha aumentado para 38 quilômetros por hora.

 

Às 6h46, Mike Hanlon acordou no quarto do Derry Home Hospital. Sua volta à consciência foi meio lenta; por um longo tempo ele pensou estar sonhando. Se era isso, era um tipo estranho de sonho, um sonho de ansiedade, diria o velho professor de psicologia, Doc Abelson. Parecia não haver motivo claro para a ansiedade, mas ela estava lá mesmo assim; o quarto branco parecia berrar uma ameaça.

 

Ele percebeu gradualmente que estava acordado. O quarto branco era um quarto de hospital. Havia frascos sobre sua cabeça, um cheio de líquido transparente, o outro de um líquido vermelho-escuro. Sangue. Ele viu uma televisão apagada presa na parede e percebeu o som regular de chuva batendo na janela.

 

Mike tentou mexer as pernas. Uma se moveu livremente, mas a outra, a direita, não se moveu nem um pouco. A sensação nessa perna era suave, e ele percebeu que ela estava com um curativo apertado.

 

Pouco a pouco, tudo voltou. Ele tinha se sentado para escrever no caderno e Henry Bowers apareceu. Uma surpresa do passado, pura diversão. Houve uma luta e...

 

Henry! Para onde Henry foi? Atrás dos outros?

 

Mike tateou em busca da campainha. Ela estava presa na cabeceira da cama, e ele estava com ela nas mãos quando a porta foi aberta. Um enfermeiro apareceu. Dois botões do jaleco branco estavam abertos e o cabelo escuro estava bagunçado, dando a ele um visual desgrenhado de Ben Casey. Ele usava uma medalha de São Cristóvão no pescoço. Até em seu estado atordoado e parcialmente acordado, Mike o identificou imediatamente. Em 1958, uma garota de 16 anos chamada Cheryl Lamonica tinha sido morta em Derry, morta pela Coisa. A garota tinha um irmão de 14 anos chamado Mark, e o enfermeiro era ele.

 

— Mark? — disse ele com voz fraca. — Preciso falar com você.

 

— Shhh — disse Mark. Ele estava com a mão no bolso. — Nada de falar.

 

Ele entrou no quarto, e quando ficou de pé na beira da cama, Mike viu com um arrepio desesperador o quanto os olhos de Mark Lamonica estavam vazios. A cabeça estava ligeiramente inclinada, como se ouvindo música distante. Ele tirou a mão do bolso. Havia uma seringa nela.

 

— Isso vai te fazer dormir — disse Mike, e começou a andar na direção da cama.

 

Debaixo da cidade — 6h49

 

— Shhhhh! — disse Bill de repente, apesar de não ter havido nenhum som além dos passos baixos deles mesmos.

 

Richie acendeu um fósforo. As paredes do túnel tinham se afastado e os cinco pareceram muito pequenos nesse espaço debaixo da cidade. Eles se reuniram e Beverly teve uma sensação sonhadora de déjà-vu enquanto observava as pedras gigantescas no chão e as redes de teias penduradas. Eles estavam perto agora. Perto.

 

— O que você está escutando? — perguntou ela a Bill, tentando olhar para todos os lados enquanto o fósforo na mão de Richie queimava, esperando ver alguma nova surpresa vir se arrastando ou voando da escuridão. Rodan, alguém? O alienígena daquele filme nojento com Sigourney Weaver? Um grande rato com olhos laranja e dentes prateados? Mas não havia nada, só o cheiro poeirento do escuro e, bem longe, o trovão da água correndo, como se os bueiros estivessem ficando cheios.

 

— T-T-Tem a-a-alguma c-coisa e-e-errada — disse Bill. — Mike...

 

— Mike? — perguntou Eddie. — O que tem Mike?

 

— Eu também senti — disse Ben. — É... Bill, ele morreu?

 

— Não — disse Bill. Seus olhos estavam enevoados e distantes, sem emoção. Todo o alarme estava no tom e na postura defensiva do corpo dele. — Ele... E-E-Ele... — Ele engoliu em seco. Houve um clique em sua garganta. Seus olhos se arregalaram. — Ah. Ah, não...!

 

— Bill? — gritou Beverly, alarmada. — Bill, o que foi? O que...?

 

— S-S-Segurem minhas m-m-mãos! — gritou Bill. — R-R-Rápido!

 

Richie largou o fósforo e segurou uma das mãos de Bill. Beverly segurou a outra. Ela tateou com a mão livre, e Eddie segurou fracamente com a mão na ponta do braço quebrado. Ben segurou a outra mão dele e completou o círculo segurando a de Richie.

 

— Mande nosso poder pra ele! — gritou Bill com aquela mesma voz estranha e grave. — Mande nosso poder para ele, seja lá o que Você for, mande pra ele nosso poder! Agora! Agora! Agora!

 

Beverly sentiu uma coisa sair deles na direção de Mike. A cabeça dela rolou nos ombros em uma espécie de êxtase, e o assobio forte da respiração de Eddie se mesclou com o trovão da água nos canos.

 

— Agora — disse Mark Lamonica com voz baixa. Ele suspirou, o suspiro de um homem que sente um orgasmo se aproximando.

 

Mike apertou a campainha que tinha nas mãos uma vez atrás da outra. Ele conseguia ouvi-la tocando na central das enfermeiras no corredor, mas ninguém veio. Com uma espécie de segunda visão do inferno, ele entendeu que as enfermeiras estavam sentadas lá lendo o jornal da manhã, bebendo café e ouvindo a campainha, mas não ouvindo, ouvindo, mas não atendendo. Elas só atenderiam mais tarde, quando tudo estivesse acabado, porque era assim que as coisas funcionavam em Derry. Em Derry, era melhor não se ver nem ouvir algumas coisas... até terem acabado.

 

Mike deixou a campainha cair das mãos.

 

Mark se inclinou na direção dele com a ponta da seringa cintilando. A medalha de São Cristóvão se balançava de forma hipnótica enquanto ele puxava o lençol.

 

— Bem aqui — sussurrou ele. — No esterno. — E suspirou de novo.

 

Mike de repente sentiu um poder invadi-lo, um poder primitivo que inflou seu corpo como eletricidade. Ele se enrijeceu, abrindo os dedos como se em convulsão. Seus olhos se arregalaram. Ele emitiu um grunhido, e aquela sensação de paralisia horrenda foi arrancada dele como se por um tapa de braço inteiro.

 

Sua mão direita voou para a mesa de cabeceira. Havia uma jarra de plástico lá e um copo pesado de vidro ao lado. Sua mão se fechou ao redor do vidro. Lamonica pressentiu a mudança; aquela luz sonhadora e satisfeita sumiu dos olhos dele e foi substituída por confusão cautelosa. Ele recuou um pouco, e Mike bateu com o copo na cara dele.

 

Lamonica gritou e cambaleou para trás, largando a seringa. Ele levou as mãos até o rosto úmido; sangue jorrou pelos pulsos e caiu no jaleco branco.

 

O poder sumiu tão repentinamente quanto chegou. Mike olhou estupidamente para os cacos de vidro quebrado na cama e na camisola de hospital e para a mão sangrando. Ele ouviu o som rápido e leve de sapatos de sola de borracha no corredor, se aproximando.

 

Agora elas vêm, pensou ele. Ah, sim, agora. E depois que forem embora, quem vai aparecer? Quem vai aparecer depois?

 

Quando elas entraram no quarto, as enfermeiras que ficaram sentadas calmamente na central enquanto a campainha dele tocava freneticamente, Mike fechou os olhos e rezou para que acabasse. Ele rezou para que os amigos estivessem em alguma parte debaixo da cidade, rezou para todos estarem bem, rezou para que tudo fosse terminar.

 

Ele não sabia exatamente para Quem estava rezando... mas rezou mesmo assim.

 

Debaixo da cidade — 6h54

 

— Ele está b-b-bem — disse Bill.

 

Ben não sabia por quanto tempo eles ficaram de mãos dadas na escuridão. Parecia que ele tinha sentido alguma coisa, alguma coisa deles, do círculo deles, sair e voltar. Mas ele não sabia para onde essa coisa, se é que ela existia, tinha ido, e nem o que tinha feito.

 

— Tem certeza, Big Bill? — perguntou Richie.

 

— T-T-Tenho. — Bill soltou a mão de Richie e de Beverly. — Mas t-temos que acabar com isso o mais r-r-rápido p-possível. V-V-Vamos.

 

Eles seguiram em frente, com Richie ou Bill acendendo fósforos periodicamente. Não temos nem um estilingue de brinquedo, pensou Ben. Mas isso também é parte da história, não é? Chüd. O que isso significa? O que era a Coisa exatamente? Qual era o rosto final dela? E mesmo não matando a Coisa, nós conseguimos machucar ela. Como fizemos isso?

 

A câmara pela qual eles andaram (não podia mais ser chamado de túnel) ficou cada vez maior. Os passos deles ecoaram. Ben se lembrou do cheiro denso de zoológico. Ele percebeu que os fósforos não eram mais necessários. Havia luz agora, uma espécie de luz: uma cintilação pálida que ficava cada vez mais forte. Naquela luz pantanosa, seus amigos pareciam cadáveres ambulantes.

 

— Parede lá na frente, Bill — disse Eddie.

 

— Eu s-s-sei.

 

Ben sentiu o coração começar a acelerar. Havia um gosto amargo em sua boca, e a cabeça tinha começado a doer. Ele sentiu-se lento e assustado. Sentiu-se gordo.

 

— A porta — sussurrou Beverly.

 

Sim, aqui estava ela. Uma vez, 27 anos antes, eles conseguiram passar por aquela porta só abaixando a cabeça. Agora, eles teriam que se agachar para passar, ou engatinhar. Eles tinham crescido; esta era a prova final, se é que uma prova final era necessária.

 

Os pontos de pulsação no pescoço e nos pulsos de Ben estavam quentes e cheios de sangue; seu coração tinha incorporado um tremor leve e rápido que era quase uma arritmia. Pulsação de pombo, pensou ele aleatoriamente, e lambeu os lábios.

 

Uma luz intensa amarelo-esverdeada saía pela porta; espalhava-se pela fechadura decorada em um raio torto que parecia quase grosso o bastante para cortar.

 

A marca estava na porta, e mais uma vez cada um viu uma coisa diferente naquele desenho estranho. Beverly viu o rosto de Tom. Bill viu a cabeça cortada de Audra com olhos vazios que o encaravam com acusação terrível. Eddie viu um crânio sorridente sobre dois ossos cruzados, o símbolo de veneno. Richie viu o rosto barbado de um Paul Bunyan depravado, com olhos apertados como os de um assassino. E Ben viu Henry Bowers.

 

— Bill, somos fortes o bastante? — perguntou ele. — Somos capazes de fazer isso?

 

— N-Não s-s-sei — disse Bill.

 

— E se estiver trancada? — perguntou Beverly com voz baixa. O rosto de Tom debochava dela.

 

— Não e-está — disse Bill. — Luga-ares assim n-nunca ficam t-trancados. — Ele colocou os dedos abertos da mão direita na porta (precisou se abaixar para fazer isso) e empurrou. Ela se abriu com um jorro de luz amarelo-esverdeada doentia. Aquele cheiro de zoológico foi até eles, o cheiro do passado que virou presente, horrivelmente vivo, obscenamente vital.

 

Gire, roda, pensou Bill aleatoriamente, e olhou ao redor. Em seguida, ficou de quatro. Beverly foi atrás, depois Richie e Eddie. Ben foi por último, com a pele arrepiada pela sensação da sujeira antiga no chão. Ele passou pelo portal e, quando se empertigou no brilho estranho do fogo rastejando pelas paredes úmidas como cobras de luz, a última lembrança voltou com a força de um aríete paranormal.

 

Ele gritou, cambaleou, colocou uma das mãos na cabeça, e seu primeiro pensamento incoerente foi Não é surpresa Stan ter cometido suicídio! Ah, Deus, eu queria ter feito igual! Ele viu as mesmas expressões de horror perplexo e percepção crescente nos rostos dos outros quando a última chave girou na última fechadura.

 

De repente, Beverly estava gritando, agarrada a Bill, enquanto a Coisa corria pela cortina diáfana que era sua teia, uma Aranha de pesadelo de além do tempo e espaço, uma Aranha vinda de além das imaginações febris de qualquer condenado que viva nas maiores profundezas do inferno.

 

Não, pensou Bill friamente, também não é uma Aranha, não de verdade, mas essa forma a Coisa não tirou de nossas mentes; é só o mais próximo que nossas mentes conseguem chegar

 

(dos postigos)

 

do que ela realmente é.

 

Ela tinha uns 4,5 metros de altura e era negra como uma noite sem lua. Cada uma das pernas era grossa como a coxa de um halterofilista. Os olhos eram rubis brilhosos e malevolentes, saltados em órbitas cheias de algum fluido da cor de cromo e que escorria. As mandíbulas denteadas se abriam e fechavam, se abriam e fechavam, pingando espuma. Paralisado em um êxtase de horror, oscilando à beira da loucura, Ben observou com uma calma de olho da tempestade que essa espuma estava viva; ela batia no piso de pedra fedorento e começava a se contorcer para as rachaduras como um protozoário.

 

Mas é outra coisa, tem uma forma final, uma que quase consigo ver da forma como se pode ver a forma de um homem se movendo por trás de uma tela de cinema enquanto o filme está sendo exibido, uma outra forma, mas não quero vê-la, por favor, Deus, não permita que eu veja a Coisa...

 

E não importava, não é? Eles estavam vendo o que estavam vendo, e Ben entendia que, de alguma forma, a Coisa estava aprisionada nessa forma final, a forma de uma Aranha, pela visão involuntária e órfã de todos ao mesmo tempo. Era contra essa Coisa que eles teriam que viver ou morrer.

 

A criatura estava dando gritinhos e choramingando, e Ben teve certeza de que estava ouvindo os sons que a Coisa emitia duas vezes: na mente e, uma fração de segundo depois, nos ouvidos. Telepatia, pensou ele, estou lendo a mente da Coisa. A sombra dela era um ovo que corria pela parede antiga desse refúgio que era seu lar. O corpo era coberto de pelos grossos, e Ben viu que ela tinha um ferrão longo o bastante para empalar um homem. Um fluido transparente pingava da ponta, e Ben viu que esse também estava vivo; como a saliva, o veneno se contorcia para as rachaduras no chão. O ferrão, sim... mas abaixo dele, a barriga da Coisa estava grotescamente inchada, quase se arrastando no chão enquanto ela se deslocava, agora mudando de leve de direção, seguindo sem dúvida alguma na direção do líder deles, na direção de Big Bill.

 

É a ooteca dela, pensou Ben, e sua mente pareceu berrar com a compreensão. Seja lá o que ela for além do que nós vemos, essa representação é ao menos simbolicamente correta: ela é fêmea e está grávida... Estava grávida na outra vez, mas nenhum de nós sabia, exceto Stan, ah, Jesus Cristo, SIM, foi Stan, Stan, não Mike, Stan que compreendeu, Stan que nos contou... Foi por isso que tivemos que voltar a qualquer custo, porque ela é fêmea, está grávida de filhotes inimagináveis... e a hora está chegando.

 

Incrivelmente, Bill Denbrough estava caminhando para ir de encontro à Coisa.

 

— Bill, não! — gritou Beverly.

 

— F-F-Fiquem pra t-t-trás! — gritou Bill sem olhar. E então, Richie estava correndo na direção dele, gritando o nome dele, e Ben viu suas próprias pernas entrarem em movimento. Ele pareceu sentir uma barriga fantasma se balançando à frente do corpo e apreciou a sensação. Tenho que virar criança de novo, pensou ele de forma incoerente. É a única forma de impedir que a Coisa me deixe louco. Preciso virar criança de novo... preciso aceitar. De alguma forma.

 

Correndo. Gritando o nome de Bill. Vagamente ciente de que Eddie estava correndo ao seu lado, com o braço quebrado balançando, o cinto do roupão que Bill amarrou ali agora arrastando no chão. Eddie estava com a bombinha na mão. Ele parecia um pistoleiro enlouquecido e subnutrido com uma pistola esquisita.

 

Ben ouviu Bill gritar:

 

— Você m-m-matou meu irmão, sua F-F-FILHA DA PUTA!

 

De repente, a Coisa estava em cima de Bill, enterrando Bill em sua sombra, com as pernas balançando no ar. Ben ouviu o choramingo ansioso dela, olhou nos olhos vermelhos atemporais e malignos dela... e por um instante viu a forma atrás da forma: viu luzes, viu uma coisa infinita, rastejante e peluda feita de luz e mais nada, luz laranja, luz morta que debochava da vida.

 

O ritual começou pela segunda vez.

 

O ritual de Chüd

No lar da Coisa — 1958

 

Foi Bill quem os manteve juntos enquanto aquela Aranha preta enorme corria pela teia, criando uma brisa tóxica que fez os cabelos deles voarem. Stan berrou como um bebê, com os olhos castanhos saltados nas órbitas, os dedos arranhando as bochechas. Ben recuou lentamente até a enorme bunda bater na parede à esquerda da porta. Ele sentiu um fogo frio queimar através da calça e se afastou de novo, mas de forma sonhadora. É claro que nada daquilo podia estar acontecendo; era apenas o pior pesadelo do mundo. Ele viu que não conseguia levantar as mãos. Elas pareciam estar com pesos enormes presos nelas.

 

Richie sentiu os olhos atraídos pela teia. Pendurados aqui e ali, parcialmente envoltos em tiras sedosas que pareciam se mover como se vivas, havia vários corpos podres meio comidos. Ele pensou reconhecer Eddie Corcoran perto do teto, embora as duas pernas e um dos braços dele tivessem sumido.

 

Beverly e Mike se agarraram um ao outro como João e Maria no bosque, observando paralisados a Aranha chegar ao chão e se arrastar na direção deles, com a sombra distorcida correndo ao lado na parede.

 

Bill olhou para eles, um garoto alto e magro de camiseta suja de lama e esgoto que já tinha sido branca, calça jeans com a bainha dobrada e tênis Keds sujos de lama. O cabelo estava caindo na testa e os olhos estavam queimando. Ele os observou, pareceu deixá-los de lado e se virou para a Aranha. E, incrivelmente, começou a atravessar o local na direção dela, não correndo, mas andando rápido, com os cotovelos dobrados, os antebraços contraídos e as mãos fechadas.

 

— V-V-Você m-m-matou meu i-irmão!

 

— Não, Bill! — gritou Beverly, soltando-se do abraço de Mike e correndo na direção de Bill, com o cabelo ruivo voando atrás. — Deixa ele em paz! — gritou ela para a Aranha. — Não toca nele!

 

Merda! Beverly!, pensou Ben, e logo estava correndo também, com a barriga balançando à frente do corpo, as pernas fazendo força. Ele estava vagamente ciente de que Eddie Kaspbrak estava correndo à esquerda, segurando a bombinha na mão boa como uma pistola.

 

E então, a Aranha estava se elevando acima de Bill, que estava desarmado; a Coisa enterrou Bill em sua sombra, com as patas balançando no ar. Ben segurou o ombro de Beverly. A mão bateu nele, mas escorregou. Ela se virou para ele, com olhos enlouquecidos e lábios repuxados sobre os dentes.

 

— Ajuda ele! — gritou ela.

 

— Como? — gritou Ben em resposta. Ele correu na direção da Aranha, ouviu o choramingo ansioso e viu alguma coisa atrás da forma; alguma coisa bem pior do que uma aranha. Uma coisa que era pura luz insana. Sua coragem falhou... mas foi Bev quem pediu. Bev, e ele a amava.

 

— Maldito, deixa Bill em paz! — gritou ele.

 

Um momento depois, uma mão bateu com tanta força nas costas dele que ele quase caiu. Era Richie, e apesar de haver lágrimas escorrendo pelo rosto dele, Richie estava sorrindo loucamente. Os cantos de sua boca pareciam chegar quase nos lóbulos das orelhas. Cuspe escorria por entre os dentes.

 

— Vamos pegar ela, Monte de Feno! — gritou Richie. — Chüd! Chüd!

 

Ela?, pensou Ben estupidamente. Ele disse ela?

 

Em voz alta:

 

— Tudo bem, mas o que é isso? O que é Chüd?

 

— Não faço a menor ideia! — gritou Richie, e correu na direção de Bill e para a sombra da Coisa.

 

De alguma forma, ela tinha se agachado nas pernas traseiras. As pernas da frente se balançaram no ar logo acima da cabeça de Bill. E Stan Uris, forçado a se aproximar, compelido a se aproximar apesar de todos os instintos em sua mente e seu corpo, viu que Bill estava olhando para a Coisa, com os olhos azuis fixos nos olhos inumanos e laranja da Coisa, olhos dos quais aquela luz horrível de cadáver era emitida. Stan parou e entendeu que o Ritual de Chüd, fosse lá o que fosse, tinha começado.

 

Bill no vácuo — antes

 

— quem é você e por que veio até Mim?

 

Sou Bill Denbrough. Você sabe quem eu sou e por que estou aqui. Você matou meu irmão, e eu vim matar Você. Você escolheu o garoto errado, sua puta.

 

— eu sou eterna. Sou a Comedora dos Mundos.

 

É? É mesmo? Bem, você fez sua última refeição, irmã.

 

— você não tem poder; aqui está o poder; sinta o poder, moleque, depois volte a falar que veio matar a Eterna. Você pensa que Me vê? Você vê só o que sua mente permite. Você quer Me ver? Então venha! Venha, moleque! Venha!

 

Jogado...

 

(ele)

 

Não, não jogado, disparado, disparado como uma bala viva, como o Canhão Humano no Circo Shrine que ia para Derry todo mês de maio. Ele foi levantado e lançado pela câmara da Aranha. É só na minha mente!, gritou ele para si mesmo. Meu corpo ainda está de pé bem aqui, cara a cara com a Coisa, seja corajoso, é só um truque mental, seja corajoso, seja verdadeiro, aguente, aguente...

 

(soca)

 

Rugindo em frente, batendo em um túnel preto e molhado repleto de azulejos estragados e velhos com 50 anos de idade, cem, mil, um milhão de bilhões, quem sabia, correndo em silêncio mortal por cruzamentos, alguns iluminados por aquele fogo distorcido verde-amarelado, alguns por balões reluzentes cheios de uma luz branca medonha, outros pretos como breu; ele foi jogado em uma velocidade de mil quilômetros por hora por cima de pilhas de ossos, alguns humanos, outros não, em disparada como um dardo com motor de foguete em um túnel de vento, agora virando para cima, mas não na direção da luz, mas na direção da escuridão, de uma escuridão titânica

 

(postes)

 

e explodindo para fora na total escuridão, a escuridão era tudo, a escuridão era o cosmos e o universo, e o piso da escuridão era duro, duro, era como ebonite polida e ele estava deslizando sobre o peito e barriga e coxas como um peso em uma superfície lisa. Ele estava na pista de dança da eternidade, e a eternidade era preta.

 

(de montão)

 

— pare com isso por que você diz isso? não vai ajudar você, garoto burro

 

(e insiste que vê assombração!)

 

— pare!

 

ele soca postes de montão e insiste que vê assombração!

 

— pare! pare! estou mandando, estou ordenando que você pare com isso!

 

Você não gosta disso, né?

 

E pensando: se eu ao menos conseguisse dizer em voz alta, dizer sem gaguejar, eu poderia destruir essa ilusão...

 

— isso não é ilusão, seu garotinho tolo. isso é a eternidade, a Minha eternidade, e você está perdido nela, perdido para sempre, e nunca vai encontrar o caminho de volta; você é eterno agora e está condenado a vagar pela escuridão... depois que Me encontrar cara a cara, claro.

 

Mas havia mais alguma coisa aqui. Bill pressentia, sentia de uma forma louca, sentia o cheiro: uma presença enorme à frente, no escuro. Uma Forma. Ele não sentiu medo, mas uma sensação de assombro poderoso; aqui havia um poder que fazia o da Coisa parecer pequeno, e Bill só teve tempo de pensar com incoerência: Por favor, por favor, seja lá o que Você for, lembre que sou muito pequeno...

 

Ele correu na direção da forma e viu que era uma enorme Tartaruga, com o casco coberto de muitas cores intensas. A cabeça reptiliana velha saiu lentamente de dentro do casco, e Bill pensou sentir uma leve surpresa insolente vinda da coisa que o lançou ali. Os olhos da Tartaruga eram gentis. Bill pensou que devia ser a coisa mais antiga que qualquer pessoa pudesse imaginar, bem mais velha do que a Coisa, que tinha alegado ser eterna.

 

O que é você?

 

— sou a Tartaruga, filho. eu fiz o universo, mas não me culpe por ele; eu estava com dor de barriga.

 

Me ajude! Por favor, me ajude!

 

— eu não me meto nessas coisas.

 

Meu irmão...

 

— tem seu próprio lugar no macroverso; a energia é eterna, como até uma criança como você deveria entender

 

Ele estava voando pela Tartaruga agora, e mesmo nessa tremenda velocidade, a lateral da Tartaruga parecia seguir eternamente à sua direita. Ele pensou levemente em andar de trem e passar por um seguindo na direção oposta, um trem que era longo o bastante para parecer de repente estar parado ou até andar para trás. Ele ainda conseguia ouvir a Coisa, reclamando e resmungando, com voz aguda e zangada, nada humana, cheia de ódio louco. Mas quando a Tartaruga falou, a voz da Coisa foi completamente obliterada. A Tartaruga falou na cabeça de Bill, e Bill entendeu que havia Outro, e aquele Outro Final ficava em um vácuo após este. O Outro Final era, talvez, o criador da Tartaruga, que só observava, e da Coisa, que só comia. Esse Outro era uma força maior do que o universo, um poder maior do que todos os outros poderes, o autor de tudo que existia.

 

De repente, ele pensou ter entendido: a Coisa pretendia jogá-lo por algum muro no final do universo para um outro lugar

 

(o que aquela velha Tartaruga chamava de macroverso)

 

onde a Coisa realmente vivia; onde a Coisa existia como uma essência titânica e vibrante que podia não passar de um cisco na mente do Outro; ele veria a Coisa nua, uma coisa de luz destruidora sem forma, e lá ele seria misericordiosamente aniquilado ou viveria para sempre, insano, mas consciente dentro desse ser homicida, infinito, faminto e sem forma.

 

Por favor, me ajude! Pelos outros...

 

— você precisa se ajudar, filho

 

Mas como? Por favor, me diga! Como? Como? COMO?

 

Ele tinha chegado às pernas de trás da Tartaruga, cobertas de escamas pesadas; houve tempo o suficiente para ele observar a pele antiga e gigantesca, tempo para ser tomado de espanto pelas pesadas unhas, de uma cor azul-amarelada estranha, e ele conseguia ver galáxias nadando em cada uma.

 

Por favor, você é bom, eu sinto e acredito que você é bom, e estou implorando... você não vai me ajudar, por favor?

 

— você já sabe. só tem Chüd. e seus amigos.

 

Por favor, ah, por favor.

 

— filho, você precisa socar postes de montão e insistir que vê assombração... é tudo que posso dizer pra você. quando você entra em merda cosmológica como essa, precisa jogar o manual de instruções no lixo

 

Ele percebeu que a voz da Tartaruga estava sumindo. Ele estava atrás dela agora, disparado para uma escuridão mais profunda do que a mais profunda. A voz da Tartaruga estava sendo superada, dominada, pela voz alegre e tagarela da Coisa que o jogou para fora, nesse vácuo negro... a voz da Aranha, da Coisa.

 

— que tal aqui fora, Amiguinho? está gostando? está amando? você dá nota 98 porque tem uma boa batida que dá para dançar? consegue segurar nas amídalas e jogar para a direita e para a esquerda? gostou de conhecer minha amiga Tartaruga? pensei que aquela puta idiota tinha morrido anos atrás, e com tanta incompetência, podia mesmo ter morrido, você achou que ela podia ajudar você?

 

Não não não não ele soca não ele s-s-s-so-ooca não

 

— para de tagarelar! o tempo é curto; vamos conversar enquanto ainda podemos. me conte sobre você, Amiguinho... me conte, você ama a escuridão fria daqui? está apreciando o passeio pelo nada que existe Lá Fora? espere até passar, Amiguinho! espere até passar para onde eu estou! espere isso! espere os postigos! Você vai olhar e enlouquecer... mas vai sobreviver... e viver... e viver... dentro deles... dentro de Mim...

 

A Coisa deu uma gargalhada tóxica, e Bill percebeu que a voz dela estava ao mesmo tempo começando a sumir e a inchar, como se ele estivesse simultaneamente saindo de perto do alcance dela... e indo na direção dela. E não era isso o que estava acontecendo? Era. Ele achava que sim. Porque enquanto as vozes se encontravam em perfeita sincronia, a voz que estava na direção para a qual ele ia era totalmente alienígena, falando sílabas que nenhuma língua ou garganta humana eram capazes de reproduzir. É a voz dos postigos, pensou ele.

 

— o tempo é curto; vamos conversar enquanto ainda podemos

 

A voz humana da Coisa foi sumindo da forma que as estações de rádio de Bangor sumiam quando você estava viajando para o sul de carro. Um terror intenso e ardente tomou conta dele. Ele logo estaria além de qualquer comunicação sã com a Coisa... e uma parte dele entendia que, com toda a gargalhada da Coisa, com toda a alegria alienígena dela, era isso que ela queria. Não só mandá-lo para onde ela estava, mas romper a comunicação mental entre eles. Se isso acabasse, ele estaria completamente destruído. Passar para um ponto sem comunicação era passar para um ponto fora do alcance da salvação; ele entendia isso pela forma como seus pais se comportaram com ele depois que George morreu. Foi a única lição que a frieza de geladeira teve para ensinar para ele.

 

Abandonando a Coisa... e se aproximando da Coisa. Mas o abandono era mais importante. Se a Coisa queria comer criancinhas aqui, ou sugá-las, ou o quer que ela fizesse, por que não mandou todas para cá? Por que só ele?

 

Porque a Coisa tinha que livrar seu eu Aranha dele, era por isso. De alguma forma, a Coisa-Aranha e a Coisa que a Coisa chamava de postigos estavam ligadas. O que vivia aqui na escuridão podia ser invulnerável quando estava aqui e em nenhum outro lugar

 

... mas ela também estava na terra, debaixo de Derry, em uma forma que era física. Por mais repulsiva que a Coisa fosse, em Derry ela era física... e o que era físico podia ser morto.

 

Bill deslizou pela escuridão, com a velocidade ainda aumentando. Por que sinto que tanto da conversa da Coisa é blefe, uma grande enrolação? Por que é assim? Como pode ser?

 

Ele entendia como, talvez... apenas talvez.

 

Só tem Chüd, disse a Tartaruga. E se fosse isso? E se eles tivessem mordido fundo a língua um do outro, não fisicamente, mas mentalmente, espiritualmente? E se a Coisa conseguisse jogar Bill bem longe no vácuo, longe o bastante para ver o eu eterno e sem corpo da Coisa, o ritual acabaria? A Coisa o teria arrancado, matado e ganhado tudo ao mesmo tempo.

 

— você está indo bem, filho, mas em pouco tempo vai ser tarde demais

 

A Coisa está com medo! Com medo de mim! Com medo de todos nós!

 

... deslizando, ele estava deslizando, e havia um muro à frente, ele sentia, sentia na escuridão, o muro no fim do espectro, e atrás dele a outra forma, os postigos...

 

— não fale comigo, filho, e não fale com você mesmo, isso está soltando você. morda se quiser, se ousar, se conseguir ser corajoso, se conseguir suportar... morda, filho!

 

Bill mordeu. Não com os dentes, mas com dentes na mente.

 

Deixando a voz mais grave, em um registro profundo, tornando-a não sua própria (tornando-a, na verdade, a voz do pai, embora Bill fosse para o túmulo sem saber disso; alguns segredos nunca são descobertos, e provavelmente é melhor assim), inspirando fundo, ele gritou:

 

ELE SOCA POSTES DE MONTÃO E INSISTE QUE VÊ ASSOMBRAÇÃO AGORA ME SOLTA!

 

Ele sentiu a Coisa gritar em sua mente, um grito de fúria frustrada e petulante... mas também era um grito de medo e dor. Ela não estava acostumada a não ter as coisas do jeito que queria; uma coisa assim nunca tinha acontecido com ela, e até os momentos mais recentes de sua existência, a Coisa não desconfiou que era possível.

 

Bill sentiu a Coisa serpenteando para ele, sem puxar, só empurrando, tentando afastá-lo.

 

SOCA POSTES DE MONTÃO, EU DISSE!

 

— PARE!

 

ME TRAZ DE VOLTA! VOCÊ TEM QUE ME TRAZER DE VOLTA! ESTOU MANDANDO! ESTOU EXIGINDO!

 

A Coisa gritou de novo, com dor mais intensa agora, talvez em parte porque, apesar de ela ter passado sua longa, longa existência provocando dor, se alimentando dela, ela nunca a tinha experimentado como parte de si.

 

Ainda assim, ela tentou empurrá-lo, se livrar dele, cega e teimosamente insistindo em vencer, como sempre venceu antes. Ela empurrou... mas Bill sentiu que sua velocidade diminuiu, e uma imagem grotesca surgiu em sua mente: a língua da Coisa, coberta daquele cuspe vivo, esticada como um elástico grosso, estalando, sangrando. Ele se viu agarrado na ponta daquela língua pelos dentes, perfurando-a um pouco de cada vez, com o rosto banhado no icor convulsivo que era o sangue dela, afogando-se em seu fedor morto, mas se segurando, se segurando de alguma forma, enquanto ela lutava em sua dor cega e fúria crescente para não deixar a língua voltar...

 

(Chüd, este Chüd, mantenha-se firme, seja corajoso, seja verdadeiro, suporte por seu irmão, por seus amigos; acredite, acredite em todas as coisas que você sempre acreditou, acredite que se você disser a um policial que você está perdido, ele vai cuidar para que você chegue em casa em segurança, que existe uma Fada do Dente que mora em um enorme castelo esmaltado e um Papai Noel no Polo Norte, fazendo brinquedos com seu grupo de elfos, e que o Captain Midnight poderia ser real, sim, ele poderia ser, apesar de Carlton, o irmão mais velho de Calvin e Cissy Clark, dizer que era um monte de baboseira de bebê, acredite que sua mãe e seu pai vão amar você de novo, que a coragem é possível e as palavras virão tranquilamente todas as vezes; chega de Otários, chega de se esconder em um buraco no chão e chamar de clube, chega de chorar no quarto de Georgie porque você não pôde salvá-lo e não sabia, acredite em você mesmo, acredite no calor daquele desejo)

 

Ele de repente começou a gargalhar na escuridão, não de histeria, mas com espanto puro e alegre.

 

— AH MERDA, EU ACREDITO EM TODAS ESSAS COISAS! — gritou ele, e era verdade; mesmo aos 11 anos, ele tinha observado que as coisas davam certo em uma quantidade absurda de vezes. A luz se acendeu ao redor dele. Ele ergueu os braços acima da cabeça. Virou o rosto para cima e sentiu subitamente o poder entrar nele todo.

 

Ele ouviu a Coisa gritar de novo... e de repente estava sendo puxado de volta pelo caminho que tinha percorrido, ainda sustentando aquela imagem dos dentes enfiados na carne estranha da língua da Coisa, dos dentes trancados como a morte. Ele voou pela escuridão, com as pernas atrás do corpo, as pontas dos cadarços sujos de lama voando como bandeiras, o vento do local vazio soprando em seus ouvidos.

 

Ele foi puxado ao lado da Tartaruga e viu que a cabeça dela tinha voltado para dentro do casco; a voz emergiu vazia e distorcida, como se mesmo o casco no qual ela morava fosse um poço profundo de eternidades:

 

— nada mau, filho, mas eu terminaria com tudo agora; não deixe que a Coisa fuja. a energia tem uma forma de se dissipar, você sabe; o que pode ser feito quando você tem 11 anos nem sempre pode ser feito de novo.

 

A voz da Tartaruga diminuiu, diminuiu, diminuiu. Só havia a escuridão a toda velocidade... e a boca de um túnel ciclope... cheiros de idade e podridão... teias roçando em seu rosto como novelos podres de seda em uma casa mal-assombrada... azulejos mofados passando... interseções, todas escuras agora, sem os balões-lua, e a Coisa estava gritando, gritando:

 

— me solta me solta vou embora nunca vou voltar me SOLTA DÓI DÓI DÓÓÓÓÓÓÓI

 

— Soca postes! — gritou Bill, quase delirante agora. Ele conseguia ver a luz à frente, mas ela estava sumindo, derretendo como velas enormes já no final... e por um momento ele se viu e aos outros de mãos dadas em fila, Eddie de um lado dele e Richie do outro. Ele viu seu próprio corpo balançando, com a cabeça para trás, olhando para a Aranha, que se contorcia e girava como um dervixe, com veneno pingando do ferrão.

 

Ela estava gritando em sua agonia de morte.

 

Foi o que Bill achou, sinceramente.

 

De repente, ele voltou para dentro do corpo com todo o impacto de uma bola batendo na luva de beisebol, e a força fez suas mãos se soltarem das de Richie e Eddie, fazendo-o ficar de joelhos e deslizar pelo piso até a beirada da teia. Ele esticou para pegar um dos fios sem pensar, e sua mão imediatamente ficou dormente, como se tivesse sido injetada com uma seringa cheia de xilocaína. O fio era grosso como um fio de poste telefônico.

 

— Não toca nisso, Bill! — gritou Ben, e Bill puxou a mão em um movimento rápido, deixando uma marca em carne-viva na palma logo abaixo dos dedos. Ela se encheu de sangue; ele cambaleou e ficou de pé, com os olhos na Aranha.

 

Ela estava se afastando dele, seguindo para a escuridão crescente no fundo da câmara enquanto a luz falhava. Ela deixou poças e manchas de sangue preto ao passar; de alguma forma, o confronto deles estourou as entranhas dela em uma dezena, talvez uma centena de lugares.

 

— Bill, a teia! — gritou Mike. — Cuidado!

 

Ele deu um passo para trás e inclinou o pescoço quando tiras da teia caíram e acertaram o chão de pedra dos dois lados dele como corpos de cobras brancas. Elas imediatamente começaram a perder a forma, a escorrer para as rachaduras entre as pedras. A teia estava desmoronando, se soltando dos muitos apoios. Um dos corpos, enrolados como uma mosca, caiu e bateu no chão com um ruído podre repugnante.

 

— A Aranha! — gritou Bill. — Onde ela está?

 

Ele ainda conseguia ouvir a Coisa em sua cabeça, choramingando e gritando de dor, e entendeu levemente que ela tinha ido pelo mesmo túnel em que tinha jogado Bill... mas foi para lá a fim de fugir de volta para o lugar em que pretendia jogar Bill... ou se esconder até eles terem ido embora? Para morrer? Ou fugir?

 

— Cristo, as luzes! — gritou Richie. — As luzes estão se apagando! O que aconteceu, Bill? Pra onde você foi? Pensamos que você estava morto!

 

Em alguma parte confusa da mente, Bill sabia que isso não era verdade; se eles realmente tivessem achado que ele estava morto, teriam saído correndo um para cada lado, e a Coisa os teria pegado facilmente, um a um. Ou talvez seria mais verdadeiro dizer que eles acharam que ele estava morto, mas acreditaram que estava vivo.

 

Temos que ter certeza! Se ela estiver morrendo ou se tiver voltado para o lugar de onde veio, onde o resto dela está, tudo bem. Mas e se ela só estiver ferida? E se puder melhorar? E se...?

 

O grito de Stan cortou seus pensamentos como um caco de vidro. Na luz morrente, Bill viu que um dos fios de teia tinha caído no ombro de Stan. Antes que Bill pudesse chegar nele, Mike se jogou no garoto menor para derrubá-lo. Ele afastou Stan e o fio de teia soltou-o, levando um pedaço da camisa polo de Stan junto.

 

— Voltem! — gritou Ben para eles. — Se afastem de tudo, está despencando! — Ele segurou a mão de Beverly e puxou-a para a porta de tamanho infantil enquanto Stan ficava de pé, olhava ao redor com expressão atordoada e segurava Eddie. Os dois correram na direção de Ben e Beverly, ajudando um ao outro, parecendo fantasmas na luz cada vez mais suave.

 

Acima, a teia de aranha estava caindo, desmoronando sobre si mesma, perdendo a terrível simetria. Corpos se contorciam preguiçosamente no ar como prumos de pesadelo. Pedaços horizontais de teia caíram como degraus podres de escadas complexas e estranhas. Pedaços cortados batiam no piso de pedra, chiavam como gatos, perdiam a forma e começavam a correr.

 

Mike Hanlon desviou dos fios, assim como mais tarde desviaria dos jogadores de quase dez times de futebol americano no ensino médio, de cabeça baixa, inclinado e passando de raspão. Richie se juntou a ele. Incrivelmente, Richie estava gargalhando, embora o cabelo estivesse de pé na cabeça como os espinhos de um porco-espinho. A luz ficou mais fraca e a fosforescência que cobria as paredes estava sumindo.

 

— Bill! — gritou Mike. — Vem! Sai daí logo!

 

— E se a Coisa não estiver morta? — gritou Bill. — A gente tem que ir atrás dela, Mike! A gente tem que ter certeza!

 

Um pedaço de teia se balançou como um paraquedas e caiu com um som horrível de rasgo que parecia pele sendo arrancada. Mike segurou o braço de Bill e puxou-o para longe.

 

— Está morta! — gritou Eddie, juntando-se a ele. Seus olhos eram lâmpadas febris, a respiração um apito de inverno gelado na garganta. Pedaços caídos de teia fizeram marcas complexas no gesso. — Eu escutei a Coisa, ela estava morrendo, nada faz um som daqueles se não estiver batendo as botas, ela estava morrendo, eu tenho certeza!

 

As mãos de Richie tatearam na escuridão, agarraram Bill e o puxaram em um abraço rude. Ele começou a bater nas costas de Bill com entusiasmo.

 

— Eu também ouvi, ela estava morrendo, Big Bill! Ela estava morrendo... e você não está gaguejando! Nem um pouco! Como conseguiu? Como diabos...?

 

O cérebro de Bill estava girando. A exaustão o puxava com mãos grossas e desajeitadas. Ele não conseguia se lembrar de outra ocasião em que tivesse se sentido tão cansado... mas em pensamento ele ouviu a voz lenta e quase cansada da Tartaruga: eu terminaria com tudo agora; não deixe que a Coisa fuja... o que pode ser feito quando você tem 11 anos nem sempre pode ser feito de novo.

 

— Mas temos que ter certeza...

 

As sombras estavam dando as mãos, e agora a escuridão era quase completa. Mas antes de a luz sumir totalmente, ele pensou ter visto a mesma dúvida infernal no rosto de Beverly... e nos olhos de Stan. Ainda assim, quando a última luz sumiu, eles conseguiram ouvir os sussurros e baques do resto da teia indescritível caindo aos pedaços.

 

Bill no vácuo — depois

 

— aqui está você de novo, Amiguinho! mas o que aconteceu com seu cabelo? você está careca como uma bola de bilhar! triste! que vidas tristes e curtas os humanos vivem! cada vida é um panfleto curto escrito por um idiota! ah, não, essas coisas

 

Ainda sou Bill Denbrough. Você matou meu irmão e matou Stan, o Cara, e tentou matar Mike. E vou te dizer uma coisa: desta vez, não vou parar até o serviço estar feito

 

— a Tartaruga era burra, burra demais para mentir. ela disse a verdade para você, Amiguinho.... a chance só acontece uma vez. você me machucou... me surpreendeu. nunca mais. fui eu quem chamou vocês. eu.

 

Você chamou sim, mas não foi a única

 

— sua amiga Tartaruga... ela morreu alguns anos atrás. a velha idiota vomitou dentro do casco e sufocou até a morte com uma galáxia ou duas. muito triste, você não acha? mas também bem bizarro. merece um lugar no Ripley’s Acredite Se Quiser, é o que eu acho. aconteceu na mesma época que você teve aquele bloqueio. você deve ter sentido ela morrer, Amiguinho

 

Também não acredito nisso

 

— ah, você vai acreditar... vai ver. desta vez, Amiguinho, pretendo que você veja tudo, incluindo os postigos

 

Ele sentiu a voz da Coisa aumentando, zumbindo e ecoando; enfim, ele sentia a extensão completa da fúria dela, e estava apavorado. Procurou a língua da mente dela, concentrando-se, tentando desesperadamente recapturar a extensão completa daquela crença infantil, compreendendo ao mesmo tempo que havia uma verdade mortal no que a Coisa dizia: na última vez, a Coisa estava despreparada. Desta vez... bem, mesmo ela não sendo a única a chamá-los, sem dúvida estava esperando.

 

Mesmo assim...

 

Ele sentiu a própria fúria, clara e zumbindo, quando seus olhos se fixaram nos olhos da Coisa. Pressentiu as velhas cicatrizes dela, pressentiu que ela ficou muito ferida e que ainda estava ferida.

 

E quando a Coisa o jogou, quando ele sentiu sua mente arrancada do corpo, ele concentrou todo seu ser em agarrar a língua da Coisa... e perdeu o apoio.

 

Richie

 

Os outros quatro observaram paralisados. Era um replay exato do que tinha acontecido antes, ao menos no começo. A Aranha, que parecia prestes a pegar Bill e engolir, ficou imóvel de repente. Os olhos de Bill grudaram nos olhos de rubi da Coisa. Houve uma sensação de contato... um contato pouco além da habilidade deles de adivinhar. Mas eles sentiram luta, o embate de vontades.

 

Mas Richie olhou para a nova teia e viu a primeira diferença.

 

Havia corpos lá, alguns meio comidos e meio podres, e isso estava igual... mas, bem no alto, em um canto, havia outro corpo, e Richie teve certeza de que ainda estava fresco, talvez até ainda vivo. Beverly não tinha olhado, pois seus olhos estavam fixos em Bill e na Aranha, mas mesmo em meio ao pavor, Richie viu a semelhança entre Beverly e a mulher na teia. O cabelo dela era longo e ruivo. Os olhos estavam abertos, mas vidrados e imóveis. Uma linha de saliva estava escorrendo do canto da boca e pelo queixo dela. Ela estava presa a um dos cabos principais da teia por um cabo diáfano que circulava a cintura dela e passava por baixo dos dois braços, de forma que ela caía para a frente em uma semirreverência, com braços e pernas pendurados sem vida. Os pés dela estavam descalços.

 

Richie viu outro corpo caído no pé da teia dela, um homem que ele nunca tinha visto antes... mas sua mente registrou uma semelhança quase subconsciente com o falecido e nada saudoso Henry Bowers. Sangue havia escorrido pelos dois olhos do estranho e formado uma espuma ao redor da boca e do queixo dele. Ele...

 

Mas Beverly começou a gritar:

 

— Tem alguma coisa errada! Alguma coisa deu errado, façam alguma coisa, pelo amor de Deus alguém FAÇA alguma coisa...

 

O olhar de Richie voltou para Bill e a Aranha... e ele sentiu/ouviu uma gargalhada monstruosa. O rosto de Bill estava se esticando de uma forma sutil. Sua pele tinha ficado amarela da cor de pergaminho, tão brilhante quanto a pele de uma pessoa muito velha. Os olhos dele estavam revirados e mostrando a parte branca.

 

Ah, Bill, onde você está?

 

Enquanto Richie olhava, sangue começou a jorrar do nariz de Bill em uma espuma. Sua boca estava se contorcendo, tentando gritar... e agora, a Aranha estava avançando para cima dele de novo. Ela estava virando, exibindo o ferrão.

 

Ela quer matar ele... matar o corpo, pelo menos... enquanto a mente está em outro lugar. A Coisa quer calar ele pra sempre. Ela está vencendo... Bill, onde você está? Pelo amor de Deus, onde você está?

 

E em algum lugar, baixinho, de uma distância inimaginável, ele ouviu Bill gritar... e as palavras, apesar de sem sentido, eram claras como cristal e cheias de desespero

 

(a Tartaruga está morta ah Deus a Tartaruga está mesmo morta)

 

doentio.

 

Bev gritou de novo e colocou as mãos nos ouvidos como se para afastar aquela voz. O ferrão da Aranha subiu; Richie partiu para cima dela, com um sorriso se abrindo até as orelhas, e gritou na melhor Voz de Policial Irlandês:

 

— Aqui, aqui, bela garota! Que diabos você pensa que está fazendo? Pare de brincadeira antes que eu arranque sua saia e belisque seu traseiro!

 

A Aranha parou de rir, e Richie sentiu um uivo crescente de raiva e dor dentro da cabeça da Coisa. Machuquei ela!, pensou ele com triunfo. Machuquei ela, que tal isso, machuquei ela, e quer saber? ESTOU COM A LÍNGUA DELA! ACHO QUE BILL DEIXOU ESCAPAR, MAS ENQUANTO ELA ESTAVA DISTRAÍDA EU PEGUEI...

 

E então, gritando com ele, com gritos como uma colmeia de abelhas furiosas dentro da cabeça, Richie foi arrancado do corpo e jogado na escuridão, levemente ciente de que a Coisa estava tentando sacudi-lo para soltá-lo. Ela estava fazendo um ótimo trabalho. O pavor tomou conta dele, mas logo foi substituído por um senso de absurdo. Ele se lembrou de Beverly com o ioiô Duncan, mostrando a ele como fazê-lo dormir, como fazer cachorrinho, dar a volta ao mundo. E aqui estava ele, Richie, o Ioiô Humano, e a língua da Coisa era o barbante. Aqui estava ele, e isso não se chamava passear com o cachorrinho, mas talvez passear com a Aranha, e se isso não tinha graça, o que tinha?

 

Richie gargalhou. Não era educado gargalhar de boca cheia, claro, mas ele duvidava que alguém aqui lesse manuais de boas maneiras.

 

Aquilo o fez rir de novo, e ele mordeu com mais força.

 

A Aranha gritou e o sacudiu furiosamente, uivando com a raiva por ter sido surpreendida de novo. Ela acreditava que só o escritor poderia desafiá-la, e agora esse homem que estava rindo como um garoto maluco tinha agarrado a Coisa quando ela estava menos preparada.

 

Richie se sentiu escorregando.

 

— espera um segundito, señorita, nós está indo lá fora juntos senão não vou venderr bilhetes de la loteria, afinal, e todos são vencedores, juro pelo nome de mi madre

 

Ele sentiu os dentes apertarem de novo, com mais firmeza desta vez. E houve uma espécie suave de dor quando a Coisa enfiou as presas na língua dele. Cara, ainda era bem engraçado. Mesmo no escuro, ser jogado atrás de Bill com apenas a língua desse monstro indescritível para ligá-lo ao seu próprio mundo, mesmo com a dor das presas venenosas da Coisa sufocando sua mente como uma névoa vermelha, era bastante engraçado. Olha só, pessoal. Vocês vão acreditar que um disc-jóquei pode voar.

 

Ele estava mesmo voando.

 

Richie estava numa escuridão maior do que já tinha conhecido, do que desconfiava que poderia existir, viajando no que parecia a velocidade da luz e sendo sacudido como um terrier sacode um rato. Ele sentiu que havia alguma coisa à frente, um cadáver titânico. A Tartaruga sobre a qual ele ouviu Bill lamentando com a voz distante? Devia ser. Era só uma casca, um casco vazio. Logo ele passou por ela, disparado na escuridão.

 

Estou fumegando agora, pensou ele, e sentiu aquela vontade selvagem de gargalhar de novo bill! bill, você consegue me ouvir?

 

— ele foi embora, está nos postigos, me solta! ME SOLTA!

 

(richie?)

 

Incrivelmente distante; incrivelmente longe na escuridão. bill! bill! aqui estou eu! se segura! pelo amor de Deus, se segura

 

— ele está morto, vocês estão todos mortos, estão velhos demais, você não entende isso? agora me SOLTA!

 

ei, vadia, nunca é tarde demais para o rock-and-roll

 

— ME SOLTA!

 

me leva até ele e talvez eu solte

 

Richie

 

Mais perto, ele estava mais perto agora, graças a Deus...

 

Aqui vou eu, Big Bill! Richie ao resgate! Vou salvar sua bunda velha! Te devo uma daquele dia na rua Neibolt, lembra?

 

— me SOLTAAAA!

 

Estava doendo muito agora, e Richie entendeu o quanto ele a tinha pegado de surpresa; a Coisa acreditou que só precisava cuidar de Bill. Que ótimo. Ótimo mesmo. Richie não se importava de não matar a Coisa agora; ele não sabia mais se ela poderia ser morta. Mas Bill poderia ser morto, e Richie sentiu que o tempo de Bill agora estava muito, muito curto. Bill estava chegando perto de uma surpresa horrível e enorme lá fora, alguma coisa na qual era melhor não pensar.

 

Richie, não! Volta! É o limite de tudo aqui em cima! Os postigos!

 

parece o que o senhorr liga quando está dirigindo o rabecão à meia-noite, senhorr... e onde está você, queridão? Sorria pra eu poderr verr onde você está!

 

E de repente Bill estava ali, deslizando para

 

(a direita? a esquerda? não havia direção aqui)

 

um lado ou outro. E atrás dele, vindo rápido, Richie conseguia sentir alguma coisa que finalmente fez sua gargalhada sumir. Era uma barreira, alguma coisa de uma forma estranha e não geométrica que sua mente não conseguia compreender. Sua mente traduziu da melhor maneira que conseguiu, assim como tinha traduzido a forma da Coisa como a Aranha, permitindo que Richie pensasse nela como um muro colossal cinza feito de estacas de madeira fossilizadas. Essas estacas seguiam eternamente para cima e eternamente para baixo, como as barras de uma jaula. E entre elas brilhava uma grande luz intensa. Ela brilhava e se movia, sorria e rosnava. A luz estava viva.

 

(postigos)

 

Mais do que viva: estava cheia de uma força; magnetismo, gravidade, talvez alguma outra coisa. Richie sentiu-se erguido e largado, virado e puxado, como se estivesse descendo por uma corredeira em um pneu. Ele conseguia sentir a luz movendo-se ansiosamente por seu rosto... e a luz estava pensando.

 

Esta é a Coisa, esta é a Coisa, o resto da Coisa.

 

— me solta, você prometeu me SOLTAR

 

Eu sei, mas às vezes, queridinha, eu minto. Mamãe me batia por isso, mas meu pai praticamente desistiu

 

Ele sentiu Bill despencando e girando na direção de uma das rachaduras no muro, sentiu dedos cruéis de luz se esticando na direção dele, e com um esforço desesperado final, ele esticou a mão para o amigo.

 

Bill! Sua mão! Me dá sua mão! SUA MÃO, PORCARIA! SUA MÃO!

 

Bill esticou a mão, com os dedos abrindo e fechando, aquele fogo vivo rastejando e contorcendo pela aliança de Audra em padrões rúnicos e mouros: rodas, estrelas, suásticas, círculos unidos que cresciam e viravam correntes rolantes. O rosto de Bill estava manchado com a mesma luz, que o fazia parecer tatuado. Richie se esticou o máximo que conseguiu enquanto ouvia a Coisa gritar e reclamar.

 

(eu perdi ele, ah bom Deus eu perdi ele vai passar)

 

E então, os dedos de Bill se fecharam sobre os de Richie, e Richie fechou a mão bem apertada. As pernas de Bill voaram por uma das aberturas na madeira congelada e, por um momento louco, Richie percebeu que conseguia ver todos os ossos e veias e capilares dentro dele, como se Bill tivesse passado parcialmente pela bocarra da mais forte máquina de raios X do mundo. Richie sentiu os músculos de seu braço se esticarem como caramelo, sentiu a junta do ombro estalar e gemer em protesto enquanto a energia da pressão crescia.

 

Ele reuniu toda sua força e gritou:

 

— Nos puxa de volta! Nos puxa de volta, senão te mato! Eu... vou usar a Voz até te matar!

 

A Aranha gritou de novo, e Richie de repente sentiu um puxão enorme passar por seu corpo. Seu braço era uma haste quente de dor. Ele estava começando a perder o apoio na mão de Bill.

 

— Se segura, Big Bill!

 

— Estou segurando! Richie, estou segurando!

 

É melhor estar mesmo, pensou Richie de forma sombria, porque acho que você poderia andar dez bilhões de quilômetros aqui e nunca encontrar uma porra de banheiro pago.

 

Eles começaram a voltar, aquela luz louca diminuindo, se tornando uma série de pontos brilhantes que finalmente se apagaram. Eles mergulharam pela escuridão como torpedos, Richie segurando a língua da Coisa com os dentes e o pulso de Bill com a mão dolorida. Ali estava a Tartaruga; apareceu e sumiu em uma única piscadela.

 

Richie sentiu-os chegando perto do que se passava pelo mundo real (embora ele acreditasse que nunca pensaria nele exatamente como “real” de novo; ele o veria como uma tela com vários cabos de suporte entrelaçados... cabos como as tiras da teia). Mas vamos ficar bem, pensou ele. Vamos voltar. Nós...

 

A turbulência começou nessa hora: os golpes, choques e sacudidas enquanto a Coisa tentava por uma última vez soltar-se deles e deixá-los lá fora. E Richie sentiu-se escorregar. Ele ouviu o rugido gutural de triunfo da Coisa e concentrou todo o seu ser em segurar... mas continuou a escorregar. Ele mordeu freneticamente, mas a língua da Coisa parecia estar perdendo substância e realidade; parecia estar se tornando diáfana.

 

— Socorro! — gritou Richie. — Estou perdendo! Socorro! Alguém nos ajude!

 

Eddie

 

Eddie estava parcialmente ciente do que acontecia; ele sentia de alguma forma, via de alguma forma, mas como se por uma cortina fina. Em algum lugar, Bill e Richie estavam lutando para voltar. Os corpos deles estavam aqui, mas o resto deles, a parte real, estava distante.

 

Ele tinha visto a Aranha se virar para empalar Bill com o ferrão, mas então Richie saiu correndo, gritando com a Coisa com aquela voz ridícula de Policial Irlandês que ele usava antigamente... só que Richie deve ter melhorado muito sua habilidade ao longo dos anos, porque a voz soava assustadoramente como a do sr. Nell de antigamente.

 

A Aranha se virou para Richie, e Eddie viu os indescritíveis olhos vermelhos saltarem nas órbitas. Richie gritou de novo, desta vez na voz de Pancho Vanilla, e Eddie sentiu a Aranha gritar de dor. Ben gritou com voz rouca quando uma rachadura apareceu na pele da Coisa, seguindo a linha de uma das cicatrizes da outra vez. Um fluxo de icor, preto como petróleo bruto, jorrou para fora. Richie tinha começado a dizer outra coisa... e sua voz começou a diminuir, como o final de uma música pop. A cabeça dele rolou para trás e seus olhos se fixaram nos da Coisa. A Aranha ficou quieta de novo.

 

O tempo passou, Eddie não fazia ideia do quanto. Richie e a Aranha olharam um para o outro; Eddie sentiu a ligação entre eles, sentiu uma conversa e uma onda de emoções em algum lugar distante. Ele não conseguia distinguir nada exatamente, mas sentia os tons das coisas em cores e tons.

 

Bill estava caído no chão, com nariz e orelhas sangrando, os dedos tremendo de leve, o rosto longo pálido, os olhos fechados.

 

A Aranha agora estava sangrando em quatro ou cinco partes, muito ferida novamente, mas ainda perigosamente vital, e Eddie pensou: Por que estamos só aqui de pé? A gente poderia machucar a Coisa enquanto ela está ocupada com Richie! Por que ninguém se move, pelo amor de Deus?

 

Ele sentiu um triunfo selvagem, e esse sentimento foi mais claro, mais intenso. Mais próximo. Eles estão voltando!, ele queria gritar, mas sua boca estava seca demais, sua garganta estava apertada demais. Eles estão voltando!

 

A cabeça de Richie começou a se virar lentamente de um lado para o outro. Seu corpo pareceu ondular dentro das roupas. Seus óculos ficaram pendurados na ponta do nariz por um momento... e caíram e se espatifaram no piso de pedra.

 

A Aranha se mexeu, com as pernas compridas fazendo um estalo seco no chão. Eddie ouviu-a gritar em triunfo terrível e, um momento depois, a voz de Richie surgiu claramente em sua cabeça:

 

(socorro! estou perdendo! alguém me ajude!)

 

Eddie correu para a frente nessa hora, arrancando a bombinha do bolso com a mão boa, com os lábios repuxados em uma careta, a respiração assobiando dolorosamente pela garganta que agora parecia ter o tamanho de um alfinete. Loucamente, o rosto de sua mãe dançava na frente dele, e ela estava gritando: Não chegue perto daquela Coisa, Eddie! Não chegue perto dela! Coisas assim dão câncer!

 

— Cala a boca, mãe! — gritou Eddie com voz alta e aguda, toda a voz que ainda tinha. A cabeça da Aranha se virou na direção do som e seus olhos deixaram o de Richie momentaneamente.

 

— Aqui! — gritou Eddie com voz cada vez mais baixa. — Aqui, toma um pouco disso!

 

Ele pulou na Coisa e disparou a bombinha ao mesmo tempo, e por um instante toda a sua crença da infância no remédio voltou a ele, o remédio da infância que era capaz de resolver qualquer coisa, que podia fazê-lo se sentir melhor quando os garotos grandes eram maus com ele ou quando ele era derrubado na pressa de passar pela porta quando acabava a aula ou quando tinha que se sentar na beirada do terreno baldio dos irmãos Tracker porque a mãe não deixava que ele jogasse beisebol. Era um remédio bom, um remédio forte, e quando ele pulou na cara da Aranha e sentiu o fedor amarelo horrendo, sentindo-se sobrecarregado pela fúria e determinação dela de acabar com eles, ele disparou a bombinha em um dos olhos de rubi.

 

Ele sentiu-ouviu o grito da Coisa, sem fúria desta vez, só dor, uma agonia horrível em forma de som. Viu a névoa de gotículas cair naquela protuberância vermelho-sangue, viu as gotículas ficarem brancas onde caíram, viu-as afundar como um esguicho de ácido carbólico afundaria; ele viu o enorme olho da Coisa começar a ficar achatado como uma gema de ovo sangrenta e escorrer em um fluxo de sangue vivo e icor e pus cheio de larvas.

 

— Vem pra casa agora, Bill! — gritou ele com o resto de voz que tinha, e bateu na Coisa, sentiu o calor dela cozinhando-o; sentiu um calor terrível e molhado e percebeu que seu braço bom tinha escorregado para a boca da Aranha.

 

Ele disparou a bombinha de novo e desta vez jogou o composto direto na garganta dela, direto para o esôfago podre, mau e fedido, e houve uma dor repentina e intensa, clara como a queda de uma faca pesada, quando o maxilar dela se fechou e arrancou o braço dele na altura do ombro.

 

Eddie caiu no chão, com o cotoco irregular do braço jorrando sangue, levemente ciente de que Bill estava ficando de pé lentamente, que Richie estava cambaleando na direção dele como um bêbado no fim de uma noite longa e difícil.

 

— ... eds...

 

Distante. Não importante. Ele conseguia sentir tudo escorrendo dele junto como sangue vital... toda a ira, toda a dor, todo o medo, toda a confusão e sofrimento. Ele achava que estava morrendo, mas se sentia... ah, Deus, se sentia tão lúcido, tão claro, como uma vidraça que foi lavada e agora solta uma luz gloriosa e apavorante de um amanhecer inesperado; a luz, ah Deus, aquela luz perfeitamente racional que clareia o horizonte em algum lugar no mundo a cada segundo.

 

— ... eds ah meu deus bill ben alguém ele perdeu o braço o...

 

Ele olhou para Beverly e viu que ela estava chorando. Lágrimas escorriam pelas bochechas sujas quando ela passou um braço por baixo dele. Ele percebeu que ela tinha tirado a blusa e estava tentando estancar o fluxo de sangue, e que estava gritando por socorro. Então, ele olhou para Richie e lambeu os lábios. Ficando distante, ficando muito distante. Tornando-se cada vez mais claro, vazio, com todas as impurezas fluindo para fora dele para ele ficar limpo, para que a luz pudesse fluir através dele, e se ele tivesse tido tempo, poderia ter feito uma pregação sobre isso, poderia ter feito um sermão: Nada mau, começaria ele. Isso não é nada mau. Mas havia outra coisa a ser dita primeiro.

 

— Richie — sussurrou ele.

 

— O quê? — Richie estava de quatro, olhando desesperado para ele.

 

— Não me chama de Eds — disse ele, e sorriu. Ele levantou a mão esquerda lentamente e tocou na bochecha de Richie. Richie estava chorando. — Você sabe que eu... eu... — Eddie fechou os olhos pensando em como terminar e, enquanto ainda estava pensando, ele morreu.

 

Derry — 7h/9h

 

Às 7h, a velocidade do vento em Derry tinha aumentado para 60 quilômetros por hora, com rajadas de até 72. Harry Brooks, um meteorologista do Serviço de Meteorologia Nacional com base no Aeroporto Internacional de Bangor fez uma ligação alarmada para o quartel-general de Augusta. Ele disse que os ventos estavam vindo do oeste e soprando em um estranho padrão semicircular que ele nunca tinha visto antes... mas parecia cada vez mais a ele uma espécie esquisita de minifuracão, limitado quase que exclusivamente ao município de Derry. Às 7h10, as maiores estações de rádio de Bangor transmitiram o primeiro aviso de clima perigoso. A explosão do transformador nos Irmãos Tracker acabou com a energia em toda Derry do lado da rua Kansas do Barrens. Às 7h17, um bordo antigo no lado do Barrens de Old Cape caiu com um estrondo terrível, esmagando uma loja Nite-Owl na esquina da rua Merit e da avenida Cape. Um cliente idoso chamado Raymond Fogarty foi morto por uma geladeira de cervejas que virou. Era o mesmo Raymond Fogarty que, quando pastor da Primeira Igreja Metodista de Derry, proferiu os ritos no enterro de George Denbrough em outubro de 1957. O bordo também derrubou fios suficientes para acabar com a energia tanto em Old Cape quanto no conjunto mais moderno de Sherburn Woods que ficava atrás. O relógio na torre da Igreja Batista da Graça não tocou nem às seis, nem às sete horas. Às 7h20, três minutos depois que o bordo caiu em Old Cape e cerca de uma hora e 15 minutos depois que todas as privadas e ralos domésticos de lá entraram em reversão, o relógio da torre tocou 13 vezes. Um minuto depois, um relâmpago azul-esbranquiçado atingiu a torre. Heather Libby, a esposa do pastor, por acaso estava olhando pela janela da cozinha da residência paroquial na hora e disse que a torre “explodiu como se alguém a tivesse enchido de dinamite”. Tábuas pintadas de branco, pedaços de vigas e de mecanismo de relógio da Suíça voaram na rua. Os restos da torre pegaram fogo brevemente e se apagaram na chuva, que agora era uma tempestade tropical. As ruas que levavam para baixo, para a área comercial no centro, espumavam e levavam água. O progresso do canal debaixo da rua Main se tornou um trovão trêmulo constante que fazia as pessoas se entreolharem com desconforto. Às 7h25, com o estrondo titânico da torre da Igreja Batista ainda reverberando por toda Derry, o zelador que ia ao Wally’s Spa todas as manhãs exceto aos domingos para limpar o local, viu uma coisa que o fez sair correndo pela rua. Esse cara, que era alcoólatra desde o primeiro semestre na Universidade do Maine 11 anos antes, recebia uma miséria pelo serviço; ficava entendido que seu verdadeiro pagamento era sua absoluta liberdade para acabar com qualquer coisa que sobrasse nos barris de cerveja debaixo do bar da noite anterior. Richie Tozier talvez se lembrasse dele, talvez não; ele era Vincent Caruso Taliendo, melhor conhecido pelos colegas do quinto ano na época como “Meleca” Taliendo. Enquanto limpava o chão naquela apocalíptica manhã em Derry, seguindo gradualmente cada vez mais para perto da área de servir, ele viu as sete torneiras de cerveja, três de Bud, duas de Narragansett, uma Schlitz (mais conhecida pelos clientes como Chilique), e uma de Miller Lite, se abaixarem para a frente, como se puxadas por sete mãos invisíveis. Cerveja escorreu delas em fluxos de espuma branca e dourada. Vince começou a andar, pensando não em fantasmas ou espíritos, mas no bônus matinal descendo pelo ralo. Mas parou de repente, com os olhos se arregalando e um grito horrorizado subindo pela caverna vazia com cheiro de cerveja que era o Wally’s Spa. A cerveja tinha cedido espaço a fluxos arteriais de sangue. Ele girou nos ralos cromados, transbordou e começou a escorrer pela lateral do bar em filetes. Agora, cabelo e pedaços de carne começaram a sair das torneiras de cerveja. “Meleca” Taliendo olhou para isso hipnotizado, sem nem conseguir reunir forças para gritar de novo. Houve um estrondo surdo quando um dos barris debaixo da bancada explodiu. Todas as portas de armário debaixo do bar se abriram. Uma fumaça esverdeada, como a sequência de um truque de mágico, começou a sair deles. “Meleca” tinha visto o bastante. Ele saiu correndo e gritando pela rua, que agora era um canal raso. Depois de cair de traseiro no chão, ele se levantou e lançou um olhar apavorado por cima do ombro. Uma das janelas do bar explodiu com um som alto de galeria de tiro. Pedaços de vidro quebrado voaram ao redor da cabeça de Vince. Um momento depois, a outra janela explodiu. Mais uma vez, ele ficou milagrosamente intocado... mas decidiu de ímpeto que tinha chegado a hora de ir visitar a irmã em Eastport. Ele saiu correndo imediatamente, e seu trajeto até os limites municipais de Derry e além se tornaria uma saga por si só... mas basta dizer que em algum momento ele saiu da cidade. Outros não tiveram tanta sorte. Aloysius Nell, que tinha feito 77 anos não muito tempo antes, estava sentado com a esposa na sala de casa na rua Strapham, vendo a tempestade cair em Derry. Às 7h32, ele sofreu um derrame fatal. Sua mulher contou ao irmão uma semana depois que Aloysius largou a xícara de café no tapete, se sentou ereto com olhos arregalados e vidrados, e gritou: “Aqui, aqui, bela garota! Que diabos você pensa que está fazendo? Pare de brincadeira antes que eu arranque sua saiiiii...” Em seguida, caiu da cadeira e esmagou a xícara de café. Maureen Nell, que sabia bem o quanto o coração dele andava ruim nos últimos três anos, entendeu imediatamente que era o fim para ele e, depois de afrouxar o colarinho, correu para o telefone para ligar para o padre McDowell. Mas o telefone não estava funcionando. Um barulho estranho como uma sirene de polícia era tudo que ele fazia. E assim, embora soubesse que provavelmente era blasfêmia pela qual teria que responder em frente a São Pedro, ela tentou dar a extrema-unção ela mesma. Ela sentiu confiança, contou ela ao irmão, que Deus entenderia, mesmo se São Pedro não entendesse. Aloysius foi um bom marido e um bom homem e, se bebia demais, era só o irlandês nele aflorando. Às 7h49, uma série de explosões sacudiu o Derry Mall, que ficava no local da extinta Siderúrgica Kitchener. Ninguém morreu; o shopping só abria às 10h, e o grupo de zeladores de cinco homens só estava marcado para chegar às 8h (e em uma manhã assim, bem poucos apareceriam). Um grupo de investigadores mais tarde descartou a ideia de sabotagem. Eles sugeriram um tanto vagamente que as explosões provavelmente foram causadas pela água que entrou no sistema elétrico do shopping. Fosse qual fosse o motivo, ninguém faria compras no Derry Mall por um bom tempo. Uma das explosões destruiu completamente a Joalheria Zale. Anéis de diamantes, pulseiras, colares de pérolas, bandejas de alianças de casamento e relógios digitais Seiko voaram para todos os lados em uma chuva de bugigangas brilhosas e cintilantes. Uma caixa de música voou pelo comprimento do corredor leste e caiu no chafariz em frente à J. C. Penney’s, onde tocou brevemente uma versão borbulhenta do tema de Love Story antes de parar de funcionar. A mesma explosão abriu um buraco na Baskin-Robbins ao lado, transformando os 31 sabores em sopa de sorvete que escorreu pelos corredores em riachos. A explosão que destruiu a Sears levantou um pedaço do teto, e o vento crescente o fez voar como uma pipa; ele caiu a mil metros de distância, partindo o silo de um fazendeiro chamado Brent Kilgallon. O filho de 16 anos de Kilgallon saiu correndo com a Kodak da mãe e tirou uma foto. A National Enquirer comprou a foto por sessenta dólares, que o garoto usou para comprar dois pneus novos para a motocicleta Yamaha. Uma terceira explosão destruiu a Hit or Miss, enviando saias, calças jeans e lingerie flamejante para o estacionamento alagado. E uma explosão final acabou com a filial do shopping do Derry Farmer’s Trust como uma caixa podre de biscoitos. Um pedaço do telhado do banco também foi arrancado. Alarmes dispararam em uma gritaria que só foi silenciada quando a fiação independente do sistema de segurança entrou em curto quatro horas depois. Contratos de aluguel, instrumentos bancários, comprovantes de depósito, folhas de compensação dos caixas e formulários Money-Manager foram soprados no céu e espalhados pelo vento forte. E dinheiro: notas de dez e vinte em geral, com uma quantidade generosa de notas de cinco e algumas de cinquenta e cem. Mais de 75 mil dólares saíram voando, de acordo com os funcionários do banco... Mais tarde, depois de uma reformulação radical na estrutura executiva do banco (e uma ajuda do FSLIC), alguns admitiram, de forma estritamente confidencial, é claro, que foram mais de 200 mil. Uma mulher em Haven Village chamada Rebecca Paulson achou uma nota de cinquenta dólares grudada no capacho da porta dos fundos, duas de vinte no viveiro de pássaros e uma de cem grudada no carvalho do quintal. Ela e o marido usaram o dinheiro para fazer dois pagamentos adicionais pelo Bombardier Skidoo. O dr. Hale, um médico aposentado que morava na West Broadway havia quase cinquenta anos, morreu às 8h. O doutor gostava de se gabar de fazer a mesma caminhada de 3 quilômetros a partir da casa na West Broadway e ao redor do parque Derry e da escola Elementary nos últimos 25 desses cinquenta anos. Nada o impedia: nem chuva, nem granizo, nem chuva e granizo, nem ventos uivantes, nem frios negativos. Ele saiu na manhã do dia 31 de maio apesar das preocupações da faxineira. Sua fala final no mundo, dita por cima do ombro quando ele saiu pela porta da frente, puxando o chapéu com firmeza sobre as orelhas, foi: “Não seja tão tola, Hilda. Isso não passa de um pouco de chuva. Você devia ter visto em 1957! Aquilo foi tempestade!” Quando o dr. Hale se virou para a West Broadway, uma tampa de bueiro em frente à casa dos Mueller de repente subiu como a ogiva de um foguete Redstone. Ela decapitou o bom doutor tão rápido e de forma tão perfeita que ele andou mais três passos antes de despencar morto na calçada.

 

E o vento continuou a aumentar.

 

Debaixo da cidade — 16h15

 

Eddie os guiou pelos túneis escuros durante uma hora, talvez uma hora e meia, até admitir, em um tom que era mais perplexo do que assustado, que, pela primeira vez na vida, estava perdido.

 

Eles ainda conseguiam ouvir o som de trovão da água nos bueiros, mas a acústica de todos esses túneis era tão louca que era impossível dizer se os sons de água vinham da frente ou de trás, da esquerda ou da direita, de cima ou de baixo. Os fósforos tinham acabado. Eles estavam perdidos no escuro.

 

Bill estava com medo... com muito medo. A conversa que ele teve com o pai na oficina ficava voltando. Há mais de 4 quilos de plantas que simplesmente desapareceram ao longo do tempo... O que quero dizer é que ninguém sabe onde esses malditos esgotos e escoadouros vão dar, nem por quê. Quando eles estão funcionando, ninguém liga. Quando não estão, tem três ou quatro infelizes do Departamento de Águas de Derry que têm que tentar descobrir que bomba quebrou ou onde fica o entupimento... É escuro e fedido, e tem ratos. Esses são bons motivos para não entrar, mas o melhor é que dá pra se perder. Já aconteceu.

 

Já aconteceu. Já aconteceu. Aconteceu...

 

Claro que sim. Havia aquela pilha de ossos e o algodão polido pelos quais eles passaram no caminho do lar da Coisa, por exemplo.

 

Bill sentiu o pânico tentar subir e empurrou para longe. Ele foi, mas não com facilidade. Bill conseguia senti-lo lá atrás, uma coisa viva, lutando e se contorcendo, tentando sair. O acréscimo a isso era a pergunta irritante e irrespondível de se eles tinham matado a Coisa ou não. Richie dizia que sim, Mike dizia que sim, e Eddie também. Mas ele não gostou da expressão assustada de dúvida nos rostos de Bev e Stan quando a luz morreu e eles passaram pela porta pequena, para longe da teia desmoronando.

 

— O que fazemos agora? — perguntou Stan. Bill ouviu o tremor assustado de garotinho na voz de Stan e soube que a pergunta foi direcionada a ele.

 

— É — disse Ben. — O quê? Droga, eu queria que a gente tivesse uma lanterna... até uma ve... vela.

 

Bill pensou ter ouvido um soluço sufocado na segunda pausa. Isso o assustou mais do que qualquer outra coisa. Ben ficaria atônito de saber, mas Bill achava o garoto gordo durão e astucioso, mais firme do que Richie e menos suscetível a desmoronar repentinamente do que Stan. Se Ben estava prestes a desabar, eles estavam à beira de um problema muito ruim. Não era para o esqueleto do cara do Departamento de Águas que a mente de Bill ficava voltando, mas para Tom Sawyer e Becky Thatcher, perdidos na caverna McDougal. Ele afastava o pensamento, que voltava sorrateiro.

 

Outra coisa o estava incomodando, mas o conceito era grande demais e vago demais para sua mente cansada de garoto compreender. Talvez fosse a mera simplicidade da ideia que a tornava elusiva: eles estavam se afastando uns dos outros. O laço que os uniu durante todo o verão estava se dissolvendo. A Coisa foi enfrentada e destruída. Poderia estar morta, como Richie e Eddie pensavam, ou poderia estar tão ferida que dormiria por cem anos, ou mil, ou 10 mil. Eles encararam a Coisa, viram a Coisa com a máscara final deixada de lado, e a Coisa era bem horrível, sem dúvida!, mas, depois de vista, sua forma física não era tão ruim e a arma mais potente foi tirada dela. Afinal, eles já tinham todos visto aranhas antes. Eram estranhas, apavorantes e rastejantes, e ele achava que nenhum deles conseguiria ver outra

 

(se sairmos disso)

 

sem sentir um tremor de repulsa. Mas uma aranha era, afinal, só uma aranha. Talvez no final, quando as máscaras de horror fossem deixadas de lado, não houvesse nada com que a mente humana não pudesse lidar. Era um pensamento encorajador. Qualquer coisa menos

 

(os postigos)

 

o que havia lá fora, mas talvez mesmo aquela luz viva indescritível que se agachava na entrada do macroverso estivesse morta ou morrendo. Os postigos e a viagem para o negro, para o lugar onde eles estavam, já estava ficando enevoada e difícil de lembrar em sua mente. E essa não era bem a questão. A questão, sentida, mas não identificada, era apenas que o grupo estava terminando... estava terminando, e eles ainda se encontravam na escuridão. Aquele Outro, por meio da amizade deles, conseguiu talvez fazê-los alguma coisa mais do que crianças. Mas eles estavam virando crianças de novo. Bill sentia tanto quanto os outros.

 

— E agora, Bill? — perguntou Richie, finalmente dizendo em voz alta.

 

— Eu n-n-não s-s-sei — disse Bill. A gagueira estava de volta, viva e bem. Ele a ouviu, todos a ouviram, e ele ficou de pé na escuridão, sentindo o aroma úmido do pânico crescente, perguntando-se quanto tempo demoraria até que alguém, provavelmente Stan, deixasse as coisas às claras dizendo: Bem, por que você não sabe? Você nos meteu nisso!

 

— E quanto a Henry? — perguntou Mike com desconforto. — Ele ainda está por aí ou o quê?

 

— Ah, caramba — disse Eddie... quase gemeu. — Eu me esqueci dele. Claro que está, claro que está, deve estar tão perdido quanto a gente, e a gente pode dar de cara com ele a qualquer hora... Caramba, Bill, você não tem ideia nenhuma? Seu pai trabalha aqui embaixo! Você não tem ideia nenhuma?

 

Bill ouviu o distante trovão debochado da água e tentou ter a ideia que Eddie e todos eles tinham o direito de exigir. Porque sim, correto, ele os tinha colocado nisso e era responsabilidade dele tirá-los de lá. Nada veio. Nada.

 

— Eu tenho uma ideia — disse Beverly baixinho.

 

No escuro, Bill ouviu um som que não conseguiu localizar imediatamente. Um som baixo e sussurrado, mas não assustador. Em seguida, houve um som mais fácil de identificar... um zíper. O que...?, pensou ele, e então entendeu o quê. Ela estava se despindo. Por algum motivo, Beverly estava se despindo.

 

— O que você está fazendo? — perguntou Richie, e a voz chocada falhou na última palavra.

 

— Eu sei de uma coisa — disse Beverly no escuro, e para Bill a voz dela pareceu mais velha. — Sei porque meu pai me contou. Sei como nos unir de novo. E, se não estivermos unidos, não vamos sair nunca.

 

— O quê? — perguntou Ben, parecendo confuso e apavorado. — De que você está falando?

 

— Uma coisa que vai nos unir pra sempre. Uma coisa que vai mostrar...

 

— N-N-Não, B-B-Beverly! — disse Bill, compreendendo de repente, entendendo tudo.

 

— ... que vai mostrar que amo vocês todos — disse Beverly —, que vocês são todos meus amigos.

 

— De que ela est... — começou Mike.

 

Calmamente, Beverly cortou as palavras dele.

 

— Quem é o primeiro? — perguntou ela. — Eu acho que

 

No lar da Coisa — 1985

 

ele está morrendo — chorou Beverly. — O braço dele, a Coisa comeu o braço dele... — Ela esticou a mão para Bill, se agarrou a ele, e Bill a afastou.

 

— Ela está fugindo de novo! — rugiu ele para ela. Sangue seco cobria seus lábios e queixo. — V-V-Vamos! Richie! B-B-Ben! Dessa v-vez a g-g-gente v-v-vai a-acabar com ela!

 

Richie virou Bill para ele e olhou como se olha para um homem delirante.

 

— Bill, a gente precisa cuidar de Eddie. A gente precisa fazer um torniquete nele, tirar ele daqui.

 

Mas Beverly estava sentada agora com a cabeça de Eddie no colo, aninhando-a. Ela tinha fechado os olhos dele.

 

— Vão com Bill — disse ela. — Se vocês deixarem ele morrer por nada... se a Coisa voltar em 25 anos, ou cinquenta, ou mesmo duzentos, eu juro que vou... vou assombrar seus fantasmas. Vão!

 

Richie olhou para ela por um momento, indeciso. Mas então percebeu que o rosto dela estava perdendo definição, estava se tornando não um rosto, mas uma forma pálida nas sombras crescentes. A luz estava sumindo. Isso o fez decidir.

 

— Tudo bem — disse ele para Bill. — Desta vez, nós vamos atrás.

 

Ben estava atrás da teia, que tinha começado a desmoronar de novo. Ele também tinha visto a forma oscilando no alto e rezou para Bill não olhar para cima.

 

Mas quando a teia começou a cair em tiras, fios e pedaços, Bill olhou.

 

Ele viu Audra se balançando como se estivesse em um elevador muito velho e barulhento. Ela caiu 3 metros, parou, balançou de um lado para outro e caiu abruptamente mais 4,5 metros. Seu rosto não mudou. Os olhos azul-claros estavam bem arregalados. Os pés descalços se balançavam para a frente e para trás como pêndulos. O cabelo caía sem vida sobre os ombros. A boca estava entreaberta.

 

— AUDRA! — gritou ele.

 

— Bill, vamos! — gritou Ben.

 

A teia estava caindo ao redor deles agora, despencando no chão e começando a escorrer. Richie de repente segurou Bill pela cintura e empurrou, disparando para uma abertura de 3 metros de altura entre o chão e a parte de baixo da teia frouxa.

 

— Vai, Bill! Vai! Vai!

 

— Aquela é Audra! — gritou Bill com desespero. — A-Aquela é AUDRA!

 

— Estou cagando se é o Papa — disse Richie com voz séria. — Eddie está morto e vamos matar a Coisa se ela ainda estiver viva. Vamos terminar o serviço desta vez, Big Bill. Ou ela está viva, ou não está. Agora vem!

 

Bill ficou olhando mais um momento, mas imagens das crianças, todas as crianças mortas, pareceram flutuar por sua mente como fotos perdidas do álbum de fotos de George. AMIGOS DA ESCOLA.

 

— T-Tudo b-bem. V-V-Vamos. Que D-D-Deus me p-p-perdoe.

 

Ele e Richie correram debaixo das tiras de teia cruzada segundos antes de ela desabar e se juntaram a Ben do outro lado. Eles correram atrás da Coisa enquanto Audra se balançava e ficava pendurada 15 metros acima do piso de pedra, envolta em um casulo entorpecedor preso à teia que desmoronava.

 

Ben

 

Eles seguiram a trilha do sangue preto da Coisa, poças oleosas de icor que escorria e pingava pelas rachaduras entre as pedras. Mas quando o piso começou a subir em direção a uma abertura negra semicircular na extremidade da câmara, Ben viu uma coisa nova: uma trilha de ovos. Cada um era preto e tinha casca áspera, talvez do tamanho de um ovo de avestruz. Uma luz fosca brilhava de dentro deles. Ben percebeu que eram semitransparentes; ele conseguia ver formas pretas se movendo dentro.

 

Os filhos dela, pensou ele, e sentiu a garganta apertar. Os filhos abortados. Deus! Deus!

 

Richie e Bill tinham parado e estavam olhando para os ovos com atordoamento imbecil e perplexo.

 

— Vão! Vão! — gritou Ben. — Eu cuido deles! Peguem a Coisa!

 

— Toma! — gritou Richie, e jogou para Ben uma caixa de fósforos do Derry Town House.

 

Ben pegou. Bill e Richie correram. Ben os observou na luz que diminuía rapidamente por um momento. Eles correram para a escuridão da passagem de fuga da Coisa e se perderam de vista. Em seguida, ele olhou para o primeiro dos ovos de casca fina, para a sombra preta em forma de louva-deus lá dentro, e sentiu sua determinação falhar. Isso... ei, pessoal, isso era demais. Era simplesmente horrível demais. E sem dúvida eles morreriam sem a ajuda dele; não foram postos e sim largados.

 

Mas a hora estava próxima... e se um deles for capaz de sobreviver... ao menos um...

 

Reunindo toda coragem, visualizando o rosto pálido e moribundo de Eddie, Ben baixou uma bota Desert Driver com força no primeiro ovo. Ele quebrou com um ruído molhado, e uma espécie de placenta fedida escorreu ao redor da bota. Em seguida, uma aranha do tamanho de um rato andou fracamente pelo chão, tentando se afastar, e Ben conseguia ouvi-la na cabeça, com os gritos choramingados como o som de um serrote sendo inclinado rapidamente para um lado e outro para fazer música de fantasma.

 

Ben correu atrás dela com pernas que pareciam de pau e baixou o pé de novo. Ele sentiu o corpo da aranha ser esmagado e se espalhar debaixo do salto da bota. Sua garganta se apertou de novo, e desta vez ele não conseguiu segurar. Ele vomitou, depois girou o calcanhar, esmagando a coisa nas pedras e ouvindo os gritos em sua cabeça sumirem até chegarem a nada.

 

Quantos? Quantos ovos? Eu não li em algum lugar que aranhas podem pôr milhares... ou milhões? Não vou conseguir ficar fazendo isso, vou enlouquecer...

 

Você precisa. Precisa. Vamos lá, Ben... se recomponha!

 

Ele foi até o ovo seguinte e refez o processo nos últimos raios de luz. Tudo se repetiu: o estalo repentino, o derrame de líquido, o ato final. O seguinte. O seguinte. O seguinte. Seguindo lentamente para o arco negro no qual os amigos entraram. A escuridão era total agora, e Beverly e a teia em decomposição estavam em algum lugar para trás. Ele ainda conseguia ouvir o sussurro do desmoronamento. Os ovos eram pedras pálidas na escuridão. Quando chegava em cada um, ele acendia um fósforo da caixa e o quebrava. Em cada caso, ele conseguiu seguir o curso da aranha atordoada e esmagá-la antes de a luz se apagar. Ele não fazia ideia de como ia fazer se os fósforos acabassem antes de ele ter esmagado o último dos ovos e matado cada carga indescritível.

 

A Coisa — 1985

 

Ainda vindo.

 

Ela os sentia ainda vindo, se aproximando, e seu medo cresceu. Talvez a Coisa não fosse eterna, afinal; o impensável devia finalmente ser pensado. Pior, a Coisa sentia a morte dos pequenos. Um terceiro desses odiosos odiados homens-garotos estava caminhando pela trilha de nascimentos, quase louco de repulsa, mas continuando mesmo assim, pisando metodicamente para tirar a vida de cada um dos ovos.

 

Não!, gritou a Coisa, correndo de um lado para o outro, sentindo sua força de vida se esvaindo em mil ferimentos, nenhum deles mortal, mas cada um uma música de dor, cada um retardando a Coisa. Uma das pernas dela estava pendurada por um único fiapo vivo de carne. Um dos olhos estava cego. Ela sentia uma ruptura terrível dentro de si, o resultado do veneno que os odiados homens-garotos conseguiram disparar dentro da garganta dela.

 

E eles continuavam vindo, diminuindo a distância, e como isso podia acontecer? Ela gemia e choramingava, e quando sentiu-os quase diretamente atrás de si, fez a única coisa que podia fazer agora: a Coisa se virou para lutar.

 

Beverly

 

Antes de a última luz sumir e a escuridão total tomar conta do local, ela viu a mulher de Bill despencar mais 6 metros e parar de novo. Ela tinha começado a girar e o cabelo estava espalhado. Mulher dele, pensou ela. Mas eu fui o primeiro amor, e se ele achava que alguma outra foi a primeira, foi só porque se esqueceu... se esqueceu de Derry.

 

Ela estava na escuridão, sozinha com o som da teia caindo e com o peso simples e imóvel de Eddie. Ela não queria soltá-lo, não queria deixar o rosto dele perto do chão imundo daquele lugar. Assim, segurou a cabeça dele na dobra de um braço que estava dormente e tirou o cabelo da testa úmida dele. Ela pensou nos pássaros... Era uma coisa que achava que tinha tirado de Stan. Pobre Stan, que não foi capaz de encarar isso.

 

De todos eles... eu fui o primeiro amor deles.

 

Ela tentou lembrar. Era uma coisa boa de se pensar em toda aquela escuridão, onde não dava para localizar os sons. Fazia com que ela se sentisse menos sozinha. A princípio, a lembrança não veio; a imagem dos pássaros interferiu. Eram corvos, gralhas e estorninhos, pássaros de primavera que voltavam de algum lugar quando as ruas ainda estavam tomadas de água de neve derretida e as últimas partes de neve dura e suja se agarravam a locais escondidos.

 

Pareceu a ela que era sempre em um dia nublado que você ouvia e via pela primeira vez os pássaros de primavera e se perguntava de onde eles vinham. De repente, eles simplesmente estavam de volta a Derry, enchendo o ar branco com sua gritaria. Eles ocupavam os fios telefônicos e telhados das casas vitorianas na West Broadway; brigavam por espaço nas varas de alumínio da antena de TV elaborada no alto do Wally’s Spa; cobriam os galhos pretos e molhados dos olmos na rua Lower Main. Eles pousavam, falavam uns com os outros com as vozes gritadas e faladeiras de velhas mulheres de interior nos jogos semanais de bingo, e então, a algum sinal que os humanos não conseguiam discernir, todos levantavam voo na mesma hora, deixando o céu preto com a quantidade de aves... e desciam em algum outro lugar.

 

Sim, os pássaros, eu estava pensando neles porque sentia vergonha. Foi meu pai que me deixou com vergonha, eu acho e talvez tenha sido feito da Coisa também. Talvez.

 

A lembrança veio, a lembrança por trás dos pássaros, mas foi vaga e desconectada. Talvez essa sempre fosse ficar assim. Ela tinha...

 

Os pensamentos foram interrompidos quando ela percebeu que Eddie

 

Amor e desejo — 10 de agosto de 1958

 

vem até ela primeiro porque é quem mais está com medo. Ele vem até ela não como o amigo daquele verão, nem como um breve amante agora, mas da forma que teria ido até a mãe apenas três ou quatro anos antes, para ser reconfortado; ele não recua da nudez macia, e a princípio ela duvida até que ele sinta. Ele está tremendo e, apesar de ela abraçá-lo, a escuridão é tão perfeita que nem de perto assim ela consegue vê-lo; exceto pelo gesso áspero, ele poderia ser um fantasma.

 

— O que você quer? — ele pergunta a ela.

 

— Você vai ter que colocar seu negócio em mim — diz ela.

 

Ele tenta recuar, mas ela o segura e ele cede. Ela ouviu alguém, Ben, ela acha, prender a respiração.

 

— Bevvie, não posso fazer isso. Não sei como...

 

— Acho que é fácil. Mas você vai ter que tirar a roupa. — Ela pensa nas dificuldades de lidar com um gesso e uma camisa, primeiro separando-os e depois juntando-os, e acrescenta: — A calça, pelo menos.

 

— Não, não consigo! — Mas ela acha que parte dele pode, e quer, porque o tremor parou e ela sente uma coisa pequena e dura no lado direito da barriga.

 

— Você consegue — diz ela, e o puxa para baixo. A superfície debaixo das costas e pernas dela é firme, similar à argila, seca. O trovão distante da água é soporífero, acalentador. Ela estica os braços para ele. Há um momento em que o rosto do pai dela interfere, implacável e ameaçador

 

(quero ver se você ainda está intacta)

 

mas ela passa os braços ao redor do pescoço de Eddie, com a bochecha macia encostada na bochecha macia dele, e quando ele toca com hesitação nos seios pequenos, ela suspira e pensa pela primeira vez Este é Eddie e se lembra de um dia em julho (era possível que fosse apenas mês passado?) em que ninguém apareceu no Barrens, só Eddie, e ele estava com vários gibis da Luluzinha, e eles leram juntos durante quase toda a tarde, a Luluzinha procurando amoras silvestres e entrando em todo tipo de situação maluca com a bruxa Alceia e todo o pessoal. Foi divertido.

 

Ela pensa nos pássaros; particularmente, nas gralhas, estorninhos e corvos que voltam na primavera, e suas mãos vão até o cinto dele e o soltam; ele diz de novo que não consegue fazer isso; ela diz que ele consegue, que sabe que ele consegue, e o que ela sente não é vergonha nem medo agora, mas uma espécie de triunfo.

 

— Onde? — diz ele, e aquela coisa dura aperta com urgência a parte interna da coxa dela.

 

— Aqui — diz ela.

 

— Bevvie, vou entrar em você! — diz ele, e ela ouve a respiração dele começar a assobiar de forma dolorosa.

 

— Acho que é mais ou menos essa a ideia — diz ela, e o segura com delicadeza e o guia. Ele empurra rápido demais, e ela sente dor.

 

Sssss! Ela inspira, os dentes mordem o lábio inferior, e ela pensa nos pássaros de novo, nos pássaros de primavera, enfileirados nos telhados das casas, levantando voo sob as nuvens de março.

 

— Beverly? — diz ele com insegurança. — Você está bem?

 

— Vai mais devagar — diz ela. — Vai ser mais fácil pra você respirar. — Ele se move mais lentamente, e depois de um tempo a respiração dele se acelera, mas ela entende que não é por ter alguma coisa errada com ele.

 

A dor some. De repente, ele se move mais rápido, depois para, se enrijece e faz um som, algum som. Ela sente que isso é importante para ele, uma coisa extraordinariamente especial, uma coisa como... como voar. Ela se sente poderosa; sente uma espécie de triunfo subir com força dentro dela. Era disso que o pai dela tinha medo? Bem, era para ter mesmo! Havia poder naquele ato, havia mesmo, um poder arrebatador que ia até o sangue. Ela não sente prazer físico, mas há uma espécie de êxtase mental. Ela sente a proximidade. Ele coloca o rosto no pescoço dela, e ela o abraça. Ele está chorando. Ela o abraça. E sente a parte dele que fez a ligação entre eles começar a murchar. Não está saindo dela exatamente; está apenas recuando, ficando menor.

 

Quando o peso dele se afasta, ela se senta e toca no rosto dele na escuridão.

 

— Você conseguiu?

 

— Consegui o quê?

 

— Seja lá o que for. Não sei, exatamente.

 

Ele balança a cabeça. Ela sente com a mão que está na bochecha dele.

 

— Acho que não foi exatamente como... você sabe, como os garotos grandes dizem. Mas foi... foi especial. — Ele fala baixo para que os outros não possam ouvir. — Eu te amo, Bevvie.

 

A consciência dela falha um pouco aqui. Ela tem certeza de que há mais conversa, em parte sussurrada, em parte em voz alta, mas não consegue se lembrar do que é dito. Não importa. Será que ela tem que convencer cada um deles, tudo de novo? Sim, provavelmente. Mas não importa. Eles precisam ser convencidos a essa ligação humana essencial entre o mundo e o infinito, o único lugar em que o fluxo sanguíneo toca a eternidade. Não importa. O que importa são o amor e o desejo. Aqui neste escuro é um lugar tão bom quanto qualquer outro. Melhor do que alguns, talvez.

 

Mike vai até ela, depois Richie, e o ato se repete. Agora ela sente algum prazer, um calor suave no órgão sexual imaturo e infantil, e fecha os olhos quando Stan vai até ela. Ela pensa nos pássaros, na primavera e nos pássaros, e os vê vezes seguidas, voando todos ao mesmo tempo, preenchendo as árvores sem folhas por causa do inverno, viajantes na onda da estação mais violenta da natureza, ela os vê levantando voo vezes seguidas, com o bater das asas como o estalo de muitos lençóis no varal, e pensa: Daqui a um mês, todos os garotos no Parque Derry estarão com uma pipa e vão correr para não emaranhar as linhas. Ela pensa de novo: Voar é assim.

 

Com Stan, assim como com os outros, há uma sensação lamentável de sumir, de ir embora, com o que quer que eles realmente precisem desse ato, perdido, ainda não encontrado.

 

— Você conseguiu? — pergunta ela de novo, e apesar de não saber exatamente o que quer saber, ela sabe que ele não conseguiu.

 

Há uma longa espera, e Ben vai até ela.

 

Ele está todo tremendo, mas não é o tremor de medo que ela sentiu em Stan.

 

— Beverly, eu não consigo — diz ele em um tom que finge lógica, mas não é.

 

— Consegue, sim. Estou sentindo.

 

Ela sente mesmo. Há mais nessa dureza, há mais dele. Ela consegue sentir embaixo da curva delicada da barriga dele. O tamanho desperta uma certa curiosidade, e ela toca de leve no volume. Ele geme contra o pescoço dela, e o sopro da respiração faz o corpo dela ficar todo arrepiado. Ela sente os primeiros fragmentos de calor verdadeiro percorrerem seu corpo; de repente, a sensação nela é muito grande. Ela reconhece que é grande demais

 

(e ele é grande demais, será que ela consegue recebê-lo dentro de si?)

 

e velho demais para ela, alguma coisa, algum sentimento que anda de botas. É como as M-80 de Henry, uma coisa que não foi feita para crianças, uma coisa que poderia explodir e partir você em pedacinhos. Mas aqui não era o lugar nem a hora para se preocupar; aqui havia amor, desejo e a escuridão. Se eles não fizessem pelas duas primeiras coisas, sem dúvida ficariam com a última.

 

— Beverly, não...

 

— Sim.

 

— Eu...

 

— Me mostra como voar — diz ela com uma calma que não sente, ciente pelo calor fresco e úmido na bochecha e pescoço que ele começou a chorar. — Me mostra, Ben.

 

— Não...

 

— Se você escreveu o poema, me mostra. Coloca a mão no meu cabelo se quiser, Ben. Está tudo bem.

 

— Beverly... eu... eu...

 

Ele não está apenas tremendo agora; está sacudindo por todo o corpo. Mas ela sente de novo que esses calafrios não são só medo; parte é o precursor do ápice do objetivo desse ato. Ela pensa no

 

(pássaro)

 

rosto dele, no rosto doce, sincero e querido, e sabe que não é medo; é desejo que ele sente, uma vontade profunda e apaixonada agora mal contida, e ela tem aquela sensação de poder de novo, uma coisa que parece voar, uma coisa que parece olhar bem do alto e ver todos os pássaros nos telhados, na antena de TV do Wally’s, ver as ruas espalhadas como em um mapa, ah, desejo, certo, isso era importante, eram amor e desejo que ensinavam você a voar.

 

— Ben! Sim! — diz ela de repente, e o controle é rompido.

 

Ela sente dor de novo, e por um momento há uma sensação assustadora de ser esmagada. Mas ele se apoia nas palmas das mãos e o sentimento some.

 

Ele é grande, ah, é sim. A dor volta, e é bem mais profunda do que quando Eddie a penetrou primeiro. Ela precisa morder o lábio de novo e pensar nos pássaros até a queimação sumir. Mas ela some, e ela consegue esticar a mão e tocar no lábio dele com um dos dedos, e ele geme.

 

O calor volta, e ela sente seu poder passar para ele de repente; ela o cede com alegria e vai junto. Há uma sensação de ser balançada, de uma doçura deliciosa e espiralada que a faz começar a virar a cabeça impotente de um lado para o outro, e um murmúrio sem melodia sair dos lábios fechados dela, esse voo, isso, ah, amor, ah, desejo, ah, isso é uma coisa impossível de se negar, prendendo, dando, formando um círculo forte: prendendo, dando... voando.

 

— Ah, Ben, ah, meu querido, sim — sussurra ela, sentindo o suor no rosto, sentindo a ligação deles, uma coisa firmemente no lugar, uma coisa como a eternidade, o número 8 deitado de lado. — Eu te amo tanto, querido.

 

E ela sente a coisa começar a acontecer, uma coisa sobre a qual as garotas que sussurram e riem sobre sexo no banheiro das meninas não fazem a menor ideia, pelo menos até onde ela sabe; elas só ficam impressionadas com o quanto o sexo deve ser esquisito, e agora ela percebe que para muitas delas o sexo deve ser um monstro indefinido e não realizado; elas se referem ao ato como Aquilo. Você faria Aquilo, sua irmã e o namorado fazem Aquilo, sua mãe e seu pai ainda fazem Aquilo, e dizem que nunca pretendem fazer Aquilo; ah, sim, era de se pensar que toda a turma de quinto ano era feita de futuras solteironas, e está óbvio para Beverly que nenhuma delas consegue desconfiar disso... dessa conclusão, e ela só não grita porque sabe que os outros vão ouvir e pensar que ela está muito machucada. Ela coloca a lateral da mão na boca e morde com força. Ela entende melhor a gargalhada espalhafatosa de Greta Bowie e Sally Mueller agora: os sete não tinham passado a maior parte do verão mais longo e assustador da vida deles rindo como malucos? Você ri porque o que provoca medo e é desconhecido também é engraçado, você ri como uma criancinha ri e chora ao mesmo tempo às vezes, quando um palhaço cabriolante de circo se aproxima, sabendo que é para ser engraçado... mas também é desconhecido, cheio do poder eterno do desconhecido.

 

Morder a mão não segura o grito, e ela só pode tranquilizá-los (e a Ben) gritando uma afirmativa na escuridão.

 

— Sim! Sim! Sim!

 

Imagens gloriosas enchem a cabeça dela e se misturam com os gritos das gralhas e dos estorninhos; esses sons se tornam a música mais doce do mundo.

 

Assim, ela voa, sai voando, e agora o poder não está com ela nem com ele, mas em algum lugar entre os dois, e ele grita, e ela consegue sentir os braços dele tremendo, e ela se arqueia na direção dele, sentindo o espasmo, o toque, a intimidade total dele com ela no escuro. Eles explodem na luz da vida juntos.

 

E então, acaba, e eles estão nos braços um do outro, e quando ele tenta dizer alguma coisa, talvez um pedido de desculpas idiota que estragaria o que ela lembra, um pedido de desculpas idiota como uma algema, ela interrompe as palavras dele com um beijo e o afasta.

 

Bill vem até ela.

 

Ele tenta dizer alguma coisa, mas a gagueira é quase total agora.

 

— Fica quieto — diz ela, segura com o novo conhecimento, mas ciente de que está cansada agora. Cansada e muito dolorida. As partes de dentro e de trás de suas coxas estão grudentas, e ela pensa que talvez seja porque Ben foi até o fim, ou talvez por ela estar sangrando. — Tudo vai ficar bem.

 

— T-T-Tem c-c-c-c-certeza?

 

— Tenho — diz ela, e junta as mãos atrás do pescoço dele, sentindo o cabelo suado. — Pode apostar.

 

— D-D-D... D-D-D...

 

— Shhh...

 

Não é como foi com Ben; há paixão, mas não do mesmo tipo. Estar com Bill agora é a melhor conclusão que poderia haver. Ele é gentil, delicado, quase calmo. Ela sente a ansiedade dele, mas é uma ansiedade controlada pela preocupação com ela, talvez porque só Bill e ela percebam a enormidade do ato e o fato de que jamais deve ser mencionado, nem para ninguém nem entre eles.

 

No final, ela é surpreendida por aquele aumento repentino e tem tempo de pensar: Ah! Vai acontecer de novo, não sei se consigo suportar...

 

Mas os pensamentos dela são levados pela doçura do ato, e ela quase não o escuta dizendo “Eu te amo, Bev, eu te amo, sempre vou te amar”, dizendo sem parar e sem gaguejar nada.

 

Ela o abraça para perto, e por um momento eles ficam assim, com a bochecha macia dele na dela.

 

Ele sai dela sem dizer nada, e por um tempo ela fica sozinha, reunindo as roupas, vestindo lentamente, ciente de um latejar doloroso que eles, por serem homens, jamais vão entender, ciente também de um certo prazer exausto e do alívio de ter acabado. Há um vazio lá embaixo agora, e apesar de ela estar feliz de ter seu sexo para si de novo, o vazio desperta uma melancolia estranha que ela jamais conseguiria expressar... a não ser para pensar em árvores nuas debaixo de um céu branco de inverno, árvores vazias, árvores esperando melros aparecerem como pastores no final de março para celebrar a morte da neve.

 

Ela os encontra tateando em busca das mãos deles.

 

Por um momento, ninguém fala, e quando alguém fala, ela não fica surpresa em ver que é Eddie.

 

— Acho que, quando dobramos pra direita duas viradas atrás, devíamos ter ido pra esquerda. Caramba, eu sabia disso, mas estava tão suado e nervoso...

 

— Você está nervoso a vida toda, Eds — diz Richie. A voz dele está agradável. O tom de pânico sumiu completamente.

 

— Entramos errado em outros lugares também — diz Eddie, ignorando-o —, mas esse foi o pior. Se conseguirmos achar o caminho de volta, acho que vamos ficar bem.

 

Eles formam uma fila desajeitada, com Eddie na frente, Beverly atrás agora, com a mão no ombro de Eddie, assim como a de Mike está no dela. Eles começam a andar mais rápido desta vez. Eddie não age com o nervosismo de antes.

 

Estamos indo pra casa, pensa ela, e treme de alívio e alegria. Pra casa, sim. E isso vai ser bom. Fizemos nosso trabalho, o que viemos fazer, e agora podemos voltar a ser crianças. E isso também vai ser bom.

 

Enquanto eles andam pelo escuro, ela percebe que o som de água corrente está mais próximo.

 

Para fora

Derry — 9h/10h

 

Às 9h10, a velocidade do vento em Derry é registrada em uma média de 88,5 quilômetros por hora, com rajadas de até 112. O anemômetro do fórum registrou uma rajada de 130, e depois a agulha despencou até o zero. O vento arrancou o aparato em forma de cúpula do telhado do fórum, e ele saiu voando pela escuridão molhada do dia. Como o barco de George Denbrough, nunca mais foi visto. Às 9h30, a coisa que o Departamento de Águas de Derry jurava ser impossível parecia agora não só possível, mas iminente: o centro de Derry seria alagado pela primeira vez desde agosto de 1958, quando muitos dos bueiros antigos ficaram entupidos ou desmoronaram durante uma tempestade horrível. Às 9h45, homens com expressões sombrias chegavam em carros e picapes nos dois lados do canal, com as roupas de chuva tremendo loucamente no vento. Pela primeira vez desde outubro de 1957, sacos de areia foram empilhados nas laterais de cimento do canal. O arco pelo qual o canal passava por baixo da interseção de três ruas no coração do centro de Derry estava cheio até quase o topo; a rua Main, a rua Canal e a base da colina Up-Mile estavam intransitáveis exceto a pé, e os que passavam por ali para executar a operação dos sacos de areia sentiam as ruas abaixo dos pés tremendo com o fluxo frenético de água, assim como um viaduto treme quando caminhões grandes passam uns pelos outros. Mas era uma vibração regular, e os homens ficaram felizes de estarem no lado norte do centro, longe do tremor mais sentido do que ouvido. Harold Gardener gritou para Alfred Zitner, que era dono da Imobiliária Zitner do lado oeste da cidade, e perguntou se as ruas iam desmoronar. Zitner disse que o inferno congelaria antes de uma coisa assim acontecer. Harold teve uma breve imagem de Adolf Hitler e Judas Iscariotes distribuindo patins de gelo e continuou a arrumar sacos de areia. A água estava agora a menos de 8 centímetros da beirada de cimento do canal. No Barrens, o Kenduskeag já estava além das margens, e ao meio-dia a vegetação rica e os arbustos estariam aparecendo em um lago enorme, raso e fedorento. Os homens continuaram a trabalhar, fazendo pausas só quando o suprimento de sacos de areia acabava... e então, às 10h10, foram paralisados por um enorme som de rasgo. Harold Gardener contou à mulher mais tarde que achou que talvez fosse o fim do mundo. Não era o centro da cidade desmoronando na terra, não naquele momento, era a Torre de Água. Só Andrew Keene, o neto de Norbert Keene, viu acontecer, e ele tinha fumado tanta maconha colombiana naquela manhã que a princípio achou que devia ser alucinação. Ele estava vagando pelas ruas tomadas pela tempestade de Derry desde 8h, mais ou menos a mesma hora em que o dr. Hale subia para exercer medicina no céu. Ele estava encharcado até a alma (exceto pelo saco de 60 gramas de erva guardado debaixo da axila, na verdade), mas totalmente alheio a isso. Seus olhos se arregalaram de incredulidade. Ele tinha chegado ao Parque Memorial, que ficava na lateral da colina da Torre de Água. E a não ser que estivesse enganado, a Torre de Água agora estava claramente inclinada, como aquela torre fodida de Pisa que enfeitava todas as caixas de macarrão. “Ah, uau”, gritou Andrew Keene, arregalando ainda mais os olhos (eles pareciam estar presos em molas pequenas e firmes agora) quando o som de coisa quebrando começou. A inclinação da Torre de Água ficava mais e mais pronunciada enquanto ele estava ali, com a calça jeans grudada em pernas magrelas e a faixa de cabelo xadrez encharcada pingando água em seus olhos. Telhas brancas estavam caindo no lado virado para o centro da grande caixa-d’água redonda... não, não exatamente caindo; parecia mais que estavam jorrando. E uma dobra evidente surgiu 6 metros acima da base de pedra da Torre de Água. Água começou a jorrar por essa dobra, e agora as telhas não estavam jorrando pelo lado virado para o centro da cidade; elas estavam voando no vento. Um som de rasgo começou a sair da Torre de Água, e Andrew conseguia vê-la se movendo, como o ponteiro de um relógio enorme passando do 12 para o um e para o dois. O saco de maconha caiu da axila dele e prendeu em alguma parte da camisa perto do cinto. Ele não reparou. Estava totalmente arrebatado. Sons altos de vibração saíam de dentro da Torre de Água, como se as cordas do maior violão do mundo estivessem sendo arrebentadas uma a uma. Havia cabos dentro do cilindro, que forneciam o equilíbrio necessário contra a pressão da água. A Torre de Água começou a cair cada vez mais rápido, com tábuas e vigas se partindo, pedaços pulando e girando no ar. “QUE DEMAAAAAIS, PORRAAAA”, gritou Andrew Keene, mas o grito ficou perdido na queda final estrondosa da Torre e pelo som crescente de um milhão e 750 mil galões de água, 7 mil toneladas de água, jorrando do lado rasgado da construção. Ela desceu em uma onda cinza de maremoto, e é claro que, se Andrew Keene estivesse no lado de baixo da Torre, ele teria partido do mundo na mesma hora. Mas Deus favorece os bêbados, as crianças pequenas e os profundamente entorpecidos; Andrew estava em um lugar de onde conseguia ver tudo, mas não ser tocado por uma única gota. “QUE EFEITOS ESPECIAIS FODAS!”, gritou Andrew quando a água rolou pelo Parque Memorial como uma coisa sólida, levando consigo o relógio solar ao lado do qual um garotinho chamado Stan Uris costumava ficar vendo os pássaros com o binóculo do pai. “STEVEN SPIELBERG, MORRA DE INVEJA!” O bebedouro de pássaros de pedra também foi junto. Andrew o viu por um momento girando, com o pedestal no lugar da tigela e a tigela no lugar do pedestal, mas logo ele sumiu. Uma fileira de bordos e bétulas que separavam o Parque Memorial da rua Kansas foi derrubada, como pinos em uma pista de boliche. Eles levaram junto pedaços vivos de fios de eletricidade. A água rolou pela rua e começou a se espalhar, começou a parecer mais água do que o bizarro muro sólido que derrubou o relógio solar, o bebedouro de pássaros e as árvores, mas ainda tinha força o bastante para levar para o Barrens umas dez casas no lado mais distante da rua Kansas. Elas se soltaram com facilidade apavorante, a maioria ainda inteira. Andrew Keene reconheceu uma delas como sendo da família de Karl Massensik. O sr. Massensik foi seu professor do sexto ano, um chato. Quando a casa passou pela beirada e caiu no barranco, Andrew percebeu que ainda conseguia ver uma vela acesa em uma janela e perguntou-se brevemente se poderia estar tendo um desvio mental. Houve uma explosão no Barrens e um jorro de chamas amarelas quando o lampião a gás Coleman de alguém botou fogo em óleo que escorria de um tanque rachado. Andrew olhou para o lado mais distante da rua Kansas, onde até quarenta segundos atrás havia uma fileira arrumada de casas de classe média. Ali era a Cidade Perdida agora, e era melhor você acreditar, docinho. Nos lugares havia dez buracos de porão que pareciam piscinas. Andrew teve vontade de emitir a opinião de que isso era demais, mas não conseguia mais gritar. Parecia que seu gritador estava quebrado. Seu diafragma parecia fraco e inútil. Ele ouviu uma série de baques esmagadores, o som de um gigante com os sapatos cheios de cream crackers descendo um lance de escadas. Era a Torre de Água rolando colina abaixo, um enorme cilindro branco ainda derramando o final do suprimento de água, com os cabos grossos que ajudavam a sustentá-lo voando no ar e estalando como chicotes de aço, marcando a terra macia que imediatamente se enchia da água da chuva. Enquanto Andrew observava com o queixo apoiado no peito, a Torre de Água, horizontal agora, com mais de 40 metros de comprimento, voou no ar. Por um momento, pareceu congelar ali, uma imagem surreal saída diretamente de uma terra de paredes de borracha e camisas de força, com chuva brilhando nas laterais destruídas, as janelas quebradas, as molduras penduradas, com a luz do alto que servia de aviso para aviões voando baixo ainda piscando, e então caiu na rua com um estrondo final. A rua Kansas tinha canalizado boa parte da água, e agora ela começou a correr na direção do centro pela colina Up-Mile. Tinha casas ali, pensou Andrew Keene, e de repente toda a força sumiu de suas pernas. Ele se sentou pesadamente, splash. Ficou olhando para a base quebrada de pedra na qual a Torre de Água esteve durante toda sua vida. Ele se perguntou se alguém acreditaria nele.

 

Ele se perguntou se acreditava em si mesmo.

 

A morte — 10h02 do dia 31 de maio de 1985

 

Bill e Richie viram a Coisa se virar na direção deles, com as mandíbulas abrindo e fechando, o olho bom olhando com raiva para eles, e Bill percebeu que a Coisa emitia sua própria fonte de iluminação, como um tipo pavoroso de vaga-lume. Mas a luz estava trêmula e incerta; a Coisa estava muito ferida. Seus pensamentos zumbiam e saltavam

 

(me soltem! me soltem e vocês podem ter tudo que sempre quiseram, dinheiro, fama, fortuna, poder, eu posso dar essas coisas pra vocês)

 

na cabeça dele.

 

Bill seguiu em frente de mãos vazias e com os olhos fixos no vermelho da Coisa. Ele sentiu o poder crescendo dentro de si, envolvendo-o, enchendo seus braços de músculos, enchendo cada punho fechado de força. Richie andou ao lado dele, com os lábios repuxados sobre os dentes.

 

(posso devolver sua esposa, eu consigo, só eu, ela não vai se lembrar de nada, assim como vocês sete não se lembravam)

 

Eles estavam perto, muito perto agora. Bill conseguia sentir o fedor da Coisa e percebeu com horror repentino que era o cheiro do Barrens, o cheiro que eles associavam ao esgoto e riachos poluídos e ao lixo queimado... mas será que eles acreditavam mesmo que era só isso? Era o cheiro da Coisa, e talvez fosse mais forte no Barrens, mas ele pairava por toda a Derry como uma nuvem, e as pessoas não sentiam, assim como cuidadores em zoológicos não sentem mais o cheiro dos animais depois de um tempo, ou até se questionam por que os visitantes torcem o nariz quando entram.

 

— Nós dois — murmurou ele para Richie, e Richie assentiu sem tirar os olhos da Aranha, que agora estava se afastando deles, com as pernas compridas e abomináveis estalando, finalmente encurralada.

 

(não posso dar a vocês vida eterna, mas posso tocar vocês, e vocês vão viver vidas longas, de duzentos anos, trezentos, talvez quinhentos, posso tornar vocês deuses na Terra, se vocês me soltarem se vocês me soltarem se vocês me...)

 

— Bill? — perguntou Richie com voz rouca.

 

Com um grito crescendo dentro dele, crescendo mais, mais e mais, Bill atacou. Richie correu com ele passo a passo. Eles atacaram juntos com os punhos direitos, mas Bill entendeu que não era realmente com os punhos que eles estavam batendo; era com a força combinada deles, aumentada pela força daquele Outro; era a força da lembrança e do desejo; acima de tudo, era a força do amor e da infância não esquecida como uma grande roda.

 

O grito da Aranha encheu a cabeça de Bill, parecendo fazer seus miolos explodirem. Ele sentiu seu punho mergulhar na umidade que se contorcia. Seu braço entrou até o ombro. Ele puxou de volta, pingando do sangue preto da aranha. Icor pingava do buraco que ele fez.

 

Ele viu Richie de pé quase abaixo do corpo inchado da Coisa, coberto com o sangue preto brilhante, de pé na pose clássica do boxeador, com os punhos pingando e bombeando.

 

A Aranha os atacou com as pernas. Bill sentiu uma delas rasgar sua lateral, a camisa e a pele. O ferrão da Coisa batia inutilmente no chão. Os gritos dela eram trombetas em sua cabeça. Ela atacou desajeitada, tentando mordê-lo, mas em vez de recuar, Bill seguiu em frente, usando não só o punho agora, mas o corpo todo, se transformando em um torpedo. Ele correu para as entranhas da Aranha como jogador de futebol americano que baixa os ombros e simplesmente segue em frente com tudo.

 

Por um momento, ele sentiu a carne fedida da Coisa simplesmente ceder, como se ela fosse ricochetear e jogá-lo longe. Com um grito inarticulado, ele se lançou com mais força, empurrando para a frente e para cima com as pernas, atacando a Coisa com as mãos. E ele rompeu a barreira e foi inundado pelos fluidos quentes dela. Escorreram pelo rosto dele, pelas orelhas. Ele os inspirou em jatos finos.

 

Ele estava no escuro de novo, até os ombros dentro do corpo em convulsão da Coisa. E em seus ouvidos tapados, ele conseguia ouvir um som regular de whack-WHACK-whack-WHACK, como o pulsar firme de um tambor, o que lidera a parada quando o circo chega na cidade com o grupo de aberrações e palhaços fazendo cabriolas.

 

O som do coração da Coisa.

 

Ele ouviu Richie gritar de dor repentina, um som que virou um gemido rápido e ofegante e foi interrompido. Bill empurrou de repente as duas mãos fechadas. Ele estava sufocando, sem respirar nas entranhas da Coisa.

 

Whack-WHACK-whack-WHACK...

 

Ele enfiou as mãos na Coisa, arrancando, puxando, rasgando, procurando a fonte do som; destruindo órgãos, com os dedos grudentos abrindo e fechando, o peito trancado parecendo inchar pela falta de ar.

 

Whack-WHACK-whack-WHACK...

 

E de repente ele estava nas mãos de Bill, uma grande coisa viva que bombeava e pulsava em suas mãos, empurrando as palmas para a frente e para trás.

 

(NÃONÃONÃONÃONÃONÃONÃO)

 

Sim!, gritou Bill, se engasgando, se afogando. Sim! Experimenta isso, sua vaca! EXPERIMENTA ISSO! ESTÁ GOSTANDO? ESTÁ AMANDO? ESTÁ?

 

Ele entrelaçou os dedos sobre o arco pulsando do coração da Coisa, com as mãos abertas em um V invertido, e as uniu com toda a força que conseguiu reunir.

 

Houve um grito final de dor e medo quando o coração da Coisa explodiu entre suas mãos, escorrendo entre os dedos dele em filetes grudentos.

 

Whack-WHACK-whack-WHA

 

O grito sumindo, ficando fraco. Bill sentiu o corpo da Coisa se contrair ao redor dele de repente, como um punho em uma luva. E então, tudo se afrouxou. Ele percebeu que o corpo da Coisa estava se inclinando, escorregando lentamente para um lado. Ao mesmo tempo, ele começou a recuar e a ficar inconsciente.

 

A Aranha desabou de lado, uma enorme pilha de carne alienígena fumegante, com as pernas ainda tremendo e se contorcendo, acariciando as laterais do túnel e arranhando o chão em padrões aleatórios.

 

Bill cambaleou para longe, respirando com dificuldade, cuspindo para tentar limpar a boca do gosto horrível da Coisa. Ele tropeçou nos próprios pés e caiu de joelhos.

 

E ele ouviu claramente a Voz do Outro; a Tartaruga podia estar morta, mas o que a tinha criado não estava.

 

— Filho, você foi muito bem.

 

E então, sumiu. O poder foi junto. Ele sentiu-se fraco, enojado, meio ensandecido. Bill olhou por cima do ombro e viu o pesadelo preto morto que era a Aranha, ainda tremendo.

 

— Richie! — gritou ele com voz rouca e falha. — Richie, onde você está, cara?

 

Nenhuma resposta.

 

A luz tinha sumido agora. Ela morreu junto com a Aranha. Ele remexeu no bolso da camisa grudenta em busca da última carteira de fósforos. Ali estava ela, mas eles não se acenderiam; as cabeças estavam encharcadas de sangue.

 

— Richie! — gritou ele de novo, começando a chorar agora. Ele começou a engatinhar, primeiro uma das mãos e depois a outra tateando no escuro. finalmente uma delas atingiu alguma coisa que afundou ao toque dele. Suas mãos tatearam a forma... e pararam ao tocar o rosto de Richie.

 

— Richie! Richie!

 

Nenhuma resposta. Lutando no escuro, Bill passou um braço debaixo das costas de Richie e o outro debaixo dos joelhos. Ele cambaleou até ficar de pé e começou a andar pelo caminho de antes, agora com Richie nos braços.

 

Derry — 10h/10h15

 

Às 10h, as vibrações regulares que percorriam as ruas do centro de Derry aumentaram para um rugido violento. O Derry News mais tarde escreveria que os apoios da parte subterrânea do canal, enfraquecidos pelo ataque selvagem do que foi uma enchente em tempo recorde, simplesmente desabaram. Mas havia pessoas que discordavam dessa visão. “Eu estava lá, eu sei”, disse Harold Gardener mais tarde para a esposa. “Não foi só que os apoios do canal desabaram. Foi um terremoto, nada menos do que isso. Foi uma porra de terremoto.”

 

De qualquer modo, os resultados foram os mesmos, quando o rugido foi crescendo, janelas começaram a se estilhaçar, tetos de gesso passaram a cair e o grito inumano de vigas e bases se torcendo cresceu até virar um coral assustador. Rachaduras subiram pela fachada de tijolos cheia de buracos de bala da Machen’s como mãos tateando. Os cabos sustentando a marquise do Cinema Aladdin sobre a rua se romperam, e a marquise desabou. A travessa Richard, que passava atrás da Centre Street Drug, se encheu de repente de uma avalanche de tijolos amarelos quando o Brian X Dowd Professional Building, erigido em 1952, despencou. Uma camada enorme de poeira amarelada subiu no ar e foi arrancada como um véu.

 

Ao mesmo tempo, a estátua de Paul Bunyan na frente do City Center explodiu. Foi como se a ameaça antiga daquela professora de arte de explodi-la tivesse finalmente se mostrado ser séria. A cabeça barbada e sorridente subiu no ar. Uma perna seguiu para a frente e outra para trás, como se Paul tivesse tentado alguma espécie de espacate tão entusiasmado que resultou em desmembramento. O tronco da estátua explodiu em uma nuvem de detritos, e a cabeça do machado de plástico subiu no céu chuvoso, desapareceu e voltou a cair, girando sem parar. Ela caiu pelo telhado da Ponte do Beijo e depois atravessou o piso.

 

E então, às 10h02, o centro de Derry simplesmente desmoronou.

 

A maior parte da água da Torre de Água tombada atravessou a rua Kansas e foi parar no Barrens, mas toneladas correram para o centro financeiro pela colina Up-Mile. Talvez tenha sido a gota d’água... ou talvez, como Harold Gardener contou à mulher, tenha havido mesmo um terremoto. Rachaduras surgiram na superfície da rua Main. Eram estreitas no começo... mas logo começaram a se abrir como bocas famintas, e o som do canal subiu, não abafado agora, mas assustadoramente alto. Tudo começou a tremer. A placa de néon proclamando uma PONTA DE ESTOQUE DE SAPATOS em frente à loja de souvenires de Shorty Squires bateu na rua e entrou em curto em 90 centímetros de água. Um momento ou dois depois, o prédio de Shorty, que ficava ao lado do Mr. Paperback, começou a descer. Buddy Angstrom foi o primeiro a ver esse fenômeno. Ele cutucou Alfred Zitner, que olhou, ficou boquiaberto, e cutucou Harold Gardener. Em um espaço de segundos, a operação sacos de areia parou. Os homens dos dois lados do canal só ficaram olhando na direção do centro sob a chuva forte, com os rostos tomados de expressões idênticas de surpresa horrorizada. A Squire’s Souvenirs and Sundries parecia estar sobre um enorme elevador que agora estava descendo. Ela afundou no concreto aparentemente sólido com dignidade altiva. Quando o prédio parou, dava para ficar de quatro na calçada alagada e entrar por uma das janelas do terceiro andar. Água voava ao redor do prédio, e um momento depois o próprio Shorty apareceu no telhado, balançando os braços loucamente para ser resgatado. Mas foi pulverizado quando o prédio de escritórios ao lado, o que tinha a loja Mr. Paperback no térreo, também afundou. Infelizmente, esse não desceu reto como o de Shorty; o prédio do Mr. Paperback começou a se inclinar (por um momento, na verdade, ficou mesmo muito parecida com a torre fodida de Pisa, a das caixas de macarrão). Enquanto se inclinava, tijolos começaram a voar do alto e das laterais. Shorty foi atingido por vários. Harold Gardener o viu recuar com as mãos na cabeça... e então, os três andares mais altos do prédio do Mr. Paperback deslizaram como panquecas do alto de uma pilha. Shorty desapareceu. Alguém na fila de sacos de areia gritou, e então tudo foi perdido no rugido implacável da destruição. Homens foram derrubados ou empurrados para longe do canal. Harold Gardener viu os prédios virados uns para os outros na rua Main se inclinarem para a frente, como damas fazendo reverências em um jogo de cartas, com as cabeças quase se tocando. A própria rua estava afundando, rachando, se partindo. Água voou e jorrou. E então, um após o outro, prédios dos dois lados da rua simplesmente passaram de seus centros de gravidade e caíram na rua: o Northeast Bank, o Shoeboat, Alvey’s Smokes ’n Jokes, Bailley’s Lunch, Bandler’s Record and Music Barn. Só que, àquela altura, não havia mais rua onde cair. A rua tinha caído no canal, esticando-se como caramelo no começo e se partindo em pedaços de asfalto. Harold viu a ilha no meio da interseção das três ruas sumir de repente, e quando a água começou a jorrar como um gêiser, ele de repente entendeu o que aconteceria.

 

— A gente tem que sair daqui! — gritou ele para Al Zitner. — Vai dar refluxo! Al! Vai dar refluxo!

 

Al Zitner não deu sinal de ter ouvido. O rosto dele era o de um sonâmbulo, ou talvez de um homem que foi profundamente hipnotizado. Ele ficou ali com o casaco xadrez vermelho e azul encharcado, com a camisa Lacoste aberta com o jacarezinho no peito esquerdo, de meias azuis com os tacos de golfe cruzados bordados nas laterais, os sapatos L. L. Beans com solas de borracha. Ele estava olhando talvez um milhão de dólares de seus investimentos pessoais afundando na rua, três ou quatro milhões dos amigos dele, os caras com quem ele jogava pôquer, jogava golfe, esquiava na casa compartilhada de Rangely. De repente, sua cidade, Derry, Maine, pelo amor de Deus, parecia bizarramente aquela cidade fodida em que crianças orientais empurravam as pessoas nas canoas finas e longas. Água corria e borbulhava entre prédios que ainda estavam de pé. A rua Canal terminava em uma plataforma de mergulho preta e irregular que dava em um lago em movimento. Não era surpresa Zitner não ter ouvido Harold. Mas outros chegaram à mesma conclusão de Gardener; não dava para jogar tanta merda em um corpo de água furioso sem provocar muita confusão. Alguns largaram os sacos de areia que estavam segurando e saíram correndo. Harold Gardener foi um desses, e foi assim que sobreviveu. Outros não tiveram tanta sorte e ainda estavam na área geral quando o canal, com a passagem agora bloqueada com toneladas de asfalto, concreto, tijolos, gesso, vidro e uns quatro milhões de dólares em mercadorias variadas, voltou e derramou por cima da margem de concreto, carregando homens e sacos de areia, imparcialmente. Harold ficava pensando que a água pretendia pegá-lo; não importava o quanto ele corria rápido, a água continuava se aproximando. Ele finalmente escapou ao subir um barranco íngreme coberto de arbustos agarrando-se com as mãos. Ele olhou para trás uma vez e viu um homem que pensou ser Roger Lernerd, o gerente de empréstimos da cooperativa de Harold, tentando ligar o carro no estacionamento do Canal Mini-Mall. Mesmo acima do rugido da água e dos gritos do vento, Harold conseguiu ouvir o motorzinho de máquina de costura do carro girando, girando e girando enquanto água preta corria alta nos dois lados dele. E então, com um grito profundo e trovejante, o Kenduskeag transbordou de suas margens e levou tanto o Canal Mini-Mall quanto o Chevrolet vermelho de Roger Lernerd. Harold voltou a subir, agarrando galhos, raízes, qualquer coisa que parecesse sólida o bastante para aguentar seu peso. Terreno alto, esse era o segredo. Como Andrew Keene poderia ter dito, Harold Gardener entendeu bem o conceito de terreno alto naquela manhã. Atrás dele, ele conseguia ouvir o centro de Derry ainda desabando. O som era como fogo de artilharia.

 

Bill

 

— Beverly! — gritou ele. Suas costas e seus braços eram uma dor sólida e latejante. Richie agora parecia pesar pelo menos 230 quilos. Coloca ele no chão, sussurrou sua mente. Ele está morto, você sabe muito bem disso, então por que não coloca ele no chão?

 

Mas ele não queria, não podia fazer isso.

 

— Beverly! — gritou ele. — Ben! Alguém!

 

Ele pensou: Foi aqui que a Coisa me jogou, e a Richie, mas ela nos jogou mais longe, bem mais longe. Como foi? Estou perdendo, esquecendo...

 

— Bill? — Era a voz de Ben, trêmula e exausta, em algum lugar ali perto. — Onde você está?

 

— Aqui, cara. Estou com Richie. Ele... está machucado.

 

— Fica falando. — Ben estava mais perto agora. — Fica falando, Bill.

 

— A gente matou a Coisa — disse Bill, andando na direção de onde vinha a voz de Ben. — A gente matou a puta. E se Richie estiver morto...

 

— Morto? — gritou Ben, alarmado. Ele estava bem perto agora... e sua mão saiu do escuro e bateu no nariz de Bill. — Como assim, morto?

 

— Eu... ele... — Eles estavam sustentando Richie juntos agora. — Não consigo ver ele — disse Bill. — Esse é o problema. Eu n-n-não c-c-consigo v-v-ver e-e-ele!

 

— Richie! — gritou Ben, e balançou-o. — Richie, anda! Acorda, porra! — A voz de Ben estava ficando falha e trêmula. — RICHIE, QUER FAZER O FAVOR DE ACORDAR, PORRA?

 

E, no escuro, Richie disse com voz sonolenta e irritada de quem acabou de sair do sono.

 

— Tudubem, Monte de Feno. Tudubem. A gente não precisa de distintivos...

 

— Richie! — gritou Bill. — Richie, você está bem?

 

— A vaca me jogou — murmurou Richie com a mesma voz cansada de quem acabou de acordar. — Bati em alguma coisa dura. É tudo... de que me lembro. Onde está Bevvie?

 

— Por aqui — disse Ben. Rapidamente, ele contou sobre os ovos. — Pisei em uns cem. Acho que acabei com todos.

 

— Rezo pra Deus que sim — disse Richie. Ele estava começando a soar melhor. — Me coloca no chão, Big Bill. Consigo andar... A água está mais alta?

 

— Está — disse Bill. Os três estavam de mãos dadas no escuro. — Como está sua cabeça?

 

— Doendo pra caramba. O que aconteceu depois que apaguei?

 

Bill contou a eles o tanto quanto conseguiu.

 

— E a Coisa está morta — disse Richie, assombrado. — Tem certeza, Bill?

 

— Tenho — disse Bill. — Desta vez, tenho certeza a-absoluta.

 

— Graças a Deus — disse Richie. — Me segura, Bill, tenho que vomitar.

 

Bill segurou, e quando Richie terminou, eles seguiram andando. De vez em quando, o pé dele batia em alguma coisa áspera que rolava para a escuridão. Partes dos ovos da Aranha que Ben tinha despedaçado, supunha ele, e tremeu. Era bom saber que eles estavam indo na direção certa, mas ele também estava feliz por não conseguir ver os restos.

 

— Beverly! — gritou Ben. — Beverly!

 

— Aqui...

 

O grito dela foi baixo, quase perdido no rugido firme da água. Eles seguiram no escuro, gritando para ela sem parar, concentrando-se nela.

 

Quando finalmente chegaram nela, Bill perguntou se ela ainda tinha algum fósforo. Ela colocou meia caixa na mão dele. Ele acendeu um e viu os rostos deles ganharem uma vida fantasmagórica: Ben com o braço ao redor de Richie, que estava curvado, com sangue escorrendo pela têmpora direita, Beverly com a cabeça de Eddie no colo. Ele virou para o outro lado. Audra estava caída e encolhida nas pedras, com as pernas espalhadas, a cabeça virada para o outro lado. A teia tinha quase toda derretido dela.

 

O fósforo queimou seu dedo, e ele o deixou cair. Na escuridão, ele avaliou mal a distância, tropeçou nela e quase caiu esparramado no chão.

 

— Audra! Audra, você consegue m-me o-o-ouvir?

 

Ele passou um braço pelas costas dela e a fez sentar. Passou a mão pelo cabelo dela e apertou os dedos na lateral do pescoço. A pulsação dela estava lá: um batimento lento e regular.

 

Ele acendeu outro fósforo, e quando a chama subiu, ele viu as pupilas dela se contraírem. Mas essa era uma função involuntária; a direção do olhar dela não mudou, mesmo quando ele levou o fósforo para perto do rosto dela a ponto de deixar a pele avermelhada. Ela estava viva, mas não reagindo. Merda, era pior do que isso e ele sabia. Ela estava catatônica.

 

O segundo fósforo queimou seus dedos. Ele o balançou.

 

— Bill, não estou gostando do som daquela água — disse Ben. — Acho que é melhor a gente sair daqui.

 

— Como vamos fazer isso sem Eddie? — murmurou Richie.

 

— A gente consegue — disse Bev. — Bill, Ben está certo. A gente tem que sair.

 

— Eu vou levar ela.

 

— É claro. Mas a gente tem que ir agora.

 

— Pra que lado?

 

— Você vai saber — disse Beverly suavemente. — Você matou a Coisa. Você vai saber, Bill.

 

Ele pegou Audra no colo como tinha pegado Richie e foi até os outros. A sensação dela nos braços foi incômoda, pavorosa; ela parecia uma boneca de cera que respirava.

 

— Pra que lado, Bill? — perguntou Ben.

 

— Eu n-n-não...

 

(você vai saber, você matou a Coisa e vai saber)

 

— V-Vamos — disse Bill. — Vamos ver se conseguimos encontrar a saída. Beverly, p-p-pega isso. — Ele entregou os fósforos para ela.

 

— E Eddie? — perguntou ela. — Temos que tirar ele daqui.

 

— C-Como? — perguntou Bill. — Está... B-Beverly, o l-local está d-desmoronando.

 

— A gente tem que tirar ele daqui, cara — disse Richie. — Vem, Ben.

 

Eles juntos conseguiram levantar o corpo de Eddie. Beverly acendeu o caminho até a porta de contos de fadas. Bill levou Audra por ela, segurando-a acima do chão o melhor que conseguiu. Richie e Ben carregaram Eddie.

 

— Coloca ele no chão — disse Beverly. — Ele pode ficar aqui.

 

— Está escuro demais — soluçou Richie. — Vocês sabem... está escuro demais. Eds... ele...

 

— Não, tudo bem — disse Ben. — Talvez seja aqui que ele tem que ficar. Acho que pode ser.

 

Eles o colocaram no chão, e Richie beijou a bochecha de Eddie. Em seguida, olhou cegamente para Ben.

 

— Tem certeza?

 

— Tenho. Vem, Richie.

 

Richie se levantou e se virou na direção da porta.

 

— Foda-se, sua Puta! — gritou ele de repente, e chutou a porta com o pé. Ela fez um estalo sólido ao se fechar e travar.

 

— Por que você fez isso? — perguntou Beverly.

 

— Não sei — disse Richie, mas ele sabia bem. Ele olhou por cima do ombro na hora que o fósforo que Beverly estava segurando se apagou.

 

— Bill... a marca na porta?

 

— O que tem? — ofegou Bill.

 

Richie disse:

 

— Sumiu.

 

Derry — 10h30

 

O corredor de vidro ligando a biblioteca adulta à infantil explodiu de repente em um brilho único de luz. Vidro voou em formato de guarda-chuva, chiando pelas árvores repuxadas pelo vento que cobriam o terreno da biblioteca. Alguém poderia ter se machucado gravemente ou até sido morto por um fogo cerrado tão mortal, mas não havia ninguém ali, nem dentro, nem fora. A biblioteca não tinha sido aberta naquele dia. O túnel que tanto fascinou Ben Hanscom quando criança jamais seria substituído; houve tanta destruição cara em Derry que pareceu mais simples deixar as duas bibliotecas como prédios separados e desconectados. Com o tempo, ninguém da Câmara Municipal de Derry conseguiria lembrar para que servia aquele tubo de vidro. Talvez só Ben pudesse dizer realmente para eles como era ficar de pé do lado de fora no frio imóvel de uma noite de janeiro, com o nariz escorrendo, as pontas dos dedos dormentes dentro das luvas, vendo as pessoas passarem de um lado para o outro lá dentro, andando pelo inverno sem casaco e cercadas de luz. Ele poderia ter contado a eles... mas talvez não fosse o tipo de coisa que se poderia declarar em uma reunião da câmara, a forma como você ficava de pé no frio escuro e aprendia a amar a luz. Tudo isso é especulação; os fatos foram os seguintes: o corredor de vidro explodiu sem motivo aparente, ninguém se feriu (o que era uma benção, pois o preço final da tempestade daquela manhã, ao menos em termos humanos, foram 67 mortos e mais de 320 feridos) e ele nunca foi substituído. Depois do dia 31 de maio de 1985, se você quisesse ir da biblioteca infantil para a adulta, tinha que andar pelo lado de fora. E se estivesse frio, chovendo, ou nevando, você tinha que colocar seu casaco.

 

Do lado de fora — 10h54 do dia 31 de maio de 1985

 

— Esperem — disse Bill, ofegante. — Me deem um tempo... pra descansar.

 

— Me deixa te ajudar com ela — disse Richie de novo. Eles tinham deixado Eddie no lar da Aranha, e isso era uma coisa sobre a qual ninguém queria falar. Mas Eddie estava morto, e Audra ainda estava viva, ao menos tecnicamente.

 

— Pode deixar — disse Bill entre respirações pesadas.

 

— Besteira. Você vai ter um ataque cardíaco. Me deixa te ajudar, Big Bill.

 

— Como está sua cabeça?

 

— Dói — disse Richie. — Não muda de assunto.

 

Com relutância, Bill deixou Richie pegá-la. Poderia ter sido pior; Audra era uma garota alta cujo peso normal era de 63 quilos. Mas o papel que ela ia fazer em Sótão era de uma jovem sendo mantida refém por um psicótico borderline que se achava terrorista político. Como Freddie Firestone quis filmar todas as sequências do sótão primeiro, Audra fez uma dieta rigorosa de aves, queijo cottage e atum e perdeu 9 quilos. Ainda assim, depois de cambalear com ela no escuro por 400 metros (ou 800 ou 1.200, quem sabia), aqueles 54 quilos pareciam 90.

 

— O-Obrigado, c-c-cara — disse ele.

 

— Não é nada. Depois é sua vez, Monte de Feno.

 

— Bip-bip, Richie — disse Ben, e Bill sorriu apesar de tudo. Foi um sorriso cansado e não durou muito, mas um pouco foi melhor do que nada.

 

— Pra que lado, Bill? — perguntou Beverly. — Aquela água está mais alta do que nunca. Não estou a fim de me afogar aqui embaixo.

 

— Em frente, depois à esquerda — disse Bill. — Talvez seja melhor a gente tentar ir um pouco mais rápido.

 

Eles continuaram andando por meia hora, Bill indicando as esquerdas e direitas. O som da água continuou aumentando até parecer cercá-los, um assustador efeito Dolby estéreo no escuro. Bill tateou por uma esquina, passando uma das mãos por cima de tijolos úmidos, e de repente havia água correndo por seus sapatos. A corrente era rasa e rápida.

 

— Me dá Audra — disse ele para Ben, que estava ofegando alto. — Contra a corrente agora. — Ben entregou-a cuidadosamente a Bill, que conseguiu passá-la por cima do ombro como um bombeiro. Se ela ao menos protestasse... se mexesse... fizesse alguma coisa. — Como estão os fósforos, Bev?

 

— Não tem muitos. Uns seis, talvez. Bill... você sabe pra onde está indo?

 

— Acho que s-s-sei — disse ele. — Venham.

 

Eles o seguiram pela esquina. A água espumou nos tornozelos de Bill, depois foi até as panturrilhas e chegou até a coxa. O trovão da água tinha virado um rugido grave e constante. O túnel em que eles estavam tremia sem parar. Por um tempo, Bill pensou que a corrente ficaria forte demais para eles conseguirem andar contra, mas eles passaram por um cano de alimentação que estava despejando um jato enorme de água no túnel deles (ele ficou assombrado com a força dessa água), e a corrente diminuiu de alguma forma, embora a água continuasse a ficar mais funda. Ela...

 

Eu vi a água saindo daquele cano! Eu vi!

 

— E-E-Ei! — gritou ele. — V-V-Vocês conseguem ver a-alguma coisa?

 

— Está ficando mais claro há uns 15 minutos mais ou menos! — gritou Beverly. — Onde estamos, Bill? Você sabe?

 

Pensei que soubesse, Bill quase disse.

 

— Não! Vamos!

 

Ele tinha achado que eles deviam estar se aproximando da seção de concreto do Kenduskeag que era chamada de canal... a parte que passava por baixo da cidade e saía no Parque Bassey. Mas havia luz aqui embaixo, luz, e não podia haver luz no canal debaixo da cidade. Mas o ambiente foi ficando cada vez mais claro mesmo assim.

 

Bill estava começando a ter problemas sérios com Audra. Não era a corrente, que tinha diminuído. Era a profundeza. Em pouco tempo, eu vou estar segurando-a flutuando, pensou. Ele conseguia ver Ben à sua esquerda e Beverly à direita; ao virar de leve a cabeça, ele conseguia ver Richie atrás de Ben. O chão estava ficando estranho. O fundo do túnel se encontrava agora coberto de detritos: tijolos, ao que parecia. E à frente, alguma coisa estava espetada para fora da água como a proa de um navio em processo de naufrágio.

 

Ben andou até o objeto, tremendo na água fria. Uma caixa de charutos molhada flutuou até o rosto dele. Ele a empurrou para o lado e pegou a coisa saindo para fora da água. Seus olhos se arregalaram. Parecia ser uma placa grande. Ele conseguiu ler as letras AL e, abaixo, FUT. E, de repente, ele soube.

 

— Bill! Richie! Bev! — Ele estava gargalhando de perplexidade.

 

— O que foi, Ben? — gritou Beverly.

 

Segurando com as duas mãos, Ben balançou a coisa para trás. Houve um som de arranhado quando um dos lados da placa raspou na parede do túnel. Agora eles conseguiam ler: ALADDI e, abaixo disso, DE VOLTA PARA O FUTURO.

 

— É a marquise do Aladdin — disse Richie. — Como...?

 

— A rua afundou — sussurrou Bill. Seus olhos estavam se arregalando. Ele olhou para o túnel. A luz estava ainda mais forte à frente.

 

— O quê, Bill?

 

— Que porra aconteceu?

 

— Bill? Bill? O que...?

 

— Todos esses dutos! — disse Bill loucamente. — Todos esses dutos antigos! Houve outra inundação! E acho que desta vez...

 

Ele começou a seguir em frente, levantando Audra. Ben, Bev e Richie foram atrás. Cinco minutos depois, Bill olhou para cima e viu céu azul. Ele estava olhando por uma rachadura no teto de um túnel, uma rachadura que se alargava até 20 metros de largura à frente de onde ele estava. A água estava repleta de ilhas e arquipélagos à frente: pilhas de tijolos, a parte de trás de um sedã Plymouth com o porta-malas aberto e jorrando água, um parquímetro apoiado na parede do túnel como um bêbado, com a bandeira vermelha de VIOLAÇÃO levantada.

 

Caminhar tinha ficado quase impossível agora, pois as minimontanhas que subiam e desciam sem padrão nenhum eram um convite a um tornozelo quebrado. A água passava tranquilamente ao redor das axilas deles.

 

Tranquila agora, pensou Bill. Mas se estivéssemos aqui duas horas atrás, mesmo uma, acho que seria a última caminhada de nossas vidas.

 

— Que porra é isso, Big Bill? — perguntou Richie. Ele estava atrás do cotovelo direito de Bill, com o rosto tomado de perplexidade enquanto olhava para a abertura no teto do túnel; só que não é o telhado de nenhum túnel, pensou Bill. É a rua Main. Pelo menos, era.

 

— Acho que a maior parte do centro de Derry agora está no canal, sendo levada pelo rio Kenduskeag. Em pouco tempo, vai estar no Penobscot, depois no oceano Atlântico, e já vai tarde. Você consegue me ajudar com Audra, Richie? Acho que não consigo...

 

— Claro — disse Richie. — Claro, Bill. Não esquenta.

 

Ele pegou Audra das mãos de Bill. Naquela luz, Bill conseguia vê-la melhor do que talvez gostaria... com a palidez mascarada, mas não escondida pela terra e pela sujeira que manchava a testa e cobria as bochechas. Os olhos ainda estavam arregalados... bem arregalados e alheios a todos os sentidos. O cabelo estava sujo e molhado. Ela podia muito bem ser uma daquelas bonecas infláveis que vendiam no Pleasure Chest, em Nova York, ou ao longo da Reeperbahn, em Hamburgo. A única diferença era a respiração lenta e firme... e isso podia ser uma coisa automática, mais nada.

 

— Como vamos subir a partir daqui? — perguntou ele a Richie.

 

— Pede a Ben pra te ajudar — disse Richie. — Você pode puxar Bev, e vocês dois conseguem puxar sua esposa. Ben pode me levantar, e nós puxamos Ben. E depois disso vou te mostrar como montar um torneio de vôlei pra mil universitárias.

 

— Bip-bip, Richie.

 

— Bip-bip seu cu, Big Bill.

 

O cansaço estava percorrendo o corpo dele em ondas regulares. Ele olhou nos olhos de Bev e sustentou por um momento. Ela assentiu de leve, e ele deu um sorriso para ela.

 

— Me levanta, B-B-Ben?

 

Ben, que também parecia totalmente exausto, assentiu. Havia um arranhão fundo em uma das bochechas dele.

 

— Acho que consigo fazer isso.

 

Ele se inclinou um pouco e entrelaçou as mãos. Bill apoiou um pé, pisou na mão de Ben e pulou para cima. Não foi o bastante. Ben ergueu as mãos, e Bill segurou a beirada do teto quebrado do duto. Ele puxou-se para cima. A primeira coisa que viu foi uma barreira de segurança branca e laranja. A segunda foi um grupo de homens e mulheres atrás da barreira. A terceira foi a loja de departamentos Freese’s, só que ela estava com uma aparência estranhamente inflada e diminuída. Ele demorou um momento para perceber que quase metade da Freese’s tinha afundado na rua e no canal abaixo. A parte de cima tinha se inclinado para a rua e parecia em perigo de cair como uma pilha de livros mal empilhados.

 

— Olhem! Olhem! Tem uma pessoa na rua!

 

Uma mulher estava apontando para o local em que a cabeça de Bill apareceu, na abertura no asfalto quebrado.

 

— Deus seja louvado, tem mais gente!

 

Ela começou a andar na direção de Bill, uma mulher idosa com um lenço amarrado na cabeça no estilo camponesa. Um policial a segurou.

 

— Não é seguro ali, sra. Nelson. A senhora sabe. O resto da rua pode desabar a qualquer momento.

 

Sra. Nelson, pensou Bill. Eu me lembro da senhora. Sua irmã ficava de babá pra George e pra mim às vezes. Ele levantou a mão para mostrar que estava bem, e quando ela levantou a dela em resposta, ele sentiu uma onda de coisas boas... e de esperança.

 

Ele se virou e se deitou no asfalto frouxo, tentando distribuir o peso da forma mais regular possível, como se deve fazer em gelo fino. Ele esticou a mão para pegar Bev. Ela segurou os pulsos dele e, com o que pareceu ser o fim de suas forças, ele a puxou. O sol, que tinha desaparecido de novo, agora saiu de detrás de um grupo de nuvens enormes e devolveu as sombras a eles. Beverly olhou para cima em um sobressalto, viu os olhos de Bill e sorriu.

 

— Eu te amo, Bill — disse ela. — E rezo pra que ela fique bem.

 

— Obri-igado, Bevvie — disse ele, e seu sorriso gentil a fez começar a chorar um pouco. Ele a abraçou, e o pequeno grupo atrás da barreira de segurança aplaudiu. Um fotógrafo do Derry News tirou uma foto. Ela saiu na edição de 1º de junho do jornal, que foi impresso em Bangor por causa dos danos provocados pela água nas prensas tipográficas do News. A legenda era bem simples, e verdadeira o bastante para Bill cortar a foto e guardar na carteira por anos: SOBREVIVENTES, era o que a legenda dizia. Era só isso, mas era o bastante.

 

Passavam seis minutos das 11 horas em Derry, Maine.

 

Derry — Mais tarde, no mesmo dia

 

O corredor de vidro entre a biblioteca infantil e a adulta explodiu às 10h30. Às 10h33, a chuva parou. Ela não foi diminuindo; parou de repente, como se Alguém Lá Em Cima tivesse mexido em um interruptor. O vento já tinha começado a diminuir, e foi tão rápido que as pessoas se entreolharam com expressões preocupadas e supersticiosas. O som foi como o desligar das turbinas de um 747 depois de ele estar estacionado com segurança no portão. O sol apareceu pela primeira vez às 10h47. No meio da tarde, as nuvens já tinham desaparecido completamente, e o dia acabou sendo bonito e quente. Às 15h30, o mercúrio no termômetro Orange Crush do lado de fora da Secondhand Rose, Secondhand Clothes marcava 28°C, a leitura mais alta da estação. As pessoas andavam pelas ruas como zumbis, sem falar muito. As expressões nos rostos delas eram incrivelmente parecidas: uma espécie de perplexidade estúpida que teria sido engraçada se não fosse também tão digna de pena. No fim da tarde, jornalistas da ABC, CBS, NBC e CNN chegaram a Derry, e os repórteres dos noticiários levavam alguma versão da verdade para as casas da maioria das pessoas; eles a tornavam real... embora houvesse quem sugerisse que a realidade é um conceito nem um pouco confiável, uma coisa talvez tão sólida quanto um pedaço de lona esticado sobre cabos entrelaçados como uma teia de aranha. Na manhã seguinte, Bryant Gumble e Willard Scott do Today Show iriam a Derry. Durante o programa, Gumble entrevistaria Andrew Keene. “A Torre de Água caiu e rolou pela colina”, disse Andrew. “Foi uau. Sabe o que quero dizer? Tipo, Steven Spielberg, morra de inveja, sabe? Ei, eu sempre achei que você era bem maior quando te via na TV.” Ver a si mesmos e aos vizinhos na TV tornaria tudo real. Daria a eles um jeito de entender essa coisa horrível e incompreensível. Foi uma TEMPESTADE ABERRANTE. Nos dias seguintes, a CONTAGEM DE MORTOS subiria NA SEQUÊNCIA DA TEMPESTADE ASSASSINA. Foi, na verdade, A PIOR TEMPESTADE DE PRIMAVERA NA HISTÓRIA DO MAINE. Todas essas manchetes, por pior que fossem, foram úteis, pois ajudaram a enfraquecer a estranheza essencial do que tinha acontecido... ou talvez estranheza fosse uma palavra branda demais. Insanidade teria sido melhor. Ver a si mesmos na TV ajudaria a tornar a situação concreta, menos insana. Mas nas horas antes de as equipes de jornalistas chegarem, só havia as pessoas de Derry, andando pelas ruas cheias de destroços e lama com expressão de descrença perplexa nos rostos. Só as pessoas de Derry, sem falar muito, olhando para as coisas, pegando coisas ocasionalmente e jogando no chão de novo, tentando entender o que aconteceu nas sete ou oito horas anteriores. Havia homens de pé na rua Kansas, fumando, olhando para casas de cabeça para baixo no Barrens. Havia outros homens e mulheres além das barreiras de segurança brancas e laranja, olhando para o buraco negro que era o centro até as dez daquela manhã. A manchete do jornal de domingo dizia: VAMOS RECONSTRUIR, PROMETE O PREFEITO DE DERRY, e talvez eles reconstruíssem mesmo. Mas nas semanas seguintes, enquanto a Câmara Municipal discutia como a reconstrução deveria começar, a enorme cratera que era o centro continuou a crescer em ritmo nada espetacular, mas regular. Quatro dias depois da tempestade, o prédio de escritórios da Companhia Hidrelétrica Bangor desabou no buraco. Três dias depois disso, o Flying Doghouse, que vendia os melhores cachorros-quentes com repolho e com chili no leste do Maine, desabou lá dentro. Ralos de casas, prédios de apartamentos e estabelecimentos comerciais entravam periodicamente em refluxo. Ficou tão ruim em Old Cape que as pessoas começaram a ir embora. A primeira noite de corridas de cavalo no Parque Bassey foi em 10 de junho; a primeira corrida estava marcada para as 20h, e isso pareceu alegrar todo mundo. Mas uma parte das arquibancadas desabou quando os cavalos na primeira corrida entraram na reta, e seis pessoas se machucaram. Uma delas foi Foxy Foxworth, que gerenciou o Cinema Aladdin até 1973. Foxy passou duas semanas no hospital com a perna quebrada e um testículo perfurado. Quando foi liberado, decidiu ir morar com a irmã em Somersworth, New Hampshire.

 

Ele não foi o único. Derry estava desabando.

 

Eles viram o enfermeiro fechar as portas de trás da ambulância e ir até o banco do passageiro. A ambulância começou a subir a colina na direção do Derry Home Hospital. Richie a fez parar na rua, correndo sério risco de vida e de perder membros, e discutiu com o motorista furioso quando ele insistiu que não tinha mais espaço. Eles acabaram colocando Audra deitada no chão.

 

— E agora? — perguntou Ben. Havia enormes círculos marrons debaixo dos olhos dele e um anel nojento de sujeira ao redor do pescoço.

 

— Eu v-vou voltar pro Town House — disse Bill. — V-Vou dormir por umas 16 ho-oras.

 

— Eu também — disse Richie. Ele olhou com esperança para Bev.

 

— Tem algum cigarro, moça bonita?

 

— Não — disse Beverly. — Acho que vou parar de novo.

 

— É uma ideia bem sensata.

 

Eles começaram a andar lentamente colina acima, os quatro lado a lado.

 

— A-A-Acabou — disse Bill.

 

Ben assentiu.

 

— Nós conseguimos. Você conseguiu, Big Bill.

 

— Todos nós conseguimos — disse Beverly. — Eu queria que a gente tivesse trazido Eddie. Queria isso mais do que tudo.

 

Eles chegaram à esquina da rua Upper Main com a Point. Um garoto de capa vermelha e galochas verdes estava seguindo um barco de papel que flutuava na correnteza que ia até o bueiro. Ele olhou para cima, viu os quatro olhando para ele e acenou com hesitação. Bill pensou que era o garoto do skate, o que tinha um amigo que viu o tubarão no canal. Ele sorriu e andou na direção do garoto.

 

— Está tudo bem a-a-agora — disse ele.

 

O garoto o observou com atenção e sorriu. O sorriso foi ensolarado e esperançoso.

 

— É — disse ele. — Acho que está.

 

— Pode apostar seu c-c-couro.

 

O garoto riu.

 

— Você v-vai tomar cuidado com a-a-aquele skate?

 

— Não — disse o garoto, e desta vez Bill riu. Ele sufocou uma vontade de mexer no cabelo do garoto, ele provavelmente não iria gostar, e voltou até os outros.

 

— Quem era aquele? — perguntou Richie.

 

— Um amigo — disse Bill. Ele colocou as mãos nos bolsos. — Vocês se lembram? De quando a gente saiu da outra vez?

 

Beverly assentiu.

 

— Eddie nos levou até o Barrens. Só que acabamos do outro lado do Kenduskeag, de alguma forma. Do lado de Old Cape.

 

— Você e Monte de Feno empurraram a tampa de uma daquelas estações de bombeamento — disse Richie para Bill — porque vocês eram os mais pesados.

 

— É — disse Ben. — A gente empurrou. O sol estava brilhando, mas era quase hora de se pôr.

 

— É — disse Bill. — E estávamos todos nós lá.

 

— Mas nada dura pra sempre — disse Richie. Ele olhou para a colina que eles tinham acabado de subir e suspirou. — Vejam isso, por exemplo.

 

Ele esticou as mãos. As pequenas cicatrizes nas palmas tinham sumido. Beverly esticou as suas; Ben fez o mesmo; Bill acrescentou as dele. Todas estavam sujas, mas sem marcas.

 

— Nada dura para sempre — repetiu Richie. Ele olhou para Bill, e Bill viu lágrimas cortarem lentamente a sujeira na bochecha de Richie.

 

— Exceto o amor, talvez — disse Ben.

 

— E o desejo — disse Beverly.

 

— E os amigos? — perguntou Bill, e sorriu. — O que você acha, Boca de Lixo?

 

— Bem — disse Richie, sorrindo e esfregando os olhos. — Ah, preciso pensar, rapaz. Eu digo, eu digo, ah, preciso pensar.

 

Bill esticou as mãos; eles juntaram as deles e ficaram ali por um momento, sete que foram reduzidos a quatro, mas que ainda conseguiam fazer um círculo. Eles se entreolharam. Ben também estava chorando agora, com lágrimas saltando dos olhos. Mas estava sorrindo.

 

— Amo tanto vocês — disse ele. Ele apertou as mãos de Bev e Richie com muita força por um momento, depois soltou-as. — Agora será que podemos ver se tem café da manhã neste lugar? E temos que ligar pra Mike. Pra dizer que a gente está bem.

 

— Boa lembrança, senhorr — disse Richie. — De vez em quando, acho que usted pode acabar sendo bueno. O que usted acha, Biiig Biiiiiill?

 

— Acho que você devia ir se foder — disse Bill.

 

Eles entraram no Town House em meio a gargalhadas, e quando Bill empurrou a porta de vidro, Beverly teve um vislumbre de uma coisa que ela nunca mencionou, mas também nunca esqueceu. Por apenas um momento, ela viu os reflexos deles no vidro. Só que eram seis, não quatro, porque Eddie estava atrás de Richie e Stan estava atrás de Bill, com aquele meio sorriso no rosto.

 

Do lado de fora — Anoitecer de 10 de agosto de 1958

 

O sol está perto do horizonte, uma bola vermelha ligeiramente achatada que lança uma luz plana e febril no Barrens. A cobertura de ferro em cima da uma das estações de bombeamento sobe um pouco, para, sobe de novo e começa a deslizar.

 

— E-E-Empurra, B-Ben, está q-quebrando meu ombro...

 

A tampa desliza mais um pouco, se inclina e cai na vegetação que cresceu ao redor do cilindro de concreto. Sete crianças saem uma a uma e olham ao redor, piscando como corujas em perplexidade silenciosa. Elas parecem crianças que nunca viram a luz do dia.

 

— Está tão silencioso — diz Beverly baixinho.

 

Os únicos sons são do movimento alto da água e o zumbido sonolento dos insetos. A tempestade acabou, mas o Kenduskeag ainda está muito alto. Perto da cidade, não muito longe do local em que o rio fica espremido no concreto e é chamado de canal, ele transbordou, mas a enchente não é séria. O pior são alguns porões molhados. Desta vez.

 

Stan se afasta deles, com o rosto vazio e pensativo. Bill olha ao redor, e primeiro acha que Stan viu um pequeno incêndio na margem do rio. O fogo é sua primeira impressão, um brilho vermelho quase intenso demais para se olhar. Mas quando Stan pega o fogo na mão direita e o ângulo da luz muda, Bill vê que não passa de uma garrafa de Coca, uma das novas e transparentes, que alguém jogou no rio. Ele vê Stan virá-la, segurá-la pelo gargalho e bater em uma pedra protuberante na margem do rio. A garrafa se quebra, e Bill percebe que estão todos observando Stan agora enquanto ele mexe nos restos estilhaçados da garrafa, com o rosto sombrio e compenetrado e absorto. Por fim, ele pega um pedaço estreito de vidro. O sol a oeste joga brilhos vermelhos no caco de vidro, e Bill pensa de novo: Parece fogo.

 

Stan olha para ele, e Bill de repente compreende: fica perfeitamente claro e é perfeitamente certo. Ele dá um passo à frente na direção de Stan com a mão esticada, palma para cima. Stan recua até a água. Insetos pretos voam logo acima da superfície, e Bill consegue ver uma libélula iridescente voar para o outro lado do rio como um pequeno arco-íris voador. Um sapo começa uma batida grave e ritmada, e quando Stan pega sua mão esquerda e passa a beirada do caco de vidro na palma, cortando pele e tirando um filete de sangue, Bill pensa em uma espécie de êxtase: Tem tanta vida aqui!

 

— Bill?

 

— Claro. As duas.

 

Stan corta sua outra mão. Há dor, mas não muita. Um curiango começou a cantar em algum lugar, um som agradável, tranquilo. Bill pensa: Esse curiango está levantando a lua.

 

Ele olha para as mãos, as duas sangrando agora, e olha ao redor. Os outros estão ali: Eddie com a bombinha presa em uma das mãos; Ben com a barriga grande aparecendo pálida nos farrapos da camisa; Richie com o rosto estranhamente nu sem os óculos; Mike silencioso e solene, com os lábios grossos apertados, formando uma linha fina. E Beverly com a cabeça erguida, os olhos arregalados e límpidos, o cabelo ainda lindo apesar da sujeira nele.

 

Todos nós. Todos nós estamos aqui.

 

E ele os vê, os vê de verdade pela última vez, porque de alguma forma ele entende que eles jamais vão ficar todos juntos de novo, os sete, não assim. Ninguém fala nada. Beverly estica as mãos, e depois de um momento Richie e Ben esticam as deles. Mike e Eddie fazem o mesmo. Stan os corta um a um enquanto o sol começa a descer atrás do horizonte, esfriando aquele brilho vermelho de fornalha e transformando em cor-de-rosa. O curiango canta de novo. Bill consegue ver os primeiros filetes de névoa na água e sente como se tivesse se tornado parte de tudo. É um breve êxtase do qual ele não vai falar da mesma forma que Beverly não fala do breve reflexo em que vê os dois homens mortos que eram, quando garotos, amigos dela.

 

Uma brisa toca as árvores e os arbustos, fazendo-os suspirar, e ele pensa: É um lugar lindo e nunca vou me esquecer dele. É lindo, e eles são lindos; cada um deles é belo. O curiango canta de novo, um som doce e líquido, e por um momento Bill se sente unido a ele, como se pudesse cantar e sumir ao escurecer, como se pudesse sair voando com bravura no ar.

 

Ele olha para Beverly, e ela está sorrindo para ele. Ela fecha os olhos e estica as mãos para os dois lados. Bill segura a esquerda; Ben segura a direita. Bill consegue sentir o calor do sangue dela se misturando com o dele. Os outros se juntam e eles ficam em círculo, com todas as mãos unidas daquela forma peculiar e íntima.

 

Stan está olhando para Bill com uma espécie de urgência, um tipo de medo.

 

— J-Jurem pra m-mim que vão v-v-v-voltar — diz Bill. — Jurem pra mim que, se a C-C-Coisa não estiver m-morta, vocês vão vo-oltar.

 

— Eu juro — disse Ben.

 

— Eu juro — disse Richie.

 

— Sim, eu juro. — Bev.

 

— Eu juro — murmura Mike Hanlon.

 

— É. Juro. — Eddie, com voz fraca como um sussurro.

 

— Eu também juro — sussurra Stan, mas a voz dele falha e ele olha para baixo quando fala.

 

— E-Eu ju-ju-juro.

 

Foi só isso; isso foi tudo. Mas eles ficam ali por mais um tempo, sentindo o poder no círculo deles, o corpo fechado que formam. A luz pinta os rostos deles de cores pálidas; o sol sumiu agora e o pôr do sol está acabando. Eles ficam junto em círculo enquanto a escuridão desce pelo Barrens, preenchendo os caminhos que eles atravessaram no verão, as clareiras onde eles brincaram de pega-pega e de armas, os lugares secretos ao longo das margens do rio em que eles se sentaram para discutir as longas perguntas da infância ou fumar os cigarros de Beverly, ou onde apenas ficaram em silêncio, vendo a passagem das nuvens refletida na água. O olho do dia está se fechando.

 

Por fim, Ben baixa as mãos. Ele começa a dizer alguma coisa, balança a cabeça e sai andando. Richie vai atrás, depois Beverly e Mike, andando juntos. Ninguém fala; eles sobem o barranco até a rua Kansas e apenas se afastam uns dos outros. E quando Bill pensa nisso 27 anos depois, ele percebe que eles nunca chegaram a se reunir de novo. Quatro deles com frequência, às vezes cinco, e talvez seis uma ou duas vezes. Mas nunca os sete.

 

Ele é o último a ir. Ele fica por mais um tempo com as mãos na cerca bamba, olhando para o Barrens enquanto, acima, as estrelas surgem no céu de verão. Ele fica debaixo do azul e acima do negro enquanto observa o Barrens se encher de escuridão.

 

Nunca mais quero brincar lá embaixo, pensa ele de repente, e fica impressionado ao perceber que o pensamento não é terrível nem perturbador, mas tremendamente libertador.

 

Ele fica ali mais um momento, depois se vira de costas para o Barrens e começa a andar para casa, caminhando pela calçada escura com as mãos nos bolsos, olhando de tempo em tempo para as casas de Derry iluminadas na noite.

 

Depois de um quarteirão ou dois, ele começa a andar mais rápido, pensando no jantar... e um quarteirão ou dois depois, ele começa a assobiar.

 

DERRY:

ÚLTIMO INTERLÚDIO

4 de junho de 1985

 

Bill veio uns vinte minutos atrás e me trouxe este caderno; Carole o encontrou em uma das mesas da biblioteca e o entregou quando ele pediu. Pensei que o chefe Rademacher o tinha confiscado, mas parece que ele não se interessou.

 

A gagueira de Bill está desaparecendo de novo, mas o pobre homem envelheceu quatro anos nos últimos quatro dias. Ele me contou que espera que Audra saia do Derry Home Hospital (onde eu permaneço) amanhã e siga de ambulância particular para o norte, para o Instituto de Saúde Mental de Bangor. Fisicamente, ela está bem, com pequenos cortes e hematomas que já estão cicatrizando. Mentalmente...

 

— Se você levanta a mão dela, ela fica levantada — disse Bill. Ele estava sentado perto da janela, girando uma lata de refrigerante diet entre as mãos. — Fica ali flutuando até alguém colocar pra baixo. Os reflexos estão presentes, mas lentos. O eletroencefalograma que fizeram mostra uma onda alfa severamente reprimida. Ela está c-c-catatônica, Mike.

 

Eu disse:

 

— Tenho uma ideia. Talvez não seja tão boa. Se você não gostar, pode dizer.

 

— O quê?

 

— Vou ficar aqui mais uma semana — eu disse. — Em vez de mandar Audra pra Bangor, por que você não leva ela pra minha casa, Bill? Passa a semana com ela. Conversa com ela, mesmo se ela não responder. Ela está... ela está no controle do próprio corpo?

 

— Não — disse Bill com tristeza.

 

— Você consegue... quero dizer, você faria...

 

— Se eu a trocaria? — Ele sorriu, e foi um sorriso tão doloroso que tive que afastar o olhar por um momento. Era o jeito como meu pai sorriu quando me contou sobre Butch Bowers e as galinhas. — Sim. Acho que eu poderia fazer isso.

 

— Não vou dizer pra você pegar leve com você mesmo quando obviamente não está preparado para fazer isso — eu disse —, mas lembre que você mesmo concordou que boa parte ou tudo que aconteceu foi quase certamente planejado. Isso pode incluir o papel de Audra.

 

— Eu d-devia ter ficado de boca calada sobre meu d-destino.

 

Às vezes é melhor não dizer nada. Foi o que fiz.

 

— Tudo bem — disse ele por fim. — Se você estava mesmo falando sério...

 

— Estou falando sério. As chaves da minha casa estão no Serviço aos Pacientes. Tem dois filés Delmonico no congelador. Talvez isso também tenha sido planejado.

 

— Ela está comendo mais comidas pastosas e, hã, l-líquidos.

 

— Bem — eu disse, sustentando o sorriso —, talvez haja motivo para comemoração. Tem uma boa garrafa de vinho na prateleira do alto da despensa também. Mondavi. É nacional, mas é bom.

 

Ele veio até mim e segurou minha mão.

 

— Obrigado, Mike.

 

— Disponha, Big Bill.

 

Ele soltou minha mão.

 

— Richie voltou pra Califórnia hoje de manhã.

 

Eu assenti.

 

— Você acha que vai manter contato?

 

— T-T-Talvez — disse ele. — Por um tempo, ao menos. Mas... — Ele olhou para mim diretamente. — Vai acontecer de novo, eu acho.

 

— O esquecimento?

 

— É. Na verdade, acho que já começou. Só as coisas pequenas até agora. Detalhes. Mas acho que vai aumentar.

 

— Talvez seja melhor.

 

— Talvez.

 

Ele olhou pela janela, ainda girando a lata de refrigerante diet, quase certamente pensando na mulher, com olhos tão arregalados e tão silenciosa, bonita e plástica. Catatônica. O som de uma porta batendo e sendo trancada. Ele suspirou.

 

— Talvez seja.

 

— Ben? Beverly?

 

Ele olhou para mim e sorriu um pouco.

 

— Ben convidou ela pra ir pro Nebraska com ele, e ela concordou, ao menos por um tempo. Você sabe sobre a amiga dela em Chicago?

 

Eu assenti. Beverly tinha contado para Ben, e Ben contou para mim ontem. Se eu puder atenuar o caso (atenuar grotescamente o caso), a segunda descrição do marido maravilhoso e fantástico, Tom, foi bem mais verdadeira do que a original. O maravilhoso e fantástico Tom manteve Bev em um estado de prisão emocional, espiritual e às vezes física nos últimos quatro anos, mais ou menos. O maravilhoso e fantástico Tom chegou aqui depois de arrancar a informação à porrada da única amiga íntima de Bev.

 

— Ela me disse que vai voltar pra Chicago daqui a duas semanas pra registrar ele como desaparecido. Tom.

 

— É uma ideia inteligente — eu disse. — Ninguém vai encontrar ele lá embaixo. — E nem Eddie, eu pensei, mas não falei.

 

— Não, acredito que não — disse Bill. — E, quando ela voltar, aposto que Ben vai com ela. E sabe de outra coisa? Uma coisa muito maluca?

 

— O quê?

 

— Acho que ela não lembra o que aconteceu com Tom.

 

Eu fiquei olhando para ele.

 

— Ela esqueceu ou está esquecendo — disse Bill. — E não consigo mais lembrar como era a porta. A p-p-porta pra casa da Coisa. Eu tento pensar nela e uma coisa doida acontece, eu tenho uma i-imagem de b-b-bodes atravessando uma ponte. Da história Os três cabritos rudes. Loucura, né?

 

— Vão acabar descobrindo que Tom Rogan veio até Derry — eu disse. — Ele deve ter deixado uma trilha de papéis de um quilômetro de largura. Carro alugado, bilhetes de avião.

 

— Não tenho tanta certeza disso — disse Bill, acendendo um cigarro. — Acho que ele deve ter comprado a passagem com dinheiro e dado um nome falso. Talvez tenha comprado um carro barato aqui ou roubado um.

 

— Por quê?

 

— Ah, pensa bem — disse Bill. — Você acha que ele veio até aqui pra dar uma surra nela?

 

Nossos olhos se encontraram por um longo momento, e ele ficou de pé.

 

— Escuta, Mike...

 

— Está na hora de ir embora — eu disse. — Pode ir agora.

 

Ele riu disso, gargalhou alto e, quando parou, disse:

 

— Obrigado por emprestar sua casa, Mikey.

 

— Não vou jurar que vai fazer diferença. A casa não tem qualidades terapêuticas que eu conheça.

 

— Bem... a gente se vê. — Ele fez uma coisa estranha nessa hora, estranha e adorável. Ele me deu um beijo na bochecha. — Que Deus te abençoe, Mike. Estarei por perto.

 

— As coisas talvez fiquem bem, Bill — eu disse. — Não perca a esperança. Elas podem ficar bem.

 

Ele sorriu e assentiu, mas acho que a mesma palavra estava nos pensamentos de nós dois: Catatônica.

 

5 de junho de 1985

 

Ben e Beverly vieram hoje se despedir. Eles não vão de avião; Ben alugou um Cadillac na Hertz e eles vão de carro, sem pressa. Tem alguma coisa nos olhos deles quando se olham, e aposto minha aposentadoria que, se eles não estão juntos, vão estar quando chegarem ao Nebraska.

 

Beverly me abraçou, me disse para ficar bom rápido e chorou.

 

Ben também me abraçou e perguntou pela terceira ou quarta vez se eu escreveria. Falei para ele que escreveria sim, e vou mesmo... por um tempo, ao menos. Porque desta vez também está acontecendo comigo.

 

Estou esquecendo coisas.

 

Como Bill disse, no momento são as coisas pequenas, os detalhes. Mas parece o tipo de coisa que vai aumentar. Pode ser que, em um mês ou um ano, este caderno seja tudo que tenho para me lembrar do que aconteceu aqui em Derry. Acho que as próprias palavras podem começar a sumir e este caderno acabar ficando tão em branco quanto era quando o comprei no departamento de material escolar da Freese’s. É um pensamento horrível, e durante o dia parece muito paranoico... mas, sabe, nas profundezas da noite, parece perfeitamente lógico.

 

Esse esquecimento... a perspectiva me enche de pânico, mas também oferece uma espécie traiçoeira de alívio. Sugere a mim mais do que qualquer outra coisa que desta vez eles realmente mataram a Coisa; que não há necessidade de uma sentinela para vigiar e esperar que o ciclo se inicie de novo.

 

Pânico cego, alívio furtivo. É o alívio que vou escolher, eu acho, traiçoeiro ou não.

 

Bill ligou para dizer que ele e Audra foram para minha casa. Não há mudança nela.

 

— Sempre vou me lembrar de você. — Foi o que Beverly me disse pouco antes de ela e Ben irem embora.

 

Acho que vi uma verdade diferente nos olhos dela.

 

6 de junho de 1985

 

Saiu uma notícia interessante no Derry News de hoje, na primeira página. A manchete era: TEMPESTADE FAZ HENLEY DESISTIR DOS PLANOS DE EXPANSÃO DO AUDITÓRIO. O Henley em questão é Tim Henley, um construtor multimilionário que chegou a Derry como um furacão no final dos anos 1960; foram Henley e Zitner que organizaram o consórcio responsável pela construção do Derry Mall (que, de acordo com outra matéria na primeira página, provavelmente vai declarar perda total). Tim Henley estava determinado a ver Derry crescer. Havia a motivação do lucro, é claro, mas havia ainda mais: Henley queria genuinamente ver acontecer. O abandono repentino da expansão do auditório sugere várias coisas para mim. Que Henley pode ter se desiludido com Derry é apenas o mais óbvio. Acho que também é possível que ele esteja prestes a perder boa parte da fortuna por causa da destruição do shopping.

 

Mas o artigo também sugere que Henley não está sozinho; que outros investidores e potenciais investidores no futuro de Derry talvez estejam repensando suas opções. É claro que Al Zitner não vai ter que se preocupar; Deus o aposentou quando o centro desabou. Dos outros, os que pensaram como Henley estão agora de cara com um problema bem difícil: como se reconstrói uma área urbana que agora está coberta de água em pelo menos cinquenta por cento?

 

Acho que, depois de uma existência demoníaca, longa e vital, Derry talvez esteja morrendo... como uma beladona cujo momento de florescer veio e foi embora.

 

Liguei para Bill Denbrough esta tarde. Nenhuma mudança em Audra.

 

Uma hora atrás, fiz outra ligação, desta vez para Richie Tozier, na Califórnia. A secretária eletrônica recebeu a ligação com som de Creedence Clearwater Revival ao fundo. Essas máquinas sempre fodem com minha sincronia. Deixei meu nome e número, hesitei e acrescentei que esperava que ele já conseguisse usar as lentes de contato de novo. Eu estava prestes a desligar quando o próprio Richie atendeu o telefone e disse:

 

— Mikey! Como você está? — A voz dele estava feliz e calorosa... mas havia uma perplexidade óbvia junto. Ele estava usando a expressão verbal de um homem que foi pego completamente desprevenido.

 

— Oi, Richie — eu disse. — Eu estou bem.

 

— Que bom. Está sentindo muita dor?

 

— Um pouco. Está diminuindo. A coceira é o pior. Vou ficar muito feliz quando decidirem desembrulhar minhas costelas. Aliás, gostei do Creedence.

 

Richie riu.

 

— Merda, não é Creedence, é “Rock-and-Roll Girls”, do disco novo do Fogarty. Chama-se “Centerfield”. Você não ouviu falar?

 

— Hã-hã.

 

— Você precisa comprar, é demais. Parece... — Ele parou de falar por um momento e disse: — Parece antigamente.

 

— Vou comprar — eu disse, e provavelmente vou mesmo. Eu sempre gostei de John Fogarty. “Green River” era minha favorita de Creedence, eu acho. Volte pra casa, diz ele. Antes do fim, diz ele.

 

— E Bill?

 

— Ele e Audra estão cuidando da casa pra mim enquanto estou aqui.

 

— Bom. Isso é bom. — Ele fez um momento de pausa. — Quer saber uma coisa bizarra pra cacete, Mikey, meu velho?

 

— Claro — eu disse. Eu tinha uma ideia clara do que ele ia dizer.

 

— Bem... eu estava sentado aqui no meu escritório ouvindo sobre alguns prospectos da revista Cashbox, lendo alguns textos publicitários e memorandos... tem duas montanhas de coisa atrasada aqui, e vou ter que encarar um mês inteiro de dias de 25 horas. Por isso, a secretária eletrônica estava ligada, mas com o volume aumentado pra eu poder atender quando quisesse e poder deixar os chatos falarem com a gravação. E o motivo de eu ter deixado você falar com a fita pelo tempo que eu deixei...

 

— ... foi porque no começo você não fazia a menor ideia de quem eu era.

 

— Jesus, isso mesmo! Como você sabia?

 

— Porque estamos esquecendo de novo. Todos nós desta vez.

 

— Mikey, tem certeza?

 

— Qual era o sobrenome do Stan? — eu perguntei a ele.

 

Houve silêncio do outro lado da linha, um longo silêncio. Nele, ao longe, eu conseguia ouvir uma mulher falando em Omaha... ou talvez ela estivesse em Ruthven, Arizona, ou em Flint, Michigan. Eu a ouvi tão baixo quanto um viajante espacial saindo do sistema solar no cone fronteiro de um foguete quebrado, agradeça a alguém pelos biscoitos.

 

E então, Richie disse com insegurança:

 

— Acho que era Underwood, mas isso não é judeu, é?

 

— Era Uris.

 

— Uris! — gritou Richie, parecendo ao mesmo tempo aliviado e abalado. — Meu Deus, eu odeio quando tenho a coisa certa na ponta da língua, mas não consigo identificar. Se alguém aparece com um jogo Trivial Pursuit, eu digo: “Com licença, mas acho que a diarreia está voltando, então talvez seja melhor eu ir pra casa, tá?” Mas você lembra, Mike. Como antes.

 

— Não. Eu olhei no meu caderninho de telefones.

 

Outro longo silêncio. E então:

 

— Você não lembrava?

 

— Não.

 

— Não mesmo?

 

— Não mesmo.

 

— Então desta vez acabou mesmo — disse ele, e o alívio na voz foi inconfundível.

 

— É, acho que sim.

 

Aquele silêncio interurbano soou de novo, refletindo todos os quilômetros entre o Maine e a Califórnia. Acredito que nós dois estávamos pensando a mesma coisa: tinha acabado, sim, e em seis semanas ou seis meses, vamos ter esquecido tudo uns sobre os outros. Acabou, e nos custou nossa amizade e as vidas de Stan e Eddie. Era asma que Eddie tinha ou era enxaqueca crônica? Não consigo ter certeza, mas acho que era enxaqueca. Vou perguntar a Bill. Ele vai saber.

 

— Então diz oi pro Bill e praquela esposa bonita dele — disse Richie com uma alegria que pareceu artificial.

 

— Pode deixar, Richie — eu disse, fechando os olhos e esfregando a testa. Ele lembrava que a esposa de Bill estava em Derry... mas não o nome dela nem o que aconteceu com ela.

 

— E se você vier algum dia a Los Angeles, já tem meu número. Vamos nos encontrar e comer alguma coisa.

 

— Claro. — Senti lágrimas quentes nos olhos. — E se voltar pros lados de cá, o mesmo vale.

 

— Mikey?

 

— Estou aqui.

 

— Eu te amo, cara.

 

— Eu também.

 

— Certo. Cuida de tudo aí.

 

— Bip-bip, Richie.

 

Ele riu.

 

— É, é, é. Enfia no rabo, Mike. Eu disse na orelha, rapaz.

 

Ele desligou, e eu também. Em seguida, me deitei nos travesseiros de olhos fechados e não abri por muito tempo.

 

7 de junho de 1985

 

O chefe de polícia Andrew Rademacher, que assumiu a posição do chefe Borton no final dos anos 1960, está morto. Foi um acidente bizarro que não consigo deixar de associar com o que anda acontecendo em Derry... com o que acabou de acabar em Derry.

 

A combinação de delegacia e fórum fica na beira da área que caiu no canal e, apesar de não ter caído, a confusão (ou a enchente) deve ter causado dano estrutural que ninguém percebeu.

 

Rademacher estava trabalhando tarde da noite no escritório ontem, diz a notícia do jornal, como tem feito todas as noites desde a tempestade e a enchente. O escritório do chefe de polícia passou do terceiro para o quinto andar desde antigamente e fica logo abaixo de um sótão onde todo tipo de registros e artefatos inúteis da cidade ficam guardados. Um desses artefatos era a cadeira de vagabundo que descrevi no começo destas páginas. Era feita de ferro e pesava mais do que 180 quilos. O prédio recebeu uma grande quantidade de água durante a tempestade do dia 31 de maio, e isso deve ter enfraquecido o piso do sótão (ou é o que diz o jornal). Seja lá qual for o motivo, a cadeira de vagabundo caiu do sótão diretamente no chefe Rademacher, que estava sentado na escrivaninha lendo os relatórios dos acidentes. Ele morreu na mesma hora. O policial Bruce Andeen entrou correndo e encontrou-o caído nas ruínas da escrivaninha esmagada, ainda com a caneta na mão.

 

Falei ao telefone com Bill de novo. Audra está comendo um pouco de comida sólida, diz ele, mas não há nenhuma outra mudança. Perguntei a ele se o grande problema de Eddie era asma ou enxaqueca.

 

— Asma — disse ele imediatamente. — Você não se lembra da bombinha?

 

— Claro — eu disse, e lembrava mesmo. Mas só quando Bill mencionou.

 

— Mike?

 

— Sim?

 

— Qual era o sobrenome dele?

 

Olhei para o caderno de telefones na mesa de cabeceira, mas não peguei.

 

— Não lembro.

 

— Era parecido com Kerkorian — disse Bill, parecendo incomodado —, mas não é bem isso. Mas você tem tudo anotado. Certo?

 

— Certo — eu disse.

 

— Graças a Deus.

 

— Você teve alguma ideia quanto a Audra?

 

— Uma — disse ele —, mas é tão maluca que não quero falar sobre ela.

 

— Tem certeza?

 

— Tenho.

 

— Tudo bem.

 

— Mike, é assustador, né? Esquecer assim?

 

— É — eu disse. E é mesmo.

 

8 de junho de 1985

 

A Raytheon, que estava marcada para começar a construção da fábrica de Derry em julho, decidiu no último minuto construir em Waterville. O editorial na página um do News expressa consternação... e, se li corretamente nas entrelinhas, um pouco de medo.

 

Acho que sei qual é a ideia de Bill. Ele vai ter que agir rapidamente, antes que os restos de magia abandonem o lugar. Se é que já não aconteceu.

 

Acho que o que pensei antes não era tão paranoico, afinal. Os nomes e endereços dos outros no meu caderninho estão sumindo. A cor e a qualidade da tinta se combinam de forma a fazer com que os dados pareçam ter sido escritos cinquenta ou 75 anos antes dos outros que anotei nele. Isso aconteceu nos últimos quatro ou cinco dias. Estou convencido de que até setembro os nomes deles estarão completamente apagados.

 

Acho que eu poderia preservá-los; era só ficar copiando. Mas também estou convencido de que cada um acabaria se apagando mesmo, e que em pouco tempo se tornaria um exercício de futilidade, como escrever Não vou jogar bolinhas na aula quinhentas vezes. Eu ficaria escrevendo nomes que não significam nada por um motivo que não lembraria.

 

Que se apaguem, que se apaguem.

 

Bill, aja rápido... mas tome cuidado!

 

9 de junho de 1985

 

Acordei no meio da noite por causa de um pesadelo terrível do qual não conseguia me lembrar, entrei em pânico, não consegui respirar. Estiquei a mão até a campainha, mas não consegui usá-la. Tive uma visão terrível de Mark Lamonica atendendo a chamada com uma seringa... ou Henry Bowers com a faca.

 

Peguei meu caderninho e liguei para Ben Hanscom no Nebraska... o endereço e o número apagaram mais um pouco, mas ainda estão legíveis. Mas não deu em nada. Uma voz da companhia telefônica me disse que aquela linha foi desligada.

 

Ben era gordo ou tinha alguma coisa como pé torto?

 

Fiquei acordado até o amanhecer.

 

10 de junho de 1985.

 

Disseram que posso voltar para casa amanhã.

 

Liguei para Bill e contei a ele. Acho que eu queria avisá-lo que o tempo está ficando cada vez mais curto. Bill é o único de quem me lembro claramente, e estou convencido de que sou o único de quem ele se lembra claramente. Porque nós dois ainda estamos aqui em Derry, eu acho.

 

— Tudo bem — disse ele. — Amanhã estaremos fora do seu caminho.

 

— Ainda tem sua ideia?

 

— Tenho. Parece que está na hora de experimentar.

 

— Tome cuidado.

 

Ele riu e disse alguma coisa que entendi e não entendi.

 

— Não dá pra ter c-c-cuidado em um ska-ate, cara.

 

— Como vou saber se deu certo, Bill?

 

— Você vai saber — disse ele, e desligou.

 

Meu coração está com você, Bill, aconteça o que acontecer. Meu coração está com todos eles, e acho que, mesmo se nos esquecermos uns dos outros, vamos lembrar nos sonhos.

 

Estou quase no fim deste diário agora, e acho que será eternamente um diário, e que a história dos antigos escândalos e excentricidades de Derry não tem lugar fora dessas páginas. Por mim, tudo bem; acho que, quando me deixarem sair daqui amanhã, talvez finalmente seja a hora de começar a pensar em algum tipo de vida nova... embora o que isso possa ser ainda não está claro para mim.

 

Eu amava vocês todos, vocês sabem.

 

Eu amava vocês tanto.

 

BILL DENBROUGH VENCE O DIABO (II)

 

O meio-dia de um dia de verão.

 

Bill estava nu no quarto de Mike Hanlon, olhando para o corpo magro no espelho que ficava na porta. A cabeça careca brilhava na luz que entrava pela janela e lançava uma sombra comprida no chão e na parede. O peito era pelado, as coxas e canelas finas, mas cobertas de músculos. Ainda assim, pensou ele, é um corpo de adulto que temos aqui, não há a menor dúvida. Tem a barriguinha que vem de filés demais, algumas garrafas demais de cerveja Kirin, almoços demais à beira da piscina em que você comia o sanduíche Reuben ou o molho French em vez do prato leve. A bunda está caída, Bill, meu velho. Você ainda consegue fazer um ace se não estiver com ressaca demais e se a vista estiver boa, mas não consegue correr atrás da bola de tênis como conseguia quando tinha 17 anos. Tem pneuzinhos e suas bolas estão começando a ficar com aquela aparência pendurada da meia-idade. Há rugas no seu rosto que não estavam aí quando você tinha 17 anos... Elas não estavam aí nem na sua primeira foto para quarta capa de livro, em que você tentou tanto fazer cara de quem sabia das coisas... de qualquer coisa. Você está velho demais para o que tem em mente, Billy. Vai matar vocês dois.

 

Ele vestiu a cueca.

 

Se nós acreditássemos nisso, jamais teríamos conseguido... fazer o que fizemos.

 

Porque ele não lembrava mais o que eles tinham feito nem o que aconteceu para transformar Audra em um lixo catatônico. Ele só sabia o que tinha que fazer agora, e sabia que, se não fizesse agora, também esqueceria isso. Audra estava sentada no andar de baixo, na poltrona de Mike, com o cabelo caindo sem vida sobre os ombros, olhando com atenção para a TV, que estava passando no momento Dialing for Dollars. Ela não falava e só se movia se você a guiasse.

 

Isso é diferente. Você está velho demais, cara. Acredite.

 

Não acredito.

 

Então morra aqui em Derry. Grande merda de coisa.

 

Ele colocou meias esportivas, a única calça jeans que levou, a camiseta regata que comprou no Shirt Shack em Bangor no dia anterior. A camiseta era laranja. Na frente, dizia: ONDE DIABOS FICA DERRY, MAINE? Ele se sentou na cama de Mike, a que compartilhou nas noites da última semana com sua esposa de corpo quente, mas que parecia um cadáver, e colocou os tênis... um par de Keds, que também comprou em Bangor no dia anterior.

 

Ele ficou de pé e se olhou no espelho de novo. Viu um homem chegando à meia-idade vestido com roupas de garoto.

 

Você está ridículo.

 

Que garoto não é ridículo?

 

Você não é garoto. Desiste disso!

 

— Foda-se, vamos dançar o rock-and-roll — disse Bill baixinho e saiu do quarto.

 

Nos sonhos que terá em anos seguintes, ele está sempre saindo de Derry sozinho no pôr do sol. A cidade está deserta; todo mundo foi embora. O Seminário Teológico e as casas vitorianas na West Broadway se destacam contra um céu fantasmagórico, todos os pores do sol de verão que você já viu comprimidos em um.

 

Ele consegue ouvir seus passos ecoando ao soarem no concreto. O único outro som é de água correndo com som oco pelos escoadouros

 

Ele empurrou Silver pela entrada, apoiou no descanso e verificou os pneus de novo. O da frente estava bem, mas o de trás estava meio murcho. Ele pegou a bomba de bicicleta que Mike tinha comprado e encheu. Depois que guardou a bomba, verificou as cartas e os pregadores. As rodas da bicicleta ainda faziam aqueles sons empolgantes de metralhadora dos quais Bill se lembrava da infância. Que bom.

 

Você ficou maluco.

 

Talvez. Vamos ver.

 

Ele entrou na garagem de Mike de novo, pegou o kit três em um e passou óleo na corrente e na roda dentada. Em seguida, ficou de pé, olhou para Silver e deu um apertão leve e experimental na buzina. O som foi bom. Ele assentiu e entrou na casa e vê todos aqueles lugares de novo, intactos como naquela época: o prédio de tijolos da Derry Elementary, a Ponte do Beijo coberta de iniciais complexas, de casais de estudantes prontos a explodir o mundo com suas paixões, que cresceram e se tornaram seguradores, vendedores de carros, garçonetes e esteticistas; ele vê a estátua de Paul Bunyan contra aquele céu sangrento de pôr do sol e a cerca branca inclinada na calçada da rua Kansas na beirada do Barrens. Ele vê tudo como era antes, como sempre será em algumas partes de sua mente... e seu coração se parte com amor e horror.

 

Indo embora, indo embora de Derry, pensa ele. Estamos indo embora de Derry, e se isso fosse uma história, seriam as últimas cinco páginas, mais ou menos; prepare-se para guardar este livro na prateleira e esquecê-lo. O sol está descendo, e não há nenhum som além dos meus passos e da água nos bueiros. É a hora de Dialing for Dollars deu lugar a Wheel of Fortune. Audra estava sentada passivamente em frente à TV, sem tirar os olhos do aparelho. A atitude dela não mudou quando Bill desligou a TV.

 

— Audra — disse ele, indo até ela e segurando sua mão. — Venha.

 

Ela não se mexeu. Sua mão ficou na dele, quente como cera. Bill pegou a outra mão no braço da poltrona de Mike e puxou-a para ficar de pé. Ele a tinha vestido naquela manhã da mesma forma que tinha se vestido. Ela estava usando uma calça Levi’s e uma camiseta azul. Estaria linda se não fosse a expressão vazia.

 

— V-Vem — disse ele de novo, e guiou-a pela porta, passando pela cozinha de Mike até chegar do lado de fora. Ela acompanhou voluntariamente... embora tivesse despencado no degrau da varanda e caído espalhada no chão de terra se Bill não tivesse passado um braço na cintura dela para guiá-la.

 

Ele a levou até onde Silver estava, apoiada no descanso na luz intensa do meio-dia de verão. Audra ficou de pé ao lado da bicicleta, olhando serenamente para a lateral da garagem de Mike.

 

— Sobe, Audra.

 

Ela não se mexeu. Com paciência, Bill se dedicou a fazer com que ela passasse uma das longas pernas pela garupa em cima do para-choque de trás de Silver. Ela acabou ficando de pé com a garupa entre as pernas, não exatamente tocando em sua virilha. Bill apertou de leve a cabeça dela, e Audra se sentou.

 

Ele montou no selim de Silver e levantou o descanso com o calcanhar. Preparou-se para pegar as mãos de Audra e envolvê-las em sua cintura, mas antes que ele pudesse fazer isso, elas assumiram a posição por vontade própria, como ratinhos atordoados.

 

Ele olhou para as mãos com o coração batendo mais forte, parecendo bombear em sua garganta tanto quanto no peito. Era a primeira ação independente de Audra em toda a semana, até onde ele sabia... a primeira ação independente desde que aquela Coisa aconteceu... fosse lá o que essa Coisa fosse.

 

— Audra?

 

Não houve resposta. Ele tentou virar o pescoço para ver, mas não conseguiu. Só havia as mãos dela ao redor de sua cintura, com as unhas mostrando os restos de um esmalte vermelho que foi passado por uma jovem mulher inteligente, cheia de vida e talentosa em uma cidadezinha inglesa.

 

— Vamos dar uma volta — disse Bill, e começou a empurrar Silver na direção da alameda Palmer, escutando o cascalho debaixo dos pneus. — Quero que você segure, Audra. Acho... Acho que pode ser que eu vá meio r-r-rápido.

 

Se eu não perder a coragem.

 

Ele pensou no garoto que encontrou no começo de sua estada em Derry, quando a Coisa ainda estava acontecendo. Não dá pra tomar cuidado em um skate, disse o garoto.

 

São as palavras mais verdadeiras já ditas, garoto.

 

— Audra? Está pronta?

 

Nenhuma resposta. Será que as mãos dela apertaram um pouco a barriga dele? Talvez tenha sido só a imaginação.

 

Ele chegou à calçada e olhou para a direita. A alameda Palmer ia direto até a rua Upper Main, onde uma virada à esquerda o levaria até a colina que ia para o centro. Colina abaixo. Pegando velocidade. Ele sentiu um tremor de medo com a imagem, e um pensamento inquietante

 

(ossos velhos quebram fácil, Billy, meu garoto)

 

passou por sua mente quase rapidamente demais para ser lido e sumiu. Mas... Mas não era só inquietação, era? Não. Era desejo também... a sensação que ele teve quando viu o garoto andando com o skate debaixo do braço. O desejo de ir rápido, de sentir o vento passando por você sem saber se você estava correndo na direção dele ou para longe, de apenas ir. De voar.

 

Inquietação e desejo. Toda a diferença entre o mundo e a vontade, a diferença entre ser um adulto que avaliava o preço e uma criança que apenas fazia o que tinha vontade, por exemplo. Todo o mundo entre as duas coisas. Mas a diferença entre elas não era tanta assim. Eram praticamente parceiras. O que você sentia quando o carrinho da montanha-russa chegava ao alto da primeira grande subida, onde a emoção começa de verdade.

 

Inquietação e desejo. O que você quer e o que tem medo de tentar. Onde já esteve e aonde quer ir. Tem alguma coisa em uma música de rock-and-roll sobre querer a garota, o carro, um local para ficar e estar. Ah, por favor, Deus, você entende.

 

Bill fechou os olhos por um momento, sentindo o pequeno peso morto que era a mulher atrás de si, sentindo a colina em algum lugar à frente, sentindo seu próprio coração dentro do corpo.

 

Seja corajoso, seja verdadeiro, encare.

 

Ele começou a empurrar Silver de novo.

 

— Quer dançar um pouco de rock-and-roll, Audra?

 

Nenhuma resposta. Mas tudo bem. Ele estava pronto.

 

— Se segura, então.

 

Ele começou a pedalar. O início foi difícil. Silver balançou de forma alarmante de um lado para o outro, com o peso de Audra aumentando seu desequilíbrio... mas ela devia estar fazendo algum contrapeso, mesmo que inconscientemente, senão eles teriam caído assim que começaram. Bill ficou de pé nos pedais com as mãos apertando as barras do guidão com força maníaca, a cabeça virada para o céu, os olhos apertados e os tendões no pescoço saltados.

 

Vou cair de cara aqui na rua, abrir a cabeça dela e a minha...

 

(não vai segue em frente Bill segue em frente vai pelo filho da puta)

 

Ele ficou de pé nos pedais, girando-os e sentindo cada cigarro que fumou nos últimos vinte anos na pressão sanguínea elevada e no disparo do coração. Foda-se isso também!, pensou ele, e a onda da euforia louca o fez sorrir.

 

As cartas de baralho, que estavam fazendo disparos isolados, agora começaram a estalar mais rápido. Elas eram novas, com imagens de motos novinhas, e faziam um som bem alto. Bill sentiu o primeiro toque de brisa na careca e seu sorriso se alargou. Eu fiz essa brisa, pensou ele. Fiz ao bombear os malditos pedais.

 

A placa de PARE no final da alameda estava chegando. Bill começou a frear... mas (com o sorriso ainda se alargando, mostrando mais e mais os dentes) voltou a pedalar.

 

Depois de ignorar a placa de PARE, Bill Denbrough virou para a esquerda, na rua Upper Main acima do Parque Bassey. Mais uma vez, o peso de Audra o enganou e eles quase viraram e caíram. A bicicleta oscilou, balançou e se acertou. Aquela brisa estava mais forte agora, esfriando o suor na testa dele, fazendo-o evaporar, passando a toda pelos ouvidos com um som baixo e envolvente que parecia um pouco o mar em uma concha, mas na verdade não se parecia com nada no mundo. Bill achava que era um som que o garoto do skate conhecia bem. Mas é um som com o qual você vai perder contato, garoto, pensou ele. As coisas têm a mania de mudar. É um truque sujo, então esteja preparado.

 

Ele estava pedalando mais rápido agora, encontrando um equilíbrio melhor na eletricidade. As ruínas de Paul Bunyan estavam à esquerda, como um colosso caído. Bill gritou:

 

— Hi-yo, Silver, VAMOOOOOS!

 

As mãos de Audra apertaram sua barriga; ele sentiu-a se mover de leve em suas costas. Mas não havia desespero para se virar e tentar olhar para ela agora... nenhum desespero, nenhuma necessidade. Ele pedalou mais rápido, rindo alto, um homem careca, alto e magro de bicicleta, agachado sobre o guidão para diminuir a resistência do vento. As pessoas se viraram para olhar enquanto ele disparava pela lateral do Parque Bassey.

 

Agora a rua Upper Main começou a se inclinar na direção do centro afundado da cidade em um ângulo mais íngreme, e uma voz dentro dele sussurrou que, se ele não freasse logo, cairia nos restos afundados da interseção de três ruas como um foguete e mataria os dois.

 

Em vez de frear, ele voltou a pedalar, fazendo a bicicleta ir ainda mais rápido. Agora ele estava voando pela colina da rua Main e conseguia ver as barreiras brancas e laranja, os barris com as chamas fumacentas de Halloween marcando as beiradas do afundamento. Ele conseguia ver o topo de prédios que se projetavam das ruas como partes da imaginação de um maluco.

 

— Hi-yo, Silver, VAMOOOOOS! — gritou Bill Denbrough em estado delirante e disparou colina abaixo na direção do que houvesse pela frente, ciente por uma última vez de Derry como seu lugar, ciente mais do que tudo de que estava vivo debaixo de um céu verdadeiro, e que tudo era desejo, desejo, desejo.

 

Ele desceu colina abaixo em Silver. Ele correu para vencer o diabo.

 

Então, você vai, e há uma vontade de olhar para trás, de olhar para trás só uma vez quando o pôr do sol some, de ver aquela paisagem severa da Nova Inglaterra uma última vez: as torres, a Torre de Água, Paul com o machado apoiado no ombro. Mas talvez não seja tão boa ideia olhar para trás, todas as histórias dizem isso. Veja o que aconteceu com a esposa de Lot. É melhor não olhar para trás. É melhor acreditar que vai haver felizes para sempre o tempo todo. E pode ser que haja; quem pode dizer que não existem finais assim? Nem todos os barcos que saem velejando na escuridão nunca mais encontram o sol, ou a mão de outra criança; se a vida ensina alguma coisa, é que há tantos finais felizes que o homem que acredita que Deus não existe precisa questionar seriamente sua racionalidade.

 

Você vai embora e vai rápido quando o sol começa a descer, pensa ele nesse sonho. É isso que você faz. E, se tiver um último pensamento, talvez seja em fantasmas... fantasmas de crianças de pé na água ao pôr do sol, de pé em círculo, de mãos dadas, com rostos jovens, seguros, mas sofridas... sofridas o bastante, ao menos, para darem à luz as pessoas que elas vão virar, sofridas o bastante para entenderem, talvez, que as pessoas que vão se tornar precisam necessariamente ser as pessoas que eles eram antes de poderem seguir em frente tentando entender a simples mortalidade. O círculo se fecha, a roda gira e isso é tudo que há.

 

Você não precisa olhar para trás para ver essas crianças; parte de sua mente vai vê-las para sempre, vai viver com elas para sempre, vai amar com elas para sempre. Elas não são necessariamente a melhor parte de você, mas já foram o depósito de tudo que você poderia se tornar.

 

Crianças, eu amo vocês. Amo muito vocês.

 

Portanto, vá rapidamente, saia dirigindo enquanto a última luz some, vá para longe de Derry, das lembranças... mas não do desejo. Isso fica, a imagem vibrante de tudo que fomos e acreditávamos quando crianças, tudo que brilhava em nossos olhos quando estávamos perdidos e o vento soprava na noite.

 

Vá embora e tente continuar a sorrir. Ouça um pouco de rock-and-roll no rádio e vá em direção a toda vida que existe com toda a coragem que você consegue reunir e toda a crença que tem. Seja verdadeiro, seja corajoso, enfrente.

 

Todo o resto é escuridão.

 

— Ei!

 

— Ei, moço, você...

 

— ... cuidado!

 

— O idiota vai...

 

As palavras voaram na corrente de ar, tão sem sentido quanto bandeiras em uma brisa ou balões soltos. As barreiras de segurança chegaram; ele conseguia sentir o aroma queimado de querosene nos barris de sinalização. Ele viu a boca aberta da escuridão onde a rua ficava, ouviu a água aborrecida correndo lá embaixo na escuridão e riu.

 

Ele virou Silver para a esquerda com força, tão perto das barreiras agora que a perna da calça jeans raspou em uma delas. As rodas de Silver passaram a menos de 8 centímetros do local onde o asfalto terminava em vazio, e ele estava ficando sem espaço de manobra. À frente, a água tinha erodido toda a rua e metade da calçada na frente da Joalheria Cash. Barreiras fechavam a passagem que tinha sobrado na calçada; ela foi severamente afetada.

 

— Bill? — Era a voz de Audra, atordoada e um pouco rouca. Ela parecia ter acabado de acordar de um sono profundo. — Bill, onde estamos? O que estamos fazendo?

 

— Hi-yo, Silver! — gritou Bill, virando o veículo disparado que era Silver diretamente para a barreira de segurança em posição inclinada em frente à vitrine vazia da Cash. — HI-YO SILVER VAMOOOOOS!

 

Silver bateu na barreira a mais de 65 quilômetros por hora e ela saiu voando, a tábua do centro em uma direção, os apoios em forma de A em duas outras. Audra gritou e apertou Bill com tanta força que ele ficou sem ar. Por todas as ruas Main, Canal e Kansas, havia pessoas em portas e calçadas observando.

 

Silver disparou pelo resto estreito de calçada. Bill sentiu o quadril e o joelho esquerdo rasparem na lateral da joalheria. Sentiu a roda de Silver balançar de repente e entendeu que a calçada estava caindo atrás deles...

 

... mas o movimento de Silver os levou até o chão sólido. Bill desviou para evitar uma lixeira virada e saiu para a rua de novo. Os freios gritaram. Ele viu a grade de um grande caminhão se aproximar, mas não conseguia parar de rir. Passou pelo espaço que o caminhão ocuparia um segundo antes de ele chegar lá. Merda, deu tempo de sobra!

 

Gritando e com lágrimas saindo dos olhos, Bill apertou a buzina de Silver e escutou cada apito rouco se incutir na luz intensa do dia.

 

— Bill, você vai matar nós dois! — gritou Audra, e apesar de haver pavor na voz dela, ela também estava gritando.

 

Bill fez a curva com Silver e desta vez sentiu Audra se inclinando com ele, tornando a bicicleta mais fácil de controlar, ajudando a fazer os dois existirem junto com ela, pelo menos naquele curto momento, como três coisas vivas.

 

— Você acha? — gritou ele.

 

— Eu sei! — gritou ela, e agarrou a virilha dele, onde havia uma enorme e alegre ereção. — Mas não pare!

 

Mas ele não tinha o que fazer. A velocidade de Silver estava diminuindo na colina Up-Mile, e o rugido pesado das cartas de baralho estava se tornando disparos isolados de novo. Bill parou e se virou para ela. Ela estava pálida, de olhos arregalados, obviamente com medo e confusa... mas acordada, ciente e gargalhando.

 

— Audra — disse ele, gargalhando com ela. Ele a ajudou a descer de Silver, apoiou a bicicleta em um muro de tijolos e a abraçou. Ele beijou a testa dela, os olhos, as bochechas, a boca, o pescoço, os seios.

 

Ela o abraçou enquanto ele fazia isso.

 

— Bill, o que andou acontecendo? Eu me lembro de sair do avião em Bangor, mas não consigo me lembrar de nada depois disso. Você está bem?

 

— Estou.

 

— Eu estou?

 

— Está. Agora.

 

Ela o empurrou para poder olhar para ele.

 

— Bill, você ainda está gaguejando?

 

— Não — disse Bill, e beijou-a. — Minha gagueira sumiu.

 

— Pra sempre?

 

— Sim — disse ele. — Acho que desta vez é pra sempre.

 

— Você falou alguma coisa sobre rock-and-roll?

 

— Não sei. Falei?

 

— Eu te amo — disse ela.

 

Ele assentiu e sorriu. Quando sorriu, pareceu bem jovem, independentemente da careca.

 

— Eu também te amo — disse ele. — E o que mais conta?

 

Ele acorda desse sonho sem conseguir lembrar exatamente o que foi, nem nada mais além do simples fato de que sonhou que era criança de novo. Ele toca nas costas macias da esposa enquanto ela dorme seu sono quente e sonha seus próprios sonhos; ele pensa que é bom ser criança, mas também é bom ser adulto e poder avaliar o mistério da infância... suas crenças e desejos. Vou escrever sobre isso tudo um dia, pensa ele, e sabe que é só um pensamento de amanhecer, um pensamento pós-sonho. Mas é bom pensar assim por um tempo no silêncio limpo da manhã, pensar que a infância tem seus segredos doces e confirma a mortalidade, e que a mortalidade define toda a coragem e todo o amor. Pensar que o que já ansiou pelo futuro também precisa olhar para trás, e que cada vida faz sua própria imitação da imortalidade: uma roda.

 

É o que Bill Denbrough pensa às vezes naquelas manhãs depois de sonhar, quando quase se lembra da infância e dos amigos com os quais a compartilhou.

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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