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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JERUSALÉM / Andréa Frediane
JERUSALÉM / Andréa Frediane

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Devastação. Escombros. Carnificina. Horror. Sacrilégio. Era somente isso que Zoker avistava diante de si.

Em um instante, a visão apocalíptica que o sol incendiado do crepúsculo lhe oferecia, com angustiante evidência, havia apagado a imagem mental de sua cidade, a qual ele abandonara com toda a comunidade ebionita sete anos antes: uma interminável abundância de edifícios, circunscrita e subdividida por imponentes muralhas e torreões sobranceiros a íngremes penhascos, e dominados pelo alti­plano do Templo, cujos revestimentos de ouro e prata refletiam fulgores ofuscantes. E uma poderosa fortaleza, a Antônia, cujas quatro torres angulares se pretendiam rumo ao céu sobrepujando a área sacra; e os viçosos arredores do perímetro urbano, os ricos vales entrecortados por muretas, sebes, paliçadas para as hortas, árvores e bosques e jardins.

Zoker buscava desesperadamente com os olhos algo de familiar, algo que lhe recordasse a primeira parte de sua vida. Vasculhava a lúgubre paisagem para desencavar um testemunho do próprio passa­do e do motivo que o induzira a retornar. Mas não havia nada, nada que lhe permitisse avistar pistas da atividade de Tiago, o Justo, de seus sermões ao longo das escadarias do Templo, das procissões que ele encabeçava para protestar contra os sacerdotes e o rei Agripa II, dos sacrifícios aos quais presidia diante do povo.

Antes mesmo de elevar o olhar diante de si, havia percebido que aquela já não era a terra onde nascera. Ao longo das encostas do monte Scopus, ao qual ele subira para ter uma visão do conjunto de Jerusalém, não tinha divisado uma só árvore; no entanto, recordava que justamente a densa presença de árvores sempre o impedira, quando menino, de despencar ladeira abaixo.

Uma vez no topo, seus pés tinham percorrido um terreno plano, batido por solas militares, nivelado pelos aquartelamentos que durante muito tempo três legiões romanas haviam mantido sobre a colina, antes de deslocar-se para o lado oposto.

Procurou o Templo. Mas, no lugar dele, no monte que o acolhe­ra por seis séculos, havia um acúmulo disforme de detritos negros. Somente alguns pedaços da arcada do magnífico pórtico ainda esta­vam de pé, tornando mais angustiante a lembrança da imponência do edifício. Zoker se habituara a considerá-lo o mais sagrado do mundo, e nunca teria pensado que ele pudesse ser profanado a tal ponto; nunca, nem mesmo quando se escandalizava com as ofensivas oferendas feitas ali pelos não circuncidados, as quais Saulo de Tarso, desentendendo-se com Tiago, havia tolerado.

Em sua mente, poucas lembranças eram mais vividas que a do dia do Kippur de oito anos antes, no qual vira seu tio Tiago sair do Sancta Sanctorum trajando os paramentos sacros de sumo sacerdo­te. Naquele dia, Zoker o observara, envolto numa aura de santida­de. Sobre a cabeça, Tiago trazia uma tiara de bisso com orla azul; uma coroa de ouro apresentava em relevo as quatro letras sagradas de Deus. Usava uma veste azul, longa até os pés, rica de franjas das quais pendiam romãs, símbolo do raio, e campainhas, símbolo do trovão. Cingia seu peito uma faixa de cinco cores: ouro, púrpura, ver­melho, linho e azul — as mesmas das cortinas do Templo e também de seu mantelete, preso por duas fivelas de ouro —, sobre as quais estavam gravados os nomes dos epônimos das doze tribos de Israel. E doze eram igualmente as pedras que pendiam na frente, em fileiras de três: sardônica, topázio, esmeralda, carbúnculo, jaspe, safira, ágata, ametista, liguro, ônix, berilo, crisólita. Tais nomes jamais haviam entrado na cabeça de Zoker enquanto quem oficiava era apenas o sumo sacerdote; mas tão grande era seu orgulho pelo papel desempenhado pelo tio que ele se obstinara em aprendê-los então.

 

 

 

 

O sumo sacerdote Anano havia concedido também a Tiago que pregasse no Templo no dia da expiação, mas ficara ressentido com o espetacular consenso que este havia suscitado junto ao povo. Desde então, o tio fora objeto de todo gênero de acusação de impureza: ter ousado pronunciar o nome de Deus; ter entrado, contaminado, no sacro santuário de Israel. Na realidade, tratava-se apenas de procu­rar pretextos para calar um ícone da oposição, um homem respeita­do e até venerado, que ousara recriminar o rei Agripa e lembrar aos sacerdotes seus deveres para com o povo hebreu, o respeito às Sagradas Escrituras e às prescrições religiosas, a escandalosa aquies­cência deles aos dominadores romanos.

Zoker buscou com o olhar a Antônia, sem ver nada além de uma esplanada irregular no ponto para onde o instinto havia guiado seus olhos. Tentou reconstituir a aparência de sua cidade, da qual recor­dava a harmoniosa alternância entre as elevações e as baixadas que separavam uma área da outra. Em vez disso, divisou vários terraple- nos fortificados, muitos dos quais culminavam em rampas sobre as quais se elevavam, semi-destruídas ou ainda íntegras, abandonadas ou fervilhantes de homens, torres de assédio diante das quais se per­cebia, invariavelmente, uma brecha na muralha circundante.

Procurou o tríplice circuito de muralhas que ao norte havia encerrado a cidade nova. Mas a fortificação mais externa tinha desa­parecido, assim como o casario que antes povoava o campo dos Assírios. De resto, também ali os romanos haviam montado um de seus acampamentos. Agora, em contraposição, o acampamento mais consistente deles ficava no lado oposto, no ângulo ocidental, e pare­cia a única área organizada naquele apocalipse. Zoker viu outro acampamento à sua esquerda, no monte das Oliveiras, e vestígios da presença de mais um a oeste, diante do palácio de Herodes. Uma trincheira de terra e paliçadas ligava todos eles, cingindo o que res­tava da cidade em um torniquete através do qual, ele não conseguiu evitar pensar, era improvável passar.

Buscou a densa área povoada da Cidade Baixa, feita de terraços muito próximos e vielas estreitas, mas, em vez disso, viu uma som­bria alternância de escombros ainda fumegantes, clareiras e habita­ções ainda intactas.

Por último, procurou a Cidade Alta, o setor mais distante de seu ponto de observação. Finalmente, identificou um espetáculo fami­liar: ela ainda estava ali, tal como a deixara e como a recordava. Não havia vazios nem escombros onde ele tinha morado, e onde espera­va encontrar, ainda, aquilo pelo qual tinha vindo. No entanto, a colina sobre a qual ficava esse setor estava circundada por uma série de terraplenos em construção, tétrico prelúdio aos próximos assal­tos dos romanos. Havia um no lado ocidental, diante do palácio de Herodes, outro que preenchia a baixada na direção do monte do Templo, e mais um a setentrião, em frente ao Xisto, a esplanada para as exibições ginásticas.

Mas foi só quando ele focalizou a circunvalação que seus olhos foram invadidos pelo horror.

Um manto lúgubre encobria os sinais da operosidade dos habi­tantes, que durante séculos tinham esculpido a terra com suas obras. As ravinas e as encostas da vertente oriental da cidade, ao longo do vale de Josafá, estavam cheias de corpos jogados sobre o terreno. E entre as pilhas de cadáveres se erguiam, como tétricos sucedâneos das árvores, centenas de cruzes, das quais pendiam inertes os corpos putrefatos dos rebeldes, expostos à visão dos assediados.

O verdadeiro problema, pensou Zoker, era o fosso que cingia a cidade. Se conseguisse ultrapassá-lo, penetrar além das muralhas não seria impossível. Quem quer que tivesse vivido em Jerusalém conhe­cia os túneis e as galerias que corriam por baixo das construções; se não tivessem sido todos descobertos e obstruídos, ainda haveria como chegar à Cidade Alta. Depois, quanto ao que ele encontraria, bastava esperar que Simeão bar-Cleofas ainda estivesse vivo e de posse do memorial de Tiago, o Justo. Lá dentro morria-se de fome, era capaz de jurar.

Mas Zoker estava ali para aquilo. Para salvar Simeão, primo de seu pai. Para recuperar o memorial e evitar que Tiago caísse no esquecimento, ao qual as mentiras de Saulo de Tarso o estavam con­denando. E para restabelecer a verdade sobre o homem extraordiná­rio que era o objeto do memorial de Tiago.

Jeshua.         

 

Manzikert, Anatólia oriental, agosto de 1071. Batalha entre o exército bizantino do imperador Romano IV Diógenes e as tropas do sultão turco seljúcida

— Emanuel! Corra à retaguarda e comunique a Ducas que venha ao nosso encontro e proteja a retirada! O sol já vai se pôr e não faz sentido ir adiante. Estamos desconectados das alas e os turcos evi­tam o confronto! — gritou o imperador, montado em seu cavalo branco, enquanto se defendia das investidas algo hesitantes de dois seljúcidas da cavalaria pesada.

Envolto pela nuvem de poeira que os cascos dos cavalos levanta­vam, Emanuel mal enxergava o comandante supremo. Mas o escuta­ra muito bem, e logo partiu a galope, desferindo seu kontarion, a comprida lança de que dispunha a cavalaria couraçada, contra um turcomano surgido de uma das tendas do acampamento adversário. Atingido direto no peito. Muito bom, pensou ele, para quem, ape­nas algumas semanas antes, ainda manejava com grande dificuldade a lança longa.

Estava em sua primeira campanha e já se encontrava em pleno combate contra as tropas do sultão seljúcida, ao lado do imperador Romano IV, o general mais valente que o Império Bizantino podia ostentar desde os tempos de Basílio II. E era um orgulhoso membro dos hikanatoi, os cadetes da alta nobreza que faziam parte das tagmata, as tropas de Constantinopla.

Vinham combatendo desde o amanhecer. Pelo menos eles, os regimentos da capital sob o comando direto do imperador no cen­tro das fileiras, haviam conseguido chegar ao campo inimigo, mas Emanuel tinha a impressão de que os turcos não haviam feito muita coisa para impedi-los. Ao contrário, os adversários pareciam mais combativos contra as alas, nas quais haviam obrigado os gregos a avançar muito mais lentamente. Os bizantinos ainda estavam em superioridade numérica, mas, quanto àquela tática... parecia de fato comprometida, com os quatro setores em que era dividido o exérci­to imperial bastante afastados uns dos outros.

Mas não havia motivo para preocupação: no máximo, o combate seria apenas preliminar e a decisão da batalha, deixada para o dia seguinte. Um bom resultado, considerando-se a excessiva subdivisão das forças e a deserção, ao anoitecer da véspera, do contingente de turcos oguzes, que haviam aderido aos confrades seljúcidas. Um epi­sódio, este último, que custara a Emanuel sua primeira decepção. De fato, justamente entre os mercenários oguzes o jovem soldado fizera seu primeiro amigo naquela campanha: um integrante da cavalaria ligeira chamado Firuz, o único que o tinha defendido, encorajado e treinado quando todos os companheiros mais experientes zomba­vam dele por sua incapacidade no uso do kontarion.

Emanuel se afeiçoara sinceramente àquele turco simpático, feio de arrepiar, refratário a qualquer forma de limpeza, desengonçado ao caminhar, por causa do hábito de se firmar sobre o cavalo, e quase ridículo ao falar hesitantemente o grego. O desconcerto dian­te da traição de Firuz emparelhava com o desalento por seu desapa­recimento sem nenhum aviso prévio.

De qualquer modo, dissera a si mesmo, Romano Diógenes era um exímio comandante, corajoso e experiente; a ele bastaria com­pactar as fileiras para fazer uma retirada sem danos. E no dia seguin­te, ou até naquele mesmo entardecer, certamente chegariam para reforçar o exército as divisões de infantaria varegue e armênia envia­das a sudoeste, ao lago Van, ou pelo menos a cavalaria pesada fran­ca dos mercenários de Roussel de Bailleul.

Impelido pelo otimismo, Emanuel continuou a cavalgar rumo à retaguarda comandada por Andrônico Ducas, mas, de soldados bizantinos, não encontrou qualquer indício. "Ou nós viemos muito depressa ou eles, muito devagar", pensou, com uma pontinha de apreensão.

Divisou uma nuvem de pó e umas silhuetas indistintas, após um tempo que lhe pareceu longo demais. Também não entendeu por que não conseguia avizinhar-se, embora os soldados cavalgassem em sua direção. Depois, compreendeu.

Não estavam cavalgando ao seu encontro.

Ele é que os estava seguindo.

Eram as costas deles, e os dorsos dos cavalos, as silhuetas que Emanuel distinguia com dificuldade na poeira do planalto anatólio.

Acelerou até alcançar o último da coluna.

O que estão fazendo? Devem vir ajudar o imperador! Ele pre­cisa de vocês! Tenho ordens de reuni-los às tagmata, antes que escu­reça! — gritou.

O soldado se voltou, mas não deu indícios de parar, para não perder o contato com o resto do contingente.

O imperador? Mas ele não está morto?

Morto? Quem lhe disse isso? Está vivo, e combatendo como um leão! Vocês deveriam estar mais próximos do centro! — respon­deu Emanuel, irritado.

Não existe mais um centro. Fomos derrotados. O imperador morreu. Foi o que Ducas nos disse. Queremos salvar nossa pele. Procure fazer isso também, se puder — replicou o cavaleiro, sem demonstrar a mínima dúvida.

Idiota! Eu vim do centro! Estamos inteiros e o imperador, vivo e atuante! Vai entender ou não? Quero falar com o chefe de sua unidade!

Balelas. Você deve ser um daqueles de Nicéforo Briênio que vêm nos pedir ajuda. Cada um por si, amigo!

"Esse Ducas os manipulou muito bem. E nisso que dá confiar um ponto nevrálgico da formação a um adversário político...", pen­sou Emanuel, o qual mesmo assim não se deu por vencido.

Mostre-me seu comandante, eu já disse! — gritou de novo, dando ao próprio rosto a expressão mais respeitável que seus dezoi­to anos lhe permitiam.

Em instantes, topou com uma cúspide de lança apontada para seu pescoço.

Vá embora, já mandei, e fuja também, se for esperto. Como quer que seja, seu imperador está perdido, todos aqui sabem disso — concluiu o outro, em tom definitivo.

— Eu não disse? O imperador é um cavalo vencido — comentou o chefe dos mercenários francos, Roussel de Bailleul, enquanto, junto com seu estado-maior, observava do alto de uma colina os movi­mentos das tropas nos arredores de Manzikert.

A fama militar dele é imerecida. Como é que alguém pode truncar as forças em duas partes na véspera de um confronto impor­tante? — acrescentou seu vice.

Na verdade... quando mandou que nós e os varegues fôssemos tomar Khilat, ele não sabia que teria de enfrentar o exército inteiro do sultão... — observou um adolescente atrás deles.

Quem falou? — inquiriu com desprezo o vice-comandante, voltando-se.

É o meu escudeiro. Tem a mania de abrir a boca quando não é interpelado — esclareceu Bailleul, com uma expressão de tédio.

O outro esquadrinhou o jovem. Este não devia ter mais de treze ou catorze anos, e, no entanto, era alto como um homem-feito. Robusto também. Seus olhos, de um azul intenso, pareciam subtraí­dos a um homem pelo menos vinte anos mais velho; destacavam-se num rosto imberbe, imaturo, no qual as espinhas eram mais fre­qüentes do que os ralos pelos da barba.

Agora, até os escudeiros se metem a discorrer sobre estratégia... — prosseguiu o guerreiro, sem aliviar seu tom de superioridade.

De qualquer modo, é uma questão que não nos interessa mais. Já vimos o suficiente. É hora de escapulir — disse o comandante, virando o cavalo.

Mas como, senhor! — O jovem se plantou diante dele. — Nós vamos embora? Quinhentos cavaleiros seriam úteis ao imperador! Ele ainda pode se sair bem!

Não me faça perder a paciência, rapaz. Já tolerei demais sua insolência — grunhiu Roussel. — Em Constantinopla, quem contro­la os cordões da bolsa são os aristocratas, e não aquele coitado ali embaixo, que combate praticamente sozinho, até mesmo na pátria. Nós, mercenários, devemos pensar no futuro — continuou, impelin­do seu cavalo contra o do escudeiro.

Este, porém, não pretendia dar-se por vencido e agüentou o choque.

Embora sejamos mercenários, supõe-se que também somos homens honrados — insistiu. — Existem outras motivações além do dinheiro. Devemos ajudar Romano. Ele é o nosso empregador!

Empregador? — Roussel explodiu numa gargalhada obscena. — Daqui a pouco já não teremos um empregador, e, portanto, é melhor agirmos para encontrar facilmente outro trabalho. Está vendo aquele ali ao longe? — perguntou, apontando o contingente em fuga, comandado por Andrônico Ducas. — Pois é, nosso próxi­mo patrão será ele, ou algum de seus parentes...

Não, se cumprirmos nosso dever! O imperador só precisa de um contingente que lhe cubra a retirada! — continuou o jovem.

Como se chama este fedelho que pretende nos dar lições de vida, afora as de estratégia? — perguntou outro cavaleiro do estado-maior.

Ricardo — respondeu De Bailleul, com uma risadinha. — Está comigo há pouco tempo. Seu pai era um dos meus mais fiéis subal­ternos normandos, caído em uma campanha contra os petchenegues na Grécia. No início do ano, a mãe veio me pedir que o tomasse como escudeiro e, em nome da memória do pai, não pude recusar. Mas está me dando tanta dor de cabeça que, juro a vocês, assim que chegarmos a Constantinopla vou me livrar dele!

Eu é que não quero mais servir num contingente comandado por um chefe tão vil! — rebateu Ricardo, mantendo-se firme onde estava.

O gelo desceu entre os presentes. Nem mesmo um dos mais ínti­mos subalternos de Roussel teria o topete de afrontar daquela maneira seu chefe, veterano de mil batalhas, cuja fama era temida em muitas frentes de guerra, do Mediterrâneo ao mar Negro. Todos aguardaram a réplica do comandante.

Por alguns instantes, Emanuel continuou cavalgando junto ao últi­mo soldado da coluna de Ducas, indeciso sobre o que fazer. Gostaria de tentar falar com alguém importante, mas tinha a impressão de que dessa conversa não obteria nada, a não ser mais perda de tempo. Por fim, virou o cavalo e começou a retornar ao campo de batalha, dirigindo-se para a direita, a fim de avisar a ala comandada por Teodoro Aliates sobre a deserção de Ducas.

Encontrou o contingente bloqueado pelos contínuos disparos de flechas adversárias. Os cavaleiros turcos se aproximavam a galope, em pelotões, até a distância de tiro, arremessavam os dardos em seqüência e retornavam às suas fileiras, para ceder a vez a outras divisões que agiam do mesmo modo. Emanuel observou que os ini­migos enfrentados pelo imperador haviam sido bem menos incisi­vos, e já não teve dúvidas quanto à intencionalidade da tática deles, cujo objetivo, agora evidente, era distanciar e separar o centro e as alas.

Para se garantir, começou a procurar alguém que tivesse sobre o elmo a ampla crista de oficial e a correspondente faixa sobre a cou­raça. Não lhe foi fácil encontrar um: quase todos os combatentes se escondiam atrás dos escudos, sobre os quais continuavam a chover dardos. Por fim, desencavou um oficial.

Venho da parte do imperador. Ele está batendo em retirada. Detenham-se para esperá-lo — disse.

E a reserva? Não deveríamos vê-los passar ao centro?

Emanuel hesitou antes de responder, temendo que a notícia da deserção da retaguarda, após a dos mercenários turcos, ocorrida na véspera, pudesse induzir os soldados ao esmorecimento. Mas informá-los de que, agora, a salvação do imperador só dependia deles também podia constituir uma motivação decisiva para esti­mulá-los a resistir. Decidiu arriscar:

Eles... bem, eles já se retiraram — disse, quase engrolando as palavras.

Retiraram? Fugiram, você quer dizer! — respondeu o oficial.

Fomos derrotados! O imperador está se retirando e Ducas, fugindo! — Emanuel ouviu alguém gritar. A voz era a de um simples skutatos que tinha acompanhado o diálogo e imediatamente perce­bido as conseqüências.

Emanuel olhou o interlocutor, esperando que este repreendesse o homem, mas o oficial não parecia querer desmentir seu subordina­do. Em pouco tempo o boato se espalhou, as fileiras se desmancha­ram e os soldados começaram a recuar de maneira esparsa, sem que Emanuel pudesse intervir de algum modo. Os próprios oficiais se empenharam a fundo, não para bloquear a fuga de seus comandados, mas para dar a ela uma aparência de ordem.

O jovem cavaleiro compreendeu haver perdido a última oportu­nidade para dar ao seu imperador a cobertura que este lhe pedira. Amaldiçoou a própria ingenuidade, a excessiva franqueza e a falta de experiência, que o tinham impedido de mentir. Por um instante, dominado pela vergonha, esteve tentado a se unir à ruptura da ala, mas depois chicoteou o cavalo em direção à vanguarda, mantendo- se bem atento para não se jogar na boca dos turcos. Cavalgou furio­samente, indiferente às flechas que lhe caíam ao redor, com o pensamento fixo nas explicações que deveria fornecer ao comandante supremo.

Quando se viu diante de Romano, hesitou demoradamente antes de fazer seu relatório. A situação se tornara crítica. As flechas inimi­gas tinham abatido quase todos os cavalos, e muitos combatentes, para não expor um alvo muito amplo, haviam renunciado aos ani­mais ainda vivos. Emanuel tinha um só desejo, agora: morrer ao lado do imperador, quem sabe salvando-lhe a vida.

E então? Quer me dizer o que devemos esperar, por são Demétrio? — perguntou o imperador, ofegando atrás de dois subor­dinados que o defendiam dos ataques de um pelotão turco mais audaz do que os outros.

Ducas foi embora. Ao que parece, difundiu-se o boato de que Vossa Majestade havia morrido, e eu não consegui convencê-los do contrário... — disse Emanuel, inclinando a cabeça.

Era de esperar, tratando-se daquele maldito velhaco. Deve estar indo a Constantinopla, a fim de preparar-se o terreno para a sucessão! — exclamou Romano, irritado, mas nem um pouco surpre­so. — E as alas? Estas, pelo menos, ficaram para nos dar cobertura?

Para um jovem e ambicioso cadete da nobreza de Constantinopla, agora era difícil dizer a verdade. Esta lhe saiu com voz embargada:

Pois é... assim que souberam a respeito de Ducas, também se retiraram, dando por certa a derrota...

E quem lhes contou sobre Andrônico? — interpelou-o o impe­rador.

Bem, eles deduziram... das minhas palavras...

Por um instante, Romano fitou Emanuel nos olhos, esmagando-o com o peso de sua mirada. Em seguida, antes de se voltar e recome­çar a combater, sentenciou:

Erro meu. Não se escolhe um recruta para uma tarefa tão deli­cada.

Emanuel sentiu uma fisgada no estômago: o sabor azedo da humilhação. Demorou um pouco a desmontar do cavalo, puxar a espada e colocar-se ao lado de Romano; moveu-se acompanhado por uma sensação de náusea, distante e separado do cenário sobre o qual já caíra a escuridão.

Os gritos de guerra de um destacamento de cavaleiros turcos de contornos indistintos, que atacava a divisão enfileirada diante do imperador, trouxeram sua mente de volta ao campo de batalha. Emanuel se lembrou de seu propósito e, gritando "Kyrie Eleison!", correu em direção aos camaradas mais avançados.

Estes já se encontravam às voltas com as cutiladas das cimitarras inimigas quando o jovem chegou para ajudá-los. Cortou os jarretes do cavalo inimigo mais próximo, de modo que o cavaleiro foi parar no chão à sua mercê, expondo o pescoço à lâmina. Depois de extrair da vítima a espada, Emanuel correu para perto do imperador, que se encontrava em maus lençóis contra dois cavaleiros.

O jovem se jogou com todo o ímpeto contra o flanco de um dos dois inimigos, e o turco, ocupado com Romano, só o viu tarde demais. Emanuel o derrubou do cavalo, mas também perdeu o equi­líbrio e se viu lutando no solo. Rolou na poeira junto com o adver­sário, ao alcance dos cascos do animal, mas este, escoiceando, acabou por atingir o muçulmano na cabeça.

Emanuel retomou a espada e se levantou, imediatamente procu­rando o imperador com o olhar. Romano acabava de perder o escu­do, e sua espada parecia uma magra defesa contra a lança do adver­sário.

O jovem soldado bizantino, agora também sem escudo, não hesitou um instante e se atirou entre os dois, justamente quando o turco erguia o braço para desferir o golpe. Certo de que ia morrer, Emanuel quis encarar seu provável matador.

Era Firuz.

-Vá.

Roussel de Bailleul acompanhou sua lacônica ordem com um gesto do braço, indicando o campo de batalha.

O que está esperando? Afinal, vai combater com eles, não? — reiterou, em meio ao silêncio geral.

Como assim? Sozinho? — respondeu Ricardo, depois de olhar ao redor e constatar que nenhum dos presentes manifestava a inten­ção de segui-lo.

Claro. Você teria as mesmas possibilidades de sobrevivência que nós quinhentos — interveio o vice-comandante. — Além disso, não estará sozinho: lá se encontram o imperador com todos os seus soldados... ainda vivos — acrescentou, antes de explodir numa gar­galhada.

Mas... eu jamais combati... — tentou dizer o rapaz.

E daí? Não é o que você queria? Ânimo! Observaremos daqui sua coragem, e depois diremos à sua mãe que você lutou valorosa­mente, quando dermos a ela a notícia de sua morte — retrucou Roussel.

Mas eu não quero morrer antes de ter me tornado um guerreiro!

Roussel se aproximou dele com ímpeto e, estendendo a mão, agarrou-lhe a gola e lhe gritou na cara:

Escute bem, rapazinho: se quiser se tornar um guerreiro, você deve, antes de mais nada, demonstrar coerência entre as palavras e os atos. Não disse que assumiu um compromisso com o imperador? Pois bem, vá ao encontro dele e não nos amole mais; até porque, seja como for, esta é a última campanha que você faz comigo. Demons­tre-nos se pode aspirar a se tornar um homem. E, se morrer, paciên­cia. Na guerra, acontece.

E largou-o, empurrando-o para trás. Com grande esforço, Ricardo conseguiu se manter em cima da sela e, em seguida, recupe­rado o equilíbrio, olhou ao redor mais uma vez. Alguns dos presen­tes mostravam um olhar sério e compungido; a maioria disfarçava risadinhas sob os bigodes.

Desconsolado, o jovem esporeou o cavalo e, de cabeça baixa, partiu a galope rumo aos milhares de pontinhos escuros ao longe. Experimentou o punho da espada, perguntando-se se seria capaz de desembainhá-la diante de um inimigo para deter um golpe. O medo de matar só era superado pelo de ser morto.

E se não fosse rápido o bastante? Se, no calor da luta, carecesse de precisão? Se não imprimisse à cutilada a potência necessária?

Depois viu um pelotão de turcos cavalgar para fora das fileiras, provavelmente em missão de reconhecimento ou para preparar uma manobra de bloqueio. Notou que todos portavam arcos, e outro medo o assaltou.

E se uma flecha o atingisse antes que ele pudesse fazer alguma coisa?

Percebeu que o tinham visto, e logo sentiu um calor úmido na altura do púbis.

O que fazer?

O golpe não veio.

No instante em que os olhos dos dois haviam se cruzado, Emanuel ficara por demais espantado para ter medo. Depois, o braço de Firuz permanecera dobrado para trás, e o turco dera um violento puxão no cavalo, virando-se e afastando-se a galope, sendo logo engolido pela escuridão.

Antes que surgissem outros adversários, Emanuel teve tempo de notar que seu amigo, para lhe salvar a vida, havia renunciado a se vangloriar da captura do imperador. Depois, Romano chamou sua atenção, acenando-lhe para se posicionar ao lado dele.

A essa altura, por toda parte viam-se aflorar na sombra apenas os turbantes dos turcos. Os bizantinos viam esvoaçarem os muqalläb, as amplas sobrevestes com faixas, usadas pelos adversários, e as cimitarras deles cintilarem no escuro; volta e meia sibilava algum dardo, cujo único objetivo era manter alta a tensão dos gregos.

Entre os cristãos, nenhum se iludia ainda quanto à possibilidade de que alguém, quer se tratasse de Teodoro Aliates, Nicéforo Briênio, Andrônico Ducas ou Roussel de Bailleul, viesse socorrê-los. Por algum tempo, esperaram que os turcos se retirassem ao cair da noite, mas logo ficou evidente que eles não tinham essa intenção. Pelo contrário: quanto mais escurecia, mais se aproximavam, até acuá-los.

Várias vezes o imperador chamou os seus para reuni-los e conduzir uma tentativa de ruptura do cerco, mas no escuro era impossível organizar uma formação em cunha, capaz de penetrar as fileiras turcas: a cada vez, os bizantinos confrontavam o inimigo já dispersos, sem a necessária coesão. E assim recuavam, deixando para trás alguns caídos, e só com dificuldade conseguiam reconstituir o alinhamento.

Emanuel, na verdade, tornara-se o guarda-costas do imperador. E consideraria isso uma grande honra, se tivesse sido uma promo­ção, e não seu sentimento de culpa, a levá-lo para junto de Romano.

O que restava do exército bizantino se esfarelara em muitos gru­pos pequenos e isolados entre si. Emanuel não tinha como saber que sorte coubera às outras divisões. Na sua, constituída pelo imperador e por algumas dezenas de combatentes, tinha a sensação de que, em qualquer momento que escolhessem, os turcos poderiam desfechar o ataque decisivo.

Ocupado em enfrentar um adversário, o jovem só percebeu tarde demais outro seljúcida que investia contra o imperador, infligindo-lhe um talho de cimitarra no flanco. Emanuel se precipitou contra o turco, obrigando-o, com uma série de golpes, a recuar. Depois voltou-se para o soberano, que estava prostrado, embora tentasse desesperadamente se manter de pé, a fim de não desmorali­zar seus soldados. O jovem se apressou a segurá-lo, e notou que ele perdia muito sangue. Ouviu seus companheiros gritarem que o imperador estava ferido.

— É o fim! É o fim! — berrou alguém, logo depois.

Verdade. Era realmente o fim, pensou Emanuel.

Fugir.

Para um garoto de treze anos, sozinho diante do inimigo e em sua primeira experiência de guerra, não havia outra coisa a fazer. Ricardo tentou se convencer de que, para ele, jovem e ainda destreinado, essa não seria uma opção tão covarde quanto para outro com­batente mais tarimbado.

Precisava sobreviver, se quisesse se tornar um guerreiro e demonstrar sua coragem realizando grandes façanhas. Se morresse logo, passaria por um idiota petulante e mais nada.

As primeiras flechas começaram a sibilar ao seu redor bem antes do que ele esperava. Aqueles turcos podiam atirar de muito, muito longe.

Virou o cavalo, deu-lhe um puxão, esporeou-o e galopou na direção de seus companheiros, cujas silhuetas minúsculas e indistin­tas conseguia divisar. Para não oferecer aos perseguidores um alvo muito fácil, estendeu-se ao máximo sobre o dorso do cavalo.

Logo se convenceu de que o alinhamento em espera no alto da colina dissuadiria os turcos de avançar mais, e sua tensão diminuiu. Veio, porém, o temor à reação dos companheiros. Preparou-se para enfrentar o indefectível sarcasmo deles, mas, assim que começou a elaborar justificativas, uma terrível fisgada se irradiou pelo seu glúteo esquerdo.

Por são Miguel Arcanjo, tinha sido alvejado!

Portanto, ainda não estava fora do alcance dos arcos turcos. Foi invadido pelo pânico. Virou-se por um instante e os viu ainda bem distantes. Seus companheiros, ao contrário, estavam bem próximos. Pressionou o cavalo com os estribos e incitou-o com gritos desespe­rados, impelido pelo terror de sequer ver dispararem a flecha que poderia matá-lo.

Cavalgou como um louco, imaginando tê-los sempre atrás de si. Procurou ler o assédio dos perseguidores na atitude de Roussel e seus comandados, cujas silhuetas ele enxergava agora distintamente, embora lhe fosse difícil manter os olhos abertos ao sol afogueado do ocaso. De início, os cavaleiros cristãos lhe pareceram enfileirados para a batalha, um ao lado do outro, com as lanças em riste e os elmos abaixados, mas depois, à medida que se aproximava, viu-os assumir uma postura de repouso, apoiando os antebraços ao longo do pescoço dos cavalos e erguendo os elmos.

Mesmo assim, continuou a esporear o cavalo, até alcançá-los. Só então, ao notar suas expressões divertidas, virou-se para ver onde estavam seus perseguidores.

Não havia mais ninguém.

Emanuel não conseguira permanecer com o imperador. Um mameluco havia desarmado e capturado Romano, enquanto ele enfrenta­va outros dois inimigos. Depois, vira que o deitavam numa cama de campanha e o carregavam. Aquela altura, os oficiais superiores pro­clamaram a rendição, e logo depois alguns turcos oguzes tinham percorrido as fileiras cristãs, levando todos os graduados. Por últi­mo, tinham vindo prender os soldados, que, subdivididos em gru­pos, haviam sido alojados em recintos improvisados.

Emanuel observou seus companheiros. Os gregos estavam prostrados. As perdas não tinham sido elevadas, mas não havia um único soldado que não exibisse ferimentos, menos ou mais graves. Em seus olhos baços, na gestualidade lenta, na atitude apática, liam-se o esforço de um dia inteiro passado em combate e o desalento por tê-lo feito em vão.

Preocupado? Não deve. Sultão não faz nada a vocês, gregos, se imperador assina acordo para cessão territórios. — Aquela voz, o curioso sotaque e o jeito de falar lhe eram familiares.

Firuz! — exclamou, tentando disfarçar a alegria por aquele encontro. Seu amigo, embora lhe tivesse poupado a vida, continua­va sendo um traidor.

Fosse como fosse, aquele era um discurso que devia ser contes­tado.

Ao que parece, durante semanas fui amigo de um traidor... — disse, tentando fazer sua frase parecer uma simples troca de pontos de vista, e não uma acusação.

Você errado. Eu não traidor.

Ah, não? E como chamaria alguém que larga para trás o pró­prio comandante na véspera da batalha e depois luta contra ele? — insistiu Emanuel.

Eu não abandonar imperador. Eu sempre esteve com sultão.

Ao que eu saiba, você combatia por nós, até ontem...

Não. Eu finge. Sultão me confiou missão espiar. Terminado trabalho, eu volta para meu comandante. Não podia lutar contra ele.

Emanuel não teve forças para polemizar sobre os dúbios mean­dros morais que um papel desse tipo comportava. E ele mesmo seguramente não estava livre de máculas, para poder julgar aquele burlesco homenzinho atarracado. Mas nem por isso se dispunha a revelar a ele a própria culpa.

Então, eu deveria apenas lhe agradecer por ter me poupado, no campo de batalha?

Eu não precisa disso. Faria de novo. Você bom combatente e bom homem.

Seja como for, não creio que seu belo gesto adiantará muito. Imagino que, aqui, nós, bizantinos, estejamos todos destinados a um péssimo fim...

Não verdade. Sultão Alp Arslan quer vantagens práticas da vitória. Imperador morto e vocês mortos não serve. E, também, sul­tão sabe que em Constantinopla estão lutando por poder. Se Romano volta, guerra civil, talvez, e isso bom para Islã.

Aí está, isto mesmo. Se vocês venceram, foi só porque Ducas nos traiu — retrucou Emanuel, com desdém. — E também porque os mercenários não chegaram a tempo. — Omitiu o motivo que o envolvia mais diretamente.

Vocês era o tempo todo, muitos mais do que nós, não? Então, por que não venceu?

Porque nossa tática se baseava na colaboração entre os setores, que falhou em conseqüência da traição, foi isso — respondeu Emanuel, desconsolado.

Não. Colaboração entre setores não aconteceu porque nossa tática levou centro longe das alas e da reserva. Eu tinha dito a sultão que Romano é comandante que vai sempre em frente, sem pensar conseqüências. Assim, nosso centro recuado sempre, para fazer vocês avançar, enquanto nossas alas detinham suas alas...

Era exatamente a sensação que Emanuel tivera enquanto comba­tia. Portanto, a idéia havia sido mesmo de Firuz. Brilhante, sem dúvida. Mas ele preferiria ser esquartejado a admitir isso.

Vocês jamais poderiam saber se essa sua tática funcionaria também com Ducas e os mercenários presentes — disse, encerrando a discussão.

Quando Firuz se afastou, o desalento voltou a abrir caminho no ânimo de Emanuel, e foi nesse estado que ele passou o resto da noite. Compreendeu que não encontraria paz enquanto não se redimisse, e desejou que o imperador lhe desse uma nova oportunidade. Se era verdade aquilo que seu amigo turco afirmava — e as probabilidades eram altas —, Romano precisaria de todos os homens disponíveis para se defender do ataque de seus inimigos internos, e não daria importância a minúcias. Até mesmo um imbecil como ele mesmo, que se demonstrara incapaz de cumprir uma tarefa que não exigisse apenas o mero uso das armas, poderia se revelar útil.

Se os turcos libertassem o soberano, refletiu Emanuel, seria por um preço muito alto, que Ducas usaria como pretexto para destituí-lo. Romano não desistiria tão facilmente, e haveria guerra civil: uma guerra talvez até mais perigosa para o Império Bizantino do que a própria derrota sofrida naquele dia em Manzikert.

Se, ao contrário, o sultão não os deixasse livres... bem, então para Emanuel seria difícil escapar a um terrível destino de escravidão e talvez até a uma conversão forçada ao Islã. Em ambos os casos, sua fúlgida carreira no exército estava comprometida.

Para sempre.

Ricardo tentou descer do cavalo, mas a dor lancinante no glúteo não lhe permitiu erguer-se da sela. Esperou que alguém o ajudasse, mas ninguém se mexeu. Todos o encaravam com um ar de comiseração e, pior, alguns já começavam a virar o cavalo na direção oeste, rumo a Constantinopla, como se agora já não houvesse nada que pudesse lhes chamar a atenção.

Sentiu-se consternado. Nos breves instantes em que, durante a perseguição, conseguira pensar naquilo que o esperava quando retornasse aos seus companheiros, havia se preparado para agüentar a zombaria deles.

Mas não o desprezo.

Ninguém vai me ajudar? Fui ferido, se por acaso vocês não tiverem notado — disse afinal, irritado.

Não é uma flecha, garoto. É um rabo: o rabo de um cachorro que começa a ganir e a fugir diante de uma sombra de perigo — retrucou Roussel, antes de também virar o cavalo, confirmando assim o próprio desinteresse pela sorte de seu escudeiro.

Os outros o imitaram, até que já não havia um só cavaleiro perto de Ricardo. Ele os viu desfilar diante de si, sem que ninguém lhe concedesse um olhar. Sequer tentou pedir ajuda mais uma vez, temendo receber outras respostas mortificantes.

Quando o último cavaleiro da coluna já se tornara um pontinho indistinto contra o último raio de sol incendiado, moveu-se também rumo ao ocidente, mantendo-se a distância do grupo, como o réprobo que seu comportamento o condenara a ser.

 

Mogúncia, Germânia, outubro de 1088.

Comunidade Judaica

Rebeca foi abrir a porta com resignação, cansada, disfarçando a custo o despeito pela atitude de Sara. A irmã, como de hábito, sequer erguera o olhar de seus brinquedos para dar mostras de que­rer ir abrir, ao menos desta vez. A mãe delas morrera havia um mês, mas as visitas de condolências pareciam não acabar; às vezes, era pesado ser filha de um dos mais estimados rabinos da comunidade judaica de Mogúncia.

Rebeca esquadrinhou demoradamente o personagem que viu diante de si após abrir a porta. Agora, eles vinham até de longe, pen­sou, entediada. Poderiam ter se apresentado durante a doença da mãe, refletiu, com um daqueles portentosos medicamentos trazidos do Oriente, em vez de vir incomodar o luto delas somente agora, obrigando-as a recordar a cada momento os tristes e recentes fatos.

Fosse como fosse, aquele sujeito vinha mesmo de longe, a julgar pela quantidade de poeira que o cobria. Sobrepunha-se à garota exi­bindo um chapelão piramidal, de ponta cortada e abas estreitas, e um amplo manto inteiramente envolto ao redor do corpo e preso na base do pescoço por um grande fecho. A veste, só um pouco mais longa, lhe aflorava os tornozelos. Atrás dele, um rapazinho de aspec­to modesto segurava as rédeas de um cavalo e de um burrico super- carregado de bagagens.

— Shalom aleichem, minha jovem. E esta a casa do rabi Isaac bar-Mosche? — perguntou o indivíduo, com um sotaque que Rebeca jamais tinha ouvido. Se ele era judeu, como parecia, de qualquer modo não era asquenazim.

Gam lechá. E aqui — confirmou a garota, ainda concentrada em examinar o visitante.

Eu gostaria de falar com ele. Vim de muito longe para vê-lo — disse o outro, em tom ligeiramente impaciente.

Intimidada, Rebeca respondeu:

Está dando aula na yeshivá, mas volta daqui a pouco. — Hesitou quanto a recebê-lo, estando o pai ausente. Mas aquele homem, por mais inquietante que fosse seu aspecto, não lhe parecia uma ameaça. Por fim, decidiu que seria descortês deixá-lo ali fora. — Pode esperá-lo aqui, se preferir — acrescentou, convidando-o a entrar.

O homem aceitou de imediato. Acenou ao ajudante para que fosse alimentar os animais e, depois de dar uma olhada rápida na sala, dirigiu-se à cadeira mais próxima, que estava junto de Sara. Tirou o manto, jogou-o sobre a mesinha e se sentou pesadamente, levantando uma nuvem de poeira que foi cair sobre os brinquedos da menina. Sara o olhou de través: não era o melhor modo de cair nas suas graças, caprichosa e ciumenta de suas coisas como era ela.

Só então os traços duros e cansados do homem se abrandaram e se abriram num esboço de sorriso.

Desculpe, minha pequena, mas depois de centenas de milhas em viagem não se presta muita atenção aos detalhes. As estradas, aqui na Europa, são um verdadeiro desastre... — disse ele, aflorando a face de Sara com o dorso da mão.

O senhor vem das terras asiáticas? — perguntou Rebeca de repente, aproveitando aquele primeiro vislumbre de disponibilida­de por parte do recém-chegado para satisfazer sua curiosidade inata. Mas também para desviar os olhos do estrangeiro de cima da irmãzinha, que, com sua beleza promissora, costumava chamar a atenção de todos os que a viam. Sara possuía feições delicadas, sem nada que parecesse excessivo ou defeituoso; Rebeca, que já começava a mani­festar os traços de uma mulher, exibia, ao contrário, um nariz com­prido demais e zigomas marcados, que prenunciavam o desenvolvi­mento de um rosto com linhas nada suaves.

Venho de Jerusalém. Já esteve lá? — respondeu o homem, mantendo uma expressão afável.

Não, nunca. Deve ser uma cidade extraordinária — comentou Rebeca, para animá-lo a falar.

E o homem não se fez de rogado:

De fato, é a cidade mais bonita do mundo. Mais do que Roma, mais do que Constantinopla, mais do que Bagdá. E eu conheci todas elas. Mesmo agora que os turcos a subtraíram aos árabes do Egito, lá um judeu pode viver bem. Nenhuma cidade no mundo pode ofere­cer tantos estímulos, tantos testemunhos do passado e tantas opor­tunidades para o futuro.

Depois de uma pequena pausa, prosseguiu:

As ruas estão sempre cheias de vida e de atividade. Os conta­tos e as trocas entre pessoas de etnias e religiões diferentes são a norma. E, também, era a nossa cidade. Estou certo de que até nas comunidades sefardim e asquenazim aqui na Europa tem-se a per­cepção da importância de Jerusalém na nossa história, embora os romanos nos tenham obrigado a sair de lá quase mil anos atrás. E estou igualmente certo de que, por mais agradável e vantajosa que seja a permanência de um judeu em outro país, ele conserva Jerusalém e a Palestina em seu coração, e é para lá que gostaria de retornar.

Fascinada pelo entusiasmo do visitante, Rebeca se percebeu desejando que o pai voltasse o mais tarde possível da academia de estudos judaicos. Sabia muito bem que, uma vez em casa, ele mono­polizaria a atenção do estrangeiro.

Ofereceu-lhe algo para beber.

O que o trouxe até aqui? — atreveu-se a perguntar. Sua vitali­dade mental a levava, com muita freqüência, a ultrapassar os limites impostos pela timidez de uma garota e pela reserva de uma mulher.

O homem sorriu, surpreendido por aquele arrojo.

Tem a ver com Jeshua, mais conhecido como Jesus Cristo. Conhece esse nome?

Quem não conhece o profeta que os cristãos veneram como filho de Deus? Inclusive nos lembram muitas vezes, até mesmo aqui, onde nossa comunidade é respeitada, que nós o matamos — respon­deu Rebeca.

Pois é... Mas o que você sabe sobre como ele viveu, sobre sua existência? — insistiu o outro.

Não muito. Só que pregou e foi crucificado...

O estrangeiro assumiu a atitude catedrática que o pai dela mos­trava quando pretendia lhe explicar a Torá.

Viveu na época em que os romanos dominavam a Judéia, tole­rando uma soberania nominal sobre a Galiléia por parte dos reis da família de Herodes, que eram de sangue em grande parte árabe. Naquele tempo, o país era percorrido por dúzias de profetas que pregavam a iminente vinda de um Messias oriundo de Israel para dominar o mundo e anunciavam o advento do fim dos tempos e do juízo final.

"E para cada profeta havia uma seita, um movimento religioso, uma corrente política, algumas a favor da dominação romana, outras contra. Provavelmente Jeshua era um estudante rabínico, um fariseu, capaz de curar as pessoas com o toque das mãos. Recebido o batismo, convenceu-se de ter sido investido pelo Espírito Santo e de ser ele o eleito, o Messias. Tornou-se um fariseu apocalíptico. Era um judeu ortodoxo, pregava o respeito à tradição da Torá, mas exaltando as prescrições do Levítico a favor dos pobres e dos humildes.

Ou melhor, exaltou a pobreza e a humildade como os caminhos mais curtos para obter a salvação.

"Pelo mesmo motivo antipatizava com fariseus, escribas e saduceus então no poder, culpados de ter suavizado os preceitos da tra­dição religiosa e liquidado o próprio papel de guias religiosos do país, para conservar o apoio dos romanos. Aos trinta anos, foi a Jerusalém em peregrinação e provocou desordens em torno do Templo. Provavelmente, uma parte do povo viu nele um ponto de referência, o símbolo da luta anti-romana, do zelo religioso e do desprezo pelas classes comprometidas com os dominadores. Assim, acabou sendo considerado um subversivo e caiu nas mãos dos roma­nos, que o justiçaram como rebelde, ou seja, crucificando-o. Depois, seu túmulo foi encontrado vazio, e seus discípulos disseram que ele havia ressuscitado..."

São histórias de mais de mil anos atrás. O que isso tem a ver conosco? — perguntou Rebeca, cuja mente receptiva, a essa altura, havia sido devidamente solicitada.

E sobre isso que preciso falar com seu pai. E não convém que outros tomem conhecimento do assunto. Contente-se com saber que, após a morte de Jeshua, seus seguidores, mais tarde chamados de cristãos, se dividiram em duas correntes principais, uma guiada pelos parentes dele, particularmente por seu irmão Tiago, e outra por Saulo, aquele que os cristãos chamam de são Paulo. Os primei­ros pretendiam se dirigir apenas aos judeus, convencidos de que assim secundariam os propósitos de Jeshua, enquanto Paulo se fez defensor da difusão do cristianismo junto aos gentios e incircuncidados. Por fim, a corrente de Paulo venceu, graças, sobretudo, à destruição de Jerusalém durante a revolta anti-romana, a qual provo­cou a dispersão da comunidade judaico-cristã e só deixou sobrevive­rem as correntes menos hostis aos dominadores...

Rebeca decidiu que não podia ficar ignorando todo o resto. De jeito nenhum. Sua mente começou a planejar um jeito de escutar a conversa que ocorreria entre o estrangeiro e o pai.

A chegada do rabino não lhe deu tempo para refletir.

Rebeca? Não quer me apresentar nossa visita? — ouviu ela atrás de si.

A garota se voltou, enquanto Sara pulava de pé e corria para o pai. Com manifesta alegria, Isaac acolheu a caçula entre os braços, ergueu-a do chão num abraço e manteve o olhar sobre o estrangeiro.

Ele veio de Jerusalém, pai — informou Rebeca, censurando-se pela enésima vez por não conseguir ser igualmente expansiva com o genitor.

O estrangeiro se levantou.

Shalom aleichem, rabino Isaac. Eu me chamo Jacó e venho da Palestina. Preciso falar com o senhor — disse, em tom respeitoso mas decidido.

Rebeca leu nos olhos do pai uma gratidão muda àquele indivíduo, que entrava em sua casa por um motivo que não se referia à sua esposa. Fazia anos, desde quando ela adoecera, que as pessoas iam visitá-los só para se informar sobre a saúde dela, e, depois de sua morte, para as condolências de praxe e para assegurarem-se de que eles estavam bem.

Aleichem shalom, estrangeiro. Por favor, fique à vontade e vamos conversar — respondeu Isaac, revelando um evidente interesse. Rebeca se regozijou: amava o pai mais do que conseguia demonstrar.

Seria conveniente falarmos a sós. Trata-se de uma questão muito delicada — disse o visitante, voltando a ficar sério.

O rabino pensou um pouco, pousou no chão a filha mais nova e disse a Rebeca:

Vão brincar lá fora, até eu chamar.

Irritada, Rebeca tomou pela mão a irmã, que, por sua vez, reco­lheu duas bonecas de trapo, e as duas saíram juntas. A mente da garota recomeçou a elaborar idéias para não perder o resto da nar­rativa. Já na rua, ela olhou ao redor, em busca de uma oportunida­de. Identificou uma num grupo de meninos que brincava do lado oposto. Deixou a irmã com eles e correu até embaixo da janela mais próxima do ponto onde os dois interlocutores tinham se sentado para conversar. Mesmo incomodada pelos gritos das crianças, con­seguiu compreender que eles ainda estavam nas formalidades.

Vocês tiveram problemas com os cristãos aqui em Mogúncia? — perguntou o visitante.

Eu diria que não, há pelo menos setenta anos, isto é, desde quando o imperador mandou expulsar os judeus da cidade — res­pondeu Isaac. — Por outro lado, nós aqui seguimos ao pé da letra as orientações traçadas pelo fundador da academia, Rabbenu Gershom. Assim, somos bem flexíveis na interpretação das leis talmúdicas: por exemplo, consideramos possível ter relações de negócios com os não judeus durante as festas cristãs.

Hummmm... nesse caso, o zelo de vocês diante da lei não terá se perdido? — perguntou Jacó, cético.

Está brincando? — retrucou o rabino, quase indignado. — Vou lhe citar as palavras de um poema do próprio Rabbenu Gershom: "Eles nos impõem não invocar o Senhor, aceitar como Deus um mísero ídolo, inclinar-nos ante as imagens para adorá-las." Para ele, e para nós, os cristãos permanecem uns idolatras que crêem na Trindade, rezam diante de estátuas e divinizaram um ser huma­no. Mas somos uma minoria e, afinal, precisamos sobreviver... De resto, nada mudou: a Aliança prossegue, apesar de tudo. E nossa tarefa esperar a vinda do Messias, que nos libertará, restaurando a nação e o trono de Davi e redimindo o mundo. Eu gostaria de lhe apresentar um dos nossos mais insignes comentadores do Talmude. Ele ensina em Worms, não longe daqui. Chama-se Rashi e sabe tra­tar dessas questões melhor do que ninguém.

No entanto, ao que eu saiba, as coisas não vão muito bem para os judeus na Europa — comentou o visitante. — Sei que alguns anos atrás um exército francês, em viagem pela Espanha para combater os muçulmanos, massacrou alguns judeus ao longo do caminho... e há muito tempo a Igreja cristã baixa leis discriminatórias contra nós.

Se é por isso, não está longe a época na qual em Toulouse, na Páscoa, o bispo esbofeteava publicamente um judeu para puni-lo pelo crime de ter mandado matar Jesus — confirmou Isaac. — Mas, em geral, as pessoas comuns e os nobres acham mais conveniente interagir conosco, em vez de nos boicotar. Nós, por nossa vez, evita­mos irritá-los; inclusive, paramos de enfatizar a necessidade de só comer e beber alimentos preparados por judeus e, por conseguinte, faz tempo que renunciamos a converter os escravos. Também já não fazemos circularem libelos como Toledot Jeshu, que ridicularizavam os Evangelhos e a vida de Jesus. Flexibilidade, isso é que é necessário!

Mas o ambiente está mudando — replicou o visitante. — As pessoas se endividam e se tornam cada vez mais pobres, e não podem evitar invejar os judeus, que, ao contrário, estão cada vez mais ricos, graças também às taxas que impõem sobre os empréstimos a juros.

Somos forçados a isso! — interveio o rabino. — Não gozamos de nenhuma garantia legal, e precisamos nos salvaguardar de algum modo!

E justamente esse o ponto. Nós, judeus, não temos direitos civis na Europa. Dependemos da benevolência que a Igreja e os governan­tes nos concedem de vez em quando. Benevolência que eles podem suprimir no momento em que já não considerarem conveniente a colaboração com a comunidade judaica. Eu viajei, e sei o que estou dizendo. Em qualquer caso, estamos sempre por um fio, que de uma hora para outra pode se romper. Somos apenas tolerados, o senhor sabe, e periodicamente vem à tona o ódio atávico pelo que eles acre­ditam que fizemos a Jesus. Até mesmo sua filha me lembrou isso. — Rebeca teve um sobressalto. — Se as coisas, aqui em Mogúncia, atualmente andam bem para vocês, não é assim em toda parte. Em Jerusalém, achamos que chegou o momento de fazer alguma coisa.

E o que pretendem fazer? Fugir todo mundo para o Oriente, para a Mesopotâmia, para a Babilônia? Para muitos de nós, a vida que construímos está aqui, na terra de Askenaz[1] — objetou Isaac.

Haveria uma saída, e é por isso que vim procurá-lo — disse Jacó, sopesando as palavras. — Sua reputação é conhecida até em Jerusalém. O que o senhor sabe do memorial de Tiago?

O memorial de Tiago? Um rabino me falou do assunto justa­mente em Jerusalém, uns vinte anos atrás — respondeu Isaac, perple­xo. — Tiago era irmão de Jeshua. Sucedeu-lhe como primeiro patriarca de Jerusalém, mas depois foi apedrejado pelo Sinédrio e deixou o lugar para outro irmão ou primo de Jeshua, Simeão. Tiago havia autorizado a adesão de um dos primeiros perseguidores dos cristãos, Saulo, um fariseu convertido após uma viagem a Damasco, onde fora curado, após uma queda de cavalo, por um dos mestres da seita. Como o irmão, Tiago era muito respeitoso à lei de Moisés; o mesmo não ocorria com Paulo, que já não considerava necessários à salvação a circuncisão, a observância das prescrições alimentares, as leis da pureza, o sábado como dia de repouso etc.

"De início, sua pregação fez mais sucesso nas sinagogas abertas aos não judeus, e, portanto, ele estabeleceu como seu objetivo a difu­são do novo credo no mundo greco-romano. Para isso, segundo o memorial, Paulo difundiu uma interpretação da morte de Jeshua que atribuía a responsabilidade pelo fato aos judeus, e não aos romanos.

Daí a visão veladamente anti-semita apresentada nos Evangelhos e nas obras selecionadas para compor o cânone da Igreja cristã. Em suma, parece que o Jeshua judeu zeloso, de quem Tiago foi testemu­nha ocular e herdeiro direto, desapareceu na memória das pessoas, cedendo o lugar ao Jesus imanente e helenista criado por Paulo, que só o conhecera através de suas visões. Talvez as coisas tenham sido realmente assim, mas não creio que esse memorial exista de verda­de", afirmou o rabino, abrindo os braços. "Provavelmente, é só uma lenda criada no decorrer do tempo pelos judeus da diáspora, para encontrar uma lógica nas perseguições das quais fomos objeto ao longo dos séculos."

Seu interlocutor deu um sorriso sutil, com presunção, levantou-se e se encaminhou para a porta. Assim que percebeu os passos dele, Rebeca escapuliu para junto das outras crianças. Mas, com o rabo do olho, ficou observando a saída da casa, diante da qual, enquanto isso, o servo de Jacó reaparecera com os dois animais. Viu o visitan­te tirar do dorso do burrico uma sacola, colocando-a no ombro antes de entrar de volta. Logo depois, Rebeca se precipitou de novo para seu posto embaixo da janela, disposta, desta vez, até a espiar.

Diante do olhar curioso de Isaac, Jacó acomodou cuidadosamen­te a bagagem sobre a mesinha. Com estudada lentidão, extraiu dali um invólucro de tecido, abrindo-o em seguida e revelando três pergaminhos, enrolados e costurados um ao outro.

Pois está bem aqui, diante dos seus olhos — disse solenemente.

Como... como isso chegou às suas mãos? — perguntou Isaac, lívido, inconscientemente dando voz a Rebeca, que só com dificul­dade conseguira reprimir um grito.

Sempre esteve conosco. Eu sou um recabita, como Tiago, embora naquele tempo eles fossem chamados de ebionitas.

Só então o rabino notou que os trajes de seu visitante eram de linho: algo estranho, com a estação fria que já se fizera anunciar amplamente. Ele bem sabia que ebionitas e recabitas não podiam vestir nada que fosse produto de uma relação sexual. Ergueu da mesinha um dos rolos e o sopesou, começando timidamente a estendê-lo. O pergaminho estava com as bordas estragadas e irregu­lares, e era muito mais escuro do que o rabino imaginava. Notou que o texto estava em grego.

Por que o mostra a mim? Não sou um de vocês — disse, per­turbado.

Jacó se sentou de novo e respirou fundo. Isaac compreendeu que uma longa explicação estava a caminho e se instalou por sua vez, devolvendo o rolo à mesinha. O outro começou:

Discutimos longamente se seria ou não oportuno divulgar estes documentos. Como eu dizia antes, muitos de nós acham que a história futura ainda reserva aos judeus muitas tragédias e discrimi­nações. Ou melhor, em minha opinião, e na de outros, será cada vez pior. E tudo isso por quê? Porque os cristãos nos consideram os assassinos de seu Jesus.

Fez uma pausa para permitir que o rabino refletisse sobre a causa de todos os males dos judeus. Em seguida, prosseguiu:

Agora, escute bem: os Evangelhos, influenciados pela visão de Paulo e escritos após a repressão à revolta, apresentaram a morte de Jesus como uma conspiração de fariseus e saduceus à qual o povo inteiro deu seu apoio, e que os romanos, embora fossem contrários, tiveram de secundar. Aquele Pôncio Pilatos, o procurador da Judéia, tentou fazê-los ponderar, segundo a versão canônica, mas os judeus pareciam não querer outra coisa senão a morte de um conterrâneo, a ponto de preferir deixar vivo um criminoso comum e assassino como Barrabás.

"Ninguém parece notar que, entre os judeus, a crucifixão era considerada anátema, e que os romanos colocavam na cruz os sediciosos, mas não os blasfemos, os quais, em contraposição, o Sinédrio apedrejava. Ninguém lê os Evangelhos com espírito objetivo; do contrário, veriam que Jeshua não tinha nenhuma intenção de fundar uma nova religião, e que todo o aparato do cristianismo nasceu algumas décadas depois dele, tomando um caminho diferente daquele que ele havia indicado e Tiago, aperfeiçoado. Ninguém nota que o artífice dessa operação foi Paulo, um cidadão romano ansioso por desvincular os preceitos cristãos do contexto judaico e difundi-los no ambiente greco-romano. E ninguém parece perceber, enfim, que Jesus era judeu, e não cristão!"

E como você pretende demonstrar isso? — perguntou Isaac, que no fundo já intuía a resposta.

Está tudo nos pergaminhos que eu lhe trouxe. São o testemu­nho direto de Tiago, que, ao contrário de Paulo, tinha conhecido Jeshua. No documento, está escrito que Jeshua não se proclamava filho de Deus, mas apenas "consagrado" por Deus. Está escrito que ele se dirigia somente aos judeus, invocando o respeito aos ditames do Levítico sobre a Piedade, ou seja, o respeito aos preceitos de Deus, e sobre a Justiça, o respeito ao próximo e aos pobres. Está escrito que se recusava até a curar os gentios, e não queria sequer comer com eles, com as meretrizes e com os publicanos; em suma, com todos aqueles personagens impuros cuja companhia lhe atribuí­ram. Está escrito que foram os romanos a justiçá-lo, porque ele exortava a não pagar os tributos e perturbava a ordem pública.

Admitindo-se que tenha sido assim, o que eu tenho a ver? — quis saber o rabino, desconfiado.

Achamos que chegou o momento de difundir o conteúdo do memorial. E nossa única possibilidade de sobrevivência. Os cristãos, quando souberem que não somos nós os responsáveis pela morte de Jesus, vão nos deixar em paz. Nós, recabitas, somos uma comunida­de menosprezada, que não goza de nenhuma credibilidade nem de apoios. Além disso, não estamos radicados na Europa, onde o cristianismo é mais difundido. Precisamos de alguém respeitável, com as relações certas, que se encarregue dessa difusão junto às altas esferas da Igreja cristã e aos soberanos europeus. Pensamos no senhor, e foi por isso que eu trouxe o documento para cá. A partir deste momento, eu gostaria de confiá-lo à sua responsabilidade.

Desta vez, Rebeca não conseguiu reprimir o grito. Para sua sorte, este se confundiu com os das crianças que brincavam ali perto.

A reação de seu pai não foi menos veemente:

Isto é um absurdo! Vocês de fato acham que, depois de mil anos e da consolidação de uma instituição hoje estável e ramificada como a Igreja católica, os cristãos estariam dispostos a sequer levar em consideração uma eventualidade dessas?

O visitante não se alterou.

Há mais um motivo pelo qual foi decidido entregá-lo ao senhor. Alguns altos prelados têm conhecimento da existência do memorial e de sua localização. Não por acaso, várias vezes certos peregrinos, ou supostos peregrinos, estiveram em Jerusalém fazendo perguntas a respeito. E, numa dessas vezes, até estiveram perto de encontrá-lo. Isso demonstra que a Igreja o teme, e está ciente da ameaça que ele representa pela sua simples existência como instru­mento para guiar as consciências. Vale a pena tentar, não?

De maneira nenhuma — emendou o rabino. — Pedir descul­pas nunca foi o forte dos homens, e dos Estados e instituições menos ainda. Poderíamos por acaso esperar isso de quem pensa haver obti­do sua autoridade a partir do próprio Deus? Além do mais, signifi­caria também jogar-lhes na cara que Jesus é assunto nosso, quando, na verdade, nos foi roubado por eles. Como acha você que encara­riam isso? Aqui, na terra de Askenaz, fazemos tantos esforços para estar de acordo com eles, e depois lhes apresentamos uma tal coisa? Absurdo! Inconcebível!

Por favor, rabi, pense em longo prazo! — insistiu Jacó. — De início, talvez não encarem muito bem. Mas, com o passar dos anos, ou talvez dos séculos, esta se tornaria uma nova verdade a levar em conta e, aos poucos, até o povo esqueceria o lugar-comum do judeu assassino de Cristo! Afinal, a Igreja, o papa, os bispos se inspiram nos preceitos de compreensão do próximo que o próprio Jesus pro- pugnava e, com o tempo, conseguiriam mudar a mentalidade das pessoas...

Como bom recabita, você vive num estado de pureza espiritual, sem nenhum vínculo com o mundo real! — reagiu Isaac, des­consolado. — Os personagens de quem fala são expoentes das mais importantes famílias da Europa. São homens de poder, empenhados em gerir enormes patrimônios que a Igreja acumulou graças às con­vicções dos fiéis; convicções que eles sem dúvida não querem colo­car em risco! Você faz idéia de quantas abadias existem na Europa? De quantos indivíduos, para fugir da pobreza dos campos e dos abu­sos dos poderosos, escolhem a vida monástica como via de salvação terrena, antes mesmo que de salvação espiritual? E o que dizer do Império Bizantino? Esse aí vocês de Jerusalém deveriam conhecer melhor do que os Estados europeus! Por acaso não sabem que todo o aparato estatal se baseia na religião? O meu Deus! — gritou, deses­perado, invocando os céus. — Por que devíeis atribuir logo a mim uma responsabilidade dessas, mandando um pobre despreparado, que não sabe nada das coisas do mundo, me entregar o documento mais polêmico que existe?

Jacó pareceu sinceramente surpreso. Por alguns instantes, olhou-o perplexo, sem saber o que falar.

Eu... creio que o senhor está exagerando — disse, afinal. — Cabe-lhe identificar as pessoas certas para desencadear o processo que levará à reabilitação do nosso povo. Seria imperdoável ter uma tal possibilidade e não aproveitá-la. Não tenho mais nada a acres­centar, exceto que os anciãos da minha comunidade me mandaram confiar os rolos ao senhor, e eu cumpri minha missão. Deste momento em diante, o documento está sob sua responsabilidade, e cabe-lhe decidir o que fazer dele. Só espero que decida pelo melhor, rabi. Shalom aleichem.

Estas últimas palavras Jacó já as disse da soleira. Com o canto dos olhos, notou Rebeca. Muito espantada para se mover a tempo, a garota se deixara surpreender ainda junto da janela. O recabita esbo­çou um sorriso, que ela não soube retribuir. Rebeca exibia uma expressão determinada e quase zangada, a mesma que assumia quan­do tomava uma decisão que, considerando-se seu temperamento, era sempre definitiva. Nesses momentos, os traços de seu rosto se mos­travam ainda mais ásperos.

Entrou em casa com passos firmes e fitou o pai bem nos olhos.

— Pai, quero que você me ensine grego — disse, num tom que não admitia réplicas.

 

Avignon, Provença, setembro de 1095.

Palácio Episcopal

Santidade, chegou o conde de Saint-Gilles, Raimundo de Toulouse — anunciou o monge adido ao pontífice. Urbano II se aco­modou no trono da sala de audiências do palácio episcopal de Avignon. O diácono que estava com ele abriu os braços, num gesto de impaciência.

O conde se fez esperar. Se demorasse mais, teríamos de partir sem poder vê-lo... — sussurrou ao ouvido do papa.

O importante é que chegou. Agora, poderemos conversar cal­mamente com ele — respondeu, pacato, o pontífice. — Mande-o entrar — disse ao seu ajudante.

Raimundo de Toulouse notou de imediato a profunda diferença entre os dois religiosos diante dos quais se prostrou. O homem sen­tado se movia com extrema lentidão, mais para dar um significado aos próprios gestos do que pela idade; o outro, pouco mais moço, gesticulava até quando não falava, com movimentos repentinos, fugazes. O primeiro exibia uma expressão cansada, mas altiva, o rosto escavado e zigomas pronunciados, grandes olhos tristes e intensos, a fronte ampla apesar do anel de cabelos ao redor da tonsura; o segundo mostrava olhos vigilantes e inquietos, era bem-nutrido, quase juvenil, e nele não havia nada que evocasse respeita­bilidade.

Conde Raimundo! — começou Urbano, estendendo a mão para o beijo ritual do anel. — E um prazer finalmente encontrar um dos homens cujo apoio tanto favoreceu nossa causa! — acrescentou, referindo-se aos sete anos de lutas contra o anti-papa e o rei germâ­nico.

Santidade, é para mim uma honra, além de motivo de grande alegria, encontrar-vos e ser informado dos vossos projetos. Antes de mais nada, felicito-vos por terdes finalmente conseguido assumir o pleno controle de Roma, reduzindo vosso adversário Clemente a condições inofensivas. Sem ele em Latrão, o autodenominado "imperador" Henrique pouco poderá fazer para tentar novamente minar vossa credibilidade.

Ah, mas na realidade isso ainda não acabou — suspirou o pon­tífice. — Nosso bom amigo, o conde de Vermandois, assumiu a difí­cil tarefa de consolidar ainda mais o controle da cidade capitolina. Com o impostor Clemente no Castel Sant Ângelo, ainda não esta­mos seguros. Esperamos poder voltar a exercer nossa missão em Roma com toda a tranqüilidade; mas, até lá, é aqui que minha pre­sença é necessária — disse o papa, acenando a Raimundo para que se reerguesse. Sua voz era baixa e as palavras, escandidas.

De fato, Sua Santidade tinha urgência de lhe falar. Temos esperado sua chegada com ansiedade. E uma sorte que o senhor tenha chegado a tempo — sentiu necessidade de acrescentar o diácono. Sua voz, como Raimundo foi obrigado a notar, era estridente, e tão afetada quanto a crítica velada que ele expressara.

Urbano não escondeu seu agastamento pela intervenção. Olhou arrevesado para o colaborador, fazendo uma leve careta com os lábios finos escondidos por bigodes e barba.

Este é o irmão Sigfrid, que realizou para nós uma preciosa investigação — disse a seguir, virando-se para Raimundo — e, como o senhor pôde constatar, está muito ansioso por informá-lo a respei­to, para que, juntos, possam tirar conclusões e elaborar um plano de ação.

Como sempre, estou inteiramente à vossa disposição — apressou-se a dizer o conde, perguntando-se que tipo de investiga­ção um indivíduo tão desagradável podia desenvolver.

A um aceno do papa, o diácono pigarreou — mais pelo embara­ço do que para abrir caminho às palavras — e iniciou a exposição:

Pois bem... conde, a cristandade está em grave perigo. Corre- se o risco de uma divisão entre os fiéis que poderia levar a conse­qüências de alcance imprevisível — começou.

O conde ficou um pouco desconcertado. Tinham-no chamado para falar do cisma que se arrastava com a Igreja do Oriente havia quase meio século? Sob seu ponto de vista, os bizantinos podiam até rezar missa com um rito diferente do ocidental. Eram sutilezas que não interessavam muito a ele, como senhor laico. Além disso, não estava prevendo ir a Constantinopla no futuro imediato e, como havia algum tempo já deixara para trás a juventude, não pretendia ir de modo algum.

Bom... eu sei que, para a Igreja de Roma, é motivo de grande angústia que os gregos não reconheçam a autoridade do papado; mas, afinal, continuamos sempre coirmãos na fé em Cristo, e me parece inacreditável que se possa chegar, por divergências formais, à ruptura definitiva.

Não antecipe conclusões, conde — interveio Urbano. — E ver­dade, as divergências com os confrades gregos são motivo de angús­tia para nós, mas não tanto quanto aquilo que o irmão Sigfrid des­cobriu. Prossiga — acrescentou, dirigindo-se ao diácono.

Este recomeçou, não sem antes lançar uma olhadela de triunfo a Raimundo, que, por sua vez, sustentou o olhar sem mudar de expressão:

Espero conseguir expor, na minha imensa inadequação, a extensão do perigo, conde — disse o diácono. — Para um indivíduo como eu, de modesta capacidade dialética, é difícil explicar concei­tos tão delicados na presença do sumo pontífice, retomando o fio após as necessárias interrupções do interlocutor — provocou-o. Mas depois viu que Raimundo não lhe dava nenhuma satisfação e prosse­guiu: — Enfim, parece que está para circular um documento capaz de colocar em discussão muitos dos fundamentos sobre os quais se baseia nossa Santa Madre Igreja. Como sabe, nossos Padres, em sua infinita sabedoria, fizeram uma escolha na vasta produção de teste­munhos sobre a vida e as obras de Nosso Senhor, identificando as narrativas mais confiáveis e coerentes, aquelas que, mais do que outras, destacavam a divindade de Cristo.

"Muitos desses testemunhos foram descartados, e, entre eles, alguns não acrescentavam nada de significativo a tudo que já fora relatado nos textos selecionados, enquanto outros estavam cheios de mentiras, como freqüentemente acontece diante de eventos extraor­dinários, como aqueles ligados ao nascimento, à pregação, à morte e à ressurreição de Nosso Senhor. Uma das verdades apresentadas nos textos canônicos é a clara responsabilidade dos judeus na morte de Cristo. Eles o quiseram na cruz, e os romanos tiveram de satisfazê-los. Ademais, ainda que aquela raça torpe não se tivesse feito ré de um crime tão atroz, bastariam sua negação da divindade de Cristo e seus desprezíveis costumes religiosos, econômicos e sociais para fazer deles um povo que os cristãos deveriam manter a distância e, se necessário, castigar inexoravelmente.

"Apesar de tudo, porém, ao longo dos séculos, a Igreja cristã se mostrou muito tolerante, emitindo no máximo, de vez em quando, alguma lei que tutelasse os cristãos, sem com isso discriminar os judeus. Prova disso é o fato de eles continuarem a viver entre nós, em comunidades cada vez mais numerosas e prósperas, com fre­qüência até mais prósperas do que as nossas. Ainda assim, sentem-se perseguidos, a ponto de imaginarem um desprezível plano para divi­dir a cristandade. De fato, estariam pretendendo difundir um docu­mento segundo o qual Jesus não somente era judeu — o que é óbvio, porém não relevante, a não ser para quem quer fazer uso da figura dele —, mas também dirigia sua pregação exclusivamente aos judeus. E teria sido morto apenas pelos romanos!"

Sigfrid fez uma pausa significativa. Desta vez, não poderia dizer que fora interrompido.

Perdoe-me, irmão Sigfrid — disse Raimundo, nem um pouco impressionado, embora o eclesiástico tivesse dado às suas últimas palavras uma ênfase especial —, mas não me parece uma coisa tão ameaçadora assim. Deve ser tomada por aquilo que é: uma tentativa pueril de justificação...

O senhor teria razão — interveio o papa —, se não fosse o fato de que eles querem fazer o texto passar por redigido nada menos que pelo irmão de Jesus, e seu imediato sucessor. Um homem que teria tido profundos confrontos com são Paulo.

Irmão de Jesus? Mas Jesus não tinha irmãos! Como podia tê- los? Ele era... é o filho de Deus! — retrucou o conde, sinceramente escandalizado.

Numa leitura atenta, os textos canônicos se prestariam a interpretações malévolas. De fato, em diferentes ocasiões fala-se de parentes genéricos de Jesus, e esse Tiago é citado várias vezes até por são Paulo e nos Atos, embora existam diversos personagens com esse nome — esclareceu o papa.

Mas, naturalmente — acrescentou Sigfrid —, admitindo-se que realmente se trate de parentes próximos, estes poderiam ser, no máximo, meios-irmãos, ou seja, filhos do primeiro casamento de José, como Orígenes foi o primeiro a supor, há uns oito séculos, ou então primos, como escreveu são Jerônimo. Por outro lado, na lín­gua hebraica só existe um termo para definir qualquer grau de parentesco — explicou.

Seja como for, quem quer que tenha escrito o texto do qual estamos falando, eles o apresentam como testemunha ocular...

alguém que viu diretamente a atuação de Jesus e que contestou a obra de conversão promovida por são Paulo — disse o pontífice.

Mas... João escreveu um Evangelho, e era o discípulo predile­to de Jesus... — opinou Raimundo, cada vez mais confuso.

A dúvida — disse Sigfrid.

Como assim?

A divulgação de tal texto seria suficiente para instilar a dúvi­da nas pessoas — explicou Urbano. — E claro que se trata de um depoimento falso. Mas mostra um Jesus diferente daquele que conhecemos. Sob certos aspectos, até oposto àquele que conhece­mos. Nele, apresenta-se uma luta sem exclusão de golpes entre o grupo filo-judaico que encabeçava a família de Jesus e o filo-romano guiado por são Paulo. E trata-se de uma verdadeira denúncia contra são Paulo, que teria adotado métodos discutíveis para fazer triunfar seu ponto de vista. Por conseguinte, é um ataque direto à Igreja, que, apesar do cisma com os gregos, manteve uma unidade substancial durante um milênio.

Nem todos os cristãos conhecem a diferença entre xiitas e sunitas no mundo muçulmano — acrescentou Sigfrid. — Ela se ori­ginou das lutas que se desencadearam logo após a morte de Maomé entre, de um lado, os membros da família dele, que se consideravam seus sucessores naturais, e, de outro, os califas. Já o mundo cristão evitou tudo isso, com uma orientação comum que foi se afirmando ao longo dos séculos, um cânone ao qual se submetem todas as igre­jas da cristandade, e um ponto de referência, o papado de Roma, que não mudou desde os tempos de são Pedro.

Raimundo pensou que os patriarcas de Constantinopla discorda­riam um pouco a respeito disso. Mas não falou nada. Limitou-se a perguntar:

Isso significa que poderia haver algo de verdadeiro naqueles textos?

O papa e o diácono se entreolharam, um esperando que o outro tomasse a palavra. Mas Sigfrid não abriu a boca. Foi Urbano quem disse aquilo que havia para dizer:

A coisa não tem muita importância. O que importa, na verda­de, é evitar enfraquecer a cristandade e a autoridade da Igreja. Temos muitos teólogos capazes de desmontar, ponto por ponto, qualquer teoria extravagante destinada a corroer a solidez da doutri­na cristã. Mas, se chegássemos a discutir a questão, já seria tarde demais. Aquele memorial não deve ser divulgado de modo algum, custe o que custar.

E é aí que precisamos do braço secular — completou Sigfrid.

Como assim? — teve de perguntar Raimundo, ainda transtor­nado pelas revelações.

Veja, meu caro conde — disse Urbano, em tom paternalista —, quisemos revelar esse segredo ao senhor, e somente ao senhor, por­que o consideramos o súdito mais fiel da Igreja e o mais insuspeito entre os homens que gozam de reputação e poder. E precisamos de um interlocutor de confiança e capacitado para o grande plano que temos em mente. — De novo, o papa cedeu a palavra a Sigfrid.

Certamente o senhor está lembrado — continuou o diácono — de que no fim do inverno se realizou, em Piacenza, ao sul dos Alpes, um grande concílio, do qual participaram mais de cinco mil eclesiás­ticos da França e da Itália. Naquela circunstância, estavam presentes inclusive os enviados do imperador bizantino Aleixo Comneno, os quais pediram insistentemente a remessa de ajuda a Constantinopla, a fim de confrontar a ameaça turca, a cada dia mais premente. Os bandos de infiéis turcomanos, segundo nos informaram, agridem os peregrinos com freqüência sempre maior e os impedem de chegar a Jerusalém, isso quando não os roubam, seqüestram ou até matam.

"Os embaixadores também se mostraram dispostos a colaborar para a superação das controvérsias que nos separam dos confrades gregos, e que Sua Santidade, em sua grande sabedoria, até hoje se empenhou em sanar, com sucesso. Por conseguinte, Sua Santidade se comprometeu pessoalmente com os embaixadores e com o impera­dor a enviar um exército consistente em auxílio ao império bizanti­no. Isso não poderá senão favorecer grandemente a causa cristã, tanto porque os turcos deixarão de constituir uma ameaça quanto porque os gregos, humildemente cheios de gratidão pelo papado, finalmente reconhecerão a supremacia de Roma."

Urbano fez sinal de querer prosseguir.

Depois do concilio, porém, concluímos que o Ocidente não deveria se limitar a mandar um contingente — disse. — Nosso ilus­tre e pranteado predecessor Gregório VII já tinha imaginado condu­zir um exército à Terra Santa e libertar os lugares da Paixão de Cristo, há séculos nas mãos dos infiéis. Pois bem: não temos condi­ções de nos transferirmos para a Ásia, mas estamos convencidos de que, para restituir à cristandade os lugares que ela considera mais sagrados, é necessário um esforço da cristandade inteira. Por que nos limitarmos a libertar Constantinopla das pressões dos muçulmanos? Passando à ofensiva, poderíamos recuperar os territórios mais meri­dionais, a Síria inteira e a Palestina! E Belém, Nazaré, Jerusalém. E o Santo Sepulcro! E não seria o imperador bizantino a recuperá-los, mas a cristandade em seu conjunto! A essa altura, a Igreja de Roma, a única verdadeira herdeira de Cristo, a promotora da recuperação dos lugares santos, não encontraria dificuldades para obter o con­trole das igrejas orientais! — Finalmente, aqueles olhos tristes começaram a brilhar.

Tudo isso constitui um projeto muito nobre, Santidade — interveio o conde de Toulouse —, mas o que tem a ver com o memo­rial cuja existência me revelastes?

Tem a ver pelo fato de que, com base em nossas informações mais recentes, ele se encontra em Jerusalém — especificou Sigfrid.

Seu tom dava a entender que somente um idiota não conseguiria ligar as duas coisas. Raimundo, porém, já tinha a resposta pronta:

Mas, então, pode-se tentar obtê-lo de algum outro modo, sem provocar uma guerra entre dois blocos contrapostos... — arriscou.

Ah! Caro conde! Acha que já não tentamos isso? — respondeu o papa, desconsolado. — Faz anos que procuramos descobrir sua localização exata e apossar-nos dele, enviando agentes à Jerusalém para investigar. Quando os que detinham a cidade eram os árabes do Egito, ainda era possível agir com certa liberdade, e mesmo assim não descobrimos nada, afora a existência e o conteúdo do memorial. Depois, com o advento dos turcos, tudo ficou mais difícil: saiba que os dois últimos grupos enviados por nós sequer conseguiram chegar à cidade...

"No entanto", continuou Urbano, "estamos definitivamente convencidos de que promover um grande empreendimento, grosso modo como aqueles conduzidos na península Ibérica, mas em esca­la ainda maior, é a maneira mais vantajosa de proceder, para a Igreja e para a cristandade inteira. Se conseguirmos, não só reconduzire­mos ao aprisco os indóceis coirmãos orientais como também esten­deremos nossa influência à Ásia, e, assumindo o controle de Jerusalém, estaremos em posição confortável para nos apossarmos do manuscrito e esconjurar divisões ulteriores. Constantinopla recu­peraria territórios sobre os quais já não tem soberania há meio milê­nio, e isso graças à nossa ajuda: e então o imperador e o patriarca de lá não mais poderiam negar, como se obstinaram a fazer até hoje, a supremacia do único vigário de Cristo na Terra.

"Finalmente a cristandade se veria de novo unida em um só obje­tivo concreto, talvez o único em condições de induzir os homens, dos poderosos aos humildes, a abandonarem suas miseráveis rixas, as controvérsias e os litígios, para colaborarem todos juntos.

Quantas guerras de fronteiras, que tantos sofrimentos trouxeram à nossa sociedade, finalmente acabariam, se todos se coligassem para tomar a cruz e conduzir uma guerra justa, com a certeza de conse­guir o reino dos céus?

"Sim, porque esse santo empreendimento garantiria, a quem se fizesse partícipe dele, a salvação eterna e a remissão dos pecados. Diante de tal prêmio, ninguém ousará continuar preso aos seus inte­resses cobiçosos e mesquinhos, já que terá a possibilidade de empre­gar suas energias em busca de um alvo tão superior e puro!"

O conde ficou impressionado pela força de persuasão que o papa sabia transmitir quando se empolgava. Não por acaso, pensou, em roucos anos Urbano havia conseguido subverter a situação que via o rapado em uma condição de inferioridade perante os reis germâni­cos. E não duvidou de que aquele ancião, aparentemente frágil, fosse o único em condições de estimular a lacerada cristandade a um esforço comum de tão vasto alcance.

Mas seu próprio papel no projeto ainda não estava muito claro para ele.

— Seria um empreendimento clamoroso, sem igual na história do mundo... — comentou — e sinto-me não somente honrado e orgulhoso por fazer parte dele, mas também ansioso por trazer minha contribuição. De que modo se pode traduzir minha incum­bência?

Na realidade, já identificara esse modo, e esperou que os desejos do papa fossem na mesma direção. Havia ultrapassado os cinqüenta anos, carregando uma discreta fama militar graças às guerras contra os muçulmanos na península Ibérica, e esperava-o uma tranqüila velhice em suas vastas propriedades na Provença. Agora, surgia-lhe uma alternativa para ligar o próprio nome a um grande conflito, combatido em nome da fé, para libertar os lugares de Cristo e tutelar os interesses da Igreja. Era o melhor que a sorte lhe podia conceder.

Pois bem, conde — disse Sigfrid —, seria de ótimo auspício que o senhor mostrasse seus entusiásticos apoio e adesão desde o pri­meiro momento. Digamos, logo após o discurso que Sua Santidade fará coram populo, no próximo mês, no concilio de Clermont. Sua respeitabilidade impeliria muitos a segui-lo, e teríamos a garantia de um apoio em massa. Além disso, já que falamos do assunto, o senhor seria nossa principal referência na questão do memorial, e saberia o que fazer, uma vez conquistada a Cidade Santa.

Raimundo estava impaciente por fazer seu pedido; antes, porém, precisava assegurar-se de quem o papa pretendia envolver efetiva­mente.

Mas... afora o rei da Germânia — disse, tomando o cuidado de não o chamar de imperador —, que papel terão os soberanos no empreendimento?

Nenhum, esperamos — apressou-se Urbano a esclarecer, sem muitos circunlóquios, e isso provocou um grande entusiasmo em seu interlocutor. — Gostaríamos que nossas relações com os reis da França e da Inglaterra fossem melhores, mas, infelizmente, muitas vezes seus atos se demonstraram contrários aos preceitos religiosos que, como reis, eles deveriam respeitar mais do que ninguém. Apesar da excomunhão, Filipe de França não renunciou ao seu casamento sacrílego com a condessa de Anjou e, além disso, continua a favorecer a simonia. Guilherme II da Inglaterra, por sua vez, obstaculiza de todos os modos o arcebispo de Canterbury, Anselmo, que com tanto zelo procura aplicar nossas diretivas em matéria de investiduras eclesiásticas.

"Ademais, a presença deles em nossa cruzada", prosseguiu o papa, "subtrairia à Igreja, pelo menos em parte, o controle que ela pretende manter sobre o empreendimento. Há o risco de surgirem problemas e confrontos entre os representantes eclesiásticos e os monarcas, ao passo que, parece-nos, quem não está iludido e envai­decido por uma coroa, mesmo possuindo meios quase equivalentes, pode comportar-se de maneira mais humilde e razoável. E também, a cruzada fosse conduzida pelos monarcas, haveria o risco de eles usarem a questão do memorial em seu próprio benefício, e não no da Igreja."

Estou lisonjeado pela confiança que tendes na minha modesta pessoa, Santidade. Será meu sagrado dever informar-vos a cada momento sobre as operações e as motivações das minhas decisões no campo de batalha, na qualidade de comandante do exército cruzado. — Pronto, havia dito.

Sigfrid olhou imediatamente o pontífice, que devolveu a mirada acompanhando-a com um fugaz aceno de assentimento. Não sufi­cientemente fugaz, porém, para escapar a Raimundo.

Na verdade, conde — explicou Urbano —, como lhe dissemos, Deus será o guia do empreendimento, de modo que a Igreja tenciona reservar para si o comando. Não por acaso, esperamos que quem se fizer cruzado costure uma cruz de tecido sobre a cota, a fim de deixar claro que age em nome de Cristo e, por conseguinte, de Seu vigário na Terra, já que Nosso Senhor Jesus Cristo disse: "Quem não carrega a própria cruz e não vem atrás de mim não pode ser meu dis­cípulo." Portanto, desejamos que não haja uma preeminência particular de um comandante sobre os outros, mas somente uma relação mais estreita entre nós e alguns deles, especialmente o senhor.

Mas... Santidade... vós mesmo dissestes não ter condições de ir à Terra Santa! — interrompeu Raimundo, sem conseguir disfarçar totalmente sua aflição. — E uma campanha dessas deve ter um chefe, um chefe em campo, quero dizer; se não, estará destinada ao fracas­so! — acrescentou.

Concordo com o senhor, conde — respondeu Urbano, com a costumeira mansidão. — De fato, aspiramos a que todos os partici­pantes se submetam às diretrizes do nosso representante, o bispo Ademar, de Le Puy, que assumiu a honra de conduzir à Terra Santa os soldados de Cristo. Por outro lado, temos certeza de que o impe­rador de Bizâncio, Aleixo, tentará de todas as maneiras assumir o controle do empreendimento, já que estaremos indo recuperar os territórios pertencentes ao Império Bizantino. Um senhor laico não teria suficiente autoridade aos seus olhos, mas duvido que ele venha a fazer muitas pressões sobre o representante direto do sumo pontí­fice, que deu ouvidos ao seu pedido de ajuda e em relação ao qual ele se sentirá no dever de mostrar uma certa gratidão.

— Naturalmente — acrescentou Sigfrid, satisfeito com a decep­ção que transparecia no rosto de Raimundo —, o bispo necessitará de um estado-maior que o aconselhe quanto aos assuntos mais... ter­renos. A competência militar dos grandes senhores será preciosa para conquistar os centros em poder dos muçulmanos, e igualmente preciosos serão os recursos que eles pretenderão empregar, em ter­mos de homens e de dinheiro. Portanto, será levado em conta o empenho de cada senhor feudal em servir à causa do Senhor, e a preeminência sobre os outros será conquistada em campo. Ademais, subentende-se, é oportuno recordar isso mais uma vez, que os bizan­tinos também quererão dar a última palavra sobre as operações militares.

Não havia como discordar: a questão do comando geral tinha sido pensada adequadamente. O conde já não podia abrir a boca sem parecer venal e interessado. Podia apenas esperar ser suficientemen­te hábil e afortunado para descobrir a pista que levasse ao memorial e fazer pesarem os resultados de sua investigação. Quanto ao resto, dedicar a última parte de sua vida a uma causa tão santa podia ser uma boa atitude.

Afinal, não havia modo mais seguro de garantir a si mesmo a sal­vação eterna. Além disso, ir conquistar terras no Oriente oferecia sedutoras alternativas a uma velhice tediosa na França, bancando o espectador dos pruridos sentimentais do rei Filipe...

Sim, claro: apesar de tudo, devia realmente ser grato ao papa por ter pensado nele antes de qualquer outro.

Não o decepcionaria.

 

Civetot, mar de Mármara, outubro de 1096.

Cruzada popular de Pedro, o Eremita

Devagar com essas mãos! — exclamou o ferido, enquanto Inês aplicava sobre o corte mal suturado ao longo do flanco dele as ervas medicinais que o cirurgião lhe dera. — Você devia se limitar a fazer o que sabe fazer melhor, sua puta! — acrescentou, irritado, acompa­nhando as palavras com um gesto obsceno da língua.

A mulher se retraiu de chofre, deixando caírem os medicamen­tos, que foram acabar no chão empoeirado, inutilizando-se.

Idiota! E agora, como vou tratar seu ferimento?

Esqueça o ferimento e use essas mãos para tratar do meu espí­rito — disse o outro, empurrando com dificuldade suas bragas[2] imundas para os joelhos e desnudando-se até além do púbis.

Como única resposta, Inês se levantou, agarrou-o com ambas as mãos pelos tornozelos e começou a arrastá-lo. Aquele homem não era particularmente robusto, refletiu, tinha perdido muito sangue e não eram muitos os passos que a separavam do médico. Ele que cui­dasse do sujeito.

O que está fazendo? Vou assar você no espeto, cadela nojenta! — ouviu-o gritar, enquanto o puxava atrás de si sem dar muita aten­ção às pedras que afloravam do terreno. "Vai me assar no espeto", pensou; "talvez este aqui seja um dos que nas últimas semanas devas­taram os subúrbios de Nicéia, assando realmente no espeto as crian­ças, e até mesmo os gregos sujeitos aos turcos." Diziam-se coisas horríveis sobre aquelas incursões, e Inês estava contente por não ter participado delas.

Mas à batalha, sim, gostaria de ter ido naquele dia! Em vez disso, estava ali no campo socorrendo os refugos do exército, aqueles sol­dados improvisados que haviam enganado o tempo, à espera do exército dos príncipes, saqueando e depredando as zonas ao longo da fronteira com o sultanato, atacando quase exclusivamente a população pobre, ainda por cima cristã, que não tinha outra culpa afora a de morar na área que acabara sob o controle dos turcos.

Perguntou-se o que aqueles gregos pensavam dos "libertadores" que o imperador enviara para ajudá-los. Talvez os homens tivessem mostrado um senso maior de disciplina se estivesse presente Pedro, o Eremita, aquele santo homem cuja pregação veemente a impres­sionara a ponto de induzi-la, na primavera, a se unir à multidão de partida para o Oriente. Mas Pedro estava em Constantinopla fazia algum tempo, e os chefes do exército cruzado competiam para ver quem colhia o butim mais consistente, sem atentar para a religião professada pelas vítimas nem para os métodos, que muitas vezes descambavam para atrocidades e torturas de todo tipo.

Inês se dera conta, havia muito, de que eles não passavam de uma gentalha desorganizada e ignorante das mais elementares regras militares. Não por acaso, Pedro, enquanto estivera ali, havia pedido aos chefes que tivessem paciência, que esperassem os príncipes, que entendiam de guerra mais do que ninguém. Mas Gualtério de Breteuil, Gualtério Sem-Haveres, Reinaldo de Broyes, Foulcher de Orléans, Hugo de Tubingen e Gualtério de Teck, todos eles fidalgo- tes de escasso relevo, não o tinham escutado, ansiosos que estavam por obter glória militar como comandantes, e não como subordina­dos. Assim, acontecera o desastre de Xerigordon, poucos dias antes, com os germânicos massacrados pelos turcos justamente no castelo que pensavam haver conquistado.

E agora aqueles loucos tinham ido enfrentar o próprio sultão, que vinha chegando de Nicéia com um exército consistente. Mas pelo menos seria uma batalha em plena regra, ora se não! E ela que­ria estar presente. Havia tomado a cruz para prestar um serviço ao Senhor, expiar sua vida de pecadora e combater os infiéis. Era sau­dável, jovem, robusta e estava certa de saber combater até melhor do que muitos campônios e pedintes que haviam se improvisado em soldados naquela campanha. Quando mais não fosse, aprendera a se defender de clientes demasiado arrogantes ou violentos, e nos corpo a corpo havia conseguido sobrepujar homens bem mais robustos do que ela. Fazia tempo que sabia usar bem a faca, e nas últimas sema­nas havia praticado com a espada.

Além disso, não tinha medo. Era capaz de apostar que não se podia dizer o mesmo de muitos de seus companheiros.

Mas não havia nada a fazer. Para aqueles animais, ela era sempre "Inês, a puta". Sua única tarefa era a de recreá-los ou, no máximo, ser útil aos médicos, cuidando de doentes e feridos que, em grande parte, tinham sofrido uma facada de uma mulher que haviam estuprado, uma queimadura numa casa que haviam incendiado, uma contusão por uma pedra que algum camponês desesperado lançara neles.

Inês! O que está fazendo? E esse o modo de servir ao Senhor? Torturando seus correligionários?

O soldado que ela arrastava havia atenuado progressivamente seus protestos, até se calar de vez; talvez tivesse desmaiado, ou até morrido. Inês já não se preocupava muito com isso. A voz que escu­tou atrás de si era outra. Uma voz que, a contragosto, ela conhecia bem demais.

E daí? Espero que você seja indulgente comigo, tanto quanto foi com animais do tipo deste aqui — retrucou Inês, erguendo os olhos para o céu. — Eles também torturaram correligionários, não? Aposto que não hesitou em absolvê-los... — acrescentou, num tom que, apesar de tudo, não era particularmente ressentido.

Não conseguia se enfurecer de jeito nenhum, quando discutia com Anselmo. Aquele monge cluniacense desajeitado e gordo, sem­pre de cara vermelha — não sabia se pelo embaraço de ter que lidar com uma mulher como ela ou se pelo esforço de se movimentar com aquele corpanzil —, no máximo a entediava, mas não a irritava. Ele se unira ao exército cruzado na Lorena e parecia se sentir no dever de transformá-la numa mulher direita. Até agora, seus esforços tinham sido inúteis: Inês sabia que, fosse como fosse, a participação no empreendimento lhe garantiria a remissão dos pecados no fim, e por isso não via motivo para viver diferentemente de como vivera até então. Não se lembrava de ter ganhado o pão de outro modo, desde quando era menina, e tampouco de ter recebido da mãe um exemplo diferente. E, afinal, entre eles havia gente que assassinava crianças cristãs com a certeza da impunidade final; ela não via por que deveria se sentir culpada por ter dado — bem... vendido — um pouco de prazer aos homens.

A mesma soberba de sempre — respondeu o monge, ofegando por causa da corrida. — Quem lhe dá o direito de julgar os que com­batem pelo Senhor? Se eles cometeram erros, foi só por excesso de zelo. Esses aí — disse, apontando os feridos que jaziam no solo — estavam cegados pelo ardor da luta por uma causa justa!

Erros? Está falando de erros, padre, ou de horrores? Acha que tudo se justifica em nome da fé? Quer dizer que o papel da Igreja e o de justificar os crimes mais atrozes? — rebateu ela, sem parar de arrastar sua carga.

Anselmo a encarou desconsolado. Às vezes era difícil replicar a Inês. Embora ignorante, guiada pelos instintos semi-pagãos das pes­soas rudes e desprovida do respeito devido a quem sabia mais do que ela, a moça era esperta.

E bonita, também. Ele era obrigado a constatar isso, sempre que os dois discutiam. Em certas ocasiões, devia lutar para reprimir o desejo pelo corpo dela, e se descobrira com inveja daqueles para quem era suficiente pagar para vê-la nua, tocá-la, beijá-la...

Detestava-se por isso. Sentia não ser um bom homem de Igreja, permitindo que semelhante estorvo condicionasse seu ânimo, que do contrário seria puro e devotado exclusivamente ao Senhor. Sempre, em suas conversas, o desejo por ela sobrepujava qualquer outra consideração, e Anselmo já não conseguia pensar com lucidez, chegando até a perder o confronto verbal, que ele deveria dominar.

Agora mesmo, ao vê-la com os músculos tensionados no esforço de arrastar aquele peso morto, com a pele luzidia e lisa, os ombros mais largos do que o normal e os braços bem-torneados, os seios proeminentes e harmônicos, a cintura estreita, ainda mais afinada pelo fôlego retido, as longas pernas de linhas definidas no impulso contra o terreno e, por fim, o rosto altivo, com os traços marcados pelo vício, Anselmo tinha dificuldade em encontrar argumentos para contestar as provocações dela.

Então mastigou umas frases pouco inspiradas, como de hábito:

A Igreja tem muitos papéis que são obscuros para você, e caminhos que, como os do Senhor, são infinitos. Repito que não lhe cabe julgar as obras dela, nem os fins, sobretudo enquanto você con­tinuar a viver no pecado. E, também, preferiria que nossos compa­nheiros, induzidos à violência pela pobreza, pelo desespero e pela ignorância, tivessem continuado a cometer semelhantes atrocidades na Europa, em sua casa? — conseguiu dizer.

Eu preferiria que eles pensassem menos em afanar tudo que encontram e mais nos turcos. Mas talvez seja mais fácil roubar os desarmados. Veremos como se arranjam na batalha, a começar por hoje. Se tivessem me permitido segui-los, estou certa de que seria um bom exemplo para muitos deles... — respondeu Inês, zombeteira.

Ímpia! Uma mulher na batalha? Seria certamente um artifício do diabo! Não haveria mais esperança de redenção para você!

Inês explodiu numa gargalhada. Largou a presa, plantou as mãos nos quadris e inflou o peito, aumentando, assim, a perturbação de seu interlocutor.

Ora, faça-me o favor, padre! Os homens combatem e obtêm a vida eterna. Eu combato e ganho a condenação eterna?

Claro! Não está na ordem natural das coisas. A mulher não deve combater. Cabe ao homem fazê-lo. Quer subverter a ordem que o próprio Deus criou? Isso é heresia! — disse Anselmo, arrependendo-se imediatamente do ardor com que havia falado. A sujeição que ele nutria ante aquela mulher sempre o impelia a moderar o tom e a preferir uma postura paternalista.

Fosse como fosse, lembrou-se de que, antes de ir rezar a missa, convinha fazer alguma coisa por aquele coitado que a mulher havia sacudido impiedosamente. Por fim, aproximou-se para impedir que Inês o arrastasse mais. Avizinhou-se justamente quando ela agarrava um tornozelo do homem. Tentou antecipar-se, mas acabou pousan­do a mão sobre o pulso dela.

Olhou-a, embaraçado, com a testa perolada de suor, retraindo a mão num impulso repentino. Ela aproveitou a ocasião para soltar uma nova gargalhada, e então Anselmo tentou lhe desviar a atenção para o ferido, que já não parecia propriamente ferido.

Parecia morto.

Foi tomado pela agitação.

Pronto! Está morto, não vê? Você o matou! E eu nem pude administrar a ele os sacramentos! — gritou.

Inês se inclinou e encostou o rosto ao do homem no solo, para lhe conferir a respiração. Em seguida balançou a cabeça.

E você se preocupa com quê? Ele morreu combatendo os "infiéis", não? Ganhou a remissão dos pecados, portanto não super-valorize seu papel, padre.

Anselmo foi tomado por tremores. Seu hábito estava encharca­do de suor ao redor do pescoço.

Mas... o que está dizendo?! Este homem podia vir a ser muito precioso para a causa do Senhor, e você o matou, com seu descuido. E nem se sente culpada!

Inês o agarrou pela gola e o empurrou para cima do soldado, obrigando-o a se inclinar e grudando a cara dele na do outro. Anselmo percebeu uma respiração débil, fétida, e se retraiu assim que Inês o soltou.

Viu? Eu não matei ninguém que não pudesse se defender — disse ela, soltando de novo uma gargalhada franca.

Anselmo recuou mais, trôpego.

Às vezes, penso que o demônio está dentro de você. Agora, vou celebrar a missa e, além de pelos nossos soldados, rezarei tam­bém pela salvação de sua alma. Se eu não o fizer, não vejo como você poderia obtê-la... — declarou, afastando-se.

Inês o seguiu com o olhar, continuando a rir. Viu-o aproximar- se de um rústico altar campal; os cruzados tinham erguido vários, desde quando o imperador, aborrecido pelos saques deles nos subúr­bios de Constantinopla, convidara-os a se transferirem para a Ásia à espera dos príncipes com seus exércitos. Tinham acampado na mar­gem oriental do mar de Mármara, na localidade que os gregos cha­mavam de Kibotos e os francos, de Civetot. Quase diariamente, os navios bizantinos iam e vinham da capital para abastecê-los de víveres, e, para falar a verdade, nunca lhes haviam faltado vinho, azeite e cereais.

Não havia razão para viverem na desordem e no descontentamento. No entanto, desde os primeiros dias muitos ficaram aflitos por combater, e indefectivelmente nasceram invejas de todo tipo pelos que tinham conseguido obter algum butim. O campo se torna­ra um local de rixas entre germânicos e italianos, entre germânicos e franceses, um caótico mercado de trocas e compra e venda no qual a não havia ninguém que se preocupasse com a manutenção da ordem e da limpeza.

As tendas haviam sido armadas sem nenhum critério, sem um projeto, um desenho em comum. As pilhas de lixo e resíduos se amontoavam, emanando um odor pestilencial, sem que ninguém pensasse em eliminá-las, e não era raro vê-las ao lado de homens feridos ou doentes. As fogueiras dos bivaques, os espetos e os utensílios neces­sários se espalhavam por toda parte, sem solução de continuidade com montes de dejeções, tanto de homens quanto de animais.

Entre os peregrinos que tinham se tornado cruzados, eram mui­tos os que levavam consigo família e haveres. As crianças brincavam com o que encontravam, disputavam, lutavam, gritavam, completa­mente abandonadas a si mesmas. As mulheres que já tinham perdi­do seu homem nas primeiras escaramuças se prostituíam ou simples­mente se ofereciam a outro cruzado, na esperança de encontrar, com o novo companheiro/patrão, a fortuna com que haviam sonhado ao deixar o Ocidente. Fosse como fosse, sequer experimentavam orga­nizar alguma coisa.

Os animais de carga vagavam livres, abatendo barracas com seu passo vagaroso, remexendo rejeitos e excrementos e transformando a desordem em caos.

Parecia o acampamento de um exército derrotado.

No entanto, os cruzados ainda não tinham enfrentado uma bata­lha, e o quartel-general ficava a poucos quilômetros.

Talvez, pensava Inês, parecesse o acampamento de um exército destinado à derrota.

Anselmo ainda estava convocando os doentes e os feridos em condi­ções de se aproximar do altar quando um cavalo com xabraque, per­tencente a um dos quinhentos cavaleiros que haviam partido rumo a Nicéia, entrou galopando enlouquecido pelo campo, com uma fle­cha espetada na garupa.

Logo depois chegou outro. Desta vez, o cavaleiro estava na sela.

Só que era um turco.

O tempo fechou em torno de Inês, arrebatada pela imagem do primeiro inimigo de Cristo que já vira. Por um instante interminá­vel, ela ficou olhando a armadura dourada, que o recobria da cintu­ra ao peito, o elmo pontudo com duas plumas, o capuz em malha de ferro que lhe descia pelos ombros, o amplo escudo redondo e o arco.

Em pouco tempo, eram dezenas de turcos a penetrarem no acampamento. Havia também alguns cavaleiros cristãos dos que haviam partido poucas horas antes, mas, longe de opor resistência, cuidavam de prosseguir, para além daquele espaço, a fuga iniciada onde quer que tivesse acontecido a batalha.

Inês viu um grupo de muçulmanos se lançar sobre os feridos pró­ximos ao altar de Anselmo e decepar cabeças com os golpes oblíquos de suas longas espadas. O monge estava petrificado de terror, apa­rentemente incapaz de agir. Mesmo assim, os turcos, depois de mas­sacrarem todos os que ainda se agüentavam de pé, encarniçaram-se contra os enfermos deitados no chão. Primeiro passaram por cima deles, esmagando-os com os cascos dos cavalos, e depois desceram das selas e concluíram o trabalho com as cimitarras.

A mulher apalpou o próprio flanco, assegurando-se de ter consi­go a faca que a mãe lhe dera à beira da morte, e em seguida correu para Anselmo, que não conseguia mover um só músculo. Enquanto isso, um dos turcos, já encharcado pelo sangue das vítimas, pulou sobre o altar e se preparou para saltar em cima do monge. O muçulmano se deteve por uns instantes, e Inês notou que ele ria. Com­preendeu que o homem estava se divertindo com o terror de Anselmo, ou talvez somente de suas vestes talares. Isso lhe possibilitou aproximar-se por trás, e sem ser notada.

Agarrou a faca. Pretendia feri-lo nas costas, mas, quando ainda estava a uns dez passos, viu o turco girar e descer a lâmina, e não teve escolha.

Lançou.

 

Assim que vira os turcos irromperem no acampamento cruzado, Anselmo percebera estar em perigo, mas nem por isso tentara esca­par. Não era coragem, nem inconsciência, mas simples pânico: um pânico ridículo que lhe tirava qualquer espírito de iniciativa. Não se moveu nem mesmo quando o turco estava quase em cima dele.

Imaginou que seria golpeado. Mas, em vez disso, viu o inimigo sofrer um contragolpe e se voltar de repente. Depois vislumbrou Inês, de pé, poucos passos atrás do cavaleiro. Observou este último recolher o punhal com cabo de marfim da jovem, e compreendeu o que acontecera: a armadura havia protegido o soldado da penetra­ção da lâmina, e agora ele e Inês não teriam escapatória.

O seljúcida não tinha pressa. Para um soldado, ainda por cima pesadamente armado, degolar uma mulher e um monge não devia ser problema, e era claro que ele estava pregustando o divertimento. Aproximou-se de Inês soltando risadinhas galhofeiras, mas mostrou uma expressão de espanto quando viu que ela não fugia.

A mulher tinha decidido apostar tudo na própria agilidade. O lançamento da faca havia sido um gesto de puro instinto: o único resultado obtido fora o de afastar de Anselmo a atenção do infiel; a partir daquele momento, Inês começara a acionar o cérebro. Tudo que precisava fazer era evitar a previsível cutilada que o turco se dis­punha a desfechar.

O golpe chegou, mas a lâmina da cimitarra foi parar no solo. Um instante antes, a mulher se esquivara para a esquerda, ou seja, para o lado do soldado não protegido pelo escudo; então, recolheu um punhado de terra e jogou-o na cara do atacante, que já se lançara para a frente. Inês aproveitou para saltar nas costas dele e agarrar-lhe o pescoço. Segundos depois, afrouxou a preensão do braço direito, procurando com os dedos o olho do turco. Tateou a borda superior do elmo, enquanto o muçulmano se debatia na tentativa de livrar-se dela, e depois, com toda a força de que dispunha, afundou polegar, indicador e médio.

Encontrou matéria que cedia, e um fluxo quente lhe inundou a mão. Com um movimento brusco, arrancou o que lhe restara entre os dedos e depois caiu no chão, enquanto o adversário soltava a cimi­tarra e o escudo e levava as mãos ao rosto, urrando de maneira desu­mana. Inês se voltou e viu que Anselmo continuava de pé junto do altar, petrificado como antes. Levantou-se e correu para ele.

Ânimo, depressa! Vamos correr para o mar! — gritou, contro­lando se o turco não se aproximava. Anselmo balbuciou a meia-voz:

Satanás... Satanás se apossou de você... — e opôs uma resistên­cia branda, quando ela lhe agarrou o braço para puxá-lo.

Então, se você conseguir se salvar, significa que deverá agrade­cer a Satanás... — respondeu Inês, finalmente fazendo-o se mover.

Começaram a correr. Por enquanto, porém, os turcos tinham à disposição muitas vítimas inermes, e não atentavam para os alvos em movimento: muitos dos doentes e feridos sequer tiveram tempo de levantar a cabeça de seus catres, antes que as cimitarras descessem sobre eles.

Depois de percorrerem uns cinqüenta metros, Anselmo começou a ofegar. Pouco adiante, algumas crianças choravam apavoradas, invocando a ajuda das mães, as quais, por sua vez, mandavam aos gritos que os filhos fugissem. Um grupo de infantes turcos se aproximava. Inês olhou ao redor e percebeu uma carroça abandoná-la, com um burro ao lado. Esperou que o companheiro ainda tivesse fôlego suficiente para alcançá-la. Mas, bem naquele momento, entre eles e os turcos se interpuseram três mulheres, duas jovens e uma mais velha, com a clara intenção de bloquear os muçulmanos antes que estes chegassem às crianças.

Inês recomeçou imediatamente a correr, arrastando Anselmo atrás de si. Após algumas dezenas de passos, virou-se para conferir as condições do monge, e viu lá atrás que os turcos tinham assassinado a mulher mais velha e aprisionado as outras.

Deu um novo puxão em Anselmo. Mas o monge estava quase cianótico, e ela compreendeu que não podia esperar dele outros esforços.

Só havia uma coisa a fazer.

Escute — disse a ele, agarrando-o pelos ombros. — Eu corro rara atrelar o burro à carroça. Enquanto isso, você vai ao meu encontro no seu ritmo.

O monge a encarou com expressão apalermada. Sem esperar a resposta, Inês saiu correndo, alcançou o animal e o desatou da paliçada. Encontrou o arreio de dorso na carroça, pegou-o e colocou-o s obre o burro.

Anselmo ainda estava a algumas dezenas de metros quando Inês se instalou na boléia, pronta para partir. Ela teve que esperá-lo e, fi­nalmente, com um gesto de impaciência, ajudou-o a subir à carroça.

Já em cima, e só então, Anselmo recuperou a palavra:

Você devia me deixar com esses desgraçados — disse, enxugando o suor. — Minha tarefa é assisti-los nos momentos mais difí­ceis... — acrescentou, sem muita convicção.

De fato, eu vi como você os assistia. E uma verdadeira desgra­ça que eles não possam se valer do seu precioso apoio... — respondeu ela, cáustica, enquanto puxava as rédeas do burro.

Depois, decidida, tomou a direção do mar, na intenção de apossar-se de um dos barcos ancorados ao longo da costa. Mas em seu campo visual entrou o grupo de crianças que fugiam de um cava­leiro turco. Inês calculou que dava tempo de fazê-las subir. Então, desviou de chofre e foi ao encontro delas.

— Quer confortar alguém? Chegou sua oportunidade: o melhor conforto que você pode oferecer a esses aí é ajudá-los a subir! — gri­tou para Anselmo.

O monge esperou que a andadura diminuísse até quase parar e estendeu a mão ao menino mais próximo, mas este se arranjou sozi­nho, agarrando-se à lateral da carroça e saltando para cima dela. Os outros o imitaram, mas eram muitos, e Inês teve que esperar para resgatar todos, antes de retomar uma velocidade constante.

Mas o animal estava puxando um peso excessivo para suas forças e seu passo continuou lento. As crianças começaram a berrar que o turco já estava perto. Inês se voltou bem a tempo de ver uma delas, atingida no peito por uma lança, desabar no assoalho da carroça.

— Anselmo, pegue as rédeas! — gritou ao monge. Este hesitou, de novo petrificado, mas um segundo grito de Inês, quase histérico, obrigou-o a obedecer. Os dois trocaram de lugar, enquanto o turco desembainhava a cimitarra e investia contra a carroça. Algumas crianças soltavam insultos contra o agressor, mas a maioria berrava e chorava. Inês abriu caminho entre elas e, quando chegou ao corpinho transpassado pela lança, agarrou a haste, no ponto onde a arma penetrara, e ficou aguardando junto à borda o assalto do cavaleiro inimigo.

Esperou-o até o último instante. Quando o turco se preparou para atacar, ela pegou fortemente a lança, arrancou-a e empurrou-a contra o muçulmano. Golpeado, este perdeu o equilíbrio e caiu da sela.

As crianças soltaram gritos de triunfo, enquanto Anselmo, que observara a cena continuando a segurar as rédeas, fitava a mulher com olhos e boca escancarados.

Inês perscrutou a devastação que ia ficando para trás, da qual surgiam os primeiros incêndios. Viu também outros cavaleiros ini­migos prestes a alcançá-los. Depois dirigiu o olhar para o mar; na costa, surgia um castelo destruído. Dúzias de cristãos se acotovela­vam na areia, disputando as embarcações.

Havia mais possibilidades de salvação na fortaleza, para a qual outros fugitivos também corriam.

— Dirija-se àquele castelo, vamos! — gritou ela para Anselmo.

Na realidade, chamar aquele edifício de castelo era até excessivo. Ele devia ter sido um, antigamente, mas agora era pouco mais que uma ruína, com diversos trechos da muralha desmoronados e todos os vãos desprovidos de portões. Inês percebeu que o burro não agüentava mais e resolveu que seria melhor prosseguir a pé. Or­denou que todos descessem e até empurrou Anselmo para o solo. Mas não abandonou a carroça; deixou o burro atrelado e ela mesma começou a puxar o animal.

Se os turcos se dirigissem logo para eles, não haveria a menor possibilidade de alcançar a fortaleza. Mas os perseguidores preferi­ram seguir para o mar, onde se viam centenas de cristãos amontoa­dos e indefesos. Assim, após um tempo que lhe pareceu interminá­vel, Inês conseguiu fazer o burro transpor a entrada do castelo. Anselmo se mantinha grudado a ela, ao passo que as crianças tinham corrido para dentro antes deles, unindo-se aos outros fugitivos que haviam encontrado refúgio ali.

Uma vez dentro das muralhas, Inês se sentou no chão, apoiando as costas na roda da carroça. A tensão lhe faltara de repente, e o can­saço se sobrepôs. Foi então que Anselmo recuperou a palavra:

Eu... eu — balbuciou — nunca vi uma mulher tão corajosa... nunca! Ou melhor, nunca vi nem mesmo um homem tão corajoso! Você é extraordinária! E evidente que foi o Senhor quem lhe infun­diu tanta coragem e tanta prontidão! Não existe prova melhor do que essa, para atestar que nossa causa é santa! O Senhor operou um milagre e transformou uma mulher em valente defensora da fé!

Inês ainda estava sem fôlego, mas não conseguiu evitar respon­der. Aquele monge despertava todo o seu cinismo.

Ah, é? Como assim, se poucos minutos atrás era Satanás quem me infundia força? E, também, como devemos encarar o desastre do qual escapamos? Também é uma prova da nossa santa causa?

Natural! O Senhor quer nos submeter à prova, e ver se esta­mos dispostos a sofrer para servi-Lo! Mas, agora, vamos pensar em você: precisa descansar. Venha, acomode-se aqui — disse ele, sentando-se também e oferecendo-lhe o colo como travesseiro.

Pois eu acho que nossos sofrimentos nós é que vamos procu­rar por conta própria... — comentou Inês, cansada demais para enxergar algo malsão na oferta do monge. Foi nessa posição que um soldado italiano os encontrou pouco depois. Ao vê-lo, Anselmo retraiu instintivamente a mão com que acariciava a fronte da mulher. Não saberia dizer se o soldado o tinha visto, porque este se mostrou interessado em outra coisa.

Afastem-se da carroça. Precisamos de todos os meios disponí­veis para bloquear as entradas e os vãos — disse, sem muitos cumpri­mentos.

Eu a trouxe aqui dentro justamente para isso — disse Inês, levantando-se.

O soldado a encarou por um instante, embasbacado, e depois com a superioridade de quem acreditava ter o monopólio das boas idéias em matéria militar.

Mas o que aconteceu? A batalha... — aproveitou Anselmo para perguntar.

Pode-se dizer que quase não houve batalha — respondeu o ita­liano, desconsolado. — Eles surgiram repentinamente dos bosques que margeavam a estrada, apenas a cinco quilômetros daqui, e nos sepultaram sob uma chuva de flechas. Não tivemos escolha a não ser fugir! — concluiu, com um gesto de irritação.

E agora? O que vai acontecer? — insistiu o monge.

O soldado desatrelou da carroça o burro, já moribundo, e deslo­cou o veículo para junto da entrada. Sua resposta se fez esperar.

Se quisermos ser otimistas — explicou —, podemos esperar que os turcos, depois de massacrarem o exército e depredarem o acampamento, vão embora saciados de butim e de sangue, deixando-nos em paz aqui dentro até a chegada do socorro. Certamente o imperador mandará de Constantinopla algum destacamento, assim que os primeiros fugitivos chegarem à capital por mar. Agora, porém, saiam daqui; precisamos obstruir esta entrada.

Mas logo mudou de idéia. Puxou a espada e perfurou o que res­tava do burro.

Ou melhor, esperem; me ajudem a deslocar este bicho até a abertura. Para fechar o buraco, tudo serve — disse, inclinando-se a fim de empurrar o animal pelo dorso.

Docilmente, os outros dois o imitaram.

Creio que você tem razão — comentou Anselmo. — Agora, os turcos vão passar o resto do dia roubando as pessoas ao longo da costa e saqueando o acampamento. Imagine se ainda vão arcar com um assédio! Amanhã de manhã, no máximo, aparecerão os navios bizantinos. O Senhor, em sua imensa bondade, quis nos poupar, pelo menos a nós — acrescentou, com uma satisfação decididamen­te excessiva.

— Pois é. Pena que aqueles lá, na costa, não possam dizer o mesmo — comentou Inês, um instante antes que o soldado, acredi­tando já ter levado a carcaça do burro até a altura certa, acenasse para que eles parassem de empurrar.

Os três se reergueram quase ao mesmo tempo, ofegando pelo esforço. Pouco depois, Inês escutou um ruído surdo ao seu lado. Virou-se e viu que, entre ela e Anselmo, já não estava o italiano. Então olhou para o solo.

Uma flecha havia trespassado o pescoço do soldado. Ela hesitou por um instante, antes de olhar lá fora. Os turcos estavam chegando.

 

Mogúncia, 23 de maio de 1096.

Cruzada popular dos germânicos

O rabino Isaac bar-Mosche entrou em casa com as faces rubras e uma expressão carrancuda.

Rápido, arrumem tudo de que vão precisar. O bispo Rothard nos ofereceu refúgio. Vamos para o palácio episcopal — disse, com uma irritação que não escapou à filha mais velha.

Ainda acha, pai, que não precisamos nos preparar para o pior? - respondeu Rebeca, que jamais aprendera a manter o devido res­peito pela autoridade paterna. — Não lhe bastam as notícias vindas de Espira e Worms?

Eu não me preocuparia muito com o que aconteceu em Espira. Os cruzados mataram onze judeus, é verdade. Mas eram uns poucos facínoras, cujas mãos o bispo mandou cortar, com o assentimento do chefe deles. E no que se refere a Worms... bem... não se pode acreditar num alucinado que chega montado num jumento dizendo que apenas cinco dias atrás houve um pogrom contra oitocentos judeus, ainda por cima com a colaboração da população!

Ah, é? Então, por que estamos indo para o palácio episcopal? - rebateu a jovem. — Excesso de cautela?

Isaac encarou a filha, desconsolado e cansado. Não conseguira casá-la, embora Rebeca já estivesse em idade núbil. Muitas vezes, ele se perguntava se a causa seria o aspecto dela, com nariz demasiado adunco, olhos muito esbugalhados, zigomas excessivamente pro­nunciados, queixo comprido demais, dentes muito salientes ou seu temperamento exasperante.

A moça não suportava não ter a última palavra numa discussão: uma última tirada que sua inteligência viva e brilhante freqüente­mente transformava numa alfinetada no interlocutor, privando-o da força de retrucar. Interessava-se por tudo, e nunca de modo superfi­cial, muitas vezes mantendo em condição de inferioridade quem quer que tentasse confrontá-la. Qualquer cortejador logo percebia a perspectiva que o esperava: ter de sustentar uma luta cotidiana para afirmar o privilégio de ser homem. Assim, todos preferiam ignorá-la e renunciar àquele pouquinho de beleza e fascínio que porventu­ra tivessem encontrado nela.

Excesso de zelo por parte do rabino-chefe Calônimo, em minha opinião — respondeu finalmente Isaac, resignado a dizer tudo à filha, antes que ela lhe arrancasse as informações com sua insistência. — E, em parte, também, a péssima fama do chefe cruza­do, o conde Emich de Leiningen, já famoso, antes desta história, por sua propensão à violência. Parece que ele comanda mais de quinze mil pessoas, entre as quais muitos cavaleiros. Imagine que Calônimo quis assegurar para nós a proteção do bispo doando-lhe trezentos marcos de prata, para evitar equívocos, e se afirmou disposto a pagar ao margrave todas as despesas para ter também o apoio dele.

É tão terrível assim esse conde Emich? Talvez seja apenas um valente guerreiro, ansioso por combater no Oriente os inimigos de sua fé...

Quem falou não foi Rebeca, mas sua irmã Sara, que estava escu­tando a conversa. Sua atenção tinha sido despertada pela menção ao chefe cruzado: não um padre, como Pedro, o Eremita, ou Gottschalk, os quais haviam mobilizado outros exércitos para ir ao Oriente. O pouco que fora dito bastava para excitar sua fantasia, na qual os louros cavaleiros germânicos cristãos tinham sempre um lugar de destaque.

Os "valentes guerreiros" que enchem seus sonhos de eterna adolescente — respondeu duramente a mais velha — estão a tal ponto, ansiosos para combater por sua fé que se sentem muito con­tentes por poderem se exercitar conosco, os judeus. Entre eles, há quem pense que não faz sentido ir até a Ásia para assassinar gente que não matou Cristo, quando têm os deicidas ao lado de casa!

Ao dizer isso, Rebeca olhou o pai, renovando a muda admoestação que lhe dirigia desde anos antes, sempre que entravam no assun­to. Desde quando começara a estudar o memorial de Tiago, ela havia repetidamente criticado Isaac por ter decidido não o divulgar.

Suas admoestações, porém, nunca permaneciam mudas por muito tempo:

Viu o que acabou nos acontecendo, pai? Teríamos tido muito tempo para revelar ao mundo a verdade sobre a pregação e a crucifixão de Jesus, sem precisar chegar a este ponto — disse afinal.

E quem lhe garante que as coisas não seriam ainda piores? — retrucou o rabino. — Agora, trata-se apenas de sintomas do delírio coletivo que se apossou da cristandade. Vai passar. Se eu tivesse divulgado os pergaminhos, provavelmente o principal objetivo da cruzada seríamos nós. Em vez disso, pelo menos temos assegurada a proteção das autoridades. Creio que as quinhentas moedas de ouro que enviamos meses atrás a Godofredo de Lorena para que ele não nos molestasse produziram o efeito desejado: por acaso o imperador Henrique não escreveu a todos os seus vassalos, laicos e eclesiásticos, ordenando que cuidassem da nossa segurança?

Você sabe muito bem que isso foi uma belíssima extorsão. Desse modo, praticamente financiamos a cruzada de Godofredo. E muitos outros senhores e fidalgotes tomaram empréstimos a juros às comunidades judaicas, antes de partir. Não me surpreenderia que se aproveitassem das circunstâncias para se livrarem ao mesmo tempo das dívidas e dos credores... — respondeu Rebeca.

Afinal, de que você tem medo? — gritou o pai, impaciente, como sempre ficava quando chegava a ponto de não saber retrucar. — Nós tomamos todas as providências, não está vendo? O bispo e o margrave nos garantiram que preservarão nossa vida mesmo à custa da deles. Nenhum cruzado ousaria assaltar um palácio episcopal: do contrário, que cristãos seriam eles? Além disso, saiba que mandamos ao próprio conde de Leiningen nada menos que sete libras de ouro..

Portanto, outro resgate, como se não bastasse a cifra hiperbó­lica entregue a Godofredo de Lorena! Ainda assim, obviamente você acredita que isso poderia não bastar, se julga mais prudente nos refu­giarmos na residência do bispo. Acha que eu não sei a que nível che­gou a histeria coletiva dos cristãos? Que o conde Emich afirma ter estigmas de santidade nos pulsos? E que alguns do grupo dele se puseram em marcha pretendendo seguir um ganso animado pelo espírito celeste? Acha possível esperar comportamentos lógicos e racionais de gente tão desvairada? Se fossem poucos, poderíamos liquidá-los com alguns cortes na cara, mas são muitos, muitos, e se alimentam reciprocamente com sua loucura...

Então, se vocês pagaram ao conde, ele nem vai aparecer na cidade! — exclamou Sara, decepcionada. — Arre! Nunca se vê um homem de verdade por aqui! Só mercadores e artesãos, rabinos e padres, camponeses e servos!

Como freqüentemente acontecia, Rebeca reprimiu com dificul­dade sua irritação pelas palavras da irmã.

Os homens de verdade, como você os define, estão lá fora. Imagine o tratamento que lhe reservariam, na condição de mulher atraente e judia! — gritou.

Desconsolado, Isaac olhou as duas filhas. Rebeca iria consumir o homem ao lado do qual decidisse ficar. Sara, ao contrário, se consu­mia na espera pelo homem certo. A primeira ninguém queria; quan­to à segunda, eram até demais os que a desejavam, só que ela não desejava ninguém.

A beleza de Sara era tão evidente que, até para os homens brilhantes, deixava em segundo plano sua manifesta superficialidade. Seus traços angelicais impeliam quem quer que a conhecesse a desejar protegê-la: inclusive o pai e a irmã, que a preservavam de quais­quer ameaças, mimando-a e talvez distanciando-a cada vez mais da realidade.

Por favor, não percamos tempo nessas disputas estéreis. E você, Rebeca, não é hora de recriminar — disse Isaac. — Acabem logo de arrumar nossas coisas e vamos.

... Esperando encontrar tudo em seus lugares, quando voltar­mos — ironizou Rebeca.

O pai ergueu os olhos para o céu.

Tente confiar em Deus, de vez em quando... — respondeu, resignado.

E os rolos, o que fazemos com eles?

Deixe-os aqui mesmo. Creio que estarão em segurança, no alçapão sob o piso. Aconteça o que acontecer à casa, ali embaixo permanecerão íntegros e escondidos.

Ah! Então você acha mesmo que existe algum risco! Nesse caso, é melhor que os levemos conosco.

Mas como faremos? — Se a filha se inclinava a agir daquele modo, nem mesmo uma extenuante discussão conseguiria fazê-la mudar de idéia. — Eles são estorvantes e frágeis, corremos o risco de arruiná-los ou de perdê-los. Alguém poderia pedir explicações, e o que responderíamos?

Não se preocupe. Eu cuido disso — concluiu Rebeca.

Isaac se resignou: sabia muito bem que a filha preferiria divulgar os rolos havia tempo. Se ainda não o tinha feito, era porque só recentemente aprendera bem o grego, e queria terminar de estudá-los antes que eles lhe fossem subtraídos.

O palácio episcopal estava no caos mais completo. Milhares de judeus haviam buscado asilo ali, lotando todos os quartos e salões dos dois andares do edifício. Quem havia sido menos rápido — entre estes, o próprio Isaac com as filhas — tivera de se contentar com um lugar no pátio interno, transformado numa espécie de acampamen­to desorganizado. Havia gente que viera só com a roupa do corpo, ao passo que outros tinham quase esvaziado suas casas, e agora improvisavam abrigos com seus próprios trastes.

Brigava-se para disputar o espaço disponível. Muito poucos, aliás, conseguiram dormir. O tempo estava clemente, embora a pri­mavera tardia da zona renana fosse totalmente inadequada a servir de cenário para uma noite ao ar livre. Mas a tensão e a angústia dos que não compartilhavam o otimismo do rabino alimentaram pran­tos e gritos até o alvorecer, impedindo o sono até mesmo dos pou­cos de ânimo mais tranqüilo.

Rebeca notou que muitos haviam levado suas armas. Sabia que, dentro da comunidade judaica, diversas pessoas possuíam armadura, elmo e espada, mas duvidava de que algum dia os tivessem usado, mesmo que só em treinamento.

Ela também não tinha dormido. E não se tratava apenas de sua ansiedade, contra a qual precisara lutar demoradamente para ter alguns instantes de calma, mas também dos lamentos e das sacudidelas a que sua irmã a submetia. No entanto, Sara não experimentava uma grande agitação. Talvez a experimentasse, na realidade, se tives­se percebido claramente a situação e os perigos potenciais que pesa­vam sobre a comunidade. Suas reclamações se deviam, sobretudo, ao desconforto, ao aborrecimento por ter que dormir ao lado de estra­nhos, longe de sua casa, praticamente no chão.

No meio da noite, Rebeca precisou se levantar e tomá-la pela mão, conduzindo-a sob a luz fraca das tochas em busca de uma loca­lização menos incômoda; na outra mão, levava duas cobertas, a fim de preparar para ela um enxergão decente.

Depois de perambular entre corpos e bagagens e de ouvir insul­tos de todo tipo, as duas moças chegaram a um canto do pórtico onde havia restado um espaço estreito, mas suficiente para receber o corpo miúdo de Sara. Só então a jovem caiu num sono leve, que durou até que o sol estivesse alto no céu.

Rebeca retornou ao seu lugar, junto do pai, e manteve os olhos abertos até o amanhecer, preparando-se em seguida, como todos os outros, para a notícia de que o exército dos peregrinos tinha avançado.

Informações sobre a presença de destacamentos cruzados diante dos muros chegavam sem parar, mas não vinha nenhum boato sobre alguma tentativa deles no sentido de entrar na cidade. Provavel­mente, disse Isaac, estavam só esperando o grosso do exército, ou então negociando o reabastecimento em munições e víveres.

Rebeca desejou com todo o coração que seu pai estivesse certo. Mas no meio do dia, quando já quase se convencera de que era isso mesmo, ouviu baterem freneticamente no portão do palácio. O pátio inteiro se agitou, e a moça, que estava longe da entrada, não conseguiu entender o que os indivíduos que haviam batido disseram aos guardas colocados pelo bispo para vigiar o portão. Finalmente, a notícia veio:

Alguém abriu as portas da cidade! E sem que os peregrinos pedissem! — disseram ao seu pai.

Calma, calma! — gritou Isaac aos mais próximos. — Não há razão para temer. Tivemos amplas garantias quanto à nossa segu­rança. Além disso, estamos sob a proteção do bispo e do margrave. Basta não cometermos tolices ou agirmos por impulso! Vocês verão que, no máximo, eles vão entrar só para buscar alguma comida.

Isaac abriu caminho em meio ao tumulto e se dirigiu à entrada, aonde estava indo também o rabino-chefe Calônimo bar-Meshulam. Mas já se ouviam outras pancadas no portão, novamente fechado. Os guardas só abriram após a insistência dos rabinos, e a informação que receberam, pensou Rebeca de imediato, devia ser devastadora, porque imediatamente depois os soldados correram a buscar refor­ços, e um coro de gritos e lamentos se elevou da parte próxima ao muro de contorno.

A jovem tentou avançar para falar com o pai, mas percebeu estar indo contra a corrente. De fato, a grande maioria das pessoas tenta­va chegar ao interior do edifício. Enquanto isso, porém, alguns cor­religionários, entre os quais o próprio Calônimo, tiravam de sacas seus armamentos e os envergavam. Rebeca conseguiu alcançar um dos armados, agarrou-o pela gola da cota e perguntou:

Quais são as notícias? O que aconteceu?

Os peregrinos estão enxameando na cidade. Dizem que as por­tas se abriram sozinhas, e consideram isso um sinal do crucificado.

Um sinal de quê? — perguntou ela de novo.

De que devem vingar o sangue dele.

Tudo começou a girar em torno de Rebeca. Ela viu ações e gestos ao redor, mas, por algum tempo, não teve condições de estabelecer a seqüência e a localização deles. Viu o portão ser trancado. Viu outros guardas do bispo acorrerem à entrada. Viu, ainda, seus ami­gos e conhecidos envergarem a cota de malha e se precipitarem rumo à entrada. Viu o portão vibrar sob as fortes pancadas vindas do exterior.

E depois viu-o escancarar-se de chofre, arremessando para trás os que se haviam amontoado nas vizinhanças. Uma selva de lanças, espadas, achas de armas e até forcados avançou, em busca de sangue.

Sangue judeu.

De repente, Rebeca se deu conta de que o pai se encontrava perto da entrada e, à diferença de Calônimo, desprovido de armadura, além de ser velho demais para suportar os choques da multidão; os rolos estavam a poucos metros dela, com as pessoas ao redor amea­çando cair em cima dos documentos de uma hora para outra; Sara se encostava à parede do palácio, apavorada e trêmula.

Devia protegê-los. Todos eles.

Passou alguns instantes decidindo a quem ou a quê deveria dar prio­ridade. Por fim, as circunstâncias decidiram por ela. Os guardas do bispo limitaram-se a trocar uns poucos golpes com os cristãos que se espalhavam pelo pátio. Os soldados haviam percebido que alguns moguncianos tinham se unido aos peregrinos, e não ousavam enfrentar amigos, conhecidos e talvez até parentes. Um após o outro, os guardas deixaram cair a espada e se retiraram para o palá­cio. Junto ao portão permaneceram somente os poucos judeus que portavam armas; todos os outros afluíam, em busca de refúgio, para o interior do palácio, onde se encontrava o bispo Rothard.

Rebeca se viu no chão, atropelada pelos seus correligionários em fuga. Tentou rolar para a direita, procurando alcançar a sacola que continha os pergaminhos, mas seu movimento bloqueou a corrida de um fugitivo, que acabou lhe caindo em cima, plantando-lhe no flanco uma cotovelada involuntária. Logo depois, quando ainda ten­tava recuperar o fôlego, ela recebeu no rosto um soco — desta vez, intencional — do mesmo indivíduo, louco de medo e furioso por ter sido atrapalhado.

Indiferente à dor no lábio, do qual sentiu fluir o calor do sangue, estendeu o braço para pegar a sacola dos rolos, que ela via a pouca distância de si, mas um pé lhe pisou a mão, provocando uma dor lancinante. Ajoelhou-se e, nessa posição, encolheu-se sobre a sacola, dizendo a si mesma que cuidaria primeiro dos pergaminhos, antes mesmo que do pai e da irmã, só porque estavam mais próximos.

Finalmente, se levantou. A multidão estava um pouco menos compacta, e os assaltantes ainda eram contidos por uma fina linha de defesa, constituída por poucas dezenas de judeus armados. Atrás deles, outros correligionários, homens e mulheres, jaziam de joelhos e cabeça baixa, ocupados em rezar.

Entre eles, encontrava-se também Isaac.

Depois Rebeca se voltou. Entre os fugitivos, viu de relance a irmã, que pedia socorro.

Agora que estava de posse do manuscrito, constatou que sua escolha se limitava a duas alternativas. Devia tirar dali o pai, muito próximo dos combates. Mas também devia levar a irmã para dentro do palácio, visto que Sara não parecia conseguir fazer isso sozinha.

Em um instante, elaborou a estratégia. Lançou-se em direção à irmã, distribuindo cotoveladas, empurrões e pontapés até alcançá-la. Sara urrava desesperada, já sem atentar para o que acontecia ao seu redor.

Chega, chega! — gritou-lhe Rebeca. — Sou eu, Sara, sou eu! — continuou dizendo, até que a irmã demonstrou reconhecê-la.

Tire-me daqui, tire-me daqui! — exclamou a jovem, agarrando-se a ela e apertando-a com força.

Não será possível. Você tem que fazer isso sozinha. Preciso pensar em nosso pai, agora. Entendeu? — respondeu Rebeca, tentan­do se mostrar firme.

E eu? Quem vai pensar em mim?

Escute: você pode perfeitamente se mover com suas pernas. Portanto, entre no palácio e procure chegar ao apartamento privati­vo do bispo. Lá, ninguém ousará tocá-la. Compreendeu?

Sozinha eu não consigo, não consigo! — estridulou Sara. — Você tem que vir comigo!

Rebeca lhe deu um tabefe. Nunca fizera isso, mesmo tendo tido que servir praticamente de mãe para ela.

Vá, estou dizendo! — berrou, com toda a determinação e auto­ridade de que era capaz.

Funcionou. Sacudida pela reação da irmã, mais do que havia sido pelo perigo, Sara não disse uma palavra e, enxugando as lágri­mas, moveu-se de início lentamente e depois correndo, desaparecen­do junto com os outros pela entrada do palácio.

Só então Rebeca se voltou, para localizar o pai. Mas o que viu fez com que ela deixasse cair a sacola com os rolos.

Os adoradores do crucifixo tinham completado a invasão com sucesso. Eram muitos, ávidos de sangue e de vingança, cheios de furor destruidor. Por todo o terreno jaziam corpos, sobre os quais se debruçavam os judeus, ajoelhados, rezando. A alguns deles os pere­grinos e os concidadãos ofereciam a possibilidade de converter-se, antes de desfecharem o golpe mortal.

Mas não a Isaac, o qual, expondo a nuca, deu sua resposta antes mesmo que o interpelassem.

A lâmina desceu, implacável. A cabeça do rabino rolou no chão e um peregrino jogou-a longe com um pontapé.

Rebeca havia assistido à cena inteira. Horrorizada, soltou um uivo, que chamou a atenção dos cruzados. Reunindo forças para ven­cer o desespero, recolheu a sacola e se aproximou da entrada do palá­cio, abrindo caminho entre os feridos que se amontoavam na soleira.

Atrás de si, ouvia gritarem injúrias de todo tipo contra o bispo "protetor dos deicidas".

Compreendeu que o edifício não era mais seguro do que o pátio onde havia visto degolarem o pai. Ainda podia sair, mas não admi­tia deixar Sara à mercê daquela turba endemoniada. Já falhara com o pai, e não se perdoaria se deixasse a irmã morrer também. Rumou decidida para o primeiro lance da escada. Mas o caminho estava obstruído pelos correligionários que tentavam subir, pelos que per­diam o equilíbrio e escorregavam para o térreo e por todos os que resolviam se deter para esperar a morte. Ao redor, já não se via um só guarda do bispo.

Os peregrinos não perderam tempo afastando os judeus que se acumulavam na entrada. Transfixaram-nos e ergueram os corpos usando as espadas como alavanca, jogando-os às costas e irrompen­do como demônios no salão do térreo. Rebeca emborcou uma mesa e se escondeu atrás, grudando-se à parede e esperando aproveitar o instante mais oportuno para subir. Ninguém a notou: os cruzados se dirigiam todos para a escada, onde se oferecia à visão deles o maior número de alvos. Com o objetivo de abrir caminho para chegar ao bispo, varreram todos os obstáculos com as armas, já sem dar a ninguém a possibilidade de se converter. A moça viu pais subirem precipitadamente arrastando atrás de si os filhos, mães que carrega­vam bebês nos braços perderem o equilíbrio e caírem diretamente sobre a ponta das espadas, maridos servirem de escudo à fuga das mulheres.

Só saiu do esconderijo quando na sala só restavam os mortos. Agora, o massacre se transferira para o andar superior, aonde ela chegou saltando pilhas de cadáveres ao longo dos degraus, depois de escorregar várias vezes em riachos de sangue. Nos apartamentos pri­vados do bispo, a atenção dos cristãos se concentrava mais nas alfaias e nas jóias do que nos judeus que ainda vagavam pelo palácio.

Quando ainda se encontrava no alto do lance, Rebeca viu caírem-lhe em cima dois de seus correligionários que se precipitavam escada abaixo, quase sem serem incomodados.

Outros, ao contrário, haviam se entrincheirado nos aposentos, cujos acessos os peregrinos tentavam arrombar, mais para procurar butim do que para continuar matando. Rebeca compreendeu que a irmã devia estar num daqueles cômodos: esperou que os adoradores do crucifixo derrubassem a porta mais próxima, detendo-se na reta­guarda deles. A porta caiu após alguns golpes com o ombro, mas logo atrás havia uma amassadeira de pão atravessada, e no fundo do apo­sento uma mãe com duas filhas pequenas. Rebeca viu a mulher cortar a garganta das meninas e depois usar a faca em si mesma, pouco antes de os cristãos irromperem ali dentro e se atirarem aos móveis e uten­sílios, sem lançar sequer um olhar para os três corpos.

O cômodo seguinte já tinha sido aberto e outros corpos jaziam no chão. Alguns judeus eram puxados para fora, em lágrimas, pedin­do a Deus que os perdoasse pela sua apostasia. Pelo menos desta vez, Rebeca se sentiu grata pela sua escassa formosura, que, aliada à gran­de confusão, contribuía para fazê-la passar despercebida. Mas ocorreu-lhe que, pelo mesmo motivo, a irmã corria perigos mais graves do que qualquer outra.

Olhou mais à frente, e percebeu um grupo de alucinados corren­do em direção a ela, a caminho da escada. Achou que ia morrer, mas depois atentou para as palavras deles: o bispo não se encontrava em seus aposentos, e sim na capela, e estava fugindo. Encolheu-se contra a parede e os deixou passar; os fanáticos, se por acaso a notaram, não quiseram perder tempo com ela, enquanto a presa mais ambiciona­da estava escapando.

Pouco adiante ficava o apartamento privado de Rothard, para onde sugerira que Sara fosse. Alcançou-o e viu que a porta estava arrombada. Lá de dentro provinham risadas indecorosas.

Depois, também percebeu gritos de mulher.

De mocinha.

Avançou para a soleira, apertando contra si a sacola dos pergaminhos. Adiantou timidamente a cabeça e viu um grupo de homens acotovelando-se ao redor do suntuoso baldaquino do bispo. Todos dirigiam sua atenção para o leito, e nenhum fez caso de Rebeca, nem mesmo quando sua figura inteira se recortou no vão.

Um dos idolatras se afastou do grupo soltando imprecações. Só então Rebeca pôde ver o leito. Viu uma jovem com as roupas rasga­das, o rosto inchado, os braços e os tornozelos presos pelas fortes garras daqueles animais.

Era o rosto de Sara, mais escondido por equimoses e sangue do que pelas silhuetas de seus carrascos.

O homem que se afastara viu Rebeca.

E você? Está olhando o quê?

Soltem a moça! — gritou ela, instintivamente.

Os outros também se voltaram.

Vamos, João, tente com essa aí. Talvez, com as feias, você con­siga! — disse um deles.

Rebeca se retraiu, procurando com o olhar algum objeto que lhe servisse como arma. Mas o quarto já fora esvaziado de tudo.

Em seguida ouviu passos atrás de si e, recuando mais, chocou-se com alguém que vinha chegando às pressas. Virou-se e viu outros cruzados, outros bárbaros.

Já não havia saída.

— Mas o que estão fazendo? Agora chega! Vocês já causaram sufi­cientes desgraças! — gritou o homem em quem Rebeca tropeçara, afastando-a com um empurrão enérgico sem sequer olhar para ela.

Era o único, notou a jovem, que usava elmo e cota de malha. Os outros, diante dele, pareciam uns maltrapilhos.

Um dos cruzados que circundavam a cama deu-se ao trabalho de responder:

Ora, vamos, Ricardo, deixe-nos terminar. Não é garantido que tenhamos muitas oportunidades assim no futuro... — disse, sor­rindo afavelmente.

O homem que ele chamara de Ricardo avançou mais, sem dizer uma palavra. Assim como havia afastado Rebeca, empurrou dois dos que se apinhavam ao redor do baldaquino, um dos quais já descera as bragas. Nenhum pareceu reagir. Claramente, pensou Rebeca, aquele Ricardo era um comandante, ou então um personagem de algum modo respeitado e temido. Até porque nem sequer precisara puxar a espada da bainha.

Essas coisas não têm nada a ver com nossa tarefa de converter os judeus ou de fazê-los pagar por seus crimes! — exclamou o solda­do, antes de finalmente pousar o olhar sobre a vítima das sevícias.

Sua expressão suavizou-se de repente, e ele permaneceu fitando Sara mais demoradamente do que seria lícito esperar. Estendeu a mão e lhe segurou delicadamente o pulso, enquanto a jovem soluça­va e, com a outra mão, tentava se cobrir.

Não será você quem está querendo se divertir com ela, hein? — disse um soldado, soltando uma risadinha de escárnio.

Ricardo nem se voltou. Seu braço esquerdo girou para trás e o depravado foi lançado ao solo por um poderoso tapa com as costas da mão.

Mais alguém acha que eu sou um animal como vocês? — gri­tou Ricardo, assumindo novamente a expressão determinada e auto­ritária que Rebeca havia percebido no rosto dele pouco antes. — Saiam daqui, vamos! O conde está precisando de homens para car­regar víveres — acrescentou, depois de constatar que ninguém ousa­va lhe responder.

Para surpresa de Rebeca, todos obedeceram e, lentamente, saí­ram do quarto. O olhar de Ricardo continuou fixado em Sara, que, por sua vez, não conseguia desviar os olhos de seu salvador. Ele tirou o elmo, revelando uma cabeleira louro-afogueada e a nuca raspada, segundo a moda normanda; depois segurou a jovem pelas axilas, sentando-a na cama e ajeitando-lhe ao redor os travesseiros.

Está sentindo dor? — perguntou, limpando com delicadeza o sangue do rosto dela com a fímbria do lençol.

Eu... eu levei muitas pancadas, mas eles não tiverem tempo de... pelo menos, creio... — respondeu Sara, com um fio de voz. Seu olhar dizia muito mais.

Rebeca decidiu que chegara o momento de chamar a atenção para si.

Agradeço-lhe por ter salvo minha irmã... Ricardo — disse.

Só então ele demonstrou se dar conta da presença dela.

Certos excessos são intoleráveis, mesmo contra os assassinos de Cristo — respondeu, dando de ombros.

Rebeca teve um sobressalto. Olhou a sacola com os pergaminhos e mordeu os lábios.

Como sabe que foi nosso povo quem matou seu deus? Você estava lá? Viu o que aconteceu? — retrucou, irritada.

Todos sabem. Está escrito nos Evangelhos e os padres afirmam isso há séculos — replicou o homem. — Mas eu não me impor­to muito com essas coisas. Seja como for, se quiserem evitar outros problemas, vocês devem ir embora daqui. Eles virão procurar butim — acrescentou, decidido.

Você nos acompanha? — pediu Sara, imediatamente.

Só até o pátio. Depois, terão de se arranjar, a não ser que pre­firam ir para sua casa. Mas desconfio que o bairro judaico já foi todo revirado — respondeu Ricardo, esboçando até um sorriso.

Mas você é um cavaleiro importante. Poderia nos proteger — replicou a jovem, fazendo uma espécie de beicinho.

Eu não sou um cavaleiro.

Um guerreiro famoso?

Também não. Sou apenas um errante que vai pelos bosques em busca de lenha, mel e mais o que possa ser útil aos senhores ricos. E tive a sorte, durante uma caçada, de salvar de um urso o conde Emich, que depois se lembrou de mim e me confiou um comando subordinado — respondeu pacientemente Ricardo, enquanto ajuda­va Sara a se levantar.

E quantos judeus vocês ainda pretendem massacrar, antes de cruzarem armas com um muçulmano? — insistiu Rebeca, sem saber se o estava alfinetando por causa de seu natural espírito polêmico ou para desviar a atenção dele em relação à irmã.

Se não parar com isso, você pode até ser o único judeu que eu vou matar — retrucou ele, enquanto lhe agarrava um braço e a puxa­va para fora do quarto, segurando, com a outra mão, a de Sara.

O ruído de passos provenientes do andar inferior o induziu a estacar antes de transpor a soleira.

Já estão chegando. Não sei se poderei detê-los, se não perten­cerem à minha unidade. Exceto se disser que vocês se converteram... — sugeriu, virando-se para Sara.

Bem... até poderíamos... — arriscou-se a dizer a jovem, olhan­do timidamente para a irmã mais velha.

Está brincando? — reagiu Rebeca. — Nosso pai, um rabino, morreu oferecendo o pescoço aos idolatras, e nós, por medo, vamos renunciar à nossa fé?

Seria só para salvar a pele. Depois, quando sairmos, vocês podem voltar aos ritos que preferirem... — disse Ricardo, respon­dendo a Rebeca, mas fitando Sara.

— Nem pensar. — Foi a resposta da irmã mais velha. Sara se sub­meteu baixando a cabeça, encabulada pelo que lhe parecia um exces­so de zelo.

Ricardo suspirou e balançou a cabeça, finalmente olhando para Rebeca, mas de esguelha. Depois perscrutou ao redor, detendo-se finalmente na janela.

Só há um caminho para sair daqui — disse, levando-as para diante da abertura. Em seguida se debruçou à janela e olhou para ci­ma. — Como eu imaginava. Falta pouco para o telhado. Se eu as impelir, vocês devem alcançá-lo.

E depois? — perguntou Rebeca, não muito convencida.

Depois, tentem subir ao topo apoiando-se nas telhas, e espe­rem ali até que eu vá buscá-las. Mesmo que se passem muitas horas.

Imediatamente, para ganhar tempo, soergueu Sara, que, docilmente e com certa complacência, se deixou içar para além do vão.

Conseguiu? — perguntou, depois de elevá-la até o máximo de suas possibilidades.

Pronto, já estou no telhado — respondeu a jovem lá de cima.

Ricardo olhou para Rebeca.

E então? Vamos nos mover? — disse, impaciente.

Ela hesitou, desconfiada.

Se incendiarem o edifício, teremos um fim terrível.

Duvido que cheguem a tanto. De qualquer modo — redargüiu Ricardo, acenando com a cabeça para a porta, de onde provinham cada vez mais fortes os rumores da turba que se aproximava —, você sempre pode escolher outro destino... — Pela primeira vez, não usou com ela um tom duro. Apenas zombeteiro.

Rebeca refletiu por mais um instante. Não sabia se o que mais a incomodava era dar razão àquele idolatra ou permitir que ele a tomasse nos braços. Decidiu que tudo devia se subordinar à salvação delas e dos rolos e, dispensando a ajuda dele, içou-se sozinha ao parapeito da janela, levando consigo a sacola. Então esperou que Ricardo a segurasse pelos tornozelos e a impelisse para o alto.

Seria mais fácil se você deixasse essa sacola no chão — disse o homem.

De modo algum — respondeu ela, apertando os pergaminhos ainda mais contra o corpo.

Ricardo suspirou de novo e se decidiu a içá-la, enquanto ela ten­tava passar a sacola a Sara. Esta, porém, tinha se apressado a alcan­çar o topo e, ao ser chamada pela irmã, precisou voltar com cautela até a parte mais inclinada. As telhas tremiam, ameaçando soltar-se. Sara parou, mas ainda estava muito longe da borda para conseguir receber os rolos das mãos de Rebeca.

Venha, estou mandando! — bradou Rebeca.

Andem depressa, maldição! — berrou Ricardo.

Da escada, provinham vozes:

Aqui estão todos mortos! Vejamos se lá em cima alguém ainda está vivo.

Rebeca também ouviu. Com uma das mãos, agarrou-se à borda do telhado e gritou à irmã:

Bom, fique onde está. Vou jogá-la para você agora. Tente pegá-la!

Depois escutou a irmã reclamar que não conseguiria fazer isso, mas jogou assim mesmo, aterrorizada pelas vozes hostis cada vez mais próximas.

Sara estendeu instintivamente as mãos para pegar o objeto, mas enrijeceu todo o resto do corpo para se manter ancorada à superfí­cie do telhado.

Falhou.

A sacola aterrissou sobre as telhas, pouco distante dela, e escor­regou lentamente, seguindo o declive. Sara proferiu uma expressão irritada, e, só por isso, Rebeca, cujo rosto estava sob o beirai, perce­beu que ela não tinha conseguido. Instintivamente, ergueu as mãos, às cegas, agarrando a sacola um instante antes que ela caísse no vazio. Mas seu impulso repentino balançou Ricardo, que quase caiu também. O homem se abaixou de repente, e esse movimento fez Rebeca perder o equilíbrio. Ela oscilou para trás, rumo ao vazio.

Ricardo conseguiu se firmar nos joelhos e, colando-se à parede abaixo da janela, continuou segurando os tornozelos de Rebeca, que agora pendia de cabeça para baixo. Com grande esforço, puxou-a para dentro e, enquanto recuperava o fôlego, ouviu as vozes se tor­narem cada vez mais próximas.

Jogou o elmo no chão e tirou a cota de malha. Em seguida, puxou a espada da bainha, provocando um sobressalto em Rebeca, e cortou a armadura, dividindo-a em duas partes unidas por uma tira delgada de argolas de ferro. Então se esticou para fora da janela.

Como se chama sua irmã? — perguntou a Rebeca.

Sara. E eu me chamo... — começou ela a responder.

Sara! Sara! Pegue estas argolas que vou lhe jogar e segure fir­me! — interrompeu-a Ricardo, içando-se até o parapeito.

O lançamento deu certo na primeira tentativa. Então ele arran­cou a sacola das mãos de Rebeca e a prendeu à corda improvisada. Depois gritou a Sara que puxasse, enquanto descia da janela e acena­va a Rebeca para subir. De novo, içou-a, e, desta vez, livre do fardo, a jovem conseguiu alcançar o telhado.

Encontro vocês mais tarde. Se puder — gritou Ricardo para ela, quando a julgou em segurança.

Um instante depois, os outros peregrinos irromperam no quarto.

O que lhe aconteceu? — perguntaram, enquanto as duas irmãs escutavam.

Nada... Alguns judeus desesperados me atacaram e rasgaram minha cota de malha. Consegui me livrar e os joguei lá embaixo, mas um deles levou consigo a armadura... — respondeu o soldado, deixando que os companheiros se debruçassem à janela para confir­mar suas palavras. O solo estava cheio de corpos trucidados, e eles não tiveram dificuldade de acreditar.

E isso tampouco lhes importava.

Rebeca aproveitou o amplo ângulo de visão que o telhado lhe ofere­cia para observar ao redor. Do bairro judaico subiam chamas, e gri­tos ferozes provinham de todas as direções. Gritos selvagens por parte dos peregrinos, mas também dos próprios moguncianos, que, no entanto, até aquele dia, não haviam mostrado clara hostilidade ante os judeus.

Recordou as longas discussões com o pai, aquele pai que ela vira ser degolado pouco antes. Várias vezes os dois tinham divergido quanto à necessidade de tornar público o memorial, e Isaac sempre fizera a mesma objeção: as coisas não pareciam ameaçar precipitar- se dentro de pouco tempo.

E, no final, as coisas haviam se precipitado. Mais do que se pode­ria imaginar. Bandos imensos de cristãos enlouquecidos percorriam a Europa massacrando todos os judeus que podiam, a despeito de acordos, resgates e seguros de todo tipo. Mesmo que a situação vol­tasse à normalidade, após o delírio pelas expedições ao Oriente, como seria possível viver entre comunidades que haviam se mostra­do dispostas a agredi-los com ferocidade inaudita, sob governantes incapazes de defendê-los ou até mesmo determinados a prejudicá-los?

Não, agora os judeus já não podiam pensar em viver na Europa.

Olhou para Sara. Apesar dos maus-tratos, o rosto dela ainda conservava um oval perfeito, os traços ainda eram delicados e har­moniosos. As roupas estavam rasgadas e talvez, pensou Rebeca, seu corpinho delgado sentisse frio. A irmã acabara de sofrer uma expe­riência que marcaria qualquer mulher. No entanto, mostrava uma expressão nem um pouco angustiada, deprimida ou desesperada. Seus olhos miravam longe, sonhadores, e em sua boca se desenhava a sombra de um sorriso.

Rebeca não teve dificuldade para identificar em Ricardo o moti­vo daquela recuperação repentina. Para a irmã, aquele belo normando que a salvara representava o primeiro homem de verdade que se materializava a partir de seus sonhos.

E era um idólatra. Um daqueles que as perseguiam, embora por um instante tivesse sido movido pela compaixão, salvando-as.

Não. De maneira alguma. Não podia permanecer na Europa e correr o risco de sua irmã acabar nas mãos de algum daqueles san­guinários adoradores do crucifixo.

Só havia um lugar para onde podia pensar em levar Sara e os rolos, disse Rebeca a si mesma. Um lugar cujos governantes eram mais tolerantes do que aqueles selvagens. Um lugar razoavelmente seguro, aonde aquela gentalha desorganizada jamais chegaria.

Jerusalém.

 

Jerusalém, agosto de 1098.

Os turcos assediados pelos árabes fatímidas

O tiro do trabuco abalou pela enésima vez os muros da cidade sitiada pelos árabes. O emir Jamal al-Ashraf ficou satisfeito ao ver que aquele setor do circuito de muralhas também começava a dar sinais de desmoronamento. De fato, o grão-vizir Shah-an-Shah al-Afdal havia confiado justamente a ele a coordenação das quarenta máquinas de arremesso que o exército fatímida, conduzido pelo grão-vizir em pessoa, havia trazido do Egito.

Tarefa nada simples a sua. Os árabes possuíam o mais consisten­te e moderno parque obsidional que já fora visto nos campos de batalha havia longo tempo. Máquinas capazes de esboroar, com tiro cruzado, as mais sólidas muralhas, até mesmo as de Jerusalém, renomadas por sua espessura; apesar disso, o grão-vizir havia recomen­dado não danificar demais o circuito, e sim fazer um trabalho sufi­ciente para induzir os turcos a se renderem.

Ordens desse tipo podiam custar a carreira de qualquer coman­dante subordinado. Somente com a ajuda de Alá um humilde mor­tal poderia acertar a justa medida nos bombardeios, sem provocar a repreensão do comandante supremo. Não por acaso, nos quarenta dias passados desde o início do cerco, várias vezes o grão-vizir tinha manifestado sua impaciência pelos escassos resultados obtidos, que haviam prolongado o empreendimento além das mais razoáveis expectativas.

Aqueles dois governadores turcos, os irmãos Soqman e Ilghazi, sabiam agir como guerreiros, pensou admirado o emir, embora tivessem fama de péssimos administradores. Justamente por isso, os árabes haviam chegado diante dos muros convencidos de que os dois não conseguiriam o apoio da população, e confiantes de que a cida­de lhes seria entregue com a simples ameaça de um assédio. No entanto, haviam realmente precisado manter o cerco.

Os turcos até se permitiram algumas surtidas. Jamal al-Ashraf tinha perdido três trabucos. Três máquinas de lançamento destruí­das pelo fogo, ateado durante os ataques noturnos aos seus acampa­mentos, por pelotões saídos sabe-se lá de onde. O assédio ameaçava prolongar-se tanto quanto o de vinte e dois anos antes, com os papéis trocados: naquele então, os turcos seljúcidas, de fé sunita, haviam subtraído a cidade aos árabes, desencadeando em seguida o massacre de todos os muçulmanos xiitas ali residentes.

Desta vez, a coisa não evoluiria do mesmo modo, jurou a si mesmo o emir. "Nós, árabes, somos mais evoluídos que os turcos", refletiu. "Não devemos descambar para os excessos desses neófitos do Islã, cuja ferocidade não é mitigada pelas palavras do Profeta."

Ainda assim, convinha ganhar tempo, pensou. Os francos, aque­les ocidentais que se definiam como "cruzados", estacionavam havia meses em Antioquia, litigando sobre quem devia governar a cidade conquistada. Mais cedo ou mais tarde, porém, prosseguiriam sua campanha rumo ao sul: com a pesada derrota que haviam infligido ao poderoso emir turco Kerbogha, de Mossul, e aos seus aliados, ao norte não havia mais ninguém que pudesse ameaçá-los seriamente, e era presumível que, com a retaguarda logística assim garantida, vol­tassem o quanto antes suas ambições para a Palestina. Pelo menos, essa era a impressão que os embaixadores do grão-vizir tinham tido em sua visita a Antioquia. A atitude dos francos mudara. Já não pareciam inclinados a uma aliança franco-egípcia contra os turcos, com vistas a repartir os territórios seljúcidas.

Eles queriam Jerusalém para si.

E, o que era pior, o imperador bizantino não parecia capaz de fazer valer seu peso político sobre os francos, e muito menos a pró­pria soberania nos territórios que estes haviam reconquistado. As relações diplomáticas que, no passado, Jamal estabelecera em Constantinopla tinham sido praticamente liquefeitas pelo avanço franco. Os sucessos dos ocidentais, e sua progressiva emancipação perante o império, inutilizavam a intercessão do imperador em favor da aliança franco-egípcia, além de esvaziarem qualquer acordo que o grão-vizir pretendesse estipular com Constantinopla.

Por isso, era necessário conquistar logo a cidade, mas danifican­do suas defesas o mínimo possível. Havia a possibilidade concreta de precisar suportar um assédio por parte dos francos. Não que eles constituíssem uma grande ameaça: tinham conquistado Antioquia somente graças à traição, estavam profundamente divididos e já extenuados pela campanha, e tampouco podiam dispor de equipa­mento bélico adequado. Não conseguiriam expugnar Jerusalém, se a encontrassem íntegra por obra dos árabes.

Até lá, porém, era preciso conquistá-la, al-Quds, "a Santa".

Emir, emir! — ouviu que o chamavam. — Sua Excelência o grão-vizir ordenou que sejam suspensas as operações. Uma delega­ção de turcos veio parlamentar — disse um soldado, assim que se aproximou. "Já era hora", pensou Jamal, e perguntou:

Já se sabe de alguma coisa?

Eles ofereceram a rendição, em troca da possibilidade de saí­rem em segurança — respondeu o subordinado.

De novo fatímida, finalmente. A Santa, a cidade que o Profeta situa­va abaixo somente de Meca e Medina, estava mais uma vez em mãos árabes. Ao entrar no séquito do grão-vizir pela Porta de Jaffa para tomar posse de Jerusalém, Jamal al-Ashraf não pôde evitar observar com olhar de peregrino e de fiel a cidade que, por quarenta longos dias, havia observado como guerreiro.

A majestade do circuito de muralhas apresentava-se parcialmen­te reduzida pelos evidentes danos aos muros e torreões. Reconstituir plenamente sua eficiência daria trabalho, pensou, antes de se censu­rar por ter feito, apesar de tudo, uma consideração de caráter mili­tar. O emir balançou a cabeça e transpôs a porta, vendo pairar acima de si a imponente silhueta hexagonal da cidadela, a chamada Torre de Davi.

Depois, a cidade. Uma selva de habitações dispostas em vários níveis, entremeadas por edifícios religiosos e pontilhadas por minaretes, estendia-se até onde seu olhar podia alcançar. Era o fundo do cenário no qual se haviam instalado os dois governadores, com seu estado-maior e a guarda pessoal. Tinham feito de tudo, pensou o emir ao vê-los, para não dar a impressão de haver cedido por se encontrarem em dificuldade; quase todos os componentes da dele­gação trajavam elegantes muqallah de brocado, com aplicações nas orlas, nas faixas e na gola, de cores berrantes e vivazes, com figuras geométricas ou florais. As calças eram longas e nas laterais corriam outros motivos decorativos. Os adereços de cabeça variavam desde os clássicos turbantes, arrematados na testa por um rubi, até os cha­péus dos quais pendiam até o pescoço abas bordadas. Um dos guar­das usava um chapéu rígido, de forma vagamente triangular, alto, margeado de peliça e com uma tira metálica na testa. Os bigodes deles eram extremamente bem-cuidados, e os mais longos eram ata­dos nas extremidades.

Alguns traziam pendurada à sela, ao lado da ampla aljava, uma mortífera clava com dentes em ponta, e nenhum, naturalmente, estava desprovido de arco. Os escudos eram redondos ou em forma de flor, com a borda recortada em pétalas hemisféricas. Alguns dos turcos portavam no flanco espadas curvas, outros, muito curtas, e outros, ainda, longas e de lâmina reta.

Os soldados pareciam enfeitados para uma parada: exibiam bai­nhas bordadas em ouro e prata, armas luzidias bem evidentes, arma­duras e corseletes resplandecentes, e montavam cavalos tratados e bem-nutridos. Não davam em absoluto a impressão de gente redu­zida ao extremo por mais de um mês de assédio. No entanto, não seria difícil descobrir se aquilo não passava de uma fachada: afinal, os outros soldados deveriam se apresentar, e era bem improvável que aparecessem nas mesmas condições.

Shah-an-Shah al-Afdal e os dois governadores depostos desen­volveram com grande cortesia recíproca a cerimônia de transmissão do cargo, à qual Jamal assistiu com certa relutância e com impaciên­cia. Agora que, após quarenta dias de antecâmara, havia colocado os pés em Jerusalém, o emir estava ansioso por ir rezar na mesquita construída sobre a rocha sagrada de onde Maomé subira ao céu, no lado oposto da cidade. Justamente àquela rocha, antes mesmo que o edifício fosse erguido, o califa Omar planejara ir, assim que os ára­bes, quatro séculos e meio antes — e apenas poucos anos após a morte do Profeta —, haviam conquistado "a Santa", tirando-a dos bizantinos. E, como Omar, também o grão-vizir ambicionara entrar em Jerusalém montado num camelo branco.

A atenção de Jamal, que depois das primeiras formalidades vinha se deslocando progressivamente para aquilo que o circundava, foi atraída de repente pelo gesto de um cavaleiro da guarda pessoal dos dois ortoquidas: aquele com chapéu rígido. Com um movimento repentino, o guerreiro extraiu a espada da bainha e, antes que os guardas fatímidas pudessem reagir, lançou-a com violência.

No chão.

Não havia errado o golpe. Havia justamente pretendido fincar a lâmina no terreno. Também perceberam isso os guardas árabes, que, num primeiro momento, puxaram igualmente suas espadas e se pre­pararam para jogar-se contra aquele turco. Depois de constatarem que ele se desarmara por conta própria, contiveram-se à espera de ordens.

Todos fitaram o grão-vizir, para ver sua reação. Este, que justa­mente nesse momento se encontrava no meio do caminho entre as duas fileiras, junto com Soqman e Ilghazi, instintivamente colocou- se entre os dois comandantes turcos.

O que significa esse gesto? — perguntou, voltando-se direta­mente para um dos dois interlocutores.

Nada com que você deva se preocupar, na verdade — apressou-se a tranqüilizá-lo Soqman. Ou talvez fosse Ilghazi. — Aquele homem não aceitou nossas decisões quanto à rendição, e esse é seu modo de manifestar isso...

E vocês permitem a um subalterno tal manifestação de discor­dância? Que raça de comandantes são vocês? — observou o grão- vizir, escandalizado.

A voz do governador se fez mais baixa. Mas não o suficiente para que Jamal não pudesse ouvi-lo.

Veja bem... ele é uma espécie de herói para a tropa — apressou-se a dizer, embaraçado. — Não é apenas um guerreiro de grande experiência, com muitas campanhas nas costas; também foi ele quem conduziu com sucesso as surtidas, incendiando as máqui­nas de vocês. Se o puníssemos, poderíamos provocar uma revolta dos soldados, e aí mesmo é que não se conformariam às nossas deci­sões. Afinal de contas, trata-se de um guerreiro leal, que se submete às ordens, limitando-se a manifestar sua divergência. Em última análise, ele até constitui um bom exemplo para quem tiver sangue quente: é a melhor demonstração de que convém se adequar ao comando de um superior, mesmo que não se esteja de acordo...

Com que então, aquele era o fulano que destruíra as máquinas e fora esperto o bastante para não se deixar apanhar, pensou Jamal. O emir perscrutou o cavaleiro. A expressão carrancuda e ameaçadora deste acentuava as muitas rugas que lhe sulcavam o rosto, nas pou­cas partes expostas. A barba, em grande parte branca, constituía-se de uma longa ponta sob o queixo, ao passo que sob as faces corria uma linha sutil e apenas esboçada. Apesar da idade sem dúvida avan­çada, o físico robusto e compacto dava a impressão de grande força, e o olhar, fixo à sua frente, mostrava extrema determinação.

Jamal viu que o grão-vizir também havia observado o homem.

O que você não aprova, soldado? — perguntou al-Afdal ao cavaleiro, demonstrando um interesse insólito por um obscuro combatente.

O homem não pestanejou. E, por um período de tempo superior ao que o respeito pelo grão-vizir impunha, sequer moveu os lábios.

Esta rendição prematura — respondeu finalmente, lacônico.

Acha que vocês poderiam ter vencido? — decidiu-se Jamal a intervir.

Acho que poderíamos resistir muito mais tempo, impondo à população e a nós mesmos um regime mais austero, sem dissipar as provisões em rega-bofes. — Só então ele moveu fugazmente os olhos, na direção de seus dois comandantes. — E acho que poderíamos ter adotado táticas defensivas mais eficazes, se tivéssemos tido a dispo­sição de reforçar à noite as porções de muro danificadas durante o dia, ou de promover mais surtidas.

E isso lhes permitiria manter a posse da cidade? — insistiu o grão-vizir, calando com um gesto do braço os dois governantes impacientes por intervir.

Talvez. Talvez tivesse induzido vocês a renunciar ao assédio. Ou talvez apenas nos permitisse conquistar o respeito dos adversá­rios. O que não é pouco, para um combatente profissional como eu.

Bem, agora você é livre, segundo as condições estabelecidas pelos seus chefes. Livre para ir combater em outro lugar e ganhar novamente o respeito dos adversários que vier a enfrentar — retru­cou o grão-vizir, considerando encerrada a questão.

Não combaterei mais para chefes tão indignos — acrescentou, porém, o cavaleiro.

Al-Afdal não considerou esta última declaração importante a ponto de fazê-lo se voltar para responder mais uma vez. Mas Jamal quis prosseguir:

Peço-lhe desculpas, grão-vizir — disse em voz alta, virando-se para seu comandante em chefe, mas tratando de se fazer ouvir tam­bém pelo soldado. — Precisamos de homens valorosos assim. Se este aí não quer mais combater pelos turcos, eu gostaria de tê-lo na minha guarda, com sua aprovação.

Por que não? — disse o grão-vizir, dando de ombros. — Naturalmente, você assume todas as responsabilidades. Espero que tenha percebido bem o caráter dele — respondeu.

Jamal se dirigiu então ao homem:

Ouviu, soldado? Se quiser, pode fazer parte da minha guarda pessoal — disse.

Finalmente o cavaleiro moveu o rosto e os olhos, encarando o interlocutor.

Durante as surtidas, eu o vi coordenar a reação dos seus. Constatei que o senhor é um chefe valoroso e hábil. Aceito.

Muito bem — concluiu o emir. — Como é o seu nome?

Firuz — respondeu o turco.

 

Após a transmissão dos cargos de direção da "Santa", o grão-vizir pôde afinal visitar a Cúpula da Rocha. Mas não Jamal, a quem al-Afdal havia confiado a tarefa de ir ao bairro judaico para tranqüili­zar os habitantes, a fim de que não temessem que suas garantias vies­sem a desaparecer com o revezamento entre o governo turco e o árabe. O emir levou consigo Firuz e outros três componentes de sua guarda e se deslocou para o norte, deixando-se preceder justamente pelo turco, que lhe serviu de guia.

O encargo havia suscitado um certo aborrecimento em Jamal. E não só porque postergava sua visita à Rocha. Em relação aos judeus, sempre alimentara sentimentos ambivalentes; os mesmos, aliás, que transpareciam nos Textos Sagrados. Como os cristãos, os judeus compartilhavam com os muçulmanos a origem a partir de Abraão, através dos dois filhos deste, Isaac e Ismael: o primeiro, progenitor de Israel, e o segundo, dos árabes, mas... mas Maomé tivera proble­mas com eles, em Medina, e o Corão dizia que "terão fogo na outra vida porque se separaram de Deus e de Seu enviado".

Com quem você serviu, em suas campanhas? — perguntou o emir à sua nova aquisição, mais para enganar o tempo do que por interesse real.

Com o sultão Alp Arslan e o emir Taraug, na campanha que culminou com a grande vitória de Manzikert — começou Firuz a enumerar. — Naquela guerra, eu me infiltrei no exército bizantino do imperador Romano IV Diógenes. Depois passei às ordens de Atsiz ibn-Abaq, participando da primeira conquista de Jerusalém e da de Damasco. Mais tarde servi com o príncipe Tutush até a defesa de Alepo, para em seguida entrar no exército de Jerusalém do prín­cipe Ortoq: um grande chefe militar, com o único defeito de ter dei­xado dois herdeiros imbecis.

Você diz sempre o que pensa, é? — comentou Jamal.

Não teria respeito por mim mesmo, se não o fizesse. Tive que mentir até às pessoas de quem eu aprendera a gostar, quando estive infiltrado, e isso não me agradou nem um pouco.

O turco girou para a esquerda, seguindo mais devagar para ter ao seu lado o emir. Jamal notou que ele não tinha uma das mãos, a esquerda, cujo coto o escudo havia escondido até então.

E a mão? Como você a perdeu? — perguntou, curioso e impressionado pela coragem demonstrada por um homem maneta.

Firuz deu de ombros.

Foi na batalha por Alepo, contra Solimão ibn-Kutulmish. Um adversário conseguiu trespassar meu escudo com um golpe aproxi­mado de lança, e a ponta perfurou também meu pulso.

E depois? — insistiu o emir. — E estranho que o ferimento não tenha cicatrizado sem que você perdesse a mão.

Não podia. Não depois que usei a haste da lança como alavan­ca para desequilibrar os três adversários que estavam à minha fren­te, matando-os em seguida com a cimitarra...

Arrepiado, Jamal imaginou a cena. Aquele indivíduo baixinho, atarracado, quase um monstrengo, tivera o topete de abater três ini­migos com uma haste que ele sequer segurava com a mão, mas sim sustentava através do pulso e do escudo...

Sim. Tinha feito uma boa aquisição.

De fato, precisava de um guerreiro tarimbado, no qual pudesse confiar. Alguém a quem pedir conselho veladamente, sem oferecer aos seus pares pretextos para notar sua relativa inexperiência militar. Sua vida transcorrera em grande parte no Cairo, à sombra dos jogos de poder entre os grão-vizires e os califas, ou então como membro de missões junto aos Estados e as potências que lidavam com o califado fatímida. Embora tivesse estudado longamente as táticas de guerra e as técnicas de combate aproximado, jamais tivera, até então, a possibilidade de colocá-las em prática.

Só graças às amizades influentes de que usufruía havia consegui­do um posto de destaque no exército que al-Afdal havia conduzido à Síria. Precisava de muito mais para construir o perfil de guerreiro e de comandante ao qual aspirava, e ao qual seu patrimônio e seu nascimento o predispunham naturalmente. E estava bem determina­do a não recuar diante de nenhum desafio, assim como a aprender tudo que houvesse para aprender. Com a humildade prescrita pelo Profeta, que havia dito: "Não caminhes sobre a terra desdenhoso e altivo: não a podes despedaçar nem poderás lançar-te acima das altas montanhas."

Talvez esse Firuz fosse a pessoa adequada para aconselhá-lo.

Essa constatação, porém, não atenuou seu mau humor pela tare­fa que o aguardava. Não era um encargo daqueles que pudessem lhe servir para aumentar sua estatura de guerreiro, e diplomata ele havia sido até por tempo demasiado, em sua precedente carreira civil. Portanto, foi com ânimo ainda contrariado que transpôs os limites do bairro hebraico.

Viu que era esperado. Evidentemente, pensou Jamal, os judeus haviam prodigalizado muito ouro para estimular os dois governa­dores derrotados a defender a causa deles junto aos vencedores, e estavam ali aguardando os resultados do investimento. Era dinheiro desperdiçado: o grão-vizir não tinha nenhuma intenção de prejudicá-los, nem a eles nem à exígua comunidade cristã que vivia um pouco mais a sudeste, em bairro próprio.

Eram muitos, nas ruas. Formara-se uma aglomeração, na qual lhe pareceu perceber as pessoas mais velhas na primeira fila. Deviam ser os rabinos, ou pelo menos os chefes da comunidade. Um deles, que envergava um chapéu de abas largas, uma peliça sobre os ombros, um manto e uma túnica que desciam até os tornozelos, foi ao encontro de Jamal.

Ilustre emir, estamos gratos pelo generoso interesse que... — tentou dizer.

Jamal lhe acenou que parasse.

Eu falo grego. Não precisa se esforçar para se expressar em árabe — disse e, quando o outro inclinou a cabeça em sinal de deferência, desceu do cavalo e anunciou: — Vim tranqüilizá-los quanto às intenções do grão-vizir, que representa nosso califa al-Mustali. Reconquistamos a cidade que nos foi deslealmente subtraída anos atrás, e nossa presença, longe de constituir uma ameaça para os inte­resses de vocês, e tampouco para os dos cristãos, é, sobretudo, uma garantia de maior segurança para sua incolumidade e para seus negócios. Dentro em pouco, nossa autoridade será restaurada em toda a região, tornando mais seguras as vias de comunicação e, por­tanto, dando-lhes a possibilidade de sair e entrar na cidade sem correr o risco de serem agredidos por bandos de salteadores, que os tur­cos não se ocupavam em controlar. Temos conhecimento do péssi­mo regime a que os últimos governantes submeteram a cidade — acrescentou. — Nossa administração será mais equânime e se preo­cupará com restituir prosperidade aos que tiveram motivo para lamentar-se sob o governo turco. O grão-vizir deixará um governa­dor em Jerusalém, ao qual vocês poderão recorrer na certeza de que seus pedidos serão escutados.

E como nos arranjaremos com os francos que conquistaram Antioquia e assolam impunemente a Síria?

Uma voz de mulher.

Das fileiras posteriores.

Quem falou? — gritou o emir.

A aglomeração ondulou no centro, abrindo-se para deixar passar alguém. Do tumulto emergiu uma mulher, de traços nada delicados, mas de postura altiva e determinada, totalmente desprovida, logo avaliou o emir, da sujeição que deveria experimentar no meio de tantos homens e perante um conquistador.

Uma vez diante dele, ela não abriu a boca. Esperou que ele falasse.

Que descarada!

O que deseja saber, então? — inquiriu Jamal, fazendo um enorme esforço para dissimular seu aborrecimento.

Aquilo que todos gostariam de saber, mas não têm coragem de perguntar — retrucou a mulher, olhando ao redor e recebendo miradas embaraçadas ou de desprezo. — Como pode o senhor nos pintar um quadro tão idílico, omitindo a possibilidade concreta da chegada de um exército poderoso e sedento por conquista?

Era uma pergunta à qual Jamal não tinha vontade de responder. Até porque era a mesma que faria ao grão-vizir. Antes da resposta, deixou passarem alguns instantes. Esperou que não tomassem tal ati­tude por indecisão, mas apenas pelo tédio de ter que falar com uma pessoa que não tinha título para se dirigir a ele.

Todos os peregrinos cristãos que desejarem chegar em paz a Jerusalém serão bem-vindos — disse, afinal. — Os armados, porém, não serão aceitos. Seja como for, esses a que você se refere ainda estão longe, e nada nos faz pensar que desejem, e, sobretudo, que pos­sam, alcançar Jerusalém. Quero lembrar a todos que há negociações em andamento não só com o imperador, por conta de quem eles agem, mas também com os chefes dos próprios francos, a fim de che­garmos a uma distribuição dos territórios tomados aos seljúcidas e definir as respectivas zonas de influência. — Era uma história velha e obsoleta, mas convinha repassá-la agora.

Eles não se deterão, acredite — rebateu a mulher. — Sei o que estou dizendo. São movidos por um furor cego, que os torna incapa­zes de dar um limite às ações cometidas em nome de sua fé.

Logo depois de falar, a judia se deslocou um pouco, e os olhos de Jamal caíram sobre a pessoa que estava imediatamente atrás dela.

Outra mulher.

Mais jovem.

Mais bonita.

A mais bonita que ele já vira.

 

                                                     ASSALTO

 

E aconteceu que, terminadas essas parábolas, Jesus partiu dali. E, tendo-se dirigido à sua pátria, ensinava às pessoas que freqüentavam a sina­goga, e estas se maravilhavam e diziam: "Mas de onde lhe vieram essa sabe­doria e esses milagres? Não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria e seus irmãos, Tiago, Judas, José e Simão? E suas irmãs não estão todas entre nós?"

Mateus 13, 53-56

 

E os numerosos ouvintes se espantavam e diziam: "De onde lhe vem isso? E que sabedoria é essa que lhe foi dada? E esses prodígios realizados por suas mãos? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E suas irmãs não estão aqui entre nós?"

Marcos 6, 2-3

 

Feito isso, desceu a Cafarnaum junto com sua mãe e seus irmãos.

João 2,12

 

Jerusalém, 70 d.C.

Zoker conferiu se trazia no flanco a sica, o punhal recurvo que os zelotas utilizavam para suas execuções. Depois concentrou-se na escolha do itinerário menos perigoso. Esperou que a noite caísse definitivamente e então moveu-se rumo à trincheira inimiga que o separava do monte das Oliveiras, em busca de um ponto pouco vigiado e transponível. Recolheu uma dolabra esquecida no chão por algum legionário romano e, muito lentamente, portando aque­la espécie de picareta, desceu de volta a encosta, aproximando-se gradativamente da barreira. Como previa, a trincheira era escassa­mente controlada. A parte oriental da cidade já se encontrava intei­ramente nas mãos dos romanos, que agora dirigiam seus esforços à parte oposta, diante do palácio de Herodes. Após a queda da Antônia, do Templo e da Cidade Baixa, o perímetro da trincheira romana diminuíra significativamente, estreitando-se em torno da cidade alta, a única ainda nas mãos dos rebeldes.

Portanto, nenhum sentinela o notou quando ele começou a ladear a paliçada em busca de uma estaca menos firme que as outras e mais fácil de arrancar. "Esses romanos são eficientes demais!", res­mungou, depois de procurar inutilmente. Já ia desistir de encontrar uma falha na perfeita máquina de guerra romana quando seu olhar agora habituado à escuridão notou duas estacas que não aderiam muito bem entre si. Escalou de imediato o terrapleno sobre o qual estava fincada a paliçada e, chegado à base desta, trabalhou cautelo­samente com a picareta, removendo a terra em torno de uma das estacas e depois empurrando esta última para alargar o vão.

Finalmente, a estaca se deslocou e Zoker pôde se esgueirar para além da trincheira, forçando a estreita passagem que havia obtido. Do outro lado da paliçada, seu olfato foi invadido por um mau chei­ro que ele não conhecia: deviam ser os corpos insepultos. Quando seu olhar se habituou à tênue luz da lua que vazava sobre o fundo do vale, o judeu começou a distinguir nas irregularidades do terreno os cadáveres de seus concidadãos: muitos tinham sido grotescamente deformados pela queda de que haviam sido vítimas ou pela subse­qüente passagem dos engenhos bélicos dos romanos.

Tentou não se deixar dominar pelo horror. As sentinelas mais próximas estavam no alto, com as silhuetas evidenciadas pelos refle­xos das lorigas e dos elmos. Ele arrancou uma nesga da túnica e envolveu o rosto com ela, como uma máscara. O acre fedor da morte era insuportável até mesmo à uma certa distância, e rastejar entre os cadáveres, decidiu, era o único sistema que poderia lhe garantir o acesso à cidade sem que o notassem. Começou a se mover, mas, uma vez em contato com os primeiros corpos, não conseguiu evitar o vômito.

Resolveu, então, que a melhor maneira de avançar seria rolar sobre os corpos, e descobriu que esse era também um bom sistema para evitar observar aquilo sobre o qual passava. Foi em frente por um trecho, até precisar se deter porque a náusea se tornara intolerá­vel. Reabriu os olhos e viu-se encarando uma cabeça que se soltara do osso do pescoço. Só uns raros filamentos ainda a ligavam ao resto do corpo. O rosto, deformado pelo impacto com o terreno a partir de uma altura considerável — talvez até da esplanada do Templo —, não conservara nada da conformação original. A visão o mergulhou novamente no pesadelo que ele acreditara poder dominar.

Tentou retomar o movimento, mas precisou parar outra vez: com a vista enevoada, não percebeu estar próximo a um poste, e aca­bou chocando-se contra ele.

Já sabia do que se tratava, mas não conseguiu evitar olhar para cima. Dois pés imóveis, cravados à base do lenho.

Zoker jamais vira de perto um crucificado. Os romanos distribuíam penas desse gênero aos sediciosos, embora, antes do início da guer­ra, tivessem escolhido para seu pai, Judas, a decapitação. Quanto a Jeshua, Zoker ainda não tinha nascido quando chegara a vez dele. Observou o condenado, imaginando o tio na mesma posição. O pobrezinho estava com a cabeça encaixada nos ombros, quase no meio do peito: a morte por sufocação havia chegado quando ele já não tinha forças nos braços para se manter elevado.

Balançou a cabeça e recomeçou a rolar, mas logo percebeu que estava agora todo emporcalhado de lama: um misto de terra e san­gue, a julgar pelo odor.

Sentindo um calafrio, prosseguiu até chegar a uma pilha de madeirame e terriço, da qual viu aflorarem os restos de uma torre móvel, daquelas que os romanos chamavam de helépoles. Deduziu que se tratava de um terrapleno construído pelos romanos para aproximar dos muros sua torre. Os judeus deviam ter conseguido miná-lo ou incendiá-lo, e a estrutura viera abaixo engolindo o maquinário que a encimava.

Estéril sucesso para os defensores, agora liquidados, pensou Zoker, antes de começar a rastejar sobre os detritos. Já do outro lado do entulho, retomou o fôlego e se dispôs a enfrentar novos corpos humanos empilhados. Tentou se orientar. Pareceu-lhe estar mais ou menos na altura da penha sobre a qual durante séculos o Templo havia imperado, mas a aparência da cidade estava tão mudada que era difícil reconhecer pontos de referência seguros.

Havia um modo de apurar se ele tinha visto certo. Valia a pena gastar nisso um pouco de tempo. Zoker ficou de quatro e perscrutou o entorno, em meio à escuridão. Continuou a se mover sobre os joe­lhos até notar uma aresta de mármore que aflorava de outro monte de corpos. Deslocou os cadáveres com extrema cautela, para não chamar a atenção das sentinelas, até descobrir a esteia que esperava encontrar.

O túmulo de Tiago, o Justo.

Tinham-no sepultado exatamente onde ele caíra. Zoker reviu men­talmente a cena à qual fora obrigado a assistir, oito anos antes. Tendo sobrevivido à queda, Tiago havia tentado levantar-se, mas os membros inferiores, fraturados em vários pontos, tinham cedido. Zoker o vira apoiar-se nos braços para fitar nos olhos os presentes, pagos pelo sumo sacerdote Anano e por Agripa, e que já se dispu­nham a lançar as pedras. Vira-o emergir da saraivada, lívido e ensan­güentado, e dizer, com um fio de voz: "Meu Deus, perdoa-os porque não sabem o que fazem!", antes que um dos mais exaltados lhe estra­çalhasse o crânio com um bastão de lavador de roupas.

O povo começara a se aproximar só depois que os assassinos foram embora; lentamente, formara-se uma aglomeração que havia começado a injuriar os filo-romanos. Pouco antes do início da guer­ra, Anano viria a ter um fim ainda pior nas mãos dos zelotas apoia­dos pelo povo ansioso por vingar seu benjamim, Tiago.

Depois, alguém espalhou o boato de que Tiago era o último baluarte de Jerusalém; sem ele, a cidade estava destinada à destrui­ção. Seu túmulo tornou-se um ponto de referência para todos aque­les que ainda compartilhavam o sonho messiânico dos ebionitas/nazireus, dos essênios e dos zelotas, convencidos de que a profe­cia da Estrela estava próxima de se realizar, e de que retornaria o Messias, o qual, com o auxílio das fileiras celestes, distribuiria o Juízo como chuva, dando a cada um segundo as próprias obras.

Da cena da execução Zoker jamais pudera esquecer um detalhe. Após o golpe de misericórdia infligido a Tiago, o jovem tinha olha­do para o alto, na direção do Templo. Ali, vira o sumo sacerdote Anano, o rei Agripa, sua irmã e amante Berenice, mas, sobretudo, Saulo.

Saulo. O ex-fariseu que havia assumido o nome de Paulo e que, vinte anos antes, já agredira o tio nas escadarias do Templo. Saulo. O homem que, apesar de seu zelo, desobedecera às diretivas de Tiago e pretendera dar uma impostação radicalmente diferente à pregação, ele que o Salvador sequer havia conhecido em pessoa.

Zoker se obrigou mais uma vez a deixar de lado as lembranças do tio. Tinha decidido valer-se do canal subterrâneo que partia da nascente de Gihon para alcançar a piscina de Siloé, mais ao sul. Ao que recordava, lá dentro havia derivações que o levariam à Cidade Baixa e, desta, à alta.

Recomeçou a rolar, até que topou novamente com um poste. Os lamentos que provinham do alto não lhe deixaram dúvidas quanto à natureza do obstáculo: era um crucificado.

Um crucificado vivo.

Temeroso, olhou para os pés cravados do pobrezinho. Ao redor dos cravos, cada um dos quais trespassava o pé pouco abaixo do tor­nozelo, havia uma ampla área lívida, dificilmente perceptível sob o copioso sangue represado. Levantou devagarinho o olhar, observan­do os músculos horrivelmente contraídos das pernas, sobre as quais recaía todo o peso do corpo. De fato, viu que o condenado, na tentativa de respirar, fazia força sobre os membros inferiores para erguer a caixa torácica em ângulo reto com os braços, cravados pelos pulsos. Resistia apenas por alguns instantes, para em seguida abandonar-se novamente à gravidade e à asfixia, até que a apnéia o induzia de novo a se reerguer. Naquela posição inatural, explicara-lhe certa vez o tio Tiago, que assistira à crucifixão do irmão, era pos­sível inspirar, mas não expirar. Desse modo, o corpo se enchia de ar, mas só era possível expeli-lo firmando-se nos pés, coisa que, com o passar do tempo, ficava cada vez mais fatigante e, por fim, insustentável.

Horrorizado, Zoker se perguntou há quanto tempo aquele coitado estava na cruz. Ouvira falar de condenados que resistiam até por vários dias. Seu tio Jeshua tinha durado só três horas, mas pro­vavelmente o que cedera havia sido o coração, talvez por causa das sevícias sofridas antes que o pregassem ao lenho.

O homem crucificado respirava afanosamente quando se estica­va, e gemia quando se prostrava. Zoker hesitou em fitá-lo, embora percebesse que ele o buscava. Quando finalmente os olhos dos dois se encontraram, o jovem logo compreendeu qual era o pedido formula­do por aquelas pupilas desesperadas. Era incrível e terrível, pensou, como naquela aflição extrema a vontade contrastava com o instinto. A primeira levava o condenado a desejar a morte; o segundo, a pro­longar a vida e, por conseguinte, o suplício e os sofrimentos.

Procurou algum objeto contundente com o qual pudesse atender à muda súplica do concidadão. Remexeu entre as pilhas de mortos, encontrando, afinal, um pedaço de trave apenas chamuscado pelas chamas, com o qual poderia quebrar as pernas do condenado e dar-lhe uma morte veloz. Lançou um último olhar ao rosto do crucifica­do, acreditando perceber gratidão nele, e em seguida desfechou vários golpes seguidos contra as canelas do infeliz. Sentiu os ossos se quebrarem. Parou, hesitando em olhar para cima, até não ouvir mais nenhuma respiração. Só então ergueu a vista, e pareceu-lhe que tudo havia acabado.

E agora, disse a si mesmo, à fonte de Gihon.

 

Jerusalém, junho de 1099

Quem é o próximo? — gritou Inês com voz aborrecida, sain­do da tenda. A luz do sol lhe feriu os olhos, habituados ao escuro, assim que ela botou a cabeça para fora. Ajeitou os fartos cabelos ondulados, que lhe caíam nos ombros e se insinuavam como raízes pela roupa aberta sobre o peito. Uma ostentação à qual ela não sabia resistir, desde quando se livrara das rígidas disposições que a obriga­vam, no Ocidente, a usar coifa e manto para deixar evidente sua pro­fissão.

Da tenda, logo emergiu atrás dela um soldado, que se despediu com um tapa em seu traseiro e uma visível expressão de saciedade impressa no rosto, enquanto ajeitava as bragas.

O próximo? Mas você nunca se cansa de suas obscenidades? — escutou o cliente que, esfregando as mãos, já se preparava para entrar. O homem virou-se e viu ao seu lado um monge gorducho, pingando suor e arquejante, com poucos cabelos ao redor da tonsura, o nariz de ponta demasiado esférica em relação aos lados, boche­chas rubras e olhos cujos globos, redondos, pareciam querer sair das órbitas de uma hora para outra.

Anselmo.

O monge empurrou o cliente para um lado e reiterou a admoestação na cara de Inês, que não se dignara a lhe responder:

Você, mulher, que se oferece à cupidez dos homens mesmo diante deste lugar sagrado, que os pés de Nosso Senhor pisaram, persevera em sua ação nefanda? — gritou para ela, provocando risadinhas e cochichos entre os presentes.

Inês deu de ombros.

Tão sagrado que, dentro em pouco, aqui, as pessoas vão se massacrar umas às outras. Eu pelo menos ofereço prazer, e não mor­te, e sem dúvida o Senhor não pode se aborrecer comigo por isso.

Você esquece que todos estes — e Anselmo indicou os clientes em espera — infligirão morte ou morrerão em nome do Senhor! Vão ganhar a remissão dos pecados e se tornarão mártires da fé. E você, o que pretende ganhar, com sua conduta escandalosa? Eles se livram dos pecados, e você os acumula!

Que nada! — Inês riu. — Justamente porque todos estes aí podem estar mortos amanhã, eu os faço saborear os últimos mo­mentos de felicidade. Isso não é uma missão? Eu não mereço tam­bém a remissão dos pecados?

Mas você faz isso por dinheiro, acima de tudo! — replicou o monge, indignado. — Age por interesse, e não por amor ao próximo, admitindo-se que se possa considerar amor o fato de se rebaixar dessa maneira com qualquer um, e não com quem a ama. — Perce­beu ter dito uma frase ambígua e, ruborizado, virou-se repentina­mente para os clientes. — Vão embora, rápido! Esta mulher está aqui com os peregrinos porque decidiu mudar de vida! Ela quer se redi­mir! Não a façam recair no abismo do pecado! — gritou para o grupo de homens que esperavam sua vez.

A hilaridade deles aumentou ainda mais, e ninguém fez menção de ir embora.

O que está fazendo? — berrou Inês, séria, agarrando-o pelo braço e acentuando assim o embaraço dele. — Estamos em Jerusalém há quatro dias, só hoje eu comecei a ter alguns clientes, e você os des­pacha?

Sem dúvida, esqueceram-se de você! Após mais de dois anos de espera, estão finalmente diante da cidade do Senhor! Eles têm res­peito e submissão a estes lugares santos, uma submissão que sua pre­sença e seu ofício infame ameaçam comprometer!

Não creio que tenha sido por submissão que o príncipe Tancredo de Hauteville, assim que chegou a Belém, colocou seu pró­prio estandarte no alto da igreja da Natividade... — respondeu Inês, zombeteira.

E de fato aquele normando sacrílego foi justamente recrimi­nado pelo seu ato blasfemo. Aliás, ele pertence a uma raça sacrílega por definição... — insistiu Anselmo.

Ei, alto lá! — disse, mais divertido do que indignado, aquele a quem cabia usufruir dos serviços de Inês. — Eu sou normando, e estou aqui para combater em nome do Senhor. Admito não ser um crente fervoroso, mas não me considero sacrílego. Aquilo foi apenas o gesto de um fidalgote ambicioso.

Se seu comportamento fosse digno do de um peregrino, você não deveria estar diante desta tenda — replicou Anselmo.

Pelo contrário, ele tem toda a razão — interveio Inês, virando-se para o monge. — Você ofendeu este homem, Anselmo, e deveria pedir desculpas... — disse, esquadrinhando o normando da cabeça aos pés, com uma lentidão que lhe permitiu captar todos os detalhes daquela imponente e harmoniosa figura.

Agora vai começar até a fazer o elogio de um estranho? Você aprecia todo mundo, menos quem realmente leva a sério sua salva­ção — lamentou-se o monge, percebendo o interesse que transpare­cia do olhar de Inês.

Bem, uma coisa são as motivações religiosas e outra, as neces­sidades físicas... Somente resolvendo as segundas este soldado pode­rá se concentrar nas primeiras, já que a carne é fraca e nem todos têm a força de caráter de um monge... não é, Anselmo? — comentou Inês, continuando a fitar seu cliente e esticando os cantos da boca num sorriso cada vez mais convidativo.

Anselmo percebeu que o olhar do normando era igualmente explícito, e de imediato colocou-se entre os dois para interromper aquele jogo de sedução. Depois agarrou Inês por um braço e puxou-a para um pouco mais longe, atrás da tenda.

Você reduz o amor a uma necessidade física... E faz disso um comércio ilícito... — disse, irritado. — Você... você... é uma puta! — gritou na cara dela.

Inês explodiu numa gargalhada desenfreada.

E só agora você percebeu, paspalhão? O que eu devo fazer para convencê-lo a se resignar? Acha que eu sou uma pecadora? Muito bem: consideraria minha conduta menos repreensível se dos meus ganhos eu conservasse apenas o mínimo indispensável para viver, e lhe entregasse o resto para você dar em esmolas? — propôs.

Anselmo já tomara fôlego para vomitar mais desprezo em cima dela. Em vez disso, porém, bloqueou-se, e seus olhos esbugalhados giraram por todo o tempo em que ele permaneceu calado.

Está dizendo que me entregaria seus ganhos torpes e me dei­xaria usá-los da maneira que eu achar conveniente? — perguntou afi­nal, incrédulo.

Se você parar de defini-los como torpes, sem dúvida. Seria um contra-senso aceitar um dinheiro que lhe parece sujo, não? — res­pondeu ela.

Bem, não, se for possível fazer dele um uso piedoso... Em nosso exército há milhares de peregrinos que mal conseguem se sus­tentar... sobretudo, agora que está difícil fazer provisões: não existe nada para comer nos arredores, e as fontes de água foram todas envenenadas. Eu poderia comprar comida para os mais desespera­dos. Afinal de contas, quem tem dinheiro para andar com prostitu­tas não tem problemas de alimentação, e será como se os mais fortes alimentassem os mais fracos — avaliou Anselmo, satisfeito.

Viu? Não se encaixa nos preceitos do Senhor? Então, estamos de acordo — disse Inês, fazendo menção de se afastar.

Um momento — deteve-a o monge. — Quanto você ganha por cliente? — perguntou.

Em geral, a tarifa mínima é de meio soldo, ou seja, seis denários... Mas depende dos trabalhos pedidos pelo cliente. Por exemplo, para um servicinho de...

Entendi, entendi — apressou-se Anselmo a cortar. — Em suma, seis denários, em princípio. Você deverá me dar pelo menos quatro... — arriscou. Depois, vendo que Inês se limitava a abrir os braços em sinal de assentimento, acenou-lhe para retornar aos clien­tes. Assim que a viram reaparecer, soldados e peregrinos desfizeram o ajuntamento, reorganizando-se em fila.

E o primeiro continuava sendo o normando vigoroso.

Um soldo — disse Anselmo a ele, estendendo a mão com fir­meza.

O homem encarou Inês, incrédulo.

O quê? — disse. — Com uma cifra dessas, eu consigo todo o harém do califa do Cairo...

O monge se apressou a replicar, antes que a mulher o fizesse:

É a tarifa especial para os normandos. Esta mulher acaba de admitir colocar seu discutível talento a serviço da Igreja e de uma causa piedosa. Portanto, se você realmente quiser... ahn... recorrer aos serviços dela, esse é o valor que deve pagar. Não tem dinheiro suficiente? Pena. Se de fato não for capaz de sufocar seus pruridos, procure alguma outra... — sentenciou.

Inês balançava a cabeça e o observava, com as mãos nos quadris.

Acabou? — disse, olhando-o de través. Depois, desviou a mirada para o cliente. — Não lhe dê ouvidos, amigo. — E dirigiu a ele o sorriso mais sensual de que era capaz. — Na realidade, com você eu iria até de graça. Mas o monge aqui está falando a verdade: uma parte dos meus ganhos vai para os pobres. Portanto, alguma coisa você deve me dar. O que achar que eu valho... — acrescentou, abrin­do os braços e inflando o peito, para ter certeza de que o homem notava todos os seus dotes.

O sujeito os notara, e como. Sorriu para ela, piscando o olho, e, com um aceno de entendimento, remexeu nos bolsos, enquanto Anselmo apertava os punhos em sinal de irritação. Qualquer possí­vel negociação, porém, foi bruscamente interrompida pela chegada de um cavaleiro, inteiramente equipado, que parou bem diante da tenda, levantando uma nuvem de poeira sobre os presentes.

O senhor de Lorena, Godofredo, requisita seus serviços, mulher! — gritou ele a Inês. — E pagará bem. Mas você deve ir ime­diatamente.

O duque Godofredo! Até um homem tão pio caiu na sua teia! Não é possível! — escandalizou-se Anselmo. — Não pode ser culpa dele, não pode! Sua beleza enfeitiça todo mundo, é isso! Agora eu entendi! Não é culpa dos homens, é você, é você que nos... que os enfeitiça! — Então lembrou-se do acordo e lhe veio à mente a vanta­gem que os peregrinos obteriam dele. — Está bem, está bem. Pode ir — acrescentou, repentinamente calmo.

Inês suspirou. Depois fitou nos olhos o normando e suspirou de novo, insinuando-lhe que aquela nova tarefa a enfastiava.

Mas não podia abrir mão dela. Não convinha contrariar um dos chefes do exército. E também, pensou, com o dinheiro que iria obter poderia silenciar de uma vez por todas a consciência de Anselmo. Talvez.

Parece que hoje nós dois não podemos nos divertir — disse ao normando, abrindo os braços. — Fica para outra vez, espero...

Não se preocupe. Certos prazeres são mais intensos quando se fazem aguardar... — respondeu o homem, com expressão cúmplice.

Ela ainda o encarou por alguns segundos.

No entanto, devo compensar você por tudo isto. Volte logo. Não me deverá nada. Como é seu nome? — perguntou, sob o olhar desalentado de Anselmo.

Ricardo.

O pavilhão de Godofredo, duque de Lorena, não era afinal tão sun­tuoso quanto Inês imaginava. Anselmo, por sua vez, diria que os senhores também estavam ali em peregrinação, e eram obrigados a uma postura humilde.

Você é uma bela mulher. Também é competente no seu ofício? — perguntou o duque.

Isso não sou eu que posso julgar, meu senhor — respondeu ela, com um sorriso malicioso, com o qual tentava mascarar o temor que sentia crescer dentro de si.

Na realidade, Godofredo de Lorena não lhe pareceu tão carismá­tico quanto ela esperava de um personagem daquele nível. Tinha um aspecto meio acanhado e, desprovido dos trajes e das armas de cava­leiro, poderia facilmente ser tomado por um humilde artesão. A testa curta e os olhos muito próximos um do outro e do nariz acha­tado conferiam-lhe uma expressão permanentemente aborrecida. Era baixo e atarracado, embora tivesse membros bem esculpidos, que Inês pôde observar desde o início, pois o duque se fizera encon­trar de torso nu. Baixando o olhar, ela notou que as pernas eram de­cididamente tortas, e talvez não só por causa do hábito de cavalgar.

Ainda assim, sentia-se em sujeição. Às vezes isso lhe acontecia, diante de algum fidalgote ou de alguém mais instruído do que ela; pelo menos, até o momento de permitir que o cliente violasse sua intimidade. Então, esboroava-se qualquer imagem que ela tivesse criado mentalmente, e o homem lhe aparecia em toda a sua norma­lidade. Só então se sentia a patroa, ainda que se fizesse pagar para deixar que o cliente a supusesse sua escrava.

Ao que parece, você ganhou certa fama entre Antioquia e este lugar — disse Godofredo, despindo-se completamente e aguardando que Inês fizesse o mesmo. — Eu pedi a melhor, e me trouxeram você. Quando se agregou ao exército?

Na verdade, desde Constantinopla — respondeu ela, tirando a roupa e cuidando de dar um significado a cada movimento. — Eu fazia parte do grupo de Pedro de Amiens e estava entre os que esca­param ao massacre de Civetot.

Ah, sim, aquele monte de imbecis — replicou divertido o duque, aproximando-se. — Entre tantos milhares de peregrinos, não havia um que soubesse alguma coisa de assuntos militares. E o pro­blema é que parte daquela gentalha agora está no nosso exército... — acrescentou, acariciando com mãos ásperas aquilo que Inês começa­ra a revelar.

Enquanto a mulher refletia sobre a escassa diferença entre as tro­pas que ela acompanhara à Ásia três anos antes e as conduzidas pelos renomados chefes da cruzada, o duque ajudou-a a se livrar do camisão. Depois arrastou-a sem grandes cuidados para o leito e se deitou de barriga para cima, na certeza de que, a partir daquele momento, ela saberia o que fazer.

De fato, Inês sabia. Com clientes mais tímidos, ou com os mais ativos e arrojados, nem sempre identificava logo a melhor atitude para lhes saciar a ânsia de prazer. Mas os homens como Godofredo eram previsíveis demais. Sentiam-se os patrões, não experimenta­vam nenhum embaraço nem consideração por ela como ser huma­no. Ela só precisava colocar-se a serviço deles com a disposição de um artesão, contentando-lhes o senso de superioridade sem encorajamentos nem lisonjas.

Mostrou a Godofredo sua habilidade com as mãos, em seguida com a boca e finalmente com a bacia, acomodando-se em cima dele e surpreendendo-o com um movimento dos quadris, sinuoso e vee­mente, quase como se quisesse desafiar a capacidade de resistência dele.

O duque não resistiu por muito tempo. Aliás, ninguém seria capaz de agüentar aquela pressão constante, que habitualmente induzia um homem a urrar de prazer. Mas ele não urrou, grunhiu e depois afastou-a, como se precisasse se livrar daquele apertão envol­vente.

Tinha conseguido, também desta vez, disse Inês a si mesma. Tornara-se patroa de quem acreditava dominá-la. Agora, até um duque como Godofredo não mais exercia sobre ela nenhuma autori­dade, a não ser exterior. Esse era seu modo de saborear um poder que sua condição humilde lhe interditava.

Godofredo não a mandou sair. Permaneceu deitado de costas, fitando o teto por algum tempo, segurando-lhe o braço e aflorando-lhe a pele do ombro até o pulso, sem dizer nada e lançando-lhe ape­nas uma olhada fugidia de vez em quando. Pouco depois, Inês viu que seu cliente estava quase pronto para repetir a experiência, mas esperou que fosse ele a levar a mão dela até seu ventre.

Você é competente. Fiquei com vontade de repetir — disse, átono, sem revelar nenhuma emoção.

Naturalmente, o senhor me pagará o dobro — respondeu ela.

Naturalmente. — Mesma distância, mesma frieza nos olhos.

Um feixe de luz inundou o rosto dele. A entrada da tenda se

escancarara e duas maciças silhuetas escuras se recortavam contra a abertura.

Godofredo! Não perca tempo com as putas, mexa-se e venha conosco, temos novidades! — disse um, entrando sem muitas consi­derações.

Assim que eles transpuseram a soleira, Inês pôde ver-lhes o rosto. Ela os conhecia. Um era o irmão de Godofredo, Eustáquio. Ninguém o considerava uma figura de primeiro plano, e ele certa­mente parecia menos audacioso do que o duque e, principalmente, do que o outro irmão mais jovem, Balduíno de Boulogne, que meses antes havia abandonado a cruzada para obter um reino mais a leste, na Armênia. O outro era Roberto de Flandres, um nobre riquíssimo, que até agora parecera mais devoto e menos belicoso do que os outros chefes da expedição.

De que se trata? — perguntou Godofredo, sem fazer menção de se levantar.

Daquilo de que falamos hoje de manhã — respondeu seu irmão. — Aqui corremos o risco de morrer de sede, se esperarmos mais. Vamos dar aos egípcios o tempo de nos agredir com um exér­cito de reforço, além de tudo?

O conde de Toulouse insiste em um ataque às muralhas — acrescentou Roberto. — E eu concordo com ele. E verdade que não temos máquinas de assédio nem a possibilidade de conseguirmos madeira para construí-las. Os árabes fizeram bem o seu trabalho, tirando-nos qualquer possibilidade de sustento. Mas, se preparar­mos muitas escadas, podemos tentar transpor as muralhas. Lá den­tro, não devem ser tantos, a ponto de conseguirem fazer todos nós recuarmos. Temos o Senhor do nosso lado: podemos estar certos de que Ele fará os soldados voarem para além das ameias.

Inês, que enquanto isso havia começado a se vestir, não acredita­va que o Senhor facilitaria tanto assim. Se não, onde ficaria o sacri­fício? Sem dúvida, Ele não tinha simplificado as coisas no tempo da cruzada popular, três anos antes.

E daí? O que há de novo, em relação a hoje de manhã? — per­guntou Godofredo, sentando-se finalmente.

Parece que do outro lado, fora da cidade, no monte das Oliveiras — disse Eustáquio —, vive um velho eremita cristão com fama de santidade. Decidimos que os príncipes devem ir visitá-lo e, na oportunidade, perguntar-lhe como será mais conveniente agir para agradar ao Senhor.

Godofredo deu um suspiro profundo, e Inês não compreendeu se era por considerar aquela decisão um aborrecimento ou por levá-la muito a sério. Nem mesmo a expressão dele lhe permitiu entender alguma coisa. O duque se limitou a dizer "Está bem", levantou-se e se vestiu.

Só quando já estava na soleira pareceu se lembrar dela.

Ah! — exclamou, virando-se e dando-lhe uma olhada fugaz. Voltou até a mesinha e tirou moedas de prata de uma bolsa. — Isto aqui é para você, mulher — acrescentou, jogando para Inês mais do que ela esperava.

 

E então? Ele ficou satisfeito? Quanto lhe deu? — perguntou Anselmo, assim que Inês retornou à própria tenda. Havia permane­cido ali, esperando-a.

Ela balançou a cabeça.

Então, agora tudo ficou lícito? — respondeu, jogando-lhe o punhado de moedas.

O Senhor previu a existência de mulheres como você. A pros­tituta exerce uma função fundamental na sociedade — replicou o monge, com os olhos brilhando, ao ouvir o tilintar das peças. — Impede que os homens seduzam jovenzinhas de bons costumes e tementes a Deus, casadas ou virgens. Até santo Agostinho diz isso.

Ou monjas, talvez...

Não diga tolices. Quem abusa das monjas é um sem Deus, um pagão, uma besta feroz. — Enquanto isso, Anselmo recolhia e conta­va o dinheiro. — Bom. Eu diria que você pode ficar com estas duas moedas. As outras vão para as pessoas em dificuldade — concluiu, guardando as restantes nas dobras do hábito.

Só enquanto estivermos aqui em Jerusalém, não se esqueça! — retrucou Inês. — Agora, se você não se incomodar, vou tomar banho. Não creio que trabalharei mais, por hoje — acrescentou, saindo da tenda.

Já encerrou? Está brincando? Ainda falta um pouco para o anoitecer! Pense em quantas pessoas você poderia ajudar, até o final do dia! — reclamou Anselmo, seguindo-a.

Não conte com isso. Claro que, se aquele normando reapare­cesse... — respondeu Inês, acelerando o passo. Sempre se divertia ao ver Anselmo se esfalfar para arrastar seu corpanzil atrás dela. E agora havia encontrado outra maneira de angustiá-lo. Era sua pequena vingança por ter permitido que ele, de um modo ou de outro, administrasse sua vida.

Chegaram a um reservatório de água que os árabes de Jerusalém haviam tornado não potável, jogando carcaças de animais lá dentro. Mas continuava boa para se lavar e se refrescar, pelo menos: em cer­tos momentos do dia, o calor era insuportável, mesmo à sombra e dentro das tendas.

Anselmo o viu antes de Inês: justamente o homem que ele não queria rever.

Escute, acho melhor esquecer esta água. Talvez esteja infecta­da — disse de repente, tentando fazê-la voltar.

Tarde demais.

O duque ficou satisfeito? — O normando estava ali, com outros companheiros, e parecia ansioso para puxar conversa.

Ricardo... Certo? — respondeu Inês. — Todos ficam satisfei­tos... — continuou, exibindo um sorriso sedutor.

Aposto que você está se lavando para mim... — replicou ele.

Nada feito, amigo — apressou-se Anselmo a intervir. — Ela está se lavando porque, por hoje, acabou. Passe amanhã, se não con­seguir frear seus impulsos bestiais.

Como assim? — interpelou-o Inês, assumindo uma expressão estupefata. — Você não disse que eu ainda deveria trabalhar hoje?

Mas, com esse aí, você disse que não cobraria, não? Portanto, não vale a pena...

Eu não disse que vou. Disse que iria até de graça... — retrucou ela, encarando Ricardo.

Bem... talvez seja melhor adiarmos mesmo para amanhã... — disse o normando, com uma risadinha. — Ir depois de um duque é meio comprometedor, e eu me sentiria um pouco embaraçado...

Fique tranqüilo, porque eu tiro qualquer um do embaraço, amigo. O resto, depois, é com você... — replicou Inês.

Você quase, quase me convenceu. Sinto que estarei em boas mãos — gracejou Ricardo, sob o olhar escandalizado de Anselmo, transtornado pela cumplicidade entre os dois.

Então, é bom que eu passe no corpo um dos meus melhores ungüentos, para um cliente tão ávido... — disse Inês. — Vá me pro­curar na minha tenda daqui a pouco — acrescentou, antes de se vol­tar e sair dali.

Ricardo a seguiu com a vista, admirando-lhe os movimentos sinuosos. Depois topou com o olhar arregalado de Anselmo e não pôde evitar uma gargalhada.

Justamente nesse instante passou um pequeno pelotão de solda­dos bizantinos. Era apenas um punhado de homens que ficavam sempre em grupo, sentindo-se objeto do desprezo que os ocidentais alimentavam pelos gregos, sobretudo após certas incompreensões no início da campanha.

Lá vão eles, aqueles hipócritas gregos — disse um dos compa­nheiros de Ricardo. — É preciso ser muito descarado para sair por aí com esse ar presunçoso, depois de tudo que o imperador deles nos fez.

O soldado se referia ao cerco de Antioquia, um ano e meio antes. Naquela circunstância, os cruzados tinham se sentido traídos pelo soberano grego Aleixo, que, segundo eles, não somente não os aju­dara a conquistar a cidade como havia até conspirado com os turcos para prejudicar seus próprios aliados. A tensão determinara a retira­da do contingente bizantino, conduzido pelo general Tatício. Aqueles poucos soldados tinham permanecido a título pessoal, mas sua presença havia sido um motivo constante de atrito na tropa, embora os gregos fizessem de tudo para evitar problemas.

Anselmo os considerava muito pios, ainda que seguissem rituais diferentes daqueles da Igreja de Roma. Fosse como fosse, pareciam-lhe soldados sérios, avessos a patuscadas, livres da luxúria, morigerados e comedidos ao falar o parco latim no qual sabiam se expressar.

Exatamente os combatentes ideais para o Senhor. Pena que fos­sem tão refratários a aceitar a autoridade papal.

E também pareciam muito eficientes, do ponto de vista militar. Anselmo nunca os vira desleixados, marchavam sempre em ordem e compactos, com muito mais disciplina do que os combatentes oci­dentais. Procuravam fazer frutificar seu tempo a cada momento do dia, com exercícios e trabalhos úteis, até porque ninguém os envol­via em distrações de qualquer gênero.

Até mesmo o equipamento deles, por mais curioso que fosse aos olhos de um ocidental, conferia-lhes uma dignidade que faltava aos exércitos dos príncipes latinos. Eram todos infantes pesados, dota­dos de um colete acolchoado e pespontado que denominavam bam-bakion, e que não tiravam nem mesmo nas horas mais quentes do dia. Jamais se separavam de suas compridas lanças e tampouco das maças, ditas matzoukion, que portavam penduradas no cós. Ao longo dos braços e abaixo da cintura pendiam várias camadas de tiras de couro, enquanto as canelas eram protegidas por grevas de metal. Levavam a espada numa bainha pendurada num boldrié a tiracolo, e o escudo, redondo, ia do chão até a cintura. Seus elmos eram cônicos ou escorridos em chapéu, com uma modesta plumagem no alto, substituída por uma crista no caso do oficial. Este, que a Anselmo parecia muito ponderado e, sem dúvida, gozava da plena confiança de seus poucos homens, usava também uma faixa em torno do tórax e atada sobre o peito. O monge nunca o vira elevar a voz, e ele dava a impressão de comandar os subalternos apenas com rápidos acenos.

Que haviam permanecido a título pessoal era o que eles susten­tavam. Mas não o que os soldados ocidentais acreditavam.

O que vocês vão relatar hoje ao seu imperador, aquele covar­de? — recomeçou o briguento.

Mas os gregos não eram dos que aceitam provocações, e nenhu­ma resposta veio. Continuaram a caminhar, de cabeça erguida e com o olhar fixo à frente, imitando a atitude de seu comandante.

Quem quisesse desafiá-los devia ir além.

Por exemplo, plantar-se bem à sua frente.

Entendi, entendi — disse o implicante, detendo-se no cami­nho deles. — Tal imperador, tais soldados. Os covardes não costu­mam reagir... — prosseguiu. Logo depois, outros três latinos belico­sos o flanquearam.

O comandante bizantino, à frente do pelotão, não se deteve quando chegou à altura da linha dos quatro ocidentais. Sem dizer uma palavra, tentou passar entre dois deles, dando uma leve, mas decidida pancada com o ombro naquele que havia falado.

Ei! Vocês todos viram! Ele me empurrou! — disse o ocidental.

Só então o grego julgou necessário falar:

Pare com isso, rapaz. Seus chefes não aprovariam — disse com voz profunda, num latim escandido. A espessa, mas bem-tratada barba lhe dava um aspecto carismático, como se não bastasse sua figura imponente. Sem dúvida, mais imponente do que a de seu antagonista.

Ah, ah! Nossos chefes detestam vocês tanto quanto nós! — afirmou outro soldado. — E, embora não nos autorizem expressa­mente a isso, certamente não nos punirão se dermos a vocês uma lição — acrescentou. Um instante depois, Ricardo e Anselmo eram os únicos que haviam permanecido contemplando a cena, sentados.

Todos os outros ocidentais tinham feito uma roda em torno do pequeno pelotão bizantino.

Parem, parem, estamos todos aqui por uma só causa... — sentiu-se Anselmo no dever de dizer, aproximando-se. — A causa do Senhor, tenham isso sempre em mente.

Porém o mais jovem dos provocadores não tinha intenção de ali­viar a pressão.

Isto não é assunto para você, padre — disse a Anselmo, afas­tando-o com firmeza. — Deixe os soldados resolverem essas coisas e pense, de preferência, em rezar pelos verdadeiros defensores da fé.

Mas aqui somos todos defensores da fé! — protestou o monge.

Ora, mas se esses aí estão mais de acordo com os infiéis do que conosco! — interveio outro, aproximando-se também do coman­dante bizantino, que agora era acossado por dois. — Não é verdade, amigo? — disse ao grego, dando-lhe uma palmadinha no queixo.

Foi demais, até para aquele ponderado e cauteloso guerreiro bizantino. Este agarrou o ocidental pelo pescoço com uma das mãos, levantou-o e em seguida o atirou ao solo. Mas não percebeu que, às suas costas, outro latino se aproximava empunhando um facão.

Anselmo o viu erguer o braço e esteve prestes a gritar. Mas seu grito se deteve na garganta quando, em seu campo visual, irrompeu aquele normando, Ricardo, o qual segurou o pulso do soldado e conseguiu desviar a trajetória da lâmina.

O oficial grego virou-se a tempo de compreender o que estava acontecendo. A intervenção do normando deixara um pouco des­concertados os seus companheiros, com os quais, até pouco antes, o próprio Ricardo tinha rido e gracejado; por isso, nenhum deles se mexeu enquanto os dois lutavam para se desarmarem reciprocamen­te. Após alguns instantes, Ricardo se viu com o facão na mão, enquanto seu antagonista jazia no solo com as mãos no rosto e o nariz arroxeado por uma cotovelada bem assestada.

Corre o rumor de que logo, logo atacaremos — disse Ricardo, voltando-se para todos os presentes. — Acho mais sensato poupar nossas forças. Querem perder o assalto e o butim por algum feri­mento ou contusão numa briga idiota?

Ninguém encontrou palavras para lhe responder. Nem mesmo o sujeito que fora parar no chão, e a quem Ricardo até deu a mão para ajudá-lo a se levantar. Em poucos minutos, todos os ocidentais se afastaram.

É um prazer constatar que entre vocês existe alguém dotado de bom-senso — declarou o comandante bizantino, apertando a mão dele.

Ricardo deu de ombros.

Tenha um pouco de paciência. Este não é um verdadeiro exér­cito, como o de vocês...

Mas o Senhor saberá dar a eles a força para combater da melhor maneira, no momento certo — interveio Anselmo. — Por acaso não o fez até agora, ajudando-nos a vencer todas as batalhas que enfrentamos e a expugnar todas as cidades que assediamos?

Tenho a impressão de que isso aconteceu graças às divisões entre os turcos, mais do que por méritos nossos; e também esses fatímidas são adversários novos, bem mais organizados — respondeu Ricardo.

Eu diria a mesma coisa, se não temesse ofender alguém — acrescentou o comandante, sorrindo.

Mas vocês são bons combatentes — afirmou Ricardo. — Sempre os apreciei como militares, desde a época de Manzikert. Apesar da derrota, demonstraram ser excelentes soldados; pelo menos, os que não se retiraram...

E como é que você sabe? Estava lá, por acaso? — inquiriu o grego, cujo interesse ficou mais evidente.

Bom, em certo sentido... — A expressão de Ricardo traiu seu embaraço. — Eu estava no contingente de Roussel de Bailleul. Um simples escudeiro. Os chefes decidiram não intervir, e nos limitamos a observar a batalha do alto de uma colina.

Não sabe o quanto nós os odiamos, naquele dia... — respon­deu o bizantino. — Com que então, você interveio agora para aliviar o sentimento de culpa que vem carregando há quase trinta anos... — acrescentou, mais em tom espirituoso do que crítico. — Como é seu nome?

Eu me chamo Ricardo, e talvez você tenha razão. E o seu?

Emanuel. E não se preocupe. Eu também tenho algo a me cen­surar, a propósito daquele triste dia... — respondeu o grego. Em se­guida, anuviou-se e mudou de assunto: — Sabe? Sob certos aspectos, se todos vocês estão aqui, é justamente por causa daquela derrota...

Como assim? Ah, já sei: vocês foram obrigados a renunciar a diversos territórios, depois daquela batalha perdida, e acabaram tendo que solicitar ajuda na Europa — replicou Ricardo.

Bem, não tanto por causa da derrota quanto pelo que aconte­ceu logo depois: uma guerra civil, que lançou o império no caos — explicou Emanuel. — Quando nosso atual imperador, Manuel Comneno, assumiu o poder, os turcos haviam se apossado de muito mais do que o combinado, e nós, desgastados por anos de lutas inter­nas e de progressivas reduções das forças armadas, já não tínhamos tropas para opor a eles. Se o imperador Romano Diógenes não tives­se sido traído, os turcos teriam deixado de constituir uma ameaça para os limites de Bizâncio, e por um bom tempo.

Na verdade, eu me lembro de ter admirado a disciplina dos pe­lotões de vocês. Como conseguem não desfazer as fileiras, nem mesmo na iminência do confronto? — perguntou Ricardo, admirado.

Anselmo percebeu que, ao menos por enquanto, o normando parecia ter esquecido que Inês o esperava.

E se absteve cuidadosamente de lhe recordar isso.

 

Saulo afirma que Moisés, tendo descido do Sinai, colocou um véu sobre o rosto, para que os filhos de Israel não vissem o fim daquilo que é efêmero. Por que negar que Deus havia reconstituído o Zelem, sua verdadeira ima­gem no rosto de Moisés, que Adão havia perdido, e que aquele rosto esta­va demasiado resplandecente da glória de Deus para que um ser comum pudesse suportar a visão dele? Saulo é um blasfemo, e difunde essas mons­truosidades entre os gentios, ainda por cima atribuindo-as a Jeshua, que jamais pôs em discussão os preceitos da Torá, mas apenas a correta aplica­ção deles por parte dos sacerdotes.

Rebeca refletia sobre as palavras de Tiago, que passavam diante de seus olhos ao longo do rolo que ela estendera em cima da mesa. Sabia muito bem que, a partir do momento em que os francos haviam se apresentado diante dos muros de Jerusalém, aqueles manuscritos corriam o risco de acabar nas mãos deles, ou, pior ainda, de serem destruídos na eventual conquista da cidade. Sabia que precisava escondê-los num lugar seguro, onde eles ficassem a salvo mesmo que Jerusalém caísse; sabia que devia falar disso com alguém, para evitar que o segredo morresse com ela.

Tinha até percorrido, com a ajuda de um judeu local, as galerias que corriam sob a cidade, para encontrar um ponto onde pudesse deixá-los ou então um caminho de fuga, no caso de os eventos se precipitarem. Mas depois se convencera de que Jerusalém resistiria ao assédio.

Fosse como fosse, não queria se separar daqueles rolos. Tampou­co pretendia informar outros judeus sobre a existência deles, temen­do que reagissem como o pai; algum poderia até revelar a localiza­ção dos documentos aos cristãos. Lera-os mais de uma vez, mas tinha certeza de que grande parte do que significavam ainda lhe fugia, e continuava a relê-los e a estudá-los. Ao mesmo tempo, apro­fundava seus conhecimentos sobre o cânone da Igreja cristã, que parecia dever quase tudo à impostação do rival de Tiago, a saber, Paulo, e do Tanakh, que os cristãos haviam distorcido, transforman­do-o naquele Antigo Testamento, cujo único objetivo era anunciar o advento da divindade deles.

Seu pai teria compreendido, bem antes e mais do que ela, pensou, desconsolada. Mas ele sempre se recusara a aprofundar a leitu­ra do texto, limitando-se a olhadas superficiais e deixando para estudá-lo melhor no futuro. Um futuro que os adoradores do cruci­fixo haviam lhe subtraído, com um apressado golpe de espada.

Ainda havia tempo? Talvez sim. Os egípcios conheciam bem seu ofício. Por outro lado, esperava-se a chegada a qualquer momento de um exército de apoio do Egito, comandado justamente pelo grão-vizir.

A vida dela, afinal de contas, não tinha mudado muito naqueles poucos dias de assédio. A única medida repressiva adotada pelo governador havia sido a expulsão dos cristãos da cidade e, franca­mente, Rebeca não se dispunha a reprová-lo: era razoável achar que eles poderiam favorecer seus correligionários — embora fossem cris­tãos de rito grego —, e, além disso, tratava-se de muitas bocas a mais para alimentar; em caso de bloqueio dos víveres, certamente pesa­riam sobre a distribuição das provisões...

— Chegou o emir, com aquele seu inseparável cão de guarda. Você bem sabe o que deve fazer... — informou Sara, interrompendo o fluxo dos pensamentos da irmã.

Rebeca sorriu, assentindo em silêncio. Até mesmo num momen­to tão delicado, Jamal al-Ashraf achava tempo para visitá-las, a des­peito das múltiplas incumbências que seu papel de braço direito do governador Iftikhar ad-Dawla lhe impunha. Tinha sido justamente ele a lhe inspirar confiança na capacidade dos fatímidas para resistir ao assédio franco.

O paradoxo, contudo, era que o emir vinha para tranqüilizar a irmã caçula, mas não havia jeito de a jovem sossegar. Sara vivia ater­rorizada, desde os primeiros rumores sobre a chegada dos francos a Belém. A lembrança das violências sofridas em Mogúncia durante o pogrom do conde Emich, três anos antes, nunca a abandonara, acen­tuando sua tendência natural a temer não só o perigo, mas também a remota possibilidade de que este se apresentasse.

Havia também outra lembrança que não a abandonara: a imagem daquele Ricardo que a salvara de seus carrascos. Ela vivia fanta­siando sobre aquele encontro e, mesmo sabendo que jamais teria a possibilidade de revê-lo, elaborava histórias fantásticas sobre outros atos heróicos de seu salvador e sobre os momentos de amor entre os dois. Rebeca lhe recordara várias vezes que, naquele dia, Ricardo sequer havia voltado para resgatá-las, como prometera. Sara respon­dia que ele podia muito bem ter sido obrigado a modificar seus planos por causa das ordens dos superiores, e Rebeca não achava o que retrucar.

A irmã mais velha também lhe recordara que a cruzada do conde Emich tinha fracassado, e todos sabiam que seus componentes haviam sido mortos, aprisionados ou tinham se dispersado após os confrontos com os húngaros, antes mesmo de chegarem à Ásia. Mas, embora não houvesse nenhuma possibilidade de que aquele Ricardo estivesse acampado fora das muralhas, Sara continuava sonhando poder encontrá-lo, um dia, e coroar um amor que, baseado num único e fugaz episódio, ela imaginava como a mais sublime expres­são do vínculo entre homem e mulher.

Rebeca, ao contrário, achara Ricardo um simples soldado, como tantos, talvez apenas mais humano, mais educado... Bem, e também mais garboso, de fato. Mas estava contente que a cruzada dele tives­se acabado mal. Se existisse a remota possibilidade de sua presença entre os francos acampados diante das muralhas, era certo que Sara tentaria de tudo para entrar em contato com ele.

Perguntou-se pela enésima vez como Sara consideraria o emir, se os eventos de Mogúncia não a tivessem levado a idealizar seu salva­dor. Jamal era fascinante, educado, respeitoso, inteligente, brilhante, culto, compreensivo, rico, respeitado pelos chefes fatímidas, até amado pelos seus colaboradores e subalternos e... perdidamente apaixonado por Sara. Esperava pacientemente ser correspondido, sem nunca ultrapassar os limites de uma discreta corte, sem demons­trar frustração ou agastamento pela atitude pouco disponível e até antipática da jovem. E, no entanto, a cobria de presentes e de aten­ções, procurando, inclusive, elevar-lhe o espírito de horizonte limi­tado, mas sem jamais forçá-la ou criticá-la.

Fazia tempo que Rebeca renunciara a aprimorar a irmã e torná-la mais responsável. A última tentativa havia sido a de envolvê-la no estudo e na valorização do memorial de Tiago, mas não houvera jeito de fazê-la captar a importância do documento. Jamal, ao con­trário, não desistia, e sem dúvida também naquele dia iria exibir toda a sua sabedoria e sua erudição para impressioná-la.

Salam aleik, Rebeca! Vim tranqüilizá-las quanto ao andamen­to das operações e acalmar sua irmã, que julga os infiéis prestes a conquistar Jerusalém — disse o emir.

Bem, eles são muitos, e ferozes. Você não devia estar aqui, mas no alto das muralhas, controlando os movimentos deles — respon­deu Sara, sem muita cerimônia e sem olhar para ele.

O emir ficou impassível. Continuou à porta, recortando contra o vão sua magnífica figura de guerreiro, o capacete amarelo do qual descia um pano branco quase até a cintura, a malha de ferro e, sobre esta, uma aljuba de cor púrpura pespontada de linho, apertada na cintura por uma faixa com aplicações em tecido, e uma longa veste, atada na frente, que cobria as botas.

Rebeca notou que, ao contrário, o fiel Firuz, o ameaçador guar­da turco que acompanhava Jamal por toda parte, havia arqueado levemente as sobrancelhas. Para além da soleira da porta, entrevia- se a figura de outro soldado da guarda pessoal do emir, um árabe em trajes com aplicações e um turbante do qual pendia um revestimen­to de couro rústico; na mão, o homem segurava um grande para-sol em forma de prisma.

Com um sorriso paciente, Jamal se sentou e ilustrou a situação:

Não há nenhuma necessidade de minha presença constante sobre as muralhas. Os infiéis, afinal, não são tantos como você supõe. Pelo contrário, são tão poucos e estropiados que sequer con­seguem circundar a cidade com suas tropas. Limitaram-se a acampar em três setores distintos, deixando-nos a possibilidade de concentrar homens e máquinas somente nesses pontos.

E quais seriam os setores? — perguntou Rebeca, sobretudo para demonstrar interesse e polidez, ao passo que a irmã não presta­va a mínima atenção.

Temos informações precisas a respeito. Muitas das forças deles estão concentradas justamente deste lado, ao longo da muralha seten­trional. Os normandos de Roberto, o filho do conquistador da ilha britânica, estão distribuídos diante da Porta de Herodes. Pouco mais a oeste, diante da Porta de Damasco, encontram-se as forças de Roberto de Flandres. Ainda mais a ocidente, diante do bairro cristão, acamparam os normandos da Itália de Tancredo de Hauteville, e no ângulo que coincide com a cidadela e com a Porta de Jaffa se posicionaram os lorenos do duque Godofredo. Em todo o resto do circuito de muralhas, o único setor ameaçado é o sul-ocidental em frente ao monte Sião, onde acamparam as tropas do conde de Toulouse.

Você quer dizer que, ao sul e ao leste, eles não nos ameaçam? — quis saber Rebeca, após esperar por alguns momentos que a irmã interviesse.

Mas Sara não dissera nada.

Exato — respondeu o emir. — Por outro lado, a encosta é muito íngreme nesses lados. Os vales do Cedron e da Geena ficam muito distantes das muralhas, e não vejo como eles poderiam subir aos espaldões sem construir rampas. Enfim, uma coisa bem traba­lhosa.

Rebeca pensou que, em Massada, mil anos antes, os romanos haviam conseguido. Mas aquela era outra história. Ela bem sabia que os chamados cruzados não tinham nem o tempo nem a organi­zação dos antigos dominadores de seu povo.

E daí? Afinal, eles podem arrombar os pontos onde concentra­ram suas forças, não? — Quem fizera a pergunta havia sido, imprevisivelmente, Sara. Devia estar de fato aterrorizada, pensou a irmã.

Bem improvável — apressou-se a responder o emir, contente por ser útil ao objeto de seu desejo. — Com as tropas árabes, ahdath, isto é, a milícia citadina, e os mercenários sudaneses, nossa guarnição tem um número mais que respeitável de defensores. E em geral os atacantes não têm esperanças de prevalecer, exceto se forem em número muito, mas muito maior que o dos defensores: digamos, num percentual de quatro para um, no mínimo. Além disso, nós temos quarenta trabucos e eles, nenhum. Podemos alvejá-los do alto das muralhas como e quando quisermos, e, mesmo que tentassem se aproximar e escalá-las, nunca chegariam aos espaldões.

Fez uma pausa, a fim de dar tempo às duas moças para refletir sobre suas palavras. Depois recomeçou:

O governador mandou cortar e esconder nas cavernas toda a madeira existente nos arredores; por conseguinte, os infiéis não têm como construir máquinas obsidionais com as quais possam se apro­ximar das muralhas ou demoli-las. E, mesmo que conseguissem montar uma catapulta, já providenciamos o reforço do circuito com sacos de algodão e feno, que absorverão qualquer golpe.

Ridículo, pensou Rebeca. Um homem tão brilhante e poderoso, refém de uma mocinha desmiolada e inepta. Ela jamais cairia nessa esparrela. Com ninguém.

Mas então poderiam nos fazer morrer de fome e sede — insis­tiu Sara.

Nada disso. — Jamal estava cada vez mais satisfeito por final­mente poder transmitir segurança à jovem judia. Era um primeiro passo, após um ano de corte frustrante. — O governador mandou afastar da área todos os rebanhos que pudessem constituir fonte de alimento para os infiéis. Parece que só Tancredo conseguiu umas ovelhas nos arredores de Belém, e você verá que eles vão disputá-las. Mas, principalmente, Iftikhar envenenou todos os poços num raio de dez quilômetros, e os cristãos vão precisar se afastar muito para obter água, expondo-se às nossas emboscadas. Quanto ao reservató­rio de Siloé, que fica logo abaixo das muralhas, eles não perdem por esperar: vamos nos divertir praticando tiro ao alvo.

"Nós, porém, estamos garantidos. Temos víveres à disposição para vários meses, e nossas cisternas estão cheias de água potável. O sistema de esgotos funciona muito bem e não há risco de doenças. Se eles teimassem em nos submeter a um bloqueio, só conseguiriam cair nas mãos do grão-vizir, que logo chegará com um exército imponente, em resposta ao pedido de ajuda que o governador lhe enviou assim que os infiéis apareceram por aqui.

"Se algum dia existiu um assédio no qual os assediantes tiveram pouca ou nenhuma possibilidade", concluiu Jamal, visivelmente comprazido, "é justamente este. Alá decidiu que os descrentes se dêem muito mal neste empreendimento. Vocês verão que eles serão obrigados a atacar logo, e farão péssima figura. Estamos esperando um assalto desesperado, de uma hora para outra."

Precisaremos ver qual dos dois exércitos confiará mais na ajuda de seu próprio deus — comentou Rebeca. — Muitas vezes, a convicção de combater pela fé leva um soldado a realizar atos que eram impensáveis momentos antes. Experimentamos isso em nossa pele, em Mogúncia. Veremos quem tem determinação e ferocidade maiores...

Rebeca, permita-me explicar a você e a Sara que Deus é único, na realidade — esclareceu Jamal. — Está escrito: "Cremos naquilo que foi revelado a nós, cremos naquilo que foi revelado a vós. Nosso Deus e vosso Deus são um só, e a Ele estamos submissos." Esse ver­sículo tanto pode estar dirigido a vocês, judeus, quanto aos cristãos. Pertencemos todos ao mesmo tronco religioso, o semítico. Quando eu era embaixador em Constantinopla, tive várias oportunidades de conversar sobre essas coisas com gregos cultos. Reflitam: o credo cristão começa com a declaração "Creio em um só Deus"; o primei­ro artigo do Corão diz: "Não há outro deus senão Deus"; e, no Shemá hebraico, suponho que no Deuteronômio, diz-se: "O Senhor é nosso Deus, o Senhor é um só." Estamos tão próximos e, no entan­to, não nos damos conta...

Pois sim! Vá dizer isso àqueles alucinados que mataram meu pai e tentaram me violentar, só porque somos judeus! — replicou Sara, quase choramingando.

Eles acreditam que os judeus mataram Jesus. Mas, "na realida­de, não o mataram em absoluto", diz o Corão — afirmou com segu­rança o emir. — Jesus foi escolhido por Deus, antes de ser crucifica­do, e substituído por um sósia. Deus jamais deixaria morrer um profeta Seu, é óbvio! Manes, o fundador do maniqueísmo, afirmava que o corpo de Jesus era um fantasma e, como tal, não podia ser cru­cificado.

Os judeus não mataram Jesus, até porque quem fez isso foram os romanos — assegurou Rebeca, sabendo muito bem o que dizia. — Entre os judeus, a crucifixão era considerada anátema, ao passo que os dominadores romanos costumavam crucificar os rebeldes, e não os blasfemos; o sinédrio, por sua vez, condenava-os à morte por apedrejamento. Mesmo assim, os cristãos acabaram substituindo Deus por Jesus Cristo, ou, na melhor das hipóteses, colocando-os lado a lado, tomando literalmente o conceito puramente simbólico, várias vezes recorrente tanto no Tanakh quanto no cânone cristão, de "filho de Deus". No Livro de Samuel, Deus afirma, a respeito de Salomão: "Eu lhe serei pai e ele me será filho." Nos Salmos, um rei escuta de Deus: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei", e em outro lugar um rei diz: "Tu és meu pai, meu Deus e rocha da minha salvação."

De fato, aos cristãos devem ser imputados sobretudo dois erros — concordou Jamal. — Como afirma o Corão, eles, sem se darem conta, acreditam em quatro divindades diferentes, entre as quais a deusa Maria, engravidada por Deus pai. Sob certos aspectos, são politeístas. E também, assim como vocês, judeus, não crêem que Maomé era o profeta anunciado por Moisés.

Vocês estão me dando dor de cabeça com essas histórias! Amanhã poderemos estar todos mortos, e vocês aqui discorrendo sobre religião! — reclamou Sara.

Mas, minha querida! Já expliquei que você não corre nenhum risco — respondeu o emir, em tom gentil. Se ficara exasperado pela superficialidade da moça, certamente não o demonstrava. — Mais do que falar de religião, estamos tentando estabelecer um ponto de encontro entre nossos povos. E eu quero muito que nossos povos se encontrem. Alá disse: "A vós é permitido contrair matrimônio com mulheres crentes de boa condição e com as que pertencem àquela gente a quem a Escritura foi revelada antes que a vós..."

Sara não pareceu ter captado a mensagem, ou talvez tenha ape­nas fingido não a perceber.

Rebeca, de seu canto, só a muito custo conseguiu reprimir uma risada. Aquela era a investida mais explícita que o emir já fizera à sua irmã...

 

Inês acordou furiosa. Ficara muito tempo esperando por Ricardo, mas este não dera sinal de vida. Para se manter livre, havia até recusado uns clientes que vieram procurá-la à noitinha. Anselmo, em contraposição, tinha aparecido, mas não sabia dizer que fim havia levado aquele normando.

Saiu da tenda sem sequer se pentear, decidida a encontrá-lo e a lhe dizer poucas e boas. Já lá fora, compreendeu de imediato que o dia recém-começado traria algumas novidades. Havia uma grande agitação, os homens caminhavam mais depressa do que o habitual e, sobretudo, estavam todos em armas. Soldados em completa malha de ferro, alguns até nas pernas e a maior parte sobre a cabeça, outros com perneiras de malha bem justas e outros ainda com bragas, às vezes protegidas por tiras de couro; couraças com placas de couro fervido ou de chifre, achatadas ou em escamas, também com refor­ços em ferro, ou coletes de tecido acolchoado. Portavam no braço compridos escudos triangulares, com a borda superior reta ou hemisférica, e escudos redondos, grandes ou pequenos. Empunha­vam espadas longas, metidas numa fissura da cota, à maneira normanda, ou penduradas ao cinturão; lanças com ponta em folha ou em losango, algumas com estandarte de três pontas, outras desprovidas disso, ou, como alternativa, achas de cabo longo, pequenas bestas,[3] atiradeiras. Usavam elmos em calota ou cônicos, com ou sem narigueira, mas também chapelões de aba larga, coifas de linho ou chapéus de ferro com borda ampla; por fim, os soldados de extração mais baixa envergavam camisões sem proteção e empu­nhavam foices como única arma de defesa.

Uma variedade extrema de equipamentos e trajes, mas também de cores, entre as quais se destacavam o vermelho, o verde e o ama­relo, e às vezes o ouro dos cavaleiros de maior relevo. Como traço comum, aquele multiforme exército de combatentes oriundos de toda a Europa ostentava a cruz, que cada um trazia pintada no elmo, no escudo ou no estandarte, ou então costurada sobre a túnica de tecido que muitos usavam sobre a couraça.

A última vez em que Inês havia visto semelhante agitação tinha sido no dia do último ataque a Antioquia. Logo compreendeu o que significava aquilo e começou a procurar Anselmo para pedir notí­cias. Não imaginava que o assalto ocorreria tão cedo: do contrário, teria aproveitado o momento de intimidade com Godofredo de Lorena e pedido a ele permissão para participar do combate. Agora, sem a recomendação de algum figurão, ninguém lhe permitiria portar armas.

Viu que todos convergiam para o setor mais setentrional, rumo à Porta de Damasco e ao campo de Roberto de Flandres. Diante dela desfilaram também os homens da França meridional, com o conde de Toulouse à frente, um homem idoso cujo porte altivo e sereno sempre induzira Inês a considerá-lo o chefe carismático da cruzada, sobretudo após a morte do bispo Ademar, suprema autoridade do empreendimento em nome do papa.

Ela não conseguia compreender por que uma campanha de tama­nha importância para a cristandade não tinha um comandante único sobre o exército. Como era possível que os senhores tornados cruza­dos em nome de um ideal superior não conseguissem encontrar den­tro de si a humildade para se submeter às ordens de algum outro?

Desde o primeiro momento, as diatribes deles tinham sido de domínio público, e, se as discórdias haviam diminuído progressiva­mente, era só porque alguns contendores tinham abandonado a cru­zada para seguir seus interesses pessoais. As tropas haviam passado — desperdiçado? — quinze meses em Antioquia, somente para deci­dir a quem caberia a posse da cidade. Esta fora obtida pelo norman­do que ostentava a carreira militar mais prestigiosa entre todos os aspirantes ao comando supremo, Boemundo de Taranto, filho de Guiscardo, o acérrimo inimigo dos bizantinos. E ele sequer levara em consideração a possibilidade de entregá-la ao imperador grego, que, afinal de contas, era o legítimo destinatário.

Inês não sentia a menor simpatia por Boemundo: desabusado, agarrado aos próprios interesses, soldado demais para poder se asse­melhar, ainda que vagamente, a um peregrino em busca de remissão dos pecados. Tê-lo perdido talvez fosse um bem para a cruzada, mas ter perdido igualmente suas tropas, que haviam permanecido com ele para vigiar e defender Antioquia, não o era.

Antes disso, já fora embora o conde de Blois, Estêvão, cunhado de Roberto da Normandia. Havia simplesmente fugido, todos sabiam, no momento mais nebuloso do empreendimento — mas pouco antes da vitória decisiva sobre Antioquia —, levando consigo seu robusto e bem equipado exército. Também se afastara o irmão mais novo do duque Godofredo, Balduíno de Flandres. Tinha ido ajudar um monarca armênio mais a leste, e corriam rumores de que acabara ficando ele mesmo com a coroa. E não somente levara con­sigo outros soldados, como também a notícia de seu sucesso havia impelido muitos a irem ao seu encontro.

E agora, diante de Jerusalém, o objetivo mais importante de todos, a cidade do Santo Sepulcro, estava um exército sem condições de rodear sequer a metade do circuito murado. Um exército esfalfa- do por dois anos de campanha, desprovido de um comandante e de máquinas de assédio, mas convencido de poder expugnar a cidade protegida — talvez tanto quanto Constantinopla — pelas muralhas mais imponentes do mundo

Até uma puta era capaz de compreender que se tratava de uma iniciativa desesperada.

Pior ainda: louca.

Talvez tivesse razão quem sustentava que o Senhor cuidaria de dar a vitória aos cruzados, por mais insuficientes que fossem as for­ças deles. De fato, não parecia haver outro modo de vencer.

Mas por que, afinal, o Senhor deveria ajudar homens que, como afirmara o pio bispo Ademar em Antioquia, tinham se tornado cul­pados de soberba, banditismo e luxúria? Inês recordava muito bem que o prelado impusera um jejum de três dias como expiação, mas muitos, e ela antes de todos, tinham rido disso: havia muito tempo que a carestia de que o exército era vítima transformava a penitência em algo quase paradoxal.

No entanto, agora lhe parecia que nenhum dos soldados que acorriam ao setor norte seria contido por dúvidas ou temores. A determinação e o entusiasmo que impregnavam o exército tornavam extraordinariamente semelhantes as expressões do obtuso e do inte­ligente, do nobre e do plebeu, do culto e do ignorante.

Até mesmo no rosto de Anselmo havia determinação e entusiasmo.

Deduzo que vamos atacar... — disse Inês a ele, assim que o viu aproximar-se.

Pois é. Hoje você está de folga, por força da situação. — O monge estava radiante. — O santo homem que os chefes foram encontrar no monte das Oliveiras disse que eles não temessem: Deus ajudará Seus soldados e a cidade será nossa ainda na noite de hoje! Venha comigo. O assalto se concentrará no setor onde Roberto de Flandres acampou; você cuida dos feridos e eu administro a extrema-unção aos mártires moribundos.

Inês teve a sensação de que, naquele dia, os mártires seriam muitos.

Aquelas muralhas davam medo. Mais do que as de Nicéia, que os bizantinos haviam surripiado dos ocidentais antes mesmo que estes conseguissem assaltá-las. Mais ainda do que as de Antioquia, que, aliás, os cruzados não tinham realmente expugnado, a não ser pela traição que lhes abrira as portas. Na verdade, pensou Ricardo, enquanto chegava à posição de assalto, era a primeira vez em dois anos que eles tentavam um verdadeiro ataque a uma cidade. Pergun­tou-se como poderiam alcançar os espaldões sem torres de assédio, sem aríetes e sem trabucos para abrir brechas. Havia somente escadas à disposição dos soldados: escadas feitas às pressas nas últimas horas antes do amanhecer, além de cordas com ganchos; era fácil prever que os primeiros a usá-las se ofereceriam como vítimas sacrificais aos defensores postados nos espaldões.

Ou até mesmo antes de chegarem às muralhas. Havia muito pou­cos manteletes[4] e anteparos, para que os soldados pudessem apro­ximar-se delas sem constituírem alvos fáceis para os projéteis adver­sários. E aquelas poucas coberturas móveis disponíveis, suficientes para proteger somente poucos homens, tinham sido atribuídas em sua maior parte aos sapadores, aos quais cabia a tarefa ingrata de alcançar a base das muralhas e minar-lhes a estabilidade com enxadas e pás.

Mas não havia um só mantelete revestido de couro, o único material capaz de proteger do fogo aqueles artefatos. Ricardo se ale­grou por estar destinado a morrer empunhando uma espada, e não uma enxada. Como soldado, fora enviado ao matadouro sem nenhu­ma forma de proteção, e lutaria com a plena consciência de poder ser golpeado de um momento para outro; mas os sapadores... os sapadores acabariam assados um instante depois de cultivarem a ilu­são de estarem protegidos pelas coberturas...

Só agora, pensou, estava adquirindo uma experiência concreta de guerreiro, e já se arriscava a encerrar a carreira. E a vida, talvez. Sua primeira batalha de verdade, após décadas de exílio voluntário nos bosques, tinha sido apenas três anos antes, ao lado do conde Emich de Leiningen, depois das fáceis razias em Espira, Worms e Mogúncia. E fora um desastre. A guarnição húngara bastara uma única surtida para fazer uma carnificina entre os cruzados, durante o assédio ao castelo no Danúbio que protegia o limite do reino da Hungria. Ele conseguira escapar com uns poucos cavaleiros france­ses e, uma vez na Palestina, tinha sido agregado ao contingente de Roberto da Normandia. Depois vieram as batalhas campais de Nicéia, Dorileia e Antioquia, durante as quais ele descobrira ser um bom combatente.

Tentou compreender as ordens que chegavam de seu comandan­te, mas as palavras do duque Roberto eram abafadas pelo pisoteio dos cascos e pelos relinchos dos cavalos, pelo ruído das ferragens dos soldados, pelos gritos destes para se chamarem reciprocamente, pelo rangido das rodas dos manteletes colocados em posição, pelo rumor das escadas arrastadas sobre o terreno poeirento. Precisou interrogar um sujeito à sua frente para saber que já se preparavam para atacar e que era preciso dispor-se em cunha. Recuou, não por medo, claro, mas por saber que nas fileiras anteriores impunha-se a presença dos guerreiros mais encouraçados: ele já não tinha a cota de malha, desde quando havia parado de servir ao conde Emich. Conseguira obter um elmo cônico sem narigueira e com a ponteira dobrada para a frente, mas só porque o subtraíra a um caído em Doriléia. De resto, um colete acolchoado, sem mangas, e um modesto escudo redondo eram as únicas outras proteções de que dispunha.

Antes que a coluna se pusesse em movimento e levantasse tanta poeira a ponto de lhe obscurecer a vista, teve tempo de ver as amea­çadoras silhuetas dos trabucos que se delineavam, a intervalos regu- lares, atrás dos muros e das torres de Jerusalém.

 

Emanuel sabia que aquilo aconteceria. Haviam-no chamado, coloca­do uma escada em suas mãos e ordenado que tentasse escalar as muralhas. Enquanto seu general, Tatício, permanecera com o exército franco, os chefes ocidentais não tinham ousado expor muito desca­radamente ao perigo os aliados. Mas já na batalha por Antioquia haviam ordenado aos gregos que ocupassem a primeira linha, e isso custara a vida à metade dos homens que escolheram permanecer com ele.

Agora, só lhe restavam sete soldados. Sete combatentes, suficien­temente loucos para considerá-lo digno de confiança e segui-lo até onde ele quisesse conduzi-los. Afinal, apesar da longa carreira e da vasta experiência acumulada em guerras, Emanuel não havia realiza­do nenhuma proeza memorável; justamente por isso, jamais chegara a comandar unidades mais consistentes do que um bandon. No entanto, o respeito e a estima, e até o afeto, que os subalternos tinham lhe demonstrado em cada circunstância e em cada campanha haviam atenuado parcialmente o desprezo que ele alimentava por si mesmo pela escassa acuidade de que dera provas no início. E experi­mentara um certo orgulho quando, depois de declarar a Tatício que pretendia permanecer com os francos, um punhado de subalternos decidira permanecer com ele.

Graças a esses homens, conseguira suportar naqueles longos meses a patente hostilidade que, em todas as ocasiões, os francos manifestavam em relação a ele. Jamais quisera ser aceito como um companheiro daqueles semibárbaros analfabetos, combatentes por puro instinto e sem nenhum preparo tático, mas havia esperado que sua decisão de permanecer lhe angariasse pelo menos o respeito deles. Em pouco tempo, chegara a desejar apenas que o deixassem em paz, mas até esse objetivo se revelara uma miragem.

Ouviu a ordem de ataque. O comandante gritou: "Deus o quer!", e todos os outros, a começar pelos padres, na primeira fileira, fize­ram-lhe eco, menos os seus soldados, que bradaram "Kyrie Eleison!". Emanuel ergueu a espada e, ecoando-os, apontou-lhes as muralhas.

 

Jamal teve forças para sorrir. Olhou Firuz, ao seu lado, e viu que ele também havia torcido os cantos da boca. Não havia trabucos entre as fileiras francas, nem atrás delas. Não se viam aríetes nem torres móveis.

Ainda assim, eles tinham desencadeado o assalto à cidade. Até o último instante, o governador havia considerado aqueles movimen­tos convulsos como simples manobras de adestramento, ou até como sinais de alguma disputa entre contingentes. No entanto, reforçara o lado setentrional, para onde pareciam convergir as for­ças inimigas, mesmo considerando os trabucos, dispostos sobre os espaldões, suficientes para manter os infiéis longe das muralhas.

Para o emir, sob cuja responsabilidade ficavam as máquinas de arremesso, isso significava conquistar glória a baixo preço. Tratava-se apenas de esperar que os atacantes chegassem ao raio de alcance das catapultas, e, a julgar pela corrida alucinada com que estavam avançando, eles logo entrariam naquele perímetro.

Jamal deu rápidas olhadas à direita e à esquerda para conferir se todos estavam em posição. Cada máquina dispunha de dois encarre­gados junto à extremidade mais comprida do balanceiro,[5] onde estava pendurada a funda carregada com a pedra. Do lado oposto, partiam numerosas cordas que outros serventes se mantinham pron­tos a puxar com força e simultaneamente, para provocar a elevação da outra parte do braço.

Mais uma vez, verificou se junto de cada trabuco havia um número suficiente de pedras para carregá-lo. Estabeleceu que, ao seu sinal, os primeiros a atirar fossem os trabucos maiores e mais poten­tes, que ele mandara instalar em alternância com os menores. A um novo sinal, bem próximo, partiria a segunda descarga, enquanto as primeiras máquinas eram recarregadas, mas com pedras mais pesa­das, para que o lançamento fosse menos longo.

Não previa outros tiros. Se, mais tarde, os infiéis continuassem avançando, apesar das perdas, havia outros remédios.

Eles não avançam compactos e em formação. Vai ser mais difícil — disse Firuz, atento a que os outros não o escutassem.

Isso também agradava a Jamal naquele turco. Ele sopesava tudo que dizia, e sempre refletia sobre as conseqüências de suas palavras. A observação tinha sido muito pertinente, e poderia gerar insegu­rança nos homens, se a ouvissem.

É verdade. Não faz muito sentido dispersar um exército já dis­perso. Os projéteis produzem pouco efeito sobre um ataque tão caó­tico. Veremos. Podemos apenas esperar que eles se intimidem — res­pondeu Jamal ao seu guarda.

O emir observou atentamente a maré adversária, perscrutando a poeira que ela levantava ao avançar. De início, os diversos contin­gentes se mantinham bem distintos um do outro, deixando nítidos corredores delimitados pelas respectivas alas de cavalaria e pelos estandartes, que afloravam de vez em quando acima da nuvem que velava tudo. Mas depois alguns cavaleiros não tinham sabido resistir à tentação de ultrapassar a infantaria, e os peões de cada contingen­te estavam se espalhando até quase se misturarem com os das unida­des dos flancos.

Já à distância de tiro dos trabucos montados sobre os espaldões apresentava-se à visão de Jamal uma massa confusa, com poucas soluções de continuidade. Era o momento. O emir deu a ordem:

Atirem! Allah Akbar!— berrou, com todo o fôlego de que dis­punha. Quinze balanceiros saltaram simultaneamente para o alto, arremessando outras tantas pedras.

Desde os primeiros rumores sobre o ataque, Rebeca se arrependera de ter dado ouvidos a Jamal. "Você vai ver", dissera o emir à sua irmã. "Mesmo que eles tentem um assalto, não serão capazes de ultrapassar sequer a primeira muralha, e um assédio seria mais prejudicial para eles do que para nós." Por isso, até a noite anterior, ela não se empenhara em predispor seu ânimo para uma nova bata­lha, a segunda de sua vida após o morticínio de Mogúncia, três anos antes. Nem se preocupara em encontrar um esconderijo para o manuscrito, no caso de os francos — também passara a chamá-los assim, como se usava ali no Oriente — conseguirem superar as defesas egípcias.

Mas, agora que escutava as vozes exaltadas provenientes dos espaldões, os gritos e recriminações de seus correligionários por não terem saído dali antes do início do assédio, as brigas entre eles quanto à necessidade de ajudar os defensores, desejava ter tomado providências. Quais? Não fazia idéia. Sequer havia refletido sobre o assunto, nos dias precedentes, absorta como estava no estudo do memorial.

Estão chegando, estão chegando! Você os ouve? Estão vindo! — berrou Sara, tomada pelo pânico.

Não diga tolices! — retrucou Rebeca, num tom de voz igual­mente alto. — O que você está escutando são as vozes dos defenso­res. Lembra-se do que Jamal disse? Não temos nada a temer. Eles não são capazes de transpor as muralhas. — Tentava convencer a si mesma, mais do que persuadir a irmã.

Vão entrar. Vão entrar, com certeza — insistiu Sara, botando as mãos na cabeça e abandonando-se a um pranto desenfreado. — Não se lembra deles em Mogúncia, como estavam endemoniados? Nin­guém consegue deter aqueles lá. Querem nutrir de sangue o deus deles! São uns animais ferozes! Animais!— gritou, com voz esganiçada.

Rebeca se aproximou e abraçou-a, apertando-a com força. Naqueles três anos, muitas vezes a irmã revivera em sonho o trauma da tentativa de estupro. Se Sara não se abandonara à depressão, ou, pior ainda, à loucura, era só porque seus pesadelos tinham sempre um final feliz, com a irrupção de seu salvador. Em geral, antes do alvorecer, aquele Ricardo a levava para uma terra exuberante e prós­pera, onde judeus e gentios podiam viver juntos sem encontrar a hostilidade das pessoas.

Os muçulmanos também extraem forças de seu deus. O ímpe­to interior deles não é menos intenso. Confie em nosso Deus, você também. Se realmente houvesse perigo, eu teria corrido a esconder o manuscrito, não? — mentiu Rebeca, esperando dar à irmã a prova definitiva de sua própria segurança.

Sua intuição se revelou correta. A menção aos rolos pareceu acalmar Sara, cujo pranto se transformou lentamente em soluços, enquanto ela se abandonava entre os braços de Rebeca como uma filha nos da mãe.

As duas tiveram um sobressalto quando ouviram um poderoso grito coral de triunfo, proveniente dos espaldões.

As máquinas de Jamal haviam feito lançamentos.

 

O céu desceu de repente. Na retaguarda logística, Ricardo se movia em uma nuvem de pó, e só a muito custo conseguia ver as costas do com­panheiro que o precedia. Também não lhe era possível perceber um ru­mor que não fosse o produzido pelos passos e pelos gritos dos soldados ou pelo clangor das armas que se chocavam umas contra as outras.

Como ele, ninguém escutou o sibilar do projétil antes que este fendesse a poeira e aparecesse, como que por magia, a poucos pal­mos de suas vítimas. Ricardo ouviu um pesado baque junto de si, segundos antes de se voltar e ver três companheiros esmagados por um enorme pedregulho, que continuou a rolar interrompendo a corrida dos que vinham atrás e aleijando mais de um.

Por um instante, guardou na memória a imagem fugaz da cabe­ça despedaçada e torcida de um dos soldados golpeados, antes de ser atingido pelo truculento efeito dominó desencadeado por outro projétil, caído pouco adiante.

Após o impacto com o companheiro que ia à sua frente, Ricardo perdeu o equilíbrio e precipitou-se no solo, de costas. Quase perdeu os sentidos: só depois de alguns instantes recuperou o fôlego e a luci­dez e se levantou com dificuldade.

Recomeçou a avançar, mais por força de inércia do que por con­vicção. Tropeçou numa escada abandonada no chão e procurou alguém que o ajudasse, utilizando a extremidade que ele havia levan­tado para bloquear dois companheiros.

Enlouqueceu? O que está fazendo? Deixe-nos passar! — berra­ram eles.

Ajudem-me a carregá-la. Sozinho, não consigo! — gritou, e os dois, após refletirem um instante, obedeceram.

A nuvem de pó tornava indistintos os contornos do alvo e não permitia calcular com exatidão a distância que os separava da base das muralhas. Ricardo puxava a extremidade mais avançada da esca­da; depois de alguns passos, sentiu uma repentina onda de calor sobre a cabeça, apesar do elmo. Logo em seguida, o calor o atingiu nas costas.

Sem deter a própria corrida, tentou se voltar, desacelerando e girando o pescoço, que ainda lhe doía.

Mas então teve que parar.

A escada estava em chamas, assim como seus dois companheiros.

Satisfeito, Jamal observara suas pedras ceifarem vítimas na confusa investida dos francos. Havia ordenado quatro descargas, antes de constatar que os inimigos já estavam muito próximos e que convinha passar a outros expedientes. Perscrutando a nuvem de poeira, viu-os formigarem lá embaixo em agregados incoerentes, amplos vazios alternados com setores onde os soldados se aglomeravam a tal ponto que se atrapalhavam reciprocamente.

Fosse como fosse, continuavam avançando, e agora dificilmente renunciariam à tentativa de escalar as muralhas.

Mandou que os operadores das máquinas para projéteis incendiários as carregassem. Dispunha de várias delas, cada uma com qua­tro braços que giravam sobre um eixo vertical. De cada extremidade em forma de colher partia um recipiente; dentro deste, uma mistura preparada segundo um sucedâneo da fórmula secreta que durante séculos havia permitido que os bizantinos alvejassem os adversários com um fogo que nem a água conseguia extinguir.

Ao seu sinal, os braços começaram a girar. E a lançar, em rápida sucessão, quatro séries de projéteis, que deixaram para trás uma esteira de fogo antes de aterrissar entre as fileiras inimigas e trans­formar os soldados em muitas tochas humanas.

Desta vez, a corrida dos francos pareceu perder impulso. Muitas unidades do caótico exército se detiveram, e em outras viram-se gru­pos de soldados movendo-se já não para diante, mas lateralmente, na tentativa de se distanciarem das piras e dos companheiros em chamas, que em vão pediam ajuda.

Desta vez, tinham sentido o golpe, e muito.

O emir fitou comprazido o leal Firuz, e depois ordenou que os operadores carregassem novamente. Por alguns instantes, contem­plou os trabalhos de preparação do novo tiro, até que o turco cha­mou sua atenção, exortando-o a olhar mais uma vez para baixo.

Os infiéis haviam recomeçado a avançar.

Quase todos.

 

As massas incandescentes não tinham atingido nem Emanuel nem seus homens. Aquela espécie de fogo grego caíra bem na sua frente, mas ele tivera tempo de desviar a trajetória e evitá-lo. Não, porém, o último de seus subalternos, um rapaz que só havia percebido o projétil tarde demais.

Atraído pelos gritos do jovem, o oficial parou de chofre e correu para ele; encontrou-o de joelhos, envolto pelas chamas, e empurrou-o para o chão com o escudo. Com a sola dos calçados, rolou-o várias vezes na poeira, até que daquele corpo só se ergueu fumaça. Não po­dendo fazer mais nada pelo coitado sem se furtar à batalha, deixou-o ali, contentando-se com ter evitado que ele ardesse até morrer.

Acenou aos seus para que retomassem o avanço, enquanto mui­tos outros os ultrapassavam e se lançavam, decididos, em direção à muralha, agora próxima. Viu caírem outros projéteis incendiários, que desta vez aterrissaram longe deles, e teve uma intuição. Gritou aos seus homens que cerrassem fileiras bem atrás de si e dispusessem os escudos acima da cabeça, para encostá-los uns nos outros e não deixar espaços livres.

Logo depois escutou os sibilos e em seguida os impactos e vibra­ções das flechas sobre os escudos. Deu graças à própria experiência, assim como ao Senhor, por ter recorrido àquele anteparo bem a tempo. Olhou ao redor e viu que os outros pelotões não haviam sido igualmente previdentes.

 

Por enquanto, seu papel estava concluído, pensou Jamal. Só lhe restava desembainhar a cimitarra e esperar para lutar com arma branca, como um soldado comum. Com suas máquinas, dizimara os infiéis, mas ainda via muitos: tinham sido astutos, teve de admitir, em concentrar quase todas as suas forças naquele setor limitado.

Não tiveram medo. Os únicos vãos abertos em suas fileiras eram os dos caídos, e não de fugitivos.

Agora, porém, era a vez dos arqueiros sudaneses, que o governa­dor distribuíra em primeira linha. Já estavam prontos ao longo dos adarves, depois de envergarem escudos e maças, em sua costumeira posição de tiro, com um joelho apoiado no chão, os longos arcos tensionados, o rosto negro e com cicatrizes emoldurado pelo tur­bante branco, o vistoso traje de brocado adamascado.

Jamal viu o governador ordenar que os arqueiros lançassem, e num instante aqueles hábeis atiradores encaixaram e desfecharam as flechas com alça de mira alta, para depois desferirem um novo tiro com alça de menor alcance.

Olhou para baixo. Viu vários cristãos contorcendo-se no solo, com as mãos no ponto onde a flecha se espetara. Os que haviam per­manecido ilesos tentavam avançar segurando o escudo sobre o elmo, mas agora os únicos que conseguiam ficar próximos entre si eram os que traziam as escadas. Todos os outros vagavam solitários, distan­tes um do outro, cada um pensando em si mesmo.

Depois, notou um pelotão de soldados que se mantinham unidos. Tão unidos que seus sete escudos os cobriam como um manto protetor.

Entrecerrou os olhos e observou melhor. Eram todos escudos redondos, mais amplos do que aqueles usados habitualmente pelos francos como alternativa aos mais comuns, triangulares.

Eram bizantinos.

E pareciam prestes a alcançar as muralhas.

Horrorizado, Ricardo largou a escada, transformada em um tição ardente. Os dois homens que o tinham seguido a contragosto, envol­tos também eles pelas chamas, debatiam-se entre gritos lancinantes. "E culpa sua!", acreditou ouvir em meio àquele desumano agregado de sons proveniente do que restava dos lábios deles. Um dos dois estendeu os braços em sua direção e se aproximou, naquilo que Ricardo entendeu como uma tentativa de lhe transmitir, por pura vingança, a fogueira que estava dilacerando seu corpo.

Escapou. Escapou para a frente, rumo às muralhas, na esteira dos companheiros que o precediam, olhando ao redor para localizar a escada mais próxima. Viu-a pouco depois, mas viu também dois dos homens que a seguravam despencarem no chão transfixados pelas flechas, que assoviaram bem junto dele.

Instintivamente, colocou-se de flanco em relação às muralhas, para não expor aos arqueiros um alvo muito amplo, e ergueu o escu­do acima de si. A precaução se revelou providencial um instante depois, quando um forte impacto balançou o próprio escudo, com a vibração produzida pelo dardo que se cravara nele.

Continuou de olho no grupo com a escada, mas ao mesmo tempo devia prosseguir avançando de flanco, além de olhar para baixo, a fim de evitar tropeçar nos cadáveres sempre mais numerosos.

Por pouco não caiu sobre a carcaça de um cavalo, surgida repentina­mente por trás da nuvem de fumaça levantada pelo enésimo projétil incendiário.

Viu-se junto do grupo com a escada bem perto do fosso frontei­ro à muralha, um obstáculo para qualquer máquina de cerco e até para os cavalos, mas não para infantes dispostos a se lançarem lá dentro sem parar de correr. Nenhum de seus companheiros hesitou, quando se tratou de descer o declive, embora o ímpeto da corrida desequilibrasse alguns, que rolaram até o fundo, expondo-se aos dardos arremessados dos espaldões.

Em breve, o fosso se encheu de feridos, de cadáveres e de dardos espetados no terreno. Muitos foram mortos pelos próprios compa­nheiros, os quais não puderam evitar passar por cima deles para tomar impulso e alcançar o aclive que levava à base da muralha. O próprio Ricardo, deslocando-se para se esquivar da queda de um companheiro atingido por um dardo, ouviu um berro sufocado embaixo de si; com o calcanhar, acabara de despedaçar o osso do pescoço de um soldado que jazia com uma flecha na perna.

Não se deteve para refletir sobre o que havia provocado involuntariamente, a fim de não expor um alvo fixo aos arqueiros distribuídos sobre os espaldões. Repôs o escudo acima do elmo e procurou segurar uma extremidade da escada que os companheiros tentavam içar ao longo do aclive. Quando ele finalmente conseguiu firmá-la nas mãos, a escada se estabilizou e, junto com os outros, Ricardo iniciou a subida.

Agora, apresentava-se outro problema. No alto do aclive, na base da muralha externa, os defensores haviam instalado espontões de madeira, tão próximos entre si que era impossível encontrar um vão, sobretudo com a escada.

Um soldado tentou entrar com ímpeto entre duas estacas, com o flanco voltado para a muralha. Não calculou bem a distância e viu-se com a coxa rasgada por uma ponteira; ainda por cima, ao per­manecer imóvel no lugar, expôs-se à chuva de projéteis. Desabou sem vida sobre os espontões, tornando-se um obstáculo ao avanço dos companheiros.

Outro experimentou passar cautelosamente entre os postes pon­tiagudos. Evitou o risco de ser perfurado pelas estacas, mas, como se movia muito devagar, não o de ser atingido pelas flechas.

Urgia ter uma idéia, pensou Ricardo.

Firuz havia empunhado o arco e possibilitado que o comandante admirasse também sua habilidade no tiro, nem um pouco afetada pela sua deficiência. De fato, o turco havia encaixado uma prótese de madeira no braço desprovido de mão. O artefato terminava com uma ranhura, que Firuz utilizou para firmar o fuste do arco, enquanto, com a mão direita, retesava a corda.

Jamal o observou enquanto ele encaixava a flecha, debruçava-se das ameias, olhava para baixo e disparava. Várias vezes. Fazia isso com extraordinária freqüência para um homem daquela idade, e com uma precisão espantosa. Não parecia lançar os dardos no aglo­merado de soldados, mas sim dirigi-los para um alvo bem preciso, já que eles acabavam regularmente cravando-se nos francos.

Agora, os inimigos se amontoavam no fosso. A extraordinária altura das muralhas de Jerusalém fazia-os parecer bem pequeninos, muitas miniaturas de escudos que pareciam voltear no ar sem um apoio, mas com os dardos cravados na parte externa como hastes de trigo. O terreno, sobretudo no centro do fosso, mostrava-se cheio de cadáveres, amontoados uns sobre os outros numa cova comum na qual a poeira se misturava ao sangue, criando uma lama escura que recobria os corpos.

Os gritos de dor dos feridos misturavam-se aos de encorajamen­to e de exaltação daqueles que se lançavam contra a barreira de espontões. Alguns já estavam superando-a, e viam-se escadas apoia­das à muralha. Jamal se voltou e conferiu se estavam bem acesos todos os fogos que ardiam sob os caldeirões de óleo. Depois, antes mesmo de dar a ordem a Firuz, viu que este colocava o arco a tira­colo e agarrava uma das varas anti-escada apoiadas no chão.

O pequeno pelotão de bizantinos enfileirados em testudo conseguiu manter uma aparência de coesão, mesmo quando desceu o declive do fosso. Já embaixo, Emanuel se voltou para olhar, cuidando sem­pre de manter o escudo sobre a cabeça. Os espaços deixados duran­te a descida haviam lhe custado mais um soldado, que jazia sentado no declive segurando a coxa perfurada por um dardo e esquecendo que devia se cobrir. O comandante sequer tivera tempo de imaginar um modo de protegê-lo quando o viu ser novamente atingido, desta vez no pescoço, para em seguida estatelar-se no chão e rolar até o fundo, juntando-se aos outros cadáveres.

Logo atrás, viu afluírem dezenas de francos, encorajados pela coesão que aquele grupinho de gregos demonstrava. Muitos se enfileiraram na retaguarda de seus subordinados, esperando que aqueles seis se sacrificassem para instalar a escada. Tentou expulsar da mente a desagradável sensação de que os ocidentais se aproveitavam da coragem e da eficiência de seu grupo e começou a pensar na barrei­ra de espontões.

— Façam como eu! — gritou aos seus, após refletir um instante. Depois subiu até as estacas e, com uma série de cutiladas, despe­daçou-as. Os subordinados fizeram o mesmo, e em poucos instantes liberaram um trecho suficiente para fazer passar a escada e encostá-la à muralha. Enquanto isso, vinham chegando com escadas outros francos, alguns dos quais abriam caminho entre os espontões imi­tando Emanuel.

O comandante grego pretendia ser o primeiro a subir, e para isso esperou que o artefato ficasse estável sobre o terreno. Mas dois dos seus se anteciparam: ele não saberia dizer se pelo ímpeto ou se para proteger seu chefe. Logo atrás, os latinos pressionavam, igualmente ansiosos por subir, ao passo que os mais recuados, pouco dispostos a esperar sua vez expondo-se imóveis ao tiro inimigo, deslocavam-se para uma escada vizinha.

Emanuel estava no meio da subida quando ouviu os soldados que o precediam gritarem de maneira lancinante. Quase de imedia­to, sentiu esguichos de líquido fervente respingarem em seu rosto e em suas mãos. Os dois subordinados perderam o equilíbrio e caíram para trás, resvalando nele antes de se precipitarem no solo. O oficial agüentou o choque agarrando-se à escada com toda a força, e em seguida percebeu estar exposto de frente à série de merlões lá no alto.

Sabia que precisava chegar ao cimo antes que os egípcios tives­sem tempo de jogar sobre ele outro caldeirão de óleo. Empenhou-se em escalar com toda a agilidade de que era capaz, esperando que quem o seguia fizesse o mesmo. Nas ameias entre os merlões, debruçaram-se dois rostos escuros envoltos em turbantes brancos, acima dos quais ondulavam as maças destinadas a baixar sobre o pri­meiro assaltante que alcançasse o topo.

— Joguem a escada sobre as estacas! — gritou Ricardo aos soldados que a seguravam junto com ele. Os homens o fitaram sem entender ou, se entenderam, consideraram absurda sua exortação.

— Joguem-na para a frente, estou mandando! — repetiu e, para expressar melhor sua idéia, deu o primeiro impulso. Empurrado pelo normando, o artefato aterrissou justamente sobre as pontas das estacas; disso resultou uma espécie de pedestal ao longo da base das muralhas.

— Empilhem o máximo de corpos que puderem! — gritou de novo Ricardo. Deteve-se apenas um instante para refletir que havia sido justamente ele a favorecer semelhante barbárie. Mas logo se recuperou e deu o exemplo, arrastando o cadáver que estava sob seus pés para o aclive abaixo da muralha. Os outros o imitaram; embora alguns caíssem vítimas das flechas, elevando as pilhas de corpos, logo se criou uma rampa macabra que preenchia um amplo setor do fosso, permitindo o acesso ao pedestal constituído por escada e espontões.

Como Ricardo havia previsto, muitos soldados perceberam que naquele ponto era mais fácil ultrapassar o fosso, e não hesitaram em valer-se da rampa e da passarela para alcançar a base da muralha. Em pouco tempo, um amplo setor do circuito foi acometido por uma série de escadas, pelas quais os soldados começaram a subir de maneira caótica.

Ricardo também tentou fazer isso, mas um companheiro parti­cularmente zeloso, gritando como louco, empurrou-o quando ele já se encontrava no primeiro degrau. Depois, o normando não conse­guiu espaço na aglomeração que se formara na base da escada. Quando já não se via um só degrau livre, o artefato começou a osci­lar por alguns instantes até cair para trás, precipitando ao solo os que subiam e esmagando os que estavam embaixo. Ricardo olhou para cima e viu que a causa dessa derrubada havia sido uma vara com ganchos, a qual ainda se projetava das ameias.

Logo em seguida debruçaram-se outros arqueiros, e uma nova chuva de flechas o obrigou a se proteger sob o escudo, enquanto ten­tava alcançar outra escada. Topou com um grupo de sapadores que, munidos de pás e enxadas, escavavam com fúria a base da muralha, protegidos precariamente por outros soldados que soerguiam uma tábua, à maneira de cobertura. Os esforços deles lhe pareceram deci­didamente patéticos, diante do tamanho imponente das muralhas e da chuva de flechas que os investia, mas depois notou que havia luz na cavidade, ao longo da camada inferior da primeira linha de blo­cos de pedra, e compreendeu que havia alguma possibilidade de solapar os alicerces.

Por alguns instantes, deteve-se para refletir sobre a escolha a fazer. Substituir um dos soldados feridos e tentar entrar por baixo, ou alcançar a escada e experimentar subir?

Em ambos os casos, as probabilidades de morrer eram enormemente superiores às de chegar ao outro lado.

Quando as primeiras escadas foram apoiadas ao longo das muralhas, Inês e Anselmo finalmente puderam entender alguma coisa do desenvolvimento do assalto. De fato, só então os soldados emergi­ram da nuvem de poeira que, de longe, escondera-os dos civis que permaneceram na retaguarda. No mesmo instante, porém, os feri­dos começaram a voltar, trazidos nos braços de companheiros que estavam em condições só um pouco melhores que as deles.

Ao verem que Inês tinha água, ataduras e substâncias medicinais, amontoavam-se bem à sua frente, invocando um rápido curativo nos ferimentos, à espera do médico. A mulher preferiria acompa­nhar o combate, mas a insistência dos feridos a obrigou a se debru­çar sobre eles e a prestar assistência.

Os gemidos de um homem com a perna queimada lhe impuseram uma rápida escolha do remédio a adotar para aliviar a dor dele. Depois de derramar delicadamente um pouco d'água sobre a chaga, Inês observou com atenção os recipientes que o médico lhe dera. Conhecia bem as compressas de sanícula, uma erva que no passado ela usara com freqüência em ferimentos. Mas sabia poder dispor, neste caso, também de um preparado de cim... cimbalária, pareceu-lhe recordar, específico para queimaduras.

Esforçou-se por recapitular. O frasco com a cruz verde continha pelargônio, hemostático. O de cruz branca, lúzula, para ferimentos em geral. A cruz amarela indicava a alquemila, cicatrizante. A azul, óleo de aquiléia, outro hemostático. Por fim, acreditou identificar aquilo de que necessitava num frasco assinalado por uma cruz ver­melha. Pingou algumas gotas num pedaço de pano e começou a passá-lo suavemente sobre a chaga. Mas a cada instante levantava a cabeça, procurando observar o que acontecia ao longo do circuito de muralhas. Com o passar do tempo, foi prestando menos atenção à intensidade de seu toque.

De leve, sua puta feia! — gritou o paciente.

Ninguém nunca me chamou de feia! — respondeu ela com um sorriso irônico, finalmente atentando mais para o que fazia.

Sem dúvida você não presta um serviço ao Senhor, tratando tão mal quem precisa de cuidados! Concentre-se no que está fazen­do! — gritou-lhe Anselmo, que, ao contrário, acompanhava com extremo interesse o espetáculo ao longo das muralhas.

Pelo menos me conte o que está acontecendo! — exclamou Inês, desalentada.

O quê? Ah, sim — murmurou Anselmo, como se retornasse de um estado de catalepsia. — Bem, o que você quer que eu diga? Agora, são muitas as escadas apoiadas às muralhas, mas também vejo várias sendo empurradas para trás. Em dois setores, os soldados de Cristo conseguiram alcançar os espaldões. Estão combatendo encarniçadamente, sem dúvida impelidos pela força do Senhor, cir­cundados e agredidos por dúzias de inimigos...

E o que mais? E o que mais? — incitou-o a mulher, ávida por descrições. Quase não deu importância à chegada do médico, que se encarregou do primeiro paciente e lhe passou outro.

Anselmo demorou ainda um pouco para responder.

Nos que estão nas escadas, o inimigo lança um líquido, talvez óleo fervente. Vejo muitos caírem, mas outros os substituem e reco­meçam a subir. Ninguém parece ter medo. Se isso não for o estímu­lo do Senhor, não vejo o que pode dar a eles tanta coragem! — excla­mou, admirado. — Pronto! Agora, os defensores não sabem se enfrentam os que sobem pela direita ou os que sobem pela esquerda. Finalmente, os infiéis também despencam dos espaldões. Os nossos estão abrindo caminho entre os merlões, mantendo os muçulmanos ocupados e permitindo que os outros subam! Conseguimos! Conse­guimos!

Inês se deixou contagiar pelo entusiasmo do monge. Levantou-se, abandonando sem grandes cuidados um outro ferido que o médi­co lhe entregara para que ela tamponasse a hemorragia após a extra­ção de uma flecha. Por alguns instantes, viu o espetáculo descrito por Anselmo, mas depois os lamentos do ferido e os protestos do doutor induziram-na a retomar o trabalho.

Mas não pretendia renunciar à crônica da batalha:

Não se atreva a parar de contar! — disse ao monge, no tom mais ameaçador que conseguiu adotar. — ... Do contrário, de mim você não recebe nem mais um soldo para seus pobres!

Emanuel viu dois defensores girarem as maças denteadas fora dos merlões, em busca de sua cabeça. Ele, porém, tinha um plano, embo­ra limitado por aquelas condições. Subiu mais uns degraus, detendo- se pouco antes do topo, mas dando aos defensores a impressão de estar ao alcance das maças. De fato, ambos desfecharam o golpe. Ao mesmo tempo, Emanuel relaxou de repente a preensão com que se segurava à escada; um instante depois, solto no ar, agarrou o degrau inferior, descendo também.

Como previra, os muçulmanos toparam com o vazio, desequilibrando-se e abrindo a guarda. Imediatamente, Emanuel subiu de novo e desferiu uma dupla cutilada para um lado e para outro, ferin­do os dois no pescoço. As duas figuras se separaram como as meta­des de uma maçã e diante do grego abriu-se um vão, do qual ele se aproveitou para saltar logo sobre as ameias e aterrissar nos espal­dões. Na mesma hora, outros soldados o seguiram.

Mal conseguira se estabilizar quando um árabe o defrontou. Ou melhor, devia ser um núbio, pensou Emanuel, porque apresentava a pele escura como aqueles que ele havia eliminado pouco antes. Também este empunhava uma maça, girando-a acima da própria cabeça. Se pretendia atemorizá-lo, bem, tinha conseguido. O grego ficou na defensiva, esperando o golpe e tratando de esconder o máximo do corpo atrás do escudo.

A maça desceu afinal, num movimento mortífero. Mas o impac­to aconteceu justamente sobre o umbo do escudo: a forma deste, em cúpula, preservou-o da ruptura e de eventuais conseqüências no braço de Emanuel.

Era o momento de contra-atacar. O grego não perdeu tempo e logo desfechou uma cutilada, que partiu de baixo para a esquerda, em diagonal, e cortou a mão que empunhava a arma. A essa altura, bastou-lhe empurrar para o solo o que restava do adversário, mas a queda deste não fez mais do que revelar um novo inimigo, prestes a enfrentá-lo. Por sorte, agora eram numerosos os francos sobre os espaldões, e ele não corria o risco de ser atacado por muitos muçul­manos.

Para sua grande surpresa, o guerreiro que estava à sua frente lhe pareceu um turco — mas estes não haviam sido expulsos um ano antes? —, a julgar pelos trajes: um colete lamelar, provavelmente em chifre, que começava pouco acima dos peitorais e terminava na cin­tura, e uma malha de ferro que partia do elmo e descia ao redor do pescoço. O escudo era redondo, e não amendoado, talvez porque se tratava de um cavaleiro.

Emanuel cruzou sua lâmina com a do muçulmano, que já se aproximara bastante. Enquanto os dois empurravam as espadas uma contra a outra, na tentativa recíproca de se repelir, notou que tam­bém os traços, ásperos e duros, eram mais semelhantes aos de um turco do que às linhas suaves e bem-cuidadas do rosto de um árabe.

Ásperos demais.

Duros demais.

Lembravam-lhe os de um seljúcida que ele conhecera muito, muito tempo antes.

Não teve tempo de tirar conclusões. O adversário o empurrou para trás e em seguida se lançou contra ele, aproveitando-se de seu desequilíbrio. Vendo-se sobrepujado pelo inimigo, que já lhe desfe­ria golpes com a cimitarra, Emanuel não pôde senão apará-los ou evitá-los, deslocando-se com toda a agilidade de que dispunha.

Não conseguia passar ao contra-ataque. O outro se mostrava forte como um boi; além disso, a dúvida de que ele fosse justamente o turco que havia conhecido na campanha de Manzikert o constran­gia, limitando sua combatividade.

Como diabos se chamava? Devia se lembrar, se quisesse deter aquela fúria.

Outra cutilada lhe chegou sobre o escudo, com uma força que o fez cair no chão.

Estava à mercê do turco. Este se preparou para desferir o golpe definitivo. Emanuel o viu empunhar a cimitarra com as duas mãos e erguê-la acima da cabeça. Sentiu-se perdido.

"Firuz...", pensou.

— Firuz! — gritou, e o berro lhe saiu tão fraco que ele temeu não ser ouvido.

Mas o outro havia escutado.

Emanuel o viu se deter de repente e procurar seu olhar. Por um instante, os dois se encararam, e o primeiro percebeu que o segundo também o reconhecera, finalmente.

O grego não lhe deu tempo de fazer mais nada. Rolou para dian­te, rumo à rampa de acesso aos espaldões, e desceu-a em tal veloci­dade que se arriscou a cair. Quando se viu lá embaixo, deu mais uns passos de corrida, na direção da segunda muralha. Depois se voltou. Outros cristãos o imitavam, e alguns até haviam conseguido levar consigo as escadas.

Olhou para cima, procurando Firuz, e o viu lutar contra três adversários.

Chuva de dardos. Aliás, previsível ali embaixo, na base das mura­lhas. Ricardo estava certo de que seu escudo, suspenso acima da cabeça, já se parecia com o lombo de um porco-espinho. Esperava que os defensores, ocupados com os assaltantes nas escadas, não con­seguissem lançar fogo ou óleo fervente em cima dele. Esperava que a tábua que protegia os sapadores ocultasse os progressos de seus com­panheiros. Esperava que os muçulmanos não considerassem os esforços deles tão ameaçadores a ponto de justificar um empenho maior em eliminá-los.

Em vez disso, porém, ali embaixo o trabalho prosseguia. E pros­seguia bem. O amplo buraco escavado sob a camada inferior dos blocos de pedra, na base da muralha, finalmente permitiu que os sapadores removessem o amontoado de rochas disseminado sob a barreira, substituindo-o por achas de lenha à maneira de escoras. O risco era o de ver alguém surgir dali de baixo, mas Ricardo duvida­va que, dentro da cidade, os soldados atentassem para alguma coisa que não se referisse ao que acontecia sobre os espaldões.

Após escavarem os alicerces, chegou o momento de atear fogo à estrutura. Então todos se entreolharam, esperando que alguém se oferecesse para ir procurar material combustível. Quem se decidiu foi Ricardo, que retrocedeu em busca de um dos projéteis incendiários lançados pelos defensores. "E improvável", pensou, para se encorajar, "que os muçulmanos ainda se preocupem com o que acontece abaixo e fora das muralhas. Certamente, não estarei corren­do riscos."

Olhou para o alto, e viu que de fato os defensores estavam todos empenhados no corpo a corpo sobre os espaldões. Alguns cristãos até puxavam a escada para cima, a fim de usá-la contra o segundo circuito de muralhas.

Ricardo não teve dificuldade de encontrar o que buscava. No escudo subtraído a um morto, recolheu umas brasas caídas de um recipiente quebrado e retornou, levando-as equilibradas sobre um braço, enquanto, com o outro, continuava protegendo a cabeça.

Os companheiros acompanharam apreensivos os seus movimen­tos, até que ele os alcançou. Jogou as brasas na base das escoras, as quais, graças aos sopros dos sapadores, em poucos instantes foram envolvidas pelas chamas. Os soldados se afastaram, sempre cuidan­do de se abrigarem sob a tábua que os cobria. Ao lado, outros cris­tãos continuavam subindo, mas alguns perceberam o que eles esta­vam fazendo e se detiveram para aproveitar aquela oportunidade.

Finalmente, a estrutura cedeu. Só então os blocos de pedra que se apoiavam nela começaram a se deslocar, para em seguida desabar com fragor, amontoando-se numa pilha incoerente que, apenas um minuto antes, havia feito parte de uma das muralhas mais imponen­tes do mundo conhecido.

Os cruzados exultaram, embora a poeira levantada pelo desaba­mento os impedisse de ver a brecha. Os mais próximos, contudo, não esperaram que a nuvem se dispersasse e se lançaram ao assalto da passagem, aos gritos de "Deus o quer!". Por alguns instantes ainda, Ricardo permaneceu contemplando o resultado de seu traba­lho, vendo diversos soldados desaparecerem na poeira, antes de, por sua vez, subir o aclive do pequeno e irregular monte de pedras que se criara.

Escalou-o com a ajuda das mãos, mantendo os olhos e a boca fechados para se defender dos detritos que ainda flutuavam no ar. Descobriu-se gritando também "Deus o quer!", mas logo o percebeu e se impôs o silêncio. A última vez em que havia glorificado a Deus tinha sido muito, muito tempo atrás, e nunca, nem mesmo nos momentos mais empolgantes ou nos mais deprimentes da campanha na Ásia, havia deixado de lado seu ceticismo habitual; nunca se dei­xara envolver pelo delírio coletivo.

Mas agora estava entrando em Jerusalém, e isso tinha um signifi­cado, até para ele. Ao menos do ponto de vista militar, como cúmulo de seus esforços para ser um bom combatente, e talvez como início de uma carreira que lhe proporcionasse o reconhecimento também dos outros guerreiros.

Emergiu da nuvem de poeira. Estava no alto do entulho, e embaixo, diante de si, vislumbrou os confrontos entre seus compa­nheiros e os primeiros adversários que haviam acorrido para tentar vedar a brecha. Virou-se, e atrás viu chegarem muitos outros com­panheiros, inclusive a cavalo, atraídos pela possibilidade de entrar na cidade sem precisar transpor a muralha.

Do interior, os egípcios continuavam afluindo, por enquanto em número superior ao dos cristãos. Ricardo decidiu não se arriscar a uma entorse, se descesse. Preferiu jogar-se em cima de um dos inimi­gos mais próximos, sobre o qual aterrissou fazendo-o bater no chão a cabeça protegida apenas pelo turbante. O muçulmano parecia fora de combate, mas, para evitar equívocos, o normando lhe cortou a garganta. Depois, levantou-se e enfrentou um novo adversário. Ou melhor, dois: ao primeiro, que envergava uma longa túnica branca acolchoada e empunhava uma espécie de alabarda, com um minús­culo escudo redondo preso ao braço, acrescentara-se um segundo soldado, mais couraçado, com um elmo envolto por um turbante, uma cota de malha de ferro e, por cima, uma armadura lamelar de couro e finalmente uma espécie de túnica sem mangas recobrindo- lhe o torso. Empunhava uma lança comprida, enquanto no outro braço trazia um amplo escudo redondo.

Atrás dos dois muçulmanos, o caminho para a segunda muralha parecia aberto. Com isso, Ricardo teve forças para enfrentá-los com uma fúria que os deixou atônitos. Perfurou em pleno peito aquele menos armado, antes mesmo que ele tratasse de se proteger com o pequeno escudo.

O outro se pôs em alerta e atacou de lança, mas sem atingir o alvo. Ricardo tentou cortar a haste com uma cutilada, mas pegou-a só de raspão, e o inimigo se reposicionou. O comprimento maior da arma dava ao muçulmano uma nítida vantagem, da qual ele procurou des­frutar. Ricardo não renunciou à idéia de neutralizar a lança e, na segunda investida do inimigo, esquivou-se para que a ponta se chocasse contra seu escudo e resvalasse de lado, dando-lhe a oportunidade de desferir um golpe de talho. A haste não se quebrou, mas o impacto fez cair a arma da mão do árabe, que se apressou a puxar a cimitarra.

As duas lâminas se impactaram, uma, duas, muitas vezes, antes de Ricardo conseguir superar o outro em rapidez, atingindo-o no ombro. Mas o único efeito que obteve foi o de desencaixar uma placa de couro da proteção dele. No contra-ataque, o egípcio ergueu à altura de seu rosto uma cutilada horizontal destinada a cortar-lhe a cabeça rente ao pescoço. O normando teve tempo de se abaixar, mas não foi suficientemente ágil para evitar que a lâmina da cimitar­ra lhe atingisse o elmo. Este rolou para longe, deixando-o atordoa­do por um instante.

Para sua sorte, enquanto ele ainda estava pouco reativo, o instin­to de sobrevivência lhe sugeriu levar o escudo à frente, e isso lhe per­mitiu aparar o golpe seguinte, que o árabe desfechou praticamente sem possibilidade de erro. Superado o instante de confusão, Ricardo recomeçou a girar a espada, buscando desesperadamente o ataque decisivo.

Golpeou várias vezes o escudo do egípcio até conseguir rachá-lo em dois. Finalmente, a lâmina de Ricardo encontrou campo livre para acometer o adversário e o feriu sob a axila esquerda.

Ele olhou ao redor. Alguns cruzados estavam bloqueados por opositores tenazes, mas outros já se lançavam ao assalto da segunda linha de muralhas, além da qual ficava a área habitada. Podia dar uma ajuda aos companheiros em torno do entulho da brecha ou, então, prosseguir rumo à muralha para ser um dos primeiros a ten­tar transpô-la.

A primeira linha de muralhas parecia agora impossível de defender, pensou Jamal. Mesmo que seus homens conseguissem repelir os francos que haviam alcançado os espaldões, não havia como refrear os que entravam por baixo, através da brecha recém-aberta. Em sua cimitarra havia sangue de pelo menos três inimigos, mas, se não achasse um modo de chegar ao segundo circuito, logo se veria rodea­do pelos infiéis e condenado a morrer nos espaldões.

Olhou a torre à sua esquerda, da qual partia a passarela para as muralhas recuadas. Estava próxima. Mas, com três francos recém-surgidos das ameias, era como se ela ficasse do outro lado da cidade. Pensou em pedir ajuda a um subordinado, mas não havia nenhum deles livre da pressão adversária, de modo que decidiu enfrentá-los sozinho. Tentou descobrir vantagens na situação, e concluiu que dois dos três adversários estavam equipados à ligeira, desprovidos de pro­teções corporais e de escudos; um deles, cujo rosto se escondia sob as melhor, dois: ao primeiro, que envergava uma longa túnica branca acolchoada e empunhava uma espécie de alabarda, com um minús­culo escudo redondo preso ao braço, acrescentara-se um segundo soldado, mais couraçado, com um elmo envolto por um turbante, uma cota de malha de ferro e, por cima, uma armadura lamelar de couro e finalmente uma espécie de túnica sem mangas recobrindo- lhe o torso. Empunhava uma lança comprida, enquanto no outro braço trazia um amplo escudo redondo.

Atrás dos dois muçulmanos, o caminho para a segunda muralha parecia aberto. Com isso, Ricardo teve forças para enfrentá-los com uma fúria que os deixou atônitos. Perfurou em pleno peito aquele menos armado, antes mesmo que ele tratasse de se proteger com o pequeno escudo.

O outro se pôs em alerta e atacou de lança, mas sem atingir o alvo. Ricardo tentou cortar a haste com uma cutilada, mas pegou-a só de raspão, e o inimigo se reposicionou. O comprimento maior da arma dava ao muçulmano uma nítida vantagem, da qual ele procurou des­frutar. Ricardo não renunciou à idéia de neutralizar a lança e, na segunda investida do inimigo, esquivou-se para que a ponta se chocasse contra seu escudo e resvalasse de lado, dando-lhe a oportunidade de desferir um golpe de talho. A haste não se quebrou, mas o impacto fez cair a arma da mão do árabe, que se apressou a puxar a cimitarra.

As duas lâminas se impactaram, uma, duas, muitas vezes, antes de Ricardo conseguir superar o outro em rapidez, atingindo-o no ombro. Mas o único efeito que obteve foi o de desencaixar uma placa de couro da proteção dele. No contra-ataque, o egípcio ergueu à altura de seu rosto uma cutilada horizontal destinada a cortar-lhe a cabeça rente ao pescoço. O normando teve tempo de se abaixar, mas não foi suficientemente ágil para evitar que a lâmina da cimitar­ra lhe atingisse o elmo. Este rolou para longe, deixando-o atordoa­do por um instante.

Para sua sorte, enquanto ele ainda estava pouco reativo, o instin­to de sobrevivência lhe sugeriu levar o escudo à frente, e isso lhe per­mitiu aparar o golpe seguinte, que o árabe desfechou praticamente sem possibilidade de erro. Superado o instante de confusão, Ricardo recomeçou a girar a espada, buscando desesperadamente o ataque decisivo.

Golpeou várias vezes o escudo do egípcio até conseguir rachá-lo em dois. Finalmente, a lâmina de Ricardo encontrou campo livre para acometer o adversário e o feriu sob a axila esquerda.

Ele olhou ao redor. Alguns cruzados estavam bloqueados por opositores tenazes, mas outros já se lançavam ao assalto da segunda linha de muralhas, além da qual ficava a área habitada. Podia dar uma ajuda aos companheiros em torno do entulho da brecha ou, então, prosseguir rumo à muralha para ser um dos primeiros a ten­tar transpô-la.

A primeira linha de muralhas parecia agora impossível de defender, pensou Jamal. Mesmo que seus homens conseguissem repelir os francos que haviam alcançado os espaldões, não havia como refrear os que entravam por baixo, através da brecha recém-aberta. Em sua cimitarra havia sangue de pelo menos três inimigos, mas, se não achasse um modo de chegar ao segundo circuito, logo se veria rodea­do pelos infiéis e condenado a morrer nos espaldões.

Olhou a torre à sua esquerda, da qual partia a passarela para as muralhas recuadas. Estava próxima. Mas, com três francos recém-surgidos das ameias, era como se ela ficasse do outro lado da cidade. Pensou em pedir ajuda a um subordinado, mas não havia nenhum deles livre da pressão adversária, de modo que decidiu enfrentá-los sozinho. Tentou descobrir vantagens na situação, e concluiu que dois dos três adversários estavam equipados à ligeira, desprovidos de pro­teções corporais e de escudos; um deles, cujo rosto se escondia sob as amplas abas de um chapelão, dispunha de um forcado como única arma. Por conseguinte, não os considerou especialmente perigosos.

O terceiro, porém, tinha cota de malha, elmo e escudo triangu­lar. Estava ao lado da cimitarra de Jamal, e este o atacou procuran­do, ao mesmo tempo, com o escudo, manter afastados os outros dois. Mas logo percebeu que havia subestimado a ameaça represen­tada pelo forcado. Enquanto cruzava a própria cimitarra com o infante pesado, o emir se sentiu espetar duas vezes pela longa arma daquele que lhe parecera um camponês. As três pontas do forcado não faziam grande efeito sobre seu couraçamento, dotado de uma armadura lamelar de couro e chifre sobreposta à malha de ferro, mas contribuía para desequilibrá-lo a cada impacto, tornando-o mais vulnerável aos ataques do mais perigoso dos três.

Tinha de colocar entre si e este último os dois infantes armados à ligeira. Deslocou-se até o parapeito interno e, com um movimen­to repentino, achou-se diante do combatente que lhe parecia mais desprovido: viu que ele segurava a espada como se esta fosse uma enxada. Foi fácil fazer valer seu peso maior empurrando-o com o ombro, para situar-se bem junto ao parapeito, com o desprovido ao lado e o que trazia o forcado na frente. O terceiro, aquele pesada­mente armado, estava agora mais atrás, junto à série de merlões que dava para o exterior.

Após uma certa hesitação, os dois camponeses lhe caíram em cima. O emir agiu fulminantemente: evitou a investida do forcado afastando-se para a esquerda e, tendo desarmado o adversário menos difícil com um golpe de talho do escudo, atacou-o de cabeça baixa e, com a ponteira do próprio elmo, perfurou-lhe o peito, pro­tegido apenas pelo camisão. Ao mesmo tempo, sua cimitarra partiu o cabo do forcado do outro.

O homem ferido levou as mãos ao peito e, com expressão incré­dula, deixou-se cair além do parapeito, enquanto o outro agarrava com as duas mãos o que lhe restava do forcado e tentava atingir Jamal na cabeça: um gesto desesperado, que expôs seu tronco à cimi­tarra do emir. Este o transfixou e depois empurrou o corpo inanimado para cima do infante pesado, retardando-lhe o avanço, enquanto ele mesmo se deslocava rumo à torre.

Conseguiu chegar aos degraus pouco antes de perceber atrás de si o perseguidor. Virou-se, em equilíbrio precário, e começou a duelar com o franco de uma posição mais alta, conquanto menos estável. Com o escudo, aparou a saraivada de golpes desfechados pelo adver­sário; compreendeu que este era propenso a desperdiçar energias e limitou-se a se defender, subindo de vez em quando um degrau para alcançar a plataforma e ficar não somente mais alto em relação a ele como também numa superfície mais cômoda, invertendo as condi­ções iniciais.

O outro continuou a cobri-lo de golpes, subindo por sua vez os degraus, até que Jamal finalmente chegou à plataforma. Só então se deteve e, aproveitando o ímpeto do franco, surpreendeu-o com a guarda aberta. Desfechou o golpe, o primeiro, e foi definitivo. Feriu-o no ombro, mas o impacto desequilibrou o cristão, que despencou desastrosamente escada abaixo. O emir o viu imóvel nos degraus inferiores e, sem verificar se ele estava vivo ou morto, tratou de se retirar antes que sobreviessem os outros.

Alcançou a passarela que ligava as duas linhas de muralhas, já apinhada de árabes em retirada. Enquanto a percorria, lançou um olhar ao redor, em busca de Firuz. Na última vez em que o vira, o turco estava às voltas com pelo menos três adversários sobre os espaldões, e Jamal duvidava que os tivesse vencido. Depois, porém, recordou que ele mesmo se encontrara em igual situação e consegui­ra se livrar. Se havia alguém que podia até fazer melhor era justa­mente aquele seljúcida...

Notou que muitos francos já partiam para o assalto à segunda linha de muralhas. Pareceu-lhe absurdo que eles tivessem consegui­do arrombar a primeira em poucas horas. Os fatímidas detinham todas as vantagens: uma guarnição numerosa, máquinas de lança­mento, copiosas provisões e reservas. O governador não desprezara nenhuma medida para deixar os sitiantes numa situação de descon­forto, subtraindo-lhes todos os recursos disponíveis na área. Além disso, os infiéis haviam chegado diante de Jerusalém desprovidos de máquinas de assédio, com escassos meios de sustento, levando con­sigo velhos, mulheres e crianças, e alguns de seus cavaleiros monta­vam bois, em vez de cavalos. Ao longo do caminho, tinham perdido muitas unidades de seu exército, e não estavam em número suficien­te para rodear sequer a metade do circuito de muralhas.

No entanto, haviam ultrapassado a barreira externa. Pareciam uns endemoniados, sem consciência do perigo e, por conseguinte, capazes de qualquer coisa. Isso os tornava extremamente perigosos: mas Alá não podia permitir que conquistassem tão facilmente a Santa, logo eles que, somente poucos meses antes, haviam expugnado Ma'rrat an-Nu'man executando ao longo de três dias chacinas inauditas, massacrando mulheres, crianças, inócuos estudiosos e velhos, levando destruição a toda parte. Não, Ele não podia permi­tir que os infiéis entrassem em Jerusalém e ali descarregassem a mesma ferocidade selvagem e bárbara.

"O Deus, se meus homens perecerem hoje, Tu não mais encon- trarás quem Te adore!", gritou voltando-se para o céu, como havia gritado o Profeta durante a carnificina de Badr.

 

Agora, os rumores da batalha estavam mais próximos. Parecia até que os confrontos eram bem junto à casa delas, pouco acima do telhado. Sobre sua cabeça, Rebeca ouvia com terror o choque das armas, os gritos dos combatentes, os berros lancinantes dos feridos, os passos das botas sobre os espaldões, os baques dos soldados que se precipitavam dos adarves.

E os lamentos de Sara. Eram tão freqüentes e intensos que, mui­tas vezes, abafavam os ruídos provenientes do exterior. Rebeca pre­feriria dizer a ela que a situação estava sob controle, que os árabes estavam vigiando os francos ao longo do circuito externo das mura­lhas e que as máquinas de Jamal não permitiriam que eles chegassem aos espaldões.

Sua irmã, porém, era preguiçosa e desatenta, mas não estúpida. Sem dúvida havia compreendido que as coisas não estavam indo como o emir fizera esperar. Certamente as defesas tinham cedido, pelo menos a primeira linha, e agora, na melhor das hipóteses, a batalha se deslocara para o pátio interno entre os dois circuitos.

Rebeca foi tomada pelo desalento. Disse a si mesma que, se eles tinham ultrapassado a primeira linha, podiam também ultrapassar a segunda. E logo estariam ali. Entrariam em sua casa. Olhou para a irmã, que soluçava cobrindo o rosto com as mãos, e em seguida para os rolos, ainda abertos sobre a mesa para lhe dar a ilusão, agora des­feita, de que tudo seguia normalmente, embora a poucos passos de distância houvesse pessoas se massacrando.

Seria possível que aquele homem, que vivera mais de mil anos antes justamente ali, em Jerusalém, desse àqueles soldados a força para realizar semelhante empreendimento? Tinham-no transfor­mado em um deus, ou melhor, no mais poderoso de seus deuses, dentro de um panteão que compreendia uma versão mais banal e marginal de Yahvé, uma estranha e incompreensível entidade que era o Espírito Santo e até a mãe, Maria, de igual modo incompreensivelmente virgem.

Jamal errara ao prever uma defesa fácil, assim como errara ao dizer que todos os povos das Escrituras tinham o mesmo deus. Talvez fosse possível presumir algo assim no caso de muçulmanos e judeus, mas os cristãos tinham tomado um caminho diferente, haviam mudado as Escrituras, transformando o Tanakh no Antigo Testamento, modificando-lhe a ordem cronológica para que as pro­fecias de Malaquias viessem por último, a fim de anunciar o adven­to do Cristo, ou melhor, o retorno de Elias nas vestes de João Batista:

 

Eis que vos enviarei o profeta Elias, antes que chegue o grande e terrível dia do Senhor

 

E depois tinham acrescentado aquele seu novo testamento, que não era senão o produto do pensamento de Paulo, e não de Jesus.

Uma religião nascida sobre um equívoco, sobre um mal- entendido a respeito de outra religião, e sobre a obra de mistificação de um hebreu, transformara-se na mais sanguinária máquina de guerra que a humanidade já conhecera. Uma nova aliança entre uma divindade e um povo, a qual parecia mais forte do que a antiga aliança estipulada por Moisés com Yahvé. Uma máquina de guerra que parecia capaz de encontrá-la onde quer que ela se refugiasse, assim como de derrotar, massacrar e aniquilar quem quer que se fizesse paladino de uma crença diferente.

Rebeca sentiu que sua própria fé se abalava, enquanto sua habi­tação estremecia sob as vibrações produzidas pelos movimentos dos combatentes, cada vez mais próximos.

 

Tinha sido o Senhor a lhe dar forças, pensou Emanuel. Mas, sobre­tudo, a permitir-lhe superar incólume a primeira linha, apesar de ter sido ele um dos primeiros a enfrentar os defensores sobre os espal­dões. Cristo havia operado um milagre, fazendo-o encontrar Firuz; já era a segunda vez que aquele turco o poupava em batalha, embo­ra, nesta última circunstância, sem dúvida não se pudesse dizer que o fizera conscientemente. Devia existir um desígnio divino por trás daquele encontro, refletiu; talvez o Senhor pretendesse lhe mandar um sinal de que o perdoara pela tolice de Manzikert, permitindo-lhe entrar em Jerusalém. Com determinação renovada, saiu em busca de uma escada.

Observou ao redor, para localizar seus homens. Na confusão dos combates sobre os espaldões, todas as unidades haviam se dividido e era raro que comandantes e subordinados ainda estivessem juntos, uma vez transposta a barreira. Depois, seu olhar caiu em um dos seus, que circulava pelo pátio com um dos braços ensangüentado. Acenou para que ele fosse ao seu encontro.

— Comandante, todos os outros morreram. Só restamos nós — disse o grego, um jovem diligente e consciencioso para o qual Emanuel havia desejado uma longa carreira. — Vamos? — acrescen­tou o rapaz, apontando a segunda linha.

Emanuel fitou o corte que se abria no braço esquerdo do solda­do, balançou a cabeça e respondeu:

Eu vou. Você retorna ao acampamento para ser medicado. Não está em condições de lutar.

Estou, sim, claro! — protestou o jovem. — O braço com que seguro a espada está bom. Ainda posso matar muitos desses infiéis!

Ah, é? E a escada? Como você vai subir, com esse braço rasga­do? Vá lá para trás. E uma ordem — replicou o comandante, em tom decisivo.

O rapaz baixou a cabeça e, com tristeza, fez meia-volta. Emanuel lhe deu um tapinha de encorajamento no braço saudável e em segui­da dirigiu-se ao segundo circuito de muralhas. As escadas mais pró­ximas haviam sido tomadas de assalto por cruzados entusiasmados e ansiosos por subir, apesar das centenas de homens de turbante que surgiam das ameias com cimitarras, lanças e maças, além de todos os arcos tensionados e já em ação.

Emanuel ouviu o sibilar de dardos junto de si, mas não tratou de se proteger com o escudo. Agora, estava certo de que o Senhor não o deixaria morrer naquele dia. Depois, porém, viu serem trespassa­dos alguns francos que, tão entusiasmados quanto ele, avançavam em direção à muralha, e perguntou-se quantos daqueles estariam igualmente convencidos de ter superado a primeira linha por vonta­de celeste.

A dúvida abalou sua determinação só por um instante. Ele foi até o pé de uma escada, esperando sua vez de subir. Estava prestes a galgar o primeiro degrau quando o artefato se moveu, inclinando-se para trás. Emanuel foi obrigado a se afastar para o lado, a fim de não ser derrubado pela queda. A escada despencou, lançando ao solo seus ocupantes e esmagando os que haviam ficado embaixo. Nem todos se reergueram, e muitos dos que o fizeram foram imediata­mente abatidos por uma descarga de flechas.

Emanuel correu para pegar a escada para uma nova tentativa de subida. Inclinou-se para segurar a extremidade, soerguendo-a acima dos corpos que jaziam imóveis sob ela. Deteve-se por um instante, ao reconhecer o cadáver do soldado a quem, um instante antes, havia ordenado que se retirasse. Os olhos estavam abertos e um fio de sangue lhe escorria da boca, mas a expressão parecia serena. A expressão de quem morrera convencido de ter cumprido o próprio dever, mesmo havendo desobedecido a uma ordem.

Recuperou-se da tristeza e acabou de levantar a escada. "A mim, nada pode acontecer", disse a si mesmo.

"Não agora."

 

Ricardo não acreditava que, para auxiliá-lo, se ele viesse a se encon­trar em dificuldades, alguém renunciasse a ser o primeiro a entrar na Cidade Santa. No entanto, deteve-se perto dos entulhos e ajudou o companheiro mais próximo, perfurando no flanco o árabe com o qual o outro combatia.

Livre da pressão adversária, o companheiro escapou para a frente, enquanto ele se sentia no dever de continuar desobstruindo o caminho para o resto do exército, que vinha chegando com os comandantes.

Não por acaso, da nuvem de poeira que ainda pairava sobre a brecha emergiu pouco depois a figura de Raimundo de Toulouse, protegido por sua guarda pessoal e flanqueado pelo porta-estandarte. O caminho se apresentava praticamente livre, porque quase todos os muçulmanos estavam em retirada, já determinados a apos­tar tudo na defesa recuada ao longo da segunda linha de muralhas. Assim, o conde pôde seguir adiante, quase sem dignar-se a lançar um olhar aos poucos duelos ainda em curso em torno dos escombros.

Ricardo considerou ter feito o suficiente, e deixou que os últimos defensores fossem enfrentados pelos respectivos adversários. Correu também rumo à nova linha de defesa, já tomada de assalto por cen­tenas de cruzados. Não encontrou espaço para subir numa escada e teve de se resignar a esperar, quase imóvel, em meio ao tumulto, com o risco de ser alvejado pelos projéteis que choviam dos espal­dões. Mas o dardejamento não demorou a rarear, porque os defen­sores estavam cada vez mais empenhados em combater as irrupções no alto das muralhas.

Por enquanto, não parecia possível abrir espaço. Os árabes esta­vam bem localizados, determinados a defender a última linha de bar­reiras e, sobretudo, eram muitos. Para romper o bloqueio, pensou Ricardo, seria necessário dispor de uma escada com degraus tão lar­gos que pudessem receber ao mesmo tempo um batalhão inteiro de assaltantes. Ou então, concluiu, colocar muitas escadas, uma junto da outra. Mas, como os cristãos chegavam aos merlões um de cada vez, sem poder contar com a ajuda lateral de um companheiro, qualquer esforço de conquistar os espaldões podia ser considerado inútil.

De repente viu Emanuel, aquele bizantino com quem havia con­versado na tarde anterior. Era facilmente reconhecível, com seu equipamento tão diferente do de todos os outros combatentes. O grego já estava no topo de uma escada, e lutava como um leão para não ser derrubado. De algum modo, conseguira se ancorar solidamente ao último degrau e proteger-se com o escudo, tudo com o mesmo braço, enquanto, com o outro, desfechava cutiladas que sem­pre acertavam o alvo.

Resistia naquela posição havia um tempo incrivelmente longo. De fato, o cruzado que o seguia pouco abaixo mostrou sinais de impaciência, gritando-lhe alguma coisa, sem dúvida não um encora­jamento. Curioso — e também admirado pela coragem dele —, Ricardo continuou a observar o bizantino, que finalmente conseguiu encontrar um espaço para transpor o último degrau e firmar o pé no parapeito entre os merlões.

Mas o companheiro que o seguia, com um gesto grosseiro de irritação, não esperou um instante e subiu por sua vez, acabando por chocar seu elmo contra as canelas de Emanuel. O bizantino tentou se manter de pé, mas se expôs à lança de um defensor. Ricardo viu o grego precipitar-se lá embaixo, em cima da multidão de soldados, muitos dos quais brandiam espadas e lanças com as pontas voltadas para o alto. Foi engolido num instante. Se não morrera no impacto, pensou Ricardo, devia ter acabado trespassado por alguma cúspide, ou então pisoteado e sufocado pelos companheiros, que sem dúvida não teriam dedicado grandes atenções a um bizantino.

Fez um gesto de aborrecimento. Emanuel era um valente, e sequer lhe parecera um dos muitos exaltados que, uma vez na Terra Santa, haviam agido sem freios inibidores, na convicção de serem justificados em tudo pela fé: uma fé que, às vezes, parecera a Ricardo apenas um pretexto para desencadear toda a sordidez e bestialidade que um ser humano era obrigado a reprimir na vida cotidiana, regu­lada pela justiça e pelo contexto social.

Ricardo também estava ali por interesse, mais do que por um Deus que lhe parecia distante, distante demais para que ele se con­vencesse de Sua existência. Estava ali para se redimir, para fazer car­reira no exército e demonstrar a si mesmo que era sem dúvida um guerreiro de verdade. Mas, apesar de seu ceticismo, às vezes se con­siderava mais zeloso pela causa do Senhor do que todos aqueles que gritavam como alucinados: "Deus o quer!", e depois agiam impeli­dos pela avidez de posse e pela embriaguez de exercer um poder efêmero sobre os mais fracos.

Vieram-lhe à mente os massacres que, a contragosto, havia com­partilhado no caminho do Oriente com o conde Emich, as roubalheiras e os estupros em detrimento dos judeus, que mais tarde vira repetidos, nas mesmas modalidades, também na Terra Santa em detrimento dos muçulmanos, e até dos cristãos ortodoxos submeti­dos aos turcos.

Desejou não ser inferior àquele grego e abriu caminho a golpes de ombro entre os companheiros, a fim de chegar às escadas. Alcançou uma e começou a subir. Não deu ouvidos aos protestos dos companheiros dos quais havia ocupado o lugar, e empurrou aquele que o precedia para que acelerasse a subida.

Nos instantes seguintes, viu caírem um após outro os que estavam acima dele, até que chegou a um passo do topo, ocupado por mais um soldado. Em seguida ouviu gritos de dor, e compreendeu que nem mesmo aquele tinha conseguido, até porque lhe caiu em cima um instante depois.

Tentou absorver o impacto e sustentar o corpo inanimado com a cabeça e o escudo, valendo-se dele como proteção. Quando sentiu um mínimo de estabilidade, recomeçou a subir. Deixou que reta­lhassem o cadáver com as cimitarras, perfurassem-no com as lanças, batessem-lhe com as maças, enquanto ele mesmo continuava a ascender, até encontrar-se à altura dos espaldões. Então juntou todas as suas forças e lançou o corpo martirizado contra os defensores mais próximos, abrindo assim um espaço e saltando os merlões.

Por um instante, não teve adversários diante de si, e assim pôde se estabilizar sobre a plataforma. Aproveitou para agredir de ime­diato o árabe que defrontava outra escada. Este precisou se defender, e isso permitiu que seu adversário direto chegasse aos espaldões, enquanto outro cristão também conseguia emergir da escada de Ricardo.

Agora, os cruzados no alto das muralhas eram muitos, e podiam proteger o acesso dos outros.

Estavam dentro. E a consciência de se encontrarem realmente no interior da Cidade Santa multiplicava suas forças. Até Ricardo se sentiu arrastado pela exaltação dos companheiros, embora, para ele, Jerusalém fosse apenas um objetivo militar. Enfrentou decidido os dois muçulmanos sobre os quais havia lançado o cadáver, mas logo recebeu auxílio dos seus companheiros que haviam subido depois. Ele mesmo trespassou um dos dois, enquanto o outro foi jogado lá embaixo por um dos cruzados que o ajudavam.

O normando se debruçou no parapeito interno para ver que fim levara o adversário, mas não conseguiu distingui-lo.

Em contraposição, viu um mundo de inimigos que, do interior da cidade, corria para as rampas de acesso aos espaldões.

 

Mas como tinham feito? Jamal se perguntou como os infiéis haviam conseguido abrir uma passagem nos espaldões até mesmo na segun­da linha de muralhas. Na verdade, dispunham apenas de escadas! Somente o desespero, mais do que a fé no deus deles, podia torná-los capazes de tal proeza, e o emir se convenceu de que, no final, sua fé e a de seus correligionários prevaleceria sobre o puro desespero.

Chamou os guardas pessoais que lhe restavam e moveu-se rumo ao setor onde acontecera a invasão, abrindo caminho entre seus companheiros, ocupados em repelir as tentativas dos infiéis. De fato, os francos estavam concentrando seus esforços nos pontos onde a defesa muçulmana parecia haver cedido, e faziam convergir, inclusi­ve, as escadas.

Quando chegou ao setor mais encarniçado, Jamal o encontrou cheio tanto de muçulmanos quanto de cristãos, empenhados numa luta feroz pela sobrevivência. Seus guardas se anteciparam, lançando-se à refrega para lhe abrir caminho, antes mesmo que ele lhes desse ordem para isso. Já não havia somente cavaleiros e solda­dos profissionais na plataforma: aos guerreiros de elmo e cota de malha acresciam-se os peregrinos armados apenas de foices, forcados e enxadas, com gorros ou chapelões na cabeça e protegidos unicamen­te pelo camisão. Não pareciam especialmente perigosos, mas criavam confusão e determinavam, com seu grande número, um combate tão cerrado que quase não lhes permitia brandir as cimitarras.

Jamal varreu alguns com suas cutiladas, mas tropeçou nos corpos deles quando tentou avançar para enfrentar um infante pesado, que acabava de eliminar um de seus guardas. Desequilibrado, só teve tempo para opor o escudo à espada do franco, antes de cair no chão.

A segunda cutilada inimiga o atingiu nas costas. Mas, provavel­mente por causa do exíguo espaço à disposição, o franco devia ter vibrado o golpe sem poder carregá-lo, porque a lâmina não conse­guiu trespassar a couraça do emir. Após permanecer um instante em apnéia, Jamal se apoiou nos braços para se soerguer e, com os joelhos ainda dobrados, aparou outro golpe com o escudo. Já de pé, passou ao contra-ataque, girando a cimitarra tanto quanto o espaço restri­to lhe permitia.

O cristão parecia cansado e manteve-se na defensiva, até que o emir o desequilibrou chocando escudo contra escudo e golpeando horizontalmente com a cimitarra, atingindo o flanco do outro. Nesse momento, ouviu um grito de dor que lhe ressoava no ouvido esquerdo. Virou-se e viu um franco de pé sobre as ameias, bem ao seu lado. Com uma das mãos, o cruzado mantinha uma lança apon­tada para ele, e com a outra segurava uma cimitarra que o trespassa­ra em pleno estômago, com tal profundidade que dela só se via o cabo.

Não havia nenhum árabe ali perto, enquanto o infiel caía aos seus pés. Evidentemente, a cimitarra havia sido lançada por alguém. Jamal viu um soldado ofegante, coberto de poeira e sangue, que o fitava.

Firuz.

 

"Um instante atrás", pensou Ricardo, "tínhamos obtido superiori­dade numérica. Agora, parecemos um pelotão no meio de um exér­cito." A situação tinha mudado de repente, a partir do momento em que parecera que os cruzados poderiam entrar. Agora, grande parte dos muçulmanos confluíra para o setor no qual acontecera o rompi­mento, de modo que os cruzados se viam divididos em mirrados bolsões isolados uns dos outros.

Os cristãos eram alvejados a partir de vários pontos: dos adver­sários presentes na plataforma, que os pressionavam à direita e à esquerda; das torres, das quais partia um dardejamento constante; de baixo e ao longo das escadas, de onde provinham ininterruptamen­te lanças e flechas. Ricardo escutou alguns oficiais cruzados exortan­do as tropas a insistir, e em seguida viu o conde de Toulouse tentar invadir mais adiante.

Procurou seguir Raimundo. Se não continuassem a ação, apro­veitando a posição avançada que haviam obtido, eles dificilmente conseguiriam fazer isso em outro momento. O conde lutava com coragem, e seus homens demonstravam uma eficiência e uma coesão superiores aos dos outros contingentes, até mesmo aos dos norman­dos itálicos, os quais tinham fama de guerreiros valentes.

Tratava-se de ganhar as rampas que levavam dos espaldões ao interior da cidade. Ricardo empurrava, como todos os outros, e volta e meia algum dos árabes enfileirados diante dele perdia o equi­líbrio e rolava até embaixo ou caía diretamente para além do para­peito. Às vezes, ele e seus companheiros conseguiam golpear um com a espada. Mais freqüentemente, porém, uma flecha disparada das torres trespassava um cruzado de um lado a outro, ou então um árabe se aproveitava da guarda alta de um cruzado para lhe rasgar o estômago.

Apesar dos esforços, os cristãos, após um combate que Ricardo achou demoradíssimo, não haviam feito nenhum progresso; pelo contrário, seu raio de ação tinha recuado progressivamente, e as rampas pareciam mais distantes. O normando teve a sensação de que seria apenas questão de tempo até que todos os que haviam chegado aos espaldões, permanecendo substancialmente imóveis, fossem exterminados pelas flechas.

O conde de Toulouse, a quem todos se reportavam, também deve ter percebido isso, porque da multidão emergiu um grito dele: "Retirada! Retirada!", que logo ricocheteou de boca em boca, alcan­çando até os que ainda se encontravam do lado de fora, perto dos merlões. Mas Raimundo, na tentativa de se fazer ouvir pelo máximo possível de soldados, gesticulou até perder o equilíbrio. Já estava sobre a rampa interna de acesso aos espaldões e caiu sobre os degraus, rolando em seguida alguns metros mais abaixo.

Ricardo viu o conde à mercê dos adversários: após a ordem de retirada, muitos haviam recuado o raio de ação, deixando Raimundo bastante isolado. Pensou que, se o conde morresse, ou caísse prisio­neiro, a cruzada perderia seu chefe mais respeitável, e talvez até o mais sensato e equilibrado. O empreendimento acabaria nas mãos de gente obtusa como Godofredo de Lorena, de aventureiros como Tancredo, ou de homens desprovidos de pulso como Roberto da Normandia.

Raimundo tinha de ser salvo.

Ricardo se voltou para captar a atitude dos seus companheiros. Todos hesitavam, até os homens do conde.

Então se lançou, esperando que seu gesto estimulasse outros a imitarem-no. Do contrário, sozinho, jamais conseguiria.

Firmando-se bem nas pernas, abriu caminho com o próprio escudo, empurrando e fazendo despencar o adversário que lhe obs­truía o acesso à rampa. Este caiu para trás, na direção dos degraus, indo acabar em cima dos dois companheiros que o seguiam e desen­cadeando um efeito dominó em detrimento dos muçulmanos lá embaixo.

Ricardo não hesitou em aproveitar o espaço criado ao longo da rampa e se precipitou por ela abaixo até encontrar oposição. Mas, como vinha do alto, sua arrancada lhe permitiu varrer com a sim­ples impulsão do escudo outros dois adversários, catapultando-os para a base da rampa. Pouco adiante encontrava-se o conde, já resig­nado a ser feito prisioneiro; ao ver o normando, porém, recuperou a confiança, predispondo-se a lutar.

Ricardo o viu manquejar. Evidentemente, a queda deixara sua marca. Mesmo assim, o conde enfrentou dois árabes que o haviam atacado. O normando interveio, agredindo um dos dois no flanco, mas outra dupla de muçulmanos já se lançava contra ele.

Havia muitos. Ricardo matou mais um, mas de novo dois adver­sários o atacaram frontalmente e no flanco descoberto. Viu-se liqui­dado. Girou a bacia e o tronco para a direita, apresentando o escudo ao inimigo que antes se encontrava à sua frente, e tentou sustar as cutiladas dele, enquanto detinha com a espada os golpes do outro. Por alguns instantes ainda, continuou a duelar e a aparar com o escudo, até que, de repente, os golpes cessaram.

Não teve tempo de perguntar-se por quê. O adversário frontal o pressionava, absorvendo toda a sua atenção. Repeliu uma nova cuti­lada e depois usou o escudo, de talho, para desarmar o árabe, atingindo-lhe o pulso. Então lhe decepou a cabeça bem rente ao pes­coço. Só então se voltou e viu o outro egípcio no chão, perfurado por uma lança. Olhou para cima e viu descerem outros cruzados, um dos quais devia ter lançado.

Deu um suspiro de alívio e se preparou para enfrentar os dois árabes que atacavam Raimundo. Derrubou um, empurrando-o por trás com o escudo, e depois o eliminou com a espada. O outro se viu então às voltas com dois inimigos, Ricardo e Raimundo, mas, antes que as espadas se cruzassem, chegaram outros egípcios.

Ricardo se interpôs entre o muçulmano e o conde:

— Conde, suba de volta, rápido! Eu cubro sua retaguarda! — gritou.

Após hesitar um instante, Raimundo se dirigiu à rampa, ao longo da qual haviam se renovado os combates entre as vanguardas dos dois exércitos. Ricardo tentou segui-lo, mas teve dificuldade em galgar os degraus mantendo longe as cúspides das lanças inimigas. Os dois só conseguiram subir porque, graças aos duelos que muçul­manos e cristãos haviam desencadeado, a rampa se transformara num corredor estreito, constituindo um obstáculo mais para os per­seguidores do que para os fugitivos.

Quase no topo, contudo, uma ponta de lança atingiu Ricardo na coxa; o grito dele chamou a atenção de Raimundo, que até então não se voltara. O conde lhe estendeu a mão, fitando-o nos olhos com uma expressão de altiva gratidão, e ajudou-o a subir o último lance. Só então, ao ver Raimundo no alto das escadas, os outros cristãos lá embaixo recuaram, mas muitos acabaram perfurados pelas lanças inimigas após alguns degraus.

Em poucos instantes, pressionados pelos árabes, todos os cruza­dos presentes na plataforma se amontoaram junto aos merlões, na tentativa de ganhar as escadas de madeira, a fim de descer de volta ao pátio entre as duas linhas de muralhas. Apesar do tumulto, os sol­dados abriram caminho para o conde, o qual pôde chegar a uma escada protegido pelos seus homens. Mal apoiou o pé no primeiro degrau, Raimundo olhou Ricardo, que perdia muito sangue da coxa, e em seguida lhe estendeu a mão, convidando-o a descer com ele.

Ricardo sentiu de repente a hostilidade de todos aqueles que, poucos instantes antes, tinham-no visto como seu inspirador.

Muitos dos soldados na segunda linha de muralhas estavam destina­dos a dar cobertura para a retirada geral, e suas probabilidades de sobrevivência eram decididamente escassas: nenhum estava disposto a reconhecer o direito dele a escapar junto com o comandante.

Balançou a cabeça e tentou retribuir o olhar de gratidão que o conde lhe dirigira. Raimundo começou a descer, e no mesmo instan­te sua cabeça desapareceu da visão de Ricardo. Ao seu lado, o nor­mando viu um soldado se jogar voluntariamente muralha abaixo. Virou-se para o interior.

Os árabes estavam bem próximos.

E eram milhares.

 

Estava acabando como era previsível que acabasse. Menos previsível tinha sido o rompimento da primeira linha, pensou Jamal; de qual­quer modo, agora os infiéis estavam em fuga e, pior para eles, a penetração em profundidade lhes causara muito mais perdas do que um simples combate sob as muralhas externas.

O emir viu com satisfação que a retirada dos francos estava se transformando em uma debandada. Para conseguir fugir à pressão árabe, os cristãos até se jogavam lá embaixo, com a única esperança de aterrissar sobre as pilhas de mortos junto às muralhas e assim evi­tar quebrar o pescoço. Com freqüência, porém, mesmo os que con­seguiam chegar às escadas acabavam no vazio, porque os defensores só precisavam empurrá-los para fora.

E mais: quem conseguia descer ficava sujeito aos dardos vindos dos espaldões e das torres; agora, os arqueiros lançavam suas flechas certos de golpear somente cristãos naquela tropelia. Jamal viu mui­tos infiéis atingidos nas costas quando escapavam: não era uma bela propaganda para o deus deles, pensou, mas sim o justo preço que pagavam por sua absurda pretensão de conquistar, apenas com a força do zelo religioso, uma das cidades mais fortificadas do mundo.

O emir subiu a uma torre, para observar melhor a debandada adversária, depois de obrigar Firuz a ir se medicar. O turco queria a todo custo participar da perseguição, embora estivesse coberto de ferimentos. Eram apenas pequenos talhos e incisões que, com o tempo, enriqueceriam o mostruário de cicatrizes naquele corpo já desgracioso, mas de todos aqueles cortes saía muito sangue, e Jamal não queria perder seu melhor guarda por mero descuido.

Olhou na direção das muralhas externas. Agora, os francos eram alvejados de três lados. De fato, os árabes podiam valer-se das passa­relas entre o primeiro e o segundo circuitos para, com facilidade, praticar tiro ao alvo no pátio. Os defensores que permaneceram sobre os espaldões do circuito interno continuavam, por sua vez, a disparar flechas enquanto os fugitivos estivessem ao seu alcance.

O pátio não demorou a se encher de cadáveres, sobretudo de infantes leves e camponeses simples que, impelidos pelo entusiasmo após o arrombamento, mas sem nenhuma proteção contra as fle­chas, nem escudos, nem armaduras, haviam seguido os verdadeiros combatentes.

O grande massacre, porém, verificava-se junto à muralha exter­na, justamente ao redor da brecha. Os árabes haviam renunciado a perseguir os francos, para deixar o campo livre aos arqueiros. Assim, ao acúmulo de pedras desmoronadas foram se acrescentar as pilhas dos corpos trespassados. Com amarga ironia, Jamal pensou que, se os arqueiros continuassem a fazer tão implacavelmente o seu trabalho, bem cedo a brecha estaria preenchida por cadáveres, e os francos em fuga se veriam diante de uma cortina sem solução de continuidade.

 

Faltavam ainda alguns passos para chegar ao hospital de campo, mas Ricardo não conseguiu ir adiante e estatelou-se no chão, esgota­do, com a dor cada vez mais lancinante na coxa. Ninguém foi ajudá-lo, simplesmente porque ninguém fez caso dele. Todos tinham suas preocupações: uns queriam se tratar, outros, procurar alguém disposto a tratá-los, e outros ainda, como os padres, distri­buir bênçãos e absolvições aos que pareciam não poder passar daquela noite.

Além disso, havia mulheres com seus filhos, as quais vagavam em busca dos companheiros, na esperança de encontrá-los pelo menos entre os feridos. Os gritos e lamentos delas, além de sua perambulação sem rumo, contribuíam para aumentar a confusão na retirada daquela falida ação de assalto, ainda mais amarga para quem chegara a um passo da área habitada de Jerusalém.

O entusiasmo exibido nas faces e na atitude dos cruzados no iní­cio da manhã havia cedido a vez, após três horas de duro e inútil combate, ao desconsolo e à decepção, à desconfiança e à tristeza, e em certos casos até ao desespero. "Deus nos abandonou!" era a frase que Ricardo mais escutava daqueles que ainda tinham forças para falar. Os outros, e eram a maior parte, preferiam o silêncio, mas suas expressões eram eloqüentes.

O que o normando experimentava, em contraposição, era puro desencanto. Não possuindo o fervor religioso dos outros, desde o início havia considerado a ação como aquilo que ela deveria parecer a qualquer pessoa sensata: uma iniciativa irracional, sem nenhuma lógica militar e prejudicada pelo senso de onipotência que os cruza­dos haviam adquirido por chegarem invictos à Palestina.

Os egípcios eram mais coesos do que os turcos. Todos tinham fingido não saber disso, alimentando a ilusão de encontrar nos ára­bes as mesmas divisões que haviam permitido aos ocidentais con­quistarem uma vitória atrás da outra naqueles dois anos de campa­nhas no Oriente, mesmo quando as condições pareciam impossíveis: em Dorileia e em Antioquia, por exemplo. O que lhes permitira vencer, refletiu Ricardo, não havia sido o estímulo do Senhor, mas sim os limites políticos dos turcos, fracionados em muitos Estados pouco dispostos a colaborar um com o outro. E, agora, tinha sido a arrogância dos cruzados a fazê-los perder.

Deus, admitindo-se que existisse, não tinha nada a ver com aquilo.

Enquanto jazia no chão esperando recuperar as forças e alcançar o hospital de campo, perguntou-se se todos aqueles que haviam per­dido a vida ali ganhariam a remissão dos pecados e o paraíso, como afirmavam os padres. Afinal, não tinham morrido pela causa do Senhor, mas pela própria soberba, pela superficialidade e pela obtusidade dos chefes.

Ninguém vai para o paraíso por isso.

Finalmente, perguntou-se por que ele conseguira se safar. Seu ceticismo o tornara menos soberbo? O Senhor deveria premiar, se fosse o caso, aqueles que se dedicam a ele, e não os céticos. Pura sorte? E, se fosse, como era possível conciliar a sorte com a vontade de Deus?

Reconstituiu a inacreditável dinâmica de sua retirada, a partir do momento em que havia posto a salvo o conde Raimundo na escada, renunciando a segui-lo.

Tinha tentado unir-se aos outros que permaneciam nos espaldões, na tentativa de refrear a pressão muçulmana, mas percebera que a perna ferida não lhe permitia um apoio sólido para combater. Durante alguns instantes, havia considerado a possibilidade de sim­plesmente jogar-se dos espaldões.

Além disso, as escadas tinham um soldado quase em cada degrau, e todos os que se acotovelavam em torno delas à espera de vaga acabavam, inevitavelmente, expondo as costas às lanças árabes. Portanto, ele subiu a um merlão, ainda decidido a se lançar lá do alto, mas depois deu uma olhada na escada lotada ao seu lado e teve uma idéia.

Jogou-se. Mas não no terreno lá embaixo. Seus braços ainda fun­cionavam plenamente, e ele decidira confiar-lhes sua salvação. Estendeu-os para a escada, agarrando no ar a trave vertical, como um trapezista. Seu corpo bateu violentamente contra a trave e con­tra um soldado que a ocupava. Este, havendo se arriscado a cair, rea­giu com uma joelhada no esterno de Ricardo, e ele teve de fazer o máximo de força para não afrouxar a preensão.

De fato, ainda se encontrava muito no alto para se soltar. Pendurado em ângulo agudo em relação à inclinação da escada, con­tinuou a deslocar as mãos ao longo da trave, enquanto dúzias de solas lhe roçavam os nós dos dedos. Quando a dor nas mãos se tor­nou insuportável, deixou-se cair, mas já estava a pouca distância do solo e, uma vez lá embaixo, o único dano que sofrerá havia sido o impacto sobre o ferimento na perna.

Levantara-se com dificuldade, recolhera o escudo de um cadáver e depois, claudicante, correra o quanto podia rumo à brecha da muralha externa. E, enquanto dúzias de flechas sibilavam ao seu redor, pensara ironicamente que ele mesmo havia ajudado a abrir aquela brecha, pouco antes, sem saber que ela lhe serviria como caminho de fuga.

Fora ultrapassado por um grande número de companheiros, em condições de correr melhor do que ele. E observou-os serem feridos por flechas que poderiam talvez tê-lo atingido, se ele tivesse sido mais veloz. Ficara exposto ao dardejamento inimigo por um tempo superior ao dos companheiros, mas, incrivelmente, vira-se ainda vivo, escalando o entulho da brecha, indiferente aos arranhões e lacerações que os detritos produziam em todo o seu corpo. Já do outro lado, havia sido engolido pela tropelia do grosso do exército, que lhe fornecera uma proteção maior até que ele se encontrasse fora do alcance dos arqueiros muçulmanos. E tinha até encontrado um ou outro companheiro que o ajudara a se manter de pé, acompanhando-o por trechos breves.

 

Ricardo retornou dos próprios pensamentos e levantou a cabeça, avaliando o quanto ainda lhe faltava para chegar a alguém que pudesse tratar de seu ferimento. Seu olhar caiu sobre uma mulher que se inclinava sobre um ferido para enfaixá-lo.

Era aquela prostituta que ele deveria ter encontrado na noite da véspera.

Olhou melhor. Sua visão estava parcialmente enevoada pelo esforço e pelo suor que ainda lhe pingava da testa. Sim, era de fato aquela mulher, não havia dúvida. Até porque ao seu lado se manti­nha aquele monge balofo que parecia ter um certo vínculo com ela. Soergueu-se nos braços e procurou se levantar. Só conseguiu na segunda tentativa, e a muito custo deu os poucos passos que falta­vam para alcançá-la.

Desabou aos seus pés.

— Viu? — conseguiu dizer. — Eu me prostro diante do seu fascínio.

Inês só o percebeu no momento em que ele se estatelou no chão. Teve um sobressalto e o perscrutou longamente. Primeiro com sur­presa, depois com alegria — mas só por um instante —, em seguida com desprezo e finalmente com dureza.

Veja só quem aparece... — disse, em tom ríspido. — Isso é hora de se apresentar? — acrescentou, esforçando-se por mostrar um sor­riso de superioridade.

Eu andei... muito ocupado — ofegou Ricardo, a quem esse último esforço havia custado realmente muito.

Claro, claro... Tenho certeza de que você começou a atacar a cidade sozinho, desde ontem à noite — rebateu ela, sem mudar de expressão. Enquanto isso, continuava a se dedicar ao outro ferido.

Você poderia... estancar meu sangramento e enfaixar a ferida? — replicou Ricardo, com um fio de voz.

Não vê que estou ocupada? Espere sua vez! — disse Inês, ainda mais azeda. — Ou melhor, vá se arrastando e ache alguém que lhe faça o curativo!

Mas, Inês! — Ricardo ouviu a voz daquele monge. — Isso é maneira de acolher um ferido? Você não está se comportando como cristã. — Anselmo o reconhecera e, mesmo não gostando de sua pre­sença, obrigara-se a intervir a seu favor.

Bem, se ele me implorar, eu até posso ajudá-lo... — respondeu Inês, ostentando indiferença.

Ricardo se enfureceu. Tinha passado o inferno para escapar, e agora uma mulherzinha estúpida, ferida em seu orgulho, ameaçava deixá-lo morrer dessangrado.

Ora, se eu não imploro nem mesmo ao Senhor, imagine se im­ploraria a você! — berrou, juntando todo o fôlego de que dispunha.

Tarde demais, deu-se conta de que uma frase daquele tipo iria fazê-lo perder seu único defensor.

As coisas que eu sou obrigado a escutar! Então, por que você estaria aqui? Foi por isso que nós perdemos. A tropa não tinha fé suficiente! — replicou Anselmo, indignado.

Ouvi alguém dizer que a fé sem obras não conta muito. Há quem não esteja de acordo, mas, neste caso, é verdade: a fé sem obras, obras de assédio, não foi suficiente. — Quem respondera não tinha sido Ricardo, mas o ferido de quem Inês estava cuidando.

O normando o encarou, desejoso de cumprimentá-lo por ter expressado, com lúcida ironia, aquilo que ele mesmo teria respondi­do. Só então o reconheceu.

O comandante bizantino.

Emanuel! — gritou, com um largo sorriso. — Mas eu o vi cair da escada! Pensei que você havia morrido!...

Vocês se conhecem? — interveio Inês, curiosa.

Desde ontem à noite — respondeu o grego. — Seu amigo interveio a meu favor e a favor do meu pelotão — um véu de triste­za lhe desceu sobre os olhos quando ele se lembrou de seus homens —, detendo uns arruaceiros. E também este monge aqui tentou acal­mar os ânimos — acrescentou, dirigindo o olhar para Anselmo.

Inês também lançou um olhar para Anselmo. Mas completamente diferente.

Você não me disse que não sabia que fim tinha levado o nor­mando?

Para sorte do monge, Emanuel recomeçou:

Eu caí, sim, mas só levei uma bela pancada. Acho que desmaiei por alguns instantes. Seja como for, quando acordei, o exérci­to já estava em retirada, e eu tinha um corte no braço, causado não sei pelo quê...

Quantos dos seus sobreviveram? — perguntou Ricardo.

Nenhum. Fomos os primeiros a transpor as muralhas. — Com o braço, Emanuel acenou a Inês para que ela se deslocasse até seu interlocutor.

A mulher ainda hesitou por um instante, mas depois pegou as ataduras e o ungüento hemostático e se aproximou de Ricardo.

Ampliou o rasgão nas bragas dele e, com um tampão, aplicou deli­cadamente o ungüento sobre a ferida. Dignou-se até a lhe dirigir um sorriso.

Sem dúvida, eu preferiria que essas mãos me tocassem nessa parte em outras oportunidades... que não faltarão, espero — disse ele, antes de atentar novamente para o grego. — Vocês foram man­dados para serem os primeiros a escalar as muralhas, eu diria, numa ação que não tinha nenhuma probabilidade de sucesso. Isso é bem pior do que zombar do seu pelotão ou comprar briga no campo...

Anselmo se sentiu obrigado a intervir contra o normando:

Eu tinha razão em desconfiar de você desde o primeiro momento — acalorou-se. — A ação não deu certo porque o exército não se comportou dignamente, nos dias anteriores. Lembra-se de Antioquia? Não se chegava a resultado nenhum, e o bispo Ademar, que sua alma esteja em paz, obrigou todo mundo a rezar e jejuar, como todo bom cristão deveria fazer. E, então, tomamos Antioquia! Vocês verão que o mesmo acontecerá com Jerusalém. O Senhor quis nos mandar apenas uma advertência, avisando que nos comportásse­mos melhor!

Advertência?! Centenas, talvez milhares de mortos, e você considera isso apenas uma advertência? — replicou Ricardo, sorrin­do amargamente. — Seja como for, se não estou enganado, nós par­timos para o assalto, sobretudo, porque aquele eremita, no monte das Oliveiras, disse que Deus nos levaria à vitória...

Mas aquele eremita não sabia que raça de exército dissoluto era este! — rebateu Anselmo. — A previsão dele só valia para um exército digno do Senhor!

A verdade é que o Senhor não tem nada a ver com nossos assuntos — insistiu Ricardo. — Ele deixa que nos degolemos recipro­camente, talvez porque não queira intervir, talvez porque não possa. E isso na melhor das hipóteses...

As coisas que eu tenho de escutar! As coisas que eu tenho de escutar! — exclamou Anselmo, levando as mãos aos poucos cabelos.

E na pior das hipóteses? Vamos ouvir — emendou Emanuel, curioso pelas posições do normando. Era a primeira vez que lhe acontecia de encontrar alguém tão cético.

Bem... na pior... Muitas vezes, penso que não foi Deus quem criou o homem, mas o homem quem criou Deus... — disse Ricardo em voz baixa, olhando para longe.

Senhor! Por que fizeste morrerem tantos bons cristãos e deixaste vivo um indivíduo devotado a Satanás? — invocou Anselmo, cada vez mais transtornado. Já Inês, embora não compartilhasse nada do que o normando expressava, olhava para este com incrédu­la admiração, impressionada pela sua personalidade excêntrica.

Esse episódio foi a melhor prova do desinteresse dele, de sua impotência ou, pior ainda, de sua ausência, não acha? — prosseguiu Ricardo, que, depois dos cuidados de Inês, se sentia decididamente melhor. — E, no que se refere a Satanás, é evidente que, se eu não creio na presença de Deus, também não creio na de Satanás...

Não posso suportar essa conversa por mais tempo. Vou embora! — gritou Anselmo, vermelho de fúria. — E você deveria vir junto, Inês, e se dedicar a gente mais digna! E pensar que eu a exor­tei a cuidar dele!...

Mas Inês não tinha a menor intenção de se afastar do normando. Aquelas opiniões tão estranhas, incomuns, até imorais, tinham con­ferido à figura estatuária dele, envolta em trajes rasgados e empoeirados, encharcada de suor, arranhada e cortada, respingada de san­gue próprio e alheio, uma sensualidade que jamais lhe parecera tão atraente em alguém.

Por um instante, achou que não ficava bem manifestar isso muito abertamente, mas depois concluiu que, se havia uma vanta­gem em seu ofício, era a de não precisar se empenhar em parecer uma mulher direita. Nenhuma mulher era realmente direita, nem de­sejava ser, mas a maioria se sentia no dever de se mostrar como tal.

Creio que você vai precisar de assistência também durante a tarde. E talvez até mesmo esta noite... — disse a ele, acariciando-lhe a perna em torno do ferimento.

E você me daria essa assistência... sem remuneração? — per­guntou Ricardo, com um sorriso indagador.

Claro. Não tínhamos combinado assim, ontem? E, também, hoje você combateu, e tem direito a serviços suplementares...

Eu, no seu lugar, não perderia a oportunidade, amigo — inter­veio Emanuel, com um sorriso de cumplicidade para Ricardo.

Na verdade, não tenho nenhuma intenção de perdê-la... —- replicou o normando, acariciando o flanco de Inês com uma das mãos e apoiando-se na outra para se levantar.

Quer uma ajuda, soldado?

Uma voz respeitável levantou-se de repente atrás dele. Ricardo se voltou e reconheceu o conde Raimundo. Então baixou a cabeça, em sinal de deferência.

Eu é que deveria me inclinar para você, soldado. Tinha espe­rança de encontrá-lo ainda vivo — respondeu Raimundo. — Mulher, agora vá saindo, porque eu devo falar com este valente.

Inês fitou Ricardo e hesitou por mais um instante, o que lhe ren­deu uma olhadela irritada por parte do conde. Assim que ela se afas­tou, Raimundo pôde mostrar sua gratidão:

Você hoje deu provas de grande coragem. Se não fosse sua intervenção, nenhum dos meus teria movido um dedo para me sal­var e eu certamente estaria morto agora — disse, ajoelhando-se e apoiando uma das mãos no ombro do outro.

Fiz o que me pareceu certo. O senhor é um chefe sensato, e, se viesse a nos faltar, a expedição seria prejudicada.

Como é o seu nome?

Ricardo.

De onde vem?

Eu sou normando. Meu pai estava com o duque Guilherme quando este conquistou a Inglaterra, e depois foi ser mercenário em Constantinopla, por pouco tempo, antes de morrer.

E você? Continuou o ofício de seu pai? Estranho. Combate bem, mas não me pareceu equipado como um guerreiro...

Na verdade, não o continuei. Fui para o Ocidente e me colo­quei a serviço nos feudos e nas aldeias como lenhador, onde estives­se ou onde precisassem de gente. Vivi nas florestas durante décadas...

Seja como for, um homem livre de vínculos feudais. Em todo caso, demonstra ter sangue de guerreiro nas veias, como seu pai. E o que o levou a empunhar a espada?

Uma velha promessa... que fiz a mim mesmo... e a oportuni­dade de combater por uma boa causa.

Uma santa, causa, você quer dizer. Em que contingente está enquadrado?

Estou com o duque Roberto.

Bom. Agora, me escute — concluiu o conde. — Precisamos con­versar. A sós. Meus homens vão ajudá-lo a ir até meu pavilhão. Lá, re­ceberá os cuidados necessários. No momento, estou ocupado, e depois quero falar com o duque Roberto. Quando puder, procuro você.

E foi saindo, sem esperar réplica. Ricardo, por sua vez, não tinha nada a objetar. Ter caído nas graças do mais respeitável chefe da cru­zada, e por méritos exclusivamente bélicos, deixava-o feliz e consti­tuía o melhor encorajamento para sua remissão, ou mesmo, talvez, o início daquela carreira militar que outrora, muito tempo antes, havia constituído seu único objetivo. O terror que ele havia experi­mentado em Manzikert e nos anos imediatamente seguintes, sempre que pensava em se alistar de novo, era agora uma longínqua e desbo­tada lembrança.

Esqueceu seu encontro com Inês, deixando-se docilmente carre­gar na padiola por dois provençais. Já na tenda do conde, saboreou o frescor que o ambiente lhe oferecia, e mais ainda o refrigério de um banho perfumado, antes de lhe trazerem um suntuoso repasto de peixe na brasa, aromatizado com uma erva que lhe pareceu timo, e, além disso, servido numa escudela de vidro, um luxo que ele jamais se concedera. Bebeu um vinho excelente, encerrou com abundância de frutas, e uma sobremesa à base de mel adoçou seu palato.

Jamais havia consumido uma refeição tão requintada. Quando visitava as aldeias para entregar a lenha aos camponeses, em geral lhe ofereciam pão, favas, ervilhas, couve, alface e, no máximo, queijo, ovos e leite. Em geral, comia melhor quando vivia nos bosques, onde tinha a possibilidade de capturar e cozinhar gamos, lebres ou javalis.

Logo após saborear o último bocado de doce, Ricardo sentiu seus olhos se fecharem. Raimundo o encontrou adormecido, mas bastou-lhe apoiar a mão no ombro dele e sacudi-lo levemente para acordá-lo.

Sente-se melhor? — perguntou, esperando com paciência que Ricardo se livrasse do torpor do despertar e recuperasse a lucidez.

Muito melhor. Foi uma jornada dura — conseguiu dizer o normando, com a fala ainda empastada.

É verdade. Dura e decepcionante. Não tivemos fé suficiente, e esse foi o resultado. Mas, por outro lado, sem máquinas nós precisá­vamos de um milagre, e evidentemente não o merecemos...

Ricardo mordeu os lábios para não manifestar diante do conde o seu ceticismo. Sabia da devoção de Raimundo, o único a acreditar que a Lança Sagrada descoberta em Antioquia por aquele camponês, Pedro Bartolomeu, era realmente aquela com a qual o legionário Longino havia perfurado o flanco de Cristo. Mais tarde, diante do ceticismo geral, Pedro Bartolomeu submetera-se a um ordálio para demonstrar que santo André de fato lhe aparecera numa visão, indi­cando o esconderijo da relíquia. Tendo atravessado as chamas, mor­rera das queimaduras após doze dias de agonia, e mais ninguém tinha dado crédito à lança. Ninguém, exceto Raimundo, que conti­nuara a conservá-la como uma relíquia sacra, sustentando ter visto Pedro sair ileso da fogueira, antes de ser lançado de volta lá dentro pela multidão.

O conde registrou o silêncio de seu interlocutor e prosseguiu:

Temos que encontrar madeira. Precisamos disso para cons­truir máquinas de assédio, o mais depressa possível, antes que os egípcios mandem do Cairo um exército de socorro. Outro assalto como o de hoje e não restará um só cruzado na Terra Santa. Sem falar, é claro, daqueles que já nos abandonaram para cuidar de seus próprios interesses.

Ricardo não teve dificuldade de captar a referência a Boemundo de Taranto, acérrimo inimigo do conde, mas também ao irmão de Godofredo, Balduíno.

O normando começava a se perguntar aonde o conde queria che­gar. Raimundo pareceu ter lido seus pensamentos:

Falei com seu comandante, o duque Roberto — disse. — Ele atendeu ao meu pedido: você combaterá comigo. Preciso de um sol­dado assim, corajoso e cheio de iniciativa. Naturalmente, pagarei para você um equipamento decente, e, sobretudo, uma cota de malha de ferro.

Em certo sentido, Ricardo já esperava por isso.

E uma honra inesperada, senhor. Combater com um coman­dante de sua experiência sem dúvida me fará crescer como guerreiro — disse, e não achou que havia mentido ou simplesmente bajulado seu novo chefe.

Na verdade — especificou o conde —, não quero que você seja apenas um soldado sob minhas ordens. O assédio durará o estrita­mente necessário à preparação de um assalto adequado. Por todo o tempo em que estivermos diante das muralhas, eu o quero como meu ordenança, e, se as coisas andarem bem, caberá a você um peda­ço de terra por estas bandas.

Eu... não estou certo de ter feito o bastante para merecer isso — respondeu Ricardo, agora realmente confuso.

Mas fez, sim, sem saber — esclareceu o conde. — De fato, sua capacidade de iniciativa o torna o indivíduo ideal para uma tarefa mais delicada. O papel de ordenança é só um pretexto. Quero que você seja meus olhos e meus ouvidos a respeito de um assunto do qual fui encarregado pelo sumo pontífice Urbano em pessoa.

A atenção de Ricardo era máxima.

Quando entrarmos em Jerusalém — prosseguiu Raimundo —, você deverá tratar de localizar um documento que, como soubemos antes do início da cruzada, está escondido na cidade, provavelmente no interior da comunidade judaica. Trata-se de escritos mentirosos, que põem em discussão a divindade de Cristo Nosso Senhor e dão uma visão negativa de são Paulo. Não têm nenhum valor histórico nem religioso, mas poderiam criar fraturas na cristandade. Por isso, devemos tomar posse deles antes que as falsidades que contêm sejam difundidas. Amanhã eu lhe darei outras informações. E uma coisa sobre a qual também informei, segundo o desejo do legado papal, o duque Godofredo, que por sua vez fará o possível para encontrar os tais documentos. Naturalmente — concluiu, dando um peso maior a estas últimas palavras —, não preciso lhe dizer o quanto desejo ser eu aquele que os entregará ao pontífice.

Homem de confiança de Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse. Sem dúvida alguma, Ricardo jamais poderia ter esperado concluir de semelhante maneira aquela jornada, nem mesmo em seus sonhos de glória mais ousados. E também havia o assunto dos escritos... Raimundo não o interrogara sobre seu zelo religioso, evi­dentemente dando por certo que sua presença no exército cruzado atestava suficientemente um alto grau de fé.

Na realidade, não tinha curiosidade pelo conteúdo daqueles tex­tos, nem lhe interessava saber por que eles ameaçavam tanto a cristandade. Tendo por longos períodos vivido sozinho nos bosques, muitas vezes refletira sobre a intromissão da Igreja na vida diária, sobre sua pretensão de dominar as consciências e impor tediosos e repetitivos rituais, intoleráveis limitações ao prazer, trabalhos, con­tribuições e corvéias aos camponeses, tanto quanto ou até mais do que os senhores laicos.

A religião o deixava indiferente, e às vezes até o irritava. Mas aqueles documentos ele iria procurá-los. Não por zelo religioso, mas por ambição.

De repente lembrou-se de que a jornada, que provavelmente só ele acreditava poder salvar, não havia acabado. Podia encerrá-la dig­namente com aquela Inês, que parecia tão ansiosa por lhe conceder suas graças. Moveu-se tão depressa quanto seu ferimento lhe permi­tia e, coxeando, chegou diante do pavilhão onde, na véspera, entra­ra na fila em vão.

Mas não havia fila alguma. Deu uma espiada para dentro da tenda e encontrou-a vazia. Olhou ao redor e notou aquele padre, Anselmo, ajoelhado e absorto em suas orações. Aproximou-se e, indiferente ao empenho que o monge dedicava à prece, interrompeu bruscamente o balbucio dele:

— Sabe onde está Inês? — perguntou, sem cumprimentos.

Anselmo se esforçou por manter a concentração e continuou a rezar, sem voltar a cabeça e ostentando querer ignorá-lo. Mas Ricardo não se deu por vencido e insistiu:

Eu lhe fiz uma pergunta, padre! Afinal, você pode interrom­per suas orações por um instante, não?

Nada, embora o rosto do monge tivesse ficado vermelho.

Ricardo lhe deu um empurrão.

Ora, vamos! Ignorar um postulante não é espírito cristão! — disse, esboçando um sorriso.

Anselmo também sorriu, levantando-se da poeira na qual o empurrão de Ricardo o derrubara.

Os serviços de Inês foram novamente requisitados pelo duque Godofredo. Vai demorar muito, suponho... — respondeu, retornan­do às suas preces com cara de intensa satisfação.

Os gritos de triunfo haviam anunciado a vitória. E a salvação. Jerusalém estava salva. Os judeus estavam salvos.

Ao menos por enquanto, pensou Rebeca. Ouvira-os acima de sua cabeça, os adoradores do crucifixo, prontos a se lançarem sobre ela e sobre a irmã, como tinham feito três anos antes. Naquele momen­to, enquanto se interrogava sobre as intenções da horda de peregri­nos armados fora dos muros de Mogúncia, não sabia do que eles eram capazes, e a expectativa, embora carregada de tensão, não pro­duzira a angústia vivida nesta nova circunstância.

Desta vez, sabia. Sabia que nada os deteria, se entrassem. Ne­nhum escrúpulo, nenhuma contenção, nenhuma piedade. Nenhuma humanidade. Uma horda feroz e bárbara, incapaz de experimentar sentimentos diferentes do ódio e desejos que não fossem de sangue e violência.

A horda não pensava. Os componentes da horda não pensavam; talvez antes, talvez depois, mas nunca durante.

Para a horda, valia tudo. E não havia regras.

Depois de ter visto a horda em ação, você já não pode ser a mesma, refletiu. Vive o que lhe resta viver no temor perene de que um grupo de homens, qualquer grupo de homens, venha a fazer a mesma coisa. A ser uma horda. A destruir como uma horda. A saquear como uma horda. A estuprar como uma horda. Você vê dois, três homens, e se pergunta se, juntos, eles chegarão a anular sua própria humanidade e a se transformar numa entidade única, feroz, destrutiva.

Olhou para a irmã. Uma vítima da horda.

Rebeca se deu conta de não estar sendo totalmente honesta nem objetiva. Três anos antes, alguém saíra da horda. Alguém as ajudara. Alguém capaz de conservar a própria humanidade e uma consciên­cia. Um homem emergira daquela selva de bestas sanguinárias.

Não podia censurar a irmã por ter se apaixonado por ele. Ele a salvara. E era bonito, ao que recordava.

Perguntou-se quais sentimentos teria experimentado por aquele homem se, daquela vez, em Mogúncia, ela estivesse no lugar da irmã.

Mas era inútil. Ela nunca estava no lugar da irmã.

Ouviu baterem à porta. Sabia que não podiam ser os cruzados, mas ainda assim engoliu em seco, de tensão. O legado da horda.

Foi abrir, e lhe apareceu Jamal. Pouco ou nada exibia da pompa e da elegância demonstradas em sua última visita antes da batalha. Empoeirado, sujo de sangue, suado, as roupas rasgadas, estava com os ombros curvados pelo cansaço e uma respiração ofegante que ela nunca vira num homem sempre tão comedido. Parecia mais velho. No entanto, conservava uma dignidade que ela jamais tivera dificul­dade em reconhecer, a despeito dos comentários pouco lisonjeiros da irmã, para quem ele era untuoso, tedioso e pedante.

— Salam aleik, Rebeca. Vim pessoalmente anunciar a vocês nossa vitória — disse o emir, dando-lhe uma mirada apressada, para logo depois relancear ao redor em busca de Sara, sentada num canto.

Alecha shalom, emir. Você é bem-vindo, naturalmente. Com que então, o perigo foi afastado? — perguntou Rebeca, convidando-o a entrar.

Sem dúvida. Fugiram com o rabo entre as pernas. E deixaram montes de mortos no terreno. Se, antes, já eram poucos para assediar uma cidade, agora são realmente um número risível.

E mesmo? Sério? — perguntou Sara, acordando de seu abati­mento.

Claro! — respondeu o emir, feliz por ter de imediato suscita­do o interesse de Sara, concretizando assim o objetivo de sua visita. — A esta altura, nada poderia permitir que eles tomassem a cidade. A lição foi pesada para os infiéis.

Imprevisivelmente, Sara se levantou e correu para ele, jogando- lhe ao pescoço os braços. Era muito mais baixa do que o emir, e limitou-se a encostar a cabeça naquele peito ofegante pela fadiga, e agora também pela emoção. Por alguns instantes, Jamal ficou sur­preso, quase embaraçado diante do olhar perplexo e divertido de Rebeca, sem saber o que fazer; depois, com timidez e cautela, apoiou delicadamente as mãos nas costas de Sara e manteve-as ali, até que ela se afastou, sorridente e aliviada.

Mesmo assim, a batalha foi muito dura. Aqueles cristãos são excelentes combatentes. Corajosos, tenazes, hábeis com as armas. É quase lamentável termos exterminado tantos valiosos guerreiros. Mas, por outro lado, foram eles que nos agrediram. Vieram para nos expulsar daquilo que é nosso. Está escrito: "Combatei a fundo no caminho de Deus, combatei contra quem vos combate, mas não sejais os primeiros a combater. Deus não quer bem aos agressores. Matai-os onde quer que se encontrem, fazei-os saírem do lugar de onde vos expulsaram."

Rebeca pensou que Jerusalém, antes mesmo de pertencer a árabes e turcos, havia sido bizantina, e antes ainda romana, e primeiramen­te hebraica. Mas manteve para si essa consideração. Quem falou foi Sara:

Mas eu os escutei muito próximos. Transpuseram a primeira muralha, não foi? E você havia dito que eles não tinham essa possi­bilidade... — comentou, com um interesse que continuava surpreen­dendo a irmã.

É verdade, eles se revelaram mais perigosos do que o previsto. Mostraram grande determinação, e talvez os tivéssemos subestima­do. Mas nem mesmo uma grande determinação permite fazer o impossível, e, dos poucos que conseguiram alcançar os espaldões da segunda muralha, duvido que tenha sobrevivido algum... — respon­deu o emir, que parecia a Rebeca mais radiante pelas perguntas de Sara do que pela vitória. — E você, minha cara? Está mais tranqüila agora? Deve ter sentido muito medo... — acrescentou, virando-se para a jovem.

Rebeca balançou imperceptivelmente a cabeça. Conhecia a mira­da de Sara em todas as suas variantes, e os olhos dela, naquele momento, não estavam perdidos nos do emir.

Jamal não se demorou muito. Tinha vindo, explicou, só para ver como as duas estavam. Voltaria com mais calma, tinha "muitas coi­sas a contar ainda à minha pequena Sara", disse. No momento, devia retornar às suas obrigações militares e relatar os fatos ao governador.

O que foi aquela gentileza toda com o emir, assim de repente? — apressou-se Rebeca a perguntar, assim que o visitante saiu.

Gentileza? Não sei... — respondeu Sara, com indiferença. — Eu estava contente pela vitória e manifestei minha alegria, só isso...

... E o emir acreditava ser correspondido... Rebeca pensou que a coisa não estava indo nada bem.

 

                                                       ASSÉDIO

 

Dos apóstolos não vi nenhum outro, a não ser Tiago, o irmão do Senhor.

São Paulo, Epístola aos Gálatas I, 19

 

Não temos o direito de conduzir conosco uma irmã, como fazem os outros apóstolos e os irmãos do Senhor, e Cefas?

São Paulo, Primeira Epístola aos Coríntios 9,5

 

Mas quando Cefas veio a Antioquia, confrontei-o abertamente, porque ele merecia censura. De fato, antes que viessem alguns da parte de Tiago, comia junto com os pagãos; mas, depois da vinda, começou a me evitar e a manter-se à parte, por temor dos circuncidados.

São Paulo, Epístola aos Gálatas 2, 11-12

 

Rezavam continuamente junto com algumas mulheres, entre as quais a mãe de Jesus, e com os irmãos dele.

Atos dos Apóstolos I,14

 

Jerusalém, 70 d.C.

Seu objetivo, a fonte de Gihon, já estava próximo. Zoker respi­rou fundo por alguns instantes, contemplando o acesso ao manan­cial, para onde confluíam as torrentes subterrâneas que corriam sob as colinas de Jerusalém. Ao redor, amontoavam-se numerosos bal­des; carroças estacionadas aguardavam os animais de tração que as puxariam até os postos de guarda. Durante o dia, supôs, aquele lugar devia ser muito freqüentado.

Restos de antigos torreões sobrepunham-se à entrada. Entre as pedras disseminadas ao longo da parede rochosa do monte Ophel entrevia-se a embocadura do túnel escavado quase oito séculos antes para fazer escoar a água até o setor sul-oriental da cidade.

Todos em Jerusalém conheciam a história daquela obra admirá­vel, que o rei Ezequias havia promovido sob a dominação assíria. Duas equipes de escavadores tinham aberto o caminho na rocha nua, praticamente às apalpadelas e nem sempre em linha reta, uma de sudoeste para nordeste, a outra na direção oposta, para depois se encontrarem no meio do trajeto, depois de terem escavado por quase trezentos passos cada uma. Haviam sido necessários mais de seis meses, com turmas formadas por um operário que apicoava a rocha enquanto os outros recolhiam e removiam as pedras.

Infelizmente para Zoker, aquele túnel era uma das passagens subterrâneas que os romanos tinham conseguido localizar, apressando-se a guardá-la para impedir a fuga dos assediados. Duas sentinelas munidas de tochas controlavam a entrada, mas, sobretudo, poucos passos à frente, cinco crucificados, dispostos em semicírculo, surgiam como clara advertência a quem, vindo de dentro, ainda qui­sesse tentar a sorte.

Zoker não tinha tempo nem condições de procurar um acesso menos guardado. Sabia que nas imediações desembocava outro canal, mais antigo, coberto com grandes lajes escondidas pela folha­gem; mas localizá-lo diante dos guardas romanos estava fora de questão. Pensando bem, era até uma sorte que houvesse apenas duas sentinelas, sinal evidente de que o túnel já não era considerado peri­goso. Além disso, os dois soldados eram auxiliares com armamento leve, escudos ovais, menores do que os dos legionários, e cota de malha, em vez daquela de placas; para completar, um deles estava sem o elmo. Provavelmente o comandante romano Tito, refletiu Zoker, preferia enviar todas as tropas pesadas às verdadeiras opera­ções de assédio.

Perguntou-se de que lado os dois romanos esperavam uma cila­da. De dentro, sem dúvida. Mas também de frente, eventualmente.

Não do alto, por certo.

Zoker apanhou uma pedra tão grande quanto sua palma. Então mirou a ampla fenda que constituía a entrada do túnel e lançou-a. A pedra ecoou no escuro, às costas dos soldados, que instintivamente se voltaram.

Zoker aproveitou para saltar de pé e segurar-se à cruz mais pró­xima, que escalou com a agilidade de um gato, segurando-se ao corpo inerte do condenado. Assim que se viu no alto, ainda esperou um ins­tante até que o olhar dos romanos convergisse para a entrada do túnel; em seguida, colocou-se de pé, em equilíbrio precário, sobre os braços horizontais da cruz, e se lançou em cima dos dois inimigos.

Aterrissou agarrando ambos pelo pescoço. Bateu a cabeça um contra a do outro, usando em seguida os corpos para suavizar o pró­prio impacto sobre o terreno. Reergueu-se prontamente, controlan­do o estado de suas vítimas. O que estava sem elmo parecia decidi­damente fora de combate, mas o outro dava a impressão de estar apenas atordoado. Zoker deu-lhe um pontapé, pegou uma tocha e entrou de imediato no canal, descendo uns degraus e esgueirando-se por uma nova abertura, estreita e baixa, para além da qual se viu com água corrente até os joelhos.

Depois de alguns passos, ouviu o guarda gritar e, em seguida, lançar-se à sua perseguição. A modesta ponta curva de sua sica não lhe oferecia nenhuma garantia diante da lança do romano, a não ser que ele pudesse desfrutar do efeito surpresa. Decidiu parar e se esconder na água, esperando agüentar até a chegada do soldado.

Apoiou a tocha na borda e retornou algumas dezenas de passos, para induzir o perseguidor a concentrar a própria atenção na fonte de luz. Tomou bastante fôlego e se estendeu no fundo. Passou assim algum tempo, sem que nenhum rumor lhe chegasse aos ouvidos.

Sentiu os pulmões lhe pressionarem o peito e as têmporas pulsa­rem com intensidade insuportável. Lutou contra o impulso de emer­gir, e depois se obrigou a abrir os olhos. No fluir da corrente, distin­guiu a custo o movimento de duas estreitas silhuetas que avançavam para ele. Esperou que aquelas duas pernas estivessem a um palmo de seu rosto, antes de reunir as forças que lhe restavam, saltar de joelhos e desfechar o golpe.

A sica penetrou, afundando até o punho. Um berro que o eco da caverna tornou desumano. Zoker emergiu da água e viu que havia perfurado o inimigo na altura da virilha, pouco abaixo da malha de ferro.

O judeu extraiu a arma e golpeou de novo, desta vez na gargan­ta. Apoiou-se à borda do canal, retomando o fôlego por alguns ins­tantes; depois recolheu a tocha e recomeçou a correr. Da entrada do túnel vinha o eco de vozes, mas ele se convenceu de que os inimigos não o perseguiriam por longo trecho. Provavelmente, consideravam-no um dos muitos assediados que saíam em busca de alimento, pelos quais não valia a pena arriscar-se a sofrer uma emboscada den­tro das galerias.

Seguiu em frente, ultrapassando corpos putrefatos que boiavam na água. A maioria certamente era de vítimas dos romanos, mas um dos cadáveres tinha uma sica espetada no ventre. Conferiu: era um circuncidado. Segundo os rumores que circulavam até na Peréia, os sicários eram particularmente ferozes com seus próprios concida­dãos, ou pelo menos com os que eles não consideravam úteis à defe­sa da cidade.

Seu limiar de atenção se aguçou um pouco mais. Podia haver adiante um posto de bloqueio, e talvez os que se encontravam lá não tivessem muitas sutilezas inclusive com ele. Enveredou por uma derivação à direita, esperando estar no caminho certo para a Cidade Alta. Avançou, já fora da água, por uma galeria mais estreita e em leve aclive. Não se passou muito tempo e uma luz débil aflorou ao longe. Zoker engoliu em seco e continuou a avançar.

— Vocês, aí em cima! Eu sou um circuncidado! — gritou, em aramaico. Se fossem zelotas, pelo menos não o tomariam por um romano.

Nenhuma resposta.

 

Inês acordou com muita sede.

O campo já se encontrava em plena atividade. Ela devia ter dor­mido mais do que o lícito na tenda do duque Godofredo, que demonstrara uma energia inesgotável, como se sua excitação fosse diretamente proporcional à quantidade de sangue que ele vira cor­rer ao longo da jornada.

Tinham prosseguido por grande parte da noite: pausas breves, muito movimento, poucas palavras e quase todas de circunstância. Inês duvidava que aquele Ricardo soubesse mostrar a mesma vitali­dade. No entanto... no entanto, decerto seria mais intenso. Ao menos para ela.

Experimentou imaginar-se com o normando e se espantou, visto que havia tempo não fantasiava de olhos abertos sobre os momentos de intimidade com os clientes. Isso lhe acontecera nos primeiros tempos, quando ela ainda era uma jovenzinha ingênua, capaz de sen­tir alguma emoção diante da perspectiva de se deitar com um homem. Mas isso havia durado pouco: clientes bárbaros, indiferen­tes, soberbos tinham-na habituado a não esperar nada interessante e estimulante de encontros cujo único fruto era o dinheiro.

A secura que sentia no palato tirou-a de seus pensamentos, induzindo-a a se erguer do leito, sobre o qual notou diversas moe­das. Sempre generoso o duque, refletiu, enquanto ajeitava as roupas. E sempre distante, como convém se comportar com uma puta. Para esta segunda ocasião, ela havia esperado uma certa familiaridade; às vezes, acontecia. Deu de ombros e saiu para procurar água.

O dia seguinte ao de uma batalha perdida. A decepção da tropa era evidente nas faces e nas atitudes dos soldados e dos peregrinos. Igualmente perceptível era a desorientação deles, a incerteza quanto ao futuro imediato. Embora não a ouvisse claramente, Inês lia nas expressões dos homens a pergunta "O que faremos agora?"; uma pergunta que, na verdade, ela também se fazia. Não era necessário ser estrategista para saber que um segundo assalto não teria possibi­lidades de sucesso maiores que as do primeiro. Pelo contrário: seriam muito menores. E ainda mais escassas eram as possibilidades de submeter a cidade a um assédio sem a madeira necessária para as máquinas.

Para piorar, muitos cruzados provinham dos mais rigorosos cli­mas da Europa setentrional e toleravam mal o calor que os envolvia do amanhecer ao ocaso, dificultando até o repouso noturno. Faltava muito para a hora terceira, e o sol já sobressaía ameaçadoramente alto no céu, perseguindo com seus raios quem quer que buscasse algum frescor nos poucos pontos cobertos da planície ao redor de Jerusalém.

Água. Durante a noite, Godofredo lhe dissera que as reservas estavam próximas de se esgotar, e os chefes haviam proibido o uso do líquido para banho ou refrigério. Inês se deslocou até sua tenda, junto da qual havia dois barris para as necessidades das prostitutas. Encontrou-os vazios.

O que foi feito da água? — perguntou a uma mulher.

As últimas gotas foram usadas durante a noite, para os feridos da batalha — explicou a outra, balançando a cabeça.

E agora? Como vamos prosseguir?

Alguns soldados pegaram jumentos e bois e partiram com os guias em busca de fontes não contaminadas. Parece que ficam a várias léguas daqui... Eles não retornam tão cedo — respondeu a mulher, resignada.

Inês, porém, não tinha nenhuma intenção de se resignar. Foi procurar Anselmo; os padres, pensou, sempre se arranjavam nesses casos, e ele certamente iria ajudá-la. Encontrou-o rezando. A coisa ainda conseguia espantá-la, depois de uma vida transcorrida, por motivos óbvios, de preferência longe dos religiosos. E, também, sua religiosidade era rural, herdada dos pais e ligada a rituais antigos que a Igreja considerava pagãos.

O fato de aquele monge parar a cada três horas para rezar, alheando-se de tudo que o circundava, às vezes a fazia sorrir. Mas, agora, Inês não pretendia dar a ele outros pretextos para fazê-la se sentir inadequada ao empreendimento. Perguntou-se o que teria acontecido se ela tivesse confidenciado a Anselmo o verdadeiro motivo pelo qual estava participando da cruzada... Os religiosos nunca lhe haviam inspirado confiança suficiente para induzi-la a se abrir com eles, embora a Igreja exortasse constantemente os fiéis à confissão. Mas justamente uma confissão, a única que ela já fizera, custara-lhe anos de tormentos e remorsos.

Você bebeu água? — perguntou a Anselmo, quando o viu se levantar.

Agora de manhã, não. Precisamos esperar a volta dos soldados enviados para trazê-la — respondeu Anselmo, num tom que não dei­xava transparecer nenhuma ansiedade.

E acha que ainda vai resistir muito, com este calor?

Não, francamente não. Mas você vai ver que eles voltam logo.

Sem dúvida. E haverá um assalto à carga deles, ainda mais furioso do que foi o das muralhas...

Ouviu Anselmo engrolar alguma coisa a respeito do fato de que os chefes saberiam gerir o assunto e distribuir com sensatez as pro­visões. Inês achava que os comandantes, se haviam sido tão pouco sensatos brigando entre si desde o início da expedição, a ponto de atrair as críticas da tropa, e conduzindo os soldados a um assalto desatinado, dificilmente saberiam demonstrar mais sagacidade nesta circunstância.

Depois seus pensamentos se deslocaram para outro assunto. Ricardo. Sentia-se curiosa por saber como ele estava e por que, mais uma vez, faltara ao encontro. Afinal, Godofredo mandara chamá-la tarde, e o normando teria tido bastante tempo para ir vê-la. Era a primeira vez em que ela topava com uma atitude tão morna da parte de um homem; de um homem que não fosse monge, claro.

Talvez, refletiu, tivesse sido demasiado agressiva e explícita. Talvez devesse fazer-se desejar. Fosse como fosse, era ele que não aparecera. Portanto, era ele quem deveria procurá-la.

Concluiu, não sem fazer um esforço, que não moveria um dedo.

A hora sexta passou sem que viesse qualquer abastecimento de água. O sol já alcançara o ápice no céu e, nas horas imediatamente subse­qüentes, tampouco atenuou sua impiedosa obra de desidratação. Inês se viu desocupada. Ninguém se apresentou para solicitar seus serviços, e, por outro lado, ela também não se sentia disposta a pro­digalizar esforços para dar um pouco de prazer a quem, entre a decepção pelo assalto falhado e a fraqueza resultante da canícula, precisaria de grande dedicação para conseguir levantar pelo menos o moral

Por volta da hora nona chegou um destacamento. Ou, ao menos, o que restava dele. Eram cinco, entre os quais um ferido, e não tra­ziam nem bois nem burricos.

— Perderam os animais num confronto com os muçulmanos, nos arredores da fonte — explicou Anselmo a Inês. — Parece que sofreram uma emboscada. Agora, não será fácil obter água. Os ini­migos sabem que a estamos procurando, e devem ter predisposto surtidas para nos impedir.

À piscina, vamos à piscina! Hoje jorra água! — ouviram gritar pouco adiante.

Piscina? O que é isso? — perguntou Inês.

Trata-se de um poço ao pé das muralhas, na parte meridional do vale do Cedron — explicou Anselmo, cuja voz soava empastada, com cada palavra acompanhada por um som semelhante ao ruído do pisoteio sobre folhas secas. — Lá, Jesus curou um cego. A água jorra de um túnel justamente sob as muralhas, mas só de três em três dias, por algum motivo que só o Senhor conhece. Embora não tenha sido contaminado, é muito exposto aos tiros dos arqueiros sobre os espaldões...

Então, essas pessoas vão se suicidar... — concluiu Inês, apon­tando o movimento que se seguira à exortação.

O quê? Para onde vão? — Anselmo se voltou e só então perce­beu o que acontecia às suas costas. — Mas aonde vocês estão indo? Enlouqueceram? Nem mesmo o Senhor poderá salvá-los, se se expu­serem tanto ao perigo! — gritou, mas ninguém demonstrou tê-lo escutado.

Temos que detê-los. Venha me ajudar! — disse o monge a Inês, que o encarou demoradamente, surpresa pela repentina determina­ção dele. Depois também se moveu, embora não muito confiante no êxito da piedosa iniciativa adotada pelo amigo. Acotovelaram-se os dois em meio à aglomeração de homens, mulheres, crianças e ani­mais de carga que se moviam rumo ao sul. Inês tentou segurar um menino, gritando à mãe, que o precedia, para que parasse. Como única resposta, a mulher fitou-a com olhos alucinados e levantou um braço, tentando lhe arranhar o rosto. Inês se afastou a tempo, mas enquanto isso a outra lhe tirou o menino. Em um instante, mãe e filho desapareceram na poeira levantada pelo tropel.

À medida que prosseguia em direção ao sul, a multidão aumen­tava, recolhendo ao longo do caminho outros peregrinos, civis e militares, contagiados pelo desespero e impelidos pela esperança de matar a sede.

Várias vezes Anselmo tentou bloquear as mulheres, os velhos e as crianças, mas, apesar de seu corpanzil, a cada vez arriscou-se a ser atropelado. A determinação lhe faltou depois que ele viu aflorarem da multidão algumas tonsuras e batinas. Só então percebeu que qual­quer esforço era inútil: Inês o viu separar-se dos outros e tomar o caminho a montante, para além do vale da Geena, que margeava as muralhas da cidade, a fim de se manter fora do alcance de tiro dos defensores.

Ela ainda tentou deter alguém, mas um tapa a induziu a desistir igualmente e a seguir a direção de Anselmo. Viu-o ofegar no meio da subida e alcançou-o em pouco tempo, prosseguindo com ele o percurso a montante.

Afinal, como você pretendia convencer uma multidão deses­perada e impelida por uma esperança? — inquiriu.

O Senhor não pode querer que tudo dê errado neste empreen­dimento, feito justamente por Sua glória — disse o monge, depois de recuperar o fôlego.

Antes que Inês pudesse replicar, a atenção deles foi atraída pelo que acontecia mais embaixo, na base da elevação sobre a qual surgia Jerusalém. Os peregrinos mais ágeis haviam chegado junto à chama­da piscina, e só então se tornaram prudentes; a distância em relação às muralhas não permitia estabelecer com absoluta segurança se o tanque estava ou não fora do alcance das flechas muçulmanas. A pis­cina, um retângulo com a profundidade de pelo menos dois homens postos um sobre o outro, era dotada de robustos muros de pedra, escadas de acesso à base e meios-fios ao longo das bordas. De um túnel com grade fluía intermitentemente um jato d'água.

Em pouco tempo criou-se um tropel em torno do perímetro do tanque. Chegaram também os animais de carga, bois, jumentos e mulas que muitos tinham dificuldade em conter. Finalmente um homem desceu os degraus e entrou cautelosamente na água, um passo de cada vez e olhando para o alto, na direção das muralhas. Todos ficaram observando, com a respiração suspensa.

O peregrino caminhou por alguns instantes, imerso até a cintu­ra, depois se inclinou e bebeu. Mal se reerguera da água quando um sibilo fendeu o ar.

A primeira flecha havia sido disparada.

Durante sua trajetória, os únicos rumores vindos da multidão foram os mugidos e o pisoteio dos animais. O dardo ricocheteou na parede rochosa a montante da piscina, chegando inofensivo às vizi­nhanças desta.

Ao que parecia, o poço estava muito distante para as flechas dos inimigos.

O homem dentro d'água levantou a cabeça e emitiu um berro de triunfo, que constituiu o sinal para os outros.

De imediato, os homens, as mulheres e os animais que se haviam aglomerado no perímetro da piscina lançaram-se dentro, uns descen­do os degraus, outros saltando diretamente e outros, ainda, impelidos por quem estava atrás. Os homens empurravam mulheres e crianças para ultrapassá-los, jogando-os contra os cascos de animais que escoiceavam enlouquecidos ou fazendo-os precipitarem-se na água.

Inês notou alguns movimentos nos espaldões. Viu numerosos arqueiros preparando-se para atirar. Instintivamente, deu um grito, na impossível tentativa de avisar às pessoas que a primeira flecha tal­vez tivesse sido apenas uma cilada.

Um instante depois, centenas de flechas se irradiaram dos merlões.

Caíram sobre os homens em torno da piscina.

E caíram sobre os homens dentro da piscina.

 

Saulo diz: "A letra mata, o espírito dá vida." Mas o homem é justificado com base nas obras, e não somente na fé. De fato, assim como o corpo sem o espírito está morto, de igual modo a fé sem obras está morta.

Saulo diz: "Decaem da graça e não têm nada a ver com Cristo aqueles que procuram a justificação na Lei." Saulo diz: "Todas as coisas são lícitas, e a Lei é uma escravidão." Mas, se julga a Lei, ele já não é um observador da Lei, e sim um juiz. Lê-se em Números: "Quem observa toda a Lei, mas tro­peça em um só ponto que seja, torna-se culpado de tudo." O Messias nos disse: "Sede perfeitos como Vosso Pai Celeste é perfeito. Quem observa com atenção a Lei perfeita, a Lei da liberdade, e nela persevera, não como ouvinte desatento, mas como verdadeiro executor, será bem-aventurado em suas obras." E ainda: "Não penseis que eu vim para abolir a Lei ou os Profetas; não vim para aboli-los, mas para dar-lhes cumprimento. Em ver­dade vos digo: enquanto não passarem o céu e a terra, nem uma só vírgula passará da Lei sem que tudo seja cumprido. Portanto, quem transgredir um só desses preceitos, ainda que mínimo, e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será considerado mínimo no Reino dos Céus; mas quem os obser­var e os ensinar será considerado grande no Reino dos Céus."

Saulo diz: "Não é necessária nenhuma autorização para difundir a pala­vra de Deus. Nossa autorização não foi escrita com tinta, mas pelo espírito do Deus vivo, não está gravada sobre placas de pedra, mas sobre as placas de carne do coração de quem escuta." Porém, se alguém pensa ser religioso, mas não refreia a língua e engana assim seu coração, sua religião é vã.

Saulo diz: "Ninguém é imundo. Para pregar o Evangelho, é preciso fazer-se judeu com os judeus, gentio com os gentios." Mas lê-se em Ezequiel: "Nenhum estrangeiro, incircuncidado de coração e incircuncidado na carne, entrará no meu santuário." E também: "Os sacerdotes indicarão ao meu povo o que é santo e o que é profano, o que é limpo e o que é imundo." O Messias nos exortava a não nos dirigirmos aos pagãos, mas somente às ovelhas desgarradas de Israel.

Quem quer ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus. A ami­zade do mundo é a inimizade de Deus. Nós reprovamos as riquezas daque­les de quem Saulo quer fazer-se amigo. Acaso não são os ricos que tiranizam os pobres e os arrastam perante os tribunais? Acaso não são eles que blasfemam contra o belo nome que foi invocado acima de nós? Lê-se no Levítico: "Ama teu próximo e não sejas mais rico do que os outros."

Saulo diz: "Vós sois falsos apóstolos, operários fraudulentos, disfarça­dos de apóstolos de Cristo", mas quem é ele para falar mal do irmão e para erigir-se em juiz de seu vizinho? Quem é ele para definir como falsos após­tolos aqueles que viveram ao lado do Messias, ele que nem sequer o conhe­ceu, a não ser em suas visões? Em seu coração ele tem inveja amarga e espí­rito de competição; vangloria-se e mente contra a verdade. Erige-se em mestre, ignorando que todos nós receberemos um julgamento mais severo. Sua língua é um pequeno membro que apregoa grandes coisas.

Saulo diz: "Israel fez-se inconsciente instrumento de redenção da humanidade, condenando Cristo à cruz e permitindo-lhe, assim, salvar o homem por meio do seu sacrifício." Mas ele omite a responsabilidade dos pagãos. O assentimento de uns poucos sacerdotes corruptos e blasfemos, submissos aos gentios, não é culpa do povo inteiro, que acolheu com ale­gria e esperança Suas palavras de justiça, de redenção e de vida eterna.

 

Rebeca havia lido demais, para aquele dia. Finalmente, decidiu- se a enrolar de novo o pergaminho que abrira sobre a mesa, no meio de outros textos. Desde quando se encontrava em Jerusalém, tivera oportunidade de confrontar os rolos com os textos canônicos cris­tãos, que o rabino-chefe da comunidade hierosolimita, a seu pedido, havia obtido dos cristãos ortodoxos, antes que estes fossem expulsos da cidade.

Refletiu sobre a oportunidade perdida pelo pai. Ela não domina­va a doutrina necessária, nem o conhecimento aprofundado da lín­gua grega, para captar todas as referências e pistas que era possível extrair daquele rico texto. No entanto, sua vontade e sua curiosida­de lhe haviam permitido, em apenas três anos, identificar as sur­preendentes contradições que o memorial destacava naquilo que os cristãos chamavam de "Novo Testamento". Havia localizado, nas citações que Tiago fazia do pensamento de Paulo, trechos das epís­tolas do próprio Paulo, mas também dos Evangelhos. Por outro lado, as réplicas de Tiago ecoavam a epístola transmitida em seu nome, inserida no cânone neotestamentário, mas às vezes, e isso era realmente paradoxal, ecoavam também os próprios Evangelhos.

Rebeca estava se convencendo de ter identificado no próprio cânone neotestamentário as duas tendências opostas que dilacera­vam o movimento cristão original. Até acreditava poder estabelecer o que permanecera do ensinamento do rabi e o que havia sido interpolado pelo partido adversário, o dos "heréticos", débeis defensores da Lei hebraica, universalistas, pacifistas, pouco propensos a fazer distinções entre pobres e ricos, entre hebreus e gentios, entre puros e impuros, e convencidos da natureza divina do crucificado.

Se o pai tivesse disposto de uma vontade como a dela, teria cons­truído, com a doutrina de que era conhecedor, uma defesa incontes­tável do caráter judaico ortodoxo, nacionalista, revolucionário e estritamente humano do crucificado. E talvez, pensou, muitas coisas teriam mudado.

Ela não se sentia capaz de construir coisa alguma, mas pelo menos estava bem decidida, enquanto as circunstâncias permitissem, a aprofundar seus conhecimentos.

E se os Evangelhos tivessem sido escritos depois das obras de Paulo? Poderiam ter refletido o pensamento e as orientações dele, já que seu ponto de vista prevalecera. Por outro lado, aquele homem que lhes havia confiado os rolos tinha dito que os Evangelhos davam uma imagem negativa dos judeus e bajulavam os romanos. Isso podia ser uma prova de que haviam sido escritos após a destruição de Jerusalém e do Templo, quando a Palestina já estava totalmente submetida aos dominadores, e nada que não fosse aprovado por eles poderia transparecer.

Sem dúvida as posições de Tiago, tão nacionalista, xenófobo, zeloso cumpridor da Lei hebraica, não podiam agradar aos roma­nos. E provavelmente tratava-se das mesmas do próprio Jeshua, visto que Tiago fora designado como seu sucessor e não era possível que tivesse assumido posições radicalmente divergentes das de seu predecessor e irmão. Nos Evangelhos, haviam permanecido alguns traços dos ensinamentos originais do rabi, o que resultava em óbvia contradição com outras passagens.

Segundo o relato de Tiago, Jesus era um rabi que pregava contra o laxismo e a corrupção da casta sacerdotal, cada vez mais distante da aplicação da Lei, e contra a opressão dos romanos. Por isso, e só por isso, fora justiçado na cruz por estes últimos. Como um sedicioso que, com seu zelo, obstaculizara para si mesmo o apoio das clas­ses judaicas dominantes. E, provavelmente, alguém havia acabado por identificá-lo com o descendente de Davi que, segundo a profecia da Estrela, resgataria Israel, conforme previa um dos chamados Salmos de Salomão:

 

Senhor, faz com que o filho de Davi reine sobre Israel.

Cinge-o de força para que esmague os reis malvados.

Faz com que ele purifique Jerusalém dos pagãos que a oprimem.

Com uma maça de ferro, destruirá todos os haveres deles.

Cancelará da terra os pagãos com uma palavra de sua boca.

 

Não por acaso, refletiu Rebeca, nos Evangelhos atribuía-se a Jeshua uma genealogia que o fazia remontar justamente a Davi. Fosse verdade ou não, aquele indivíduo certamente extraordinário tornara-se um símbolo para os hebreus, um símbolo que, amarga­mente — e para fazê-lo sobreviver ao esquecimento ao qual os domi­nadores tinham condenado os sediciosos —, seus discípulos transfor­mariam no promotor da unificação universal em nome de Roma: um papel que não poderia estar mais distante dos valores da Lei mosaica, que o próprio Jeshua havia defendido e aplicado — embo­ra fazendo algumas correções —, com uma coerência bem maior do que aquela narrada nos Evangelhos.

De fato, não escapavam a Rebeca certas incongruências contidas nos textos canônicos. Como, por exemplo, no Evangelho de Mateus, no qual se lia que Jesus exortava seus discípulos a "não andar entre os pagãos" e, pouco adiante, a "instruir todas as nações".

O Evangelho de Lucas era rico em referências ao fato de que os gentios eram mais apreciados por Deus do que os hebreus, porque, embora menos informados sobre a expectativa pelo único e verda­deiro Deus, haviam extraído mais frutos de seu escasso conhecimen­to. Nele, por exemplo, Jesus louvava a solicitude de um centurião romano por um servo doente, declarando jamais ter encontrado tanta fé em seu povo. Rebeca foi reler o trecho: "O servo que, conhe­cendo a vontade do patrão, não tiver disposto ou agido conforme a vontade deste, receberá muitos açoites, mas aquele que, não a conhe­cendo, tiver feito coisas merecedoras de açoites, receberá poucos. E a quem foi dado pouco, será pedido muito, e a quem foi confiado muito, será pedido muito mais."

Numa leitura atenta, parecia mesmo que Jeshua advertia os hebreus de que não traíssem a aliança mosaica, da qual ele se fazia promotor, porque o dia do juízo estava próximo e cada um recebe­ria de acordo com o que tinha dado. Daí a atribuir a Jeshua, ao tér­mino de sua trajetória terrena, uma nova aliança, que cancelasse a mosaica e abrangesse também os pagãos...

Sem dúvida, era de fato um assunto candente, pensou Rebeca, olhando o manuscrito. Sobretudo agora que os cristãos estavam às portas. Ela se refugiara em Jerusalém para escapar à fúria deles, e agora os tinha a poucos metros de distância, ainda mais ameaçado­res e organizados do que três anos antes. Se soubessem da existência daquele memorial, redobrariam seus esforços para conquistar a cidade. Devia decidir separar-se dos pergaminhos e escondê-los num lugar seguro, e precisava encontrar alguém em quem confiar, a quem revelar o segredo da localização e do valor deles. Quando chegara à cidade, havia procurado, com muita discrição, encontrar algum recabita que a ajudasse, mas fora informada de que aquela comuni­dade tinha emigrado definitivamente para o sul da Arábia.

No entanto, devia de qualquer maneira achar alguém que prote­gesse os textos. Alguém que percebesse a importância deles e estives­se interessado em assegurar-lhes a sobrevivência. Isso, porém, excluía os outros judeus: como acontecera com seu pai, alguém poderia temer ulteriores represálias por parte dos cristãos, se por acaso eles fossem divulgados.

Rebeca ouviu baterem à porta. Logo em seguida, o inevitável "Salam aleik", na costumeira voz profunda de Jamal. Desde quando Sara havia manifestado aquela efusão repentina, ligada exclusiva­mente ao alívio pela extinção do perigo do assalto cristão, o emir vinha visitá-las com mais freqüência ainda, mas parecia não perce­ber que a jovem retornara à sua indiferença habitual.

Rebeca observou o árabe entregar-se às costumeiras mesuras e apresentar à sua irmã os presentes de sempre, com os quais a casa delas já estava lotada: ungüentos, especiarias, sedas refinadas, que Sara apreciava, embora não a tornassem mais receptiva em relação a ele. Depois observou os livros e os pergaminhos espalhados sobre a mesa, perguntando-se se não seria o caso de fazê-los desaparecer.

Então teve uma idéia.

 

Você tem nas mãos um documento excepcional e terrivelmen­te perigoso. — Foi esse o primeiro comentário de Jamal, quando Rebeca lhe explicou no que estava trabalhando. — Supondo-se que seja autêntico, claro. Mas, mesmo que não o fosse, a simples existên­cia dele bastaria para conturbar a cristandade.

Meu pai afirmava que esse texto provocaria represálias ulteriores contra os hebreus — respondeu Rebeca.

E talvez não estivesse totalmente errado — replicou o emir. — Mas o que se diz aí quanto à natureza de Jesus?

Rebeca desenrolou os pergaminhos e procurou um trecho que pudesse satisfazer a curiosidade do interlocutor. Já conhecia ponto por ponto os assuntos tratados no texto, embora ainda lhe faltasse compreender plenamente o significado de alguns deles.

Veja aqui — apontou a Jamal. — Esta passagem me parece bas­tante significativa.

Saulo diz: "O Deus pai enviou o filho para resgatar os pecados dos homens, como sacrifício supremo." Mas como pode existir uma tal blasfê­mia? Saulo retoma o tema da remissão dos pecados contido no Livro de Isaías: "O justo, meu servo, justificará muitos, e carregará em seus ombros a iniqüidade deles", e se confunde tomando o Messias, o escolhido de Deus, por Seu filho, sem compreender o significado da filiação divina. O escolhi­do pelo Senhor senta-se à direita Dele e o que é essencial é sua função, e não a genealogia.

"Eu sou Deus e não homem", lê-se no Livro de Oséias, e isso atesta que é impossível uma mescla entre humano e divino. O próprio Deus disse de Salomão, filho de Davi: "Eu lhe serei pai e ele me será filho. Se fizer o mal, eu o castigarei." E, nos Salmos, Deus diz de um rei: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei", e um rei se dirige assim a Yahvé: "Tu és meu pai, meu Deus e rocha da minha salvação."

Deus adota os justos, torna-os seus filhos.

Na Divindade não podem existir um pai e um filho, visto que a Divindade é indivisível. Um pai precede forçosamente um filho, porque, se coexistissem desde sempre, seriam gêmeos. Jeshua era filho de Deus enquanto adotado por Ele, como consagrado. Quando se alcança a perfei­ta santidade, é-se adotado por Deus.

Saulo diz: "Cristo instituiu uma nova aliança, que substitui aquela esti­pulada entre Deus e Moisés e testemunhada pela Torá. Uma aliança que compreende todos os povos, e não somente o hebraico, à espera do reino dos céus." Mas, para Jeshua, existia um só reino, o de Yahvé.

 

— Huummm... de fato, no Corão, Jesus nega ter usurpado Deus de algum modo — comentou o emir, após alguns instantes de refle­xão. — Alá pergunta a Jesus se ele e Maria são duas divindades além de Deus, e Jesus lhe responde que jamais afirmou semelhante coisa. Ele é um nabi, um profeta, e também um rasul, um mensageiro, nada além disso. Como tal, não morreu, mas sim foi escolhido por Deus antes de acabar na cruz, ascendendo ao céu e sentando-se ao lado de Alá à espera do Fim dos tempos. Segundo o pensamento xiita, Jesus foi o único dos profetas a ascender ao céu, assim como Enoque e o sobrinho de Maomé, Hussein. "Na realidade, os hebreus não o mataram em absoluto", lê-se no Corão. Já o Sahih, coletânea dos ensinamentos do Profeta, assim motiva a exclusão dos cristãos do paraíso: "Eles dirão: Sempre adoramos Jesus, o filho de Deus. E lhes será respondido: Estais mentindo. Deus nunca tomou alguém como mulher ou filho."

Para nós, judeus, Elias e Eliseu também subiram ao céu — esclareceu Rebeca.

Pensamento xiita? Você quer dizer muçulmano? — A observa­ção de Jamal havia suscitado uma curiosidade inédita até em Sara, que parecia interessada.

Um apaixonado está sempre disposto a amplificar qualquer sinal que ecoe suas esperanças de ser correspondido, ignorando os muitos indícios que testemunham o contrário, pensou Rebeca, enquanto esperava a resposta do emir.

Minha querida, o mundo muçulmano está dividido em duas grandes famílias, que penam para encontrar uma conciliação — apressou-se Jamal a explicar. — Nós, árabes egípcios, por exemplo, pertencemos ao ramo xiita, de shi'ah, que significa "divisão". Conforme acreditamos, o verdadeiro sucessor de Maomé é Ali ibn Abi Talib, que desposou a filha do Profeta, Fátima, mas foi somen­te o quarto dos califas. Seu filho Hussein o sucedeu, mas foi morto em Kerbala, e é o maior mártir venerado por nós, xiitas.

"Segundo os sunitas — de sunnah, 'ortodoxia' —, porém, o legí­timo sucessor do Profeta foi justamente aquele que se tornou califa após a morte dele, ou seja, Abu Bakr, que ficara ao lado de Maomé durante as lutas para afirmar a Verdadeira Fé. Nós, xiitas, também acreditamos que os imames, os guias da prece viva, podem funcionar como intermediários entre o homem e Alá, ao passo que os sunitas não crêem que existam homens capazes de ser uma ligação entre Deus e os fiéis. Meu guarda pessoal, por exemplo — acrescentou, apontando Firuz, empertigado um pouco fora da entrada da casa —, é um sunita, como todos os turcos seljúcidas. Isso não me impede de confiar nele e de considerá-lo um excelente amigo. Mas, infelizmen­te, é raro que isso aconteça entre xiitas e sunitas."

Talvez tenha sido justamente por essa razão que os cristãos chegaram até aqui — arriscou Rebeca. — Se todos os muçulmanos, árabes e turcos, tivessem se unido contra o inimigo comum, duvido que eles percorressem tanta estrada...

Como negar? — assentiu Jamal, desconsolado. — Essa divisão torna muito mais débil a nossa jihad, a luta contra os infiéis pela afirmação da verdadeira fé. Por outro lado, é justamente por isso que o memorial cuja posse você detém poderia representar uma grande vantagem também para nós, muçulmanos, além de para vocês, hebreus...

Em seguida, o emir preferiu conduzir a conversa para temas mais estritamente religiosos:

Assim como nós, muçulmanos, o próprio Jesus consideraria blasfema a religião que seus sucessores construíram em torno de sua figura. De servo de Deus transformaram-no em um deus. Ele era um messias, o messias que anunciou a vinda do Profeta. No Corão, declara: "Povo de Israel, na verdade eu sou um mensageiro de Deus. Vim para confirmar aquilo que foi revelado antes de mim pelo Antigo Testamento. Vim para trazer o feliz anúncio de um mensa­geiro que chegará depois de mim: seu nome será Ahmad." Em árabe, ahmad significa "digno de louvor". Maomé veio para purificar o judaísmo e o cristianismo.

Além disso, segundo o que posso perceber lendo os Evange­lhos deles, o próprio Jeshua insistia em esclarecer que era apenas um homem — completou Rebeca. — No Evangelho de Marcos, por exemplo, quando o chamam "mestre bom", pede que não o chamem assim, porque "ninguém é bom, a não ser Deus". Nesse Evangelho, Jeshua recita o Shemá, a profissão de fé em um só Deus, o Senhor, adotada em todas as sinagogas. O Jesus descrito pelo evangelista Marcos está em busca de seu ser, ao passo que no de João, um Evan­gelho provavelmente posterior, tem certeza de ser o filho de Deus: "Antes que Abraão fosse, eu sou", proclama. Isso demonstraria o processo que levou à divinização de Jeshua, sancionada séculos depois nos concílios da Igreja. Para os romanos e para os gregos, era muito mais aceitável uma religião cujo fundador fosse um semideus cuja mãe, por sua vez, tinha sido fecundada por uma entidade divi­na: experimente imaginar quantos existem, na mitologia grega e na romana.

"Por outro lado, o Tanakh está cheio de testemunhos sobre os encontros entre os profetas e Yahvé, de Moisés em diante. Nos Evangelhos, ao contrário, não há uma só passagem que ateste um encontro entre Jesus e Deus, uma coisa que, se já se esperaria de um profeta, até poderia ser dada como certa entre pai e filho. Além disso, na cruz Jeshua pronuncia palavras de descrente, dizendo que Deus o abandonou. Será possível que um ungido, um consagrado por Deus, afirme tal coisa, quer seja considerado como filho de Deus, como messias ou como profeta? Nos três casos, ele deveria conhecer antecipadamente o próprio destino."

E, além do mais, agora temos esse memorial. Quem escreveu que Jesus era somente um homem, ainda que excepcional, foi o irmão dele, um de seus discípulos e seu sucessor... — comentou o emir. — Não fala de ressurreição do corpo, nega a encarnação e a redenção através de sacrifício. Em essência, desmonta tudo aquilo que constitui a base da religião cristã.

Ou, pelo menos — objetou Rebeca —, muda os pressupostos dela, restituindo a Jeshua sua origem hebraica e sua vontade de se colocar a serviço da Torá interpretando-a, e não a superando, como prefeririam seus seguidores. Sem dúvida, não é possível que o irmão e sucessor promovesse conceitos contrários aos dele...

Ao passo que é muito possível que quem fez isso tenha sido alguém interessado em agradar aos dominadores romanos... — acrescentou Jamal.

Poderíamos dizer que o verdadeiro Judas, o traidor de Jeshua, foi Paulo, e não seu discípulo... — Sorriu Rebeca amargamente.

Ainda que, com isso, tenha feito a fortuna da nova religião...

Pois é. Se Jeshua não tivesse tido um promotor hábil como Paulo, seria apenas um dos muitos profetas justiçados pelos roma­nos por seu messianismo e por suas exortações a não pagar os tribu­tos. E talvez fosse menos conhecido no mundo do que seu contem­porâneo Hillel, que não dizia coisas muito diferentes das dele...

Agora, porém, devemos garantir a sobrevivência deste manus­crito — observou Jamal, voltando ao que interessava. — Tenho cer­teza de que a cidade poderá resistir ao assédio sem dificuldade, até a chegada do grão-vizir, mas não devemos excluir a presença de espiões e traidores. Portanto, convém que você não mantenha em sua casa documentos tão delicados; e eu tampouco posso conservá-los, pois estou muito exposto. Trata-se de encontrar um esconderijo seguro, até que passe a tempestade. Depois, poderemos entregá-lo ao grão-vizir, que certamente encontrará a maneira de extrair deles a maior vantagem possível, para nós, muçulmanos... mas também para vocês, judeus.

Ficaram ambos sem falar, por alguns instantes. Jamal refletiu sobre o quanto a descoberta de tal documento poderia favorecer sua carreira. Na verdade, era um resultado maior do que um triunfo militar no campo de batalha...

Rebeca se perguntou se fizera bem ao falar daquilo com o emir, cujos objetivos eram indubitavelmente políticos. Concluiu que esta­va sozinha e, afinal, precisava se apoiar em alguém. Se este fosse poderoso e influente, melhor.

E poderosos, entre os hebreus, não existiam. Só restavam mesmo os árabes...

— Já não temos esperanças... — principiou o duque Roberto da Normandia no conselho de guerra que os grandes do exército haviam convocado dois dias depois do malogro diante das muralhas de Jerusalém.

Para você é fácil falar — contestou-o, indignado, Roberto de Flandres. — Você volta para seu confortável ducado na Normandia, que seu pai construiu e defendeu durante décadas, e usufrui dele sem ter feito nada para merecê-lo. Mas e nós? E eu? Não tenho nada à minha espera no Ocidente.

Ricardo ouvira dizer que os chefes da cruzada não faziam senão brigar, quando se tratava de decidir estratégias e objetivos, sem cui­darem de dissimular muito suas ambições terrenas. Sabia disso como todos sabiam, porque os rumores circulavam e divergências daquele tipo eram um dos mais freqüentes assuntos de conversa entre as tropas. Mas era a primeira vez que assistia diretamente às discussões, graças ao seu novo comandante, Raimundo de Saint-Gilles, que o quisera presente à reunião como seu ordenança.

Senhores, senhores! — interveio o bispo normando Arnulfo de Martorana, o eclesiástico de maior autoridade depois da morte de Ademar de Le Puy, ao menos até a chegada de um novo legado pon­tifício. — Não é assim que podemos servir ao Senhor. Acham que, falando em termos tão materiais, obterão Seu apoio ao empreendi­mento?

Ricardo imaginou que os eclesiásticos deviam ter repetido mil vezes esse tipo de advertência, mas sem resultados.

A obtenção de fins temporais não contraria o cumprimento dos votos feitos antes de partir, padre — objetou Godofredo de Lorena. — Aqui, estamos discutindo sobre estratégia militar e polí­tica, e qualquer questão debatida está a serviço do Senhor, pois tem como finalidade a conquista da Cidade Santa.

Pois então falemos dessas estratégias, em vez de nos perder­mos em parolagens inúteis! — interveio Raimundo de Toulouse. —

Estamos todos de acordo que não podemos desistir agora? — per­guntou, olhando os presentes.

Todos assentiram, uns com mais convicção, outros com menos. Estes últimos, refletiu Ricardo, talvez o fizessem só pelo temor de parecerem covardes como o conde de Blois, que diante dos muros de Antioquia tinha ido embora.

Bom. Estabelecido isso, trata-se então de decidir a conduta a adotar. Novo assalto ou assédio? Eu sou pelo assédio — prosseguiu Raimundo. De novo, aguardou a resposta.

O normando Tancredo, o mais jovem da companhia, declarou-se de acordo com ele. Seguiram-se os outros, que mostraram a mesma opinião. Godofredo, porém, percebera que Raimundo falava como comandante supremo, limitando-se a expor aos subordinados suas próprias conclusões, e tentou assumir as rédeas da discussão:

São duas as questões que devemos resolver, se quisermos jogar todas as nossas cartas em um assédio — declarou, com solenidade. — Devemos abrir vias seguras de abastecimento hídrico, sem a cada vez nos arriscarmos a perder dúzias de homens por um odre de água, e devemos encontrar madeira para construir máquinas de assédio: essas muralhas são espessas demais para pensarmos em demoli-las sem aríetes ou trabucos, e muito altas para escalar sem torres móveis.

Era o que eu pretendia dizer, na verdade — afirmou Raimundo, no qual Ricardo percebeu um certo aborrecimento.

E onde você pensa encontrar a madeira necessária? Entre outros problemas, naquilo que restou do nosso exército não abun­dam nem sequer engenheiros capazes de construir coisas assim... — observou Tancredo, em tom de sabichão.

Ricardo notou que o jovem normando se dirigira a Raimundo, e não a Godofredo, que, no entanto, havia introduzido o assunto. Era o conde de Toulouse, e não os lorenos, que Tancredo queria deixar em dificuldades. Ao que parecia, estava se formando uma articula­ção entre germânicos e normandos contra os franceses meridionais. Tancredo era um esquentado, ainda mais perigoso do que seu tio Boemundo, que pelo menos sabia ser diplomático quando necessário. Tê-lo do lado contrário, refletiu ainda Ricardo, podia ser um verda­deiro problema para Raimundo, que se arriscava a ficar isolado.

Pois bem... — principiou o conde de Toulouse, tentando não demonstrar hesitações e dúvidas. Não conseguiu, porém, esconder a irritação por uma pergunta tão espinhosa, cuja resposta ele deixaria de bom grado para Godofredo. — De agora em diante, cada expedi­ção será precedida por batedores leves, escoltados por arqueiros, com a tarefa de abrir o caminho aos destacamentos encarregados do transporte e da defesa das provisões e dos materiais encontrados. Devemos criar corredores de segurança — continuou, indicando o mapa aberto sobre a mesa —, tanto na direção do litoral quanto na do rio Jordão e do mar Morto. Por enquanto, eu desprezaria o norte, onde as colinas próximas a Nablus e Nazaré poderiam dificultar a defesa contra emboscadas.

Mais fácil de falar do que de fazer — observou Godofredo, que podia se permitir qualquer objeção, visto que não era ele quem devia expor a estratégia. — A costa é patrulhada pela frota fatímida, e ime­diatamente além do Jordão as forças adversárias podem assaltar nos­sos destacamentos sempre que nos aproximarmos do rio. Além disso, atravessá-lo me parece inviável.

Sem contar que, de uma hora para outra, o grosso do exército egípcio poderia nos agredir a partir do sul... — acrescentou Roberto de Flandres, mais do que nunca disposto a secundar o irmão.

A um observador superficial, pensou Ricardo, pareceria que todos se dirigiam a Raimundo porque o reconheciam como chefe in­discutível da expedição. Mas era exatamente o contrário: pediam-lhe luzes para deixá-lo em dificuldades e obrigá-lo a renunciar às suas pretensões de comandante supremo.

Mas o conde de Toulouse sabia agüentar bem a pressão.

Com o exército do Cairo eu não me preocuparia, por enquan­to — respondeu, seguro. — O governador da cidade deve ter envia­do um pedido de socorro à capital quando nós chegamos diante das muralhas ou, na pior das hipóteses, nos dias imediatamente anterio­res. Por conseguinte, devemos considerar o tempo necessário ao grão-vizir para reunir um exército. Além disso, como se tratará de um exército sem dúvida consistente, os árabes levarão tempo para conduzi-lo do Egito até aqui. Digamos que, sendo pessimistas, temos um mês para preparar um assalto como deve ser... No que se refere à frota inimiga, sua presença não nos impede de desbastar a rota no interior, até chegarmos perto da costa.

E como pretende empregar esse mês, se nos falta madeira?

Realmente não tinham intenção de lhe dar trégua, pensou

Ricardo.

Em minha opinião, a madeira não falta. Foi escondida — replicou o conde, com a mesma convicção inabalável com que con­tinuara a afirmar a autenticidade da Lança Sagrada descoberta por Pedro Bartolomeu. — Todas as árvores cortadas e as máquinas utili­zadas pelos árabes no ano passado para assediar Jerusalém... eles não podem tê-las destruído nem levado todas para dentro da cidade. Uma coisa é cortar uma árvore ou desmontar uma máquina, e outra é destruir ou transportar tudo. Convém procurar nos arredores da cidade. Além disso, nossas patrulhas, adequadamente protegidas como eu já disse, encontrarão madeira mais longe, assim como encontrarão água e víveres...

Você é tão otimista que poderia ser definido como leviano. E ninguém pode se permitir ser leviano quando é responsável por milhares de homens... — observou Godofredo, que em geral não parecia se preocupar muito com a sorte daqueles que ele enviava para a morte em batalha, refletiu Ricardo.

E, mesmo que encontrássemos madeira, quem nos dará as cor­das, os pregos e os parafusos necessários para construir as máquinas? — objetou Tancredo, com o atrevimento habitual. — Acha que vai encontrar alguma loja nos centros habitados por estas bandas? Ou pensa que os muçulmanos esconderam inclusive essas coisas, junto com a madeira?

Talvez o conde disponha de engenheiros capazes de construir máquinas com peças de encaixe... — Agora, também Roberto de Flandres, encorajado pela atitude do irmão e de Tancredo, fizera-se irreverente.

E preciso confiar no apoio do Senhor. E agir de maneira a merecê-lo, naturalmente — respondeu Raimundo, sem mostrar qualquer perturbação. — Afinal de contas, é por Ele que estamos combatendo, não?

A reunião do estado-maior terminou deixando para trás uma desa­gradável esteira de desarmonia entre os chefes, embora tivesse sido obtido um acordo genérico quanto à estratégia a adotar. Porém, refletiu Ricardo enquanto Raimundo o liberava, qual seria a eficácia de uma estratégia aceita somente para demonstrar que seu idealizador era incapaz de comandar?

Perguntou-se o que deveria dizer aos companheiros, que certa­mente o cobririam de perguntas. Não gostaria de desmotivá-los ainda, falando-lhes das dissensões às quais tinha assistido. Muitos deles já estavam esgotados pelas privações, e somente a grande fé que os sustentava, alimentada continuamente pelos padres agregados ao exército, permitia-lhes continuar acreditando que aquele empreen­dimento poderia ter um resultado positivo.

Ricardo, por sua vez, sem dúvida não podia afirmar ser sustenta­do pela fé. Mas considerava ter encontrado, no desejo de remissão e de crescimento, um estímulo igualmente poderoso.

Não queria se prestar aos interrogatórios dos soldados. Queria se divertir, de preferência. Lembrou-se de que ainda devia aprovei­tar a oferta daquela prostituta: Inês era o nome dela. Seu novo cargo lhe deixava menos tempo para se entregar às mulheres; talvez fosse o caso de se valer do momento de liberdade.

Dirigiu-se ao acampamento dos lorenos, onde a moça exercia seu ofício. Bela mulher, pensou. Devia ser agradável estar com ela. E também parecia bem-disposta.

Além disso, até o duque de Lorena dava a impressão de ter fica­do satisfeito com o trabalho dela, visto que a chamara de novo. Habitualmente, os soldados tendiam a mudar de prostituta, tanto por ser mais divertido fazer comparações quanto para não se arris­carem a gastar seu dinheiro em algo já experimentado.

Até agora, mais do que outras coisas, tinham sido as circunstân­cias a lhe oferecer a possibilidade de ir com aquela prostituta, pagan­do ou não. Havia acontecido e pronto. Não existira, de antemão, aquela vontade que com freqüência atua como propulsor para o desejo. Desta vez, porém, via-se impelido por uma determinação que crescia à medida que ele focalizava sua atenção sobre aquela mulher.

Sentiu-se invadido por uma forte excitação.

Aumentou a cadência dos passos, até quase correr. Chegou dian­te da tenda de Inês e viu que não havia ninguém ali fora. "Bom. Vou fazer uma surpresa a ela", pensou. "Se de fato estiver ansiosa por me encontrar, como me pareceu, só poderá ficar contente por me ver."

Entrou decidido na tenda, sem se anunciar. Lá dentro estava escuro, naturalmente, mas a luz filtrada para o interior quando ele levantou o pano que fechava a entrada lhe revelou o que estava acontecendo, antes mesmo da reação dos ocupantes.

Mas que diabo você quer? Espere sua vez! — reclamou um homem, deitado no chão, nu. Suas mãos acariciavam um dorso mag­nífico, coroado por ombros robustos que ressaltavam uma cintura tão fina a ponto de parecer ajustada sobre si mesma, e um traseiro perfeitamente redondo.

Não ouviu? Não gosto que me olhem enquanto estou trabalhando... — disse Inês, girando o pescoço de modo quase inatural para fitá-lo.

Ricardo teve a impressão de captar um sorriso malicioso naque­le olhar, mas a penumbra o deixava inseguro.

A penumbra? Não seria o papel de bobo? Foi essa dúvida que o acompanhou enquanto, já desprovido de sua habitual afoiteza, ele baixava o pano da tenda e, sem dizer uma palavra, dispunha-se a esperar sua vez.

 

Ricardo logo recuperou a confiança. Essa mulher está ansiosa para estar comigo, disse a si mesmo. Que importância terá dado à minha entrada vexaminosa? Certamente, pensou, comprazido, empregará toda a sua consumada arte para se livrar o quanto antes daquele homem. E uma mulher como aquela, concluiu, quando se empenha, é capaz de saciar um cliente em poucos instantes...

Os poucos instantes passaram sem que da tenda saísse vivalma. Em contraposição, pareceu-lhe escutar gemidos e suspiros, tanto de homem quanto de mulher. Com o tempo, gemidos e suspiros se tor­naram mais inteligíveis, transformando-se finalmente em gritos, mais uma vez de homem e de mulher.

Bem. Devem ter acabado, imaginou, embora tenham demorado mais do que o previsível. Levantou-se, removendo a poeira do fundilho das bragas com uns tapas e esfregando as mãos. Aproximou-se da entrada, pronto para se introduzir lá dentro assim que o cliente saísse. Mas depois achou que não devia se mostrar muito ansioso e recuou, detendo-se a poucos passos de distância.

Não saiu ninguém.

Devem estar negociando o pagamento, pensou. "O típico pão- duro... Diz que não tem dinheiro e que pagará assim que puder... Que amolação!"

Nada ainda.

"Mas é estranho", disse a si mesmo, após mais uns minutos de espera. "Se estivessem negociando, eu ouviria a discussão. Ou melhor, depois desse tempo todo, eles deveriam até estar brigando, se ainda não tiverem entrado em acordo..."

A tenda continuava fechada.

Começou a ficar nervoso. Uma sensação desagradável, quando era acompanhada, como naquele momento, pela excitação.

Gostaria de gritar, irromper na tenda e jogar longe aquele homem, agarrando depois a mulher com toda a força. Mas ainda estava sufi­cientemente lúcido para perceber que, se fizesse isso, o papel de bobo desempenhado pouco antes não seria nada, em comparação.

Olhou a tenda com tal intensidade que quase esperou enxergar através do couro que a revestia. Mas não obteve nenhum sinal. Então aguçou os ouvidos.

Nada.

Aproximou-se, na esperança de conseguir alguma indicação sonora.

Finalmente, ouviu alguma coisa.

Gemidos e suspiros.

Afastou-se de chofre da parede da tenda, como se um braço fosse sair repentinamente de uma fissura para lhe dar um soco. Depois, encostou de novo o ouvido.

Mais gemidos e suspiros.

De homem e de mulher.

Ou melhor, na verdade, os da mulher pareciam mais intensos...

Não conseguiu mais tirar o ouvido da superfície da tenda. "Logo na minha vez", disse a si mesmo, despeitado, "tinha de aparecer um dos poucos soldados com muito dinheiro à disposição, e vitalidade suficiente para se permitir duas vezes, uma logo após a outra..." Decerto, concluiu, aquele era um trânsfuga que não havia lutado no assalto, ou um covarde que permanecera na retaguarda, ou então não fora capaz de transpor nem sequer a primeira muralha...

Aguardou mais, e mais, e mais. Parecia uma relação interminá­vel. Sempre que os suspiros aumentavam de intensidade, ele espera­va ouvir gritos logo depois, mas, ao contrário, os suspiros recomeça­vam, cada vez mais desagradáveis.

Os gritos, quando vieram, foram mais fortes, mais intensos e mais prementes do que os do amplexo anterior. Ricardo não conse­guiu evitar imaginar os dois ofegantes, cobertos de suor, extenuados.

Afastou-se da tenda e aguardou ainda mais, tentando assumir uma atitude indiferente.

Por fim, o pano que fechava o pavilhão se abriu e o homem apa­receu. Estava mesmo ofegante, coberto de suor, extenuado.

Mas com uma expressão bastante feliz e saciada.

— É de enlouquecer! — disse ele a Ricardo, enquanto ia embora. — Esta aí lhe concede um segundo turno, se você a satisfizer no pri­meiro!

 

Infelizmente, como você sabe, a água está racionada e, para nós, as putas, já é muito se nos derem alguma para beber. Mas, para tomar banho, imagine... — disse Inês, saindo ofegante da tenda, coberta de suor, extenuada. E seminua, com os longos cabelos negros colados na testa e nas faces. — Espero que não se incomode se estou suja de suor e do sêmen do meu cliente anterior... — acrescentou, convidando-o para entrar, com um sorriso que a Ricardo pareceu de zombaria.

Não devia ser tão especial assim aquela sua oferta de se conce­der sem pagamento. Eu soube que você costuma fazer ofertas vanta­josas, do tipo "duas pelo preço de uma..." — retrucou Ricardo, cáus­tico, sem se mover.

Você não deve ter achado tão especial assim a minha oferta, se demorou tanto a aproveitá-la... — replicou ela, sem modificar sua expressão.

Ricardo se manteve calado por alguns instantes, sem saber o que responder. Depois, não achou nada melhor a dizer, exceto:

Fui promovido, e minhas obrigações se multiplicaram. Ser ordenança do conde de Saint-Gilles não é nenhuma bagatela...

Gostei de ver que você conseguiu um instante livre para se conceder algum prazer no meio de todos os seus deveres — observou ela. — Bem, vamos, então? Ou não lhe agrada uma puta sem perfu­mes nem ungüentos?

Bem, pois é... eu... não, você é bonita de qualquer jeito, mas... - balbuciou Ricardo, intimidado por aquela atitude agressiva. A essa altura, sua excitação se atenuara.

Não me diga que um soldado rude e valoroso como você é enjoado...

Enjoado nada! — protestou Ricardo. — E que eu... Está bem... - acrescentou, não muito convicto.

Ele não é enjoado, está é ocupado. — A voz vinha detrás de Ricardo. O normando se voltou. Diante dele, havia um jovem men­sageiro do estado-maior de Raimundo.

Procurei você por toda parte. O conde está chamando. Há novidades importantes.

Que tipo de novidades? — perguntou Ricardo, quase agrade­cido ao companheiro por tê-lo livrado do embaraço.

Uma flotilha anglo-genovesa conseguiu transpor o bloqueio egípcio e atracar no porto de Jaffa.

 

Emanuel ainda se perguntava por que o tinham acordado antes do alvorecer. Estava em marcha com uma unidade lorena havia horas, sob um sol devastador, ainda por cima para um homem a pé e com armadura completa. Invejava os vinte cavaleiros, confortavelmente montados, que iam adiante dele e dos outros quarenta e nove infantes, em grande parte besteiros. Obviamente, ninguém se mos­trara propenso a lhe dirigir a palavra.

Sabia apenas que se dirigiam a Jaffa. Por orgulho, tinha evitado pedir mais informações, embora duvidasse que os infantes soubes­sem mais do que ele. Perguntaria, se fosse o caso, ao comandante da expedição, o conde Galdemar, que entre suas tropas gozava de um estranho apelido, Carpinello,[6] cujo significado lhe fugia. Era um tipo rústico, como, aliás, grande parte dos francos, e parecia muito contente com a missão que lhe fora confiada, qualquer que fosse ela.

Na opinião de Emanuel, porém, não havia nada para se comprazer. Eram um punhado de homens, percorrendo um território não totalmente liberado, onde, de um momento para outro, podiam aparecer os muçulmanos. A base fatímida mais próxima ficava pou­cos quilômetros a oeste, em Ascalon, e era previsível que eles patru­lhassem o território.

E, também, o que iam fazer em Jaffa? A cidade era apenas um acúmulo de pedras e tijolos, e até o castelo estava desmoronado, à exceção de uma única torre.

Emanuel teve a desagradável mas não inédita sensação de fazer parte de um contingente-isca, que atraísse o inimigo sobre si para permitir o desenvolvimento de alguma outra ação. Além disso, se o tinham inserido no grupo, significava que eles eram apenas gente sacrificável...

Sob o elmo e a armadura, estava encharcado. Seus companheiros não lhe pareciam em melhores condições do que ele: todos cobertos de suor e ofegantes, embora a caminhada não fosse muito rápida. A julgar pela posição do sol, sem dúvida já passara a hora terça, e ele avaliou que já deviam ter feito metade do percurso. Ao que imagi­nou, certamente se encontravam na planície que se estendia em torno de Ramleh, a primeira e única cidade muçulmana que os cru­zados tinham ocupado, quatro dias antes de chegarem a Jerusalém, graças à fuga dos habitantes.

A ofuscante luz do sol tornava tudo indistinto. O horizonte tre­mulava, e só apertando os olhos podiam-se vislumbrar aproximativamente os contornos. Por isso, Emanuel e os outros sentiram as vibrações do terreno antes mesmo de distinguirem a nuvem de poei­ra aproximando-se a partir do sudoeste.

Viraram-se todos para aquela direção, aguardando que a nuvem se fizesse mais próxima para enxergar melhor o que a alimentava. Carpinello ordenou que parassem, dispondo a frente na direção da possível ameaça, com os cavaleiros nas alas, dez de cada lado, os bes­teiros alinhados no centro e, atrás deles, a infantaria pesada.

Mesmo na retaguarda, Emanuel conseguiu ver do que se tratava, assim que a poeira ficou mais próxima. Embora indistintas, per­cebiam-se as silhuetas de cavaleiros.

Centenas de cavaleiros.

Árabes. E também turcos.

 

A missão era daquelas delicadas. Ou melhor, a mais delicada entre as muitas já executadas para obter víveres, desde quando estavam diante das muralhas de Jerusalém. Ricardo se sentia honrado por fazer parte dela, até porque Raimundo de Toulouse colocara à sua disposição uma cota de malha completa, com capuz e elmo, um equipamento de que o normando não dispunha desde os tempos de Emich.

Mas, sobretudo, sentia-se aliviado por não fazer parte da vanguarda, à qual cabia a tarefa infausta de chamar a atenção do inimi­go, com o objetivo de liberar o caminho até Jaffa para o verdadeiro contingente de apoio.

Estranho, pensou Ricardo enquanto marchava sob o sol abrasador, que os egípcios tivessem negligenciado a vigilância de um porto tão próximo de Jerusalém, mesmo dispondo de uma frota imponen­te e senhora absoluta do mar. Depois de conseguirem se esgueirar através da malha árabe, os genoveses tinham alcançado Jaffa e solici­tado uma tropa para o que restava da cidade, ou seja, a torre sobranceira ao porto. O pedido fora acompanhado de uma lista detalhada das mercadorias que os navios — dois genoveses e quatro ingleses — transportavam: cordas, pregos, parafusos e tudo que fosse necessário à construção de material obsidional, além de uma grande quantida­de de víveres. Isso havia sido suficiente para que os chefes cruzados organizassem uma imediata expedição de apoio.

Mas convinha descartar todos os riscos de perder aquela carga tão preciosa. Assim, Godofredo tivera a idéia de fazer o verdadeiro contingente ser precedido por uma companhia que atraísse a aten­ção do inimigo, certamente emboscado para bloquear qualquer pas­sagem para o mar. O fato de ele ter escolhido para o sacrifício seus próprios homens, refletiu Ricardo, revelava muito sobre a conside­ração que o duque tinha pela vida dos combatentes. Fosse como fosse, Raimundo havia aprovado o plano sem fazer objeções.

Ricardo e os outros tinham partido cerca de uma hora depois do conde Galdemar. A rigor, portanto, não corriam riscos, ao menos no trajeto de ida. Qualquer problema despencaria antes sobre os germânicos. Já os provençais só precisariam observar a situação, verificar a posição de Galdemar e deixar que este se arranjasse com os muçulmanos, passando ao largo sem se envolver na escaramuça e, possivelmente, sem que o inimigo sequer os visse. Por outro lado, o comandante dos cinqüenta cavaleiros, Raimundo Pilet, parecia conhecer bem seu ofício, e não menos experiente era o comandante dos duzentos infantes que o seguiam, Guilherme de Sabran, sob cujas ordens estava o próprio Ricardo. Ou seja, parecia uma missão não particularmente perigosa, embora de grande significado estraté­gico e logístico.

Tinham acabado de entrar na planície de Ramleh. Agora não havia colinas que limitassem a visibilidade e era possível, mesmo com as dificuldades ligadas à refração do sol, estender o olhar por um raio muito amplo. Para quem estava montado, então, o horizon­te não tinha segredos.

O senhor também está vendo aquela grande nuvem de poeira, ali a noroeste, comandante? — disse um cavaleiro que ia ao lado de Raimundo Pilet.

De fato, estou vendo. E é bem grande. O que acha, Guilherme? — perguntou o comandante ao seu colega da infantaria, junto do qual marchava o próprio Ricardo, na qualidade de ordenança do conde de Toulouse.

Pois é. Ao que parece, nossos amigos germânicos atraíram um bom punhado de muçulmanos. Portanto, não devem ter restado muitos em circulação por aqui... — respondeu Guilherme.

Bom, precisamos apenas nos desviar para oeste e chegar a Jaffa seguindo ao longo da costa... — concluiu Pilet.

Até porque são germânicos... além do único traidor bizantino que ficou grudado às nossas bragas... Gente que é melhor perder do que encontrar! — comentou Sabran, com total displicência.

"Um bizantino? Emanuel!", pensou Ricardo. Um frêmito de irri­tação o percorreu. Apenas dois dias antes, aquele grego se demons­trara um dos cruzados mais valorosos, e perdera seu contingente inteiro para abrir caminho ao assalto. E os comandantes, longe de apreciar-lhe a coragem, ainda usavam-no como chamariz e, o que era pior, desprezavam-no mais do que nunca.

Mas ele não concordava com isso. Não era como eles. Era ambi­cioso, talvez desabusado, mas não tinha preconceitos, e dispunha-se a julgar as pessoas pelo que valiam, não pelo que representavam.

Por um instante, perguntou-se se sua ausência de preconceitos se devia ao seu ceticismo religioso, antes de se concentrar num modo de salvar o grego.

O conde Galdemar tinha criado a frente mais ampla possível para evitar ser cercado, mas seu esforço se revelou inútil. Quando a cava­laria inimiga ficou mais próxima, Emanuel constatou que deviam ser pelo menos uns seiscentos, à primeira vista. Quase dez vezes o número deles.

O comandante optou por uma tática agressiva. Emanuel o com­preendia: enquanto o inimigo ainda estivesse à distância de um tiro de besta, convinha aproveitar, antes que as centenas de arqueiros ára­bes e turcos desencadeassem sua ação, que se prenunciava devastado­ra. Não que umas trinta flechas de besta pudessem incidir de manei­ra significativa sobre uma formação tão imponente. Por mais eficazes que fossem e de maior alcance em relação aos arcos, essas armas eram carregadas muito mais lentamente e, com toda a probabilidade, os cristãos não teriam tempo de efetuar uma nova saraivada.

Galdemar ordenou aos besteiros que atirassem na aglomeração envolta por uma nuvem de poeira. Logo depois, mandou-os pendu­rar as bestas nos flancos e continuar o ataque, abrigados atrás dos escudos, a fim de se protegerem das flechas inimigas.

Depois de alguns passos, Emanuel viu surgir da poeira um primeiro disparo de dardos. Postou-se instintivamente de lado, colo­cando o escudo diante do corpo, e sentiu de imediato um impacto violento, seguido da típica vibração da flecha recém-espetada na madeira. O companheiro que estava junto dele foi menos afortuna­do: o dardo destinado a ele penetrou-lhe o pé, pregando-o ao solo e obrigando-o a permanecer no mesmo lugar.

A maior parte das flechas se plantou no terreno fronteiro. Mas não quando veio a segunda descarga, que investiu em cheio o peque­no enfileiramento cristão. Alguns cavaleiros se viram sem montaria, e entre os infantes abriram-se vazios. Então os muçulmanos parti­ram para o ataque. Emanuel os viu avançar e, depois, a cerca de cem metros, dividirem-se em duas alas e dirigem-se aos flancos cruzados. O cerco era apenas uma questão de instantes.

Galdemar percebeu isso e ordenou a disposição em círculo. Os cavaleiros que ainda dispunham de uma montaria desceram da sela e obrigaram os animais a se deitarem, utilizando-os como anteparos. Logo, os sobreviventes haviam formado um círculo delimitado por uns quinze cavalos, que depois de outra chuva de flechas se tornaram outras tantas carcaças.

Os muçulmanos se mantiveram à distância de tiro ainda por bas­tante tempo, continuando a alvejar os cruzados com a ação dos arqueiros. O único efeito que obtiveram, porém, foi a criação de uma espécie de caniçal em torno do círculo e no interior dele. De fato, do lado externo os cruzados estavam protegidos pelas carcaças dos cavalos, e do interno pelos escudos, que cada combatente havia pendurado às costas. Os besteiros, nesse meio-tempo, tinham possi­bilidade e tempo de carregar, mirar e atirar, mas o número das víti­mas que eles ceifavam era quase imperceptível, no mar de guerreiros que girava ao redor da barricada.

Em seguida, Emanuel viu os muçulmanos se deterem de repente. Observou-os enquanto o comandante deles os reunia em quatro seções que se dispuseram respectivamente nos quatro pontos car­deais. Todos desceram dos cavalos e se enfileiraram em várias linhas, permanecendo imóveis, com o único movimento dos altos estandar­tes agitados pelo vento débil, à espera da ordem de ataque.

Estavam prestes a investir.

De todos os lados.

— Abandoná-los aos muçulmanos me parece uma péssima idéia estratégica.

Como disse? — perguntou Guilherme de Sabran, olhando incrédulo o normando que o conde de Toulouse colocara ao lado dele.

Claro — respondeu Ricardo. — Se deixarmos que os inimigos os massacrem e não fizermos nada para espantar os muçulmanos, estes nos atacarão quando voltarmos ou, pior ainda, pelas costas, antes mesmo de chegarmos a Jaffa.

Guilherme não gostava de Ricardo. Tinha a impressão de que o conde de Toulouse o instalara ao seu lado para controlá-lo. Consi­derava-o um simples espião, um leva e traz de Raimundo, sem nenhum mérito militar. Mas duro na queda, e muito. E o que acaba­va de dizer não era nada insensato.

Mas eles podem ser muitos. Talvez demais, até para nós. E nos arriscaríamos a prejudicar a missão... — opinou, não muito convencido.

E a recuperação do material dos anglo-genoveses é o fator decisivo para o êxito do assédio — interveio Pilet, que havia escuta­do tudo.

Mas quantos os senhores acham que eles são? No máximo algumas centenas, e não, certamente, um exército — insistiu Ricardo. — Temos a nosso favor o fator surpresa, e somos muito mais numerosos do que a vanguarda. Sem dúvida, eles não esperam outro contingente.

Os dois comandantes ficaram refletindo.

E arriscado demais — disse Pilet. — Na melhor das hipóteses, mesmo que prevalecêssemos no confronto, perderíamos muitos homens. E não podemos nos permitir isso, tanto para esta missão quanto para o assédio em geral.

Não se evitarmos o confronto, limitando-nos a fazê-los acre­ditar que somos um exército inteiro... — arriscou Ricardo.

E como você pensa fazer isso? Não trouxemos conosco um padre que implore a Deus um milagre... — comentou Guilherme, sarcástico.

Não há necessidade da intervenção divina, se usarmos um pouco de bom-senso — rebateu Ricardo, ignorando o tom odioso do comandante. Dirigiu-se então a Pilet, que parecia alimentar menos ressalvas quanto a ele, além de ter mais autoridade: — Podemos amarrar umas touceiras na cauda dos cavalos. E nós, infantes, iría­mos atrás deles. Se nos enfileirarmos numa frente bastante ampla, poderemos levantar uma tal poeira que faremos o inimigo acreditar que somos um exército. A essa altura, sem dúvida os egípcios teriam medo de ser apanhados entre dois fogos e se retirariam.

Veja só que estrategista refinado! — agrediu-o Guilherme. — Mas se até ontem você era um civil que nunca havia combatido antes desta campanha! Só porque teve a sorte de salvar o traseiro do conde de Toulouse, agora pretende dar aulas a guerreiros experientes?

No entanto, isso pode funcionar... — considerou Pilet. — Se os fizéssemos crer que somos muitos, os muçulmanos poderiam até se esquivar da linha de fogo e voltar, resignados, para Ascalon...

Sem contar que os germânicos nos ficariam agradecidos por terem sido salvos e se sentiriam em dívida com os provençais, ao menos parcialmente — continuou Ricardo. — Uma coesão maior não seria ruim, tendo em vista o que nos espera nas próximas sema­nas. Será necessária uma colaboração, para resistirmos às duras con­dições do assédio...

Não acredito muito na gratidão deles. Mas é lícito esperá-la... Que seja, então. Vamos mandar uns homens recolherem touceiras e arbustos, no menor prazo possível. Acho que tive mesmo uma boa idéia — concluiu Pilet, marcando o fim da discussão, sob o olhar irado de Guilherme e ante um risinho de comiseração por parte de Ricardo, resignado à mesquinhez dos seus chefes.

Em poucos instantes, cada infante trazia consigo um feixe de galhos. Os cavaleiros só precisaram de um tempo ligeiramente supe­rior para conseguir atar os arbustos à cauda dos cavalos. Logo em seguida Pilet dispôs os homens numa única linha com a cavalaria dos lados, deixando amplo espaço entre um combatente e outro. Ordenou que começassem a marchar em passo acelerado. Imediata­mente levantou-se uma imensa nuvem de poeira, da qual emergiu o próprio comandante, que cavalgou na frente para observar o efeito obtido.

Voltou às suas fileiras com ar visivelmente satisfeito.

Eram cerca de duzentos e cinqüenta, mas de longe pareciam dez vezes mais.

Os muçulmanos veriam chegar um exército imponente.

Para Emanuel e seus companheiros, o único consolo era que a barri­cada havia pelo menos obrigado os inimigos a renunciar aos projé­teis e a desmontar. Se quisessem varrer dali os cruzados, os muçul­manos não tinham alternativa ao corpo a corpo, que até então haviam tentado evitar, sabendo que dispunham de armamento infe­rior. O resultado do confronto não mudaria, pensou Emanuel, mas pelo menos os cristãos mandariam vários para o túmulo.

Tirou das costas o escudo e o firmou ao longo do antebraço esquerdo, agitando a espada com a mão direita e incitando os muçulmanos a avançar. Seus companheiros fizeram o mesmo, olhando-o finalmente com uma expressão semelhante ao respeito. Os inimigos logo o imitaram e começaram a marchar, primeiro len­tamente e depois correndo. Diante de si, Emanuel via mais de cem deles. Deu uma olhada fugaz à direita e à esquerda: a seu lado havia, no máximo, uns quinze homens.

Os primeiros muçulmanos se lançaram contra a barreira, tentan­do transpor a carcaça atrás da qual Emanuel os esperava. A precária base de apoio, contudo, obrigou-os a abrir a guarda, e o grego con­seguiu trespassar os dois primeiros. Um terceiro conseguiu penetrar entre ele e o companheiro ao lado, mas Emanuel mudou de empunhadura, girando o guarda-mão entre os dedos, e feriu o egípcio no tórax com um golpe para trás e a lâmina voltada para baixo.

Recuperou prontamente a empunhadura regulamentar, bem a tempo de se defender de outro adversário, que para atacá-lo se colo­cara de pé sobre a barriga do animal morto. Mas o egípcio, empur­rado por um companheiro vindo de trás, perdeu o equilíbrio e caiu diretamente sobre a ponta da espada de Emanuel.

Este se viu com a arma presa no corpo do árabe recém-eliminado e precisou usar o escudo para deter os golpes do novo inimigo. Enquanto isso, à sua direita, o companheiro que lhe protegia o flanco tombava perfurado por uma lança, abrindo caminho à irrupção de outros muçulmanos. Em instantes, abriram-se outros vazios por todos os lados, e os muçulmanos não demoraram a alcançar a supe­rioridade numérica no interior do círculo: em parte porque muitos haviam entrado, em parte porque restavam poucos cristãos vivos.

A Emanuel só restou defender seu lado direito com o corpo do último homem que ele matara e do qual não conseguia extrair a espada. Várias cimitarras se abateram sobre o cadáver, até que o grego conseguiu livrar-se dele, jogando-o contra os inimigos que o acuavam e recuperar a espada. Sempre repelindo com o escudo o adversário da esquerda, preparou-se para vender caro a própria vida a quem estivesse ao alcance de sua lâmina.

Mas, justamente nesse momento, ouviu uma série de berros entre as fileiras muçulmanas. Os que se encontravam diante dele se volta­ram de chofre, expondo-lhe as costas. Emanuel aproveitou-se ime­diatamente, perfurando o guerreiro mais lento em recuar. O outro já estava distante, ocupado em transpor a carcaça do cavalo. O grego o perseguiu e desceu-lhe uma cutilada no pescoço, fazendo-o estatelar-se sobre o animal. Depois, olhou ao redor. Seus compa­nheiros também estavam golpeando adversários que lhes expunham as costas. Todos os outros muçulmanos se retiravam, procurando alcançar os respectivos cavalos.

Pouco adiante, uma grande nuvem, da qual emergiam estandartes.

Estandartes cruzados.

Parecia até fácil demais, refletiu Ricardo. De fato, ao ver os adversá­rios a pé, Raimundo Pilet havia pensado em não se limitar a apavorá-los, mas também em atacá-los antes que eles chegassem aos cavalos. Os cruzados surpreenderam-nos de guarda baixa, muitos desprovidos de escudos, espalhados em pequenos grupos, sem sequer uma aparência de enfileiramento. As espadas e as lanças dos cristãos tiveram toda a comodidade para buscar as partes não prote­gidas dos soldados em debandada, insinuando-se nos pescoços, nas axilas, nas virilhas, amputando braços e pernas sem precisar temer outra reação, afora a tentativa de se subtrair à perseguição.

Ricardo perdeu a conta de suas vítimas. Abriu caminho até o cír­culo, enquanto seus companheiros desafogavam a ânsia de sangue continuando a exterminar os impotentes inimigos, lançavam-se sobre os cavalos para apossar-se deles, recolhiam as armas que os muçulmanos abandonavam na fuga.

Quando se desembaraçou do último adversário entre ele e a bar­ricada, Ricardo deparou com a desoladora visão de um acúmulo de mortos caídos sobre as carcaças dos cavalos, um obstáculo demasia­do alto para deixar perceber o que restara atrás. O normando avan­çou mais um pouco, baixando finalmente a espada e o escudo. Ocupou-se em escalar a barreira, tropeçando algumas vezes nos cadáveres.

Parecia uma fossa comum. Dezenas de corpos jaziam uns sobre os outros, no meio de uma chuva de flechas.

Numa segunda olhada, Ricardo notou que alguns homens ainda se moviam. Estavam sentados, e somente suas cabeças afloravam entre uma pilha e outra de cadáveres. Um ou outro o fitava por sua vez, sem conseguir dizer nada.

Procurou Emanuel. Morto ou não, disse a si mesmo, ele deveria ser distinguível de imediato, por causa do equipamento diferente. Mas a poeira e o sangue haviam tornado os soldados muito seme­lhantes entre si, e também o cadáver do grego podia estar embaixo dos outros.

Decidiu chamá-lo:

Emanuel! Emanuel! — repetiu.

Ao que parece, você está criando o hábito de vir me ajudar... - respondeu um dos homens sentados, o único que até então mantivera a cabeça inclinada.

Voltaram! Voltaram! — gritava Anselmo pelo acampamento afora, desde quando acolhera a coluna retornada da expedição a Jaffa. Seu entusiasmo não diminuiu sequer quando ele irrompeu na tenda de Inês, sem se perguntar se ela estaria trabalhando ou não.

Na realidade, sabia muitíssimo bem que, quando a mulher esta­va no interior do pavilhão, na esmagadora maioria dos casos ocupava-se com um homem, mas a boa notícia, a primeira desde quando o assédio havia começado, dava-lhe uma excelente desculpa para entrar de chofre, a fim de informá-la, talvez encontrando-a como Deus a tinha feito.

E, de fato, assim a encontrou. Inês havia recém-concluído com um jovem soldado de aparência assustada e ainda não se vestira.

Mas como se permite? Saia daqui! — reagiu ela, assim que o viu.

Sou um religioso. Não tenho as pulsões sórdidas que levam vocês a se comportarem como animais. A mim, as pessoas podem se mostrar tão nuas como quando se confessam: eu não julgo e não me deixo envolver... — replicou Anselmo, aparentemente indignado. Mas as gotas de suor lhe desciam mais copiosas, embora ele estives­se finalmente à sombra.

Esqueça... O que você ia dizendo? — continuou Inês, enfiando a roupa.

Anselmo implicou com o rapaz:

O que ainda está fazendo aqui? — agrediu-o. — Não acabou de satisfazer seus apetites bestiais? Enquanto você se comporta como Deus não gosta, outros, uns heróis, combatem e morrem pela causa do Senhor. Vergonha! Vergonha!

O jovem, com ar humilhado e contrito, mostrou ao monge as duas moedas que estava prestes a entregar a Inês como pagamento pelo serviço.

Entregue a mim! — intimou-o Anselmo, estendendo a mão. — Os proventos da atividade imunda desta mulher são para os necessi­tados!

Veja só! — exclamou Inês, quando o rapaz saiu. — Quanta autoridade com os jovens, hein? Eu só queria ver você igualmente seguro com os homens, os de verdade... — escarneceu.

Quer saber da situação ou não? — respondeu Anselmo, tentando mudar de assunto.

Claro... Não foi para isso que você entrou na minha tenda sem pedir licença?

O monge ignorou a alusão.

Pois bem — recomeçou. — As expedições retornaram de Jaffa. E foi um sucesso! O Senhor nos mandou um sinal! E que sinal! Agora, temos tudo que é necessário para construir as máquinas de assédio...

Menos a madeira.

Esta vai aparecer também, pode ter certeza. O Senhor nunca faz as coisas pela metade — continuou Anselmo. — Os nossos chega­ram bem a tempo de livrar do cerco da frota egípcia as tripulações das galés. Tiveram que abandonar as embarcações no porto, mas quantas dádivas de Deus trouxeram junto com os marinheiros! E só perdemos uma parte do primeiro contingente, que era de modesta importância...

Só? E assim que lhe parecem algumas dezenas de caídos? — rebateu Inês, sarcástica.

Claro! Não lamento por eles — replicou Anselmo, como se estivesse explicando a coisa mais óbvia do mundo. — São mártires da fé. Ganharam o reino dos céus, um privilégio que nem todos serão capazes de conseguir.

Ah, é? Então, por que você não está ansioso por ir ao encon­tro deles? Dê um passeiozinho abaixo das muralhas...

O que isso tem a ver? Eu ainda tenho um papel a exercer, aqui na Terra. O Senhor me levará quando assim o decidir. Não sou eu que devo escolher quando morrer. E se eu me fosse antes de ter pres­tado ao Senhor os serviços que Ele espera de mim? E, também, o sui­cídio é pecado mortal, lembre-se...

O bom da religião, pensou Inês, era que, graças a ela, conseguia- se um modo de justificar qualquer coisa, das carnificinas contra pes­soas indefesas à pura e simples covardia. No entanto, haviam lhe ensinado que Jesus exortava a amar os próprios inimigos e a apre­sentar a outra face... Era o conceito que mais a convencera a deixar de lado — não exatamente cancelar — as crenças de seus conterrâ­neos, que a Igreja rotulava de pagãos.

De qualquer modo, se lhe interessa saber — prosseguiu Anselmo, para atrair a atenção dela —, entre os sobreviventes se encontram aquele seu normando e o grego amigo dele... Ou melhor, o bizantino é um dos poucos remanescentes do primeiro contingente...

Não foi preciso dizer mais. Inês terminou de se vestir às pressas, ajeitou os cabelos, segurou-o por um braço e o conduziu para fora da tenda.

Vamos recebê-los. Deve haver alguns querendo descansar entre os braços de uma mulher, não?

Perguntou a direção certa e depois arrastou atrás de si o monge, que precisou fazer um grande esforço para manter o passo. Eram muitos os que acorriam aos retornados do empreendimento, e Inês foi obrigada a abrir caminho no meio de uma multidão festejante e curiosa. Lutou para conseguir chegar à primeira fila, mesmo aproveitando-se do corpanzil e do hábito de Anselmo para abrir espaço.

Uma vez na dianteira, os dois viram todos os chefes mais impor­tantes da cruzada em torno de Raimundo Pilet, o comandante da expedição. Os sobreviventes já estavam tomando o rumo dos respec­tivos acampamentos, enquanto numerosas carroças cheias de merca­dorias e víveres eram vigiadas pelos guardas escolhidos para isso. Inês identificou Ricardo e Emanuel, que se cumprimentavam, e avançou para eles em passo decidido.

Cá estão nossos corajosos soldados! — exclamou, abraçando-os com grande entusiasmo. — Hoje, o exército deve muito a vocês. E nós, prostitutas, também. Vocês elevaram o moral da tropa e mere­cem um prêmio...

Os dois a encararam surpresos, sem compreender.

Depois, Ricardo se iluminou.

Você faz ofertas especiais também hoje? — perguntou com petulância, convencido de que ela estava buscando uma desculpa para levá-lo consigo. — Então, acho que vou aproveitar... — acres­centou, trocando um aceno de entendimento com Emanuel e segu­rando o braço de Inês, a fim de saírem dali.

— Espere! — exclamou ela, livrando-se da mão dele e voltando- se para Emanuel. — Eu soube que este bravo combatente grego fazia parte do primeiro contingente. Ele se arriscou mais, portanto tem direito à precedência. Você passa mais tarde, se não estiver ocupado com o conde de Toulouse... Ou então, se tiver pressa, recorra a algu­ma das minhas colegas...

E saiu levando Emanuel, que não opôs resistência. Ricardo ficou ali, empalado, olhando Anselmo com consternação; o monge se limitou a abrir os braços e dar de ombros, invocando compreensão com uma careta.

 

Valha-me o Senhor, esta pesquisa se transformou numa obses­são! — gritou Sara, impaciente, agarrando os códices abertos sobre a mesa e jogando uns dois no chão. — Uma mulher não deveria pen­sar nestas coisas!

Rebeca estava demasiado absorta nas próprias reflexões para rea­gir a tempo e impedir a irmã de se lançar sobre os livros. Instintiva­mente, pousou as mãos sobre os pergaminhos, bem mais perecíveis.

Se pelo menos você estudasse a Torá! Ah, se nosso pai a visse perdendo todo esse tempo com os textos dos adoradores do crucifi­xo! Já não sei o que pensar a seu respeito!... — acrescentou Sara, socando a mesa.

Rebeca se afastou cautelosamente dos rolos e se inclinou para apanhar os livros caídos.

Você já parou para pensar que sobre nossos ombros pesa uma responsabilidade enorme pelo nosso povo? — respondeu, tentando manter a calma. — Será possível que nunca tenha tido a curiosidade de conhecer o conteúdo dos documentos que nos chegaram às mãos?

Não me importam esses textos nem suas conseqüências. Isso não é assunto para nós. E, também, se nosso pai não perdeu tempo com eles, significa que não representam nada verdadeiramente importante.

Como você pode ser tão superficial? — rebateu Rebeca. — Nosso pai estava precavido e atemorizado. Se tivesse sobrevivido ao pogrom de Mogúncia, certamente teria se dedicado de corpo e alma a esses documentos.

Mas você foi além disso! — replicou Sara, indignada. — Começou a estudar até os textos deles!

Era inevitável! Eu devia tentar compreender por que uma figura tão importante para a história do cristianismo, como esse Tiago, é tão marginal no cânone neotestamentário — forçou-se Rebeca a explicar, recorrendo a toda a sua paciência. — No entanto, mesmo não levando em conta este memorial, não faltam testemu­nhos sobre a existência dele. No Evangelho de Lucas, a propósito do nascimento de Jeshua, diz-se que Maria pariu seu filho primogênito. Nos de Mateus, Marcos e João, fala-se de irmãos de Jesus. E são irmãos mesmo, e não parentes genéricos, porque se trata de evangelhos escritos em grego, cujo termo adelphós é indiscutível. Não esta­mos falando de textos em hebraico ou em aramaico, nos quais o grau de parentesco, respectivamente ah e aha, é genérico, e, aliás, em grego, tem um correspondente em sínghenos, "consangüíneo". Foi Jerônimo, quase quatro séculos depois da morte de Jeshua, quem afirmou que os Evangelhos teriam sido traduções do original hebraico ou aramaico, atribuindo assim à palavra adelphós o signi­ficado de "parente" ou "primo". Uma interpretação clamorosamente forçada: afinal, por que os redatores teriam decidido falar sempre de irmãos, e não de "consangüíneos"? E por que não teriam escolhi­do o termo grego para "primo", anepsiós?

"Além disso, Jerônimo identificou Tiago irmão de Jeshua com Tiago filho de Alfeu, um dos doze apóstolos, e a Igreja cristã, já orientada a fazer de Maria uma virgem perpétua, aceitou entusiasticamente essa interpretação tranqüilizadora. Tiago, o Justo, foi então denominado, até para diminuí-lo, "Tiago Menor", distinguindo-o do Tiago filho de Zebedeu e venerado em Compostela. Até esse momento, os próprios Padres da Igreja não haviam tido dificuldade em reconhecer que Jeshua tinha irmãos; no máximo, a partir de Orígenes e do bispo de Salamina, Epifânio, consideravam-nos meios-irmãos, filhos do primeiro casamento de José. Epifânio sus­tentava que José tinha oitenta anos quando tomou Maria como esposa; para isso, baseava-se numa obra atribuída justamente a Tiago e que circulava na época, mas que não foi inserida nos textos oficiais porque era manifestamente inacreditável e irreal."

Sara cobriu os ouvidos com as mãos. Balançou a cabeça. Fechou os olhos. Mas Rebeca já não precisava de interlocutor nem de audi­tório.

— Inclusive Paulo, ao mencionar o chefe da Igreja de Jerusalém, que ele conhecia pessoalmente, fala do irmão do Senhor, adelphós; e, quando é o caso, usa também o termo anepsiós, ao referir-se a um primo. Calculei que em todos os textos cristãos o termo adelphós é citado trezentas e quarenta e três vezes, e, quando não se está falan­do de Jesus, sempre se refere inequivocamente a irmãos carnais. Por outro lado, quando nos Evangelhos se fala dos irmãos do Senhor, estes são sempre associados à mãe, e não a outros possíveis parentes.

"Você me pergunta por que eu leio os Evangelhos. Mas se dá conta de que em Mateus faz-se Jesus dizer: 'Os inimigos do homem serão aqueles de sua casa? E até, em Lucas, diz-se: 'Se alguém vier a mim e não odiar seu pai, sua mãe, sua mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs, não pode ser meu discípulo'! E em João: 'Nem mesmo seus irmãos acreditavam nele.'

"Por acaso não está claro que se trata de um modo de criticar os familiares de Jeshua, que pertenciam à facção oposta àquela que pre­valeceu, assim como o dito de Jesus 'Ninguém é profeta em sua terra', e a frase, em Mateus, 'Que seu sangue recaia sobre nós e sobre os nossos filhos', são modos de criticar os hebreus? Você não com­preende que excluir Tiago da história significa esconder a herança hebraica de Jeshua e sua adesão à Lei mosaica, e que atribuir sua morte aos hebreus significa separar radicalmente o cristianismo do hebraísmo?"

Cada vez mais inflamada, Rebeca pegou um dos livros que havia recolhido do chão.

Está vendo isto? — perguntou. — São os chamados Atos dos Apóstolos. Pois bem, Tiago foi eleito sucessor de Jeshua e também sofreu o martírio. No entanto, não se fala em absoluto de sua eleição nem de sua morte. Mas, no capítulo 15, Tiago aparece como aquele que, no concilio de Jerusalém, toma a palavra por último, resume os debates e propõe as decisões que farão parte do decreto apostólico; além disso, usa a palavra "krino", que nos atos jurídicos em grego significa "eu decreto", como se fosse justamente ele quem preside à assembléia. Tiago poderia ser considerado o primeiro papa, mas a tradição, com base no que Jesus declara em Mateus, preferiu Pedro a ele. No entanto, o próprio Paulo, em sua Epístola aos Gálatas, defi­ne Pedro como subordinado a Tiago. Mas, quando o cristianismo se tornou religião de Estado no Império Romano, já não havia uma Igreja de Jerusalém, havia uma Igreja de Roma, e foi com esta que os romanos estipularam um pacto. O primado de Pedro serviu para justificar a primazia da Igreja de Roma em relação às outras; a figu­ra de Tiago, chamado em toda parte de "irmão do Senhor", é moti­vo de embaraço para a Igreja, tanto pelo seu vínculo carnal com uma suposta divindade como por seu vínculo com Jerusalém e com a matriz judaica do cristianismo; decerto, seu zelo pela Lei mosaica parecia decididamente desagradável para uma Igreja de origem pagã...

Mas o que você sabe disso? Que tipo de competência tem para criar todas essas teorias? — reagiu finalmente Sara. — Você não é um rabino, nem um padre cristão. E apenas uma mulher. Apenas uma mulher! O dia em que não tivermos mais esses malditos textos será de grande alegria para mim!

Eu sou uma mulher, é verdade, mas uma mulher habituada a se arranjar sozinha. E isso me faz igual ou mesmo superior a um homem. Coisa que certamente você não pode dizer de si mesma, já que não passou um só dia de sua vida sem depender de alguém... — retrucou Rebeca, azeda, arrependendo-se logo depois.

A frase infeliz acertou em cheio, assim como o tapa que a irmã lhe assestou em resposta. Rebeca segurou a outra mão dela, que esta­va prestes a golpeá-la de novo.

Peço desculpas. De verdade. A tensão nos prega feias peças. Prometo que, de agora em diante, vou procurar passar mais tempo com você, em vez de me deixar absorver completamente por essas coisas — disse, esforçando-se por assumir uma expressão doce e um tom conciliador.

Já era hora! Lá fora estão milhares de indivíduos sanguinários que poderiam entrar na cidade de um momento para outro e me levar daqui, e você nem perceberia! — continuou Sara a reclamar, soluçando. — Ou melhor, talvez até ficasse contente: sem mim ao seu lado, finalmente as pessoas a enxergariam! — concluiu.

Rebeca esperou. Mas a irmã olhou para outro lado, fazendo beicinho, sem dar a impressão de ter se arrependido. Então a mais velha mordeu o lábio, tentando resistir à tentação de reagir. Sentiu que não conseguiria, mas justamente nesse momento bateram à porta.

Ela foi abrir, enquanto Sara permanecia em silêncio, fitando a parede, bancando a vítima.

Salam aleik!— Foi a costumeira saudação de Jamal al-Ashraf, o qual, como de hábito, esperou um aceno de Rebeca para transpor a soleira.

Rebeca se perguntou havia quanto tempo o emir estava do lado de fora e se ele teria escutado a briga. Da expressão de Jamal não transparecia nada, e, fosse como fosse, ele não sabia o idioma hebrai­co. Com o olhar, o árabe procurou Sara, que não se voltara em abso­luto para ele. Cumprimentou-a assim que viu a silhueta dela na penumbra; depois, vendo que ela não se virava, dirigiu-se a Rebeca:

Acho que encontrei um esconderijo adequado para seus rolos - disse. — Amanhã, acompanharei vocês, com uma escolta consis­tente, até o rio Jordão. Ao longo da costa norte-ocidental do mar de Sal, em um lugar chamado Qamar, que em árabe significa "lua", existem muitas formações rochosas, depressões e cavernas onde poderemos depositá-los, enquanto a guerra não acaba. Depois, ire­mos recuperá-los e os entregaremos ao grão-vizir.

Finalmente, Sara se voltou. Um amplo sorriso de alívio sulcava seu rosto esplêndido, ligeiramente estriado pelas lágrimas.

Senhores, como eu disse em nossa última reunião, devíamos ape­nas ter confiança em Deus — principiou Raimundo de Toulouse no conselho de guerra, com um amplo sorriso de satisfação que não escapou ao seu ordenança. — Retornamos de uma bela vitória que nos proporcionou material precioso. E agora, em benefício daqueles que ainda não sabem, o ilustre Tancredo irá informá-los de sua nova descoberta — acrescentou.

Muito bem — começou o sobrinho de Boemundo de Taranto.

Hoje de manhã, eu tinha ido às minhas propriedades de Belém para um pequeno recenseamento. Depois, decidi avançar até um pouco mais ao sul, rumo a Hebron, em inspeção. Afinal, pensei, esse era o setor que havíamos explorado menos. Havia uma área bastan­te retalhada, e eu tropecei entre as rochas. Quando apoiei os pés no fundo de uma vala, notei imediatamente que a terra estava remexida e fofa. Revolvi-a um pouco e... adivinhem! Embaixo, havia umas tábuas. Continuei a cavar e vi dezenas de varas, galhos de árvore e mais tábuas. Logo compreendi que se tratava da madeira que os egípcios tinham feito desaparecer. Já dei ordens para que tudo seja trazido nos animais de carga que nos restaram.

Um momento — interveio Roberto da Normandia, indigna­do. — Suas propriedades? Como assim? Não tínhamos dito que toda discussão sobre Belém ficava adiada para depois da conquista de Jerusalém?

Repito o que já disse antes — respondeu o jovem normando. — Eu fui o primeiro a colocar o próprio estandarte no alto da igre­ja da Natividade. A responsabilidade por aquele lugar sagrado é minha. Podem me chamar como quiserem, rei, advogado, defensor, vassalo da Igreja; seja como for, eu sou senhor de Belém! — excla­mou, olhando Godofredo em busca de apoio.

Mas, antes que o duque de Lorena pudesse intervir, um dos ecle­siásticos que assistiam à reunião quis dar seu palpite:

Isso é blasfêmia! — bradou o capelão do duque da Normandia, Arnulfo Malecorne de Rohes. — Como ousa reivindi­car a posse do lugar onde nasceu o Senhor? Seu desejo de obter bens terrenos é superior ao de agradar a Deus!

Ora! — retrucou Tancredo, não menos indignado. — Balduíno de Lorena tem um reino na Armênia, meu tio tem o dele em Antioquia, e não creio que tenham sido levantadas mais questões quanto a isso. Então, por que eu não posso ter Belém?

Bom... se se tratar apenas de defender Belém, eu não veria nisso nenhum mal... — interveio o bispo Arnulfo de Martorana, tendencialmente disposto a secundar as ambições de seu conterrâneo.

Padre — interveio Godofredo, em tom paciente. — Aqui, nin­guém quer tirar nada do Senhor. Mas, mesmo que vençamos esta guerra, estaremos dentro de um território hostil, circundados por inimigos de Cristo; portanto, é necessário escolher chefes que se encarreguem da difícil tarefa de conservar para o Senhor estes locais sacros, evitando que eles voltem às mãos dos infiéis. A Igreja precisa de defensores temporais, assim como o papado sempre precisou do império como braço secular, como principal colaborador para fazer triunfar a fé.

A Ricardo, ocorreu que papado e império estavam em luta havia muito tempo, na Europa, e a população pagava o preço, com anar­quia e guerras civis. Colaboração coisa nenhuma!

Godofredo prosseguiu:

Com tal objetivo, a ocasião é propícia para conversarmos a respeito da soberania de Jerusalém. Afinal, deveremos decidir algu­ma coisa sobre esse ponto, e talvez seja bom fazer isso agora, sem nos perdermos em discussões quando tivermos de organizar a defesa, após a conquista.

Não há nada para conversar! E Sua Santidade quem deverá decidir! A cidade retornará à soberania do papa, e um patriarca agirá por conta dele! — observou Arnulfo Malecorne, escandalizado.

"Mas, afinal, não se tratava de territórios a serem restituídos ao Império Bizantino?", gostaria de observar Ricardo.

Humm... poderia decorrer um longo período de tempo, até que Sua Santidade nos fizesse chegar seu parecer... — opinou Roberto de Flandres.

Exato — acrescentou Godofredo, enquanto seu irmão mais novo, Eustáquio, assentia. — Um longo período de tempo, durante o qual deveremos nos defender de insídias de todo tipo. Não esque­çamos que árabes e turcos estão fazendo causa comum, e isso os torna muito mais ameaçadores. Estaremos entre dois fogos, ao norte e ao sul, além de ao oriente; e, mesmo a ocidente, o mar sem dúvida não nos é amigo. Para não falar do Império Bizantino: o imperador preferiria que as coisas evoluíssem de maneira totalmente diversa e, certamente, com a ingratidão que lhe é própria, não moverá um dedo para nos ajudar nos momentos de maior dificuldade. E neces­sária uma autoridade central, que ainda assim se valha do precioso conselho de seus pares. Naturalmente, se tal honra me coubesse, eu jamais sonharia em pretender o título de rei para a cidade que foi cenário da Paixão de Cristo... — arriscou, quase com displicência.

O senhor? — exclamou Raimundo, indignado. — O senhor, que serve a um soberano excomungado, pretenderia reinar sobre um lugar tão sagrado? Seria um insulto a Cristo! Quase seria preferível deixar Jerusalém com os infiéis!

Quero lembrar-lhe, senhor conde, que o próprio pontífice quis que eu fosse informado de todos os detalhes da expedição, o que me coloca em plano de confiabilidade igual ao seu, aos olhos da Santa Igreja — respondeu Godofredo, melífluo, aludindo, como deduziu Ricardo, ao assunto do manuscrito.

Ao que parecia, pensou ainda o normando, embora eles estives­sem dispostos a se engalfinhar em relação a tudo, um só tema não tinha sido posto sequer minimamente em discussão: a conquista de Jerusalém era considerada coisa certa.

Contudo, havia alguém disposto a cortar de chofre aquela digressão.

Mas não estávamos aqui para falar da madeira? — observou o conde de Toulouse. Afinal, avaliou Ricardo, o maior problema era esse. — Não esqueçamos que o Senhor só nos permitirá conquistar Jerusalém se nos esforçarmos por expugná-la. Não seria convenien­te resolver como dividir entre nós e como usar a madeira descober­ta pelo príncipe de Hauteville?

Eu cedo minha madeira ao duque Godofredo — disse Tancredo, em voz baixa.

E eu vou usá-la para fazer uma torre móvel, um aríete e, se sobrar alguma, também trabucos e manteletes... — acrescentou Godofredo, comprazido.

Consternado, Raimundo de Toulouse olhou para Roberto da Normandia e para seu próprio ordenança.

Mas... — balbuciou, virando-se para o duque de Lorena — a madeira tem que ser dividida... somos um único exército...

Dividida? — disse Godofredo, explodindo numa gargalhada. — Para fazer o quê? Para obter duas torres baixas, que não nos servi­riam de nada? E melhor uma só torre, que alcance a altura dos espal­dões. Por conseguinte, a madeira, já que não é suficiente para todo o exército, deve ficar com quem se deu o trabalho de procurá-la. Ou você é tão egoísta e ambicioso que não se incomoda de prejudicar nossas possibilidades?

Mas quem encontrou a madeira não foi você... — emendou o conde, irritado.

E daí? O príncipe Tancredo considera que eu posso aproveitá-la melhor do que ele, e me cede sua parte de bom grado.

"Está claro que o eixo entre lorenos e normandos do sul se trans­formou numa vassalagem dos segundos em relação aos primeiros", refletiu Ricardo. "Quem sabe quanto Godofredo terá desembolsado para obter a submissão do jovem Tancredo, um pobretão sem pro­priedades nem rendas, cujos olhos devem ter brilhado ao ver o dinheiro com que o duque o seduziu? Dinheiro obtido, em grande parte, da extorsão que ele impôs aos judeus do Reno", concluiu, amargurado.

Raimundo balançou a cabeça, derrotado. Quando saiu da tenda, puxou Ricardo à parte.

—- Eu também quero uma torre. Se ele conseguir penetrar e eu tiver que me limitar a segui-lo, não poderei exigir nada. Vá dizer a Raimundo Pilet que prepare uma expedição de trezentos infantes e cem cavaleiros, além de várias carroças e animais de carga, à qual você e seu amigo grego devem se agregar. Quero que obtenham toda a madeira possível. Fiquem fora o tempo que for necessário, mas encontrem-na.

Aonde devemos nos dirigir? — quis saber Ricardo, perguntando-se ao mesmo tempo se seu chefe estaria ordenando uma mis­são arriscada por irritação contra os lorenos, por ambição pessoal ou pela causa de Cristo. Mas concluiu imediatamente que, naqueles indivíduos, era difícil distinguir onde acabava uma motivação e começava outra.

Sigam rumo ao Jordão e ao mar de Sal. E, se não encontrarem nada, desloquem-se para o norte, até a Samaria; é longe, eu sei, mas a região é cheia de florestas — respondeu o conde.

 

Jamal al-Ashraf fazia uma bela figura, à frente de uma coluna de sol­dados. Foi o que Rebeca pensou, ao vê-lo cavalgar e sobressair-se na sela com uma verdadeira atitude de comando, embora a prudência o tivesse induzido a não se vestir diferentemente dos subalternos que o acompanhavam. Avançava com o torso ereto, com o xale branco que lhe envolvia o elmo e lhe descia pelos ombros, terminando ao longo da garupa do cavalo. Rebeca se perguntava por qual obscuro motivo sua irmã não se sentia minimamente fascinada por aquele emir tão gentil e, no entanto, tão respeitável, sensato, de bela presen­ça. Verdade que ele era um muçulmano, e não um judeu; ela, porém, não seria preconceituosamente contrária a uma união entre os dois; seria, sim, e radicalmente, se se tratasse de um cristão.

Naquele dia, Sara nem sequer quisera vir. Meio estranho, avalia­ra Rebeca; normalmente, ela não gostava de ser deixada sozinha. Evidentemente, a perspectiva de um passeio sob o sol abrasador era demais para sua proverbial apatia, e a presença de Jamal sem dúvida não constituía estímulo suficiente para fazê-la vencer a preguiça.

Embora Sara não falasse do assunto havia tempo, Rebeca tinha certeza de que ela ainda pensava naquele homem que a salvara em Mogúncia. Um daqueles amores impossíveis que tinham contribuí­do para arrancar sua irmã à realidade, deixando-a irresoluta como mulher. Não que ela mesma se sentisse realizada, admitiu para si mesma. Mas sentia-se muito pouco disposta a aceitar a soberania de um homem sobre sua vida para conseguir encontrar equilíbrio e uma clara identidade feminina.

Perguntou-se por que se deixava levar por tais divagações, e jus­tamente naquela hora. Afinal, estava prestes a se separar dos manus­critos, aos quais se apegara ainda mais estreitamente do que à irmã. Talvez fosse mais lógico dirigir a eles um último pensamento. Nos últimos tempos, as memórias de Tiago, o Justo, haviam sido sua razão de viver, e, no fundo, ela temia não saber encontrar outra, depois. Fosse como fosse, mesmo que Jamal não demorasse a recu­perar os rolos, estes já não seriam de sua competência.

Aquelas memórias haviam lhe permitido refletir muito sobre a natureza das religiões, impelindo-a a aprender mais sobre a cristã, que ela sempre desprezara sem realmente conhecê-la. No entanto, é preciso conhecer o inimigo para poder julgá-lo.

Sob certos aspectos, devia admitir, a gigantesca mistificação que o homem de Tarso havia montado sobre Jeshua constituía um pro­gresso em relação ao nacionalismo, ao conservadorismo e ao ascetismo de Tiago. Indubitavelmente, os conceitos transmitidos nos Evangelhos e nas Epístolas de Paulo eram fascinantes; só que ela não conseguia ver, nos cristãos, a vontade de aplicar aqueles edifi­cantes preceitos de harmonia com o próximo, ainda que este fosse o inimigo. Mas, por outro lado, não podia culpá-los por isso: Rebeca achava que o ser humano não era muito conduzido por sentimentos tão absorventes.

— Preocupada?

Absorta em suas reflexões, Rebeca não percebera que Jamal havia retardado o passo e se colocara ao lado da carroça na qual ela viajava.

Eu deveria? — respondeu, com um sorriso cansado.

Compreendo o quanto lhe desagrada se separar desses docu­mentos — disse o emir, indicando com um aceno de cabeça a sacola pendurada no dorso de um burro. — Mas é o melhor a fazer. E, tam­bém, você e sua irmã estão sob a proteção de um emir, não têm nada a temer, em relação ao futuro. Seja qual for o uso que o grão-vizir decidir fazer desses textos, de todo modo vocês serão tuteladas. E... à respeito de sua irmã...

"Pronto, chegamos lá. E a primeira vez que conversamos sem a presença de Sara. Eu já devia esperar por isso", pensou Rebeca.

Sara é uma jovem preciosa. Você deve ter notado que eu estou muito interessado nela... — prosseguiu Jamal, visivelmente encabulado. — Parece tão frágil... Tem uma necessidade constante de aten­ção. E, também, maneiras muito aristocráticas, que se adequariam muito bem à casa de um emir...

Com dificuldade, Rebeca conseguiu conter um sorriso: afinal, tinha demasiada consciência do contraste entre os modos arrogantes e rebuscados da irmã e os sentimentos mesquinhos, as escassas qua­lidades de que ela era dotada: numa palavra, da profunda diferença entre o que Sara aparentava e o que oferecia.

Mas devia responder alguma coisa àquele terno enamorado. Alguma coisa que não o desencorajasse. Ainda que, ocorreu-lhe, Jamal parecesse suficientemente seguro de sua escolha para não se deixar acovardar por sombrias perspectivas.

Bem... — começou, tentando encontrar palavras que não o ferissem, mas que tampouco o iludissem.

Emir, emir! — gritou nesse momento o guarda pessoal, que galopava velozmente na direção deles. Rebeca se sentiu grata a Firuz por ter lhe concedido mais tempo para pensar numa resposta ade­quada.

O turco falou em grego, para que ela também o entendesse:

Grande coluna infiéis, ao sul. Talvez trezentos guerreiros, tal­vez mais.

Rebeca sentiu uma fisgada no estômago. Eles não eram mais do que cinqüenta.

— São poucos! Vamos aproveitar e dar a eles mais uma boa lição! — gritou Raimundo Pilet, apontando a espada na direção do grupo de muçulmanos avistados ao norte.

Mas o conde nos deu ordem de conseguir material de constru­ção, sobretudo. Não podemos perder tempo em escaramuças... — arriscou Ricardo, que seguia logo depois dele.

Está brincando? Estamos em nítida superioridade numérica. Renunciar ao confronto seria uma estupidez. Talvez, se os atacar­mos, eles percam a vontade de nos armar emboscadas, e com isso tam­bém liberaremos o caminho para os próximos contingentes de aprovisionamento... — replicou o comandante, visivelmente exaltado.

Em seguida, passou a estabelecer disposições para o ataque:

Avante! Eles nos viram e estão tentando chegar a um vau no Jordão. Se conseguirem, nós os perderemos! Divida-se a cavalaria em duas alas e proceda rumo aos flancos dos infiéis para bloqueá-los! Quanto à infantaria, avance frontalmente! Deus o quer!

Ricardo só teve tempo de olhar desconsolado para Emanuel, que retribuiu a mirada, antes de marchar em passo acelerado rumo ao objetivo. A cavalaria os precedeu, tentando fechar imediatamente ao inimigo qualquer via de fuga, mas o terreno era irregular e acidenta­do, e alguns egípcios, em grupo ou individualmente, esquivaram-se do cerco a tempo e desapareceram entre as baixadas e as elevações.

Em ordem esparsa! Peguem todos eles! — gritou Raimundo Pilet à infantaria, quando se aproximou dos adversários, enquanto os cavaleiros mantinham ao alcance das lanças os muçulmanos que eles haviam conseguido aprisionar. Junto com muitos compa­nheiros, Ricardo e Emanuel escalaram um aclive rochoso em perse­guição aos fugitivos, perdendo-se de vista logo depois.

Mesmo arriscando-se repetidamente a escorregar pelo terreno pedregoso, Ricardo chegou depressa ao topo. Abaixo dele abria-se um vale estreito, e depois um novo aclive, além do qual ficavam as margens do mar de Sal. Havia uma miríade de anfractuosidades onde os muçulmanos podiam ter se escondido, tanto na encosta que ele se dispunha a descer quanto na do outro lado.

Não podia voltar para perto de Raimundo sem ter encontrado nenhum árabe. Pilet, e principalmente Sabran, iriam se aproveitar disso para depreciá-lo junto ao conde de Toulouse.

Desceu resoluto a ladeira, perscrutando o panorama com aten­ção, na tentativa de captar algum movimento que lhe desse indício da presença do inimigo.

— Não podemos permanecer aqui atrás. Temos que nos mover, embora correndo o risco de sermos vistos — disse Jamal a Rebeca, que apertava contra si a sacola com os pergaminhos.

Você evitou enfrentar o inimigo para me proteger — disse ela como única resposta, olhando a panturrilha ensangüentada, que uma saliência de rocha havia lacerado.

Éramos muito poucos para resistir, e até Alá consideraria estúpido semelhante martírio — respondeu Jamal. — Dei ordem de nos espalharmos porque só assim teríamos mais possibilidades. Infelizmente, a cavalaria deles teve tempo de bloquear alguns dos meus homens. Mas, pelo menos, vi que Firuz escapou.

E agora, o que você pretende fazer? — perguntou Rebeca, não muito convencida.

Alcançar a outra vertente e seguir na direção do Jordão. Com a ajuda de Alá, poderemos conseguir. — Ele olhou ao redor e não viu nenhum movimento. — A hora é esta. Venha comigo — disse, e saiu a descoberto, dirigindo-se em linha reta para o fundo do uádi.

O emir caminhou velozmente, antes de perceber que Rebeca, claudicante pelo ferimento na perna, não conseguia acompanhá-lo. Voltou e pegou a sacola que ela carregava, para aliviá-la pelo menos daquele estorvo. Rebeca a entregou após alguma hesitação, e em seguida Jamal retomou a caminhada, embora mais lentamente, para permitir que Rebeca mantivesse seu passo. O terreno, porém, era muito escorregadio, e a moça avançava com extrema cautela. "Se aparecer um deles, posso enfrentá-lo. Mas, se for um grupo, esta­remos perdidos", pensou o árabe.

Apareceu um. Só um.

Instintivamente, Rebeca soltou um berro. O emir nem tentou escapar. Devolveu-lhe a sacola e desembainhou a cimitarra, aguar­dando o ataque do adversário.

Perscrutou-o, enquanto este se aproximava. Era um infante pesa­do, com cota de malha, elmo com narigueira, bem assentado na cabeça, e escudo. Ele, porém, todo empoeirado, com as roupas ras­gadas e um anônimo gibão acolchoado, já desprovido de escudo e elmo, dificilmente parecia um oficial; e muito menos o tomariam por um emir.

Quando se viram a poucos passos de distância, o olhar do homem caiu sobre Rebeca. Ele pareceu hesitar por um momento, talvez somente pela surpresa; em seguida, porém, colocou-se em posição de ataque, e, um instante depois, Jamal recebeu a primeira cutilada. Foi um golpe enérgico, mas o árabe o aparou facilmente e passou ao contra-ataque; só que sua investida se chocou contra o escudo do cristão. O contragolpe o desequilibrou, expondo-o à réplica do antagonista. O árabe foi rápido em se esquivar, mas, desse modo, deixou inadvertidamente o franco entre si e Rebeca.

Ao se dar conta da ameaça que pairava sobre a moça, Jamal ata­cou de imediato, embora estivesse desprovido de escudo e em posi­ção desfavorável no declive, sobre um terreno escorregadio. Con­seguiu deter a espada adversária, mas desequilibrou-se e caiu, per­dendo a cimitarra. O outro logo lhe saltou em cima, apontando a espada para sua garganta.

Do chão, Jamal viu Rebeca se jogar contra o flanco do cristão e tentar lhe segurar o braço.

Emanuel desceu rapidamente a encosta. No fundo do uádi, viu um companheiro duelando com um muçulmano. Acelerou o passo para ajudá-lo, mas logo percebeu que o cristão havia levado a melhor e decidiu continuar a busca. Olhou ao redor. Havia muitos refúgios capazes de esconder um adversário. Podia haver um ali perto, ocul­to atrás de uma saliência de rocha. Devia prestar atenção para não se deixar surpreender.

Avançava com cautela e discrição, na esperança de que, assim, os fugitivos não se dessem conta de sua presença e, acreditando-se segu­ros, saíssem a descoberto. Aguçou os ouvidos para captar qualquer sinal da proximidade de um inimigo.

Chegou a um esporão rochoso. A pedra escondia a ladeira ime­diatamente subjacente, mas, para todo o resto do uádi, constituía um ótimo ponto de observação, permitindo-lhe enxergar a distância ao longo de ambos os lados do vale.

Pareceu-lhe escutar uma respiração abaixo de si. Olhou adiante, além da ponta do esporão. Após alguns instantes de espera, notou que umas pedrinhas deslizavam pela ladeira.

Havia alguém atrás da rocha.

Refletiu por um instante. Fosse quem fosse, não sairia dali enquanto percebesse uma presença acima de sua cabeça. E tampou­co Emanuel podia descer, sem correr o risco de ser surpreendido.

Refletiu por mais um instante e, em seguida, refazendo os pró­prios passos, voltou atrás.

Deteve-se mais acima. Tirou cautelosamente as botas, deixando-as ali; depois, tentando não dar importância às pedrinhas que lhe espetavam a planta dos pés, aproximou-se lentamente da ponta do esporão. Escalou-a, deitou-se e esperou.

Não precisou aguardar muito. Após um breve tempo, um tur­bante apareceu além da rocha. O muçulmano estava verificando o alto. Emanuel recuou um pouco, embora estivesse suficientemente grudado ao terreno para não ser notado.

Viu o turbante se deslocar para a frente. Era o momento. "Se eu não pular agora em cima dele, não o pego mais", pensou, antes de se ajoelhar e dar um salto em mergulho.

O impacto foi menos duro para ele do que para o adversário. Emanuel sentiu o choque com a couraça e com os sólidos músculos do inimigo, mas este bateu violentamente contra o terreno. Rolaram juntos por alguns passos, ambos aturdidos pela pancada. O bizanti­no, porém, foi mais rápido ao reagir e estendeu as mãos, agarrando o pescoço do antagonista.

O muçulmano não pareceu em condições de se defender. Procurou aproximar seu rosto do de Emanuel, para lhe dar uma cabeçada, mas o aperto do grego era muito firme. Tentou atingi-lo com socos nos flancos, mas o fôlego já lhe faltava e os golpes chega­vam débeis. No entanto, era forte como um touro, e Emanuel não conseguia imobilizá-lo totalmente.

Depois, de repente, o bizantino relaxou a preensão.

— Mas eu a conheço! — disse o franco, após encarar Rebeca mais atentamente.

A moça, por sua vez, fitou-o sem compreender. Jamal, de sua posição incômoda, também fitou o homem que apontava uma espa­da para sua garganta. Este último tirou o elmo e se deixou observar.

Você... você é aquele normando que nos ajudou em Mogúncia... — conseguiu dizer Rebeca, após alguns instantes, duran­te os quais a cena se fixara como numa tapeçaria.

Mas é claro! Já sei quem é você! Agora me lembrei! — excla­mou o cristão, batendo o elmo na coxa. — E a irmã daquela esplên­dida jovem judia que eu tirei das mãos dos meus soldados!

Pois é... — Rebeca não conseguiu dissimular totalmente a irri­tação pela expressão de seu interlocutor.

Pelo que vejo, acabaram encontrando proteção junto aos muçulmanos... Sua irmã também está por aqui?

Obviamente, os muçulmanos têm mais respeito pela minha gente, e também são mais civilizados — replicou ela, áspera.

Suponho que ela tenha vindo com você. Está aqui por perto?

Ela... está em Jerusalém...

Bem, mais uma razão para conquistar a cidade — observou ele, zombeteiro. Em seguida, voltou-se para o árabe, que continuava no chão. — Não sei o que vocês vieram fazer aqui, mas são meus pri­sioneiros, certo?

Depois de me ajudar uma vez, vai me prejudicar agora? — retrucou Rebeca.

Não posso deixá-la ir. Algum outro a pegaria, e seria muito menos delicado. E, também, seu acompanhante é um árabe, e eu combato os árabes...

O homem — Rebeca lembrou que ele se chamava Ricardo — ace­nou com a espada para que Jamal se levantasse. Este se reergueu sem dizer uma palavra. Em seus olhos, Rebeca percebia a humilhação por ter se deixado dominar e o aborrecimento por não ter consegui­do velar pela segurança dela, como prometera.

Não tenha medo. Sei que você pensa que nós, cristãos, somos animais, depois do que fizeram em Mogúncia. Mas eu não sou, e espero conseguir lhe demonstrar isso. Agora, porém, caminhem — disse Ricardo, repondo o elmo.

Logo depois, surgiram no campo visual deles mais dois armígeros do exército cristão. Assim que os viu, Rebeca se apressou a colo­car a tiracolo do normando a sacola com os pergaminhos.

Por favor, é uma coisa muito importante para mim. Se a encontrarem comigo, vão tomá-la imediatamente. Fique com ela, e não lhe farão perguntas. Você me devolve quando for possível — disse a Ricardo, tentando suavizar os traços do rosto numa expres­são de súplica.

Jamal a olhou, lívido.

E o único modo de salvar os textos — tranqüilizou-o Rebeca, falando em grego para que o outro não a entendesse. — Conheço este soldado. Apesar de tudo, é um homem justo.

Depois, porém, perguntou-se se o emir teria a mesma considera­ção, ao saber que se tratava do homem por cuja culpa, provavelmen­te, Sara jamais poderia amá-lo.

 

Não nos vimos durante quase trinta anos, e agora isso acontece duas vezes em poucos dias... — disse Emanuel, relaxando o aperto na garganta do muçulmano. Este saltou para o contra-ataque assim que se sentiu livre, mas depois se deteve de repente, reconhecendo-o também.

Alá decidido nossos destinos se cruzam de novo. Talvez tem motivo.

Ah! — gargalhou Emanuel. — Era disso que eu sentia mais falta quanto a você: seu modo de falar em grego! — Depois ficou sério de repente. — Até pouco tempo atrás, árabes e turcos não se gostavam. Como foi que você veio parar aqui com os egípcios?

Eu em Jerusalém ano passado, durante assédio fatímida. Depois eles entram na cidade, eu envergonhado de defesa meus che­fes e escolhe servir no exército egípcio — respondeu Firuz, evitando informar ao velho amigo seu papel ao lado do emir. Não era o caso de deixar os cristãos saberem que, entre seus companheiros de via­gem, encontrava-se também um personagem de relevo.

Dias atrás, você me poupou novamente, Firuz. Como fez há décadas... — recordou-lhe o bizantino.

Matar você não mudava história da batalha, mas talvez muda­va minha vida. Preferido não arriscar.

Você sempre foi sensato — disse Emanuel, balançando a cabeça.

Eu pensar muitas vezes seu destino depois batalha Manzikert - disse Firuz. — Achava você morrido em guerra interna junto seu imperador...

De fato, permaneci ao lado dele até o fim — explicou-lhe o grego. — Voltamos a Constantinopla para retomar o poder, quando soubemos que ele tinha sido deposto pelos Ducas, mas éramos muito poucos. Houve uma batalha fora das muralhas e terminou mal, para nós. Acabei entre os prisioneiros. Um dia, vieram me dizer que Romano havia perguntado por mim e me levaram até ele. Encontrei-o em cima de uma cama, numa poça de sangue, rodeado por um bando de médicos que tentavam conter a hemorragia. Os opositores haviam decidido poupá-lo em atenção à imperatriz, mas tinham vazado seus olhos, a fim de incapacitá-lo para governar.

Emanuel fez uma pausa e deu um suspiro profundo. Aquela lem­brança lhe doía.

Mas tinham feito um péssimo trabalho, talvez deliberadamente — prosseguiu. —- As feridas tinham se infeccionado, e eu o vi sofrer de maneira atroz. Nos três dias em que permaneceu vivo, teve sempre febre alta e delirou muitas vezes. A primeira coisa que me disse, assim que conseguiu falar, foi que eu devia jurar fidelidade ao novo regime. Estava mais preocupado com a segurança do império do que com uma vingança contra os adversários. Sabia que o Estado dispunha de poucos homens e que não havia dinheiro para contratar mercenários, e não pretendia enfraquecê-lo com outras guerras civis. E sabia também que seus adversários pensariam duas vezes antes de matar todos os prisioneiros. Afinal, continuávamos sendo soldados, e seríamos úteis para eles.

"Quando morreu, eu estava ao seu lado. Agradeci ao Senhor por ter dado um fim aos seus sofrimentos."

Seu imperador era valoroso. E também homem leal. Mandou parte de resgate a sultão, antes de morrer, ainda que governo oficial não reconhecia acordos — comentou Firuz.

Passaram-se uns minutos de silêncio. Ambos, o grego e o turco, perdiam-se em suas recordações.

Foi Firuz quem o rompeu:

Mas que você faz aqui? Império não mais interessado em cru­zada. Agora é assunto de francos — disse.

Não, é também assunto meu — respondeu Emanuel. — Naquele dia, em Manzikert, cometi um erro. Um erro que talvez tenha custado a vida ao meu imperador. E ele sabia. Mesmo assim, me quis ao seu lado na hora da morte. Passei toda a minha carreira nas armas tentando me redimir, mas ainda não consegui. Então, espero que o Senhor me dê a oportunidade de fazer isso na cidade onde morreu e ressuscitou.

Creio você quer morrer por seu deus. Acha só assim pode se redimir.

Talvez. Mas acho que não tenho escolha.

Escolha sempre existe. Só não existe se pessoa não quer escolher.

Mais silêncio.

E agora, em sua opinião, o que devemos fazer? — perguntou Emanuel, sinceramente confuso.

Soldado como você não dúvidas. Você fez mim prisioneiro.

Não é tão fácil — respondeu Emanuel, desconsolado. — Você não cumpriu, comigo, seu dever de soldado. E por duas vezes. Não posso condenar a pessoa a quem devo a vida. E não poderia assegu­rar sua incolumidade, se você acabasse prisioneiro. Como deve saber, um grego não é nada no exército franco.

Eu habituado proteger, não ser protegido. Não preocupar comigo.

Emanuel ficou olhando para ele, em silêncio. E refletindo. Obrigou-se a pensar depressa; de uma hora para outra, podiam apa­recer outros companheiros, e então ele não teria mesmo escolha.

Vá embora — disse, afinal.

Você não poder — respondeu Firuz, balançando a cabeça.

Eu poder, eu poder — retrucou Emanuel, arremedando-o. — É um assunto entre mim e minha consciência. Vá embora, já man­dei, antes que alguém o veja.

Firuz se levantou, recolheu sua cimitarra e fez menção de se afas­tar. Mas voltou-se por um instante.

Próxima vez nos encontramos, talvez não possível se compor­tar assim. Talvez obrigados a combater — disse.

E a morrer. Eu sei. Mas isso não mudará as coisas como foram até agora — respondeu Emanuel, exortando-o com um aceno da mão a sair dali.

 

Chegaram todos exaustos, afogueados e sedentos ao acampamento cruzado. Os cavaleiros, os infantes e, sobretudo, os prisionei­ros, que na Samaria tinham arcado com o trabalho mais pesado, cor­tando as árvores e colocando-as sobre as carroças e os animais de carga. Os infantes haviam se revezado, mas os muçulmanos traba­lharam sem descanso, tanto que um deles, já moribundo, fora aban­donado ao longo do caminho.

Nem mesmo Rebeca tivera alguma trégua. Os soldados estavam contentes por encontrar uma mulher entre os fugitivos, e tinham-na transformado na mesma hora numa espécie de vivandeira, mas uma vivandeira desprovida de qualquer liberdade, obrigada a cumprir também tarefas de serva e a sofrer insultos, ofensas e humilhações de todo tipo, embora a presença de Ricardo evitasse o pior.

Jamal, por sua vez, já se sentira humilhado demais para dar peso às mortificações às quais os francos o submetiam, como, de resto, faziam com os outros prisioneiros. Tomaram-no por um oficial de média patente, e não lhe deram uma importância especial. Isso sig­nificava que devia labutar tanto quanto os outros, mas, sabendo que seus homens extraíam dele a força para suportar tudo aquilo, procu­rava dar o exemplo trabalhando com mais ânimo do que todos, sem nunca se lamentar e com uma altivez que até irritava os carcereiros.

Na frente oposta, Ricardo gostaria de conversar com Rebeca e, sobretudo, de lhe pedir notícias da irmã; a lembrança de Sara se enfraquecera com o tempo, mas a notícia da presença dela em Jerusalém havia renovado a atração sentida em Mogúncia ao conhecê-la.

Contudo, temia chamar demasiada atenção sobre a prisioneira e deixara para interrogá-la no acampamento, onde esperava dar menos na vista. Nesse meio-tempo, nem mesmo ele se poupara de qualquer esforço, coordenando a coleta de madeira com tenacidade incansável, uma tarefa que Pilet lhe jogava de bom grado sobre os ombros, para se dedicar à caça com os outros cavaleiros.

Emanuel tampouco se furtou à lida. Mas, enquanto Ricardo se ocupava porque estava ansioso por manter a estima do conde de Toulouse, o bizantino, como sempre, sentia-se no dever de fazer mais do que os outros para conquistar o respeito de todos; ou, pelo menos, como objetivo mínimo e mais alcançável, para evitar que os francos manifestassem abertamente seu desprezo em relação a ele.

Tinham se ausentado do acampamento havia três dias, mas sua chegada, embora tivessem coletado muita madeira, não despertou especial entusiasmo. Emanuel observou as pessoas e achou-as muda­das. Estavam queimadas pelo sol, particularmente os germânicos, que mostravam sofrer com o calor mais do que qualquer um no exército. Todos se revelavam mais magros, mais secos e mais emaciados, e era raro ver alguém fazendo movimentos que não pareces­sem cansados, lentos e sofridos.

Até mesmo quem trabalhava na torre móvel de Godofredo o fazia em ritmo brando, quase apático. Os homens, dispostos em torno do único patamar construído, davam machadadas sem tomar impulso e deixando transcorrer tempo demais entre um golpe e outro. Os que fixavam os pinos martelavam com pouco empenho, prolongando ao infinito qualquer operação de cavilhamento.

Poucos falavam, e quem era obrigado a fazê-lo parecia ter acaba­do de acordar, a voz empastada, ruídos desagradáveis que acompa­nhavam as palavras. Os lábios estavam ressequidos, rachados, exangues. Não havia sorrisos, nem sequer entre as crianças, que haviam renunciado a brincar, preferindo descansar uma ao lado da outra nos poucos locais à sombra deixados para elas pelos adultos e pelos velhos.

Havia quem circulasse seminu, batendo continuamente a espada contra a superfície externa do escudo e provocando um ruído tão mais incômodo quanto mais se destacava no silêncio geral. Outros, desprovidos de armas, caminhavam pisoteando violentamente o ter­reno, levantando uma nuvem de poeira que os acompanhava aonde quer que fossem. Curioso, o grego perguntou a um velho o motivo daquela estranha atitude.

Isto aqui está cheio de tarântulas. Muitos morreram das pica­das. O ruído as afugenta, pelo menos — respondeu o outro com olhar vazio, perdido no horizonte.

"O que eu ainda estou fazendo aqui?", perguntou-se Emanuel. "Eles me desprezam, morre-se de fome, de sede e de calor, os chefes brigam entre si, o exército egípcio pode chegar a qualquer momen­to e nos massacrar, a glória do Senhor é apenas um álibi para todos. Talvez até para mim." Refletiu sobre o que Firuz lhe dissera. Na ver­dade, não queria escolher. Não era ao Senhor que devia pedir per­dão, mas ao seu imperador. E Romano o perdoara. Mas ele jamais havia perdoado a si mesmo, e estava em busca de um pretexto, o enésimo, para continuar a batalha pessoal contra o peso que carregava nos ombros. E, até agora, havia procurado uma infinidade de pre­textos. A glória do Senhor era o único que lhe faltava, o mais nobre, o mais elevado.

Mesmo assim, continuava sendo um pretexto.

Vamos procurar Anselmo? — sugeriu Ricardo, interrompen­do suas reflexões.

Para quê?

Lá está — apontou o normando. — Quero pedir a ele um favor.

O monge havia claramente emagrecido. A cabeça careca estava coberta de chagas e queimaduras, o hábito lhe escorria pelas costas como um manto. Ao lado dele encontrava-se Inês, ocupada em pas­sar um pano úmido sobre os lábios e o rosto de um velho peregrino. Ricardo esfregou mentalmente as mãos, imaginando que aquela era a situação ideal para o que ele tinha em mente.

Veja só, também temos Inês aqui! — começou. — Não está no trabalho?

A mulher o encarou com ostensiva indiferença, sem responder.

Quem o fez foi Anselmo:

Trabalho? Este é o trabalho dela, agora. Aliviar os sofrimentos dos enfermos. Ao que parece, o Senhor está nos infligindo todas essas privações para obrigar os depravados a conterem suas pulsões imundas. A esta altura, quem ainda tem algum dinheiro prefere gastá-lo por uma gota d'água, e não para extrair prazer de uma mulher!

Mas Inês faz aquilo por vocação, mais do que por dinheiro — observou ironicamente Ricardo. — Desde quando a conheci, já a vi trabalhar mais vezes de graça do que em troca de pagamento... Não é verdade, Inês? Com maior razão, agora deveria aliviar as pessoas que sofrem... — acrescentou, lançando-lhe um olhar provocador.

Só quando estou com vontade. E agora não estou — respon­deu ela, mais seca do que a língua do velho a quem estava acudindo.

Como foi a expedição? — interveio Anselmo, para evitar que a conversa degenerasse. — Vi que vocês coletaram bastante madeira.

De fato. A propósito, eu queria lhe pedir uma cortesia — res­pondeu Ricardo ao monge, enquanto por um instante ainda olhava Inês, que por sua vez evitava fazer o mesmo. — O que pensa dos judeus?

O que eu penso? Que são os assassinos de Cristo, como todos sabem, e por isso não consigo amá-los — respondeu Anselmo. — Além disso, fizeram causa comum com o Islã. Mas convém que reste algum vivo, para eterno testemunho do crime deles, e por isso eu abomino quem gostaria de exterminá-los. Hoje, exatamente como os cristãos, existem judeus bons e judeus maus, que não levam em conta o crime de seus antepassados.

Para um padre, você tem bastante bom-senso. Muito bem — replicou Ricardo. — Portanto, é a pessoa certa. Preste atenção: três anos atrás, ao passarmos por Mogúncia com o conde Emich de Leiningen, meus companheiros massacraram um monte de judeus. Eu fiz o que pude para salvar alguns. Pois bem, entre os prisioneiros que fizemos na zona do mar de Sal há uma moça a quem ajudei naquela ocasião. Queria que você se ocupasse dela um pouco, ou pelo menos procurasse evitar que a tratem muito mal. Penei muito para livrá-la do massacre em Mogúncia, assim como a irmã, e não queria que lhe acontecesse alguma coisa agora, justamente por minha causa, visto que fui eu quem a capturou, quando ela fugia com um árabe.

Anselmo ficou meio perplexo. Porém, refletiu, o interesse que o normando parecia alimentar por aquela judia podia representar um bom motivo para induzir Inês a parar de pensar nele; por isso, não demorou muito a captar as vantagens implícitas na proposta de Ricardo.

Se é para lhe evitar sentimentos de culpa que poderiam preju­dicar sua conduta em batalha, faço isso de bom grado — respondeu com um amplo sorriso, olhando Inês de soslaio. Como, aliás, Ricardo também estava fazendo.

Ambos notaram a maneira insana como ela esfregava o pano, já seco, na língua do coitadinho.

"Reconfortar o pobre, vestir o nu, socorrer quem se encontra na adversidade, consolar o aflito." Anselmo continuou a repetir para si mesmo a regra beneditina, a fim de convencer-se de que estava fazendo a coisa certa, indo levar um prato de pão e queijo à judia de quem Ricardo lhe pedira para cuidar. E jamais deixaria de cumprir a regra, pensou. Nem mesmo com os judeus, embora alguns de seus confrades tivessem exultado com os pogroms realizados pelos cruza­dos, três anos antes. Às vezes, na verdade, o exemplo de muitos homens da Igreja, até mesmo priores e bispos, levava-o a pensar que se tratava de disposições ideais e irrealizáveis, como aquela de "ofe­recer a outra face" que Cristo havia transmitido. Ninguém conse­guia aplicá-las realmente, e ele, quando se esforçava por fazê-lo, sentia-se quase ridículo diante dos outros.

No entanto, continuaria tentando cumpri-las. Era seu modo de servir melhor ao Senhor, compensando as outras carências, como o desejo da carne, que o atormentava de maneira ilícita para um monge. Consolava-se dizendo sempre a si mesmo que seus confrades podiam até ser capazes de dominar os impulsos diabólicos, mas tal­vez achassem pesado reconfortar o pobre, vestir o nu, socorrer quem se encontra na adversidade, consolar o aflito.

Chegou ao recinto dos prisioneiros. O local era praticamente igual àqueles dos poucos animais de carga de que os cruzados ainda dispunham. A única diferença, notou, era a presença mais consisten­te de sentinelas. Ninguém se preocupara em separar a única mulher dos outros prisioneiros, ao menos por enquanto.

Rebeca? Rebeca é você? — gritou ele, aproximando-se da cerca.

Você tem alguma dúvida sobre quem poderia ter um nome desses aqui dentro, padre? — respondeu a moça, com uma boa dose de agressividade.

Foi só para chamar sua atenção... — replicou Anselmo, intimi­dado e aborrecido com aquela reação. — Bom, Ricardo me pediu que a ajudasse a suportar este cativeiro. Por enquanto, eu lhe trouxe algo para comer. Você é mulher e, portanto, mais frágil, por isso, deve se alimentar mais do que os outros.

Suas idéias sobre as mulheres continuam pouco claras, padre — disse Rebeca, quase lhe arrancando das mãos o prato com a comi­da. Anselmo gostou de constatar que, apesar da atitude altiva, aque­la jovem não conseguia esconder uma desesperada necessidade de ajuda. Mas o sorriso que estava prestes a se formar em sua boca transformou-se numa careta de estupor quando ele a viu chamar um árabe, sentado pouco adiante, e oferecer-lhe metade do alimento.

Mas... Ricardo insistiu que você se revigorasse... Desse jeito, ele vai me repreender, se você não comer o suficiente... — protestou.

Já expliquei a Ricardo que este homem me ajudou tanto quan­to ele o fez no passado. Por conseguinte, se vocês pretendem me dar uma mão, saibam que farei o mesmo com ele — avisou a mulher, indicando Jamal com um aceno de cabeça.

"Socorrer quem se encontra na adversidade, consolar o aflito...", repetiu Anselmo a si mesmo, fechando os olhos por um instante.

Seja como for, eu lhe agradeço. Não estou habituada a encon­trar ajuda e compreensão nos cristãos, e muito menos entre os padres — Rebeca sentiu-se no dever de acrescentar.

Anselmo sabia muito bem do que ela estava falando. Mas, claro, não podia secundá-la.

Engana-se. A ordem cluniacense se esforça por manifestar compreensão e tolerância pelo seu povo. Sem dúvida, alguns não esquecem que vocês enviaram Nosso Senhor à morte, e por isso não conseguem oferecer a outra face...

Mesmo que assim fosse, você gostaria de ser punido por um crime cometido pelo avô do avô do avô de seu avô? — respondeu ela, retomando o tom áspero com que o recebera.

Na verdade, não. Consciente de que Cristo é amor, a Igreja se esforça por proteger vocês, mas, infelizmente, nem sempre consegue. E também, às vezes vocês inegavelmente dificultam nossa tarefa, com seus tráficos suspeitos e a usura exagerada de que se tornam cul­pados... — justificou-se Anselmo.

Por acaso a Igreja nos deixou outro modo de viver? — repli­cou Rebeca, com veemência crescente. — Ela proíbe o empréstimo a juros, e assim os cristãos nos procuram para pedir dinheiro empres­tado. Se nossas taxas são altas, é só porque vivemos sob a ameaça constante de reações e leis anti-semitas, e afinal precisamos nos garantir de algum modo.

Não sou tão obtuso como alguns de meus confrades a ponto de lhe tirar totalmente a razão... — admitiu o monge.

Rebeca teve dificuldade em acreditar que havia encontrado um eclesiástico capaz de mostrar uma mentalidade tolerante. Ainda assim, decidiu aproveitar:

Quanto à proteção que a Igreja teria nos concedido, não há nada mais falso. Faz séculos que seus mais "insignes" representantes não nos deixam em paz, alimentando as discriminações e as perse­guições. Conhece os escritos dos chamados "Padres da Igreja"? Aqueles que vocês tornaram "santos"? Conhece João Crisóstomo, o qual afirmava que o povo hebreu era dominado pela depravação moral, compunha-se de porcos e bodes capazes unicamente de mutilar um ao outro, e que entrar numa sinagoga equivalia a entrar num prostíbulo? E que os judeus seriam crucificados, assim como crucifi­caram Cristo? E que para nós não seria possível nenhuma expiação, e tampouco indulgência ou perdão? Ou Tertuliano, que nos acusava de ter renegado Deus? E Efrém, que nos acusava de ter trocado o Pai por um bezerro, e o filho por um ladrão? E João Damasceno, para quem o sábado foi dado aos judeus pela vulgaridade deles e pela pro­pensão ao acúmulo de bens materiais? E Maximino, segundo o qual o povo hebraico era Caim? E Agostinho de Hipona, para o qual os hebreus eram um povo escravo da carne, inimigo de Deus e princi­pal responsável pela morte do Salvador, a quem aprisionaram, cobriram de injúrias, amarraram, cingiram com uma coroa de espi­nhos, desonraram, fustigaram, martirizaram, penduraram numa cruz e perfuraram com uma lança? E Eusébio de Cesaréia, que se comprazia com a destruição do povo de Israel em razão de sua des­crença? Ou Justino, o Mártir, que atribuía nossa miserável condição de exilados à cólera divina? E Hilário de Poitiers, que procurava demonstrar como os judeus eram um povo perverso e desprezado por Deus? Ou Gregório de Nissa, para o qual os hebreus eram deicidas, inimigos da graça e da fé de seus pais, pecadores, homens malvados, servos do demônio, víboras, caluniadores, escarnecedores? E, por fim, o que dizer do Código Teodosiano, o cânone jurí­dico do império, no qual os judeus eram descritos como uma seita maligna e pecaminosa, constituída por seres desprezíveis? O que você acha? Não é o suficiente para induzir príncipes, reis e povo a nos perseguirem?

Mas... essas palavras estão ligadas às disputas e ao espírito da época... — conseguiu dizer Anselmo, quase atordoado pela veemên­cia da moça, mas também pelo grau de conhecimento dela. — Não têm um valor absoluto e eterno...

Por quê? Hoje o espírito mudou? Seja como for — prosseguiu Rebeca —, todo discurso sobre o assunto é comprometido por um erro básico: os judeus têm pouco ou nada a ver com a morte do Cristo de vocês. Até porque vocês parecem esquecer que Jesus era um dos nossos, pois se tratava de um judeu...

Houve um momento de silêncio. Anselmo precisou de alguns instantes para absorver o impacto dessa declaração.

Ele era judeu, é verdade, mas também um novo tipo de judeu, que seu povo não aceitou... — atrapalhou-se.

Engana-se. Alguns dos ensinamentos de Jeshua que vocês, cristãos, consideram interpretações pessoais da ortodoxia hebraica eram compartilhados por outros rabis da época: as opiniões dele sobre o divórcio eram as do sábio Shammai, aquelas sobre o amor ao próximo eram professadas também pelo rabi Hillel, e aquelas sobre o sábado e sobre a ressurreição eram típicas dos fariseus. A definição "novo tipo de judeu" é mais adequada ao são Paulo de vocês do que a Jesus, ou melhor, Jeshua. Jeshua era um rabino que interpretava a Torá e exortava as pessoas a confiar na Aliança com Yahvé, dirigindo-se somente "às ovelhas perdidas de Israel", criti­cando o pouco zelo dos sacerdotes e anunciando a vinda iminente do reino de Deus, em particular para os pobres e os oprimidos. Paulo virou as costas à Lei mosaica e atribuiu a Cristo a instituição de uma nova Aliança, que deixava Yahvé em segundo plano e visava a converter os gentios. Aliás, na Epístola aos Gálatas, afirma que foi o próprio Cristo quem lhe revelou a missão entre os pagãos. Não teria sido necessário ressaltar isso, se tal missão estivesse incluída nos ensinamentos de Jeshua... — Rebeca falava agora com todo o ímpeto.

Por acaso você está possuída pelo demônio? — rebateu Anselmo, que continuava exortando-se a "consolar o aflito". — Eu vim aqui para ajudá-la, mas não permitirei que o diabo se manifeste pela sua boca. Você diz coisas sem sentido. Na Epístola aos Roma­nos, são Paulo diz que Abraão é o pai de todos os crentes, circuncidados ou não; na Epístola aos Gálatas, afirma que está plenamente alinhado com a tradição hebraica antiga, porque foram Moisés e todos os que se reportam às obras da Lei que se afastaram da fé de Abraão, corrompendo-lhe a pureza com a história do bezerro de ouro. Se ele passa por cima da Lei de Moisés, é para restaurar, através da Nova Aliança de Cristo, a pureza originária. Foram os próprios hebreus que rejeitaram os ensinamentos de Jesus, ensina­mentos de amor e fraternidade universal...

Aí está, essa é justamente a maior mistificação! — replicou Rebeca, acalorada. — Quem crucificou Jesus foram os romanos, e não os hebreus. Eram eles que decidiam quem seria enviado à morte, e não seus lacaios hebreus! Aliás, entre os hebreus a crucifixão era considerada anátema.

Os romanos podem até ter feito isso, mas a contragosto e sob as instâncias dos sacerdotes hebreus... com todo o povo atrás. E como afirma são Pedro em seu primeiro discurso como missionário: "Portanto, que toda a casa de Israel saiba com certeza que Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes"! — rebateu Anselmo.

Não! Os romanos crucificaram Jesus assim como crucificaram um monte de sediciosos, numa época em que os judeus se dividiam entre os rebeldes contrários à dominação estrangeira e os colaboracionistas. Os Evangelhos descrevem Jesus sendo aclamado pelo povo quando entra em Jerusalém, capturado às escondidas para não fomentar rebeliões e, um instante depois, desprezado e vilipendiado pela massa, que chega a preferir libertar Barrabás, em vez dele: uma conduta totalmente incoerente, fruto dos esforços dos redatores dos escritos, ou dos copistas sucessivos, no sentido de cancelar as respon­sabilidades dos romanos. Aliás, a descrição do processo é tão absur­da que não se compreende como lhe foi dada credibilidade. O uso judaico não previa que se instituíssem processos no dia de Páscoa e nos dias festivos em geral; a instrução ocorre na calada da noite e a sentença é emitida no mesmo dia, um procedimento, este último, previsto apenas em caso de absolvição. Desenvolve-se numa casa particular e não em público, na área do Templo. Por fim, faltam as duas testemunhas necessárias para a condenação à morte. Acrescente-se, ainda, que entre os quatro evangelistas sequer existe acor­do quanto às acusações...

"O próprio Pôncio Pilatos, de maneira totalmente inverossímil, foi descrito como um procurador com pouca autoridade e persona­lidade fraca, vítima das circunstâncias, e que se comporta, ainda por cima, como um hebreu do Deuteronômio, no qual está escrito: E todos os anciãos dessa cidade lavarão as mãos sobre a novilha desnucada no leito da torrente e dirão: nossas mãos não derramaram este sangue.' E todas essas mistificações, para quê? Para esconder um fato que, de outro modo seria óbvio: a execução de um sedicioso por parte dos romanos."

O que você diz é absurdo. Jesus não era um sedicioso! — retru­cou Anselmo, fremente de indignação. — Era um pacifista convicto e não dava trabalho aos romanos. Se tanto, aos hebreus...

Ah, é? E por que no Evangelho de Lucas os escribas e os sumos sacerdotes afirmam "Encontramos aquele que instigava nosso povo, impedia-o de pagar os tributos a César"?

Já que cita os Evangelhos, você deveria concluir a frase: "... e afirmava ser o Cristo, um rei". Essa é a acusação completa!

Provavelmente, um acréscimo posterior. Jeshua não se dizia um rei, embora talvez se considerasse consagrado, ungido por Deus, ou seja, um "cristo", em grego, tradução do aramaico meshishá. Por outro lado, também pode ser que o povo o visse como ponto de refe­rência da hostilidade contra os romanos e lhe atribuísse um título régio. Aliás, Flávio Josefo, a única testemunha direta que nos disse como foram as coisas naquele período conturbado, afirma textual­mente: "Pessoas desprovidas de notícias de primeira mão, baseando-se em falatórios e histórias sem fundamento, escrevem relatos confu­sos, enquanto as afirmações das testemunhas oculares são falsifica­das para adular os romanos ou denegrir os hebreus, e exaltação ou difamação, tomam o lugar da representação verídica dos fatos." Como vê, eu sei de cor esse trecho Aproveitando o silêncio embasbacado de Anselmo, Rebeca pros­seguiu:

Reflita, padre! Todos os textos inseridos no cânone de vocês não são relatos históricos, mas documentos cuja intenção é conver­ter as pessoas! Não lhe basta o que Lucas escreve sobre a exortação de Jeshua a não pagar os tributos? Bem, então pense na ocasião em que Pilatos o manda a Herodes Antipas, que lhe pergunta se ele é um "galileu". Quem quer que conheça a realidade hebraica daquele período sabe muito bem que o termo "galileu" não se refere à proveniência geográfica, mas à eventual pertença ao movimento funda­do por Judas, o Galileu, justamente na época em que Jeshua nascia. A época da primeira revolta hebraica contra o domínio romano, cujo promotor, que também pode ser considerado o primeiro zelote, aca­bou, veja que coincidência, crucificado junto com seus seguidores...

Jesus, um zelote? Esta é a mais nefanda das heresias! Jesus invocava a paz universal! — reagiu finalmente o monge.

Mas não conseguiu continuar.

A versão do Jeshua pacifista é outra mistificação para torná-lo aceitável pelos dominadores — logo recomeçou Rebeca. — Os segui­dores de Paulo atribuíram a Jeshua as expectativas de Isaías, segun­do o qual o Príncipe da Paz orientaria o povo a transformar as espa­das em relhas de arado. Aliás, parece mesmo que essa estratégia compensou, não? Dificilmente o cristianismo teria sobrevivido, se não bajulasse os conquistadores...

Os Evangelhos dão um quadro bem preciso e inequívoco de Jesus — conseguiu dizer Anselmo. - E é uma mensagem de paz, fra­ternidade e amor. Eu também conheço o Velho Testamento, e sei, por exemplo, que Jeremias considerava os nacionalistas responsá­veis, com sua intransigência, por atrair desventuras sobre o povo de Israel; ou melhor, estava convencido de que o próprio Deus queria a submissão dos hebreus a um exército estrangeiro e pagão. Por isso, foi considerado traidor pela comunidade religiosa hebraica. Exata­mente como Jesus...

O monge tomou fôlego e concluiu sua tirada, com uma maldade resultante da exasperação:

Quem afirmar o contrário é blasfemo e de má-fé... ou hebreu. Ou, quem sabe, muçulmano...

E é em nome da paz, da fraternidade e do amor que vocês vie­ram até aqui para destruir, estuprar, matar e conquistar? — Uma nova voz entrara na inflamada discussão.

Jamal.

Anselmo ficou petrificado.

Você... você conhece o idioma latino? — conseguiu perguntar, após alguns instantes.

Estou esperando sua resposta — devolveu o árabe.

Viemos aqui apenas para retomar o que vocês subtraíram à cristandade, séculos atrás, logo após o desaparecimento de seu pro­feta, destruindo, estuprando, matando e conquistando... — disse finalmente Anselmo.

Se é por isso, os hebreus também tomaram a Palestina comba­tendo e matando, no tempo do rei Davi — explicou Jamal. — Não se pode justificar aquilo que se faz com base no que aconteceu séculos antes. Aliás, esse é o mesmo princípio usado por vocês, cristãos, quando perseguem os hebreus. Mas Rebeca acabou de lhe explicar que ele se fundamenta numa mentira.

Não me parece que vocês, muçulmanos, sejam assim tão man­sos. Quem pode negar que sua religião é baseada na guerra, ao passo que a cristã o é no amor? O Corão promove a sensualidade; o cris­tianismo, a continência...

Quero lhe recordar que, no Corão, lê-se: "Os crentes comba­tem pelos seus bens e assumindo as conseqüências no caminho de Deus" — respondeu o egípcio. — E ainda: "A jihad mais sublime é quando alguém diz uma palavra verídica na presença de um sobera­no tirânico"; "Rechaça o mal com o bem, e quem é teu inimigo se tornará amigo cheio de ternura". Em relação à suposta sensualidade, esta é desmentida pela prescrição de um mês de jejum diurno por ano e da abstenção completa de vinho, assim como pela recomenda­ção da prece cinco vezes por dia; além disso, o zakat, o efeito purifi­cador da beneficência, prevê que um significativo percentual das rendas dos fiéis seja destinado aos pobres: "São apenas dois os homens a invejar verdadeiramente: aquele a quem Alá deu a Escritura e transcorre com ela as noites; e aquele que de Alá recebeu a riqueza e a distribui dia e noite com mão caritativa", diz o Corão, no qual se lê também: "Quem não dá por amor ao próximo não dá por amor a Deus." Ora, admitindo-se que Jesus fosse aquele descri­to pelos Evangelhos, vocês não conseguiram respeitar nem mesmo aquela mensagem de amor: os valores da glória, da avidez e do san­gue eclipsaram os propugnados pelo seu Jesus.

Não conheço suficientemente o Corão para contestar suas citações com outras que, pelo que sei, afirmam exatamente o contrá­rio, ou seja, a imposição de sua crença mediante a guerra... — obje­tou Anselmo. — Em meu modo de ver, o mártir cristão é aquele que morre por sua fé sem opor resistência; e a história dos primeiros cristãos está cheia de exemplos disso. Já o mártir muçulmano é alguém que morre por sua fé no campo de batalha.

Mas só para se defender! —- retrucou ainda o árabe. — Está escrito: "Combatei a fundo no caminho de Deus, combatei contra quem vos combate, mas não sejais os primeiros a combater. Deus não quer bem aos agressores." Mas, sem dúvida, nós costumamos sepultar o cadáver de um soldado com as roupas ainda sujas de san­gue e sem as abluções habituais, a fim de que, no Dia do Juízo, que para os mártires se segue imediatamente à morte, o caído possa exi­bir suas vestes como prova de heroísmo. O próprio Profeta disse: "Eu gostaria de combater pela causa de Deus para sofrer o martírio, e depois ressuscitar e ser novamente martirizado."

"E, quanto à imposição religiosa, o Livro afirma: 'Que não haja coerção em matéria de liberdade religiosa.' Não pretendemos ser os únicos, mas somente os preferidos por parte de Deus, e não somos intolerantes. Vocês ousariam negar que, sob o domínio muçulmano, outras crenças viveram e prosperaram? A própria presença de hebreus e cristãos ortodoxos dentro das muralhas de Jerusalém é a prova disso. A verdadeira jihad dos crentes é aquela voltada para si mesmos, e é de natureza exclusivamente moral, para combater as forças do mal que querem desviá-los do caminho reto e roubar-lhes a alma."

Eu não diria exatamente que aquilo que vocês fizeram quan­do conquistaram quase toda a costa do Mediterrâneo, meio milênio atrás, pode ser definido como apenas uma guerra defensiva, ou moral — observou Anselmo. — E os não muçulmanos subjugados a vocês só podem viver pagando pesados tributos... ao passo que, entre nós, os hebreus ficam ricos.

Não faz nenhum sentido confrontar os ideais próprios com as ações de outrem — disse Jamal. — Seria como comparar o homem com Deus. Enquanto homens, somos falíveis e perfectíveis. Erramos com uma freqüência vergonhosa. Mas os ideais é que devem ser con­frontados entre si. Ou então as ações, mas somente num plano estri­tamente humano. A verdade de Deus não pode ser limitada a uma só religião. Segundo o Corão, é justo que existam mais crenças, e que estas entrem em competição recíproca. "Se Deus quisesse, teria feito de vós uma comunidade única, mas não fez. Ele quer vos colocar à prova por meio daquilo que vos revelou. Disputai uns com os outros para fazer o bem, visto que vosso retorno será rumo a Deus. Só então Ele vos iluminará quanto às coisas sobre as quais estiverdes em discórdia", lê-se.

"Veja bem, monge, primeiro eu o escutei dizer a Rebeca que, segundo Paulo, os hebreus se desviaram do pacto entre Deus e Moisés e que o cristianismo teria restaurado a fé antiga. Rebeca, por sua vez, acusou vocês, cristãos, de terem criado um novo pacto, introduzindo a figura de Cristo. Eu poderia continuar esta discussão até o infinito, dizendo-lhes, como está escrito, que Abraão não era hebreu nem cristão, mas muçulmano, e que, diferentemente daque­les que se desviaram, o Islã se liga diretamente à religião de Abraão, evitando, porém, os caminhos errôneos percorridos por hebreus e cristãos.

"Aqui, cada um pode acusar os outros de terem se desviado da fé do nosso pai comum, Abraão, cujos filhos, Isaac e Ismael, deram vida às respectivas raças. Eu prefiro recordar o trecho do Corão no qual se narra o que aconteceu aos cristãos da Arábia sul-ocidental há quase meio milênio, quando um tirano iemenita tentou obrigá-los a abjurar cortando-lhes uma parte do corpo, a começar pela mão direita, sempre que respondiam afirmativamente à pergunta sobre se eram cristãos. Nele se lê: 'Malditos aqueles que se sentaram em círculo para desfrutar do espetáculo daquilo que sofriam os crentes, culpados unicamente de haver acreditado no Deus poderoso e digno de louvor', como prova do quanto nós, muçulmanos, apreciamos a devoção a Deus.

"Se as três religiões semitas parassem de se guerrear e reconhe­cessem suas raízes comuns, todas poderiam subscrever uma profis­são de fé comum, segundo o que afirma o Corão: 'Cremos naquilo que vos foi revelado. Nosso Deus e vosso Deus são um só, e nele somos muslimun.'"

— Eu certamente não quero ser "muçulmano". Sou cristão e disso me vanglorio, embora não possa criticar seu desejo de paz e fraternidade — opinou Anselmo.

No entanto, não deveria se envergonhar de ser muslimun — provocou-o Jamal. —- Sê-lo implica, literalmente, uma dedicação que tem Deus como objeto e, como fim, a obtenção da paz. Todo homem de bom-senso e de espiritualidade deveria tender a isso, ainda que sob formas diversas.

Você é um soldado bem estranho. Fala como um homem de religião, mais do que como um combatente. Talvez não devesse ter empreendido a carreira das armas... — observou Anselmo, bem menos encolerizado do que quando discutia com Rebeca.

Na fé muçulmana — prosseguiu o árabe —, em geral não exis­tem sacerdotes, ministros de culto, nem intermediários entre o homem e Deus. O Livro é mais do que suficiente. O homem e Deus não podem se comunicar diretamente. Está escrito: "Por que tem o homem de pretender que Deus converse com ele? Deus não o faz senão por revelação ou por trás de um véu ou, ainda, enviando um mensageiro que revele, com Sua permissão, aquilo que Ele quer."

"Assim, cada fiel é responsável pelo conhecimento da Escritura revelada. Vocês, cristãos, delegam essa relação entre o homem e Deus a padres como você, e isso comporta, inevitavelmente, que os fiéis sejam mais mornos, e até mais ignorantes, permita-me dizer, quanto aos seus preceitos religiosos."

Se é por isso, nem mesmo Jeshua falou explicitamente de ministros de culto. E outra das invenções da Igreja nascida depois dele... — interveio Rebeca, que até então havia deixado Jamal falar, cheia de curiosidade pela capacidade dialética do egípcio.

Ah, é? Então, o que seriam os apóstolos? — respondeu Anselmo, recuperando na mesma hora a expressão irada que as pala­vras do árabe haviam atenuado progressivamente.

Somente uma metáfora do fato de que a autoridade dele se estendia sobre as doze tribos de Israel...

— Preste bem atenção, mulher — retrucou Anselmo. — Se, cada vez em que eu vier lhe prestar socorro, você me receber com essas teorias blasfemas, terá de sofrer tanto quanto os outros, porque eu não virei mais, e darei um jeito para que mais ninguém a ajude. Fui claro? — acrescentou, tentando assumir uma atitude ameaçadora, que sua cara, ainda rubicunda, apesar das privações, tornava muito improvável.

E, de fato, Rebeca não o levou a sério, deixando aflorar um sor­riso que contagiou Jamal. Anselmo foi embora vociferando. Mas aquilo que escutara dos dois interlocutores logo o induziu a refletir. A pergunta de Ricardo, que desejava saber se ele havia auxiliado a jovem, respondeu com um inaudível "hum-hum", avançando absor­to nos próprios pensamentos sem sequer dirigir um olhar ao normando.

Naquela noite, não pregou o olho.

 

Inês, em contraposição, dormiu bem. Havia seguido Anselmo, insti­gada pela curiosidade de conhecer a mulher pela qual Ricardo pare­cia ter tantos cuidados. E observara a discussão entre eles por todo o tempo, a distância, escondida atrás de uma carroça. Tinha notado, com prazer, os traços rudes da suposta rival, e vira-os se tornarem ainda mais duros quando a outra se acalorava; tinha avaliado seu físico maciço, ao menos em comparação com o dela mesma; tinha escutado sua voz quase estridente, e até petulante, que não transmi­tia nem jamais poderia transmitir nada de sensual.

E, sobretudo, deliciara-se com a total ausência de feminilidade naquela judia desmazelada e triste.

Mas claro, concluiu, satisfeita: poderia até ajudar uma mulher assim. E talvez, ajudando-a, conquistar Ricardo através dela, revelando-se confiável e gentil aos olhos do normando. Coisa que não deveria privá-la do prazer de continuar mostrando indiferença a ele...

 

O relatório ao governador Iftikhar ad-Dawla havia lhe tirado as últimas forças. E Firuz precisava delas, para a tarefa que se aprestava a cumprir. Tampouco poderia evitá-la; sabia que Jamal gostaria que ele a realizasse.

Por todo o fatigante trajeto do mar de Sal até Jerusalém, sozinho, a pé, sedento, sob o sol escaldante, temendo ser picado por uma tarântula ou surpreendido por uma patrulha cristã em missão de reconhecimento, Firuz havia pensado, sobretudo, em como explicar a Sara a captura de sua irmã. Tinha visto a judia se afastar, com os pulsos amarrados, no séquito dos infiéis e ao lado de Jamal, e agra­decera a Alá que seu comandante ainda estivesse vivo; se Deus deci­dira poupá-lo, significava que desejava dar-lhe a possibilidade de ser libertado pelo seu fiel guarda ou de ele mesmo se libertar, mais cedo ou mais tarde.

Embora nunca tivesse conversado com a mais jovem das duas hebréias, Firuz sabia que aquela notícia seria para ela um duro golpe. Era frágil, a moça, e totalmente dependente da irmã. Bonita, sem dúvida, mas desenxabida. Incapaz. Um peso morto. Uma mulher para jamais ser escolhida como esposa. No entanto, o chefe dele a queria mais do que qualquer outra coisa.

Isso o obrigava a cuidar dela. Coisa que não o agradava. Não o agradava nem um pouco. Mas o que o agradava não tinha importân­cia. Agora que o emir caíra prisioneiro dos infiéis, cabia a ele protegê-la. E o faria, ao menos enquanto não descobrisse um modo de fazer seu comandante entrar de volta em Jerusalém.

Desejou que Jamal se empenhasse em permanecer vivo. Desejou que ele não provocasse os carcereiros, que resistisse aos trabalhos pesados e às privações aos quais o submeteriam. Desejou que os cris­tãos se obstinassem mais um pouco no assédio, para que ele tivesse tempo de ir libertar o emir. Seguramente, pensou, enquanto entrava no bairro judeu, essa seria uma tarefa mais agradável, e talvez mais fácil, do que aquela que o esperava dali a pouco. Ao longo da vida, havia enfrentado em batalha muitos momentos desesperadores, e jamais hesitara; formara muitos jovens guerreiros, enquadrara com­panheiros presunçosos, envergonhara superiores incapazes, sempre demonstrando saber captar os potenciais e as fraquezas de quem lhe estava diante. Ganhara a estima dos seus comandantes, não só por sua coragem na guerra, mas também e, sobretudo, pela sensatez que parecia transparecer de suas poucas palavras.

Mas, com uma mulher, nunca havia dialogado. Bem, às vezes trocara umas palavras com companheiras ocasionais. Mas só frases fugazes, ordens, informações práticas, nada que se assemelhasse a uma conversa. Nunca imaginara que elas entendessem. Ou melhor, que tivessem vontade de entender. Sempre as considerara uma espé­cie de ornamento, nem sequer muito interessante, com o qual a inte­ração representava um desperdício de tempo. Pelo menos, enquanto não escutara Rebeca falar.

Aquela, sim, era uma mulher capaz de entender. Ele não havia apreendido tudo o que ela dizia a Jamal, mas compreendera o sufi­ciente para julgá-la uma mulher de personalidade e intelecto incomuns. Era alguém que entendia. Era curiosa, e isso o agradava. Jamais havia escutado outras mulheres fazerem perguntas ou propô-las a si mesmas.

Sara, ao contrário, parecia a Firuz mais uma das tantas belas estatuetas desprovidas de substância, com o agravante de ter, em comparação com as mulheres muçulmanas, uma desagradável ten­dência a se lamentar e a querer centralizar as atenções sobre si mesma.

Embora tivesse tido muito tempo à sua disposição, diante da porta da moradia das duas irmãs o turco ainda se viu desprovido de palavras que lhe parecessem adequadas às circunstâncias. Bateu mecanicamente, quase desejando que Sara não estivesse em casa. Mas bem sabia que, sem a irmã, ela nunca iria a lugar algum.

De fato, a jovem veio abrir a porta, ainda que após uma demora que o fizera imaginá-la ausente.

Sim? — disse Sara, com expressão sonolenta e entediada.

Seus cabelos estavam desgrenhados e o rosto não revelava

nenhum cuidado. Mesmo assim, continuava bonita.

Salam — limitou-se a dizer Firuz, aguardando que ela dirigis­se a conversa, na esperança de que isso lhe facilitasse as coisas.

Mas Sara não parecia tê-lo reconhecido. Depois de mais alguns instantes de silêncio sob o olhar interrogativo da jovem, ele foi obri­gado a se apresentar.

Sou guarda pessoal de ilustre emir Jamal al-Ashraf. Lembrar eu? — arriscou, em seu grego aproximativo.

Ah, sim, é verdade. Eu deveria reconhecê-lo. Embora vocês, muçulmanos, sejam todos iguais, uma cara feia como a sua eu devia identificar de imediato — respondeu ela, com a expressão já não entediada, mas aborrecida. — Onde está minha irmã? Vocês não fo­ram juntos?

De fato. Mas só eu volta — disse ele, interrompendo-se logo. Percebera que havia sido brutal, mas não sabia como se comportar diferentemente.

Como assim? Como assim? — exclamou ela, aflita.

Os outros todos prisioneiros ou mortos. — Realmente, não sabia fazer melhor.

Mortos? Mas como, mortos? Minha irmã, morta? E eu sozinha, sem mais ninguém que cuide de mim? — gritou Sara na cara dele.

Firuz notou que ela não pensava nem um pouco em Jamal. Fez menção de abrir de novo a boca, mas Sara o cumulou de insultos:

Porco muçulmano, cachorro sarnento! E você não a defendeu? O emir o levou para defendê-la! Para quê, diabos, você serve agora? — Depois passou às vias de fato, esbofeteando-o, até que ele conse­guiu lhe segurar os pulsos.

Eles não mortos. Estavam juntos. Eles prisioneiros — disse, mas os gritos dela abafaram suas palavras.

Tentou repetir a informação, mas Sara lhe desfechou um ponta­pé um instante antes de perceber o que o turco queria dizer. Só então se acalmou. Mas não com as palavras.

E o que muda com isso? Vão matá-los, mais cedo ou mais tarde, e isso depois de lhes infligir quem sabe quantos sofrimentos! E eu vou ficar sozinha do mesmo jeito!

Você não sozinha. Eu cuida você. Esta é vontade meu coman­dante.

Ah, é? E de que me serve? Você só sabe combater e ficar aí estático, do lado de fora da porta. Eu preciso de muito mais! — replicou Sara, a quem não sorria a perspectiva de ver sempre por perto aquele tipo desagradável. A muito custo, havia suportado Jamal, mas este turco ela não podia nem ver.

Eu vai libertar sua irmã... e Jamal al-Ashraf. Mas, agora, você diz o que precisa, e eu faz — respondeu Firuz, que precisou recorrer a toda a sua força de vontade e à paciência de que era dotado.

Preciso de pão. Estava indo me abastecer, mas agora não quero mais sair. Essas notícias me transtornaram. Cuide disso, mas depressa, estou com fome.

Está bem — disse o turco, sem se alterar.

E foi saindo, mas justamente nesse momento o muezim chamou os crentes para a prece. Então ele avançou alguns passos, distanciando-se um pouco da casa e detendo-se com o sol à sua direita.

Incrédula, Sara o viu pronunciar a frase Allahu akbar de braços erguidos. Transpôs depressa a soleira da casa e se aproximou dele, gritando-lhe na cara:

— Eu lhe pedi um favor e você pensa nos seus assuntos? E assim que vai cuidar de mim? Estou com pressa, entendeu? Vá logo, senão eu vou contar ao emir, quando ele reaparecer!

Sem dizer uma palavra, nem desviar o rosto da direção de Meca, Firuz afastou a jovem com um braço, arremessando-a para a porta por onde ela saíra. Em seguida retomou a prece, recitando a Fatiha, a primeira surata do Corão, ajoelhando-se e apoiando a testa e as palmas das mãos na poeira da rua.

Sara ficou olhando-o por mais alguns instantes, com aversão e desprezo, antes de se reerguer e entrar em casa, abandonando-se então a um pranto copioso que ela não interrompeu nem mesmo quando Firuz, pouco tempo depois, retornou com o pão.

 

Trabalhar com este calor é uma forma de tortura, pensou Ricardo. Na verdade, combater também seria, mas, nesse caso, a exaltação e a excitação, além do medo, suprimem tanto o calor quanto o frio. Içar traves sobre os ombros, serrá-las, pregá-las uma à outra não é exatamente o tipo de atividade, concluiu, que envolve o indivíduo a ponto de fazê-lo esquecer as condições sob as quais está agindo.

No entanto, tinha consciência de que as esperanças restantes de conquistar Jerusalém dependiam daquele trabalho. Godofredo de Bouillon e Raimundo de Toulouse haviam, cada um, confiado a um engenheiro de confiança a construção de uma torre móvel, além de uma série de máquinas de aproximação e de arremesso. E traba­lhava-se com afinco, oficialmente porque a obra devia ser concluída antes da chegada do exército egípcio.

Ricardo, porém, tinha a impressão de que os dois comandantes estavam obrigando os homens a turnos forçados, a fim de se supera­rem reciprocamente. A construção das torres parecia ter se tornado uma competição, como se o prêmio para quem terminasse primeiro fosse o comando geral do assalto.

Ainda assim, os soldados não se poupavam. Os chefes haviam divulgado que a água, racionada, seria distribuída em maior quanti­dade a quem tivesse contribuído para a construção do maquinário; por isso, todos se dispunham a suar e afadigar-se mais, desde que experimentassem de vez em quando a embriaguez de sentir a água deslizar pelo palato ardente e pela garganta ressequida.

Ricardo, por sua vez, não havia escolhido participar. Raimundo decidira que ele assumisse a função de ajudante do engenheiro Guilherme Ricou, e, como tal, o normando organizava as equipes de trabalho e estabelecia os turnos. Também devia se ocupar dos prisio­neiros muçulmanos, aos quais tinham sido atribuídas as tarefas mais pesadas e ingratas. Resolvera manter consigo Emanuel, o único em quem confiava totalmente, mas não era fácil tê-lo ao alcance da mão: o grego não sabia nem queria ficar parado e evitava até ser revezado, unindo-se à equipe seguinte.

O que você ainda quer demonstrar? — perguntou-lhe Ricardo, pingando suor, embora não estivesse labutando.

Seus companheiros têm memória curta, e é melhor considerar cada dia como o primeiro, para evitar que me dificultem demais a vida — respondeu o bizantino, sem parar de serrar a trave com a qual estava lidando.

Estranho. Até parece que, para você, esta é uma "cruzada" mais do que para qualquer outro. Você está realmente ganhando a remissão dos seus pecados — comentou o normando.

E você? Também não considera estar ganhando o perdão do Senhor? Já percorreu uma longa estrada, desde quando se agregou ao exército — replicou o grego.

Bah! Não estou aqui por isso — disse Ricardo, dando de ombros. — Se alguém pecou na vida, certamente não é matando que poderá expiar seu pecado, apesar do que os padres afirmam. Estou aqui somente para me tornar um guerreiro, como era meu pai. Antes de vir para a Terra Santa, a ação mais corajosa que pratiquei foi tirar mel de uma colméia. Afora isso, meus dias nos bosques transcorriam em busca de córtex, que eu dava a quem extraía dele o tanino para curtir couro, de cipós para trançar e fazer cordas ou de ramos a queimar para fazer cinzas que, depois, eu entregava aos fabricantes de vidro e sabão.

Atividade bem estranha para um tipo ambicioso como você. Parece que se arranjava um pouco em tudo, sem ter um verdadeiro ofício — comentou seu interlocutor.

Uma atividade indispensável — frisou Ricardo. — Por duas razões: eu não queria me comparar com os outros, porque temia a avaliação deles, e tampouco aprender a fazer verdadeiramente algu­ma coisa, a fim de me iludir achando que só sabia ser guerreiro e me lamentar porque não me fora dada essa possibilidade... Na realida­de, eu tinha apenas medo. Medo de não estar à altura da minha ambição, e do meu pai.

Emanuel pensou que, também para seu amigo, Manzikert devia ter representado uma experiência devastadora, por algum motivo que Ricardo não queria lhe revelar; aliás, ele também não gostava de falar daquele dia. Fosse como fosse, não pôde evitar perceber que os dois haviam reagido de maneira oposta. Ele se lançara à carreira militar para buscar a expiação; o outro havia fugido dela, para mais tarde ver na cruzada, depois de muitos anos, uma oportunidade de remissão.

Vou falar com o amigo da judia. Ele parece estar trabalhando mais do que qualquer outro — disse Ricardo, interrompendo as reflexões de Emanuel. — Afora você, naturalmente... — acrescentou, com um sorriso.

O normando se aproximou de Jamal, que se arrastava sob o sol, carregado de traves como uma mula. Ajudou-o a sustentar o peso, sob o olhar interrogativo do guarda mais próximo.

Pare um instante e venha comigo. Você realmente merece beber água — disse.

Não preciso. Sou um soldado — respondeu Jamal, depois de terminar o trajeto e descarregar a madeira. — Em vez disso, dê minha ração a Rebeca. Para ela é vital, e não creio que, entre vocês, alguém se preocupe com uma judia.

Como quiser — retrucou Ricardo, impressionado pela altivez do egípcio, mas também curioso pela atitude protetora que ele demonstrava em relação à moça.

Gostaria de levar pessoalmente a água para ela. Estava ansioso por lhe perguntar pela irmã, a quem estava agora bem decidido a reencontrar, uma vez conquistada Jerusalém. Cuidaria de protegê-la dos excessos dos companheiros, e aos diabos com o butim! Estava ali para fazer carreira no exército, e não para ficar rico; se, a esse obje­tivo, ainda acrescentasse a mulher mais bonita que ele se lembrava de ter visto algum dia, poderia se considerar satisfeito.

Infelizmente, não podia se afastar do acampamento por muito tempo. Então, limitou-se a ir até o setor dos civis, no qual previa encontrar Anselmo. Localizou-o junto de um altar rústico, onde o monge se preparava para celebrar uma missa. Inês o acompanhava, com vinho e hóstia nas mãos. Ricardo não conseguiu reprimir um sor­riso, pensando naquela bizarra aproximação entre sacro e profano.

Pode levar este jarro d'água para a judia? — pediu ao monge. Olhou para Inês e acrescentou: — Quem envia é o árabe amigo dela...

Não percebeu que eu estou para celebrar a missa? — retrucou Anselmo, irritado. — Peça a algum outro, se estiver com pressa — concluiu, virando-lhe as costas.

Mas eu posso ir. Sem mim você se arranja, não? — interveio Inês, contente por aproveitar a oportunidade de satisfazer sua curio­sidade em relação à prisioneira.

O normando ficou desconcertado, exatamente como a mulher queria. Mas lhe cedeu o jarro, enquanto Anselmo resmungava algu­ma coisa sobre o fato de que, agora, precisaria encontrar outra pes­soa para lhe passar a hóstia e o vinho no momento da comunhão. Sem perda de tempo, Inês se encaminhou para o recinto dos prisio­neiros. Estavam todos na labuta, naturalmente, menos Rebeca.

Eu lhe trouxe água! — gritou, para atrair a atenção dela.

A judia se aproximou.

E você, quem é?

Uma amiga do monge Anselmo e de Ricardo, não tenha medo. Eles me enviaram. Meu nome é Inês. Como se sente?

Dentro das muralhas ficava-se melhor. Lá não nos falta nada. Aqui, porém, acho que quase todos passam mal, e não só os prisio­neiros — respondeu Rebeca, com um esboço de agradecimento, enquanto recebia o jarro.

Apesar de tudo, confiamos que o Senhor nos dará a vitória. Trata-se de agüentar até que as máquinas fiquem prontas. Bom, eu tenho uma curiosidade: por que Ricardo se preocupa tanto com a sua sorte? — emendou Inês, puxando logo o assunto que a interessava.

Qual nada! — respondeu Rebeca, desconsolada. — Não é com minha sorte que ele se preocupa, mas com a da minha irmã. Acho que se impressionou muito com ela quando a conheceu, três anos atrás. Está me tratando bem por causa dela...

Inês sentiu algo desagradável no estômago. Então, a rival existia, embora não fosse aquela que se encontrava à sua frente. Achou que precisava de uma amiga e cúmplice, e ninguém melhor do que esta moça podia assumir tal papel: conhecia bem a rival e, além de tudo, ficaria mais contente por ver Ricardo com uma cristã do que tendo- o como cunhado.

Você gosta de Ricardo? — perguntou, à queima-roupa.

Rebeca hesitou.

Bem... é um cristão...

Não lhe perguntei de que religião ele é. Perguntei se você gosta dele — retrucou Inês, mais decidida.

Sem dúvida, é um homem fascinante. Presumo que agrada a muitas mulheres. Aliás, minha irmã também agrada a todos os homens que a conhecem...

"Decididamente, ela preferiria vê-lo comigo do que com a irmã", calculou Inês. Resolveu que lhe convinha torná-la sua amiga.

Você é a mulher dele? — perguntou Rebeca.

O quê? Oh, não! — respondeu Inês. — Eu sou a mulher de todos e de nenhum. Estou aqui para aliviar os padecimentos dos pobres soldados, sobretudo...

Ah! — exclamou Rebeca, após um instante de hesitação. — Compreendo. E como veio até aqui para exercer seu ofício?

Inês não se sentia levada a buscar a amizade e a confiança de Rebeca somente por pura estratégia feminina. Instintivamente, sim­patizava com aquela judia. Talvez porque ela era feia. Então, decidiu lhe revelar aquilo que havia ocultado de todos:

Veja... aqui, todos afirmam estar na Terra Santa para obter o perdão de seus pecados — explicou. — Mas eu acho que, em vez disso, eles buscam outras coisas, bem mais terrenas, continuando a pecar. Não acho que devo expiar meu ofício. Afinal de contas, não faço mal a ninguém, pelo contrário: evito que muitas donzelas vir­tuosas acabem vítimas dos apetites dos homens. Mas tenho algo a expiar, sim. E pertence ao meu passado. Não fui uma boa cristã, e espero que o Senhor possa me perdoar, um dia. Meus pais eram camponeses e não davam muita importância ao que os padres pre­gavam, durante as missas às quais a Igreja obrigava as pessoas da aldeia a assistir. Eles praticavam... magias, feitiços, manobras diabólicas, segundo os padres. Aliás, como todos na aldeia. Mas esta­vam apenas respeitando as tradições e as superstições de seus ante­passados, antes que a Igreja chegasse aos campos e impusesse seus ritos e suas preces. Para nossa família, era normal fazer sortilégios com meimendro nas épocas de seca, recitar encantamentos durante o uso de ervas medicinais, tratar da sarna ingerindo urina ou a pró­pria pele morta, ou ainda uma sopa de piolhos, sentar-se numa encruzilhada sobre um couro de touro para adivinhar o futuro, ado­rar o sol, a lua e as estrelas...

O cristianismo é uma derivação direta do paganismo, mais que do judaísmo — interveio Rebeca, falando mais consigo mesma do que com a interlocutora. — Hoje, estou convencida disso. Algo que foi muito bem compreendido pelo imperador Constantino e pelos que o ajudaram a impor a religião cristã como religião de Estado...

Como? — disse Inês, que não tinha entendido coisa alguma.

Nada. Continue.

Em suma, cresci assim, digamos — recomeçou a prostituta. — Meu pai morreu quando eu ainda era menina. Teve fogo de santo antônio,[7] num período de grande carestia, durante o qual precisa­mos nos arranjar com o pão feito com farinhas estragadas. Minha mãe tentou ressuscitá-lo esfregando as mãos dele com um ungüento dado por uma mulher da aldeia que sabia fazer poções. O padre, quando veio benzer o corpo, surpreendeu-a assim e, em vez de confortá-la, decidiu lhe impor a penitência de vinte dias a pão e água. Mas não tínhamos pão, e por isso ela só consumiu água. Morreu em poucas semanas, me deixando somente uma faca que havia sido de meu pai. Comecei cedo no meu ofício, para sobreviver. Aos catorze anos, engravidei. Apesar da vida que levava, eu gostaria de criar um filho. Mas não tive essa possibilidade: o bebê nasceu morto. Na aldeia, alguém me dissera que as crianças mortas sem ter recebido o batismo retornam à Terra e perseguem os vivos. Assim, na mesma noite em que ele foi sepultado, eu o desenterrei e perfurei seu coração com um bastão pontudo.

Inês deu um suspiro profundo e recomeçou:

Depois o levei dali, para escondê-lo em outro lugar onde não o encontrassem. Sabia que a Igreja não tolerava esses usos. Mas alguém me viu e foi contar ao padre. Este veio me procurar, me obrigou a me confessar e quis me impor dois anos de jejum pelo que eu tinha feito. Eu não havia entendido nada do que os padres nos ensinavam. Desde então, sempre me comportei como boa cristã. Tirando o meu ofício, claro... Mas aquele padre fez com que eu me sentisse como se tivesse infligido uma segunda morte ao meu filho.

Rebeca se aproximou dela, apertando-lhe um braço para confortá-la.

Ou seja, você está aqui porque tem esperança no perdão? — perguntou.

Bem, espero que, com minha participação neste empreendimento, Cristo Nosso Senhor vá me perdoar. Também quero comba­ter, para melhor merecer Seu perdão.

De quem? De Cristo ou de Deus? Ou, quem sabe, da Virgem Maria, mãe de seu deus? — perguntou maliciosamente Rebeca.

O que você quer dizer? Há diferença entre os dois primeiros? Não são a mesma coisa? — retrucou Inês, confusa.

Rebeca bateu delicadamente as mãos nos ombros dela. "São mesmo uns politeístas. E não se dão conta disso!", pensou.

O dia havia sido duro. O calor, opressivo. A sensação do tempo que fugia, correndo velozmente rumo à chegada do exército egípcio de socorro, levava todos a dedicarem o máximo empenho à preparação do assalto decisivo. Quem não estava envolvido na construção do maquinário participava das expedições para conseguir víveres e água. Já os peregrinos não combatentes tinham sido enviados aos arredores em busca de galhos, cipós e ramos verdes, a fim de prepa­rar treliças a serem usadas como anteparos contra os projéteis vin­dos dos espaldões. Outros, ainda, estavam encarregados de esfolar animais de todo tipo — exceto os de carga, ainda necessários para o transporte de mantimentos e materiais — para obter couros com os quais se pudessem revestir as torres móveis, impermeabilizando-as contra a agressão do fogo.

E, no fim da jornada, o estribilho era sempre o mesmo: aqui, morre-se de sede.

Ricardo estava escoltando Jamal ao campo dos prisioneiros, antes de retornar à sua tenda. Refletia sobre a necessidade de agilizar as operações de assédio, não tanto pela temida chegada dos reforços do Egito quanto pelas dificuldades ligadas ao aprovisionamento de água. Era essa a verdadeira urgência. Mais alguns dias e alguém iria morrer de desidratação. Ele já tivera notícia de uns peregrinos que, em desesperada busca de água, tinham se arriscado a ir à piscina de Siloé. As flechas dos defensores os haviam perfurado antes mesmo que os infelizes pudessem beber um gole. Sabia de outros que esta­vam se organizando para ir até lá durante a noite. Mas, com os espal­dões iluminados intensamente, a fim de manter alto o alerta, não duvidava que teriam o mesmo fim.

Dou a você tudo que tenho por um gole d'água! — Suas refle­xões foram interrompidas por um soldado macilento que se arrasta­va a custo em direção a eles. Ricardo o viu estender a mão, ofere­cendo-lhe um punhado de moedas.

Não tenho nada para lhe dar. Vá descansar, soldado — limitou-se a responder, sem reduzir o passo.

O outro se aproximou mais.

Ora, vamos, vê-se que você bebeu. Você tem água, sim. Também quero! — insistiu.

Ricardo tentou ignorá-lo, mas o homem o segurou pela manga, obrigando-o a parar.

Já o mandei ir embora! Não tenho nada para lhe dar! — repe­tiu o normando.

Revoltado, o soldado lhe deu um safanão.

Maldito canalha! Só dispõe de água porque é amigo do conde de Toulouse! — disse. Em seguida, implicou com o árabe: — Até aos infiéis vocês dão de beber! E deixam apodrecer ao sol os que vieram até aqui para combater pelo Senhor! — berrou, saltando em cima de Jamal.

O emir foi parar no chão, mas, antes mesmo que Ricardo pudes­se intervir, conseguiu que o adversário o soltasse. Então o empur­rou, mas o soldado puxou a espada que trazia presa ao flanco e fez menção de desfechar uma cutilada. Jamal se desviou um segundo antes da trajetória vertical da lâmina, e depois foi ágil em colocar a bota sobre o pulso do antagonista, impedindo-o de erguer o braço e forçando-o a relaxar a preensão na empunhadura.

Empurrando-o para baixo, obrigou-o a largar a espada. Em seguida, com a mesma perna com a qual o desarmara, deu-lhe uma joelhada no estômago que fez o cristão se dobrar sobre si mesmo. Foi quase agachado que este último recebeu no maxilar um soco bem assestado que o lançou ao solo, sem sentidos.

O emir recomeçou a caminhar em direção ao campo dos prisio­neiros, convidando Ricardo, que o observava admirado, a fazer o mesmo.

Nem tive tempo de intervir em sua defesa. Mas, sinceramen­te, em nenhum momento achei que você precisasse de minha ajuda — disse o normando.

Foi fácil até demais. Estava fora de si aquele homem. Foi como surrar um bêbado — respondeu o árabe.

Se seus correligionários combatessem assim, nós não teríamos vencido todas as batalhas nem chegado até aqui — comentou Ricardo.

Vocês apenas se beneficiaram dos litígios e das cisões entre os muçulmanos. No momento, estamos mais divididos do que os cristãos.

Não diga isso: na Europa, há o partido favorável ao papa e o que apóia o rei germânico com seu papa — respondeu Ricardo.

Então, se as posições estivessem invertidas e nós atacássemos a Europa, talvez vocês se vissem em dificuldade. Mas a confiança em demasia pode subir à cabeça. E, diante das muralhas de Jerusalém, seu exército corre o risco de se arrepender por não ter se contentado com os primeiros sucessos. A fé excessiva em seu deus pode se voltar contra vocês — insistiu Jamal.

Os outros até podem ser impelidos pela fé. Mas eu prefiro me basear na experiência, e esta me diz que, no corpo a corpo, nós somos superiores. Basta conseguirmos transpor aquelas muralhas, e de nada lhes adiantará invocar o seu Alá...

No entanto, desde quando reconquistamos a cidade, os pere­grinos cristãos podiam entrar e sair à vontade. Ninguém jamais os impediu de prestar homenagem a Cristo em seu sepulcro...

Na verdade, as notícias que nos chegavam eram totalmente diferentes... — observou ainda Ricardo. — Falava-se de ataques, sevícias, emboscadas, perseguições...

Isso era o que os interessados em vir até aqui, ou em fazer vocês virem até aqui, pretendiam induzi-los a crer. Não nego que, quando a cidade estava em poder dos turcos, alguns grupos de patrulheiros fora do controle dos atabegues tenham assaltado os peregrinos. Mas nós mantivemos a ordem e usamos de grande tole­rância, como é nosso costume. Vocês vêm morrer a troco de nada.

À troco de nada, não — explicou Ricardo. — Você mesmo disse que há interessados em vir para cá. Fique sabendo que todos, do comandante supremo ao último dos peregrinos, têm algo a ganhar na Terra Santa. Porque, se um europeu está aqui, significa que alguma coisa lhe falta no lugar de onde veio. Ao grão-senhor, um feudo, um território para administrar e oprimir; ao pobretão, o mínimo indispensável à sobrevivência. E também há quem tenha a ilusão de encontrar o perdão para seus pecados e de ganhar o paraí­so. São coisas, todas elas, pelas quais vale a pena arriscar a vida.

E você, a qual categoria pertence? — perguntou Jamal.

A uma categoria só minha, talvez: sou ambicioso, mas também tenho algo a expiar.

Tal consideração provocou nele uma associação de idéias: o manuscrito que Raimundo lhe ordenara procurar e a presença de uma judia no acampamento. Decidiu enfrentar o assunto com Rebeca, embora estivesse mais impaciente em perguntar a ela pela irmã.

Uma vez no campo dos prisioneiros, Ricardo se informou sobre as condições dela, contendo a impaciência a muito custo. Era o assunto que menos o interessava, em relação aos outros sobre os quais pretendia conversar.

Queria lhe fazer uma pergunta delicada — disse, quando achou que não iria ferir demais a suscetibilidade da moça. — Em sua comunidade, por acaso você ouviu falar de um manuscrito de um autodenominado "irmão de Jesus", um texto que estaria circulando em Jerusalém há bastante tempo?

Não lhe escapou a olhadela que Rebeca lançou ao amigo árabe, que estava parado pouco adiante. Também conseguiu captar o olhar do muçulmano em resposta.

Nunca ouvi falar — respondeu Rebeca, após um silêncio que pareceu excessivo. — Mas, como você sabe, eu vivo em Jerusalém há pouco tempo, e não estou muito informada sobre o que circula na comunidade judaica.

Pode se tratar de alguma coisa que é mantida oculta. Nunca ouviu falar nem mesmo de algum grupo que guarde um segredo? — insistiu ele, não muito convencido.

Se eu não conheço o que circula, imagine se posso conhecer aquilo que é mantido oculto... — respondeu a moça, dando de ombros.

Ricardo fitou-a por alguns instantes, buscando seus olhos. Depois, encarou também o árabe. As pupilas dos dois ziguezagueavam esquivas para todos os lados.

O normando ainda hesitou um pouco, procurando as palavras para induzi-los a falar mais. Acabou desistindo, virando-se e saindo dali. Mas, poucos passos adiante, ouviu que o chamavam:

Escute... estou precisando das minhas coisas — disse a judia. — Poderia me trazer aquela sacola, assim que puder?

 

Ricardo entrou pensativo em sua tenda. E cansado, muito cansado. Desabou pesadamente no pedaço de feltro que constituía sua cama, despertando os protestos confusos dos companheiros que já cochila­vam ao seu lado. Estava prestes a se deitar de costas quando, ainda sentado, seu olhar caiu sobre a sacola de Rebeca, apoiada no canto da tenda mais próximo ao seu lugar.

Só então se lembrou de que a moça havia lhe pedido que a devol­vesse. Absorto demais em tentar compreender o que ela lhe esconde­ra, tinha deixado esse assunto em algum canto da mente. Perma­neceu imóvel, olhando demoradamente a sacola. Depois se levantou, pegou-a e a levou para seu enxergão. Ainda hesitou um pouco, mas resolveu abri-la. Tirou de dentro três rolos, que lhe pareceram de pergaminho. Lentamente, com atenção, estendeu um.

Grego.

Conservava lembranças muito vagas daquele idioma. Até o tinha aprendido, quando havia morado em Constantinopla, na infância, mas não o falava nem o lia havia trinta anos e, mesmo conseguindo identificar quase todos os caracteres, na verdade não compreendia o sentido das palavras.

Mas tampouco podia se permitir ignorar o conteúdo daqueles documentos. Recordou que conhecia pelo menos duas pessoas capa­zes de ajudá-lo.

Quero saber qual é o assunto destes rolos!

O tom era peremptório, quase uma ordem. Emanuel, Inês e Anselmo olharam Ricardo, perturbados tanto pela sua atitude deci­dida quanto pela repentina necessidade de prolongar uma jornada que consideravam já concluída.

O primeiro a se aproximar dos documentos foi Emanuel. Estavam todos em sua tenda, aliás. Ele dormia ali sozinho, desde que seus companheiros tinham morrido. Desenrolou um e, aproxi­mando-se da tocha, começou a decifrá-lo.

Leia em voz alta! — intimou-o Ricardo.

Emanuel hesitou um pouco, antes de atendê-lo. Manteve o olhar sobre o texto e só depois de um tempo levantou a cabeça e encarou o amigo. Depois, fitou também Anselmo. Só então começou a falar, lendo o pergaminho: "Eu, Tiago bar-Josef, chefe da comunidade dos ebionitas e dos nazireus de Jerusalém que reconhece em Jeshua, meu irmão carnal, o Messias enviado por YHWH para incitar o povo hebreu a respeitar a Aliança, declaro mentirosas e blasfemas as pala­vras de Saulo de Tarso, dito Paulo, o qual difunde notícias e opiniões erradas sobre Jeshua, sem jamais tê-lo conhecido..."

Pare! — reagiu Anselmo, mais rapidamente do que Ricardo. Colocou a mão sobre o pergaminho e, arriscando-se a arruiná-lo, tentou fechá-lo. — Que absurdo é este? Onde você achou isto aqui? - perguntou, furioso, ao normando.

Confuso, Ricardo demorava a reagir. Não conseguia acreditar que o destino lhe tivesse entregado aquilo que, para seu comandan­te, era um dos objetivos da cruzada.

Quer me dizer o que significa isto? Há palavras blasfemas neste texto! Por que está com você? — insistiu Anselmo, agarrando-o pela gola, enquanto Emanuel mergulhava novamente na leitura, mas sem falar.

O normando se livrou do monge sem sequer olhá-lo. Depois, afastou Emanuel e pegou os rolos, guardando-os na sacola. Sem dizer nada, saiu da tenda levando consigo a tocha que iluminava o interior.

Não creia que consegue escapulir assim! Vou no seu encalço até que você me explique alguma coisa! — gritou Anselmo, e o seguiu. A Emanuel e a Inês só restou fazer o mesmo.

Ricardo não se dignou a responder, mas tampouco tentou detê-los. Os três foram atrás dele, até que, com grande estupor, viram-no entrar no recinto dos prisioneiros. Anselmo logo fez valer suas ves­tes talares ante os guardas e entrou também, levando atrás de si Emanuel e Inês. Esta última não tinha a mínima idéia do que estava acontecendo, mas sua curiosidade se multiplicara a partir do momento em que havia compreendido que a solução da coisa apon­tava para Rebeca. Alcançaram Ricardo bem na hora em que o nor­mando se plantava diante da judia e de Jamal.

Eu trouxe sua sacola. Aqui está — começou Ricardo, virando-se para a moça. — Mas também olhei o que havia dentro — acrescentou.

E daí? — O tom de Rebeca era insolente, mas só para esconder a preocupação.

E daí, como? Não acha que nos deve explicações? — interveio Anselmo.

Rebeca olhou Jamal. Este assentiu. Ela deu um suspiro profundo.

Vocês o leram? — perguntou. Mas era uma pergunta retórica.

Só o início. Mas foi o suficiente para perceber que se trata de uma grande mistificação de vocês, judeus — declarou Anselmo, enquanto Ricardo não tirava os olhos de cima da moça.

Rebeca pensou que nunca um homem a olhara tão intensa e demoradamente. Gostaria que fosse por outro motivo.

Nenhuma mistificação — disse, por fim. — São pergaminhos que uma pequena comunidade hebraica conserva há gerações. Três anos atrás, foram parar nas mãos do meu pai e, após a morte dele, eu os guardei. Estávamos indo escondê-los quando vocês nos capturaram.

Estávamos?— perguntou Ricardo.

Conheço o conteúdo desses rolos, e a estava ajudando — inter­veio o árabe.

Prossiga — disse Ricardo, dirigindo sua atenção para a moça.

Trata-se de um testemunho direto do irmão de Jesus, Tiago, que o próprio Jesus escolheu como seu sucessor e como porta-voz de Yahvé. O autor polemiza com Saulo de Tarso, o são Paulo de vocês, sobre o rumo a ser dado à difusão dos ensinamentos do rabi. Tiago, frisando que seu irmão pretendia dirigir-se unicamente aos hebreus, contesta a posição de Paulo, o qual pretende difundir esses ensina­mentos entre os não circuncidados. E acusa Paulo de ter deturpado a mensagem de Jesus para torná-la mais aceitável por romanos e gregos, privando-a de todos os aspectos mais estritamente hebraicos, deixan­do de lado os preceitos da Torá, abrandando os tons messiânicos e levando ao extremo as características não violentas do movimento.

Que heresia você está dizendo? — interrompeu-a Anselmo, indignado. — A mensagem do Senhor é de amor universal. Não há necessidade de extremar as posições de quem ensina a oferecer a outra face! Diz santo Agostinho: "Quem acredita compreender as Divinas Escrituras ou qualquer parte delas no sentido de não edificar o dúplice amor a Deus e ao próximo não as compreende em absoluto"!

— Jeshua aplicava as regras de amor ao próximo contidas no Levítico, das quais seu "sermão da montanha" é uma clara exposição — continuou Rebeca. — Mas, como zeloso cumpridor da Lei, com­batia a corrupção e o laxismo dos sacerdotes e dos políticos, assim como os protetores romanos destes. De seu irmão Tiago, que certa­mente era como ele, dizia-se que tinha os joelhos calosos pela fre­qüência com que se ajoelhava para rezar. Tiago era um nazireu, ou seja, "consagrado", devotado ao celibato vitalício e também vegetariano; não permitia que nenhuma navalha tocasse sua cabeça e só usava vestimentas de linho, ou seja, de fibras vegetais, porque não podia ter contato com tecidos animais ou com qualquer coisa que fosse produto de uma relação sexual. E, como Tiago foi designado sucessor de Jeshua segundo um grande número de fontes, canônicas e apócrifas, é óbvio que este último era também um nazireu. Aliás, quando, no processo, ele é definido como "nazareno", na realidade pretende-se dizer "nazireu". Se você ler a obra de Flávio Josefo, que, afinal, era comandante militar da Galiléia antes de se passar para os romanos, verá que esse historiador cita um grande número de loca­lidades, mas nunca Nazaré, que talvez nem existisse então... Portanto, o termo "nazareno" é uma transposição imprópria do termo "nazireu", que deriva do hebraico nezer, isto é, o diadema, ou a coroa, do sumo sacerdote, em que estava escrito "consagrado a Deus", o que também era identificado pelas longas madeixas dos consagrados. Jeshua e Tiago eram ambos rigorosos e, provavelmente, xenófobos. O pacifismo universal é só uma interpretação de Paulo para tornar o movimento menos suspeito aos olhos dos romanos e distingui-lo de todas as outras seitas messiânicas e hostis aos domi­nadores — concluiu a moça. — Jeshua não amava os romanos e tam­pouco os lacaios deles, isto é, os sacerdotes do Sinédrio, que de fato colaboraram para sua crucifixão por obra dos próprios romanos.

Quem o matou foram vocês, hebreus, e não os romanos! — insistiu Anselmo.

Não. Os hebreus, no máximo, apedrejavam por blasfêmia, o que de fato fizeram com o próprio Tiago, trinta anos após a morte do irmão. Séculos depois, quando o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o imperador Constantino e seus sucesso­res imediatos deram a guinada definitiva no processo de culpabilização dos hebreus, já iniciado com Paulo. Assim, cancelaram a respon­sabilidade dos romanos na execução de Jeshua, encontrando nos hebreus, que tantos aborrecimentos haviam dado ao império, um bode expiatório oficial — retrucou ela.

Essa mulher tem o demônio dentro de si! É instruída, ou melhor, acredita ser. Na realidade, como todas as mulheres que ten­tam se elevar em relação à sua condição feminina, tem apenas uma grande confusão na cabeça. — Anselmo não desistia. Não podia desistir.

Sei. E talvez eu mesma tenha escrito este texto — ironizou Rebeca. — Caro padre, não sou eu quem deve lhe ensinar que nos Evangelhos, quando Jesus chega a Jerusalém, descreve-se uma multi­dão exultante que o acolhe e o festeja. Mas, pelas cartas de são Paulo e pelos Atos dos Apóstolos, sabe-se também que o próprio Paulo quase foi linchado por ter querido introduzir os estrangeiros no Templo, contaminando-o. Acha que os hebreus teriam recebido Jesus com tanto entusiasmo, se ele tivesse querido fazer o mesmo? Se ele fosse o Jesus dos Evangelhos, aquele que comia com os odiados publicanos e conversava com um centurião?

Na verdade, até o mataram!

Não eles. No máximo, a casta sacerdotal filo-romana.

Mas os Evangelhos estão aí! E desmentem você a cada versículo!

Tem certeza? Em muitos deles, é verdade. Mas são aqueles que refletem as tradições ligadas à orientação de Paulo, já que foram todos escritos após a morte de Jesus, e até, provavelmente, após a destruição de Jerusalém. E difícil acreditar que tenham sido real­mente redigidos pelos apóstolos. Não por acaso, são veladamente anti-semitas e decididamente tendenciosos ao atribuírem aos hebreus a culpa pela morte de Jesus: "Que seu sangue recaia sobre nós e sobre os nossos filhos", escreve o autor do Evangelho de Mateus, abrindo caminho às perseguições de que fomos vítimas durante séculos! Até na boca do próprio Jeshua colocam-se palavras terríveis contra seu povo: "Vós sois os filhos do demônio, que é vosso pai, e quereis obedecer aos desejos do vosso pai. Quem é de Deus escuta as palavras de Deus. Por isso não as escutais, porque não sois de Deus", lê-se no Evangelho de João! Mas tudo isso é absurdo, pois Jesus era hebreu e não podia pensar desse modo sobre seu pró­prio povo... No máximo, implicava com algumas categorias, por exemplo, os fariseus, os saduceus e os escribas, "guias cegos", "raça de víboras", não enquanto tais, visto que suas orientações doutrinárias eram semelhantes, mas enquanto expressão da corrupção político- religiosa e da submissão ao poder romano. Já notou que sobre os zelotas, ao contrário, Jesus nunca diz nada de ruim? Não acha isso estranho? No entanto, os zelotas eram anti-romanos violentos e integralistas em grau máximo. Um pacifista ansioso por converter os romanos deveria considerar os zelotas como adversários irredutí­veis... Mesmo assim, muitos vestígios do verdadeiro ensinamento de Jesus permaneceram aqui e ali, originando contradições que só podem ser resolvidas com um grande esforço de imaginação.

As contradições, como você as chama, são fruto inevitável da obra de homens comuns — retrucou, ainda, Anselmo. — A vida de Jesus é inegavelmente uma revelação divina, mas quem a redigiu foram seres humanos, estragados por erros e pecados...

Mas, se Tiago era tão importante, por que não se fala dele nos Evangelhos e nos outros textos? — interveio Ricardo.

Porque Paulo venceu — respondeu Rebeca. — Em suas epísto­las, como Anselmo deveria saber, ele demonstra fortes contrastes com Tiago, o chefe da comunidade hierosolimita, tanto a propósito das questões relativas ao apostolado entre circuncidados e não circuncidados quanto sobre o consumo de alimentos lícitos ou ilícitos. Depois deles, o cristianismo tomou de fato o rumo desejado por Paulo, e nos testemunhos sobre a vida de Jesus foram canceladas quase todas as referências à sua família, cujas posições eram exata­mente contrárias àquelas que prevaleceram. A história é escrita sem­pre pelos vencedores, inclusive no campo religioso. E depois, com a destruição do Templo e da própria Jerusalém, aquilo que podería­mos chamar de "cristianismo hebraico" quase desapareceu, deixan­do o caminho livre para aquele que podemos definir como "romano-helênico". E, se permaneceu alguma referência a Tiago nos textos que vocês consideram sacros, achou-se um modo de transfor­mar o irmão de Jesus num personagem secundário, marginal, ou de substituí-lo por outros. Não por acaso, com freqüência se faz Jesus dizer que quem adere ao seu movimento deve odiar os próprios familiares; lembra-se de Mateus? "Os inimigos do homem serão aqueles de sua casa." No entanto, Jeshua tinha quatro irmãos e pelo menos duas irmãs, segundo os próprios evangelhos de Mateus e Marcos.

Essa é a blasfêmia suprema! — exclamou Anselmo, exaspera­do. — Jesus não podia ter irmãos! No máximo, teria meios-irmãos, filhos do primeiro casamento de José, em última instância, ou então primos! Na cruz, Jesus confia sua mãe ao apóstolo João, dizendo a ela: "Mulher, aqui está o teu filho", coisa que ele certamente não diria se tivesse irmãos! E são dois os apóstolos chamados Tiago: um, filho de Zebedeu, e outro, de Alfeu. Na própria Epístola de Tiago, no Novo Testamento, o autor se professa "servo do Senhor Jesus Cristo", e não irmão!

Não é necessário muito para modificar, excluir ou acrescentar alguma palavrinha num título — rebateu Rebeca. — Isso vale para os Evangelhos, nos quais o nome de Tiago pode ter sido substituído por outros menos embaraçosos para a Igreja, e vale, sobretudo, para um documento, como a epístola em seu nome, que se refere apenas a preceitos morais e não fala em absoluto de Jeshua. Devo lhe recor­dar que, no século IV, o cristianismo se tornou religião de Estado? E que a razão de Estado pode ter justificado pesadas intervenções sobre aquilo que não parecia condizente com os propósitos do imperador e das altas hierarquias eclesiásticas? Não é difícil, para um copista, acrescentar "Jesus Cristo" a "servo do Senhor"; aliás, "Senhor" é o termo pelo qual os antigos hebreus chamavam Yahvé, já que não era permitido pronunciar o nome de Deus. E um termo desses pode criar confusão...

"Por outro lado", recomeçou ela logo depois, sem dar tempo a Anselmo para replicar, "por que Jeshua não poderia ter irmãos? Porque sua mãe era virgem quando o concebeu, através do Espírito Santo? Isso não é dito nem pelos Evangelhos nem pelas epístolas de Paulo."

Já que é tão sabichona, você deveria se documentar — replicou o monge. — Em Lucas, a Santa Virgem Maria pergunta ao Anjo como poderá dar à luz, "pois não conheço varão", e o Anjo respon­de: "O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; por isso, aquele que nascerá será chamado Santo, Filho de Deus."   

Uma perfeita réplica dos mitos greco-romanos, eu diria... Ouso levantar a hipótese de que esse evangelho não foi escrito por um hebreu, mas por um gentio convertido, conhecedor das lendas sobre a fecundação de Reia Sílvia, mãe de Rômulo e Remo, por obra de Júpiter...

Ah, é? E você, que é judia, não conhece o trecho do Velho Testamento, em Isaías, que diz: "Eis que a Virgem conceberá e pari­rá um filho"? Mito grego coisa nenhuma! — retrucou prontamente o monge.

Claro que o conheço. Tão bem que até sei lhe dizer que termi­na com "e o chamará Emanuel", que significa "Deus está conosco" — replicou Rebeca. — Pois bem, o profeta se referia ao rei davídico Ezequias, a quem de fato definiu, entre outras coisas, como "Deus poderoso, Pai para sempre". Ligar esse trecho a alguém que se cha­mava Jeshua, atribuindo-lhe um nascimento divino, é uma verdadei­ra distorção, até porque ele se baseia numa tradução errada do termo hebraico almah, "mulher jovem", transformado em parthenos, "virgem", na Septuaginta, a versão para o grego escrita no Egito para todos os hebreus de língua grega que não compreendiam a Torá. E, se estudar bem a Septuaginta, você descobrirá que os evangelistas utilizaram justamente esse texto para redigir a vida do seu Jesus, atribuindo a este último muitos episódios nos quais se fala de um "ungido", ou seja, um christos, quer se tratasse de um rei, de um profeta ou de um sacerdote!

E claro! A vinda de Jesus era amplamente prenunciada! Por fim, Sua vinda, como diz são Paulo, realizou o projeto de Deus. O filho Deste é a razão, o objetivo e o ápice do plano divino! — obser­vou Anselmo.

Mas Jeshua não pode ser de natureza divina! — replicou Rebeca. — O próprio Evangelho de Mateus afirma que José "tomou consigo sua esposa e não a conheceu enquanto ela não pariu o filho". Se esta não for uma referência ao conhecimento carnal, então vocês, eclesiásticos, não fazem senão refutar o óbvio! A realidade é que nem os Evangelhos nem as Epístolas de Paulo mencionam a Imaculada Conceição... simplesmente porque, então, sequer se falava do assun­to. E, como se trata de textos cujo objetivo é converter as pessoas, imagine se seus autores iriam perder a oportunidade de oferecer essa prova evidente da divindade de Cristo! Em vez disso, semelhante absurdo só apareceu séculos depois, porque parecia inconcebível que o fundador de uma religião não fosse um ser divino...

Jamal interveio com sua citação:

Está escrito: "Professam os cristãos: o Messias é o filho de Deus. Tais são as palavras de suas bocas, imitando assim as daqueles que, antes deles, já não acreditavam. Aniquila-os, Deus, aniquila-os! Como são imbecis! Escolheram como Senhores, em vez de Deus, seus doutores e seus monges, assim como escolheram o Messias, o filho de Maria, ao passo que lhes fora ordenado adorar somente o único Deus."

Não espero que pobres de espírito como vocês, judeus e muçulmanos, compreendam o conceito da Santíssima Trindade — respondeu Anselmo, dirigindo-se a ambos.

A verdade — prosseguiu Rebeca — é que a versão atual do cristianismo derrotou as outras, que proclamavam a humanidade de Jesus. Derrotou a corrente que recorria, por exemplo, a Nestório, o qual desejava que Maria fosse proclamada Christotokos, "mãe de Cristo", e não Theotokos, "mãe de Deus", para evitar fazer dela uma deusa nos moldes daquelas do paganismo; ou o arianismo, que foi silenciado pelo credo niceno; ou os pobres nazireus, que no entanto eram os mais diretos e mais fiéis discípulos de Jesus... O objetivo da trindade é justificar a substituição do Pai pelo Filho, da Aliança ori­ginária pelo cristianismo tardio, do povo hebraico pelos gentios! E justificar também o politeísmo de vocês, composto por pelo menos quatro deuses!

Pelo menos desta vez sou eu que quero lhe fazer uma citação — rebateu Anselmo. — Como escreve o sumo santo Agostinho, "quando dizemos que a raiz é madeira, o tronco é madeira e os ramos são madeira, não queremos dizer que são três madeiras, mas só uma. Portanto, ninguém pense que seja absurdo chamar de Deus o Pai, de Deus o Filho e de Deus o Espírito Santo, e afirmar que eles não são três deuses da Trindade, mas um só Deus e uma só substân­cia". As três manifestações da substância divina são simultâneas, e não sucessivas: como uma mulher, que pode ser ao mesmo tempo mãe, esposa e guardiã da casa. Padre Atanásio, após dois séculos de debates, estabeleceu que Pai e Filho são homoousion, "da mesma substância". E, também, vocês estão ignorando o início do nosso credo: "Creio em um só Deus..."

— Você não percebe o quanto são obscuras e forçadas as coisas que diz? — replicou imediatamente Rebeca. — As elucubrações dos padres de sua Igreja são a demonstração de que nas Escrituras não se encontrou uma prova irrefutável da divindade de Cristo. Se é para confrontar citações, você deve recordar o episódio narrado nos Evan­gelhos, aquele do homem rico que deseja herdar a vida eterna e per­gunta a Jesus, chamando-o de bom mestre, o que deve fazer para obtê-la. Deve recordar também que Jesus responde: "Por que me cha­mas de bom? Ninguém é bom, exceto Deus." Portanto, sem dúvida não se considerava uma divindade. E, logo depois, exorta o interlo­cutor a seguir os mandamentos e a se tornar pobre. Aí está: neste trecho se encontra todo o ensinamento de Jeshua, o verdadeiro ensi­namento de Jeshua, que invocava o respeito à Regra Áurea, funda­mento da lei hebraica: "Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam fazei-o vós a eles: esta é, na verdade, a mensagem da Lei e dos Profetas", lê-se em Mateus, o qual se reporta ao Levítico! O que há nisso de diferente do que ensinava o rabi Hillel, contemporâneo de Jesus, que, ao lhe pedirem para resumir a Torá, respondia: "Não faças ao próximo aquilo que julgas detestável para ti mesmo. A Torá está inteira aí. O resto é só comentário"? Vocês, cristãos, pegaram um excelente homem, que curava os outros e pregava o advento do reino de Deus, a purificação e a assistência, o respeito à Torá e à pobreza, e fizeram dele não somente o filho de Deus, mas o próprio Deus!

Mas ele é o filho de Deus! Por conseguinte, ele mesmo é Deus!

Absurdo — prosseguiu a judia. — Vocês manipularam as expressões "filho de Deus" e "filho do Homem". Jeshua consideraria blasfemo aquilo que lhe foi atribuído, transformando-o em Jesus. Todos os justos e os homens profundamente religiosos são filhos de Deus; eram-no os reis de Israel, enquanto consagrados, e, em última instância, todo o povo hebreu. Os antigos textos sacros são cheios de citações a respeito. E também, se ele fosse verdadeiramente filho de Deus, os Evangelhos afinal deveriam narrar algum encontro dele com o Pai, não? Mas como? Diversos profetas se encontraram com Deus, e Seu filho, não? Na realidade, Jeshua falava em nome de Deus, e em seus ensinamentos não havia um reino de Jesus, nem uma nova Aliança, mas somente um reino de Deus e a antiga Aliança do povo hebreu com Deus, que devia ser consolidada. Como hebreu praticante que era, ele jamais sonhou abolir a Lei mosaica, nem fun­dar uma nova religião!

Agora chega! — gritou Ricardo de repente, tentando tapar com a mão a boca de Rebeca, que se esquivou logo. — Ao que pare­ce, não há como fazer você parar. Mas essas coisas não me interes­sam. Vocês dois poderiam falar durante dias, permanecendo sempre nas respectivas posições. Toda discussão a respeito de religião é esté­ril, porque cada um considera indiscutível o próprio credo. O que eu sei é que meu comandante quer estes documentos e, agora que você me explicou do que se trata, vou entregá-los a ele — concluiu, virando-se para sair dali.

Rebeca o agarrou pelo braço.

Pare, por favor! Assim, você vai condenar o povo hebreu! — gritou, ante o estupor dos outros.

O que você quer dizer? — retrucou ele. Alguma coisa o impe­lia a escutá-la. Os outros também prestaram atenção, exceto Anselmo, o qual, se pudesse, amputaria as próprias orelhas, desde que não a ouvisse.

Quero dizer que este manuscrito é uma prova claríssima de que os hebreus não têm nada a ver com a morte de Jesus. E nossa última esperança de demonstrar que não merecemos as perseguições de que temos sido objeto durante séculos — disse Rebeca, com expressão implorante.

Ricardo se livrou da mão dela e continuou a caminhar. E a pen­sar no quanto aquele manuscrito seria proveitoso para sua carreira.

Por favor! Reflita! Você nos salvou uma vez. Quer nos conde­nar agora? — insistiu a moça, seguindo-o e obrigando-o de novo a parar.

Entregue-o! Entregue-o! É um acúmulo de mentiras! — gritou por sua vez Anselmo. Emanuel e Inês se calavam, impressionados e indecisos.

Protegerei você e sua irmã. Mas, agora, devo entregá-lo — res­pondeu Ricardo, seco.

E quem lhe dará proteção? — interveio Jamal, aproximando- se dele. — E a todos vocês?

Como assim? — perguntou Ricardo, perplexo.

Este é um segredo importante demais para seus chefes permi­tirem que alguém que tenha conhecimento dele sobreviva.

Ricardo não soube o que responder. Quem o fez foi Anselmo:

Está brincando? São apenas mentiras. Provavelmente, isso foi escrito por algum judeu, em tempos recentes. A Igreja o queimará e o esquecerá. — Mas em sua voz notava-se um leve tremor.

Eu lhe imploro, Ricardo! Você não é sem coração como seus companheiros de batalha — reiterou Rebeca. — Demonstrou isso em Mogúncia. Bem sabe que, se esse documento permanecer em nossas mãos, um dia teremos a possibilidade de divulgá-lo sob nossas con­dições. Mas, se o entregar à Igreja, ele terá realmente o fim que Anselmo previu...

Até Inês se aproximou dele.

Faça o que ela pede — disse, sob o olhar atônito de Anselmo. — Não entendi muito, mas me parece claro que Jesus era hebreu, já que nasceu por estas bandas, quando o território era povoado por hebreus. Então, como pode ter sido morto pelo seu próprio povo?

Ninguém é profeta em sua terra. Foi o próprio Jesus quem disse. Leve-o a Raimundo e Godofredo! — insistiu Anselmo.

Continuaram a falar. Todos ou quase todos. Mas Ricardo já não os escutava. Sentia-se presa de um conflito interior, entre sua ambi­ção de agradar a Raimundo e fazer carreira no exército, e o desejo de secundar aquela mulher, irmã da jovem que ele desejava mais do que qualquer outra.

Finalmente, decidiu tentar superar o impasse baseando a escolha não na conveniência pessoal, mas no valor dos próprios rolos, ao menos segundo a opinião que havia formado sobre eles.

Se na Igreja uma determinada linha de pensamento se afirmara, concluiu, devia ser a correta, apesar do pouco significado que pudes­se ter para ele.

Foi ao encontro de Raimundo.

 

Ricardo se aproximou da tenda de Raimundo de Toulouse com certa circunspecção. Às vezes se detinha, perguntando-se se estaria fazendo a coisa certa e tentando não pensar nas palavras de Rebeca. Para criar coragem, imaginava-se sobre um cavalo com suntuosa gualdrapa, à frente de um grupo de armígeros e com seu porta-estandarte ao lado, enquanto entrava num castelo de sua propriedade, entre populares festejantes pelo retorno de seu senhor. Então recomeçava a caminhar, para enfrentar novamente os mesmos dilemas.

Levou muito mais tempo do que o necessário para se apresentar no quartel-general do conde. Os dois guardas empertigados diante da entrada olharam-no longamente, intrigados por sua atitude hesitante. Finalmente, ele se decidiu a pedir que o anunciassem ao comandante.

Um dos dois soldados desapareceu atrás do limiar e reapareceu lo­go depois, convidando-o a entrar. Ricardo o seguiu mecanicamente, apertando contra o flanco a sacola de Rebeca, que levava a tiracolo.

A luz tênue de duas velas iluminava a custo o rosto cansado de Raimundo, sentado diante de uma grande prancha de madeira sobre a qual se estendiam os mapas do setor de operações. O conde tam­bém lhe pareceu ter uma expressão intrigada. "Evidentemente", pensou o normando, "minha atitude dubitativa é óbvia demais."

— Quais são as notícias, Ricardo? Não me dê outras ruins, por favor, porque a situação já não está das melhores — disse o coman­dante. — Temos que atacar de qualquer maneira dentro de dez dias; com o desânimo que reina entre nossas fileiras, tivemos muitas deserções, inclusive hoje. Se continuar assim, chegaremos ao assalto com poucas centenas de homens, ainda por cima desmotivados, des­nutridos e desidratados...

Minhas notícias são boas, no mínimo — respondeu Ricardo, cauteloso.

Descobriu um modo de construir a torre em dois dias? — pre­sumiu Raimundo, cáustico.

Não. Mas encontrei pistas do manuscrito que o senhor me encarregou de procurar. — Pronto, havia dito.

E mesmo? Interessante...

Quem havia falado não era o conde. Da sombra no canto da tenda emergira de repente uma silhueta, que avançava lentamente para a tênue fonte de luz.

Ricardo demorou para reconhecê-lo. Era aquele diácono com cara de abutre a quem via às vezes ao lado de Raimundo ou de Godofredo. Tinha escutado chamarem-no de "irmão Sigfrid", mas nunca entendera que papel ele exercia na Igreja e na expedição. Ao contrário dos bispos presentes oficialmente na cruzada, o diácono não participava das reuniões do estado-maior nem era visto entre as fileiras de soldados antes de uma batalha, exortando os combatentes a darem o melhor de si pela causa do Senhor.

No entanto, quando aparecia, estava sempre próximo dos figurões.

E ninguém o apresentava. Nunca.

Quer nos dizer mais alguma coisa a respeito, ou está se diver­tindo em nos deixar ansiosos? — acrescentou o diácono, após uns instantes de silêncio.

Pois é. Fale logo, vamos! — exortou-o o conde. O tom de Raimundo era mais peremptório, autoritário, e o de Sigfrid, mais melífluo. No entanto, era o segundo que perturbava Ricardo.

Hesitou ainda um pouco. Não tinha previsto a presença daquele homem nem compreendia a função dele.

— E então? Preciso lhe recordar o quanto um documento desses é importante para a Igreja e para o Senhor? — insistiu o diácono. — Quanto mais cedo tomarmos posse dele, mais cedo extinguiremos a ameaça que paira sobre a cristandade. E mais cedo tiraremos dos hebreus amaldiçoados pelo Senhor a possibilidade de nos prejudicar com suas mentiras...

Não. Já não podia contar. A coisa acabaria exatamente como

Rebeca havia previsto.

Na realidade... é uma pista débil... mas considerei oportuno informá-lo, meu senhor — disse Ricardo ao comandante, para ganhar tempo. — Eu... tenho razões para crer que o manuscrito ainda está dentro de Jerusalém, no bairro judeu — continuou, quase balbuciando.

Não está nos dizendo nada de novo. Disso já sabíamos. Quem lhe deu a informação? — pressionou-o Raimundo.

Ricardo se lembrou de que um dos prisioneiros árabes tinha morrido poucas horas antes, em conseqüência da infecção num feri­mento recebido durante o confronto perto do mar de Sal.

Imaginei que os hebreus depositários de tal segredo teriam comentado o assunto com seus paladinos muçulmanos, para assegu­rar a proteção do manuscrito. Então, interroguei os prisioneiros egípcios, e um deles me revelou ter ouvido falar a respeito. Parece que o texto está sendo conservado na sinagoga... — disse.

E mesmo? E ele só lhe contou isso? — emendou Sigfrid, num tom que pareceu a Ricardo bastante desafiador. Mas talvez esta fosse só uma impressão, reforçada pelo incômodo que aquele indivíduo lhe provocava. Ou, quem sabe, o fruto de seu sentimento de culpa pelas mentiras que estava pregando ao comandante.

Sim. Não sabia mais nada — limitou-se a responder.

Se você o trouxer aqui, nós mesmos o interrogaremos. Talvez, com métodos um pouco mais... persuasivos, consigamos fazê-lo con­tar mais alguma coisa... — continuou o sinistro diácono.

Infelizmente, trata-se do prisioneiro morto no início da tarde de hoje. Estava doente por causa de um ferimento, mas mesmo assim nós o fizemos trabalhar nas máquinas. Não agüentou... — replicou Ricardo, esforçando-se por assumir uma expressão decidida.

Seguiram-se alguns instantes de silêncio, cheios de tensão.

Mas veja só... — comentou o irmão Sigfrid. — E por que você não correu a nos falar imediatamente dessas revelações? Por que dei­xou para vir somente agora à noite?

Não me pareceu que fizesse muita diferença. Preferi me dedi­car à construção das máquinas, coisa que, no momento, me parece ter prioridade absoluta diante de qualquer outra questão... como acaba de dizer o conde — respondeu Ricardo, aborrecido e pertur­bado pelo tom inquisitivo do diácono. Buscou o conforto do olhar de Raimundo, mas o conde parecia absorto em suas reflexões.

Mais uns instantes de silêncio.

De novo, foi o abutre quem o rompeu:

O que você tem nessa bolsa? — perguntou bruscamente.

Aqui? — disse o normando, aturdido, indicando a sacola que trazia a tiracolo. — Bah... nada de importante. Desenhos e anotações para a construção dos trabucos... Por quê? — perguntou, decidida­mente alarmado.

Posso ver? — rebateu o irmão Sigfrid, dando um passo à frente.

Instintivamente, Ricardo retrocedeu, enquanto seu interlocutor lhe lançava um olhar suspeitoso.

O conde Raimundo veio em seu auxílio:

Chega de perder tempo. Vamos aproveitar estas poucas horas para recuperar as forças — disse. — Precisaremos de muitas, amanhã e nos próximos dias. Seja como for — acrescentou, virando-se para o diácono —, confio plenamente em meu ordenança. — E em seguida, olhando Ricardo: — Está liberado. Vá descansar.

Ricardo fitou o eclesiástico, percebendo no rosto dele uma expressão de raiva. Inclinou a cabeça em sinal de deferência e saiu da tenda, dando um profundo suspiro de alívio.

De volta à sua própria tenda, refletiu sobre o que fazer com a bolsa, sobretudo agora que havia despertado a suspeita daquele diá­cono que parecia ter tanta importância. Mantê-la sempre consigo significaria confirmar as suspeitas e se expor ao risco de ser revista­do a qualquer momento. Mas tampouco podia restituí-la a Rebeca, que não teria como escondê-la.

Emanuel? Era um bizantino, não tinha amigos no acampamento e dificilmente alguém interagia com ele se não fosse obrigado a isso. Se lhe pedisse, era certo que ele aceitaria de bom grado guardá-la. Até porque estava sozinho na tenda. Mas, justamente porque era detestado pelos outros, havia sempre o risco de alguém querer prejudicá-lo, e o manuscrito iria junto. Alguns dias antes, o grego lhe confidenciara que um germânico havia ameaçado incendiar sua tenda... Não, Emanuel também não serviria.

Anselmo? Era um religioso, sem dúvida, e aparentemente bastante zeloso. Mas Ricardo já o conhecia o suficiente para saber que o monge era boa pessoa e, ao contrário de muitos de seus confrades, aca­bava sempre fazendo a opção menos danosa para os seres humanos.

Mas continuava sendo um religioso. Não podia confiar totalmente nele.

Quem restava?

Inês.

Mas claro! Quem imaginaria que um documento tão importan­te estava nas mãos de uma prostituta?

Além disso, aquela mulher tinha um fraco por ele, apesar da ati­tude indiferente que parecia manter havia algum tempo.

Sim, Inês era a única escolha possível. Em passos rápidos, Ricardo se dirigiu à tenda dela, finalmente tranqüilizado.

Ficaria, porém, bem menos sossegado se soubesse que, logo após sua saída do pavilhão de Raimundo, o eclesiástico com cara de abu­tre o seguira, levando consigo um dos guardas do conde.

 

— Resolvi não o entregar ao meu comandante. Gostaria que você o guardasse — disse Ricardo a Inês, estendendo-lhe a bolsa, depois de tê-la chamado educadamente para fora da tenda onde ela tinha ido repousar.

Por que eu? — perguntou Inês, sinceramente espantada.

Porque, em você, eu confio.

Por quê?!

Não sei. Talvez porque você seja a única, nesta história, que não tem interesse em divulgá-lo ou em destruí-lo...

E melhor você dizer que não tem alternativa...

Pode ser. Mas resta o fato de que em você eu confio.

Não parecia, até agora. Por que tanta insistência em ajudar aquela moça?

Você faz muitas perguntas. Guarde e pronto, não chega?

Não houve nada entre nós que justifique toda essa confiança. Você tem que ser franco comigo, se quiser minha ajuda.

Tem razão. Não houve nada ainda. Mas isso pode ser resolvi­do — disse Ricardo, avizinhando-se.

Inês não recuou. Mas tampouco se adiantou. Coube a Ricardo estender os próprios lábios para os dela. As bocas se encontraram e, por um instante, se fundiram.

Mas só por um instante. Inês se retraiu.

Eu lhe fiz uma pergunta — disse, tentando ostentar uma indi­ferença que lhe era difícil simular.

Ricardo suspirou e fez uma careta.

Ajudo-a porque me parece absurdo todo esse ódio contra os judeus... Não creio que as pessoas devam lutar entre si com base em preconceitos... — limitou-se a responder, achegando-se de novo.

Mas Inês se afastou.

Não seria por causa da irmã? Sara, acho que esse é o nome... — disse, num tom só um pouco mais azedo do que ela gostaria.

Por que mencionar Sara agora? O que tem a ver? — espantou-se ele.

Rebeca me contou que ela é muito bonita e que você a salvou, em Mogúncia. Continua pensando nela, não é?

Ricardo compreendeu que devia desmenti-la. Do contrário, não poderia em absoluto confiar numa mulher enciumada. Aproximou- se novamente do rosto dela.

Você está superestimando a questão. Não importa o que eu fiz no passado. Importa o que faço agora. E o que estou fazendo agora é beijá-la — disse, com o rosto sempre próximo.

Ela sentiu-lhe o hálito e experimentou um forte arrepio ao longo das costas. Desta vez, deixou-se arrastar pela própria boca, que dese­java ardentemente o contato com os lábios dele. Fundiram-se de novo.

Passou-se algum tempo, até que Inês encontrasse forças para se retrair mais uma vez.

Não precisa me comprar, para conseguir o que quer — disse. Olhou a bolsa e pegou-a. — Bom, vá descansar. Eu trato de esconder isto num lugar seguro.

Ricardo estendeu a mão, tentando brandamente atraí-la de novo. Mas Inês permaneceu rígida e evitou olhá-lo. Ele desistiu de fazer outra tentativa.

Você é uma amiga de verdade — disse, antes de se voltar e se afastar.

— Sei. Uma amiga de verdade... — limitou-se Inês a repetir, com expressão amarga. Mas Ricardo já estava longe demais para ouvi-la.

Escondido atrás de uma carroça, junto com o soldado que leva­ra consigo, o irmão Sigfrid tinha observado toda a cena, embora sem poder captar as palavras que os dois haviam trocado.

Resolveu continuar controlando Inês.

 

Do lado de dentro das muralhas, a jornada também fora pesada. De repente, do alto dos espaldões notara-se uma abundância de madei­ra nos acampamentos dos francos. Os defensores observavam, preo­cupados, a construção das torres e dos trabucos. O governador Iftikhar al-Dawla tinha sido rápido em adotar medidas adequadas à situação, dando imediatamente a ordem de utilizar as reservas de madeira no interior da cidade para construir, ao menos nos setores ocidental e setentrional das muralhas, plataformas que elevassem o nível dos espaldões e dos adarves entre uma torre e outra.

De igual modo, os defensores tinham recebido palha e cordame naval para encher sacos de tecido rústico e pendurá-los ao longo das muralhas, a fim de protegê-las dos impactos dos projéteis que eram esperados para dali a pouco.

Firuz havia colaborado ativamente nos preparativos para a defe­sa. Graças à consideração de que gozava no exército fatímida por sua renomada fidelidade a Jamal al-Ashraf, passara temporariamente às ordens de outro emir, com o acordo, porém, de retornar às fileiras de Jamal se houvesse oportunidade para tal. E essa oportunidade ele mesmo pretendia criá-la de imediato. Naquela mesma noite.

Terminada a jornada de trabalho, pedira audiência ao governa­dor, a fim de obter permissão para uma surtida com o objetivo de libertar seu comandante. Iftikhar havia manifestado grande perple­xidade por uma iniciativa tão temerária. "Se esperarmos mais", objetara o turco, "nós vamos perdê-lo. Lá fora as condições são duríssimas para os sitiantes, imagine-se para os prisioneiros."

Eu não gostaria de perder também você, além de Jamal al- Ashraf. Você é um dos soldados mais valorosos.

Recuperar Jamal al-Ashraf é mais importante do que me perder.

Por fim, Iftikhar se convenceu. Perguntou de quantos homens

Firuz precisaria, mas este respondeu que pretendia ir sozinho. O governador tinha conhecimento das proezas realizadas pelo turco durante o assédio fatímida no ano anterior e decidiu confiar nele.

Na realidade, Firuz não tinha propriamente um plano. Havia trabalhado muito ativamente, naquele dia, e não se interrompera para pensar em como organizar a surtida. Só começou a refletir sobre a estratégia a adotar quando se viu fora das muralhas, depois de transpor discretamente a Porta de Jaffa, sem turbante nem prote­ções. Tinha uma única certeza, nem tão inabalável assim.

Os francos haviam erguido três acampamentos: ao norte, a oeste e a sudoeste. Tratava-se de compreender para onde Jamal fora levado.

O bom-senso lhe sugeria que os prisioneiros teriam sido utiliza­dos para a construção das máquinas, e, sobretudo, das torres, cuja presença ele não havia identificado no acampamento setentrional. O setor sudoeste devia ser descartado, porque, ficando distante das muralhas, obrigaria os infiéis a um trajeto longo demais para posi­cionar as máquinas.

Conclusão: os prisioneiros estavam no acampamento central, o dos germânicos.

Já era noite alta. Graças à luz da lua e das estrelas, porém, Firuz conseguia enxergar o perfil do vaiado que os cruzados haviam cons­truído como defesa para seu acampamento mais próximo, justamen­te o dos germânicos, diante da Torre de Davi. As tendas deles, e presumivelmente o campo dos prisioneiros, ficavam além daquela trincheira.

Nos dias precedentes, ele tinha visto os francos desmontarem a paliçada com a qual haviam cingido os setores ocupados e utili­zarem aquela madeira para construir as máquinas. No lugar dela, surgira da noite para o dia um terrapleno irregular, cuja altura eles haviam progressivamente aumentado com mais terra e alguns pedregulhos. Tratava-se, porém, de uma barreira relativamente baixa e muito fácil de transpor. O lado externo exibia um declive suave, tornado insidioso apenas por algumas estacas pontudas, fin­cadas na terra acrescida, mas que não constituíam uma verdadeira ameaça para o assaltante.

Ali fora, quase não havia sentinelas. Ficariam demasiado expos­tas às surtidas provenientes da cidade. Firuz via um ou outro soldado de ronda, em correspondência com os estreitos vãos de passagem, mas estava claro que os infiéis não esperavam ataques. Ocorreu-lhe que, naquelas condições, poderia esperar alguns dias e conduzir uma ação para incendiar o maquinário, tal como fizera no ano anterior. Mas se deu conta de que, após a tentativa daquela noite, os francos ficariam mais atentos, e as eventuais surtidas teriam menores proba­bilidades de sucesso.

Em suma, transpor a barreira não era difícil. O difícil era não se fazer notar pelas sentinelas no vão mais próximo. As tochas estavam distribuídas a tão pouca distância que somente uma pequena zona no meio permanecia totalmente às escuras. Ele se concentrou num ponto a uns cinqüenta passos de um dos vãos. Decidiu simplesmen­te galgar a barreira, ajudando-se com as raras estacas para se içar. Naquele setor, a luz das tochas não chegava, e ele confiava em poder passar sem chamar a atenção.

Mesmo assim, decidiu esperar a troca de guarda, para se aprovei­tar da distração dos francos. Então se manteve acachapado sobre o terreno, na vala rasa que escolhera como ponto de observação.

Pouco depois, o cansaço da pesada jornada começou a se fazer sentir. Ele constatou que, abandonando-se deitado daquele jeito, corria o risco de adormecer. Mas, logo quando já ia perdendo sua luta contra o sono, percebeu um certo movimento perto do vão. Saiu do torpor, balançando vigorosamente a cabeça, e tentou com­preender se se tratava da troca de guarda.

Viu que eram duas sentinelas. Mas estavam brigando. Não con­seguia compreender o que elas se diziam, até porque logo passaram às vias de fato. Um dos dois empurrou o outro contra a barreira. Este perdeu o equilíbrio e caiu. O outro lhe saltou em cima, golpeando-o violentamente no elmo com o escudo.

Firuz decidiu sair e rastejar até o ponto escuro da barreira. Chegou a tempo de ver que o guarda ainda de pé escapulia para fora do acampamento, e concluiu que ele estava desertando, após uma inútil tentativa de convencer o outro a segui-lo. O turco ouvira dizer que os francos estavam se desagregando; seus companheiros tinham surpreendido uns mirrados grupos inimigos perambulando rumo ao setentrião e haviam disposto deles como bem queriam. Presu­mivelmente, aquele sujeito teria o mesmo fim.

Apressou-se a alcançar a barreira. No vão não havia mais ninguém, afora o soldado desmaiado. Isso lhe deu uma idéia. Levantou-se e se aproximou do franco. Olhou em torno. Ainda ninguém. Tirou-lhe o elmo, o escudo, a espada, e equipou-se. Com um pouco de sorte, seria confundido com um deles.

Afastou-se do valado e entrou no acampamento. Nos arredores não havia ninguém. Era compreensível. Afinal, os francos tinham poucos recursos à disposição e estavam trabalhando vigorosamente sob o sol escaldante durante o dia. Ninguém tinha vontade nem for­ças para se manter acordado à noite, exceto aqueles que haviam rece­bido ordem de fazê-lo. Isso o fez concluir que a presença de outras sentinelas, dentro do acampamento, lhe permitiria localizar o setor dos prisioneiros.

Passou em meio às primeiras tendas e notou certo movimento. Havia alguém agachado, murmurando palavras incompreensíveis. Continuou a caminhar, tomando o cuidado de não se aproximar muito. Percebeu que se tratava de um padre, ocupado em rezar. Sabia que, entre os cristãos, somente os padres tinham momentos de prece preestabelecidos, mesmo durante a noite. Seguiu adiante.

Viu uma mulher saindo de uma tenda, com uns andrajos impreg­nados de sangue e a expressão transtornada pela fadiga e pela dor. Uma esposa que havia cuidado em vão de seu homem? Seguiu adiante.

Topou com uma área cercada. Dentro, alguns animais. Na maio­ria, de carga: jumentos, mulas, bois, mas também um ou outro cava­lo maltratado. Dois civis se encostavam à paliçada, presumivelmen­te para montar guarda. Mas um dormia, e o outro parecia prestes a também cair no sono.

Em seguida, finalmente os viu. Eram muitos os guardas que vigiavam o recinto dos prisioneiros. Um recinto quase igual ao dos animais, com a única diferença de um minúsculo cubículo sem teto em um canto, onde, presumivelmente, os muçulmanos iam fazer suas necessidades.

A luz das tochas permitiu-lhe observar a posição dos prisionei­ros ali dentro. Estavam todos deitados, repousando, em ordem esparsa, e somente uns poucos se localizavam junto à paliçada circundante.

Firuz decidiu que o único jeito de alcançar seu senhor era chegar pelo menos à latrina. Os soldados dispostos em torno do recinto eram ao todo uns vinte, a uma distância de cerca de trinta passos um do outro. Alguns estavam sentados, outros ainda rigidamente de pé. Para sua sorte, o que estava próximo à latrina cochilava, encostado à cerca.

Aproximou-se dele. O outro não lhe deu importância. Ou talvez dormisse: Firuz não conseguiu saber. Olhou ao redor e viu que o guarda mais próximo o observava. Deixou-se ver, enquanto dava um tapinha no soldado ao seu lado, como se quisesse exortá-lo a ficar de pé. Na realidade, golpeou-o no pescoço, matando-o na mesma hora com uma hábil pressão. Aguardou que o outro guarda se voltasse e depois ergueu violentamente o cadáver, procurando mantê-lo de pé. Esperou estar dando a impressão de que o soldado caminhava com as próprias pernas e de que ele o conduzia a algum lugar para lhe dar uma boa lição.

Não escutou nada atrás de si, e deduziu que o primeiro guarda havia mordido a isca. Chegado à altura de uma carroça, arrastou sua vítima e a deixou ali, substituindo o elmo que usava, em capacete, pelo do morto, que era em chapéu com abas. Trocou também o escudo, ficando com o redondo do cristão e deixando para trás aquele que estava usando, de forma amendoada.

Voltou à posição de guarda, fazendo um sinal de assentimento ao outro soldado, que o observava distraidamente. Permaneceu de pé, até para demonstrar que a reprovação tinha sido eficaz. Esperou um tempo razoável, e então decidiu que era hora de ir ao banheiro.

Com um aceno, indicou ao outro que estava com dor de barriga. O guarda aquiesceu. Firuz entrou no recinto e, em seguida, na latri­na. Rapidamente, abandonou as armas, espiou para fora, a fim de verificar se o outro não o olhava, saiu e foi se agachar perto do pri­sioneiro mais próximo. Agora, não se distinguia dos demais.

Deu uma sacudidela no muçulmano para acordá-lo.

Onde está o emir Jamal al-Ashraf? — perguntou.

O prisioneiro demorou alguns instantes para acabar de desper­tar e para reconhecê-lo.

Você... é o turco... Firuz! Também foi capturado?

Não. Quero tirar o emir daqui. Onde ele está?

Ali, junto da judia — respondeu o homem, indicando um local pouco adiante.

Agora, escute — disse Firuz. — Vá até a latrina. Lá encontrará elmo, escudo e espada. Pegue-os e vá se plantar fora do recinto, bem diante do cubículo. Finja que é um guarda.

O muçulmano obedeceu prontamente.

Que Alá ajude você a tirá-lo daqui — limitou-se a dizer, dando-lhe um tapa no ombro.

Firuz caminhou na direção indicada pelo soldado, até que viu seu comandante. Este dormia. O turco lhe deu também uma sacudi- dela.

Jamal, quando abriu os olhos e o viu, de início não disse nada. Sorriu e apoiou uma das mãos no ombro dele.

Está aqui como prisioneiro ou como libertador? — perguntou.

Estou aqui para soltá-lo. Mas precisamos agir depressa.

Eu tinha certeza. Só que não devemos sair daqui sozinhos — esclareceu o emir.

Firuz assentiu. Sabia que o chefe lhe pediria isso. Ambos se vol­taram para Rebeca. Ela estava acordada e os olhava.

Eu não vou — disse, com aparente serenidade.

Como assim? Está brincando? — surpreendeu-se Jamal.

De maneira nenhuma. Eu fico.

Posso perguntar por quê, em nome de Alá? — exclamou cons­ternado o árabe.

Não posso abandonar os rolos. Sou a guardiã deles e espero recuperá-los. Se eu fugir, nunca mais os terei — respondeu Rebeca, decidida.

E não pensa em sua irmã? Ela não é importante para você? — insistiu Jamal.

Não vem ao caso o que é importante para mim, mas só o que é importante, e pronto. De Sara você cuidará, tenho certeza. Não preciso lhe pedir que tome conta dela — respondeu a moça.

Cuidarei dela, seja como for. Prometo. Que Alá esteja com você. — Foi a frase conclusiva do emir, a quem Firuz já puxava pela manga.

Como você pretende sair? — perguntou Jamal ao turco.

Deixei de guarda um dos nossos, com as armas de um franco. Atrás de uma carroça, aqui perto, há outro uniforme. Vamos pegá-lo e sairemos. Houve deserções nos vãos da barreira.

Tenho uma idéia melhor — interveio Rebeca.

Inês sequer levou em consideração a hipótese de esconder o manus­crito em sua tenda. Compartilhava aquele abrigo com outras prosti­tutas e, além disso, por motivos óbvios, havia ali um contínuo vai­vém de homens, embora o afluxo de clientes tivesse se reduzido sig­nificativamente nos últimos dias.

Mas fazia uma idéia bem precisa do local para onde devia levá-lo. Sabia da existência de uma formação rochosa um pouco ao sul do acampamento, à qual já ninguém ia porque entre os seixos fervilha­vam tarântulas. À noite, os temíveis aracnídeos não constituíam uma ameaça, e ela estava bastante decidida a aproveitar esse fato para esconder a sacola embaixo de uma rocha ou dentro de uma cavidade.

Fez o trajeto inteiro em passos rápidos, sem perceber que, a pouca distância, duas sombras não a perdiam de vista. Outra, porém, seguia paralelamente a ela, mas suficientemente afastada para não ser vista nem por ela nem pelas outras duas.

Chegou à formação rochosa. Olhou ao redor e não lhe pareceu ver ninguém nas vizinhanças.

Observou a disposição das rochas, que se escalonavam ao longo do suave declive cobrindo buracos e asperezas. Bateu os pés no solo, uma, duas, várias vezes. Não satisfeita, recolheu um ramo e fustigou o terreno, enquanto subia por entre as pedras à procura de uma cavi­dade.

Nesse meio-tempo, Sigfrid, acompanhado por um armígero loreno, não parava de observá-la. Ao vê-la concentrada em busca de um esconderijo, aproveitou para aproximar-se mais. Notou que ela tentava deslocar uma pedra de tamanho médio e foi tomado pela agitação. De início, havia pensado em aguardar que Inês fosse embo­ra, para depois subtrair o que ela escondera. Mas tinha também consciência da extrema periculosidade daquele lugar, e achou conve­niente tomar-lhe a sacola antes que ela a fizesse desaparecer.

Vá avisar ao duque Godofredo que provavelmente uma mulher está com o manuscrito de que falamos. E traga-o logo para cá — disse ao soldado que o acompanhava. O zelo do conde Raimundo não o convencia, e, além disso, ele estava aborrecido com o modo como o francês o tratara diante de seu lugar-tenente. Era melhor compartilhar com o duque de Lorena o mérito pelo encon­tro dos rolos. — Mas, antes — acrescentou —, deixe comigo sua faca.

Depois que o soldado desapareceu na escuridão, o diácono se aproximou da mulher, que já ia colocando a sacola dentro de um buraco.

O que você está escondendo, sua puta?

Inês deu um salto. Nem sequer o ouvira se aproximar.

Não respondeu.

Não me ouviu? O que está escondendo? — repetiu Sigfrid.

Coisas minhas. Nada que lhe interesse — respondeu ela, hesi­tante.

Este é um empreendimento realizado sob o signo do Senhor. Tudo que acontece interessa à Igreja.

São... uns mantimentos que furtei de um cliente. Vim escondê-los para ter o que comer, quando não houver mais nada... — Foi a resposta que ocorreu a Inês.

E os dá como refeição às tarântulas? Não teme não encontrar nada, quando vier buscar? — insistiu ele.

Vai implicar com o alimento de uma pobre prostituta que sobrevive com dificuldade? Os senhores, padres importantes, certa­mente não têm esses problemas — respondeu Inês, que não o conhe­cia, mas recordava muito bem em que companhia o tinha visto. Aquele não era um dos monges que ficavam no meio do povo. Era um dos que só apareciam ao lado dos poderosos e sempre manti­nham certa distância dos pobres.

Se fosse comida, seguramente não. Mas quero conferir se é comida mesmo. Entregue-me essa bolsa — disse Sigfrid, sem mais delongas.

Inês a deixou cair no buraco.

Venha buscar — disse, apalpando o flanco em busca de sua faca. Mas logo se lembrou de tê-la deixado na tenda, quando decidi­ra que aquela jornada estava encerrada.

O diácono fez um gesto de irritação. Puxou e brandiu a própria faca, cuja lâmina brilhou à luz da lua.

Recolha a bolsa. Agora. Se não, vou estripar você — retrucou, brandindo a arma com maior teatralidade.

Inês não se moveu.

Não — limitou-se a dizer, mesmo tremendo de medo.

Sigfrid avançou para ela. Inês se inclinou, mas não para recupe­rar a sacola. Apanhou uma pedra e se preparou para jogá-la contra o atacante. Este se aproximou. Ela a lançou, atingindo-o de raspão num ombro. O diácono soltou um grito sufocado e se dobrou sobre si mesmo, mas recomeçou a brandir a arma, com expressão ainda mais feroz.

Já não lhe interessava obrigá-la a entregar a bolsa. Agora, só que­ria ter a satisfação de degolá-la. Inês compreendeu e recuou, mas à sua retaguarda havia rochas altas demais para que ela pudesse ultrapassá-las sem dar ao homem tempo suficiente para alcançá-la. Sigfrid levantou o braço e se preparou para desfechar a cutilada.

De repente, surgiu da sombra uma silhueta, que se atirou sobre o diácono. Os dois rolaram pelo declive, lutando selvagemente. Inês não conseguia distingui-los, enroscados como estavam, o primeiro para golpear com a faca, o recém-chegado para bloquear o braço do antagonista e impedir o ataque.

De início, a mulher culpou a escassa visibilidade. Depois perce­beu que não os distinguia porque eles estavam vestidos da mesma maneira.

Ambos usavam batina.

Continuaram a lutar, sem dizer uma palavra. A briga era acom­panhada apenas por bufidos, gritos abafados, ofegos. Inês gostaria de intervir em favor de seu defensor, mas não conseguia identificá-lo. Viu somente que dois braços diferentes se entrelaçavam em torno do punhal, cuja lâmina girava convulsamente no ar, descendo volta e meia quando um braço prevalecia sobre o outro.

Por fim, o punhal desapareceu entre as vestes misturadas. Seguiu-se um grito estrangulado, muito mais forte, longo e intenso do que os precedentes. Depois, mais nada. Só a respiração arfante do sobrevivente.

Inês se perguntou se devia fugir.

Eram dois. O outro deve ter ido pedir ajuda. Pegue a sacola e vamos embora daqui — disse o homem, levantando-se com dificul­dade.

A débil luz da lua finalmente iluminou seu rosto, coberto de suor.

Anselmo! — gritou Inês.

 

A alvorada se avizinhava. Mas a certa distância ainda era difícil dis­tinguir, num homem, algo mais do que a silhueta. Jamal contava jus­tamente com esse fator. Assentou o elmo e o escudo e empunhou a espada, os quais, no intervalo de poucos instantes, do guarda vizinho à latrina haviam passado a Firuz, ao outro árabe que assumira o lugar deste e, por fim, a ele.

Saiu do cubículo e, em passos decididos, foi para perto de Firuz. Simultaneamente, conforme o combinado, Rebeca se levantou e se dirigiu ao guarda mais próximo, que finalmente estava se pergun­tando o que era toda aquela estranha movimentação de seu colega.

A moça se aproximou e disse, tentando mostrar a desenvoltura que Inês exibiria nas mesmas circunstâncias:

Soldado! Não se entedia de nos vigiar por toda a noite?

Acrescentou até um sorrisinho malicioso. Mas não o manteve

por muito tempo, temendo que parecesse uma careta, considerando- se sua escassa capacidade de seduzir os homens.

De fato, a sentinela não se mostrou nem um pouco perturbada.

E daí? — respondeu, em tom seco.

Daí... — Rebeca hesitou. Realmente não conseguia pronunciar aquelas frases. — Daí... você poderia tirar proveito disso com um passatempo interessante, se me arranjasse um pouco d'água... — Que dificuldade para falar tais coisas!

Como assim? O que você quer dizer? — perguntou o soldado. Não parecia ter compreendido.

Rebeca suspirou. Aquele sujeito não era nada esperto. Ou, então, ela não tinha sido suficientemente explícita. Refletiu por alguns segundos: de tanto estudar, havia se habituado a usar uma linguagem muito douta. Nada que servisse para seduzir um homem. Muito menos um soldado rústico e ignorante.

Tentou de novo:

Se você me der um pouco d'água, eu posso lhe dar outra coisa... — E tentou de novo o sorriso malicioso. Teve a impressão de que se saiu melhor, porque o rosto do guerreiro se iluminou. Os olhos dele a esquadrinharam. Rebeca sentiu sobre si a mirada concupiscente do homem, que avaliava suas formas sob a roupa.

Ele não pareceu se impressionar muito com o que percebia, pois levou algum tempo nesse exame. Por fim, contudo, decidiu que ela seria melhor do que nada.

Agora eu não tenho água. E, também, como você pretende me pagar? Quero um adiantamento, enquanto isso. Vamos até a latrina? — disse, passando a língua sobre a barba imunda.

Rebeca sentiu uma repulsa incontrolável. A simples idéia de se fechar naquele cubículo fedorento com um indivíduo de aparência terrivelmente sórdida a deixava horrorizada. Mas, justamente nesse momento, desencadeou-se a segunda fase do plano:

Sabe o que vou fazer, amigo? Levo este bastardo à piscina de Siloé e o faço pegar água para nós. Se nos avistarem dos espaldões, tanto faz, atiram nele... — disse Jamal, vestido de guerreiro franco e arrastando atrás de si Firuz, em tudo semelhante a um prisioneiro.

Rebeca sentia o coração na garganta. Por mais profundo conhe­cedor de idiomas que Jamal fosse, seu latim não havia sido total­mente impecável. Ela esperou que fosse só uma impressão ditada pela própria tensão. Por outro lado, jamais conhecera alguém que falasse um latim desprovido de inflexões e expressões em língua vul­gar, à exceção de alguns padres.

Mas seu desagradável interlocutor parecia ter caído na esparrela. Olhou-a e disse:

Ouviu? Daqui a pouco, você terá água. Podemos ir fazer logo aquilo. Vá — acrescentou, dirigindo-se a Jamal. — Eu, enquanto isso, fico me divertindo. E traga muita água. Vou precisar, depois...

Rebeca não soube se ficava contente porque seus amigos iam conseguir se safar ou aterrorizada pelo que a esperava. Lançou a eles um olhar de despedida e os observou enquanto eles saíam do recin­to e se distanciavam na noite rumo ao oriente.

Vamos, depressa, eu também não posso me ausentar por muito tempo — disse o soldado, puxando-a pela mão depois de entrar no recinto. Rebeca se sentiu arrastada sem grandes cuidados em direção ao cubículo.

Não quero mais! — conseguiu dizer, tentando se plantar no lugar.

O quê? Ah, não, linda! — soprou-lhe na cara o guerreiro. — Agora já me deu vontade. Mexa-se! — acrescentou, puxando-a mais.

Não! Não quero! — repetiu Rebeca, já percebendo o fedor que emanava da latrina, depois que o soldado abriu a porta. E viu que seria obrigada a fazer o que havia combinado com Jamal, se não con­seguisse impedir o estupro.

Então deu um berro.

De repente um numeroso grupo de prisioneiros egípcios os cir­cundou. Inevitavelmente, dois dos guardas mais próximos correram para eles, com as lanças em riste.

Para trás! Para trás! — gritou o armígero que a arrastava, assustado com o olhar ameaçador dos árabes, que, no entanto, perma­neciam inertes e em silêncio. Rebeca sabia que eles não agrediriam o cristão, para não chamar a atenção dos outros soldados. Mas aquilo que estava acontecendo já bastava para criar alarme. De fato, ela escutou um dos guardas gritar aos companheiros que fossem buscar reforços.

Enquanto isso, o soldado que a agarrara havia parado de puxá- la. Visivelmente preocupado, tentava repelir os muçulmanos, que o circundavam de perto, mas sem agredi-lo.

Um brado, porém, ecoou na escuridão:

Alarme! Topei com o cadáver de Rinaldo! E sem as armas! — Um soldado que fora buscar ajuda havia chegado à altura da carro­ça onde Firuz tinha abandonado o corpo do soldado morto.

Aquele infiel que estava indo buscar água o matou! — gritou de volta o soldado que segurava Rebeca, afastando-a, abrindo cami­nho entre os árabes ao seu redor e saindo do recinto. Passou os ins­tantes seguintes, pelo que a judia conseguiu compreender, explican­do ao companheiro a história da água.

Não tinha sido exatamente assim, pensou Rebeca, mas enquanto isso fora dado o alarme. De fato, um dos dois cristãos correu para leste, a fim de interceptar os fugitivos. Em breve, a moça escutou outras vozes provenientes de diversas partes do acampamento.

Não soube se pedia a Deus ou a Alá que Jamal e Firuz conseguis­sem escapar.

Mas, se Jamal tinha razão, era a mesma coisa.

— O que você fazia aqui? — perguntou Inês ao monge, que acabava de lhe salvar a vida.

Eu a segui.

Por quê?

Creio que isso lhe foi útil...

Certo. Mas, ao que parece, não basta que me sigam os inimi­gos. Os amigos também o fazem... Saiba que até as putas têm direito a um pouco de privacidade, apesar de tudo... — observou ela.

Anselmo baixou os olhos, visivelmente encabulado.

Inês não conseguiu levar adiante sua atitude ressentida. Aproxi­mou-se dele e o abraçou. Sentiu-o estremecer de emoção.

Quando se separou do monge, viu que ele chorava.

Por quê? — perguntou.

E ainda pergunta? Matei um homem. Um confrade ainda por cima!... — exclamou Anselmo, desesperado.

Ele não era bom. Isso deveria aliviar sua consciência...

Quem sou eu para estabelecer quem é bom e quem é mau? E, também, não o matei por isso, mas só porque... não queria que ele lhe fizesse mal...

Inês o abraçou de novo. Depois recuperou seu típico senso prá­tico feminino.

Precisamos sair logo daqui. Você mesmo disse. Vou buscar a sacola.

Apanhou um ramo e o enfiou no buraco, fazendo-o passar pela corda da bolsa e puxando-a.

E agora, o que você vai fazer com isto? — perguntou ele, ainda soluçando.

Só me resta levá-la para dentro da minha tenda. Vou enterrá-la embaixo de meu enxergão...

Eu a defendi para salvar sua vida — especificou Anselmo - mas não esses textos ignóbeis. Você deveria entregá-los a Raimundo ou a Godofredo.

Inês deu um suspiro profundo.

Não acha que eles me eliminariam, se soubessem que isto está comigo? Eu, que nem entendi do que se trata! Para piorar, iriam me atribuir a morte deste homem.

Anselmo também suspirou. Não podia negar o que ela dizia.

Tome cuidado — limitou-se a recomendar.

O transtorno surgiu de repente. E justamente quando parecia que eles poderiam passar ilesos através das malhas modorrentas do exér­cito cristão. Firuz já entrevia a distância, no débil clarão da aurora, o vão pelo qual havia passado, agora novamente vigiado por dois guardas.

Mas o problema estava atrás deles. Firuz não compreendia o que diziam os soldados que os tinham avistado, mas Jamal sim. "Ei, amigo, bloqueie esse infiel!", gritavam-lhe, tomando-o por um cris­tão. Mas ele continuava avançando rumo ao vaiado.

Os homens em sua retaguarda não conseguiam entender. Por que o colega que ia ao lado do prisioneiro não se detinha? Seria um desertor? Igualmente surpresos pareciam os dois guardas lá na fren­te. Ficaram parados, embora em atitude atenta, até que os dois muçulmanos chegaram à barreira defensiva. Atrás aproximava-se um denso grupo de armígeros, ainda muito confusos para correr.

Aonde vão? — perguntou um dos guardas a Jamal, apontando a lança para o ventre dele.

Estou levando este prisioneiro para buscar água na piscina de Siloé — disse o emir.

Detenham-nos! — ouviu-se gritar do interior do campo. Tinham chegado também os soldados provenientes do recinto dos prisioneiros.

Você não pode nem... — disse o guarda, sem conseguir termi­nar a frase. Com a espada que levava oculta sob o camisão, Firuz aca­bava de perfurá-lo no tórax; no mesmo momento, a espada de Jamal acabava no estômago do outro soldado.

Os dois muçulmanos começaram imediatamente a correr. Tinham sobre os perseguidores uma boa vantagem, que aumentou graças às hesitações dos cristãos em se aventurarem fora do valado, por medo de agressões inimigas. Os francos acabaram recorrendo às poucas máquinas de lançamento já prontas.

Jamal e Firuz ainda correram desabaladamente por um trecho, sem serem perturbados. A respiração ofegante os impediu de perce­ber o primeiro assovio que fendeu o ar acima de suas cabeças.

O projétil aterrissou, imprevisível, bem à frente. Tão perto que Firuz não conseguiu retardar a corrida e acabou tropeçando na pedra, despencando desastrosamente no solo.

Jamal compreendeu que ele se machucara, embora o turco tives­se se limitado a emitir um grunhido. Deteve-se e tentou ajudá-lo a se levantar. Outro projétil caiu poucos passos à esquerda dos dois.

Deixe-me. Vá embora — disse Firuz, soltando-se do emir e recusando-se a se erguer.

Eu não me perdoaria nunca — respondeu Jamal, tentando novamente colocá-lo de pé.

Assim, morreremos os dois. Não era esse o meu objetivo — replicou o turco, ainda opondo resistência. De sua expressão trans­parecia uma dor física quase insuportável.

Outra pedra. Bem atrás deles.

O único objetivo que importa é o que Alá nos reservou. Portanto, Ele é quem decidirá — retrucou o árabe, soerguendo-o com muita cautela.

Firuz sentiu um joelho ceder. Não se lamentou, mas seu coman­dante compreendeu que ele tinha fraturado algum osso. Então lhe cingiu a cintura e tentou sustentá-lo fazendo-o se apoiar nele e pas­sando o braço esquerdo do turco, o maneta, sobre sua nuca. Recome­çaram a caminhar. Firuz evitava apoiar o peso sobre a perna quebrada, saltitando sobre a boa e contando com o amparo do árabe. Mas a marcha era tremendamente lenta e o esforço de Jamal, imenso.

Uma nova pedra os aflorou.

Outra passou-lhes acima da cabeça.

Andavam muito devagar. Jamal parou e ordenou a Firuz que tomasse impulso com a perna boa. Depois se inclinou um pouco e o carregou nas costas. Com tanto peso, não tinha muita autonomia, mas só faltavam poucas dezenas de passos para estar fora do alcance das máquinas inimigas.

O emir recomeçou a caminhar, em ritmo mais intenso do que antes. Mas logo sentiu o esforço e temeu não conseguir dar mais um passo. Pensou em Sara e avançou um pouco. Devia conseguir. Para lhe falar da irmã, para cuidar dela. Para participar da vitória segura que se prenunciava aos crentes, depois que ele vira de perto o desva- lido exército dos infiéis, afligido pela sede, pelas deserções, pelas divisões de comando, e ameaçado pela chegada do grão-vizir.

Devia conseguir.

Ouviu um projétil cair atrás de si. E outro, ainda mais atrás.

Deu mais alguns passos. Estava no limite de suas forças.

Outro baque. As suas costas, mais longe ainda.

Agachou-se, permitindo que Firuz tocasse o solo com delicadeza.

Jogou fora o elmo, o único equipamento cristão que havia con­servado em sua fuga. Reergueu-se e de novo ofereceu o ombro ao turco, que se apoiou nele com imenso respeito.

A Porta de Jaffa estava aberta. Fogueiras ardiam dentro de sua moldura. Silhuetas se recortavam na luz. Soldados à espera do retor­no deles.

 

Inês dormiu mal. Saber-se deitada em cima dos escritos que já tinham custado a vida de uma pessoa e ameaçavam a existência de quem sabe quantas outras não era exatamente o tipo de pensamento que a ajudasse a conciliar o sono. Tampouco lhe foi fácil, uma vez de pé, afastar-se da tenda para as incumbências cotidianas. Sempre que era obrigada a isso, inventava algum pretexto para retornar e confe­rir se tudo estava em ordem.

Teve esperança de receber clientes, a fim de não perder de vista seu catre em nenhum momento, só que não era mais tempo para prazeres desse gênero. Era pela água, e somente pela água, que os homens se dispunham a pagar, e o desalento, o cansaço, o calor cada vez mais opressivo já tinham extinguido qualquer impulso sexual.

E ela tampouco gostaria de receber outro tipo de pagamento, claro. Já nas primeiras horas da manhã, a necessidade de matar a sede era o único motivo pelo qual desejava um cliente. Pensou em ir pedir ajuda a Ricardo, que gerenciava a água para os prisioneiros e era muito próximo do conde de Toulouse, mas depois decidiu que jamais se humilharia a tal ponto aos olhos dele. Se o normando qui­sesse recompensá-la pela responsabilidade que ela havia assumido, ele que viesse lhe trazer água.

Mas Ricardo não veio.

Em compensação, apareceu um soldado em péssimas condições. Arrastou-se até ela em passos dificultosos, lutando para manter a posição ereta. Nas mãos, trazia um recipiente.

Tenho água. Se você me divertir um pouco, posso lhe dar alguma, depois — disse. Ao abrir a boca para falar, ele deixou ver, entre uma palavra e outra, a língua dessecada e coberta de pústulas. Inês se perguntou como era possível que um homem capaz de desper­diçar água com uma prostituta estivesse tão desidratado. Sabia de gente que, sob risco de vida, ia à fonte de Siloé para obtê-la, e depois a revendia a peso de ouro. Mas também supunha que, antes de comercializá-la, essas pessoas usassem uma parte para se revigorar.

Mas talvez, pensou, em alguns a ânsia por dinheiro superava até a consciência de precisar sobreviver. Naquele sujeito que a muito custo se agüentava de pé diante dela, talvez o desejo de prazer supe­rasse o de dinheiro e de sobrevivência.

Não. Havia algo que não a convencia.

Primeiro me dê água. Depois eu o divirto — disse Inês.

Não confia? Eu realmente tenho água aqui dentro — respon­deu o outro, agitando o recipiente e fazendo-a ouvir o rumor do líquido que se movia.

Está bem. Então, apenas me deixe vê-la. E prová-la, também.

O soldado não se deu por vencido:

Ah! Por quem você me toma? Depois acaba bebendo e me mandando embora...

Eu não conseguiria nem mais um cliente, se ele soubesse que não mereço confiança...

Nada feito.

Inês ficou tentada. Tinha a garganta ardente, os lábios gretados e secos, e não vislumbrava para tão cedo a possibilidade de matar a sede.

Dê a água a ela.

Quem falou foi outro homem, surgido apenas naquele momento.

Godofredo de Lorena.

O duque não trazia cota de malha, nem escudo ou elmo. Usava somente a longa sobreveste sem mangas que costumava colocar sobre a couraça. E tinha a espada no flanco, naturalmente, além de um pequeno odre nas mãos. No entanto, sua autoridade era evidente.

O soldado hesitou.

O que está esperando, idiota? Mandei você dar água a ela — repetiu Godofredo, dando um passo à frente.

Meu senhor, deixe estar... Não tem importância. Mudei de idéia. Não estou mais com vontade de me divertir com esta aqui... — disse o homem, visivelmente atemorizado.

Ah, é? Então, você mesmo pode beber esta água, não?

Sim, claro, mais tarde...

Não. Agora.

Inês conhecia o olhar que acompanhava as palavras do duque de Lorena. Já o vira outras vezes. Expressava maldade? Não. Era algo mais: era... indiferença total ao destino de quem estava diante dele. Deixava o interlocutor convencido de que o duque, se quisesse, seria capaz de lhe fazer coisas terríveis, sem experimentar um pingo de remorso.

Com um olhar desses, Godofredo não precisou repetir.

Hesitante, o soldado encostou o recipiente à boca. Afastou-o imediatamente, e Inês pôde perceber que ele se limitara a molhar os lábios.

Godofredo desembainhou a espada.

Não vou falar de novo — disse, apontando a arma para a gar­ganta do homem.

Desta vez, o soldado bebeu. Inês viu-lhe o pomo de adão subir e descer três vezes. Passaram-se poucos instantes. O homem caiu de joelhos, levou as mãos ao estômago e emitiu um rugido de dor. Godofredo não se mexeu. Contemplou-o enquanto o outro se contorcia, gritava, rolava pelo chão. Observou-o com interesse mórbido, até que o soldado revirou os olhos e permaneceu imóvel; um líqui­do espumoso lhe escorria da boca.

Ainda estava vivo, mas não agüentaria por muito mais tempo.

Godofredo recolheu o recipiente e o mostrou a Inês. A mulher aproximou o rosto e sentiu um bafo pestilento que feriu violenta­mente suas narinas. Olhou lá dentro e viu uma água pútrida, com insetos boiando e mais alguma coisa que ela não soube definir.

Eu posso lhe oferecer água límpida, em vez dessa nojenta que a tropa consome — disse o duque a Inês, empurrando-a delicada­mente para a entrada da tenda. — E não só isso. Também lhe darei muito dinheiro pelos seus serviços. Desconfio que você não está fazendo bons negócios ultimamente — acrescentou, com um sorriso que nunca ficava bem na cara dele.

Inês se deu conta de que devia lhe agradecer, inclusive pela inter­venção. Mas percebia que algo não estava certo.

Eu lhe sou grata por me poupar da agonia que aquele homem sofreu, meu senhor — disse.

Você mesma já tinha compreendido que ele a estava tapeando! — observou Godofredo com displicência, enquanto lhe tirava a roupa, com a mesma indiferença com que alguém se veste.

Ela concluiu que sua desconfiança era apenas a reação natural à atitude ambígua e distante de Godofredo, o qual sempre parecia assistir de fora àquilo que fazia, como se movesse os fios de um espe­táculo no qual alguém desempenhava o papel dele.

O duque lhe ofereceu o odre e depois observou-a beber.

Beba sem interrupção — sugeriu —, deixando que a água lhe saia da boca e escoe ao longo do corpo. — Inês gostaria de reservá-la para o resto do dia, mas nem pensou em discutir. Entre a que inge­riu e a que desperdiçou, esvaziou o odre, enquanto Godofredo a observava, depois de se instalar comodamente sobre a esteira.

Em cima do manuscrito.

Inês rezou para que o duque não percebesse a terra remexida embaixo do leito, que tornava irregular a superfície sobre a qual se estendia a esteira. Apressou-se a se deitar também, mostrando repentinamente grande iniciativa e procurando, como quem não quer nada, colocar-se de barriga para cima, insinuando-se sob ele.

Mas bem sabia que Godofredo preferia ficar embaixo. De fato, o duque não lhe deu a possibilidade de se deitar completamente. De repente lhe cingiu a cintura e a soergueu, colocando-a sobre seu pró­prio ventre. Inês sabia o que devia fazer: seu cliente mais importan­te não tinha muita fantasia. Esfregou seu quadril sobre o do homem.

Quando o sentiu pronto, deixou-se penetrar e continuou a se mexer. Mas a tensão que a invadia tornava seus movimentos menos suaves do que das outras vezes. Godofredo demonstrou não gostar daquelas investidas, chamando-a à ordem com um tapa na coxa e um grunhido de desaprovação.

Ela tentou agradá-lo, mas não conseguia evitar pensar na bolsa enterrada ali embaixo. Ou melhor, embaixo das costas do duque. Alongou-se para a frente, esfregando o busto no rosto de Godofredo, e tentou abraçá-lo enfiando os braços sob o dorso dele, tanto para conferir a superfície da esteira quanto para distraí-lo.

Mas não houve jeito: Godofredo empurrou-a para trás. Não queria proximidade com uma puta, mas só o prazer. Resignada, Inês se perguntou se aquele homem sem alma teria algum dia buscado o contato com uma mulher e intensificou o movimento dos quadris.

— Espere! — gritou ele de repente. Tirou-a de cima de si e depois deslocou o peso do próprio corpo para o lado, levando junto a estei­ra. Deu uma olhada apressada para o lugar que ocupara até um ins­tante antes e depois intimou-a a retomar a posição.

"Então, alguma coisa o estava incomodando", pensou Inês, enquanto recomeçava a cavalgá-lo. Sua reflexão se confirmou quan­do ela mesma também olhou: a terra estava remexida e nem o peso dos dois havia conseguido aplanar as pequenas elevações que ela, após sepultar a sacola, não cuidara de eliminar.

Perguntou-se se aqueles montículos de terra seriam suficientes para chamar a atenção de Godofredo e despertar suas suspeitas. Enquanto lhe desse prazer, certamente não. Mas, quando tudo esti­vesse concluído, podia ser...

Depois, à medida que os suspiros do duque aumentavam, transformando-se em rugidos, convenceu-se de que seus temores eram injustificados. Como um pouco de terra remexida poderia des­pertar suspeitas? E no duque de Lorena, então, o qual tinha muitas outras coisas em que pensar...

Relaxou. Tratou de satisfazer ao máximo as expectativas do cliente, e em seguida decidiu que chegara o momento adequado para voltar às suas demandas.

Deixou-o rolar sobre um flanco, ofegante pelo esforço. Esperou mais alguns instantes e depois fez a solicitação:

Renuncio ao dinheiro que iria receber, meu senhor, e peço, em vez disso, a possibilidade de participar do assalto — disse, tentando se expressar do mesmo modo, seco e autoritário, que Godofredo empregava com ela.

O duque explodiu numa gargalhada.

E o que pretende fazer? Subir numa torre móvel e ser a primeira a se lançar na passarela que leva aos merlões? — inquiriu, em tom de escárnio. — E inclusive usando cota de malha, espada, elmo e escudo, que você nem saberia segurar?

Por que não? — respondeu Inês, tentando manter uma certa altivez no olhar. — Eu sei usar uma espada. Posso me preparar em poucos dias. Observei os soldados durante os treinamentos e conhe­ço os movimentos...

Godofredo parecia sinceramente divertido.

Uma mulher na primeira fileira? O que os infiéis pensariam de nós? Talvez se convencessem de que somos um monte de desespe­rados e ganhassem coragem... Nem pense nisso...

Mas nós somos um monte de desesperados! As pessoas morrem de sede, desertam, adoecem. Se o senhor me der um elmo, nin­guém perceberá, no meio dos outros, que eu sou uma mulher, e pelo menos farei número. Não me diga que nosso número é suficiente para assaltar as muralhas, meu senhor!

Com a ajuda de Deus, é mais do que suficiente... Até lá... — e Godofredo tirou umas moedas de uma bolsinha no cinto — ... até lá... estas moedas são apenas um adiantamento do que você poderá receber, se me entregar o manuscrito. E poderá inclusive combater, se realmente quiser... — acrescentou, com um olhar sinistro que con­trastava com o tom aparentemente conciliador da proposta.

Manuscrito? Que manuscrito? — exclamou ela, assustada.

Aquele que você pode ter recebido de alguém ontem à noite. Um soldado meu me disse que o viu nas mãos de uma mulher que lhe pareceu "a minha puta"... — explicou ele, num tom que pareceu a Inês verdadeiramente ameaçador.

Não era eu. E óbvio, meu senhor. O que posso saber, eu que não sei ler, de qualquer manuscrito? — respondeu ela, tentando sus­tentar o olhar terrível do duque.

Um tapa violento lhe atingiu a face, fazendo-a oscilar para trás.

Infelizmente, meu soldado viu a mulher de longe, e à noite. Portanto, não tem certeza de nada... — especificou Godofredo. — Essa mulher também matou um homem de Deus. Se não foi você, sugiro que procure entre suas colegas ou entre as peregrinas que seguem o exército. Se você achar o manuscrito, eu a cobrirei de ouro, e nem levarei em consideração a possibilidade de ter sido você — concluiu, encaminhando-se para a saída da tenda.

Mas logo se deteve e retornou. Ela ainda estava sentada na estei­ra, muda, com a mão apoiada no montículo de terra que encobria o manuscrito.

Mas se você estiver com ele... — disse ainda Godofredo. E, antes de se voltar e sair definitivamente, desfechou-lhe um pontapé no flanco e lhe jogou no chão a espada.

 

— Meu bom amigo! Alá quis restituir sua coragem e sua sabedoria à defesa da Santa! — disse o governador Iftikhar, abraçando Jamal assim que este transpôs a soleira de sua casa.

Alá... e a coragem do meu fiel Firuz, o melhor guarda-costas do mundo — respondeu Jamal, retribuindo o abraço.

Certamente, certamente... eu sempre digo: se todos os turcos fossem como Firuz — replicou o governador, convidando ambos a se sentarem —, nós, egípcios, jamais teríamos podido manter ou reconquistar algum território na Ásia.

Depois de ter concedido o justo reconhecimento ao turco, Iftikhar voltou a dirigir sua atenção a Jamal.

O que você pode me dizer sobre os infiéis? Não quero retê-lo por muito tempo, pois sei que você precisa de repouso, antes de retornar às suas responsabilidades. Como estão os preparativos deles para o assalto?

Jamal gostaria de dispor de mais tempo antes de fazer ao seu comandante um relatório adequado. Mas a curiosidade do governa­dor era mais do que legítima. Então pigarreou, para clarear a voz ainda marcada pelo afã da longa e recente corrida.

Bem, governador... na verdade eles estão trabalhando com muito empenho. E, ao que parece, conseguiram encontrar madeira. Sei de pelo menos duas torres móveis, tão altas quanto os espaldões, e de uma menor. Sei também que estão construindo um grande aríe­te e alguns trabucos. Não faço idéia de onde pretendem arrombar com o aríete, mas, como o vi na área dos germânicos, creio que, se as posições deles não mudarem, será perto da Torre de Davi que con­centrarão o esforço máximo.

Então, será ali que aumentaremos a altura dos espaldões e reforçaremos as muralhas... — assentiu o governador, satisfeito. — Quanto tempo você acha que eles ainda levam antes de estarem prontos para o ataque?

É difícil saber — observou Jamal. — Se mantiverem o ritmo que impuseram a mim e aos outros prisioneiros, não creio que demorem mais do que uma semana. Claro, é preciso ver se a falta d'água não os obriga a desacelerar...

Ou a desistir de vez — replicou Iftikhar. — Mas o que me diz do moral e das condições físicas? Que efeito teve sobre eles a notícia de que neste mês chegará do Cairo o exército de socorro?

O fato de termos conseguido fugir, aproveitando inclusive a displicência deles nas medidas de vigilância, revela muito sobre suas condições — explicou Jamal. — Estão com o moral baixo, e exaustos. Os germânicos, principalmente, não estão habituados a este calor, e eu os vi se arrastando cansadamente pelo campo, reclamando, bri­gando. Degolam-se por um pouco de água, e os chefes têm dificulda­de de mantê-los sob controle. Por outro lado, os príncipes estão desacreditados por causa de seus litígios contínuos, e não gozam de grande respeito entre os soldados. Que eu saiba, nenhum conseguiu se impor como comandante supremo; ou melhor, parece que não fazem outra coisa senão discutir sobre quem assumirá o papel de rei de Jerusalém, depois de conquistarem a cidade. Sei de deserções con­tínuas, e presumo que o número dos infiéis se reduziu consideravel­mente. Eles têm uma massa de peregrinos não combatentes com os quais devem dividir as já magras provisões, e isso cria ainda mais instabilidade nos acampamentos.

Os olhos de Iftikhar al-Dawla brilhavam.

Você me descreveu um exército arruinado. Ou melhor, em debandada, ouso dizer — observou ele, excitado. — Se de fato tive­rem a coragem de nos assaltar, irão ao encontro de uma derrota que comprometerá definitivamente a permanência deles nestas terras... Já imagino o que acontecerá. O restante de seus exércitos retornarão ao norte, para serem completamente eliminados pelos emirados tur­cos, e suas possessões isoladas, como em Antioquia e na Armênia, acabarão varridas em poucos meses. A aventura deles chegou ao fim. Alá os puniu por sua presunção.

Firuz abriu a boca para intervir, mas Jamal o silenciou com um aceno da mão.

Eu não seria tão otimista, governador — objetou, certo de ter interpretado o pensamento de seu subalterno.

Como assim? — perguntou Iftikhar, surpreso. — Você me des­creveu um exército de desesperados sem comando, sem recursos, com o moral no chão. O que há para temer?

Justamente isso que você acaba de dizer — respondeu o emir.

Eu descrevi um exército de gente que não tem nada a perder. E não existe ninguém mais perigoso do que quem não tem nada a per­der. Afinal, eles ainda são numerosos, e sabem que a conquista da Santa mudará não somente sua existência como também, tenho cer­teza, sua condição após a morte. Muitos não têm para onde nem para quem voltar, e até os príncipes prefeririam morrer sob as mura­lhas de Jerusalém a retornar à Europa. É a última possibilidade deles - concluiu, tentando dar ênfase máxima ao conceito —, e pode estar certo de que, quando chegar o momento, farão tudo que estiver ao seu alcance para entrar na cidade. E para morrer em nome da glória de seu deus. Os padres estão com eles justamente para lhes lembrar isso a toda hora.

— Bobagem! — objetou Iftikhar, com indiferença. — Como pode semelhante exército de desvalidos nos ameaçar realmente? Pelo con­trário, até espero que ataquem. Será a vitória mais fácil, completa e clamorosa que os exércitos de Alá terão obtido, desde os tempos da batalha do Yarmuk. Você vê as coisas de maneira sombria só porque está cansado. Um dia de repouso lhe devolverá o otimismo e a con­vicção. Vá logo para casa e apresente-se amanhã para as novas disposições — concluiu, liberando Jamal e Firuz com um gesto da mão.

O emir saiu dali perplexo. Meditou sobre sua leviandade, que o impelira a traçar para o governador um quadro que, provavelmen­te, faria até o mais experiente dos comandantes baixar a guarda. Se tivesse podido deixar seu relato para a manhã seguinte, seguramente encontraria o modo e o tempo para refletir sobre as conseqüências de sua descrição e seria mais precavido. Deu-se conta de que o mero dado objetivo era bastante confortador para um ouvinte interessa­do, mas era preciso ter visto pessoalmente o desespero daqueles sol­dados, a feroz ambição daqueles chefes, a obstinada convicção daqueles padres, para compreender como tais fatores podiam jogar a favor de uma vitória dos infiéis.

Afastou esses pensamentos, a fim de se preparar para a tarefa que pretendia cumprir antes de ir descansar. Havia prometido isso a Rebeca, mas, mesmo que não tivesse assumido tal compromisso, não hesitaria em correr àquela casa. Somente o dever de fazer seu relató­rio a Iftikhar o impedira de ir diretamente ao bairro judeu.

Quando bateu à porta dela, deixando Firuz um pouco atrás de si, seu coração pulsava com intensidade até superior à suscitada pelos projéteis inimigos durante sua fuga rumo às muralhas de Jerusalém.

Sara a abriu após um tempo que pareceu a Jamal intoleravelmen- te longo. Mas o espetáculo que ela ofereceu aos seus olhos valeu a expectativa. Esplêndida, como sempre, embora desalinhada e tensa, com olheiras e ombros curvados.

Esmagada pelas preocupações com eles, coitadinha.

Oh! Jamal... Firuz conseguiu trazê-los de volta... E Rebeca, onde está? Vou ter que brigar com ela... — disse Sara, antecipando a saudação do árabe e rapidamente desviando o olhar do emir para Firuz e em seguida esquadrinhando os arredores, em busca da irmã.

Salam aleik, Sara. Rebeca não está conosco. Escolheu perma­necer lá — disse o emir, tentando atrair o olhar dela.

Escolheu?— reagiu Sara após um instante de silêncio, necessá­rio para absorver a idéia. — Que tipo de escolha seria essa de conti­nuar prisioneira? Vocês a deixaram lá, foi isso! — exclamou a jovem, elevando o tom de voz.

Não, não, eu vou lhe explicar... — Jamal tentou abraçá-la e levá-la para dentro da casa.

O que você pretende explicar? Que a abandonou para voltar aos seus preciosos encargos militares? Não há o que explicar! Nem sequer em atenção a mim você quis cuidar da minha irmã! — retru­cou ela, esbracejando para se soltar dele. Em seguida entrou e tentou fechar a porta. Mas o emir estendeu um braço e a porta se deteve. Sara foi lá para dentro mesmo assim e se sentou, amuada.

Não foi como você está pensando. E, no entanto, devia conhe­cer o temperamento de sua irmã... — disse Jamal, entrando também e dirigindo-se para Sara, até se ajoelhar, a fim de aproximar seu rosto do dela, que continuava sentada, de cabeça baixa.

Pensou que, sem minha irmã, eu cairia nos seus braços sem opor resistência, hein? Acha que eu não tenho alternativas? Que não sei me arranjar sozinha? — disse Sara, soluçando.

Jamal tentou acariciá-la. Desta vez, a jovem não reagiu.

Eu lhe garanto que Rebeca decidiu ficar, porque havia deixa­do os rolos de Tiago com uma pessoa que conhecia, e pretendia recuperá-los...

Ela os entregou a alguém? — exclamou Sara, espantada. — Como pode imaginar que eu vá engolir semelhante estupidez? Quem você acha que Rebeca conhece entre aqueles animais? E como pode­ria entregar a um adorador do crucifixo uma coisa à qual é tão ape­gada? Pare de mentir!

Não estou mentindo. Ela os deixou, creio, com um cristão que conheceu em Mogúncia...

A atenção de Sara se reacendeu.

Em Mogúncia? É um mogunciano? Ora, mas os habitantes da cidade nos odiavam... Pode-se dizer que fomos embora de lá por causa disso...

Não, minha querida, não é mogunciano. E um normando, eu acho — apressou-se Jamal a tranqüilizá-la. — Sei que salvou vocês, quando os francos assaltaram sua cidade. E sei que Rebeca se sente segura com ele. Tenho certeza de que esse indivíduo achará uma saída para-

Os olhos de Sara de repente mostraram uma luz que o emir não conhecia nela.

Ele nos salvou? — bradou a jovem na cara do emir, agarrando-o pelos ombros. — E um homem alto, vigoroso, louro? — perguntou, esperançosa, com o coração disparado.

Isso mesmo. Acho que o nome é Ricardo... lembra-se dele?

Ricardo! — gritou Sara, em êxtase, levantando-se num salto. Começou a girar pelo aposento, caminhando freneticamente, baten­do os punhos nos flancos. Berrava, sob o olhar perplexo de Jamal: — Eu pressentia! Pressentia que iria revê-lo!

O emir não entendia. Não conseguia entender se ela estava con­tente ou contrariada. A única coisa que lhe parecia clara era que a mulher a quem amava estava agitada, de um modo ou de outro, e era seu dever, além de seu prazer, confortá-la e tranqüilizá-la. Levantou- se e se aproximou de novo. Mas Sara estava arisca e escapulia, como se não pudesse resistir à necessidade de se mover continuamente, como se precisasse liberar a energia que a invadira de repente.

Não se preocupe. Aconteça o que acontecer, não lhe faltará nada. Você será minha esposa, logo após a vitória.

Silêncio. Sara estava longe. E continuava a se movimentar.

Recuperaremos sua irmã e o manuscrito, e vocês irão comigo para o Cairo, onde o grão-vizir terá grande prazer em acolhê-las. Viverão na minha residência — prosseguiu Jamal.

Mais silêncio. Mais distância.

E verá que, se lhe parecer conveniente, agradeceremos de algum modo a esse Ricardo por ter cuidado das duas quando eu não podia fazê-lo... — continuou o emir.

Desta vez, Sara o encarou. Como se só naquele momento tivesse percebido a presença dele.

O quê? O que está dizendo?! Ele foi o primeiro a cuidar de mim, muito antes de você!

Como assim?

Claro! É ele que eu quero! E ele o homem no qual sempre pen­sei! E ele que eu amo! E é ele a pessoa que quero para cuidar de mim, de agora em diante!

Mas... você está falando de um infiel!... — Jamal estava cons­ternado demais para achar algo sensato a dizer.

Estou falando de um homem, que demonstrou saber enfrentar qualquer perigo por mim. Um homem alto, corajoso, forte, doce, como nenhum outro homem jamais poderia ser.

Mas... ele vai morrer, como todos os cristãos suficientemente loucos para atacar uma cidade guarnecida como a Santa. — De repente, o emir sentiu todo o cansaço do duro aprisionamento e da fuga. — Estão no limite, estão morrendo de sede e desertando, e não têm esperança de sobrevivência...

Ele não. Ele entrará na cidade e me salvará, me levará daqui.

Mas do que deveria salvá-la? Aqui você está em segurança, todos cuidamos de você...

Ele vai me salvar de seus próprios companheiros, de você e dos seus correligionários. De todos. E se para isso for necessário que os francos conquistem a cidade, bom, então que a conquistem. Ou melhor, até espero. Até porque ele me salvará de qualquer violência.

Você não pode estar falando sério! — exclamou Jamal, arrasa­do. — Quer que eles destruam a cidade na qual vive há três anos? A Santa? Quer um soldadinho desesperado, sem nada para lhe ofere­cer? Eu acabei de lhe pedir que seja minha esposa e lhe ofereci um futuro radioso e tranqüilo, como rica mulher de um emir, na cidade mais evoluída do mundo. Como pode escolher algo diferente?

Sara mudou de expressão. Já não estava sonhadora e inspirada.

Acha realmente — disse, carrancuda e com uma risadinha de escárnio — que eu possa levar em consideração a idéia de ser sua mulher? Ou melhor, uma de suas mulheres? E aturar por toda a vida o seu pedantismo, suas contínuas citações do Corão, sua ambição de se tornar sei lá que tipo de comandante, seus tediosos compromissos cortesãos e diplomáticos? E você me ofereceria um futuro radioso? Se for como todos os momentos que tive de passar até agora em sua companhia, prefiro mil vezes continuar sozinha!

Houve um silêncio. Um silêncio pesado, devastador.

Ninguém se moveu. Jamal não tinha mais forças para retrucar. Sara, por sua vez, só agora se dava conta daquilo que havia dito, mas não tinha vontade nem capacidade de se desculpar, e uma vergonha crescente a inibia. Quanto a Firuz, havia permanecido do lado de fora da casa, obrigando-se a não intervir, para não cobrir de tabefes aquela mulherzinha estúpida.

Foi o emir quem acabou rompendo o melancólico afresco pinta­do em poucos instantes pelas palavras de Sara. Afastou-se, levantan­do a cabeça e endireitando os ombros, para sair da vida daquela mulher com a dignidade da qual a cena feita por ela o privara.

— Cuide dela de agora em diante. Eu não posso mais — disse a Firuz, assim que se viram a alguns passos de distância da casa.

 

Vento proveniente do sul. Vento quente, opressivo, sufocante, fustigante. Violento.

E poeira. Poeira corrosiva, a areia que o vento levantava e fazia turbilhonar, agredindo cruzados e peregrinos, desmontando tendas, virando odres de preciosa água, recobrindo o alimento racionado, retardando a construção das máquinas, exasperando os cavalos, asfi­xiando os animais de carga.

E fedor. O fedor insuportável das carcaças que, cada vez mais numerosas, enchiam os acampamentos dos cristãos. Na maioria animais de carga e cavalos, incinerados por alguns homens diligen­tes enquanto o vento não subia. Depois, os chefes tinham decidido que os despojos fossem enterrados, mas o solo se tornara excessiva­mente duro e árido para ser escavado e os homens, cansados demais para acrescentar trabalho extraordinário às suas incumbências coti­dianas.

Os monges conseguiam impor pelo menos o sepultamento dos corpos humanos: velhos, mulheres e crianças mortos de inanição, homens enlouquecidos pela sede, assassinados por um gole d'água. Os que se suicidavam por desespero eram ignorados, ou no máximo expelidos a pontapés para as margens do acampamento. Eram os únicos que não ganhariam o perdão dos pecados.

Inês, por sua vez, tinha outras preocupações. Não ousava tirar os rolos do esconderijo. Sabia que Godofredo poderia mandar vistoriar a tenda de uma hora para outra, e por isso não se afastava, dando a impressão de aguardar clientes que, àquela altura, não viriam mais. Precisava se comunicar com Ricardo ou com Rebeca, perguntar-lhes como se comportar, mas não podia procurá-los sem falhar na tarefa de guardiã do documento. Teve a esperança de que algum deles, Emanuel, Anselmo ou o próprio Ricardo, passasse por ali, e enquan­to isso decidiu enganar o tempo com a espada que Godofredo lhe deixara.

Com que então, finalmente, iria combater. Pensou que seria conveniente um pouco de treinamento e, desafiando o vento e o calor do sol, saiu da tenda. No espaço fronteiro, ensaiou algumas investidas e desfechou cutiladas, como havia visto os soldados faze­rem. Experimentou contra o vento, para se habituar a um esforço maior, mas logo sentiu os olhos arderem por causa da poeira. Então tentou a favor do vento, mas já estava cansada e precisou parar para repousar.

Só nesse momento notou o soldado. Ele estava a pouca distância, dando a impressão de olhar para outro ponto. Mas na realidade não havia mais nada para olhar, e ela tampouco o via ocupado numa ati­vidade qualquer. O homem simplesmente se mantinha ali, estático, com sua silhueta um pouco balançada pelo vento.

Inês não demorou a compreender. Godofredo esperava apenas que ela se traísse. Aquele soldado havia sido mandado pelo duque para espioná-la.

Ainda estava refletindo sobre como se comportar quando Anselmo apareceu.

Um belo problema.

O que você está fazendo com essa espada na mão? — pergun­tou o monge, lutando contra o vento para manter abaixadas as faldas do hábito.

Quero combater, e o duque Godofredo gentilmente me deu permissão — respondeu ela. Depois, dando uma espiada no guarda, acrescentou: — Estou mesmo precisando de um cliente. Pelo menos, para conseguir água. Você pode me arranjar um?

Anselmo a encarou, espantado.

Enlouqueceu? — disse. — Onde quer que eu os encontre? E melhor você pensar no que fazer com o...

Mas é claro que você pode encontrá-los... Aquele normando, por exemplo — interrompeu Inês, tratando de se fazer ouvir pela sentinela. — Aposto que ele viria de bom grado ficar comigo. Por que não vai chamá-lo? — acrescentou, indicando com a cabeça o soldado.

De início, Anselmo ficou desconcertado, porque não compreen­dia. Depois compreendeu, e ficou mais desconcertado ainda.

Se você quer mesmo... — limitou-se a dizer, afastando-se. Inês recomeçou a se exercitar, e continuou até que viu surgir Ricardo.

Não tenho com que lhe pagar, mulher. Mas, já que você insis­te em aprender a combater, posso lhe ensinar... — começou o nor­mando, a quem, evidentemente, Anselmo tinha explicado a situação.

Por que não? — respondeu Inês, e logo se colocou em posição de defesa. — Já que, até agora, você não demonstrou outros talentos, eu poderia me contentar com isso... — acrescentou, com um sorriso malicioso.

Sua posição defensiva é ridícula. Poderia lhe ser fatal... — disse ele, desembainhando a espada e tocando-a rapidamente no ombro direito, depois de fintá-la no esquerdo.

Você lamentaria? — perguntou Inês, ensaiando uma cutilada de través bem desajeitada, que terminou miseravelmente na lâmina do homem.

Recue a perna esquerda, quando investir desse modo. Isso dará mais força e impulso ao golpe, e talvez você consiga alcançar o corpo do adversário antes que o escudo ou a espada a detenham. E... claro que eu lamentaria... Seria um fracasso para seu mestre! — repli­cou ele, mostrando o ataque correto.

Ah! Só por isso, então! — respondeu Inês, dando uma cutilada vertical tão lenta que Ricardo teve tempo para se esquivar e ver o golpe terminar no solo. — E pensar que eu esperava agradá-lo, ao menos um pouquinho... Certos favores só são pedidos a uma mulher por quem o homem se sente atraído, não? — insinuou.

É verdade! Mas você está disposta a executá-los até o fim? Seja como for, a cutilada vertical é muito previsível, e, sobretudo, ineficaz contra quem está equipado com elmo e escudo. É melhor a horizon­tal, se você não quiser golpear com uma estocada — disse ele, giran­do sobre si mesmo e chegando com a espada a um palmo do flanco de Inês.

Ela o imitou, com muito pouco êxito.

Eu gostaria, mas não à vista de todos. Certas coisas deveriam ser feitas longe de olhos indiscretos... — respondeu, perdendo o equilíbrio e acabando por desferir uma cutilada quase atrás de si.

Então, você poderia pedir a uma colega que as faça. Basta que lhe transmita aquilo que adquiriu com sua experiência... — replicou Ricardo, acrescentando: — Sugiro-lhe que tente sempre os ataques frontais. Você não tem força para desfechar cutiladas, nem a coorde­nação e o treinamento necessários, mas é suficientemente ágil para desequilibrar o adversário alongando o braço ou para se esquivar do contra-ataque. Experimente alguns...

Ela investiu mais vezes. Não o acertou, mas em duas ocasiões conseguiu evitar ser alcançada pela réplica dele. Depois recomeçou a desferir cutiladas, apesar da admoestação do amigo, e ele a deixou agir, detendo os golpes a pouca distância do próprio rosto.

Você tem preferência por alguma? Tome cuidado, porque eu sou ciumenta... — disse ela, quando os rostos se encontravam a um palmo um do outro.

Ele se desviou, girando sobre si mesmo, e ela o sentiu atrás de si, aflorando-lhe a garganta com a lâmina da espada. Sentiu também a respiração dele no ouvido.

Claro que sim, aquela gordinha — sugeriu Ricardo. — Dela você não deve ter ciúme, não? Ela não pode ser definida como boni­ta, e também é religiosa demais... Sob aquelas vestes largas, quem sabe o que pode esconder...?

Inês se abaixou de repente, virou-se e, num instante, pousou a lâmina de sua espada sobre a nuca dele. Um sorriso triunfante lhe iluminou o rosto.

Eu diria que você me ensinou bastante. Acho que chegou o momento de lhe dar aquilo pelo qual me pagou tão generosamente, e adiantado... — disse, baixando a espada.

Por que não? Tenho pouco tempo, mas deve ser mais do que suficiente para um encontro memorável. Ou então, se esperarmos um pouco mais, acabaremos por fazê-lo dentro das muralhas de Jerusalém... — respondeu ele, repondo a espada na bainha.

Mas você não tem tempo nenhum! — A voz era de Anselmo, que sobrevinha acalorado e ofegante.

O que acha de ir cuidar de seus assuntos, de uma vez por todas? — respondeu Inês com um gesto de irritação, olhando Ricardo para buscar seu assentimento.

Acreditem, desta vez eu não queria interrompê-los — disse o monge. — Mas foi o conde Raimundo quem mandou chamá-lo, Ricardo. Aconteceu um problema. Esta manhã, pelo menos trezen­tos soldados se dirigiram ao Jordão para serem batizados. Mas, assim que chegaram lá, enganaram os padres e fugiram. Parece que tudo estava preparado... — explicou, desconsolado.

Uma deserção em massa? Realmente não precisávamos disso para a força do exército e para o moral dos que restaram. E melhor que eu vá logo. Até porque, Inês, você sabe o que fazer... — disse Ricardo à mulher, apertando-lhe o braço em sinal de encorajamen­to, antes de se deixar engolir pelo vento.

Inês sabia o que fazer.

Padre, eu queria me confessar — disse.

O quê?

Ela deu uma olhada fugaz para o soldado de vigia. Ele ainda estava ali.

Mas é claro. Parece que combateremos logo, não? E não quero morrer sem ter confessado meus pecados. Venha dentro da tenda, se conseguir entrar em semelhante lugar de perdição, naturalmente...

Anselmo hesitou alguns instantes e depois a seguiu, dando tam­bém uma rápida olhada para o soldado de Godofredo. Já lá dentro, viu-a deslocar a esteira, cavar o chão e tirar a bolsa.

Guarde-a no lugar onde pretendíamos colocá-la ontem à noite. Depois, ache um jeito de informar Ricardo, Rebeca e Emanuel — disse Inês.

Embaraçado, o monge pegou a sacola, virou-se e levantou o hábito, remexendo-se demoradamente até conseguir fazer o objeto desaparecer embaixo dos panos. Fez menção de ir embora, mas parou pouco antes da saída.

Não quer aproveitar para se confessar realmente?

Talvez eu faça isso, um dia. Mas não a um padre: ele ficaria escandalizado — respondeu Inês. — E muito menos a um padre amigo, que depois eu não conseguiria encarar...

Inevitavelmente, Anselmo se perguntou por que o guarda se move­ra justamente no momento em que ele saía da tenda. E a única res­posta que achou foi que, agora, era ele quem estava sendo vigiado por aquele soldado. Virou-se fugazmente umas duas vezes, para con­firmar sua suposição, mas esperando que se tratasse apenas de uma projeção de seu medo.

Não era. O soldado continuava em seu encalço, embora desse a impressão de estar interessado em outra coisa.

Então o monge parou. Já não podia ir à rocha das tarântulas. Apressou-se a ter uma idéia. Mudou de direção e se encaminhou para o setor onde estavam construindo a torre de Raimundo de Saint-Gilles. Depois parou de novo e foi tentado a entregar a bolsa àquele soldado. Imaginou que esse podia ser um modo de obter do Senhor o perdão por ter assassinado um homem, ainda por cima um confrade. Não, era só um álibi para esconder de si mesmo o medo que o assaltava. O temor e a vergonha de decepcionar Inês e os pou­cos amigos que fizera naquela aventura apavoravam-no mais do que a eventual punição divina. Recomeçou a caminhar.

Prosseguiu rápido, cada vez mais rápido, desafiando o vento que o fustigava no flanco. Virou-se de novo: o soldado ainda o seguia. Seu movimento repentino para girar sobre si mesmo, porém, fez cair a sacola, na qual ele até se arriscou a tropeçar. Tomado pelo pânico, não se voltou nem mesmo para conferir se seu perseguidor havia notado alguma coisa, esperando que o véu de poeira levantado pelo vento tivesse ocultado a cena.

Mas sabia que não era assim. O soldado teria que ser cego para não tê-lo visto manuseando as próprias roupas. Se não quando a bolsa caíra, pelo menos quando ele a recolhera e a guardara de volta sob o hábito, no flanco, apertando o cordão da cintura para manter o manuscrito junto do corpo.

Fosse como fosse, já estava chegando à meta. Alcançou-a poucos passos depois e logo avistou Ricardo e Emanuel, empenhados no trabalho. A torre estava a uma boa altura, com o segundo piso quase completado. Mas, naquele momento, não era isso que interessava a Anselmo.

Emanuel o cumprimentou, mas ele respondeu com uma sauda­ção geral, dirigida também aos outros soldados, embora já se apro­ximasse do bizantino. Ricardo, por sua vez, estava mais distante, ocupado em falar com uns serventes, e nem o tinha notado.

O monge viu uma pilha de lenha junto do grego e, aparentando can­saço, sentou-se em cima dela, deixando discretamente a bolsa se encaixar entre as traves. Notou que o soldado de Godofredo ainda estava nas proximidades, e até se oferecera para dar uma ajuda.

Sabendo-se escutado e observado, Anselmo respondeu vagamen­te quando Emanuel resolveu interpelá-lo.

O que está fazendo aqui? — perguntou-lhe o bizantino.

Nada de especial. Eu tinha uns instantes de folga, e então vim ver como andam os trabalhos. — Enquanto isso, afrouxava o cordão da cintura e deixava que a sacola sob o hábito deslizasse ao longo do flanco e da perna, para finalmente ir parar entre as traves amon­toadas.

Se pelo menos não houvesse este maldito vento! — lamentou-se Emanuel. — Dificulta o trabalho e nos obriga a um esforço maior. Somos obrigados a parar mais freqüentemente do que gostaríamos...

Vocês já avançaram muito, pelo que vejo.. — replicou Anselmo, traçando sinais com a ponta do pé e tentando chamar a atenção do interlocutor para o que estava fazendo.

Emanuel notou o estranho comportamento do monge, mas, depois de observar rapidamente os sinais, compreendeu de imediato que era melhor não dar nada a entender. Continuou a lançar olhares fugazes para o solo, falando do que lhe vinha à cabeça:

Sim. Como vê, estamos quase no terceiro nível, aquele do qual será lançada a ponte que outra equipe está construindo aqui ao lado. Depois faremos mais um nível, descoberto e dotado de merlões, sobre o qual poderemos instalar pelo menos uns dois trabucos. Isso nos permitirá alvejar do alto os espaldões.

É mesmo? Impressionante... — Enquanto isso, Anselmo con­tinuava a mover o pé.

Na realidade — explicou ainda Emanuel, percebendo que devia esticar a conversa —, como temos pouca madeira à disposição, fomos obrigados a nos arranjar para fazer a torre tão alta, e, como vê, economizamos nas plataformas. Preferimos limitar a estabilida­de aos pisos superiores, que receberão as máquinas e os combatentes. Nos inferiores, ao contrário, faltam algumas traves. Esperemos que ninguém tropece, quando subir para revezar com os outros... — concluiu, ao perceber que Anselmo havia completado seu trabalho com o pé.

— Muito bem. Agora, é melhor que eu vá. Bom trabalho... e cumprimente Ricardo por mim — disse o monge, erguendo-se da pilha de lenha e afastando-se em passos lentos, com a alma cheia de angústia por aquilo que, como temia, poderia lhe acontecer.

Instantes depois, o soldado que acompanhara o diálogo se apro­ximou, com uma trave sobre os ombros, da pilha de lenha onde Anselmo estivera sentado. Os movimentos do monge com o pé não tinham lhe escapado e ele olhou o chão, curioso. O vento já apagara quase todos os sinais. Mas ainda permaneciam alguns, meio esfumados. O soldado tentou compreender do que se tratava. Parecia uma escrita, mas ele não sabia ler, e por isso não fazia idéia do significa­do. Por outro lado, conhecia alguns caracteres por tê-los visto de relance, algumas vezes. E aqueles não lhe pareceram os caracteres do alfabeto, nem dos números.

Na realidade, não poderia reconhecê-los.

A escrita estava em grego.

 

— O duque Godofredo quer lhe falar — disse o soldado, metendo a cabeça dentro da tenda de Anselmo. Este já esperava por isso. Esperava ser convocado desde o momento em que voltara ao seu enxergão, e tinha pedido ao Senhor que lhe desse forças para supor­tar aquilo a cujo encontro estava indo. Não para evitá-lo, porque sabia merecê-lo, mas para suportá-lo.

Suas preces, na realidade, tinham sido convulsas e confusas. Num momento, ele rezava pelo perdão do homicídio cometido, em outro, por ter escondido aqueles documentos que podiam prejudi­car a credibilidade da Igreja. E, num terceiro, por seus impulsos de concupiscência em relação a Inês.

Ao ouvir a ordem do soldado, levantou-se, resignado, e o seguiu docilmente, de cabeça baixa, em silêncio, até o quartel-general do duque de Lorena. Ao entrar no pavilhão, viu-se diante de Godofredo e de mais dois homens: gente rude, cujos olhares ferozes pesavam como rochas sobre seu sentimento de culpa.

Godofredo não falou logo. Observou-o, estudou-o, esquadri­nhou-o, para entender com que tipo de homem iria lidar, e para atemorizá-lo com seu olhar proverbial, de cuja eficácia tinha plena consciência.

Considera-se um bom homem de Deus, padre? — perguntou afinal, sem convidar Anselmo para se sentar.

Eu... não tenho competência para me julgar. O Senhor o fará, quando me chamar à Sua presença... — conseguiu responder o monge.

Pelo que sei a seu respeito, temo que o julgamento divino venha a ser muito negativo. E também tenho a impressão de que você bem cedo se verá junto Dele...

Eu me submeto às Suas vontades. Se pequei, é justo que eu pague. Sou apenas um homem e, como tal, cometo muitos erros.

Godofredo começou a andar lentamente em torno dele.

Pois é. Talvez demasiados erros. Tira o dinheiro das putas... Entende-se com os gregos cismáticos... Esconde documentos precio­sos... Mas... — observou — você poderia aliviar sua posição diante do Senhor, e até diante da justiça terrena, se nos revelasse o que sabe sobre certos rolos que poderiam causar grande dano à Igreja, se aca­bassem em mãos erradas...

Eu... não sei do que o senhor está falando, duque... — Anselmo tinha a fronte perolada de suor e seus olhos evitavam a mirada feri­no de Godofredo.

Veja bem, monge — continuou Godofredo, aproximando-se dele. — Eu estou agindo por conta do Senhor. Fui diretamente investido nessa função por meio da nossa Santa Madre Igreja e do sumo pontífice. Por conseguinte, não existe nenhum escrúpulo que possa me limitar no exercício do meu sagrado encargo. Nada que possa me deter. E muito menos um padreco desgraçado que preten­de dirigir o curso de eventos muito, mas muito maiores do que ele.

Continuo não entendendo do que o senhor está falando... — A voz do monge estava embargada, reduzida a quase um gemido fraco.

Ah, não? Vai me dizer que não sabe nada do manuscrito de um suposto Tiago, que se professa "irmão do Senhor", um docu­mento que os judeus assassinos teriam escondido em Jerusalém, ou até mesmo aqui, entre estas tendas, com a colaboração de algum apóstata traidor?

É a primeira vez que ouço falar disso... — conseguiu dizer Anselmo, com grande esforço.

Mas, então, por que parece tão aterrorizado? Por que transpi­ra tanto? — interpelou-o Godofredo, agarrando-o pela gola.

Porque... porque sou um covarde...

Nesse caso, é melhor me dizer o que sabe. — Godofredo o sol­tou e se afastou. — Porque, do contrário, meus homens têm ordem de empregar qualquer meio para convencê-lo a desembuchar a ver­dade — disse, e apontou os dois que estavam com ele.

Anselmo os observou. Ambos seguravam um bastão. Depois olhou melhor: cada bastão tinha pregos espetados na extremidade.

O monge engoliu em seco.

Eu... não posso lhe dizer o que não sei — gaguejou, dirigindo ao Senhor uma última prece.

O mesmo Senhor que ele sentia haver traído repetidamente.

 

Emanuel aguardou que o soldado que havia seguido Anselmo se dis­tanciasse e, depois, foi procurar na pilha de traves. Lá no fundo esta­va a bolsa. Ele esperou que os outros homens fossem comer, apanhou-a e dirigiu-se até Ricardo, de quem só se aproximou quan­do o viu sozinho.

A bolsa com o manuscrito já não se encontra nas mãos de Inês. Estava com Anselmo, não sei por que motivo, e este a deixou comigo. Estava sendo vigiado...

Então, agora eles sabem que você a tem. Maldição! — reclamou Ricardo, olhando ao redor.

Não creio. Anselmo, sabendo-se observado, enquanto faláva­mos escreveu com o pé, na areia, uma mensagem em grego. Dizia: "Estou sob vigilância. A sacola com os rolos está entre as traves. Pegue-a e a esconda, mas nunca me conte onde." O que ele queria dizer, em sua opinião?

Ricardo refletiu.

Creio que ele teme ser submetido a interrogatório, e, se este for conduzido por Godofredo, não será uma brincadeira. Talvez tema não conseguir resistir. A esta altura, estamos todos em perigo. Todos nós que sabemos da existência desse manuscrito.

O que você pensa fazer? — perguntou Emanuel, preocupado.

Não sei. O fato é que precisamos tomar uma decisão rapidamente.

O normando continuou a refletir por todo o tempo da pausa para descanso. Pouco antes de ele retomar o trabalho, porém, che­gou um mensageiro do quartel-general de Raimundo e lhe disse:

O conde o chama para uma reunião urgente do estado-maior.

Você sabe do que se trata? — quis saber Ricardo.

Parece que os bispos tomaram uma iniciativa... Mais do que isso eu não sei — respondeu o outro.

O mensageiro saiu dali, continuando a circular para chamar os outros participantes. Ricardo olhou para a sacola e, em seguida, para Emanuel.

Tive uma idéia. Não consigo imaginar esconderijo mais segu­ro do que o pavilhão do conde.

Enlouqueceu? Vai entregá-la justamente a ele? — retrucou o bizantino, surpreso.

Eu não disse isso. Sossegue. Sei o que estou fazendo — respon­deu o normando, pegando a sacola e afastando-se.

O soldado do duque levantou o bastão. Instintivamente, Anselmo cobriu o rosto com os braços. Bem nesse momento, um guarda entrou na tenda.

Senhor duque, estão à sua espera no quartel-general do conde Raimundo. Também foram convocados seu irmão e os outros chefes do exército — anunciou.

Com um aceno, o duque ordenou ao seu subalterno que não prosseguisse.

Você tem mais um pouco de tempo para refletir, padre. Mas, quando eu voltar, quero saber tudo — disse ao monge, e saiu da tenda em passos rápidos.

Ricardo chegou ao pavilhão de Raimundo com duas sacolas. Acabava de passar por sua tenda para pegar outra, com alguns dos mapas que o conde às vezes consultava. De fato, como ordenança do comandante, o normando conservava as cartas geográficas do setor de operações e as submetia ao conde sempre que este as solicitava.

A tenda já estava lotada quando ele chegou. Ali se encontravam o conde, naturalmente, e os outros comandantes, Tancredo de Hauteville, Roberto de Flandres e Roberto da Normandia. Presentes também os bispos e os expoentes eclesiásticos, agora inevitáveis em ocasiões como aquela, a começar pelo capelão do próprio conde, Raimundo de Aguilers, e pelo de Roberto da Normandia, Arnulfo Malecorne de Rohes, e ainda o irmão de Ademar de Le Puy, Guilherme-Hugo de Monteil. Havia também um simples padre, Pedro Desidério, com seu senhor, Isoardo de Gap, um comandante de segundo escalão.

Ricardo se perguntou o que podia significar a presença daquele padre. Este se impusera à atenção geral no início da primavera, declarando ter tido uma visão na qual o bispo Ademar, morto havia algum tempo, contorcia-se no fogo do inferno por ter mostrado dúvidas sobre a autenticidade da Lança Sagrada. Mas o crédito de que ele gozava graças ao apoio do conde Raimundo desmoronara de repente, após a morte de Pedro Bartolomeu no ordálio da Sexta- Feira Santa.

Quando Godofredo e o irmão chegaram, teve início a reunião.

Convoquei-os aqui — começou o conde Raimundo — porque isso me foi pedido por Guilherme-Hugo de Monteil, irmão do nosso venerado bispo Ademar, de cuja santidade sentimos verdadeiramen­te a falta. Portanto, passo a ele a palavra — acrescentou, apontando o prelado.

Guilherme pigarreou. Sempre tivera que suportar o carisma do irmão e o pesar que todos sentiam pela morte dele.

Pois bem. Tenho aqui comigo Pedro Desidério, que, como todos sabem, meu venerado irmão escolheu como veículo para se comunicar com o mundo. Pedro afirma, e não tenho motivos para duvidar, que Ademar lhe apareceu de novo e declarou que, se os exércitos do Senhor ainda não conquistaram Jerusalém, foi só por­que nós, que nos dizemos cristãos, estamos buscando nossos objeti­vos pessoais e egoístas, em vez de nos concentrarmos no bem comum e trabalharmos todos juntos. Portanto, deixemos de lado as nossas disputas e reconciliemo-nos uns com os outros, para expulsar o maligno e alcançar o alvo a que nos dispusemos.

E era necessário esse padre para nos dizer isso? — objetou Roberto da Normandia. — Não precisamos das supostas visões desse padre mentiroso para nos chamar à ordem. Devemos nos arranjar sozinhos para dirimir nossas controvérsias, em vez de darmos ouvi­dos a quem apoiou uma pessoa que não resistiu a um ordálio... — acrescentou, encarando, sobretudo, Godofredo e Raimundo, os prin­cipais responsáveis pelo impasse.

Raimundo o interrompeu de imediato e não perdeu a oportuni­dade de reiterar suas convicções.

Você bem sabe que Pedro Bartolomeu tinha superado o ordá­lio — disse. — Foi a multidão que o lançou de volta ao fogo, só para tocar a sagrada veste que ele usava e que o protegera das chamas. Só então ele se queimou mortalmente. Para mim, isso demonstra sufi­cientemente que a Lança, que conservo em minha capela, é a verda­deira e, por conseguinte, sagrada. Agora, silêncio, e pode continuar, Guilherme.

Este recomeçou, embora em tom mais temeroso:

Meu insigne irmão não se limitou a nos exortar à concórdia. Também pediu que expiássemos nossas culpas, com um jejum de três dias e uma peregrinação em torno da cidade, descalços, todos juntos e com o coração arrependido. Se fizermos isso, é certo que dentro de nove dias conquistaremos Jerusalém... — concluiu, olhando em seguida para Pedro Desidério, que respondeu com um aceno de assentimento.

Ricardo aproveitou a atenção geral dirigida ao irmão de Ademar para manusear os mapas, que amontoou junto à mesa, encostando a sacola dos rolos às outras.

O primeiro comentário veio de Tancredo:

E deveremos fazer os homens jejuarem por três dias, enfraquecendo-os ainda mais, justamente antes do ataque? Na ver­dade, isso significa nos condenarmos com nossas próprias mãos! — disse o jovem normando.

Você só pensa no lado prático do assunto — retrucou Raimundo. — Pense, porém, no efeito que isso exerceria sobre o moral dos homens. Agora, eles estão desertando em massa. Uma penitência os convenceria de que existe um meio para nos purgar­mos de nossos pecados e multiplicaria as forças e a confiança deles...

Além disso — acrescentou Roberto da Normandia —, pode­ríamos consolidar nossa autoridade de comando, se nos vissem fazendo penitência. E isso só poderia aumentar a potência do nosso exército.

E, sabendo que dentro de nove dias poderemos conquistar a cidade, os homens multiplicariam seus esforços para terminar as máquinas... — completou Roberto de Flandres.

De qualquer modo, dentro de nove dias devemos tentar o assalto. Do contrário, teremos às nossas costas o exército egípcio... - observou, ainda, Tancredo.

Verdadeiro ou não, este assunto merece ser levado em conta - interveio Godofredo, interrompendo bruscamente Tancredo; este, por outro lado, era seu vassalo, e não ousou replicar. — Podemos ficar aqui durante horas, discutindo se esse padre é ou não um embusteiro. Mas não é isso que nos interessa. Convém, de prefe­rência, estabelecer se tal política é compensadora. Em minha opi­nião, sim — explicou. — Seja qual for a intenção de cada um de nós, nosso objetivo comum é transpor aquelas muralhas...

O importante, porém — especificou o bispo de Rohes, Arnulfo —, é que, durante três dias, todos se abstenham realmente de qualquer ato que possa ofender o Senhor, ou que possa atrair para vocês a reprovação da tropa. De qualquer ato — concluiu ele, peremptório.

Você ainda tem três dias para refletir, pedir perdão ao Senhor pelas suas ações e fazer penitência, padre — disse Godofredo a Anselmo, assim que retornou à sua tenda. — Aliás, como todos. Vou mantê-lo detido. Você jejuará como todo mundo, e beberá o míni­mo necessário de água para se manter vivo. Mas, se ao fim desses três dias não falar — acrescentou, adotando o tom e o olhar com os quais sabia aterrorizar os interlocutores —, garanto-lhe que não partirei para o assalto da cidade sem ter encharcado aqueles bastões no seu sangue...

Anselmo desapareceu. Não consigo encontrá-lo — disse Ricardo a Rebeca quando foi vê-la, no dia seguinte. O número dos prisionei­ros havia diminuído naqueles últimos dias. Um, Jamal, fugira, e outros quatro tinham morrido de inanição. A judia só sobrevivia porque Ricardo e Emanuel se ocupavam dela, e também graças aos trabalhos menos pesados, em relação aos homens, aos quais era obri­gada.

Os rolos estão com ele? — perguntou Rebeca, muito apreensiva.

Não. Estão comigo — respondeu Ricardo. — Na verdade, guardei-os na tenda do conde Raimundo, mas no meio de coisas às quais só eu tenho acesso. E o último lugar onde Godofredo manda­ria procurá-los, e o conde, por sua vez, nem sabe que eles estão fora das muralhas, embora tivesse me dado o encargo de encontrá-los, quando entrarmos em Jerusalém — observou, consciente do efeito que a revelação teria sobre a moça. — E Godofredo tampouco infor­maria Raimundo sobre a presença desses manuscritos no acampa­mento cristão. Quer ter o mérito pelo achado deles, para obter benemerências por parte da Igreja...

Rebeca arregalou os olhos, perplexa.

E você, com um encargo desses, por que renunciou a se apro­veitar das circunstâncias? Poderia fazer uma bela figura! — Observou, comovida.

Ricardo hesitou, antes de responder:

Não sei. Talvez não exista uma razão que prevaleça sobre as outras. Para sua sorte, Rebeca, eu não sou muito religioso, e para mim aqueles rolos não representam nada. Além disso, estou inclina­do a crer na autenticidade deles. E há sempre a questão de sua irmã. Não quero prejudicá-la de maneira alguma; nem a ela... — hesitou mais um pouco — ... nem a nenhum membro da família dela... — disse, fitando-a nos olhos.

Rebeca desviou a mirada, sem saber se fizera isso por reação à referência a Sara ou simplesmente por não ter conseguido sustentar aqueles olhos, que a faziam estremecer sempre que a encaravam. Tentou frear a comoção; não fazia sentido, aliás: para Ricardo, ela era apenas um reflexo da atração que ele nutria por Sara.

Ricardo teve a impressão de haver dito algo que a ferira. Fitou-a de novo, demoradamente, estudando-lhe os gestos, a respiração levemente ofegante, o olhar esquivo. Perguntou-se como era possí­vel que duas irmãs fossem tão diferentes. Uma, Sara, belíssima, o que tornava supérfluo qualquer outro juízo a seu respeito. Outra, aque­la que estava à sua frente, nem um pouco agradável de aspecto, mas rica de qualidades: inteligência, força de vontade, conhecimento, intensidade de atitudes e de palavras.

Jamais se dera conta de que a beleza de certas pessoas não reside na aparência.

É realmente tão importante assim, para você, a sobrevivência daquele texto? — perguntou, sobretudo para ouvi-la falar mais.

— É importante para o meu povo, e também para a verdade — explicou Rebeca, procurando disfarçar qualquer emoção que não se referisse ao assunto da conversa. — Você mesmo pode ver que a mensagem de paz que a Igreja procura transmitir está em aberta contradição com sua atitude intolerante e com o comportamento mundano de seus expoentes. Ela ensina o amor ao próximo, mas traz todos vocês para lutar contra quem não pensa da mesma maneira. Prega o desapego aos bens terrenos, mas ostenta a opulência de seus bispos. Como você pode pensar que uma instituição tão contraditó­ria e hipócrita tenha contado a verdade sobre como nasceu e conso­lidou o próprio poder? Porque é de um poder que estamos falando, um poder terreno e material, que decide o destino terreno dos homens, antes mesmo do espiritual. Como você pode pensar, por conseguinte, que a Igreja permitiria a existência de textos que a des­mentem tão clamorosamente?

Ricardo baixou a cabeça. Jamais escutara uma mulher falar desse modo. Realmente, era verdade: a beleza de Rebeca estava em suas qualidades.

Faria de tudo para mantê-la viva e levá-la consigo. Quando con­seguisse se unir definitivamente a Sara, gostaria de ter por perto uma mulher assim...

Inês jamais se sentira tão ignorada pelos homens como naqueles dias de jejum e abstinência. Soldados e peregrinos tinham até medo de serem vistos ao seu lado, para não cair em tentação ou apenas para esconjurar qualquer ilação a respeito deles. Se tentasse buscar com­panhia ou simples informações, evitavam-na como se ela tivesse a peste.

Até Anselmo não se apresentara mais. Provavelmente porque sua condição de religioso havia, por esta vez, prevalecido sobre seus impulsos. Ricardo, então, nem pensar. Tinha desaparecido, mas Inês foi obrigada a reconhecer, a contragosto, que isso não era novidade. No entanto, sentia-se suficientemente segura das próprias graças e de suas capacidades para ter certeza de que, se conseguisse ao menos uma vez tê-lo nos braços, ele não lhe escaparia mais. Contudo, por uma razão ou por outra, a coisa não tinha evoluído, e Ricardo continuava sendo aquele presunçoso fugidio que só se lembrava dela quando precisava.

Inês vagava pelo acampamento procurando um rosto amigo. Sentia as mordidas da fome, e pouco a consolava saber que todos estavam nas mesmas condições, até os príncipes. O vento sul tinha decrescido, mas o sol estava cada vez mais quente, e de nada adian­tavam os poucos goles d'água que lhe cabiam quatro vezes por dia, após os quais seus lábios e sua garganta recomeçavam a arder.

Ninguém se ocupava mais dos cadáveres dos animais, cujo fedor impregnava todos os cantos. As carcaças, desventradas pelas aves e corroídas pelos insetos, agora se disseminavam por toda parte, e havia até quem as usasse como anteparo contra os raios do sol, sem se importar com a putrefação.

Inês passou os dedos sobre os lábios. Estavam secos, ásperos. Imaginou que já não parecia muito apetecível para um homem. Aliás, bastava-lhe observar as outras prostitutas para se dar conta daquilo em que se transformara. Elas também vagavam, tentando não ser ignoradas. Desgrenhadas, o rosto marcado por olheiras e rugas, inexistentes até poucos dias antes, lábios cobertos de pústulas, faces encovadas.

Se seu estado também fosse aquele, era melhor que Ricardo não a visse.

Em compensação, avistou Emanuel e lhe acenou de longe. O bizantino, que estava transportando umas cordas, percebeu-a, mas hesitou em ir ao seu encontro. Inês também se deteve, para não deixá-lo embaraçado. Depois, porém, recomeçou a caminhar. Afinal, pensou, tinha corrido riscos por eles, e agora merecia alguma explicação.

Emanuel olhou ao redor, visivelmente constrangido. Mas não se afastou.

Obrigada por não ter fugido — disse Inês, em tom ácido. — Devo estar um horror, certamente, mas há somente poucos dias, na minha tenda, você parecia apreciar o que eu tinha a lhe oferecer...

Não, não é isso... — disse ele, tentando se justificar.

Eu sei. Não quer que os outros pensem que você não consegue manter a abstinência. Se um único soldado pecar, todo o exército poderia se ressentir, não é? — provocou ela.

Também não. Você não soube de nada? — respondeu Emanuel, renunciando a convencê-la e apostando em lhe despertar a curiosidade.

O que eu deveria saber?

Anselmo desapareceu logo depois de me deixar os rolos — explicou o bizantino. — Estava sendo seguido por um homem de Godofredo. Portanto, provavelmente o duque sabe que ele estava com os rolos. E não é garantido que Anselmo não fale, se Godofredo o torturar. E por isso que não devemos ter contato entre nós. Eles estão tentando descobrir quem mais sabe do assunto — acrescentou, olhando novamente ao redor.

Anselmo desapareceu... — Foi só o que Inês conseguiu dizer.

De repente, um soldado.

Parecia loreno.

Eu gostaria, gostaria muito! — exclamou Emanuel em voz alta. — Mas não quero prejudicar o êxito do iminente assalto com minha luxúria. Vá embora! — disse a Inês.

Você não passa de um maricas, é isso! — respondeu ela com ostensiva irritação, mandando-o àquela parte com um gesto elo­qüente do braço.

Inês se afastou, mostrando-se enfurecida. Depois, fingiu perceber só naquele momento a presença do soldado. Mudou de direção e se dirigiu a ele:

— E você? Também é um maricas como aquele lá? — perguntou assim que chegou perto, provocando-o com requebros exagerados. — Vamos, um homem não pode sobreviver sem comer e sem se divertir...

Viu-o estremecer e deixar transparecer uma excitação mal disfar­çada. Isso a gratificou; apesar de tudo, ainda conseguia perturbar um homem. Mas as normas para os soldados eram rígidas e nada acon­teceu.

Por outro lado, refletiu, não tinha a menor vontade de divertir alguém. Estava muito preocupada com Anselmo.

Ela mesma o envolvera naquela história, aproveitando-se da atração que exercia sobre o monge, e agora Anselmo enfrentava difi­culdades. Sérias dificuldades, provavelmente, considerando-se que estava nas mãos do impiedoso Godofredo. O sentimento de culpa de Inês era ainda aumentado pelo afeto que, afinal, ela sentia por aque­le eclesiástico irresoluto, com o qual, querendo ou não, havia com­partilhado muitos percalços no decorrer daqueles últimos três anos.

Teve o impulso de ir procurar o duque e perguntar pelo destino de Anselmo. Mas logo compreendeu que, fazendo isso, condenaria tanto Anselmo quanto a si mesma, revelando a ligação entre eles dois. Desconsolada, retomou o caminho de sua tenda, obrigando-se a uma espera aflitiva.

 

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Pilhas de cabeças, de mãos e de pés podiam ser vistas pelas ruas da cida­de. Era necessário atentar para onde pisar, em meio aos corpos de homens e de cavalos. Mas isso não é nada, comparado ao que aconteceu no Templo de Salomão, um lugar onde habitualmente se oficiam os ritos sacros. O que aconteceu ali? Se contasse a verdade, eu ultrapassaria vossa capacidade de compreensão. Assim, basta dizer que, no Templo e no pórtico de Salomão, os homens cavalgaram com sangue que chegava aos seus joelhos e às rédeas dos animais. Realmente, foi mesmo um esplêndido juízo de Deus que aque­le lugar se enchesse do sangue dos infiéis, já que havia tão demoradamente sofrido a blasfêmia deles.

Raimundo de Aguilers, Historia Francorum qui ceperunt Jerusalem

 

Jerusalém, 70 d.C.

Podem me ouvir? Eu sou hebreu! — continuou Zoker a gritar, avançando com cautela pelo túnel, na direção do ponto de luz. Fosse como fosse, tinha sua sica, e venderia caro sua pele.

E quem nos diz isso? — respondeu finalmente alguém.

Zoker soltou um suspiro profundo.

Vou me aproximar lentamente. Julguem vocês se eu pareço um romano — disse, com leve tremor na voz.

Mas, claro, deixe que ele se aproxime... — Ouviu alguém dizer, em tom não exatamente acolhedor.

O jovem deu mais alguns passos, até que a luz das tochas lhe per­mitiu vislumbrar três homens mal-encarados, todos com uma sica na mão.

Zelotes.

Bem, você pode não ser romano, mas isso não quer dizer nada - disse um deles. — Eu nunca o vi. Pode ser um daqueles lacaios dos romanos.

Eu sou um ebionita, ou nazireu, como preferirem. Como poderia ser favorável aos romanos? — respondeu Zoker prontamen­te. E era verdade. — Sou parente de Simeão bar-Cleofas, nosso patriarca. Quem mais se opôs ao domínio romano foi justamente a minha família.

Ah, sim, aquele velho que está sempre sozinho, sempre à parte - interveio outro. — É idoso demais para ser útil à defesa, mas pelo menos não subtrai provisões aos homens sadios, já que não come nada...

Sim! Ninguém jamais pensou ir perturbá-lo em casa; até por­que todos sabem que não encontrariam nada... É verdade que os ebionitas se gabam de não possuir coisa alguma, mas seus sacerdotes, assim como você e ele, nazireus... bah! Não sei como conseguem sobreviver sem comer carne, sem usar roupas de lã, sem uma mulher... — comentou outro, e isso, por algum motivo, desencadeou a hilaridade dos três.

Mas vocês, ebionitas, não tinham ido para a Peréia, depois que seu patriarca anterior foi justiçado? — perguntou um dos guardas.

Eu voltei para proteger Simeão. — Pensando bem, convinha seguir a linha da sinceridade.

Ah, é? E pretende entrar e sair da cidade quando bem enten­der? — observou, malicioso, um dos zelotes, repentinamente sério. — Aqui há uma guerra em curso, caso não saiba. Embora vocês não se importem com isso...

Acabei de informar que nós somos contra os romanos — res­pondeu Zoker, cauteloso.

E acha que isso basta? E fácil afirmar ser contra os romanos e deixar aos outros a tarefa de expulsá-los... — rosnou o homem na cara dele, exibindo seus dentes podres. — Ebionitas, essênios, nazi­reus, vocês todos não servem para nada, com essa sua vida contem­plativa...

Você é um homem sadio. Se entrar, estará obrigado a colabo­rar na defesa — acrescentou um dos três.

Claro. De fato, tenho intenção de combater. Deixem-me entrar, e, depois que eu vir como está meu tio, vou me plantar no alto das muralhas — apressou-se Zoker a dizer, fazendo menção de avançar.

Mas um dos três obstruiu a saída com o próprio corpo e disse:

Eu acho que você é um trapaceiro. Está levando comida para seus sequazes e seu tio.

Bem... os ebionitas afirmam que ninguém deve possuir mais do que os outros, certo? Portanto, se tem comida e não a divide, você não está observando seus preceitos... — acrescentou o segundo.

Ou se empanturrou antes de vir até aqui, sem pensar em ali­mentar quem se desdobra pela causa da liberdade — disse o terceiro, aproximando-se também.

Ou então ainda está com a comida. Seria bom conferir. Dispa- se! — intimou-o o primeiro, brandindo a sica.

Decididamente, três eram demais. Zoker olhou seu punhal e foi tentado a usá-lo.

Experimentem me tocar e eu acabo com pelo menos um de vocês — ameaçou, com a expressão mais feroz que conseguiu assu­mir, apontando a arma.

Os três zelotes se bloquearam. Nenhum deles queria ser a vítima.

Convém levá-lo a João ou Simão, que podem resolver o que fazer com ele — concluiu, afinal, o mais próximo. — Venha comigo — acrescentou, dirigindo-se a Zoker.

Este deu um profundo suspiro de alívio e seguiu o homem, olhando de vez em quando para trás, a fim de se assegurar de que os outros permaneciam em seus postos. O zelote não disse uma pala­vra, até que desembocaram ao ar livre, e Zoker tampouco tinha von­tade de conversar. E muito menos de ir ao encontro dos chefes zelotas. A situação, decidiu, havia melhorado bastante: livrar-se de um acompanhante em espaço aberto era bem mais fácil do que fugir de três numa galeria estreita.

Mas o outro parecia vigilante. Além disso, era certamente o mais nutrido dos três, sinal de que se tratava do mais feroz e desabusado.

A Cidade Alta estava como Zoker a recordava, ao que podia per­ceber na escuridão, só aqui e ali atenuada pela luz de alguma tocha. Logo, porém, ele começou a perceber os sinais da tragédia que os habitantes viviam. Às vezes cruzava com algum e, observando-o atentamente, notava o abdome terrivelmente inchado. Outros esca­vavam freneticamente na base de uma edificação, na esperança de encontrar algum talo de grama para enganar o estômago.

Uma casa estava com o teto arrasado, evidentemente por um projétil de balista, de escorpião ou de onagro.[8] Em muitas habita­ções, contudo, somente as portas estavam derrubadas; Zoker ouvira dizer que, naquele período, os bandos de zelotes arrombavam as casas trancadas imaginando encontrar ali alguma comida escondida.

Viu também cadáveres abandonados pelas ruas. Após ter atra­vessado montes deles quando ainda se encontrava fora das muralhas, teria se impressionado muito pouco se não notasse que eram corpos dilacerados.

Pelos cães, pelas aves.

Talvez.

Perto do palácio de Herodes, toparam com dois indivíduos que conversavam animadamente num canto. Um deles não parecia inchado como os demais e, assim que avistou Zoker e seu acompa­nhante, escondeu dentro das vestes aquilo que trazia na mão.

— Venha comigo — disse o zelote a Zoker, encaminhando-se para os dois. — E hora de ver se você pode ser útil à causa. O que estavam fazendo? O que você escondeu sob a roupa? — perguntou furioso ao concidadão, agarrando-o pela gola. E, sem esperar respos­ta, empurrou-o contra uma parede, puxando-lhe a túnica até rasgá-la. O outro tentou fugir, mas o zelote apontou a sica para sua gar­ganta. Das vestes do homem, enquanto isso, haviam surgido uns tufos de grama e um cinto, coisas que, naquelas circunstâncias, cons­tituíam alimento pelo qual havia quem se dispusesse a pagar em ouro.

Muito bem, muito bem. Temos aqui dois espertinhos — comentou o zelote, com olhar maldoso. — Um propõe uma amostra de coisas comestíveis a outro que se dispõe a adquiri-las. Isso signi­fica, meu amigo — concluiu, voltando-se para Zoker —, que o pri­meiro tem comida guardada, e o segundo, dinheiro. Ou seja, trata­ram de não colocar nada disso à disposição de seus libertadores.

Comida? Isso aí? — observou Zoker, consternado, apontando o cinto de couro.

Enfrente três meses de assédio e logo o achará delicioso. Aliás, fervido, o couro não é tão ruim assim, posso lhe assegurar — respon­deu sorrindo o zelote. Depois voltou-se de novo para suas duas víti­mas, com um profissionalismo que denotava uma certa familiaridade com aquele tipo de interrogatório.

Vamos, falem. Vocês sabem o que acontece aos reticentes. Quero saber onde escondem as reservas de alimento e o dinheiro.

Ambos, apavorados demais para falar, acenaram negativamente com a cabeça. O zelote os esbofeteou e depois meteu a ponta da sica numa das narinas do suposto comprador.

Eu sempre tenho comigo uns grãos-de-bico para essas even­tualidades. Garanto a você que, se alguma coisa tiver sido escondida, não demora a aparecer. E, se eles não estiverem escondendo nada, pelo menos não mijam por algum tempo... rá, rá, rá! — disse a Zoker.

Em seguida, abriu um saquinho que trazia pendurado à cintura, tirou um punhado de grãos-de-bico e deu alguns a Zoker.

Agora é com você. Pegue este aqui — ordenou, aludindo ao indivíduo que ele supunha dispor de dinheiro — e enfie os grãos no buraco que ele tem para urinar.

Aquele homem, pensou Zoker, era um salteador profissional. Um salteador autorizado, que se instalava nos subterrâneos não tanto para vigiar o acesso quanto para roubar quem tivesse ido obter comida; evidentemente, havia visto em sua presença uma oportuni­dade para voltar à superfície e recomeçar a extorquir as pessoas.

Era o momento de se livrar de tão desagradável companhia. Assim que recebeu as sementes, Zoker desfechou um pontapé no baixo-ventre do zelote, puxou a própria sica e o feriu na barriga.

O homem caiu sem emitir um gemido.

Agora, fujam! — gritou aos outros dois. Depois se afastou, rumando diretamente para a casa de Simeão. Virou-se só por um momento, poucos passos adiante, para conferir se não estava sendo seguido. Viu o sujeito que minutos antes se dispunha a pagar por um pouco de alimento puxar a sica da cintura do zelote morto, trespas­sar o outro e remexer furiosamente na roupa deste para arrancar com os dentes os talos de grama que haviam ficado presos nela.

Horrorizado, Zoker saiu correndo. Só desacelerou quando teve medo de chamar atenção, e, a partir desse momento, avançou em passos rápidos. Esperava de todo o coração encontrar Simeão ainda vivo; nesse caso, se necessário, aguardaria a noite seguinte para ten­tar sair da cidade. De qualquer modo, era o memorial de Tiago que ele precisava tirar dali a qualquer custo; assim lhe fora solicitado pelos membros da comunidade ebionita.

Chegou à casa de Simeão. A porta estava intacta, como lhe haviam confirmado os três zelotes. E apenas cerrada, como ele per­cebeu assim que encostou a mão nela. Mas alguma coisa, logo atrás, impedia a abertura completa. Experimentou empurrar, e um braço imóvel surgiu no chão, bem no limiar. Com o coração disparado, empurrou mais, conseguindo afinal criar um espaço para entrar. Olhou para baixo e viu um corpo de bruços, apunhalado nas costas.

Fez menção de virá-lo, quando ouviu uma voz:

Não se preocupe, é só o ajudante. Simeão está aqui, comigo...

Zoker finalmente ergueu o olhar e viu o tio pendurado numa viga do teto, com os braços em ângulo reto e os pés atados à trave de sustentação. Crucificado, mas ainda vivo.

Para o tórax de Simeão estava apontado um punhal. A mão que segurava a arma mal surgia de uma sobreveste com mangas amplas e dotada de um capuz que escondia o rosto do algoz.

Afinal, alguém tem que me dizer onde estão os documentos... — disse este último, voltando o rosto para Zoker.

Você! — exclamou o jovem, chocado, deixando cair a sica.

 

Godofredo de Lorena lançou na cara do escudeiro os sapatos que este lhe passara, a última peça do vestuário. E, já que havia começa­do, fez o mesmo com o elmo. O jovem, para seu azar, tinha esqueci­do que os príncipes, em testemunho de sua vontade de penitência, deviam participar descalços e com a cabeça descoberta da procissão em torno de Jerusalém.

O duque saiu da tenda usando camisão e cota de malha, além do escudo e da espada. Nada mais. Estava prestes a se dirigir para o norte, ao vale de Refraim, onde fora estabelecido que os penitentes se reunissem, quando mudou de idéia e rumou para o lado oposto, chegando a uma pequena tenda vigiada por dois guardas, aos quais acenou para que entrassem com ele.

O homem que se encontrava ali dentro, encolhido no solo, quase não reagiu à sua irrupção. Permaneceu deitado, mal abrindo os olhos, solicitados pela luz filtrada através da abertura, e lançou ao duque uma rápida mirada, antes de baixar de novo as pálpebras.

Quer me dizer alguma coisa agora, padre? — perguntou Godofredo, dando um pontapé no monge, só para se assegurar de que ele estava acordado.

Nada que possa ajudá-lo — respondeu Anselmo com um fio de voz, a boca empastada e a garganta seca.

Godofredo o encarou com desprezo.

Você me envergonha. Um homem que consagrou a vida a Deus recusa-se a servi-Lo exatamente diante da cidade onde o Senhor morreu — comentou.

... e também ressuscitou — conseguiu dizer o monge.

Sim, mas você não vai ressuscitar, a não ser no inferno — replicou o duque. — Hoje, padre, chegou para todos nós o momen­to de pedir perdão a Deus pelos nossos pecados. Todos faremos isso com uma procissão em torno da Cidade Santa. Mas você o fará aqui dentro, e desta vez os meus homens o ajudarão. Hoje à noite, quan­do eu voltar, quero que me diga tudo. Mas tudo mesmo.

Godofredo saiu logo da tenda, seguido pelos dois soldados.

Batam nele o dia inteiro, a intervalos regulares. Mas não o matem. Quero encontrá-lo vivo, e não só em condições de falar, mas também ansioso por isso — disse a eles, antes de se encaminhar para o norte junto com seu estado-maior, que o aguardava pouco adiante.

 

Ricardo não via o exército enfileirado desde o dia do primeiro assal­to às muralhas. Um dia que já parecia distante no tempo e nebuloso na lembrança. Saiu bem cedo do acampamento fronteiro ao monte Sião, ao lado do conde Raimundo. Atrás deles, a longa coluna de guerreiros provençais, todos descalços, sem elmo e com o capuz da cota de malha descido sobre os ombros. Ricardo pensou que rara­mente, e nunca durante o dia, o conde havia exposto sua careca à luz do sol, e se perguntou como ele resistiria.

O vento matinal fazia ondularem os estandartes do condado de Toulouse e dos feudatários de nível menor. Entre eles, despontavam também as imagens dos santos suspensas em longos mastros, que os padres haviam tomado o cuidado de levar consigo, as cruzes de dife­rentes tamanhos e dos mais variados revestimentos e, por fim, aque­la que Raimundo considerava a Lança Sagrada, conservada num estojo transportado por quatro servos.

Avançando rumo ao norte, a coluna transpôs o acampamento dos lorenos e depois o dos normandos meridionais, recolhendo-lhes os contingentes à medida que passava. Depois se deteve no vale de Refraim, onde encontrou as fileiras dos normandos da Inglaterra e da Normandia. Os eclesiásticos de todos os exércitos, em grande parte vestidos de branco, confluíram numa só coluna, que avançou ainda mais para o norte, a fim de se colocar à frente do cortejo. Também ali estava Pedro de Amiens, o Eremita, que apenas poucos dias antes havia sido agarrado pelos cabelos e trazido ao acampamento após uma tentativa de deserção. Ricardo sorriu, lembrando que ele havia sido o primeiro e mais extremado adepto da cruzada...

Dezenas, centenas de tonsuras começavam a brilhar sob os pri­meiros raios do sol, buscando proteção sob as compridas sombras das muitas cruzes, relíquias e imagens de santos que se elevavam acima dos homens.

Emanuel se aproximou de Ricardo.

Não vejo Anselmo nem mesmo no cortejo dos padres e dos bispos. Estou preocupado — disse.

Eu sei. Esta noite, depois da procissão, vou investigar. Seja como for, não creio que eles queiram se privar de homens válidos às vésperas do ataque. No máximo, esperarão a conquista da cidade para forçar a mão — respondeu o normando, voltando logo depois para o lado de seu comandante.

"Isso se conseguirmos conquistá-la...", pensou Emanuel, fitando as muralhas. Nos espaldões, os defensores se apinhavam em plena formação de batalha; as lanças deles, os arcos, os elmos e os turban­tes afloravam entre um merlão e outro. Logo atrás entreviam-se os cimos dos minaretes, mas o bizantino sabia que justamente ali fica­va o Calvário, com a igreja do Santo Sepulcro, o local onde todos aqueles que se haviam feito cruzados almejavam entrar.

O grego se perguntou o que os muçulmanos estariam pensando daquela estranha parada. Viam os assediantes que se enfileiravam diante das muralhas, mas não atacavam, traziam as armas, mas não os elmos, as armaduras mas não as botas, haviam construído as máqui­nas mas não as usavam, faziam-se conduzir pelos padres e não pelos comandantes.

A voz dos eclesiásticos deu o sinal de partida. Os padres entoa­ram cânticos e salmos e se puseram a caminho, seguidos de perto por todos os príncipes, de primeiro e de segundo escalões. Depois foi a vez da tropa, que se desdobrou como uma serpente, sem solução de continuidade entre os contingentes. Por fim, encaminharam-se tam­bém os peregrinos, uma massa desvalida de velhos, mulheres e crian­ças, os que haviam sobrevivido ou não tinham querido desertar.

Ricardo se colocou imediatamente atrás dos príncipes, à frente da coluna dos simples guerreiros. Assumiu a incumbência com o ceticismo de quem não acreditava que aquilo pudesse adiantar algu­ma coisa, esperando perceber a mesma atitude entre os compa­nheiros. Em vez disso, porém, desde quando começou a caminhar não ouviu ninguém rindo, ou mesmo apenas conversando, nem entre os príncipes que o precediam nem na tropa que o acompanhava.

O silêncio só era quebrado pelo ruído dos passos dos penitentes e pelo salmodiar dos padres, que os outros ecoavam.

Todos pareciam levar o assunto muito a sério. Mais uma vez, Ricardo não conseguia compreender aquela estranha mistura de devoção e falta de escrúpulos, de religiosidade e ferocidade, que carac­terizava os homens aos quais se unira. Seria fácil explicar isso como pura hipocrisia, mas ele sabia que não era assim. Tinha consciência de que naqueles homens conviviam duas naturezas, aparentemente anta gônicas, mas, na realidade, conciliáveis e até complementares, porque se referiam a duas esferas diferentes, a terrena e a celeste.

A esfera celeste sempre acabava justificando e desculpando gran­de parte dos atos da terrena. Um verdadeiro paradoxo, se fosse ver­dade que havia sido criada para tornar melhores os homens... Um dos dois soldados puxou de um saco um dos bastões com pregos que Anselmo tinha visto fugazmente três dias antes. O guerreiro tinha o rosto muito vermelho, marcado pelo sol. Uma careta de escárnio lhe sulcou a cara queimada, enquanto ele passava o outro bastão ao companheiro, que experimentou a eficácia dos pregos passando-os sobre as pontas dos dedos endurecidas pelo calor, pela poeira e pelo trabalho pesado.

Depois, dirigiu a mesma careta ao monge. Anselmo a distinguiu claramente na penumbra da tenda; em seguida, viu o braço do sol­dado se levantar e o bastão descer.

Em cima dele.

Que alegria quando me disseram:

Iremos à casa do Senhor!

E agora nossos pés se detêm

às tuas portas, ó Jerusalém!

Jerusalém foi construída

como cidade compacta.

Para lá sobem juntas as tribos,

as tribos do Senhor,

segundo a lei de Israel,

para louvar o nome do Senhor.

Lá estão postos os assentos do juízo,

os assentos da casa de Davi.

Implorai paz para Jerusalém:

que haja paz para aqueles que te amam,

que haja paz sobre tuas muralhas,

segurança nos teus baluartes.

Para meus irmãos e amigos

eu direi: sobre ti esteja a paz!

Para a casa do Senhor nosso Deus,

pedirei: para ti, o bem.

 

Os salmos entoados pelos eclesiásticos ditavam o ritmo da pro­cissão. Às vezes, contudo, alguém se detinha para contemplar os lugares sacros junto dos quais passava, ou rompia o silêncio da tropa apontando-os a um companheiro. Nenhum dos cruzados jamais os vira em sua vida, antes de empreender o assédio; mas, logo após a chegada do exército, os cristãos dos arredores e os expulsos de Jerusalém tinham secundado de bom grado a curiosidade dos pere­grinos, servindo-lhes de guias ao redor das muralhas; mediante pagamento, naturalmente, porque afinal precisavam sobreviver.

Ricardo viu um soldado de Raimundo cair de joelhos e rezar diante daquele que outro indicou como o túmulo de santo Estêvão, o primeiro mártir cristão. Muitos outros o imitaram. Depois, pros- seguindo rumo a leste, a tropa passou ao lado do túmulo da Virgem. Ricardo escutou mil vozes se levantarem ao seu redor, recitando a Ave-Maria, numa ladainha dissonante que cada um iniciava por sua própria conta, dependendo do instante em que entrava em contato visual com o monumento, encimado pelos restos de outra edificação mais recente e situado abaixo do nível da estrada. Não pôde evitar pensar em Rebeca, que considerava Maria uma simples mulher, à qual só posteriormente fora atribuída uma natureza incomum.

Para o normando, tudo era novo. Ele não se incluía entre os que, nos dias anteriores, haviam se informado sobre a localização dos vestígios da tradição cristã; por isso, eram os próprios companheiros que lhe serviam de guias, comentando de vez em quando aquilo que encontravam pelo caminho. Após entrarem no vale de Josafá, a nor­deste da cidade, alguns apontaram aquela que definiram como a gruta sagrada, onde Cristo havia ensinado o Pai-Nosso aos discípu­los e previsto a destruição de Jerusalém. Rebeca, imaginou Ricardo, sustentaria que essa previsão era um claro indício de que os Evange­lhos tinham sido escritos depois da destruição da cidade e, portanto, bem depois da morte de Cristo.

Só então lhe ocorreu que já ultrapassara, e desde algum tempo antes, o setor das muralhas além do qual devia viver Sara. Estranho, refletiu, que até aquele momento tivesse pensado em Rebeca, e não nela. No entanto, alimentara a esperança de que aquele árabe, Jamal, informasse Sara de sua presença entre os cruzados e de que a jovem estivesse ansiosa pela sua chegada.

Pueril. Realmente pueril. E altamente improvável, pensou.

A dor no ombro direito era lancinante. Levantando a mão esquerda, Anselmo tentou aliviar as fisgadas com a pressão das pontas dos dedos. Não conseguiu, mas continuou massageando a parte machu­cada. O verdugo havia usado o bastão com uma fração modesta de sua força. Mesmo assim, o contato com os pregos havia sido devas­tador. O monge sentiu o sangue quente lhe escoar ao longo do braço, sobre o hábito, que logo se tingiu de escuro.

Agora, cabia ao outro soldado. O mesmo esgar zombeteiro. A mesma cara queimada de sol. Ou talvez fosse o primeiro homem que se preparava para bater pela segunda vez.

Instintivamente, Anselmo retraiu o ombro esquerdo. Era ali que esperava o segundo ataque. Este, porém, desabou novamente sobre o ombro direito.

Por um instante, os pregos ficaram espetados em seus dedos. Mas só por um instante. O soldado puxou de volta o bastão, e os pregos rasgaram a mão do monge, antes de se soltarem da carne.

 

Faz com que lhes venha, ó Senhor, o rei deles, filho de Davi; quando vires, ó Senhor, que ele pode reinar sobre Israel, teu servo. Dá-lhe forças para abater quem governa injustamente, para libertar Jerusalém das nações que a levam à destruição. As nações pagãs servirão sob teu jugo, e ele glorificará o Senhor em um lugar visível de toda a terra, e libertará Israel tornando-o santo como foi: dos confins do mundo virão nações para ver a sua glória, para ver a glória do Senhor com a qual Deus o glorificou. E será um rei justo, temeroso de Deus, e não haverá injustiça em seus dias, porque todos serão santos e o rei deles, o ungido do Senhor.

 

Oliveiras de tronco tortuoso, que ninguém ousara tocar, apesar da desesperada necessidade de madeira. Eram as do horto de Getsêmani, e pareciam tão antigas que, provavelmente, haviam assistido à noite em que Jesus aceitara sofrer e morrer na cruz, para carregar sobre seus ombros os pecados do mundo.

Pecados que o mundo continua cometendo, refletiu Ricardo, e com a mesma displicência com a qual os cometia na época daquele suposto sacrifício. Talvez seja essa, pensou ainda, a prova mais evi­dente de que aquela morte na cruz não tivera, para a humanidade, o efeito salvador que os cristãos pretendiam lhe atribuir. Rebeca diria... sim, ela diria justamente isso.

A estrada era agora em aclive. A procissão se dirigia ao monte das Oliveiras, o lugar onde acontecera a ascensão do Senhor. Havia até quem esperasse ver alguma coisa, no topo do monte: um sinal da presença divina no céu, talvez uma aparição que encorajasse os sol­dados e os exortasse ao último e supremo esforço.

Do cume, porém, só se avistava o panorama: um amplo e pro­fundo cenário que a ocidente, para além das muralhas de Jerusalém, apresentava minaretes e cúpulas de mesquitas, e a oriente a cidade de Jerico, o rio Jordão e o mar Morto. O exército ocupava todo o alti­plano e grande parte das encostas quando Arnulfo de Rohes, de pé sobre uma pedra no ponto mais alto do monte e circundado por bis­pos e príncipes em meio a estandartes e relíquias, começou a falar.

Ricardo havia permanecido numa das vertentes, ultrapassado na subida pelo entusiasmo dos companheiros. De vez em quando cap­tava algumas palavras, suficientes, contudo, para compreender o sentido das frases. Arnulfo falava de determinação e zelo, de convic­ção e fé, de confiança no auxílio do Senhor. Curioso, o normando abriu caminho entre os ouvintes e chegou mais perto.

Temos padecido, combatido os infiéis e sofrido longamente para alcançar esta meta. — Arnulfo apontava Jerusalém, para a qual todos se voltaram. — Mas por acaso o Senhor não padeceu, comba­teu o demônio e sofreu longamente, antes de cumprir seu extremo sacrifício justamente ali, em Jerusalém? Quem somos nós para pre­tender sofrer menos? Nós, Seus humildes servos, vindos até aqui para fazer Sua vontade, para recuperar Sua herança, hoje espezinha­da pelos ímpios! Aí está ela, a digna compensação por todas as fadi­gas de vocês; aí estão eles, os lugares onde Deus perdoará todos os seus pecados e abençoará todas as suas vitórias!

Uma ovação geral se levantou sobre o monte. Os homens caíram de joelhos e contemplaram a cidade que significava a redenção deles.

Lê-se no Apocalipse de João: "O anjo me transportou em espí­rito até um grande e alto monte, e me mostrou a cidade santa, Jerusalém, que descia do céu, de Deus, resplandecente da glória de Deus!" — gritou Arnulfo, apontando Jerusalém.

Agora só existia a esfera celeste, pensou Ricardo.

 

Anselmo levou à boca a mão lacerada, para sugar o sangue. Era um modo de se dessedentar, além de uma tentativa de aliviar a dor. Tentativa, apenas. Não havia como atenuá-la, por enquanto. E ele também sabia que, quando conseguisse se habituar, os homens des­feririam outro golpe.

Pensou em Jesus Cristo, em suas trinta e nove chibatadas. Perguntou-se se teria forças para suportar outras tantas bordoadas. Perguntou-se se Ele lhe daria forças para suportá-las.

E se perguntou se Ele o estaria considerando entre os bons ou entre os maus. Entre os bons, porque defendia seus amigos; ou entre os maus, porque agia contra os interesses daqueles que O represen­tavam na Terra.

Desde o momento em que aquele memorial havia aparecido, uma sensação o acompanhara: a Igreja não tinha respeitado a men­sagem de Jesus. E não era necessário recorrer ao memorial. Bastava ler os Evangelhos para compreender o quanto aqueles conceitos de fraternidade universal e de reino dos céus estavam distantes da ati­tude dos que se arrogavam o direito de promovê-los. Semelhante contradição, embora óbvia, jamais lhe passara pela cabeça, antes que as palavras de Rebeca insinuassem a dúvida em seu espírito. Mas aquela mulher contestava o cristianismo como tal, e ele, só a Igreja e aquilo que esta impelia os fiéis a fazerem.

Viu o soldado erguer o bastão e se perguntou onde ele bateria desta vez.

Fechou os olhos. Não conseguia mais encarar de frente a dor.

Sentiu o impacto no ombro esquerdo.

Não queria dar aos seus carrascos a satisfação de ouvi-lo berrar, mas não conseguiu evitá-lo. Gritou, no mesmo momento em que ouviu um poderoso clamor se levantar do outro lado da cidade.

— Muitas vezes — prosseguiu Arnulfo, depois que a ovação se ate­nuou — prejudicamos nossos desígnios por causa da discórdia. Os príncipes não deram o bom exemplo e, assim, entre os soldados tam­bém houve confrontos por questões mesquinhas, brotaram rancores, consumaram-se vinganças que nos afastaram do sagrado fim ao qual nosso empreendimento deve tender. Não esqueçam por que estamos aqui! E, sobretudo, por Quem estamos aqui! Esqueçam as ofensas, perdoem a quem vocês acham que os prejudicou, ajudem os mais fracos, deixem-se inspirar pelo amor fraterno que deveria guiar um exército que compartilhou tantos sofrimentos e que age por amor a Cristo! Só então o Senhor verá que somos dignos de Sua glória e nos concederá a vitória!

Arnulfo ainda estava falando quando Ricardo viu Raimundo se locomover e ir ao encontro de Tancredo, a quem abraçou teatral­mente. O gesto de reconciliação do conde provocou uma nova ovação e foi seguido por uma ciranda de emulações. Todos os príncipes fizeram o mesmo, e em torno de Ricardo os homens apertavam-se as mãos, abraçavam-se e choravam de comoção. Muitos circulavam em meio à multidão à procura de alguém com quem tinham tido diver­gências; quando o encontravam, pediam-lhe perdão, que o outro concedia de bom grado, suplicando ao interlocutor que o perdoasse também. Alguns se comprometeram a dar o futuro butim em esmo­la, enquanto quem já possuía um pedaço de terra apregoava a inten­ção de doar uma parte desta aos mais desvalidos.

Depois de se reconciliarem, os nobres também proclamaram seus bons propósitos: Godofredo de Lorena fez ouvir sua voz poten­te para declarar que destinaria aos pobres a metade da renda de qualquer coisa que obtivesse no Oriente. Acrescentou, ainda, que abandonaria sua soberba e manteria uma atitude mais humilde, compreensiva e conciliadora.

 

Anselmo estava com as costas devastadas pelas feridas causadas pelos pregos, e os ossos doloridos pelas pancadas do bastão. Depois do quinto golpe, que lhe perfurara as coxas, enroscara-se sobre si mesmo, de bruços, oferecendo aos algozes sua parte posterior. Parecia rezar, e de vez em quando realmente o fazia, quando a dor pelo último golpe recebido se atenuava, restituindo-lhe um pouco de lucidez. Mas justamente então vinha uma nova bastonada e sua mente não mais lhe permitia formular pensamentos coerentes.

O enésimo golpe o surpreendeu sobre os calcanhares nus, que se rasgaram sob o choque dos pregos. Encolheu-se de lado.

Pediu a Deus que o fizesse morrer logo. De medo, talvez. Mas sabia que Ele não lhe concederia isso.

Seria fácil demais. E ele tinha muito a expiar.

E, também, não tinha muita certeza de que Deus estava do seu lado.

Os infiéis pareciam enlouquecidos. Marchavam em torno da cidade desde a madrugada, descalços, e cantavam, exibiam suas cruzes ridí­culas, berravam de alegria a cada proclamação de seus sacerdotes. O governador Iftikhar al-Dawla havia seguido o percurso deles desde o começo da procissão, ladeado pelo seu estado-maior, tentando compreender qual era o objetivo daquilo. Depois, quando os vira subir ao monte das Oliveiras, voltara aos seus assuntos, consideran­do que, ao menos naquele dia, o inimigo não tinha intenção de assal­tar a cidade.

Agora, a tensão suscitada inicialmente pelos estranhos movimentos dos francos se atenuara, e alguns emires até riam do que esta­vam vendo.

Só lhes resta essa palhaçada, para se considerarem um exérci­to — disse um dos comandantes que contemplavam o espetáculo do alto dos espaldões, junto com Jamal.

Essa palhaçada, como você a chama — interveio energicamen­te este último —, serve para eles se fortalecerem. E justamente esse tipo de coisa que os torna perigosos...

Perigosos? Aquela mixórdia de desvalidos? — Fez questão de comentar outro emir. — Se não foram capazes de entrar na cidade quando estavam frescos, o que podem fazer agora que estão reduzi­dos, maltratados por semanas de calor, de falta d'água e de víveres?

Duvido que o ataque deles, se por acaso acontecer, seja mais amea­çador do que esse passeio que estão fazendo hoje... Afinal, você os viu?

Vi muito bem. E até de perto, muito mais do que você — replicou Jamal, irritado pela superficialidade daquele comandante, o qual iria inevitavelmente transmiti-la aos seus subordinados. — E lhe asseguro que é justamente essa condição desesperadora que os torna guerreiros temíveis: extraem força do sofrimento, convencendo-se assim de emular seu deus, que viveu sua Paixão aqui em Jerusalém.

Os outros o olharam sem compreender. Mas, a essa altura, a opi­nião deles já se espalhara pela tropa. Um soldado içou até os espaldões uma cruz grosseira, da altura de um homem, e outros dois agitaram-na acima das ameias, a fim de que os cristãos a vissem. Obtida a atenção dos adversários, içaram um deles sobre o artefato, e este se agarrou ao braço horizontal. Depois começou a gritar imi­tando o grasnido de um ganso, alternando-o com o canto do galo, enquanto, ao redor, os companheiros riam e chamavam aos berros os infiéis para que viessem "salvar seu deus".

Instintivamente, Jamal se encaminhou para eles, a fim de fazê-los parar, mas outro emir o deteve:

Deixe-os. Os homens têm o direito de brincar, de vez em quando. Ridicularizar o inimigo diminui a tensão e torna mais con­fiante a tropa...

Mas aumenta nos infiéis o desejo de vingança. E, se consegui­rem entrar, eles nos farão pagar também por essa afronta... — obser­vou Jamal, aborrecido.

Entrar? Aqueles paspalhões? Se Alá os deixar fazer isso, será apenas para nos permitir massacrá-los à vontade, no corpo a corpo... — comentou seu interlocutor.

Ou para castigar nossa soberba — replicou Jamal. Mas suas palavras se perderam no alarido que reinava sobre os espaldões. Agora já não havia soldado que não se divertisse provocando os assediantes, escarnecendo da aglomeração no monte das Oliveiras com insultos de todo tipo e ridicularizando aquele ritual com gestos teatrais e obscenos. Através do vale, o eco de suas gargalhadas che­gava aos infiéis.

Jamal balançou a cabeça, desalentado. Procurou Firuz com o olhar; sentiu-se confortado ao ver, pelo menos nele, a tensão e a con­centração que seriam aconselháveis numa guarnição prestes a enfrentar o último e desesperado esforço de um bando de assedian­tes sem mais nada a perder.

 

A indignação substituiu a exaltação. Arnulfo de Rohes parou de falar, visivelmente perturbado pelo estardalhaço proveniente dos espaldões. Os soldados observaram consternados os muçulmanos brincando com a cruz e escutaram, nervosos, as risadas e os gracejos provenientes das muralhas.

Os rostos, até pouco antes em contemplação extasiada, assumi­ram expressões ferozes; as espadas pendentes dos cintos foram desembainhadas, as bocas que entoavam salmos prorromperam em ameaças e insultos dirigidos aos defensores. Ricardo permaneceu em silêncio, observando o que acontecia entre bispos e príncipes. Viu-os conversarem animadamente entre si, e em seguida alguém impeliu para a frente um velho com espessa barba branca.

Pedro de Amiens.

Queriam que ele falasse. Embora sua tentativa de fuga o tivesse desacreditado pesadamente aos olhos da tropa, os bispos ainda espe­ravam que sua proverbial eloqüência dirigisse a raiva dos soldados para reações mais construtivas do que as simples escaramuças verbais.

E Pedro não os decepcionou. Quando falou, depois que os prín­cipes chamaram a atenção dos homens batendo com as espadas nos escudos, ficou claro por que ele havia conseguido mobilizar uma massa enorme de pessoas na Europa, três anos antes, mesmo sendo um obscuro padre de província.

Vocês estão ouvindo as ameaças e as blasfêmias dos inimigos do verdadeiro Deus! — gritou. — Portanto, jurem defender Jesus Cristo, prisioneiro e crucificado uma segunda vez pelos infiéis. Sim, eu juro sobre a piedade de vocês e sobre suas armas: o reinado dos ímpios chegou ao fim!

Suas primeiras palavras ainda foram interrompidas e abafadas por alguns protestos. Depois, fez-se silêncio.

O exército do Senhor só precisa se mostrar — prosseguiu —e toda aquela massa inútil de infiéis se dissipará como sombra. Hoje eles ainda estão cheios de orgulho e insolência, mas amanhã estarão gelados de terror e cairão imóveis diante de vocês, como aqueles guardas do Sepulcro que sentiram as armas lhes fugirem das mãos e tombaram mortos de pavor, na hora em que um terremoto anun­ciou a presença de um Deus ressuscitado. Mais alguns momentos e essas muralhas que foram por demasiado tempo o refúgio dos infiéis serão a morada dos cristãos; essas mesquitas que se erguem sobre as ruínas cristãs servirão de templos ao verdadeiro Deus, e Jerusalém só escutará os louvores ao Senhor!

O silêncio que se seguiu à conclusão de seu discurso fez chega­rem novamente aos ouvidos dos cruzados as zombarias provenientes dos espaldões. Mas foi só por um instante. A ovação subseqüente abafou qualquer som ou rumor circundante; em meio aos gritos de triunfo, os cristãos desceram o monte, a fim de se dirigirem para o sul, rumo ao vale do Cedron, completando, assim, o contorno das muralhas.

 

Agora já não havia regularidade nas agressões dos dois verdugos. Podiam ficar sem espancá-lo durante um período que a Anselmo até parecia longo; quando ele tentava finalmente relaxar, eis que vinha um novo golpe. Então esperava contar com um intervalo igualmen­te longo para aliviar a tensão, mas o golpe seguinte chegava imedia­tamente depois, dilacerando-o, arrancando-lhe a pele, fundindo à carne viva o tecido do hábito.

Anselmo chorava, perguntando-se se caíra em tais apuros para demonstrar alguma coisa a si mesmo, a Deus ou a Inês, ou então por já se sentir inimigo dos outros prelados, os quais, traindo a mensa­gem de Cristo, haviam-no traído também.

Não conseguia achar uma resposta. Não queria achar uma resposta. Temia encontrar uma justificativa para se salvar e trair os amigos.

Soluçava. E quanto mais soluçava, mais os dois esbirros de Godofredo riam. E batiam.

Grande é o Senhor e digno de todo louvor, na cidade do nosso Deus. Seu santo monte, altura estupenda, é a alegria de toda a terra. O monte Sião, morada divina, é a cidade do grande soberano. Deus, em seus baluartes, mostrou-se fortaleza inexpugnável. Eis que os reis se aliaram e avançaram juntos, mas então viram: e, atônitos, tomados de pânico, logo fugiram.

Ainda salmos. Mas a essa altura o passo dos cruzados era veloz, graças também à estrada em declive. Todos estavam ansiosos por completar o contorno, voltar aos seus acampamentos, lançar-se ao trabalho e terminar as máquinas no menor prazo possível. Agora, porém, percorriam o setor menos familiar. Somente quem havia participado das patrulhas de reconhecimento já tinha visto a parte oriental da cidade, que, por causa das íngremes ladeiras abaixo das muralhas, os comandantes haviam excluído do bloqueio parcial a que submetiam o perímetro urbano. Como muitos, portanto, Ricardo via o vale do Cedron pela primeira vez, e, como os outros, ficou impressionado pela majestade das escarpas que o delimitavam e pela escura silhueta das muralhas que se recortavam no alto contra o sol que começava a desaparecer atrás dos merlões.

Enquanto vagava com o olhar sobre o imponente altiplano que, até mil anos antes, havia sido a esplanada do Templo, foi atraído pelas palavras de um companheiro, que lhe indicou o túmulo dito de são Tiago. Deslocou o olhar para a esquerda, na direção do oriente, e ao pé da escarpa viu uma série de pequenos templos de feituras diferentes, encastoados na rocha. Perguntou ao soldado qual era o sepulcro, e este lhe apontou uma espécie de caverna quadrada, em cujo acesso surgiam duas colunas encimadas por uma arquitrave.

Gostaria de conferir aquilo com... Rebeca, pensou, e ouvir a opi­nião dela a respeito. Tentou imaginar o que a moça lhe diria: um santo que a Igreja havia transformado, de irmão e sucessor de Jesus, em um de seus discípulos... E só porque, talvez, ele ficara famoso demais, em sua época, para que se pudesse cancelá-lo completamen­te da história do cristianismo!

Enquanto isso, já tinham chegado à piscina de Siloé. A partir daquele ponto, quase todo o exército conhecia a área: de fato, embo­ra o setor meridional tivesse ficado fora do bloqueio, eram poucos os que não tinham tentado, pelo menos uma vez, obter água da fonte.

Ainda havia cadáveres em torno da piscina. Estavam ali havia muitos dias, putrefatos e decompostos, como prova do risco que se corria ao escolher aquela solução para matar a sede, ou mesmo para especular com a água que se conseguia recolher.

Instintivamente, Ricardo se retraiu para leste, na direção das encostas do monte do Escândalo. Outros, ao contrário, quiseram aproveitar a confusão do cortejo e a distração dos defensores no alto das muralhas, os quais ainda riam às gargalhadas. Ou talvez ainda se encontrassem no estado de exaltação que havia impregnado a tropa no monte das Oliveiras e se sentissem invulneráveis, ou apenas favo­recidos pelo apoio do Senhor.

Assim, houve quem descesse à piscina, primeiro com cautela e depois com maior decisão. E até bebeu. Tal exemplo levou outros à imitação, e em breve eram muitos os cruzados apinhados em torno da fonte.

Foi então que começaram a chover flechas. Sem que se interrom­pessem as risadas nos espaldões.

E novos cadáveres se acrescentaram aos já putrefatos e decompostos.

 

— Hoje, eu me reconciliei com Deus, padre. E você?

Anselmo mantinha havia muito tempo a fronte apoiada no solo. Tinha recebido os últimos golpes com resignação, quase como se aquelas fisgadas atrozes fizessem parte do seu corpo: uma doença como outras que muitos sofrem, como as dores nos ossos, no estô­mago, na cabeça.

Pareceu-lhe estranho que um dos algozes lhe dirigisse a palavra. Ao longo de todo o dia, não tinham feito isso em momento algum.

Virou-se; seus olhos foram fustigados pela luz que penetrava através da fissura de entrada da tenda.

As silhuetas eram três.

Ele demorou um pouco a compreender que aquele no centro era Godofredo de Lorena. Ligou a figura imponente à voz ouvida pouco antes, e disse com um fio de voz:

Acredite... Não sei. Não sei mesmo...

Que pena. Se você tem dúvidas, significa que nem sequer ten­tou. É o único, hoje, que não fez isso.

 

Rebeca demorou um pouco a reconhecer o que restava do padre com quem havia travado acaloradas discussões. Tinham-no abando­nado a curta distância dela, no recinto dos prisioneiros, com um pequeno odre de água ao lado. A moça só compreendeu que ele estava vivo porque seu corpanzil se movia de maneira rítmica, escandindo uma respiração ofegante. Era a única coisa, afora o hábito ensangüentado, que o diferenciava dos dois cadáveres de pri­sioneiros árabes ao lado dos quais tinha sido colocado e que nin­guém se preocupara em remover, como, aliás, em qualquer outra parte do acampamento cruzado.

Aproximou-se. O monge jazia de lado e um débil lamento acom­panhava sua respiração. Ela viu o odre e sentiu-se tentada a beber, mas depois decidiu usar a água para socorrer o pobrezinho. Molhou uma das mãos e passou-a delicadamente sobre o rosto de Anselmo, a única parte do corpo dele que não tinha ferimentos. Também com delicadeza, levantou-lhe a cabeça e encostou o odre à sua boca, per­mitindo que ele bebesse. Então, com extremo cuidado, começou a livrá-lo das roupas, descolando lentamente o linho que se grudara aos ferimentos. Por fim, usou o hábito, imundo, manchado de san­gue seco e rasgado em vários pontos, para envolver o ferido, protegendo-o do contato com o solo e do relento.

— Eu... não falei... garanto. Eles ainda não sabem quem está envolvido... — conseguiu dizer Anselmo, assim que foi capaz de arti­cular alguma palavra.

Rebeca ficou profundamente surpresa.

Por que fez isso? Você é um homem de fé, não tinha obriga­ção de resistir para defender uma coisa que a desmente...

Então... digamos que fiz por mim, mais do que por vocês... — replicou ele com um fio de voz, antes de fechar os olhos e adormecer.

Emanuel foi o primeiro à saber de Anselmo. Na volta da procissão penitencial, Ricardo sentira vontade de ver Rebeca, e teria preferido ir ele mesmo levar água para ela. Mas o conde o chamara para pla­nejar o último esforço, e só lhe restara enviar o grego para ver a pri­sioneira.

Parece que ele não falou — disse Emanuel, quando, no início da manhã, encontrou Ricardo. — Mas ignoramos o quanto Godofredo sabe, até agora.

Ontem à noite, a assembléia geral dos chefes e dos bispos deu a si mesma um ultimato — explicou Ricardo. — Até amanhã as máquinas deverão estar prontas. O ataque está previsto, improrrogavelmente, para depois de amanhã. Duvido que Godofredo tenha dito alguma coisa a Raimundo; provavelmente quer ser ele mesmo a desencavar o manuscrito. E, se ainda não sabem de nada, não creio que empregarão seus esforços para investigar nestes dois dias. Deve­mos fazer o máximo para preparar o ataque, e qualquer outra coisa está subordinada a esse objetivo.

Tem certeza de que estamos fazendo a coisa certa? Quer dizer... e se estivéssemos defendendo uma causa perdida, ou até mesmo falsa?

Em dúvida, eu a defendo — especificou Ricardo. — E a vanta­gem de não acreditar mais em nada, exceto em alguns seres huma­nos. E eu acredito naquela mulher. O que devo fazer agora é tirar daqui o memorial, antes do ataque. Assim, se por acaso eu tombar na batalha, ele não ficará nas mãos do conde e algum de vocês pode­rá ir recuperá-lo. Procurarei pensar num esconderijo mais seguro...

Eu vou com você?

Não. A estratégia do assalto prevê que o esforço para o arrombamento seja concentrado diante do setor norte-oriental da cidade — respondeu o normando. — Godofredo de Lorena se encarregará disso com sua torre, junto com Roberto de Flandres e Roberto da Normandia. Então o duque, para integrar suas forças, requisitou homens de outros contingentes, e Raimundo de Toulouse prefere manter consigo os soldados de militância mais antiga. Por isso você será enquadrado com os lorenos no centro das fileiras, e dificilmente teremos ainda oportunidade de nos ver. Você deve se apresentar ao estado-maior do duque esta manhã. Quanto ao resto, os provençais do conde executarão com a outra torre um ataque diversivo no sul, contra a Porta de Sião; a terceira torre, a menor, será confiada ao príncipe Tancredo, que manterá constantemente sob ameaça o ângu­lo norte-ocidental da cidade, o da Torre de Davi, a fim de que os defensores não levem muitos homens e máquinas para o outro lado.

Somos suficientemente numerosos para sustentar adequada­mente duas ações diversivas, além do ataque principal? — perguntou Emanuel, perplexo.

Calculou-se que restaram treze mil homens hábeis em armas, entre os quais mil e duzentos cavaleiros. Seja como for, não temos escolha. Os egípcios sobrepujariam facilmente uma tentativa de arrombamento concentrada em um único setor... — explicou o nor­mando.

E o que eu faço para saber onde você esconderá o manuscrito?

Espero descobrir um modo de informar todos vocês... Agora vá, e boa sorte. Espero revê-lo ainda, e dentro de Jerusalém — res­pondeu secamente Ricardo, que sentia pesar sobre si a pressão das múltiplas frentes nas quais estava empenhado.

Eu também espero — respondeu por sua vez Emanuel, após alguma hesitação. — Não poderia desejar um companheiro de armas mais digno do que você... — acrescentou, vendo-o se afastar.

Não percebeu se Ricardo o escutara.

Aquele dia não foi prazeroso para ninguém. E tampouco o seguinte. Mas, para Emanuel, foi menos prazeroso do que para qualquer outro. Ser agregado ao contingente loreno se revelou uma punição. Entre as tropas de Raimundo, o bizantino havia encontrado coloca­ção própria, e, embora os mais intolerantes mal suportassem sua presença, grande parte dos soldados agora o tratava como um deles.

Mas os germânicos, com os quais nunca havia combatido, mani­festavam a seu respeito, na melhor das hipóteses, um desprezo mudo. Emanuel era sempre o último a quem deixavam um gole d'água, embora fosse um dos trabalhadores mais incansáveis. Era constantemente mantido na ignorância das ordens e das disposições, e obrigado a intuir o que havia a fazer ou o que se esperava dele. Quando lhe dirigiam a palavra, era só para lhe passar as tarefas mais desagradáveis e estafantes, as mesmas que pesavam sobre os poucos prisioneiros muçulmanos ainda vivos.

Quando o encarregaram da distribuição de água, teve um impul­so de raiva, mas também o bom-senso de reprimi-lo. Forneceu-a a todos os que se ocupavam com ele do acabamento da torre, deixan­do para beber somente no fim, para não indispor os companheiros. Chegada a vez do último, só restara no odre muito pouca água, mas suficiente para duas pessoas.

Já bebeu? — perguntou-lhe o soldado a quem ele estendia o recipiente.

Ainda não.

O outro se atracou com o odre e consumiu o que restava.

— Sinto muito. Tinha ficado só um pouquinho, no fundo... — disse, restituindo-lhe o odre, sem esconder um sorriso maligno.

Em vez de reagir à provocação, Emanuel se perguntou se já não havia feito o suficiente, em sua carreira e naquela campanha especí­fica, para expiar o erro da juventude. Aos olhos dos companheiros, seu empenho parecia não bastar nunca. E aos olhos de Deus? Também Ele continuava a encará-lo com desprezo?

O que deveria fazer ainda?

Não teve tempo de refletir mais, nem de lamentar de novo sua própria condição. Trabalhou inclusive à noite, em turnos apertadíssimos que só permitiam um repouso fugaz. Ao fim do segundo dia, a torre e o aríete estavam prontos. Alguns colegas tinham morrido durante a construção, no extremo sacrifício de cumprir seu dever, e isso induziu Emanuel a se envergonhar por sua autocomiseração.

Pouco antes de cair a noite, chegaram as mulheres com as carro­ças nas quais haviam empilhado as proteções para a torre: dúzias de couros de boi e de camelo, costurados uns aos outros depois da últi­ma matança dos poucos animais de carga que restavam. Se as coisas dessem errado, pensou Emanuel, todos fugiriam deixando para trás as carroças e seus haveres.

Junto com os companheiros, o bizantino se encarapitou nos andaimes da torre e pregou nas laterais os couros recém-chegados, dos quais dependia a resistência do artefato às agressões do fogo ini­migo. Em seguida, os homens esvaziaram a bexiga nos recipientes predispostos para recolher a urina que, misturada com vinagre, seria utilizada para tornar os couros refratários às chamas.

Havia escurecido quase totalmente quando o duque chegou para inspecionar o trabalho já realizado. Godofredo experimentou a soli­dez da plataforma e das traves de sustentação; depois subiu ao pri­meiro patamar e aos seguintes, conferindo o panorama que se obtinha das respectivas seteiras. Chegando ao penúltimo piso, ordenou que baixassem a ponte levadiça, para conferir o mecanismo de acio­namento. Satisfeito com a demonstração, subiu ao topo, de onde controlou a distância entre os merlões e a altura do parapeito fron­tal; por fim, exortou os operários a terminarem o trabalho de mon­tagem da roqueira,[9] que alvejaria do alto os defensores postados nos espaldões.

Visivelmente satisfeito, o duque ordenou que se organizassem turmas destinadas a arrastar a torre até o local escolhido para o ata­que. Tratava-se de um longo trajeto, sobretudo porque devia ser percorrido longe das muralhas, com amplo raio, a fim de evitar que os defensores percebessem a movimentação. Godofredo quis que o encargo fosse atribuído aos não combatentes e aos soldados menos valorosos, para permitir que as tropas selecionadas repousassem e rezassem, em vista do assalto previsto para a manhã seguinte.

Emanuel não duvidou que estaria entre os escolhidos para a incumbência, embora tivesse igual certeza de que, no dia seguinte, seria também colocado na primeira fileira para combater.

Em ambos os casos, não se enganou.

 

Ricardo se perguntou o que diabos diria aos seus amigos. Tinha escondido os rolos dentro de um buraco entre as pedras. E então? Deveria confiar a guarda daquele manuscrito a um bizantino que corria tanto quanto ele o risco de morrer em batalha, a um padre barbaramente espancado e quase incapaz de se mover, a uma judia destinada a continuar prisioneira ou a uma prostituta submetida a estreita vigilância?

Demorara algum tempo até conseguir gozar de um momento de folga para retirar os rolos do quartel-general de Raimundo e levá-los às rochas das tarântulas. O conde só lhe permitira ir descansar ao término do segundo dia de trabalho, pedindo-lhe antes, por sorte, que levasse para ele os mapas. Assim, Ricardo tinha conseguido pegar também o manuscrito e mantê-lo consigo sem dar na vista.

Agora que o fizera desaparecer, tratava-se, portanto, de informar os outros. Refletiu sobre a iniciativa a tomar. Estava ansioso por ver Rebeca e por se inteirar das condições de Anselmo; por isso, resol­veu se dirigir, como primeira etapa, ao campo dos prisioneiros.

Ao chegar, não lhe foi difícil vislumbrá-los. Aquela altura, o recinto estava quase vazio, já que ninguém cuidara mais de manter vivos os muçulmanos. Rebeca, por sua vez, havia passado os últimos dois dias costurando couros. Anselmo estava ajoelhado, rezando. Depois de olhar ao redor, para se assegurar de que não tinha atraído a atenção de ninguém, Ricardo chamou Rebeca e lhe ofereceu água.

Como está Anselmo? — Sentiu-se no dever de perguntar, embora estivesse mais interessado em saber dela.

Poderia ficar bom, se tratassem dele. Mas parece que, se mor­rer, ninguém vai se importar. Hoje vieram vê-lo dois de seus confra­des, mas ele não quis lhes falar e os dois foram embora sem insistir muito.

Eu posso entender — comentou Ricardo. — O que ele diria? Que se sujeitou a um espancamento para defender uma coisa que prejudicaria a Igreja?

Acho que ele tinha razões pessoais para se colocar do meu la­do, razões que não têm muito a ver com o memorial e com o que es­te representa — assentiu a moça. — Como você, aliás — acrescentou.

Ricardo ficou um pouco embaraçado. Não conseguiu responder logo, dando tempo a Rebeca para observar:

Amanhã você vai procurar minha irmã, não é?

Amanhã atacaremos. E lhe prometo que farei o possível para encontrar Sara e salvá-la — declarou ele.

Não precisa prometer. Sei que você fará isso de qualquer modo... — respondeu Rebeca, virando a cabeça para o outro lado e olhando as muralhas, cuja silhueta imponente se recortava na escu­ridão.

E, após a conquista da cidade, darei um jeito de libertar você também e de deixá-la viver em paz sob a nova administração — acrescentou o normando.

Em paz? Acha que vocês, francos, seriam capazes de viver em paz com as outras religiões, se vencerem? — opinou ela, com desprezo.

Deveremos. Teremos que agir do mesmo modo como fizeram os muçulmanos, que governaram sobre sunitas, cristãos ortodoxos e judeus. Não se pode pretender administrar com intolerância um lugar de raças, religiões, culturas e costumes diferentes. Afinal, esta é uma cidade santa para várias crenças...

E acha que seus chefes e seus bispos conseguirão? — retrucou Rebeca. — Todos eles carregam consigo os preconceitos de sua terra, a intolerância que demonstraram até agora, e certamente não pode­rão mudar da noite para o dia. Sem contar que a guerra ainda vai durar por muito tempo, mesmo que vocês conquistem a cidade, por­que os egípcios não se resignarão à perda de Jerusalém: a presença de vocês induzirá turcos e árabes a se coligarem e o Império Bizantino a se empenhar em expulsá-los daqui. Não. Nunca haverá paz nesta terra.

Talvez não para esta geração. Mas as próximas, os filhos e os netos dos chefes deste empreendimento, aqueles que nascerão nestas paragens, serão diferentes, tenho certeza. Os vínculos com a Europa se atenuarão até quase desaparecer — insistiu Ricardo, cada vez mais impressionado pela lucidez de intelecto da jovem.

Engana-se. Sabe por quê? Porque eles nunca poderão cortar as ligações com a Europa. Viverão numa situação perene de assédio, mesmo admitindo-se que consigam consolidar as próprias conquis­tas, e deverão recorrer com freqüência à ajuda dos conterrâneos europeus, os quais, em troca, exigirão vantagens e privilégios, para cuja obtenção será preciso desencadear permanentemente novas guerras.

Como você é pessimista... — comentou Ricardo, sem saber o que mais dizer.

Mas Rebeca ainda não tinha terminado:

Isso que está acontecendo agora é perfeitamente inútil. Massacres, destruição e lutas que só vão trazer outros massacres, destruição e lutas, não importa como termine este empreendimento. Serve apenas para presentear um momento de glória a fidalgotes de meia-tigela que, de outro modo, passariam a existência em guerrinhas de pouca monta, pelas quais certamente ninguém entra para a história. Aconteça o que acontecer amanhã, durante séculos ainda serão lembrados Godofredo de Bouillon, além de seu rei, Henrique, Raimundo de Toulouse, além de seu rei, Felipe, Roberto da Normandia, além de seu pai, Guilherme, e Tancredo de Hauteville, além de seu avô, Roberto de Guiscardo. Não é por acaso que, entre vocês, não existem grandes nomes.

A glória militar é importante. O que mais permanece de um homem, após sua morte?

Pois é. Por isso é tão importante se valer de qualquer pretex­to, até mesmo da religião, para obtê-la...

Desnorteado, Ricardo se calou. Gostaria de responder que ele não se interessava em absoluto pela religião, que não era hipócrita a ponto de apregoá-la aos quatro ventos para justificar seus atos béli­cos. Mas percebeu que semelhante desculpa o rebaixaria aos olhos daquela mulher, a cuja estima aspirava: a verdade era que estava secundando as intrigas de seus chefes, e isso era mais do que suficien­te para torná-lo cúmplice deles.

Eu... eu escondi seu manuscrito na rocha das tarântulas, dian­te do monte Sião. E bom que você saiba, para o caso de me aconte­cer alguma coisa — disse, afinal, lembrando-se em seguida que a conservação daqueles rolos estava estreitamente ligada à liberdade e ao grau de segurança de que Rebeca se beneficiaria no futuro. — Vou tirar você daqui e lhe dar a possibilidade de viver tranqüila onde achar melhor. Espero obter autoridade suficiente, após a conquista, para influir sobre esse tipo de decisão...

E você? Vai ficar em Jerusalém com minha irmã? — replicou ela, desafiando-o a fitá-la nos olhos.

Desta vez, foi ele quem virou a cabeça para o outro lado.

Preciso... preciso encontrar um jeito de informar isso a Inês e Emanuel. Você precisa contar com eles, no caso de... — Não soube como terminar a frase. Um instante depois, já estava longe, à procu­ra do grego.

Não o encontrou. Os guerreiros escolhidos por Godofredo já esta­vam indo dormir, e os outros, conforme lhe foi informado, empe­nhados na transferência da torre. Ricardo concluiu que não havia como encontrar Emanuel e dirigiu-se à tenda de Inês.

Constatou que havia fila. Evidentemente, refletiu, espantado, muitos soldados haviam decidido satisfazer um último desejo, temendo não sobreviver à batalha. Claro, tinham feito penitência e assumido o compromisso de conter suas pulsões, mas, às vésperas de uma batalha decisiva, uma concessão à carne talvez fosse considera­da lícita. Até porque, concluiu, tanto a morte quanto a conquista da cidade significariam a remissão dos pecados...

Mas ficou igualmente espantado ao ver que Inês não se encontra­va na tenda, entre as prostitutas: poucos passos adiante, exercitava-se com a espada contra uma estaca plantada no terreno, devendo enfrentar também a insistência petulante de um soldado que não aceitava outra mulher.

Achou-a muito mais incisiva em suas investidas e cutiladas do que antes lhe parecera. Fosse como fosse, a cena deu a Ricardo uma idéia.

Que história é essa? Não exerce mais a função? — gritou ele, dirigindo-se a Inês, que ainda não o tinha notado.

É o que estou dizendo a este imbecil! — respondeu ela, após um instante de hesitação. — Hoje eu não trabalho. Não existe mais "Inês, a puta". Só existe "Inês, a guerreira"... — acrescentou, dando o enésimo empurrão no soldado, que tentava abraçá-la proclamando que pagaria com o butim que o esperava no dia seguinte.

Quero me divertir agora. Até hoje não fiz aquilo com você e quero fazer imediatamente. Amanhã posso estar morto! — retrucou o soldado, aproximando-se mais.

Inês se bloqueou por alguns instantes, possibilitando que o outro lhe colocasse as mãos em cima. Porém, assim que o sentiu mexer em suas roupas, deu-lhe um tapa. O soldado puxou a espada da bainha e tentou apontá-la para o queixo dela, mas Inês conseguiu afastar a lâmina com a própria arma. O homem se dispôs a desfechar outro golpe, mas desta vez a espada que o deteve foi a de Ricardo.

Sugiro que você saia já daqui. Se não, terá de enfrentar duas espadas... — disse o normando.

O soldado não esperou para ouvi-lo duas vezes e escapuliu ime­diatamente.

Não creia que eu vá desistir da minha decisão só porque você me ajudou. Eu me arranjaria sozinha — apressou-se Inês a dizer, procurando ser escutada também pelos da fila.

Não duvido — replicou Ricardo. — Mas a verdade é que, entre mim e aquele homem, você sai ganhando, se realmente for escolher só um esta noite...

Eu já lhe disse que não tenho intenção de...

Ricardo a interrompeu de repente. Segurou-a pela cintura e a beijou.

Após alguns instantes de resistência, ela deixou cair a espada e correspondeu, esticando-se na ponta dos pés e passando os braços ao redor do pescoço dele.

Ficaram assim por um bom tempo.

E agora, o que você quer fazer? — perguntou ela com voz sumida, quando finalmente se separaram.

Aquilo que me trouxe aqui, não?

Vai ter que me pagar bem, se quiser se divertir...

Como não? Garanto-lhe um percentual sobre o butim de amanhã.

E quem me assegura que você estará vivo para respeitar o acordo?

Se é verdade que pretende combater, você também pode não estar em condições de receber, amanhã. Então, como ficamos?

Ela ainda hesitou. Depois segurou a mão dele e o puxou para a tenda. Colocou a cabeça para dentro. Outra prostituta estava termi­nando o trabalho com um cliente.

Vamos com isso. Agora é minha vez. Só esta, e depois a tenda é novamente de vocês — disse Inês, categórica.

O casal não demorou. Alguns instantes depois, Inês e Ricardo puderam entrar.

Pena que tudo tenha sido uma encenação... — disse ela, espe­rando a iniciativa do homem.

Pois é... — respondeu ele, muito menos decidido do que antes. — Na verdade, eu tinha vindo para lhe dizer que escondi o manus­crito na rocha das tarântulas... num buraco entre duas pedras dispos­tas em arco — disse. — E para lhe pedir que cuide de Rebeca e Anselmo, se me acontecer alguma coisa.

Anselmo! Você tem notícias de Anselmo?

Seu amigo Godofredo o deixou mal. Mas ele não falou, segun­do Rebeca me disse. Agora está no recinto dos prisioneiros. Supo­nho que o duque quer voltar a torturá-lo depois do ataque.

Inês se agachou no chão.

Coitadinho! Não pensei que demonstrasse tanto caráter — comentou, olhando fixamente à sua frente. Depois se recobrou. — E o que você quer que eu faça por eles?

Ele também se abaixou.

Que você tente ajudá-los a fugir, durante o ataque. Depois, peguem o manuscrito e vão para Belém. Eu irei encontrá-los e farei Rebeca emigrar daqui.

Só ela ou a irmã também?

Q que você sabe da irmã? — replicou ele, aborrecido.

Os boatos correm. Não só sobre os rolos...

Isso não tem nada a ver. Trata-se também de Anselmo. Não quer salvá-lo?

Tenho intenção de combater, amanhã. Estou esperando essa oportunidade há anos. Você não pode me privar disso... — respon­deu ela, com excessivo rancor.

Então, é um problema que deixo à sua consciência — concluiu Ricardo, levantando-se.

Bem nesse momento, ouviram distintamente os soldados sauda­rem lá fora o duque Godofredo. Em poucos segundos ela se despiu, ajoelhou-se diante de Ricardo e lhe cingiu a cintura. Logo depois, o duque assomou à entrada e os observou por um instante.

Não tenho tempo para esperar. Terminem logo — disse afinal, desaparecendo atrás dos panos da tenda.

Eu me pergunto se ele veio por minha causa ou porque alguém avisou que você estava aqui... — disse ela, baixinho.

Ricardo a esquadrinhou. Era terrivelmente atraente aquele corpo atlético, bem modelado, sinuoso, tornado mais resplandecen­te, à luz da tocha, pelo suor que lhe escorria ao longo das curvas.

Engoliu em seco.

Não temos como saber. Mas não quero dar na vista, portanto é melhor que eu vá embora logo... — respondeu, virando-se e saindo lentamente da tenda, depois de dar uma última olhada para ela.

Já lá fora, topou com o duque, que aguardava a poucos passos de distância. Fitaram-se longamente.

Creio que já o vi outras vezes com essa puta... — disse Godofredo.

Eu poderia dizer o mesmo de sua pessoa, senhor duque... — respondeu Ricardo, seguindo para seu acampamento.

 

A torre se materializara à primeira claridade do alvorecer ante os olhos dos defensores sonolentos, nos espaldões em torno da Porta de Herodes. Primeiro como silhueta indistinta na luz fraca da aurora e, depois, como presságio de assalto iminente. As sentinelas tinham ido imediatamente chamar o governador, que chegou com todo o estado-maior quando grande parte da cidade ainda dormia.

Eu não imaginava que eles soubessem fazê-la tão alta — disse Iftikhar al-Dawla dirigindo-se aos seus emires e particularmente a Jamal, que o informara sobre a construção.

A primeira vista, é até mais alta do que as armações com que aumentamos a altura dos espaldões... — disse um emir.

E se atacarem à nossa direita, depois da Porta de Herodes — observou Jamal —, não temos essas armações para opor a eles...

Duvido que se espalhem tanto — disse o governador. — Afinal, são relativamente poucos, e não tentarão arrombar justa­mente na extremidade norte-oriental da cidade. Podem, talvez, ten­tar um ataque diversivo. Mas com certeza farão o assalto na ponta norte-ocidental...

Um soldado chegou correndo.

Governador! Apareceu uma torre muito alta no sul, diante da Porta de Sião!

Iftikhar al-Dawla olhou para Jamal.

Viu? Estão tentando duas ações diversivas nos dois extremos. Agora, esperemos ver surgir outra torre, e talvez mais alguma coisa, diante da Porta de Jaffa... — disse, satisfeito.

Talvez seja conveniente reforçar as defesas na altura desses dois pontos — arriscou Jamal.

Por enquanto, não. Prefiro manter a maior parte dos trabucos a oeste — retrucou o governador. — É razoável pensar que eles ten­tarão arrombar daquele lado. O objetivo dessas duas torres grandes é justamente nos induzir a desguarnecer as defesas em sua frente principal de ataque...

Jamal não achava que a presença daquelas monstruosidades pudesse ser associada a ataques secundários, mas preferiu manter silêncio, para não dar sempre a impressão de ser um ranheta. De resto, Iftikhar al-Dawla convidou o estado-maior a segui-lo até a cidadela, para observar o que apareceria daquele lado.

Ainda estavam no meio do trajeto quando um soldado proveniente da cidadela veio ao encontro deles, esbaforido.

Governador! Os infiéis estão posicionando uma torre diante da Torre de Davi!

Eu já imaginava. Mandem deslocar alguns trabucos dos outros setores para a cidadela — comandou.

Um momento! — interveio Jamal, intrigado pela expressão do soldado, o qual, à diferença dos outros mensageiros, havia falado apenas de "uma torre", sem especificar o tamanho do artefato. — Qual é a altura dela? — perguntou ao homem.

Bem... não é muito grande, eu diria. Quase não alcança o topo das muralhas... — respondeu o outro, perplexo.

Jamal encarou o governador.

Ainda tem certeza de que o ataque principal será no oeste? As torres mais altas estão no norte e no sul.

Iftikhar al-Dawla pareceu incerto.

Já estamos perto da cidadela. Convém ir conferir — disse, obs­tinado.

Passou-se ainda algum tempo até que o estado-maior chegasse à fortaleza e subisse aos espaldões. Dali, era possível ver não só a torre, mas também as tropas alinhadas em torno dela.

Não são muitos... — admitiu um dos emires.

A esta altura, trata-se de saber se concentrarão o esforço máxi­mo no norte ou no sul. São muito poucos para se dividirem em dois contingentes iguais... — logo calculou Jamal.

Você, que esteve entre eles, o que acha que farão? — perguntou-lhe Iftikhar al-Dawla, finalmente mostrando querer levar em consideração as opiniões do emir.

Jamal limpou a garganta.

Ao sul, estavam acampadas somente as tropas francesas. Considerando que grande parte do exército franco tem o campo à direita e à esquerda da saliência norte-ocidental, presumo que deve­ríamos nos preocupar mais com o setor setentrional.

O governador pensou um pouco. Ainda não estava totalmente convencido.

Que seja. Voltemos à Porta de Herodes — disse. — E vamos deslocar daqui quatro trabucos, colocando-os a nordeste. Mas, no sul, quero manter todos. Nunca se sabe.

De novo, a comitiva do governador se movimentou, para retor­nar ao ponto de partida. Quando chegou aos espaldões norte- orientais, a situação já se apresentava muito clara.

Estavam quase todos ali, enfileirados, e certamente não para uma nova procissão.

Formação de batalha. Um soldado atrás do outro, um pelotão atrás do outro, um contingente atrás do outro.

Uma máquina atrás da outra.

Jamal tentou contá-los. Impossível. Com uma olhada rápida, porém, calculou que mais ou menos dois terços de todo o exército franco estavam bem ali.

Diante dos combatentes, as máquinas. Trabucos e roqueiras, em quantidade muito superior àquela que ele os imaginava capazes de construir. E um aríete imponente, constituído por uma casamata móvel, revestida de couro, da qual surgia, na parte frontal, um longo tronco reforçado com ferro na extremidade. E muitos anteparos munidos de rodas, atrás dos quais certamente se ocultava um grande número de guerreiros. E carroças, muitíssimas carroças empurradas por serventes, porque os animais de tração estavam todos mortos, e lotadas de feixes de lenha, areia e tudo que fosse necessário para preencher o fosso que corria ao longo da muralha externa.

E a torre.

A torre, que fervilhava de soldados no topo, estava colocada no centro do alinhamento, dividindo-o em dois setores quase equiva­lentes. Os cavaleiros formavam as primeiras fileiras e podiam ser contados: cerca de oitocentos, repartidos em pelo menos três gru­pos, com base nos estandartes. Suas inquietantes silhuetas ocultavam a consistência e a profundidade das unidades de infantaria, das quais, ainda assim, vislumbravam-se elmos e escudos.

Diante de todos, até dos cavaleiros, até das máquinas, muitos homens desarmados, a cavalo e a pé.

Padres.

Padres, os únicos dos quais se podia distinguir algo mais do que a silhueta. Destacavam-se principalmente suas mitras, mas Jamal se deteve também nos trajes. Notavam-se claramente os ricos bordados aplicados nas dalmáticas, nas túnicas e nas casulas, em que predomi­nava o branco. Agitavam seus báculos, em muitos dos quais penduravam-se os sudarii, tornando-os semelhantes aos vexilos dos cavaleiros que vinham atrás. Jamal sabia que alguns daqueles bastões traziam o lema Guia, domina, castiga: uma exortação que cada um daqueles senhores empenhados na iniciativa provavelmente acredi­tava poder atribuir a si mesmo.

O emir pensou em Rebeca e nas críticas dela à degeneração que a Igreja cristã havia sofrido. Perguntou-se se sua própria religião, a verdadeira fé, iria corromper-se igualmente dentro de um milênio, ou mesmo dali a cinco séculos. Mas pensar na judia o fez lembrar-se de Sara, que ele havia tentado, sem muito êxito, cancelar de sua mente. Sentiu uma fisgada no peito e obrigou-se a se concentrar na batalha iminente.

Voltou a observar os padres. Desta vez, não estavam à frente de todos para conduzir uma procissão.

Estavam ali para abençoar o ataque.

O emir deslocou o olhar para seus correligionários. De repente, estes já não pareciam tão confiantes quanto no dia da procissão ou como poucos minutos antes. Percebeu a preocupação e a angústia naqueles rostos, até mesmo na expressão do governador, que, no entanto, deveria tranqüilizar todos com sua credibilidade.

Interpretou os pensamentos deles, porque eram também os seus. Os infiéis eram poucos, estavam desesperados, sedentos, mal arma­dos, mas organizados, determinados, motivados e sem alternativa à vitória.

E já se movimentavam, sem que Iftikhar al-Dawla tivesse apro­veitado todo o tempo à sua disposição para preparar as medidas defensivas.

Desejou rezar. Levantara-se do leito às pressas, sem poder dirigir a Alá a primeira das cinco preces diárias. Mas recordou o trecho do Corão que justificava o adiamento da oração em caso de ataque ini­migo: "Agradaria aos infiéis que negligenciásseis vossas armas e vos­sas salmodias, para irromper repentinamente sobre vós."

Teve esperança de ainda poder rezar, depois.

Ouviu o governador ordenar — com excessiva energia, para infundir segurança nos subordinados — que as forrações e os acolchoados dispostos ao longo das muralhas a oeste da Porta de Damasco fossem removidos e transferidos para leste. Em minutos, dúzias de soldados correram para a esquerda, para logo reaparece­rem arrastando pesadas urdiduras estofadas com sacos cheios de cordame naval e vime. Mas revestir o trecho ameaçado das muralhas não seria tarefa de poucos instantes.

Nesse meio-tempo iam chegando outros trabucos, mas não havia como içá-los aos espaldões em tempo útil. Depois de falar sobre isso com o governador, Jamal decidiu dispô-los a uma distân­cia das muralhas suficiente para garantir lançamentos que ultrapas­sassem a cabeça dos defensores. Bem sabia que esse expediente limi­tava em grande parte o alcance das máquinas, tornando-as utilizá­veis somente a curta distância, com os atacantes já próximos às muralhas.

Alguns serventes acenderam as brasas para o fogo grego a ser arremessado pelas roqueiras. Afluíram outros armígeros, e os espal­dões se encheram a tal ponto que os arqueiros achavam difícil obter espaço para alvejar os inimigos sem que um companheiro os dese­quilibrasse.

— Estão avançando! — alguém gritou, e o olhar de Jamal se diri­giu novamente para o exterior. Os padres haviam se deslocado para os lados, e os serventes empurravam trabucos e roqueiras para a frente. O resto permanecia imóvel.

O emir exortou os soldados que lidavam com os revestimentos a se apressarem, mas já sabia que eles não teriam tempo para opor aos primeiros projéteis inimigos os anteparos adequados. E tampouco seria fácil completar o trabalho, uma vez iniciado o lançamento por parte dos francos. Ordenou aos serventes que carregassem os trabu­cos, mesmo sabendo que as máquinas adversárias se deteriam só um pouco fora do alcance dos engenhos sobre os espaldões, mas sufi­cientemente perto para alcançar e abalar, com seus arremessos, pelo menos a base das muralhas.

E se por acaso conseguisse alvejá-las, Jamal tinha consciência de que só poderia infligir-lhes um dano inferior ao que os defensores sofreriam. De fato, mesmo admitindo que poderia atingi-las com seus projéteis, sabia que as máquinas francas estavam dispostas em ordem esparsa, enquanto as suas estavam todas agrupadas sobre os espaldões. Por conseguinte, os projéteis dos adversários tinham muito mais possibilidades de acertar o alvo.

Fosse como fosse, evitou comunicar suas sensações aos subalter­nos e até ao governador. Continuou exortando os soldados, mas, quando viu as máquinas inimigas pararem para que os serventes as carregassem, ordenou o primeiro lançamento, embora determinan­do o tiro de apenas quatro trabucos, metade daqueles de que dispu­nha, para experimentar a distância sem desperdiçar projéteis.

Quatro fundas com balanceiro foram acionadas simultaneamen­te. Mil olhos acompanharam a longa trajetória das pedras.

Longa, mas não o suficiente.

Jamal viu os projéteis aterrissarem a poucos passos da linha dos trabucos inimigos e rolarem para a frente até roçarem as máquinas, mas sem nenhum efeito.

Agora, era a vez deles.

Observou pelo menos dez braços lançadores se levantarem e outros tantos projéteis voarem de suas extremidades. O assovio ini­cial de cada um foi aumentando até se transformar no rumor de um vento forte.

Também o tiro deles foi longo.

Suficientemente longo.

Um, dois, três, cinco baques, que fizeram estremecer os espaldões e vibrar as poucas armações de madeira recém-instaladas.

Jamal se debruçou e olhou para baixo.

Algumas pedras rachadas, outras empurradas para dentro.

A muralha estava rompida.

 

O caminho rumo à defesa principal dos muçulmanos era longo. O conde de Toulouse, pensou Ricardo, havia se encarregado de uma tarefa radicalmente oposta à de Godofredo. De fato, o duque de Lorena se encontrava a pouca distância do duplo circuito de mura­lhas, e desde o início do ataque seus homens seriam submetidos a uma dura prova pela reação adversária.

Os provençais, em contraposição, tinham rumado para o ângulo sul-ocidental da defesa, constituído pela Porta de Sião, pouco guarnecida. Mas a verdadeira obstrução meridional era o perímetro interno de muralhas, muito mais distante. Entre os dois circuitos, um território de poucas construções e bastante acidentado dificulta­ria o subseqüente avanço da torre móvel, que exigiria um intenso trabalho dos serventes para aplanar o caminho.

Enquanto isso, tratava-se de arrombar a muralha externa, cons­truída na época bizantina e parcialmente derruída: tarefa não im­possível, porque não parecia que os árabes a tivessem dotado de máquinas de lançamento, e tampouco havia um verdadeiro fosso que impedisse a aproximação da torre. A verdadeira batalha, aquela que os companheiros situados na parte oposta já estavam enfrentan­do, seria iniciada somente depois.

O avanço da torre assinalou o início do ataque. Ladeavam-na os poucos trabucos à disposição do conde, o qual montava seu animal à frente de duzentos cavaleiros dispostos na ala esquerda do enfileiramento. Outros tantos avançavam na ala oposta, enquanto o setor central, em correspondência com a torre móvel, distinguia-se por uma linha de manteletes, atrás dos quais se escondiam os três mil infantes subordinados ao conde de Toulouse.

Ricardo gozava de uma visão de conjunto que muitos comandantes considerariam invejável. Sobrepunha-se a todos, até aos defensores instalados nos espaldões, em virtude de sua localização no piso superior da torre, protegido pelo parapeito e ao lado de um trabuco. Podia até avistar, a distância, o circuito interno.

A uma ordem de Raimundo, os homens se detiveram e deixaram que os trabucos exercessem sua ação demolidora. Iniciou-se um pertinaz lançamento de projéteis, a que os defensores foram obrigados a assistir impotentes, sem poderem reagir sequer com os arqueiros, incapazes de alcançar a linha ao longo da qual os atacantes se apinhavam.

Os cristãos ficaram observando como os pedaços de rocha arre­messados se abatiam sobre as enormes pedras aparelhadas do circui­to de muralhas, e de vez em quando comemoravam ao constatar as rachaduras que se formavam, golpe após golpe, no setor ao lado da porta. Em pouco tempo, esperneavam impacientes. Queriam atacar. Mas Ricardo sabia que o conde só pretendia avançar depois que se abrisse uma brecha, a fim de obrigar os defensores a conter a inva­são tanto abaixo quanto no alto dos espaldões.

Mais lançamentos e mais espera. As pedras do circuito começa­ram a se fragmentar ou a cair para o lado de dentro, abrindo as pri­meiras frestas. Um grito de triunfo se elevou entre as fileiras cristãs, e alguns fizeram menção de se adiantar por iniciativa própria. Foram chamados de volta, mas nem todos deram ouvidos aos ape­los, e dois soldados chegaram isolados ao pé da muralha, só para acabarem sepultados sob uma chuva de dardos.

Novos arremessos pelos trabucos. Os raios de luz que se filtravam através do circuito se tornaram feixes; as frestas, janelas e, em seguida, portas. E, finalmente, o vão aberto: um amontoado de pedras despedaçadas e caídas, que até uma criança poderia escalar.

Imediatamente, veio o sinal de ataque. As trombetas soaram, os cavalos relincharam, as rodas da torre rangeram, os escudos se cho­caram uns contra os outros para criar uma espécie de testudo, os homens prorromperam em um coral "Deus o quer!"

Ricardo se deu conta de também haver gritado. Mordeu a língua e continuou a fitar o alvo, ordenando que o trabuco ao seu lado con­tinuasse atirando no local escolhido para baixar a ponte levadiça da torre, com o objetivo de demolir as armações sobre os espaldões e afastar dali os defensores.

Era a primeira vez que se avizinhava das muralhas de uma praça-forte vendo-as do alto. Achou aquilo fantástico. Tinha a impressão de ser uma espécie de deus que se precipitava do céu sobre o campo de batalha, e lhe foi difícil resistir à empolgante sensação de onipo­tência que o invadia.

Quando chegou a poucos passos dos espaldões, pôde ver as expressões dos defensores e perceber o terror deles. A essa altura, cedeu à exaltação e se sentiu invencível. Desceu rapidamente a escadinha e abriu espaço entre os soldados prontos para lançar a passa­rela. Queria ser o primeiro. Por si mesmo, por Roussel de Bailleul, que quase trinta anos antes o acusara de covardia, por seu pai, que teria tido orgulho dele, por sua mãe, que morrera em Constantinopla oprimida pela vergonha.

O guincho foi acionado e a ponte baixou sobre as ameias da muralha. Escancarou-se, assim, a passagem para os espaldões, e Ricardo foi o primeiro a transpô-la, saltando da passarela aos gritos de "Eu o quero!" Emanuel procurou resguardar o lado direito do corpo, não escondi­do pelo escudo, atrás do anteparo móvel que havia junto dele. Bem a tempo. O bizantino percebeu claramente o rumor surdo do impac­to das primeiras flechas contra as tábuas atrás das quais se ocultara. Em seguida, o que vibrou foi seu escudo, sob o choque de um dardo levemente espetado na madeira.

Um instante depois, viu-se exposto novamente aos projéteis ini­migos. Um dos homens aglomerados atrás do mantelete o empurra­ra para fora, gritando: "Não há espaço, seu grego bastardo!"

Sozinho, não podia avançar sem se arriscar a ser alvejado. Estacou e aguardou as fileiras seguintes, incorporando-se a elas e dispondo-se em testudo, com o escudo acima da cabeça, ao lado do soldado mais externo da formação.

Por enquanto, nada de escadas. A tarefa dos primeiros assaltan­tes era preencher o fosso para criar uma plataforma apta a suportar o avanço da torre, mas também a passagem dos manteletes. Atrás destes últimos estavam diversos caixotes com feixes de lenha, tirados das carroças pouco antes do início do ataque. E também os sapadores, esperando alcançar a base das muralhas e escavar os pontos onde o choque dos trabucos havia sido mais eficaz, dando assim o golpe de misericórdia na estrutura.

No alto dos espaldões, os arqueiros muçulmanos continuavam lançando flechas, inclusive na vertical. Entre eles, assomavam os ser­vos com óleo fervente, aquecido em caldeirões dispostos sobre os braseiros de fogo grego. Debruçavam-se das ameias para executar seu trabalho, e então os besteiros cristãos atiravam, inexoráveis, con­cedendo a quem estava embaixo um instante de alívio.

Emanuel se viu junto do fosso. Uma flecha se plantou diante de seu pé direito. Mais uma entre as pernas. Ele se jogou no chão e rolou até um anteparo, já pontilhado de flechas. Um soldado estava às voltas com um caixote de lenha, mas sozinho não conseguia levantá-lo, e os outros estavam ocupados. O bizantino foi ajudá-lo e, juntos, lançaram o conteúdo no fosso, usando em seguida o invólu­cro vazio para se proteger de novos disparos de flechas. O outro, porém, perdeu o escudo; mal colocou a cabeça para fora, uma delas lhe trespassou o olho e saiu pela nuca. Emanuel fez menção de retor­nar ao anteparo, mas depois se deteve e, empurrando com os pés o corpo sem vida do companheiro, lançou-o no fosso.

Buscou proteção atrás do mantelete, olhou ao redor e, não vendo ninguém capaz de ir ao seu encontro, impeliu-o para a frente com o ombro, valendo-se da seteira para conduzi-lo até onde queria. Manobrou-o para a direita, na direção do setor do fosso que lhe parecia mais cheio de detritos, e, ao chegar à borda, empurrou-o para dentro.

O anteparo de madeira se acomodou sobre a lenha, constituindo a espessura que faltava para preencher o desnível, além de uma pla­taforma estável para permitir a passagem de outros artefatos. Repentinamente sem proteção, Emanuel também se jogou no fosso e tentou chegar à margem oposta arrastando-se sobre o acúmulo de detritos.

Ao se voltar, percebeu que os companheiros estavam aproveitando seu expediente. Outros manteletes se aprestavam a usar a plataforma. Soergueu-se um pouco para observar melhor o que acontecia atrás de si. Um instante depois, sentiu uma onda de calor lhe rodear a cabeça.

Inês tinha recebido ordem de empurrar uma carroça de lenha. Queria combater e, em vez disso, fora obrigada a exercer tarefas de animal de carga. Não precisara suplicar a Godofredo que a deixasse pelo menos participar do combate. Qualquer pessoa em condições de se manter de pé fora convocada. Agora, os príncipes já não se prendiam a sutilezas.

Mas estava na retaguarda de todos os outros combatentes. Dispunha de uma espada e, no entanto, se limitava a encher de detri­tos a carroça, que outros esvaziavam a fim de transferir o conteúdo para os cestos destinados ao fosso.

Não tirava os olhos da frente de batalha, à espera de uma opor­tunidade. Observava os companheiros avançarem progressivamente, seguindo os movimentos dos anteparos de madeira, dos quais um número cada vez maior, com o passar do tempo, transpunha o fosso e alcançava as muralhas. Depois foi a vez das escadas, que os solda­dos passavam um ao outro até entregá-las a quem já estava abaixo dos espaldões. Levantavam-se, caíam para trás, mas alguém sempre os recolocava de pé. Os homens tombavam, atingidos por flechas ou por óleo fervente, mas havia sempre alguém abaixo deles para substituí-los.

Em seguida, viu a torre se mover também, para finalmente per­correr o último trecho que a separava das muralhas. Foi então que abandonou sua tarefa e correu para perto do artefato, onde se apinhavam os homens encarregados de empurrá-lo. Ouviu as flechas assoviarem ao seu redor e um arrepio de terror a percorreu. Era a primeira vez que experimentava a sensação de estar exposta a um perigo tão desconhecido e imprevisível que ela não sabia como enfrentá-lo.

Acabou tropeçando nos serventes, parados no mesmo lugar na tentativa de movimentar a torre, obstaculizada por alguns cadáveres espalhados pelo terreno. Um dos homens que a empurravam se lan­çou para a frente a fim de retirar dali o corpo mais próximo, mas foi atingido e, em segundos, transformou-se também num obstáculo a remover.

Inês escutou aquele que devia ser o chefe dos serventes ordenar a um homem que fosse arrastar os corpos, mas este se recusou. A mesma resposta foi dada por outro e, em seguida, por mais um.

A mulher tentou não pensar. Agiu por instinto. Saiu do raio de proteção da torre, percorreu a lateral desta e jogou-se no solo, agar­rando os pés do cadáver que obstruía a roda direita. Sempre raste­jando, puxou-o, sem atentar para as flechas que se espetavam no ter­reno ao seu redor. Percebeu um berro de aprovação vindo de trás. Estimulados pelo seu exemplo, outros dois serventes correram para a frente, removendo outro corpo.

Finalmente, a torre recomeçou a avançar e Inês rolou para trás dela, recebendo os cumprimentos dos outros. Continuou a segui-los até que o artefato chegou junto ao fosso, bem diante da Porta de Herodes. Ela deu uma olhada para a frente: o desnível estava preen­chido e a torre podia avançar até a porta. No entanto, os serventes não empurravam mais.

Ao olhar para trás, Inês compreendeu o motivo. Vinha chegan­do o aríete. Da torre partiu uma barragem de artilharia, com flechas de besta e de arco, além de pedras da roqueira instalada no topo, para dar cobertura ao avanço do artefato que deveria arrombar o portão.

O aríete avançou ao longo da ponte de detritos amontoados pelos atacantes. Vinte homens o empurravam, protegidos dentro da casamata móvel que o continha.

Ouviu-se distintamente o primeiro golpe. O portão vibrou. O tronco no interior da casamata recuou e, em seguida, foi novamente impelido para a frente. Novo golpe, nova vibração.

Desta vez, surgiu uma pequena rachadura no bronze do portão, ao longo da linha de união entre as duas folhas.

Inês ergueu o olhar. Viu os defensores se esconderem atrás dos merlões ou entre os destroços da armação destruída pelos golpes da roqueira, para evitar as flechas provenientes da torre móvel. Não se mostravam em condições de ameaçar a ação do aríete, que parecia poder continuar agindo imperturbado. Mas a mulher viu um tur­bante surgir atrás dos merlões. Abaixo do turbante, não um rosto, e sim um pote do qual saía fogo. O soldado que o segurava lançou-o lá embaixo, segundos antes de ser trespassado por um dardo.

O olhar de Inês se deslocou imediatamente para o ponto onde o objeto havia caído. O muçulmano tinha acertado o alvo.

A casamata estava em chamas.

Ricardo abriu caminho pelos espaldões a golpes de espada. Não atentou para aqueles que matava, feria ou derrubava lá do alto empurrando-os com o escudo. O que lhe importava era chegar ao outro lado e abrir o portão por dentro. O afluxo de outros com­panheiros lhe permitiu ganhar os degraus de acesso aos espaldões e descer alguns, antes de ser obrigado a se deter ante a oposição dos adversários.

Dali, não conseguiu avançar por um bom tempo. Depois, notou com o canto dos olhos algum movimento mais embaixo. Logo em seguida, viu-se combatendo com um só inimigo ao longo da escada. Os outros haviam desaparecido, para enfrentar os cristãos que apa­receram atrás deles através da brecha aberta pelo tiro dos trabucos.

Dominou facilmente o adversário e finalmente desceu, colocan­do de novo os pés no solo onde surgia Jerusalém, ainda que na área externa. Deslocou-se até o portão e ajudou os companheiros envol­vidos no corpo a corpo. Sempre ampliando o raio de ação perto da entrada, o grupo de cristãos conseguiu alcançar o mecanismo de fechamento da porta. Dois deles o destravaram, enquanto os outros, entre os quais Ricardo, serviam-lhes de anteparo, constituindo um cordão contra os assaltos dos defensores.

O normando ouviu as dobradiças rangerem atrás de si. Assestou um golpe decidido no adversário mais próximo, para mantê-lo afas­tado por alguns instantes, e voltou-se para ver. O portão estava se abrindo, e, pelo espaço entre as duas metades, avançava, em toda a sua imponência, a torre de Raimundo, prestes a transpor a entrada.

Ricardo se voltou de novo para enfrentar o inimigo. Mas já não havia nenhum. Este se encontrava longe, como todos os outros, em fuga rumo à última linha de defesa.

 

Firuz fez um gesto de irritação. Não parecia haver modo de deter a ação do aríete. O invólucro deste ardia, mas os couros que envol­viam o artefato garantiam uma resistência maior ao fogo. Para pio­rar, da torre móvel plantada a poucos passos dali, os combatentes derramavam vinagre sobre a casamata, a fim de circunscrever a ação das chamas.

E os impactos prosseguiam. O portão vibrava com intensidade cada vez mais forte; agora ribombava, e o bronze que o revestia soava como um toque de finados. Um olhar de entendimento troca­do com Jamal deixou claro a Firuz o que fazer. O turco abandonou os espaldões com alguns companheiros e, junto com eles, lançou-se sobre duas carroças próximas às muralhas. Empurrou os bois atrela­dos aos veículos para junto do portão, cuja deformação ele distinguia claramente no ponto onde a ação do aríete insistia; depois matou os animais, cuidando de fazê-los caíram um sobre o outro. Por fim, amontoou-os sobre as próprias carroças, criando uma bar­reira protetora para amortecer os golpes do engenho inimigo.

As carcaças dos bois balançavam a cada golpe do aríete, mas o portão havia parado de vibrar. Aquela, porém, era uma solução tem­porária. Seria necessário muito mais, e Jamal sabia disso. Mandou que seu guarda pessoal subisse de volta e o ajudou a criar seteiras improvisadas amontoando sobre os espaldões as traves das arma­ções, demolidas pelas pedras inimigas. Valendo-se desses anteparos feitos às pressas, Firuz e outros atiradores experientes recomeçaram a alvejar com flechas incendiárias as proteções do aríete e, com sim­ples dardos, os combatentes no alto da torre, para impedi-los de jogar mais vinagre sobre as chamas.

A casamata estava agora envolta pelo fogo. Mas a madeira, pro­tegida pelas peles encharcadas de vinagre, não se rachava. O emir teve então a esperança de que a temperatura, no interior, ficasse insuportável a ponto de obrigar os ocupantes a sair.

Contudo, o portão já vibrava de novo.

Emanuel agradeceu ao Senhor que os elmos fornecidos ao exército bizantino dispusessem de uma ampla aba, que impedira grande parte do óleo fervente de escorrer sobre seu rosto. Mesmo assim, vários esguichos e filetes haviam lhe descido sobre as faces, o nariz, a boca e até as pálpebras, provocando queimaduras.

Não conseguia manter os olhos abertos por mais de alguns ins­tantes. Sobretudo o direito. Supôs que um borrifo lhe atingira a córnea. Projetou-se para fora do fosso, mantendo o escudo acima do corpo. Sentiu alguns impactos. Flechas. Perdeu o equilíbrio ao tro­peçar num cadáver. Rolou de novo para o fosso. Por um instante manteve-se deitado de costas, oculto pelo escudo, e tentou refrescar o rosto abanando-o com a mão. Nada: a ardência aumentava.

Perguntou-se o que deveria fazer. Não queria morrer antes de entrar em Jerusalém. Estava a um passo do perdão de Deus, buscado por toda a sua carreira, mas, se não conseguisse entrar na cidade, o Senhor não lhe concederia a remissão de seu pecado em Manzikert,

Ainda tentou se levantar. O impacto de uma flecha sobre o escu­do retumbou em seus ouvidos e o derrubou novamente no chão.

De fato parecia que o portão estava prestes a ceder. Mas os serventes do aríete estavam no limite. Destruídos pela fadiga, sem dúvida, mas também consumidos pela tórrida temperatura que se desenvolvera na casamata. Inês viu sair um, depois outro; um terceiro desmaiou aos pés dos que ainda tinham forças para empurrar o artefato.

Um dos serventes da torre adiantou-se rapidamente, a fim de assumir o lugar dele, mas foi trespassado por uma flecha. Outro ten­tou a mesma coisa e com ele tudo correu bem, se é que se podia cha­mar de correr bem o fato de se aproximar daquela fornalha. Inês entrou às pressas na torre, abriu caminho entre os homens, atônitos, subiu a escada até a primeira plataforma e encontrou uns baldes. O olfato lhe permitiu distinguir os de vinagre dos de água, e foi para estes últimos que dirigiu sua atenção. Derramou um deles sobre seu corpo antes que os homens pudessem detê-la, desceu, saiu da torre e se precipitou para dentro da casamata.

A mudança de temperatura foi brusca e devastadora, mas a camada de água com que ela se encharcara lhe permitiu absorvê-la. Passou a empurrar junto com os outros e deu sua contribuição para desfechar os golpes seguintes do aríete. Pouco depois chegou outro soldado, também todo molhado, e, em seguida, mais um. Ao que parecia, o expediente de Inês fora adotado pelos companheiros, que de fato a cumprimentaram com um tapa no ombro; um deles, na verdade, deu-o em seu traseiro.

E veio o golpe do arrombamento. A cabeça do aríete não parou no ponto onde vinha se detendo e avançou um pouco. Os serventes penaram para puxá-la de volta: olhando pela seteira frontal, Inês viu que ela estava bloqueada entre as duas folhas do portão, já entreabertas. Com novo esforço, o grupo conseguiu trazer para trás o balanceiro. Depois desferiu um novo golpe contra uma só folha, ampliando a abertura.

A investida seguinte já não encontrou oposição: metade do por­tão se escancarou com relativa facilidade, e o evento foi saudado por gritos de triunfo dentro da casamata e na torre. Detrás desta última enxameou uma multidão de guerreiros, dirigindo-se ao vão aberto. Simultaneamente, os lançamentos vindos do alto da torre se intensi­ficaram, obrigando os defensores a enfrentar dois ataques ao mesmo tempo.

Destruídos pela fadiga e esmagados pelo calor, os ocupantes da casamata se prostraram do lado de fora. Mas não Inês, que se sentia suficientemente fresca para participar da invasão. Puxou da espada e transpôs a abertura junto com muitos outros. Diante de si, viu enfileiradas várias dezenas de árabes e sudaneses, alguns com o arco já tensionado, outros com a espada desembainhada.

Agora, estava cara a cara com o inimigo.

E eles a esperavam para matá-la.

De repente, Emanuel já não sentiu o assovio de flechas ao seu redor. Só compreendeu o motivo quando ouviu as palavras de um com­panheiro, que berrava: "Tomamos a Porta de Herodes! Entramos!"

Deduziu que muitos defensores haviam se deslocado rapidamen­te para o setor onde o vão se abrira, deixando desguarnecida uma parte dos espaldões acima dele. De fato, percebeu ao seu lado a cor­reria dos companheiros, os quais gritavam que pretendiam recolo­car ao longo das muralhas as escadas que haviam sido empurradas para trás nas tentativas anteriores.

Ele também queria subir, embora a ardência no rosto só fizesse aumentar. Levantou-se dificultosamente, mas arriscou-se a uma nova queda após o choque com um companheiro que acorria à esca­lada. Abrindo os olhos só de vez em quando, aproximou-se de uma escada tomada de assalto pelos companheiros e aguardou sua vez.

Mas havia sempre alguém que chegava correndo e o afastava, apro­veitando-se de sua hesitação.

Depois de esperar algum tempo, abriu os olhos o suficiente para interpor o braço entre a escada e o soldado seguinte; este bateu repentinamente com a boca no cotovelo dele e foi obrigado a lhe ceder a passagem. Emanuel se deixou guiar pelo rumor produzido nos degraus por quem o precedia, arriscando-se também a uma pan­cada nos dentes; só abriu os olhos quando percebeu diante de si não mais a penumbra da muralha, mas a luz do sol que se erguia sobre a cidade.

 

Inês temia, sobretudo, as flechas. Detestava a idéia de acabar trespas­sada antes mesmo de se pôr à prova trocando algumas cutiladas com um adversário. Mas, com tantos arcos apontados, inclusive em sua direção, viu-se em maus lençóis.

Os arqueiros encaixaram as flechas.

Atiraram.

Acertaram.

Mas não Inês.

Ela viu caírem ao seu redor diversos soldados, logo substituídos por outros. Perguntou-se por que não a tinham mirado, e a única explicação que achou foi que os arqueiros inimigos haviam preferi­do eliminar de imediato, aqueles que lhes pareciam mais perigosos. Decidiu partir para diante antes que eles atirassem de novo e correu para o arqueiro mais próximo, agredindo-o antes que ele tivesse tempo de se livrar do arco para puxar a cimitarra.

O golpe que Inês lhe desfechou no pescoço não foi suficiente­mente forte para cortar a cabeça dele, mas abriu um amplo ferimen­to que o deixou fora de combate. Ela não teve tempo de se parabe­nizar. O árabe que estava ao lado da vítima já trazia a espada desembainhada.

E nenhum outro inimigo para atacar, exceto ela.

Dos adversários, agora, Ricardo só via as costas. E cada vez mais dis­tantes. Corriam velozes, os árabes, não por medo, disso ele tinha cer­teza, mas pela pressa de organizar uma sólida linha de defesa ao longo do circuito interno de muralhas. Perseguiu-os por um trecho curto, mas depois, junto com os companheiros, preferiu poupar as energias para aquilo que o esperava. A trajetória rumo ao confronto decisivo ainda era longa, e dificilmente a batalha se concluiria naquele dia. Era preciso fazer a torre atravessar a Porta de Sião. Virando-se para trás, ele viu que o artefato estava justamente trans­pondo a entrada, embora os soldados lá no topo fossem obrigados a demolir a parte inferior do arco de sustentação, para permitir que a torre passasse embaixo.

Virou-se de novo, avaliando o terreno diante de si. O governa­dor egípcio havia pensado também na eventualidade que acabava de ocorrer e tornara irregular o terreno do amplo espaço compreendi­do entre as duas linhas de muralhas. Buracos por toda parte, pedregulhos, montes de terra, carroças abandonadas, arbustos e troncos cortados e postos de través deixavam o percurso terrivelmente aci­dentado para a torre móvel.

Ricardo foi ladeado pelo conde Raimundo, que vinha chegando a cavalo.

Não será fácil levar a torre até o circuito interno... — disse, assim que o viu desmontar.

Pois é — observou o comandante, frustrado. — Disponha uma série de esquadrões para desentulhar o terreno. Removam-se tron­cos e pedras. Preencham-se os buracos com terra e estabilize-se o terreno com tábuas. Depois, sempre que a torre se detiver atrás de um obstáculo, mande-os esvaziar os buracos e carregar as carroças com terra, tábuas, pedras e troncos. Quando estivermos diante das muralhas, utilizaremos esse material de refugo, o mesmo com que os muçulmanos pretendiam nos deter, para preencher o fosso.

"Sim", pensou Ricardo. "A verdadeira batalha só começará ama­nhã." A não ser que, do outro lado, Godofredo tivesse conseguido penetrar logo a segunda linha de muralhas, que era quase adjacente à externa...

 

Inês se esquivou de uma primeira cutilada. Seu movimento rápido fez o árabe malograr, mas seu contra-ataque foi detido pelo escudo dele. Graças a isso, o adversário empurrou-a para trás, fazendo-a perder o equilíbrio. A mulher caiu ao solo e seu peito ofegante pelo terror se expôs à lâmina da cimitarra, prestes a cair sobre ela.

Emanuel seguiu na esteira dos outros. Dirigiam-se à Porta de Herodes, e cada soldado estava determinado a dar sua contribuição para varrer qualquer resistência junto ao baluarte, permitindo assim o afluxo maciço dos companheiros à área entre as duas linhas de muralhas.

O grego não tinha certeza de que seria útil, mas nem por isso renunciaria a combater. Na pior das hipóteses, concluiu, seria útil a si mesmo, se não ao exército. Continuou avançando precariamente, tropeçando e parando com freqüência, pela necessidade de fechar os olhos e refrescar o rosto abanando-se com a mão. Para sua sorte, porém, a meta estava próxima, e, após um breve trajeto, seus olhos feridos vislumbraram a esplanada fronteira à entrada.

Muitas figuras indistintas se agitavam diante da porta. Turbantes e elmos, espadas e cimitarras, escudos redondos e amendoados revoluteavam na poeira chocando-se uns contra os outros, em um res­soar de rumores surdos que guiavam Emanuel mais do que as fuga­zes imagens que sua visão lesada lhe oferecia.

Inês pôde perceber a tempo o novo golpe desfechado pelo árabe. Girou-se de lado, mas sentiu a carne das costas lhe arder de repente. A espada tocara o terreno, mas, um segundo antes, havia roçado seu corpo.

Encarou o adversário. O jogo se reapresentava, agora com meno­res possibilidades, para ela, de limitar os danos a um simples talho de raspão. O árabe se preparou para desferir uma cutilada oblíqua, a fim de evitar o risco de errar novamente. Inês apertou o punho da espa­da e a dispôs na vertical, tentando aparar a lâmina inimiga.

Viu o muçulmano preparar o golpe erguendo a ponta da cimitarra além do ombro esquerdo, acima do escudo.

Mas uma silhueta vinda do alto irrompeu de repente em seu campo de visão. A figura caiu sobre seu inimigo, empurrando-o na direção dela. Inês se sentiu investida pelo peso de dois homens.

Impacto duríssimo, contusões por toda parte.

Levou alguns instantes para recuperar a lucidez. Sobre seu corpo, na mesma posição em que tantos clientes a tinham possuído, jazia seu inimigo. Mas, desta vez, não tinha sido o homem a penetrá-la. De fato, a espada que Inês empunhava havia trespassado o peito do árabe e saído pelas costas.

Com dificuldade, ela o removeu de cima de si. Extraiu a espada e logo viu levantar-se lentamente, ao seu lado, o soldado que a sal­vara. Seu olhar mal distinguia o rosto dele, coberto de poeira. Não havia face, mas carne viva, nem sobrancelhas, mas pele queimada, nem olhos, mas pálpebras derretidas, nem nariz, mas excrescência descarnada.

No entanto, havia nele algo familiar. Ela devia tê-lo conhecido, antes que ele se transformasse naquele horror.

Com que então, você acabou combatendo, hein? — perguntou o homem, com voz arrastada, mas reconhecível.

Emanuel! — exclamou ela, levando as mãos à boca.

Agora a primeira linha parecia perdida. Jamal recebeu do governa­dor a ordem de recuar, mas não tinha intenção de abandonar aos infiéis os trabucos instalados sobre a muralha externa. Bloqueou alguns soldados que já corriam rumo ao interior, impelindo-os para o setor das máquinas, sobre o qual estavam prestes a despencar os francos que haviam alcançado os espaldões graças às escadas. Firuz o viu e compreendeu na mesma hora, indo ao encontro dele em pou­cos instantes.

Mais um instante e seria tarde. O emir dividiu em duas partes o pelotão de que dispunha, instalando a mais consistente, que confiou ao próprio Firuz, como cordão protetor contra o assalto dos infiéis. Manteve consigo os outros e, com a ajuda deles, soergueu os trabucos, um de cada vez, acima das ameias, fazendo-os precipitarem-se lá em­baixo e observando-os se despedaçarem no impacto com o terreno.

Enquanto isso, seguia com o canto dos olhos a ação de Firuz e companheiros. Não agüentariam por muito tempo. Diante deles, a fileira de francos se tornava cada vez mais longa e compacta, e alguns soldados árabes já tinham tombado.

Ainda restavam dois trabucos. A pressão dos infiéis parecia agora insustentável. Jamal concluiu que não havia tempo para pen­sar numa máquina de cada vez, como fizera até então. Dividiu ainda mais suas magras forças e se encarregou de levantar um trabuco com a ajuda de apenas três soldados, enquanto outros quatro faziam o mesmo. Um esforço atroz, incitado pelo clangor de espadas que ele escutava cada vez mais perto de seu flanco. A linha estava cedendo, e suas forças também, quando chegou o momento de dar o último impulso para ultrapassar o parapeito.

O trabuco caiu.

A linha cedeu.

Os cristãos avançaram.

 

Uma surtida após a outra, como era previsível. O avanço dos cris­tãos no setor meridional prosseguia lentamente, não só por causa das dificuldades encontradas pela torre para superar os obstáculos, como também pelas contínuas ações defensivas dos soldados egíp­cios de cavalaria e dos que montavam camelos. Saíam pelas portas, em esquadrões, aproximavam-se dos inimigos o suficiente para alvejá-los com flechas e depois desapareciam de novo dentro das muralhas.

Os cavaleiros cristãos se enfileiraram junto com as alas da infan­taria para enfrentá-los e persegui-los. Mas eram cavalaria pesada, lenta demais para alcançar os arqueiros montados em cavalos árabes, armados à ligeira e tão rápidos quanto poderiam ser os adversários.

Os dardos muçulmanos colheram muitas vítimas, novos corpos que os serventes tiveram de remover do caminho da torre. As surti­das rarearam e, por fim, cessaram somente nas proximidades da muralha interna, espessa, imponente e bem guardada por guerreiros e máquinas de lançamento. Ricardo ainda estava absorto, observan­do a disposição dos defensores, quando viu voar pelos ares o primei­ro projétil, uma pedra atirada por um trabuco e que aterrissou não muito longe dele.

Ouviu a ordem de interrupção proveniente de Raimundo. Freadas pela torre, as tropas provençais tinham levado quase toda a tarde para alcançar a segunda linha, e parecia imprudente tentar um novo assalto àquela hora. O conde subiu à torre, que lhe garantia um panorama melhor, e do topo conseguiu observar o largo fosso que se estendia diante da muralha. Por mais que os assaltantes dispusessem agora de fartas quantidades de material de refugo, seria necessário muito tempo para preencher o desnível. Convinha, declarou Raimundo, que a noite fosse dedicada a essa tarefa.

Por conseguinte, o comandante ordenou que se formasse uma cabeça de ponte fora do alcance dos trabucos instalados no alto dos espaldões e se organizassem equipes para preencher o fosso.

Não seria uma noite agradável, pensou Ricardo.

Inês ajudou Emanuel a se soerguer. Não conseguia tirar os olhos de cima dele, dividida entre a repulsa e a compaixão por aquele rosto devastado. Era supérfluo perguntar como aquilo acontecera.

Eu... eu não tinha reconhecido você — admitiu.

Não me é difícil acreditar — respondeu ele, levantando-se todo dolorido.

O instante de silêncio entre os dois amplificou em seus ouvidos o rumor da batalha que se desenrolava ao redor: de um lado, a irrup­ção dos cruzados, cada vez mais maciça, e de outro, a resistência pro­gressivamente mais branda dos árabes.

Inês decidiu mudar de assunto

Teve oportunidade de falar com Ricardo? — perguntou, lembrando-se daquilo que o normando lhe pedira.

Recentemente, não...

Bem, então convém que você saiba — continuou ela, mesmo se perguntando de que adiantaria revelar o novo esconderijo do manuscrito a um homem que não parecia ter ainda muita vida pela frente — onde Ricardo ocultou os rolos.

Diga.

Mas vinha chegando gente por trás deles. Eram muitos. Uma nova onda de cristãos entusiasmados pela passagem finalmente aberta depois de horas e horas de combate, e ansiosos por atacar também a segunda linha defensiva, antes que os árabes tivessem tempo de guardá-la e consolidá-la. Inês se sentiu empurrada para a frente e Emanuel desapareceu de sua vista. Ela só conseguiu parar já aos pés da nova barreira, ao lado de um fosso no qual, pelo impac­to, acabou caindo junto com outros soldados.

Loucura, pensou. O primeiro circuito fora superado graças à acurada preparação do assalto. O segundo se apresentava tal como o infeliz ataque de poucas semanas antes, sem recursos e sob o único impulso da exaltação. A chuva de flechas que desceu dos espaldões sobre ela e seus companheiros confirmou-lhe as escassas probabili­dades de sucesso da nova tentativa.

Jamal viu Firuz se inclinar para evitar uma cutilada horizontal, en­colher-se sobre si mesmo e deslocar-se levemente na direção do adversário. Seu movimento fez tropeçar o antagonista, que caiu para a frente, imediatamente seguido pelos companheiros que se acotove­lavam atrás dele.

O turco emergiu a custo daquela mistura, trespassando quem havia sido igualmente ágil para se reerguer. A espada de Jamal des­ceu sobre outro franco particularmente ansioso por levantar-se e lutar, e durante alguns instantes o grupo de muçulmanos se viu sem perseguidores. O emir e os subalternos logo se aproveitaram disso, alcançando a rampa antes que os inimigos se reorganizassem e vol­tassem a atacá-los. Uma vez abandonados os espaldões, constataram ter criado entre eles e os cristãos uma distância suficiente para garantir a fuga.

A área entre as duas linhas de muralhas pululava de combatentes de ambos os exércitos, mas os muçulmanos em retirada ainda esta­vam em superioridade numérica. Portanto, não tiveram dificuldade de ganhar o acesso ao interior da cidade, da qual os defensores nos espaldões repeliram com a mesma facilidade os assaltantes suficien­temente audazes para avançar até o fosso.

Jamal subiu imediatamente aos espaldões. Observou a situação e deduziu que já não havia como rechaçar os infiéis para além da linha externa. Depois olhou o horizonte, na direção do ocidente, captan­do a última nesga do sol purpúreo que declinava. Com a mesma segurança, estabeleceu que o inimigo não teria condições de fazer um sério assalto ao circuito interno.

Se estivesse no lugar dos comandantes cristãos, pensou, trataria de consolidar a posse da linha externa e de fazer avançarem as máquinas, a fim de transferir o novo assalto para o dia seguinte.

Pediu notícias das outras frentes. Disseram-lhe que também no sul os francos estavam perto da barreira interna, mas não pareciam tendentes a atacá-la. Na Porta de Jaffa, porém, não tinham ido além de simples ações de distúrbio.

Por conseguinte, qualquer resolução do conflito estava posterga­da. O momento realmente decisivo seria o da jornada seguinte.

Mas dificilmente alguém repousaria, naquela noite.

De ambos os lados.

Após o assalto impensado, a fuga desastrosa. Ou melhor, apenas um recuo, na estreita área entre as duas linhas de muralhas, em direção àquela mais externa, já solidamente guardada pelos cristãos. Entre os que haviam ido parar no fosso, poucos conseguiram se esquivar. Muitos, entre os que escaparam à primeira descarga de flechas, não tiveram alternativa senão levantar-se e tentar voltar atrás. Tentar.

A maioria foi atingida nas costas por uma ou mais flechas, quando saía da vala ou poucos passos após se afastar dela.

Inês tinha conseguido se livrar, mas só porque estava entre os primeiros a emergir do fosso: os que a seguiam lhe serviram invo­luntariamente de escudo. Aliás, fora empurrada lá para dentro con­tra a própria vontade: ao contrário dos outros, estava bem conscien­te de que a exaltação pelo provisório sucesso na primeira muralha não seria uma arma suficiente por si só para expugnar também a segunda. Mais uma vez, seriam necessários a torre, as escadas, os tra­bucos e, sobretudo, o tempo.

Finalmente, a escuridão havia sido boa conselheira. Os dois exércitos estavam aproveitando-a para consolidar as respectivas posições, que, sobretudo no setor entre a Porta de Herodes e o bair­ro judeu, jamais tinham estado tão próximas.

A procura de Emanuel, Inês transitou entre cadáveres, feridos, soldados prostrados pela fadiga. Da retaguarda afluíam carroças com víveres para abastecer os combatentes e material de refugo para encher o fosso que corria ao longo do último baluarte da cidade. Os padres circulavam entre os soldados para benzer os mortos, conso­lar os feridos e exortar os outros a darem o melhor de si no dia seguinte. Suas ladainhas constituíam um murmúrio contínuo em meio aos sons alternantes produzidos pelo rangido das carroças, pelos lamentos dos feridos, pelas ordens dos comandantes e dos oficiais, pelos esforços dos serventes para posicionar as máquinas. As mulheres reviravam os cadáveres e examinavam os feridos para loca­lizar os cônjuges, e os gritos delas, de desespero ou de alegria, assina­lavam o resultado de suas buscas. As crianças corriam e saltavam de um lado a outro para conseguir armas entre os combatentes mortos, soltando berros de triunfo sempre que podiam elevar ao céu uma espada ensangüentada ou um escudo despedaçado.

Naquele acúmulo caótico de combatentes e civis, mortos e vivos, homens e animais, Inês bem cedo renunciou à esperança de localizar o bizantino. Concluiu que só por acaso poderia cruzar com ele, e estava muito cansada para passar as horas seguintes perambulando no escuro à procura de um homem que podia até estar morto.

Simplesmente deitou-se no chão para repousar. O sono chegou quase no mesmo instante.

Emanuel já estava até se acostumando à idéia. Os medicamentos aplicados nele, após a conclusão do ataque, só haviam aliviado momentaneamente a ardência e as fisgadas de dor na face. Pelo menos os olhos, a única parte de seu rosto, além da boca, não cober­ta pelas ataduras, tinham recomeçado a funcionar, embora o direito só lhe permitisse uma visão embaçada.

E assim, refletiu, chegara ao término de sua carreira. A noite e a vigília que ele se aprestava a viver como incapacitado, quase inábil para a guerra, seriam certamente as últimas de sua existência como soldado. Talvez até fossem as últimas em sentido absoluto: o médi­co lhe anunciara a possibilidade concreta de que sobreviessem infecção e febre, suficientemente fortes para levá-lo à morte. Na melhor das hipóteses, dificilmente conseguiria combater na manhã seguinte.

Perguntou-se se havia alcançado o objetivo que se propusera ao participar daquela campanha. Teria feito o bastante para ganhar o perdão de Deus? Trinta anos antes, levara sua pátria a perder uma batalha fundamental, condenando indiretamente seu imperador à queda e ao suplício, antes de uma morte atroz. E, desta vez, mesmo marginalizado, mesmo num exército que não era o seu, teria real­mente contribuído para o esforço comum de conquistar Jerusalém, como quer que terminassem as coisas?

Mas, sobretudo — porque era isso que de fato importava —, teria dado uma contribuição significativa para a causa do Senhor?

Não. Temia que não.

Gostaria de conversar sobre o assunto com Anselmo. Fizera mal em nunca lhe falar sobre sua conta em suspenso com Deus. Quem mais, senão aquele monge, puro, modesto, disposto a defender uma prostituta e uma mulher judia, ainda que a causa delas pudesse ser nociva até ao Senhor, poderia aconselhá-lo, confortá-lo, explicar-lhe o que Deus esperava dele?

Agora era tarde demais. Provavelmente não reveria Anselmo, e a dúvida de não ter feito o bastante pelo Senhor o consumia.

Só havia uma coisa a fazer.

Agradeceu à sorte — mas não ao Senhor — que Inês não tivesse tido tempo de terminar o que estava lhe dizendo, quando o encon­trara durante a batalha. E tampouco iria procurá-la para perguntar.

Levantou-se e, guiado pela luz das tochas, acompanhou o curso das muralhas rumo à posição de Godofredo de Lorena. Depois de alguns passos, mudou de idéia. Voltou atrás e seguiu em direção ao sul.

Era noite alta quando chegou ao setor guardado pelos provençais. Disse às sentinelas que dispunha de informações importantes para o conde de Toulouse. Precisou insistir, sobretudo porque seu rosto completamente oculto pelas ataduras tornava-o suspeito. Finalmente o desarmaram e o conduziram a Raimundo.

Encontrou o comandante provençal ainda acordado numa tenda improvisada, em cujo interior, ainda assim, haviam sido recriadas todas as comodidades às quais um aristocrata e um chefe tinham direito. Raimundo estava sozinho, ocupado em estudar os mapas do assalto iminente.

— Preciso lhe falar com extrema urgência, senhor conde — disse Emanuel.

Quem é você? De qual unidade provém? — perguntou o comandante, mais curioso pelo aspecto dele do que pelo início da conversa.

Isso não tem importância. Só tem importância aquilo que tenho para lhe dizer — respondeu o bizantino, sentindo um aperto no estômago.

 

Para os provençais, nenhum repouso. Mas, provavelmente, tam­pouco para os germânicos e os normandos, pensou Ricardo. O obje­tivo naquela noite era preencher o fosso, criando pelo menos uma rampa para a torre. A questão das escadas seria resolvida de manhã.

Mas os defensores vigiavam. O propósito dos cristãos era ampla­mente previsível, e isso induzira os árabes a iluminar bastante o alto das muralhas, com um número extraordinário de tochas. O expe­diente respondia a uma dupla intenção: permitir a conclusão dos trabalhos de elevação dos espaldões, sobre os quais surgiram de um momento para outro, armações que competiam em altura com a torre móvel dos cruzados, mas também tornar visível aos assediados a zona imediatamente subjacente, a fim de permitir que os arqueiros alvejassem aqueles que pretendessem se aproximar.

Assim, os primeiros que tentaram descarregar lenha no fosso tinham sido trespassados pelas flechas sem sequer levar a termo sua tarefa. Depois, os cristãos ficaram mais cautelosos, e para os oficiais não foi fácil encontrar quem se prestasse a executar ações tão arris­cadas. Acabaram obrigando alguns, mas a inevitável e triste sorte destes não havia favorecido o moral dos homens.

Portanto, arriscavam-se a chegar ao confronto matinal, refletia Ricardo, com um exército não só prostrado pela noite insone e pela exaustão como também desmotivado e temeroso. Raimundo, que era do mesmo parecer, correra a tomar providências. Surgido de repente entre os soldados, o conde declarara sua intenção de atribuir um prêmio em dinheiro a quem se encarregasse de encher o fosso.

A proposta alimentou não somente o espírito de iniciativa e a coragem, mas também a fantasia dos guerreiros. Cada um passou a imaginar expedientes para se aproximar das muralhas, valendo-se das coberturas mais improváveis e improvisadas. Havia os manteletes, claro, mas fazê-los avançar na escuridão era um problema, por causa dos numerosos cadáveres que jaziam perto do fosso. Então um grupo de soldados formou um testudo com os escudos, levando fei­xes de lenha com a mão que habitualmente segurava a espada; outro grupo juntou três escadas e revestiu-as com couros provisoriamente subtraídos aos anteparos móveis, usando-as como proteção.

Um soldado pediu emprestados dois escudos aos companheiros, prometendo dividir com eles o prêmio, acrescentou o seu e pendu­rou os três numa trave. Avançou sustentando aquela espécie de treliça de treinamento com ambos os braços e arrastando com os pés os feixes atados aos tornozelos. Não deu certo, porque no momento de lançar o material no fosso ele tropeçou e se descobriu, oferecendo o tronco aos muçulmanos, que não hesitaram em aproveitar. Os dois soldados que lhe haviam confiado os escudos só puderam recriminar a si mesmos pela própria irreflexão.

Outros ainda, mais temerosos, lançaram pedras e traves como se se tratasse de dardos, e alguns até instalaram feixes na colher do braço lançador das roqueiras. O resultado foi que o fosso se encheu razoavelmente, embora não o bastante. Mas, sobretudo, ninguém dormiu: até mesmo aqueles a quem cabia o turno de repouso não resistiam à tentação de observar as várias tentativas dos compa­nheiros, apostando entre si e com os próprios incursionistas sobre o êxito das ações.

Ricardo preferiu se esquivar, renunciando ao espetáculo. Deslocou-se para a retaguarda, onde percebeu uma atmosfera bem diferente. De fato, nas proximidades do fosso estacionavam somen­te os soldados ainda galvanizados pelo combate recém-concluído. Eram os que preferiam transcorrer a vigília da noite decisiva de sua carreira militar, e de sua própria existência, continuando a desafiar o perigo, a fim de evitar pensar nele, ou simplesmente entregando-se a patuscadas em grupo e considerando lícita qualquer diversão.

Mas havia outro tipo de soldado, e era o mais difundido. Era aquele que preferia ficar sozinho, rezando ou refletindo sobre sua vida passada, sobre os pecados e os erros cometidos. Era aquele que pensava nas pessoas a quem amava perguntando-se se as reveria, que sentia angústia, medo, até terror ante aquilo que o aguardava no dia seguinte, que relembrava com saudade, se convocado pelo seu senhor, a vida mais tranqüila nos campos, que se interrogava sobre as próprias escolhas e, sobretudo, sobre aquela de se ter feito cruzado.

Ricardo se perguntou a qual categoria ele mesmo pertencia. Logo depois de haver recomeçado a combater, três anos antes, não teria hesitado em se colocar na primeira. Sempre pensara que pare­cer um valentão, ostentar segurança, tentar se manter no centro das atenções, demonstrar uma atitude de camaradagem fosse a conduta mais adequada a um soldado. Mas, no decorrer daquela longa cam­panha e, sobretudo, durante o último assédio, sua postura havia mudado. Ele havia mudado. Talvez tivessem sido as matanças, as atrocidades gratuitas e os massacres aos quais assistira e dos quais participara de má vontade durante a cruzada a fazê-lo recuperar uma dimensão mais despretensiosa e reservada; a mesma que ele mantivera durante anos, quase três décadas, vivendo nos bosques como um eremita.

Ou talvez tivessem sido as irmãs judias.

Mas qual das duas?

Inês acordou sobressaltada. Talvez tivesse sido um rumor repentino, talvez o sono muito agitado ou, ainda, a posição incômoda. Parou de se perguntar o motivo após um instante, tentando, em vez disso, compreender quanto faltava para a alvorada e, por conseguinte, para o ataque.

Um leve clarão havia acendido o céu. Não, não devia faltar muito. Com uma atenção que jamais lhes dedicara até esse momen­to, observou a lua e as estrelas, cuja luz intensa estava se enfraque­cendo. Perguntou-se se ainda iria revê-las.

Tinha combatido, durante o dia recém-transcorrido. Tinha combatido e estivera perto da morte várias vezes, embora valendo-se apenas de expedientes para ser útil ao exército sem enfrentar o corpo a corpo. De fato, se não fosse Emanuel, teria levado a pior, na única ocasião em que precisara usar a espada.

Não que tivesse medo de morrer. Afinal, era melhor morrer em batalha, durante um empreendimento que valia o perdão de Deus, do que na Europa, velha e cansada, roída por doenças transmitidas pelos clientes, evitada e desprezada pelos mesmos homens que antes haviam pago, às vezes até regiamente, para possuí-la.

Agora, provavelmente, Emanuel já não podia ajudar ninguém. Talvez até estivesse morto. E Ricardo... se não tivesse morrido tam­bém, estaria muito ocupado, nas horas seguintes, para pensar em Rebeca e Anselmo. No entanto, alguém devia pensar neles. O monge estava destinado a morrer, se ela não o ajudasse. Ricardo lhe pedira isto: uma manifestação de estima, pelo menos.

Perguntou-se se amava aquele normando ou se o desejava por­que não o tivera. Nunca amara ninguém e não conhecia a profundi­dade dos próprios sentimentos. Percebia apenas que havia algo dife­rente, nela, quando pensava naquele fanfarrão; algo que não lhe era familiar, algo mais do que a atração experimentada no passado por outros homens.

E Anselmo... aquele monge literalmente se condenara para salvá-la. Não podia deixá-lo morrer nas mãos de Godofredo.

Concluiu que sua contribuição ao exército durante o assalto seria marginal, mas, ao monge e à judia, fundamental.

De repente, não teve mais dúvidas.

Levantou-se e se dirigiu com a espada no flanco para além da li­nha externa de muralhas, rumo ao velho acampamento dos lorenos.

Se assim o governador tinha ordenado, assim seria feito. As primei­ras luzes do amanhecer, Jamal abandonou a posição setentrional para ir ao encontro de Iftikhar al-Dawla no pólo oposto, no ângulo sul-ocidental. Os infiéis começavam agora a se movimentar para preparar o ataque.

Não o agradava separar-se de Firuz, a quem tivera de deixar junto da Porta de Herodes. Olhou o turco que havia sido seu insepa­rável e fiel guarda pessoal por um ano inteiro; o homem que lhe per­mitira, com sua coragem e um espírito de iniciativa sem igual, vol­tar a comandar as próprias tropas, em vez de morrer como escravo entre os infiéis; o homem que, quando podia, ainda cuidava de sua Sara.

Até mesmo naquela noite, em vez de descansar, Firuz fora veri­ficar as condições da jovem. E sem que isso lhe tivesse sido ordena­do. Jamal soubera, assim, que Sara havia dormido na sinagoga com grande parte dos judeus e que não lhe faltara nada. O conforto pela momentânea segurança da moça não conseguiu, porém, cancelar no emir a angústia por se afastar daquele amigo silencioso e austero, sensato e equilibrado, a quem, com toda a probabilidade, já não reveria.

Sim, porque, apesar do otimismo do governador e das condições do confronto, objetivamente ainda muito favoráveis aos muçulma­nos, Jamal tinha a sensação de que o convívio entre eles estava che­gando ao fim.

Tendo deixado para trás o setor setentrional, já na altura da Porta de Jaffa ele escutou os gritos de alarme dos defensores nos espaldões, assinalando o início do ataque. Presumindo que o mesmo acontecia no sul, acelerou o passo. Ladeou as muralhas além da cida­dela, e o movimento que viu nos espaldões meridionais confirmou suas suspeitas: o assalto havia começado.

Escalou correndo a rampa que levava às ameias e, em seguida, subiu até a torre onde se agitava ao vento o estandarte do governa­dor. Iftikhar al-Dawla o convidou a olhar para fora. A primeira coisa que Jamal notou foi a torre móvel, que avançava lentamente rumo ao fosso. Então observou melhor para ver se este último a suportaria. Havia um esboço de rampa, mas ainda incompleto, e ele não duvidou que os esforços dos francos, nas horas seguintes, seriam dedicados a preencher aquele desnível.

Depois percebeu uma vibração repentina ao seu redor. Os infiéis já tinham começado a fazer trabalharem os trabucos e as roqueiras.

O irmão de Godofredo de Lorena, Eustáquio de Boulogne, tinha sido gentil, afinal, pensava Emanuel, enquanto avançava ao lado dos companheiros rumo à nova linha de muralhas. Ao passar em revista os feridos para verificar quem ainda tinha condições de lutar, o nobre loreno havia levado em consideração a vontade dele no senti­do de prosseguir no combate; logo depois, fornecera-lhe um elmo cilíndrico, daqueles que os cavaleiros usavam, com uma única fenda em cruz para olhos, nariz e boca.

Na realidade, sentia-se um pouco ridículo. Seu equipamento já era uma estranha miscelânea de estilos, com armas de grego e de lati­no, de cavaleiro e de infante. Mas qualquer traje é bom para buscar a morte, refletiu. Não lhe restava mais nada. Como quer que fosse aquele dia no campo de batalha, qualquer eventual apêndice à sua vida seria penoso, no físico e no moral.

Por isso, oferecera-se para terminar o preenchimento do fosso. Mas cuidou bem de não se deixar derrubar logo, a fim de não perder a possibilidade de transpor as muralhas. Queria morrer, sim, mas dentro de Jerusalém, no lugar onde morrera também o Senhor.

Voavam mais flechas do que na véspera, mais jatos de óleo fervente, mais dardos, mais odres de materiais inflamáveis. Os muçul­manos sabiam que precisavam lançar mão de todos os seus recursos, que deviam descobrir até as energias mais insuspeitadas. Mas os cris­tãos também estavam determinados a desenvolver todos os esforços de que eram capazes.

Tancredo de Hauteville havia trazido a torre menor para junto da de Godofredo. Juntos, os dois artefatos constituíam uma ampla base sobrelevada de onde os assaltantes alvejavam constantemente os espaldões. Os soldados se mostravam incansáveis, alternando-se em lançar feixes de lenha no fosso, apoiar escadas à muralha, substi­tuir os companheiros que tombavam.

Emanuel evitou a morte várias, vezes, marcando encontro com ela para o lado de dentro das muralhas. Esteve no fosso, nas escadas, atrás e à frente dos manteletes e, finalmente, foi o último, junto com um pelotão de companheiros, a dispor as tábuas que deviam estabi­lizar a rampa criada pelos detritos para a passagem do aríete.

Logo depois dedicou-se ele mesmo a este último, entrando na casamata e ajudando os companheiros a empurrar o tronco basculante. Era o último da fila e, no momento de tomar impulso, recua­va quase até o limite da entrada posterior. Após diversos golpes, experimentou inclinar-se para fora e verificar como estava a obra de demolição. Uma rápida olhadela para a muralha lhe confirmou que ainda havia muito a fazer. Em seguida, olhou também para o alto, a fim de observar os espaldões.

Havia um trabuco içado até os merlões.

Era óbvio, pensou. Os muçulmanos deviam ter achado que as máquinas já não eram úteis a curta distância, e ocorrera-lhes que um modo eficaz de deter o aríete seria jogar em cima dele alguma coisa muito pesada.

Um trabuco, justamente.

— Saiam! Saiam todos! — bradou imediatamente, mas só dois lhe deram ouvidos. Os outros não o escutaram ou, então, decidiram prosseguir. A máquina dos defensores lhes caiu em cima um instan­te depois, espatifando-se sobre o teto da casamata e reduzindo-a a um amontoado de traves despedaçadas e soltas, do qual afloraram membros partidos e ensangüentados.

Ouviu-se dos espaldões um grito coral de triunfo. Emanuel se precipitou para trás da torre. Os outros dois não conseguiram: os dardos os alcançaram antes que eles pudessem dar poucos passos.

Agora, a rampa estava cheia de detritos. Obstáculos ao avanço da torre, último recurso que restara aos assediantes para penetrar as defesas inimigas. Veio a ordem de desobstruir a ponte. Emanuel se viu incluído num batalhão de vinte homens que se dispuseram em testudo e avançaram até o acúmulo de traves.

Choveu de tudo sobre a formação. Cada soldado resguardava com seu escudo aquele que o precedia; os componentes da primeira linha, porém, mantinham o escudo diante do corpo, tentando afas­tar o entulho com os pés e com o braço direito. Emanuel estava situado na lateral e também mantinha o escudo embaixo, junto ao flanco, contando com a proteção de um companheiro para a cober­tura sobre a cabeça.

Flechas, pedras e até pedaços de rocha destinados ao arremesso dos trabucos caíam continuamente dos espaldões e era questão de poucos instantes que a compacidade da formação se desfizesse. O primeiro a tombar foi um dos que estavam na frente: perdeu o equi­líbrio e se precipitou da rampa depois de receber uma pedrada na cabeça. O que vinha atrás ocupou imediatamente o lugar dele, encarregando-se de deslocar os detritos restantes, mas agora o testudo havia perdido a coesão e outros projéteis se insinuaram entre os escudos.

De repente, como que tomados pela consciência comum de não poderem agir de outro modo, todos os componentes da formação renunciaram a cobrir uns aos outros e colocaram o escudo acima da cabeça, jogando-se sobre os detritos e concentrando-se apenas na remoção destes. Os obstáculos acabaram logo no fosso, mas perma­neceram na rampa os corpos, trespassados pelos dardos, de quase todos os soldados.

Emanuel se viu dentro do fosso, em meio aos detritos e aos cadá­veres dos companheiros. Rastejando e usando o escudo como cober­tura, assomou à superfície da rampa; viu que dois corpos jaziam bem no centro. Tinham de ser removidos. Sempre rastejando ao longo do terreno para não ser notado pelos defensores, pegou uma trave solta e, pousando-a sobre a ponte, usou-a para empurrar os corpos em direção ao lado oposto.

Após várias tentativas, conseguiu liberar a superfície. Agora, se ten­tasse sair do fosso, ofereceria aos atiradores muçulmanos um alvo fácil demais; não tinha escolha, a não ser permanecer ali embaixo, confundindo-se entre cadáveres e detritos, à espera da chegada da torre.

Não precisou esperar muito. Godofredo, quando viu do alto do artefato o caminho desimpedido, deu ordem de avançar. Em pouco tempo, Emanuel viu a sombra imponente da torre obscurecer a luz do sol. Constatou que ela também o escondia da visão dos defenso­res; então aproveitou para sair do fosso e se içar à traseira da forta­leza móvel.

Os cruzados finalmente estavam posicionados para tentar o arrombamento.

E ele, Emanuel, continuava vivo.

Ainda vivo, e postado no setor nevrálgico.

Balanço positivo.

"Sem dúvida, eu podia ter me decidido antes...", disse Inês a si mesma, ao ver o céu se tornar cada vez mais claro, após sair pela Porta de Herodes. Porém, refletiu, embora perdesse a vantagem de agir no escuro, ganhava outra, representada pelo recomeço da bata­lha, que certamente distrairia os guardas do recinto dos prisioneiros.

Tecnicamente, podia ser acusada de deserção. Mas, depois de uma derrota, isso já não teria importância. E, depois de uma vitória, ninguém se preocuparia com o fato de uma mulher ter se subtraído ao combate decisivo; pelo contrário, teriam uma pessoa a menos com quem dividir o butim.

Deixou à sua direita os acampamentos de Roberto da Normandia e Roberto de Lorena e dirigiu-se ao sul, rumo ao campo de Godofredo. Ultrapassou a trincheira que havia assinalado por quase um mês o limite de segurança dos assediantes. Dois guardas vigiavam o local, mas não deram nenhuma atenção à passagem de uma mulher, ainda que ela trouxesse uma espada no flanco. O campo, além disso, ainda estava cheio de mulheres, e mais de uma tinha ido e voltado às posições mais avançadas, a fim de procurar filhos e maridos. Outras, porém, haviam permanecido do lado de dentro da trincheira, tratando de feridos e enfermos ou simplesmen­te cuidando das crianças. Inês se perguntou que fim levariam se os muçulmanos vencessem e, por alguns instantes, relembrou aquilo que acontecera três anos antes em Civetot.

Mas logo se refez. Naquele momento, devia pensar na incolumidade de uma só mulher e de Anselmo. Os primeiros rumores do novo assalto trouxeram-na de volta ao presente. Voltou-se rapida­mente, tentando ver alguma coisa, mas os setores do confronto fica­vam, um, muito mais ao sul, e o outro, no lado oposto, e dos com­bates só lhe chegava o eco.

Acelerou o passo, detendo-se a uma distância suficiente para não ser notada pelos guardas. Havia somente dois. Obvio: não era neces­sário um destacamento para vigiar uma mulher e um padre todo moído.

Viu que Anselmo estava de pé. Bom sinal: pelo menos, não pre­cisaria arrastá-lo. Agora, tratava-se de descobrir o modo de levar dali os dois, monge e judia, de preferência sem se manchar de homi­cídio.

Teve uma idéia.

Aproximou-se dos guardas com passo seguro. Demorou-se um instante, quando percebeu que Rebeca e Anselmo a tinham visto: não queria que demonstrassem conhecê-la, e fez um imperceptível movimento de negação com a cabeça, para fazê-los entender que evi­tassem qualquer reação. A judia compreendeu e colocou precipita­damente uma das mãos sobre a boca de Anselmo, que estava prestes a falar.

Mensagem do duque Godofredo. Um de vocês deve ir ao encontro das tropas dele, na Porta de Herodes! — anunciou Inês aos dois soldados.

Quem disse? — respondeu um, cético.

O duque, naturalmente. Está precisando de todos os homens disponíveis — retrucou ela.

E por que enviou uma mulher para nos dar o recado? — repli­cou o outro, ainda desconfiado.

Eu era a única que ele considerou dispensável. A batalha está encarniçada e exige gente em condições. Decidam quem deve ir, mas logo! — insistiu Inês.

Os dois a encararam, perplexos. Desejavam fortemente que a mensagem fosse verdadeira. Morriam de vontade de participar da batalha e consideravam frustrante haver chegado ao combate final sem estar presentes; mas, sobretudo, sem ter a possibilidade de ganhar o butim.

Não trouxe nada por escrito? — perguntou o mais cético.

Por quê? Vocês sabem ler?

Não... mas... o sinete do duque seria uma garantia... — obser­vou o homem.

Imagine se o duque estava preocupado com coisas desse tipo! Você não se dá conta daquilo que está acontecendo lá? — insistiu ela, inflamada. — O duque está no alto da torre móvel, dando ordens a todos, e não há soldado que não esteja empenhado em tentar o arrombamento. Até os feridos estão se lançando contra as muralhas. E enquanto vocês, aqui, ficam vadiando, seus companheiros morrem...

Houve uns instantes de silêncio.

Pode ser que agora já tenham entrado e estejam iniciando o saque... — acrescentou Inês, na esperança de que esse argumento fosse decisivo.

Talvez seja verdade que o duque a enviou. Não a reconhece? E a puta de Godofredo... — disse o soldado que parecera menos des­confiado.

Seu interlocutor ainda hesitou.

Então, quem vai? Vamos disputar? — disse, desembainhando a espada e colocando-se em posição de combate.

O primeiro que conseguir tocar o outro — respondeu o cole­ga, puxando a dele por sua vez.

 

Embora a torre estivesse junto à muralha havia tempo, o conde de Toulouse não conseguia dar a ordem de lançar a ponte levadiça. Fazer isso significaria mandar para a morte certa quem quer que se valesse dela para chegar aos espaldões. De fato, havia muitíssimos defensores concentrados naquele ponto: seus arcos tensionados constituíam um fator dissuasivo para quem ousasse colocar sequer a cabeça fora das seteiras.

Ricardo percebeu a preocupação nos olhos de seu comandante. Perguntou-se se Raimundo estaria desejando para Godofredo um insucesso semelhante ou se ainda teria esperança num arrombamento, viesse de onde viesse.

Encontravam-se ambos no alto da torre, e o espetáculo a que assistiam era desalentador. As escadas estavam quase todas no chão, empurradas para trás pelos expedientes dos muçulmanos. O fosso estava preenchido somente em alguns pontos, muitos dos quais de cadáveres. Os anteparos móveis jaziam em grande parte sobre o ter­reno, incendiados, demolidos ou inutilizáveis. Os soldados haviam ficado temerosos e já não avançavam com a mesma decisão demonstrada no início do assalto.

Somos muito poucos, muito poucos... — comentou baixinho Raimundo, que, balançando a cabeça, olhava desconsolado para baixo. Seguramente, pensou Ricardo, aconteça o que acontecer, haverá recriminações sobre a distribuição das forças de ataque.

Vamos tentar usar manualmente os projéteis da roqueira para abrir o caminho... — arriscou o normando, aproximando-se do conde.

Raimundo observou o monte de pedras que jazia num canto da plataforma. Agora, com a torre muito próxima das muralhas, elas já não teriam nenhuma utilidade para os lançamentos do trabuco.

— Concordo — respondeu. — Pegue quatro homens e joguem as pedras com as mãos. Alternem os lançamentos com o mesmo núme­ro de arqueiros; que eles atirem no mesmo momento. Ordene que, no andar inferior, os soldados se preparem para descer a ponte quando eu mandar, assim que perceber uma abertura entre os defen­sores — acrescentou.

Ricardo comunicou as ordens ao plano inferior; depois, agarrou uma pedra e dispôs os outros homens ao longo do parapeito, alter­nando lançadores e atiradores. Quando Raimundo deu o sinal con­vencionado, baixando o braço, arremessou com toda a força o pro­jétil. A pedra ultrapassou a custo as ameias e caiu em cima de um defensor, jogando-o ferido no chão. O que estava ao lado deste rece­beu uma flecha no pescoço e acabou fora de combate. Depois os egípcios trataram de estreitar as fileiras, mas, por um instante, abrira-se um vão.

Funcionava, talvez.

Ricardo pegou outra pedra. Simultaneamente, Raimundo gritou que baixassem a ponte e saltassem logo fora dela. A nova descarga de pedras e flechas acompanhou o movimento do guincho de aciona­mento da passarela, que se prendeu às ameias pelos grampos instala­dos em sua extremidade. Imediatamente, os guerreiros cristãos se lançaram um atrás do outro ao longo da ponte. Caiu o primeiro, atingido por uma flecha.

Caiu o segundo, também vítima de um dardo.

O terceiro chegou aos merlões, mas apenas para ser ceifado por uma cimitarra árabe.

O quarto transpôs as ameias e conseguiu duelar por alguns ins­tantes, antes de tombar sob os golpes inimigos. Enquanto isso, porém, os seguintes conseguiam irromper sobre os espaldões.

Do alto, já não se podiam lançar pedras. A luta estava muito próxima e havia o risco de acertar os companheiros. Os arqueiros também não podiam mais atirar no amontoado de homens; ainda assim, continuaram sua ação dirigindo-a contra os defensores que, de ambos os lados dos espaldões, tentavam convergir para o centro do confronto.

Eu também vou, conde — disse Ricardo, tomando escudo e espada e olhando o comandante.

Certo. Você e esses que atiraram as pedras — disse Raimundo, voltando-se para os outros.

Ricardo se encaminhou para a abertura da qual partia a escada para o piso inferior.

Um momento! — gritou o conde atrás dele.

O normando se deteve já sobre o alçapão.

Você é um excelente soldado, Ricardo. Depois, precisamos conversar — disse Raimundo, olhando-o com grande intensidade, como se quisesse estudá-lo.

Ricardo permaneceu em silêncio por um instante.

Como queira, meu senhor — respondeu, afinal, antes de desa­parecer pela escada.

Não teve tempo de refletir sobre as palavras ambíguas do conde. Mal se viu embaixo, percebeu que não era possível avançar. Havia uma grande aglomeração diante da saída, e o movimento não era para fora.

Era para dentro.

A tropelia não lhe permitiu enxergar o que estava acontecendo na ponte, mas não foi difícil compreender. O ataque já falhara e a passarela estava nas mãos dos defensores, que se serviam dela para contra-atacar.

Puxem para cima! Puxem para cima! — gritou Ricardo, ten­tando, em vão, alcançar os cabrestantes para levantar a ponte.

Ninguém o escutou. Um árabe acabava de entrar com uma tocha na mão.

Fogo grego.

Mil espadas trespassaram de imediato o muçulmano, mas não impediram que a tocha caísse junto da parede, onde não havia peles encharcadas como no lado externo.

Era apenas madeira. Um instante depois, a lateral da torre se transformou numa parede de chamas.

Fogo grego. Era previsível, pensou Emanuel, depois de subir lenta­mente até o último piso. Assim que o duque Godofredo dera ordem de aproximar das muralhas a torre, os defensores tinham arremessa­do contra as laterais do artefato vasos de terracota com a mistura incandescente. A madeira era revestida por espessas camadas de couro embebidas em urina, mas cedo ou tarde as chamas lamberiam alguma trave descoberta, sobretudo embaixo, e então qualquer oportunidade de conquistar as muralhas desapareceria.

Tratava-se de baixar a ponte e chegar aos espaldões antes que isso acontecesse.

Godofredo ordenou um denso tiro de cobertura do alto da torre, mas a ação de arqueiros e besteiros não parecia suficiente para debi­litar as defesas muçulmanas. Nessas condições, não havia como alcançar os espaldões. O duque esperou um pouco, e depois notou uma fagulha caindo sobre uma das coberturas acolchoadas que os defensores haviam pendurado ao longo das muralhas. Uma pequena nuvem de fumaça se levantou no ponto onde acontecera o contato.

— Arqueiros! — gritou Godofredo. — Embebam as pontas das flechas em piche! Aproximem-nas das chamas e atirem contra as proteções das muralhas!

"Genial!", pensou Emanuel. "Uma cortina de fumaça é justa­mente o que necessitamos para limitar a eficácia da defesa." O bizantino observou as flechas de seus companheiros golpearem abaixo das ameias. Em pouco tempo a palha e o cordame naval con­tidos nas urdiduras pegaram fogo, levantando nuvens que não demo­raram a formar uma tapagem entre defensores e atacantes. A vanta­gem, porém, era toda dos cristãos, que podiam empurrar em direção às muralhas já sem temer as flechas dos arqueiros adversários.

Godofredo ordenou imediatamente o avanço da torre, mas reco­mendou que este fosse oblíquo. Os serventes de um lado empurra­ram primeiro, e em seguida os do outro. Emanuel sentiu as vibra­ções produzidas pelo movimento daquela estrutura de quatro pisos sobre uma superfície irregular, enquanto escutava o rangido das rodas e os gritos de esforço dos homens encarregados da impulsão. Para não perder o equilíbrio, teve que se agarrar ao parapeito.

Foi muito rápido. As muralhas estavam próximas e a torre, que já ultrapassara o fosso, parou de repente. A ponte. Agora, era a vez da ponte.

E, depois, a dos homens.

 

Firuz tinha lágrimas nos olhos. Aquela fumaça acre não só o impe­dia de ver o inimigo já próximo, como também o obrigava a manter cerradas as pálpebras. Sabia diante de quais ameias estava a torre, mas não a que distância. Imaginava que ela surgiria em meio à névoa artificial, vários passos à sua direita, mas mantinha-se vigilante e atento a qualquer sinal que pudesse trair a presença do artefato.

Observava seus companheiros no flanco direito, os quais conti­nuavam a lançar flechas às cegas. A atmosfera parecia irreal, a tensão era mais palpável do que nunca, bem mais do que sempre fora na iminência de um impacto entre fileiras contrapostas. A sensação de perigo prevalecia sobre a exaltação que acompanha os combatentes nos instantes anteriores ao confronto: Firuz intuiu que, como ele, os outros fiéis sentiam os membros rígidos, o estômago apertado, a res­piração afanosa.

O enorme objeto desembocou da névoa. Enganchou-se aos merlões com um baque possante. Mas não à direita do turco.

Diante dele.

A ponte levadiça.

Escudos e espadas se materializaram de repente, antes mesmo dos elmos e cotas de malha.

 

Os dois guardas do recinto dos prisioneiros levaram um bom tempo para dirimir sua briga. Ambos procuravam vencer a disputa e parti­cipar da batalha, e pensavam mais em se defender do que em atacar, para não correr o risco de se expor. Inês não acompanhou o duelo. Lançava olhadelas furtivas a Rebeca e a Anselmo, com o propósito de tranqüilizá-los e fazê-los saber que tudo estava sob controle.

Na realidade, não estava. Ela não fazia idéia de como se livrar do soldado que restasse. Rebeca, por sua vez, mostrava-se vigilante e parecia ter compreendido muito bem as intenções de Inês, ao passo que Anselmo só casualmente cruzava o olhar dela; o monge parecia abúlico, vazio, desprovido de interesse pelo que o circundava.

A contenda terminou. Segundos depois de tocar o adversário, o vencedor já desaparecera, nas asas do entusiasmo pela participação na batalha e, sobretudo, no saque. Inês observou o outro. A expres­são dele era a de um homem desiludido e frustrado.

O soldado não demorou a manifestar suas sensações:

— Que vida miserável! — exclamou, dirigindo-se a ela. — Eu sou obrigado a ficar aqui, servindo de ama-seca a um padre e uma judia, enquanto todos têm a possibilidade de combater e de se ajeitar para a vida toda! Até você — acrescentou, apontando a espada que Inês trazia no flanco —, uma puta, pôde participar da batalha... e eu não!

Aí está a oportunidade, pensou Inês. Mas queria ganhá-la nas condições certas.

Esta puta... como diz você — respondeu, plantando as mãos nos quadris e assumindo uma atitude de desafio —, treinou longa­mente, e sabe se arranjar muitíssimo bem num combate, fique sabendo...

Ora, faça-me o favor! No máximo, você pode se arranjar muito bem combatendo na cama. Vê-se que compensa ser a puta do duque...

Todas essas alusões depreciativas à sua profissão começavam a aborrecê-la. Enfrentar aquele paspalhão já não era somente uma questão tática. E também, afinal, se Godofredo deixara aqueles sujei­tos ali, significava que eles realmente eram os dois soldados mais incapazes de seu contingente.

Ah, é? — replicou, sinceramente indignada. — Quer apostar como eu me saio melhor do que você? Vamos, ponha-se em guarda - disse, desembainhando a espada.

O soldado explodiu numa gargalhada grosseira.

Não me faça rir! Volte depois da batalha, e, se for o caso, podemos nos ver na minha tenda, mas para outro tipo de encontro... - respondeu, sem tocar a própria espada.

Inês avançou para ele e lhe desfechou uma cutilada contra o escudo, que o homem mantinha apoiado no solo, ao longo da perna. O objeto caiu, mas o soldado não se preocupou em apanhá-lo.

Puta sem-vergonha! — exclamou, puxando finalmente a espa­da. — Você precisa mesmo de uma lição!

No impulso de raiva, desferiu um golpe desajeitado e previsível, que Inês aparou com facilidade. Depois outro, e mais outro, conse­guindo apenas cruzar a lâmina da mulher. Esta lutava exclusivamen­te na defesa, com o firme propósito de não o matar, limitando-se a desarmá-lo. Teve a possibilidade de investir sobre a guarda desco­berta do adversário, mas não a aproveitou, buscando, de preferência, mirar o pulso dele para privá-lo da arma.

Alcançou o objetivo. Sua lâmina encontrou o punho do antagonista, e a dele foi parar no chão. Ela foi rápida em colocar o pé em cima, mas o homem estava muito irritado para pensar em recolher a espada caída. Ficou encarando a mulher com ódio, antes de se lançar sobre ela de mãos nuas. Inês apontou a espada, e o soldado se deteve de chofre. Fremia de vontade de se vingar, mas, com a ponta da espada a pouca distância de sua cara, foi obrigado a se render.

Está bem, você venceu, mas só graças a um golpe de sorte. Agora, devolva minha espada — disse.

Inês manteve sua arma apontada contra ele, inclinando-se lenta­mente para recolher a outra, mas sem perdê-lo de vista. Quando se reergueu, viu o soldado estender a mão para receber a espada. Ela, porém, virou o tronco e lançou-a no recinto, na direção de Rebeca, que se apressou a apanhá-la.

O que significa isso? — perguntou o soldado, claramente agi­tado.

Significa que agora você fica aqui quietinho, quietinho — res­pondeu Inês, aproximando mais a ponta da espada. E, em seguida, virando-se para Rebeca, acrescentou: — Quanto a você, pegue aque­las cordas penduradas na cerca e me traga.

 

A primeira coisa em que Ricardo pensou enquanto todos os companheiros tentavam se pôr a salvo, saltando da torre ou pendurando-se às peles ao longo da parede externa, foi que o conde estava lá no topo. Mas a zona da escada já estava em chamas, e ele não tinha como subir, tanto quanto os de cima não podiam mais descer. O conde e os outros estavam perdidos.

O fogo havia envolvido o homem ao lado de Ricardo, transformando-o numa tocha ardente. O pobrezinho correu para ele em busca de ajuda, mas Ricardo não teve escolha a não ser afastar-se e deixá-lo cair no vazio.

As chamas já o alcançavam. Mas, sobretudo, estavam rachando a estrutura, ameaçando até mesmo o piso superior de desabar a qual­quer momento. Não havia tempo a perder. Ele se livrou do escudo e se debruçou para fora, na parte traseira da torre. Olhou para o alto, a fim de ver quanto distava do topo, e depois para a lateral, a sua própria altura. Um dos soldados que haviam tentado escapar para a parte externa, segurando-se ao revestimento de couro a fim de descer, pendia trespassado por uma flecha, que o mantinha fixado à parede.

E os dardos continuavam a chover. A solução parecia perigosa demais. Não havia escolha, porém. A única possibilidade era subir ao longo da quina posterior. Ricardo se agarrou à viga vertical e ini­ciou a escalada. Uma flecha passou de raspão. Outra se espetou a um palmo de sua mão.

Lá em cima, reinava o caos. Ele havia deixado uns quinze solda­dos e, agora, encontrava no máximo a metade. Ainda teve tempo de ver dois que se atiravam de cabeça para baixo. Outros tantos jaziam mortos, varados pelas flechas.

O conde.

Raimundo estava caído embaixo de um dos cadáveres. Não pare­cia ferido, mas se movia com dificuldade, aparentemente desfalecido. Ricardo se aproximou e removeu o morto de cima dele, depois tomou-o pelo braço e o ajudou a se levantar. Raimundo ainda parecia confuso, mas não o suficiente para impedi-lo de perceber a situação.

Veio morrer comigo? — perguntou.

Não. Vim salvá-lo — respondeu Ricardo, inclinando-se a fim de olhar para baixo. Pular dali estava fora de questão. E descer agarrando-se aos couros parecia sem esperança, com os dardos que choviam a cada instante. O normando recolheu dois escudos e, uti­lizando a correia com a qual eles eram pendurados ao corpo duran­te a marcha, prendeu um ao flanco e outro no ombro.

Sentiu a plataforma afundar sob seus pés. Chamas começaram a brotar do piso inferior, lambendo-lhe os pés. Algumas traves cederam.

Raimundo ficou perplexo. Provavelmente havia esperado que um dos escudos fosse para ele, e ficara decepcionado ao ver que Ricardo os tomara só para si. Pareceu ainda mais desconcertado quando o normando o exortou a se livrar do peso da cota de malha. Mas Ricardo o tranqüilizou com um gesto da mão e, em seguida, transpôs o parapeito, agarrando-se ao couro pregado logo abaixo deste. Acenou ao conde que fizesse o mesmo, mas posicionando-se à sua direita, mais perto da traseira da torre, cujo topo se desmancha­va rapidamente.

O conde o seguiu, mas ainda estava atordoado e sua preensão não parecia firme. Ricardo tinha previsto isso; assim que o viu à sua altura, cingiu-o com o braço livre, ajudando-o a se sustentar. Manteve a mesma posição enquanto descia lentamente a parede, sem atentar para os impactos que percebia sobre os escudos, repetida­mente causados pelas flechas.

O esforço era atroz. Com um braço ele segurava a si mesmo e, com o outro, o conde. Agarrava-se ao couro que recobria a parede, depois o soltava e agarrava-se de novo poucos palmos abaixo, com fisgadas de dor e cansaço cada vez mais intensas nas mãos.

Sentiu a torre ceder lá em cima. Tições ardentes caíram ao longo das laterais do artefato, lambendo o corpo dele e o do conde. Sentiu uma pancada sobre o elmo e uma lufada de calor lhe abrasou o rosto. Mas limitou-se a apertar os dentes.

Quase no final da descida, foi tentado a se deixar cair, mas temeu por Raimundo e se impôs um último esforço, até perceber o terreno sob a planta dos pés. Sentiu um novo impacto no escudo. Ainda não estavam em segurança, e ele não devia cometer o erro de baixar a guarda só porque se encontrava no chão. Empurrou o conde, ainda pouco reativo, para trás do que restava da torre, onde se amontoa­vam outros soldados. Depois tratou de recuar mantendo exposto somente o lado protegido pelos escudos, já perfurados por dezenas de dardos.

Finalmente, chegou também à zona protegida, onde todos felici­tavam o conde. Mas Raimundo só tinha olhos para ele.

— Mais uma vez, você me salvou a vida. Eu lhe sou duplamente devedor — disse ao normando, assim que o teve ao alcance da voz.

Os soldados enxamearam para fora da torre de Godofredo, um atrás do outro, em rápida sucessão. Emanuel desejou pertencer ao primei­ro pelotão, mas sabia que o duque não pretendia conceder tal honra a soldados não lorenos. Debruçou-se ao parapeito, mas só viu a passarela abaixo de si lotada de combatentes que, avançando, desa­pareciam na nuvem de fumaça. Mas o que acontecia além da ponte, isso ele não conseguia enxergar.

Alguns instantes depois, contudo, viu um soldado ser empurra­do para trás, e outro se precipitar segurando entre as mãos o ventre rasgado. Mas logo os outros que se seguiam mergulharam na nuvem; os gritos e o clangor das espadas que ele ouviu para além da camada de fumaça fizeram-no compreender que estavam dando trabalho aos defensores. Os soldados continuaram avançando, sem encontrar oposição, antes de desaparecerem na névoa.

Já era evidente que o impulso máximo devia ser produzido agora: alguns vãos tinham sido abertos, do outro lado daquela bar­reira visual; não por acaso, as escadas que outros cruzados apoiavam ao longo das muralhas encontravam menos oposição. Godofredo se deu conta disso e ordenou que também os homens do topo seguis­sem para os espaldões, ou melhor, ele mesmo foi o primeiro a des­cer ao piso inferior para percorrer a ponte levadiça. Emanuel o seguiu e, em breve, se viu disputando o acesso à passarela com uma massa de companheiros.

Quando chegou a sua vez, a ponte estava tão cheia de guerreiros que o avanço era difícil. O grego o percorreu lentamente, empurran­do o companheiro que o precedia e pressionado por quem vinha atrás, até entrar na cortina de fumaça. Para além desta, Jerusalém.

A redenção?

A espera de uma vida.

E Jerusalém se abriu aos seus olhos, uma vez transposta a nuvem artificial. Cúpulas e minaretes, altos palácios e extensões de casas brancas serviam de fundo ao combate que se desenvolvia a poucos passos dele. Os espaldões estavam lotados por ambos os exércitos, mas os muçulmanos não pareciam capazes de deter o fluxo dos assal­tantes que, cada vez mais numerosos, transpunham as ameias. Ele também saltou da ponte, obtendo passagem a golpes de escudo e de espada.

Parecia difícil encontrar algum defensor livre da perseguição por parte de um ou mais antagonistas. Emanuel foi tentado a se esgueirar para a frente, mas não seria decoroso conquistar o terreno sem abrir caminho combatendo, e resolveu ajudar os companheiros já empenhados. Viu Godofredo duelar encarniçadamente com um adversário e, ainda mais perto, um germânico em dificuldades con­tra dois árabes. Correu em auxílio ao germânico, agredindo no flanco um dos inimigos do colega.

Agora, estavam por toda parte. Firuz aproveitou um instante de alí­vio da pressão adversária para olhar ao redor: os infiéis não estavam entrando somente pela ponte levadiça, mas também pelas escadas encostadas à direita e à esquerda de sua posição. Os defensores não podiam se permitir parar e avaliar aonde acorrer para refrear a penetração, sem permitir outros afluxos de cristãos.

O turco teve a nítida sensação de que tudo havia acabado. Ou melhor, seu instinto lhe dizia que aquilo era o fim. Mas não permi­tiu que a decepção condicionasse sua combatividade. Jogou-se con­tra um grupo de adversários já prestes a alcançar a rampa que leva­va para baixo. Enfrentou um, agredindo-o com o próprio peso. O infiel perdeu o equilíbrio e foi parar em cima de outro cristão, cujo elmo cilíndrico Firuz notou fugazmente.

O primeiro foi vítima fácil de sua cimitarra. Tarde demais, porém, ele se deu conta de que o outro ainda constituía uma amea­ça. De fato, o turco não tinha acabado de extrair sua lâmina do corpo inerte recém-trespassado quando o infiel de elmo cilíndrico caiu sobre ele com a espada.

Por um instante, Firuz viu-se perdido. Mas o adversário, incompreensivelmente, permaneceu alguns instantes a mais com o braço erguido, antes de baixar uma cutilada, permitindo a Firuz recuperar a cimitarra e afundá-la diretamente no estômago do atacante. O cristão soltou a espada e tombou de joelhos, levando consigo a arma que o penetrara e segurando as vísceras.

Firuz... — murmurou, antes de cair de bruços. A lâmina da cimitarra lhe saía pelas costas em todo o seu comprimento.

Emanuel! — gritou o turco, horrorizado, tirando-lhe o elmo. Confirmou a identidade dele sem precisar remover as ataduras que lhe envolviam o rosto. Permaneceu imóvel, sem tratar de extrair a própria arma nem tirar os olhos do corpo já inerte do velho amigo. Nem mesmo quando sentiu uma dor atroz na região do rim. Só então virou rapidamente o olhar, para observar, incrédulo, uma espada enfiada no próprio flanco.

Sentiu as forças abandonarem-no, de repente, e a vista se velar. A última coisa que enxergou foi a silhueta indistinta do corpo de Emanuel, sobre o qual se prostrou.

A última coisa que ouviu foram os passos dos cristãos, que acor­riam ao interior da cidade, a começar pelo bairro judaico, já sem encontrar qualquer resistência.

Lamentou não mais poder cuidar da segurança de Sara. Perguntou-se se seu comandante se encarregaria disso.

Não teve tempo de se dar uma resposta.

Não parecia que alguém os perseguia. E era uma sorte, porque Anselmo caminhava muito mais devagar do que as duas mulheres. Certo, ainda era gordo, apesar das privações; seguramente, também estava enfraquecido pelas torturas sofridas e dolorido pelos ferimentos e contusões recebidos. Porém, pensava Inês, havia nele algo mais, que lhe tirava até a vontade de agir.

O que Anselmo tem? — decidiu-se a perguntar a Rebeca, enquanto se aproximavam da rocha das tarântulas.

Não sei — respondeu a judia, abrindo os braços. — Até perguntei, mas ele não quis me responder. Acho que se sente desprezí­vel por ter defendido o manuscrito de Tiago, que nega tudo aquilo em que ele acreditava e de que, talvez, ainda esteja convencido...

Mas, então, por que defendeu aqueles textos, se não acredita neles?

Para demonstrar alguma coisa a si mesmo, creio. Ou a você.

A mim? Mas por quê? — Inês estava estupefata.

Isso certamente não sou eu que posso dizer. Não conheço a natureza da relação entre vocês. Mas suponho que ele lhe tem um apego especial...

Inês refletiu por alguns instantes.

Somos bons amigos, e juntos vivemos muitas aventuras, nes­tes últimos três anos. E também certa vez eu lhe salvei a vida. Talvez ele se sinta em dívida comigo.

E, pode ser... — replicou Rebeca, não muito convicta.

A prostituta preferiu não continuar aquela conversa. Olhou novamente para Anselmo: se por acaso a escutara, o monge não demonstrava nenhuma reação. Não era o momento de se preocupar com isso, tinham de pegar aqueles benditos documentos e, em segui­da, fugir para Belém e lá permanecer; pelo menos, enquanto Ricardo não fosse ao seu encontro.

Tentou agilizar o passo, mas Anselmo mantinha sempre o mesmo ritmo lento. Por sorte, a meta deles estava próxima. Deviam chegar às margens do campo dos provençais, diante do monte Sião; depois, já fora do raio de ação dos cruzados, seria mais fácil fazer desaparecerem os próprios rastros.

Inês puxou Anselmo pela manga, sem obter grande resultado. O monge nem a olhava, pela primeira vez em três anos. Ela desejou falar com ele, perguntar o que havia acontecido e por quê. Mas pre­cisaria arrancar as respostas, e então decidiu deixar para outra hora.

Chegaram às proximidades da rocha. Rebeca saltou instintivamente para a frente, alcançando-a primeiro.

Onde está? — gritou para Inês.

Desloque-se para a direita. Veja aquelas duas rochas dispostas em arco. Está no buraco do meio — respondeu a prostituta, de longe. Depois, porém, olhou para o céu e seus olhos foram ofusca­dos pelos raios do sol. — Pare! — acrescentou imediatamente.

Hein? Por quê? — inquiriu Rebeca, aproximando-se mesmo assim do buraco e inclinando-se para o terreno, a fim de observar melhor a conformação dele.

Inês começou a correr. Rebeca estava com o rosto quase rente ao buraco. Em poucos passos, a prostituta chegou junto dela. Empurrou-a para o lado segundos antes que a judia se ajoelhasse.

O que deu em você? — perguntou Rebeca, reerguendo-se.

Inês lhe apontou o céu.

O sol — disse. — A esta hora, as tarântulas pululam...

Rebeca se mostrou consternada.

E agora? Não podemos esperar.

Eu também não. — Uma nova voz. Mas uma voz conhecida.

O soldado que elas tinham amarrado com cordas.

Estava sem fôlego. Devia ter corrido muito. Evidentemente, queria resolver o assunto antes de ser repreendido pelos superiores por ter deixado escaparem uma mulher e um padre estropiado.

Qualquer coisa que tenham escondido aí, o duque vai gostar de saber. E, com um pouco de sorte, vocês receberão a visita dele lá no recinto... — disse, com um sorriso de escárnio.

Aproximou-se. Sua espada apontou para o peito de Rebeca.

Inês, por sua vez, sacou a dela e apontou-a para ele.

Primeiro, você vai ter que nos dominar. E não me pareceu ser um grande combatente...

Ela é menos ainda, creio — respondeu o homem, indicando Rebeca e pressionando a lâmina no meio de seu peito arfante.

Inês olhou o soldado. Depois olhou Rebeca. A judia retribuiu a mirada: estava à espera de ordens.

A prostituta levantou sutilmente as sobrancelhas e recuou de leve a cabeça. Rebeca fez um sinal de entendimento e se lançou para trás, subtraindo-se à ponta da espada. Antes que o soldado alongas­se o braço, a espada de Inês já estava sobre a lâmina dele, desviando-lhe a direção.

O homem se jogou contra ela com veemência, embora descoordenado, e para Inês foi difícil agüentar aquele ímpeto. Os golpes vinham de cima, poderosos, contínuos, e ela vacilava na tentativa de lhes opor sua lâmina, recuando, passo a passo, cada vez mais debilmente. Sentiu-se confusa. Não achava modo nem tempo de preparar um contra-ataque, ou mesmo apenas um movimento que a deixasse em condições de replicar.

Perdeu o equilíbrio. Caiu no chão. O homem correu para cima dela. Preparou o golpe.

Em seguida, a cabeça do soldado estremeceu. Um objeto contun­dente a golpeara. Inês não se deteve para pensar e logo ergueu o braço que ainda empunhava a espada. A lâmina trespassou o estô­mago do adversário, que desabou no chão. Atrás dele apareceu Rebeca, ofegante, com uma pedra na mão, pronta para lançá-la se a primeira não tivesse sido suficiente.

A judia se aproximou e ajudou-a a se levantar. Observaram o homem que tinham acabado de matar. Inês extraiu do corpo a espa­da, esfregou-a sobre o cadáver para limpá-la do sangue e a repôs na bainha. Depois, lembrou-se de Anselmo.

Olhou ao redor. Não o viu logo.

Localizou-o somente quando seu olhar bateu na rocha. O monge estava ali, junto ao buraco, de joelhos. Ao lado dele, a sacola com os manuscritos.

Mas também três enormes aranhas de patas robustas e alonga­das, e dorso entre o cinza, o fulvo e o negro.

Tarântulas.

 

Ao norte, os cruzados tinham entrado. A notícia se espalhou entre os provençais, provocando desconcerto. Dizia-se que o duque Go­dofredo havia até consentido a Tancredo e a Roberto da Normandia que se valessem do arrombamento conduzido por ele, e, assim, os normandos, além dos germânicos, estavam enxameando na cidade, apro­veitando para se apoderarem dos butins mais ambicionados.

Ricardo observou Raimundo. Um segundo antes, tivera a im­pressão de que ele quisera lhe dizer alguma coisa. Agora, porém, via-o perdido numa irritação compreensível e com a mente voltada para o que sucedia na frente oposta. Transferir-se e entrar pelo norte seria um reconhecimento implícito da superioridade de Godofredo; o normando teve certeza de que o conde preferiria continuar a operar no ponto onde estavam.

Sara.

Também sua mente, de repente, voltou-se para o que estava acontecendo a setentrião. Se eles tinham arrombado naquela parte, fariam grande estrago em tudo que achassem em seu caminho.

E no caminho ficava o bairro judaico, antes de qualquer outra coisa.

— Senhor conde, peço permissão para me unir às forças que aca­baram de entrar pelo norte — disse ele a Raimundo de Toulouse.

Mas por quê? Se nós também entrarmos, será também graças ao seu valor. Godofredo e Tancredo não precisam de você. Nós, sim — respondeu o comandante.

Mas, se o senhor quiser que eu cumpra a tarefa que me atribuiu, procurando aquele manuscrito que tanto deseja — replicou Ricardo, que dispunha de um pretexto pronto e coerente —, convém que eu entre agora. Se eles tiverem tempo de percorrer a cidade, podem encontrá-lo antes ou até destruí-lo inadvertidamente...

O conde refletiu um pouco.

Está bem. Vá, e me relate tudo, depois.

Em segundos, Ricardo já se afastara na direção norte.

Raimundo se voltou para dois soldados de sua guarda pessoal, que vigiavam junto dele.

Sigam-no — ordenou. — E não o percam de vista. Quero saber de todos os movimentos dele. Todos.

Fazia tempo que Jamal via afluírem civis e militares ao setor onde, junto com o governador, estava vigiando as tentativas de arromba- mento por parte dos provençais. Alguns subiam às muralhas a fim de observar as ações dos assediantes, mais do que para dar uma mão, mas a maioria se aglomerava abaixo dos espaldões, gritando de ter­ror, chorando, lamentando-se e pedindo, aos berros, apoio e ajuda.

Combater naquelas condições era difícil. Precisava-se de toda a concentração possível para repelir as tentativas francas de alcançar os espaldões pelas escadas, interromper suas escavações para minar as muralhas, enfrentar os disparos de flechas de seus besteiros. E, com tudo isso, aquela massa de prófugos reclamava atenção, sem se interessar nem um pouco pela defesa. Para piorar, agora também convinha se preocupar com os efeitos dos lançamentos dos trabucos cristãos sobre as pessoas; cada projétil que transpunha os espaldões, mesmo que não causasse danos, acabava inevitavelmente semeando o pânico.

Mas nem assim os civis recuavam. Pelo contrário, vinham che­gando até se amontoarem abaixo das muralhas, como se buscassem nos soldados atracados com o inimigo uma proteção que as circuns­tâncias tornavam totalmente improvável.

Iftikhar al-Dawla estava desencorajado. Jamal o via dar disposi­ções cada vez menos convictas aos subalternos, mover-se mais lenta­mente, com o olhar já perdido no vazio. Perguntou-se quanto tempo poderia durar a defesa naquelas condições. Teve uma primeira res­posta logo depois, ao ver um franco em trajes civis subir aos espal­dões com uma escolta de soldados. Deu-se conta de que, havia alguns minutos, os assediantes tinham suspendido os ataques.

Perplexo, observou aquela que em tudo parecia uma delegação abrir caminho entre os defensores e se dirigir ao governador, com o qual os cristãos se entretiveram por bastante tempo, em aparente cordialidade.

Foi ao encontro de Iftikhar al-Dawla somente quando os francos se retiraram.

Você se entende com os infiéis e não me chama? — agrediu-o.

Eu não estava seguro de que você aprovaria. Portanto, agi por conta própria, mandando um emissário convidar o conde de Toulouse para parlamentar. Aliás, minha função me faculta isso — respondeu o governador, sem fitá-lo nos olhos.

O quê? O que eu podia não aprovar? Que acordos você fez?

O governador hesitou.

Garanti imunidade para nós e para toda a gente que nos pro­curou em busca de proteção — respondeu, sempre olhando para outro lado. — O conde nos concede uma hora, a partir deste momento, para chegarmos à cidadela e nos trancarmos lá dentro até que eles consigam frear os excessos da soldadesca...

Ah! Nada disso! Os comandantes não querem frear os exces­sos da soldadesca! Estão aqui pelo butim e vão deixar as tropas agi­rem até se embriagarem de sangue e dinheiro! Ou, melhor, esperam que os soldados lhes obtenham riqueza e escravos. Pode ter certeza de que o único motivo pelo qual os chefes não vão sujar as mãos é que outros o farão por eles!

E o que nós podemos fazer? — O governador abriu os braços.

Já os temos às nossas costas, além de à nossa frente. Daqui a pouco estaremos entre dois fogos e teremos o mesmo fim do setor seten­trional...

Jamal pensou com tristeza em Firuz.

E você acha que devemos ficar refugiados dentro da cidadela como camundongos e tapar os ouvidos, para não ouvirmos os gritos de dor dos nossos irmãos, o clangor das espadas dos infiéis despencan­do sobre eles, os berros das nossas mulheres estupradas e seviciadas?

O conde me deu amplas garantias de que seus homens não farão nada desse gênero. Somente quando a cidade for pacificada é que eles se dedicarão à coleta do butim — afirmou Iftikhar al-Dawla. Depois, porém, demonstrando ser o primeiro a não acreditar nas próprias palavras, acrescentou: — Seja como for, é o único modo que temos para salvar pelo menos uma parte da população. Inclusive nós mesmos. Você não quer continuar vivo?

A esse preço, não — retrucou o emir, virando-se e descendo a escada.

Sabia o que lhe restava a fazer. Se a cidadela se tornaria o único lugar seguro da cidade, era para lá que devia levar Sara.

Por quê? Por que fez isso, seu velho estúpido? — gritou Inês para Anselmo, agarrando-o pela gola. Mas o monge não respondia.

Estava cianótico, os olhos arregalados, um fio de baba descendo da boca, e, se ela não o segurasse pelo hábito, já teria caído emborcado no chão.

Inês passou o braço por trás da nuca dele e o acomodou sobre o terreno, chorando. Sentiu a mão de Rebeca lhe segurar o ombro para confortá-la.

Virou-se de chofre.

E você? Sabe me explicar o porquê de tudo isso? Você, que comprometeu todos nós com seu maldito documento! — bradou-lhe na cara, com rancor.

Rebeca tentou abraçá-la, mas Inês se esquivou. Preferiu abraçar o corpo já sem vida de Anselmo, sobre o qual se inclinou, ainda cho­rando.

A judia estava prestes a estender de novo a mão, mas a retraiu, voltando-se para recolher a sacola com os rolos. Depois se encami­nhou para o leste. Pela primeira vez na vida, não havia encontrado o que replicar.

Com o canto dos olhos, Inês a viu se afastar.

Para onde está indo, agora?

Para onde você não pode vir. Já criei muitos problemas com esta história, como você mesma disse.

Pare. E me perdoe pelo que eu disse. Não creio que Anselmo gostaria que eu lhe falasse assim. E Ricardo também não iria querer.

Não, eu é que lhe peço perdão. Perdoem-me todos vocês. Esta história toda foi uma loucura. Anselmo morreu por ter percebido que só com a morte poderia resolver seu conflito interior. Mas a razão primeira do conflito dele foi o meu egoísmo. Servi a uma causa improvável, nebulosa, abstrata, com a soberba de uma mulher insatisfeita que se acreditava uma estudiosa arguta; e fiz isso em detrimento de seres humanos, pessoas das quais aprendi a apreciar a coragem, além de uma lealdade que nem era admissível esperar de um grupo de desconhecidos. Agora me envergonho de mim mesma, pois sei que, num mundo onde as pessoas não têm escrúpulos em usar os ideais para buscar seus próprios fins, existem indivíduos dis­postos, ao contrário, a renunciar aos seus ideais para ajudar os outros; pessoas de todas as nacionalidades e crenças religiosas, capa­zes de não se deixar envolver pela vontade geral de prepotência, mas sim de pensar e agir de maneira autônoma e coerente, nem sempre por vantagem pessoal, terrena ou ultraterrena. Ou melhor, às vezes contra a própria vantagem pessoal... Mais uma vez, peço-lhe perdão — concluiu. — Você, Anselmo, Ricardo, Emanuel, Jamal e Firuz não merecem nada menos do que um enorme respeito, qualquer que tenha sido a motivação que os impeliu a me ajudar. Se os usei, e pro­vavelmente o fiz, foi inconscientemente.

Inês não replicou. Em vez disso, levantou-se e foi ao encontro de Rebeca, oferecendo-lhe o abraço que ela mesma havia recusado pouco antes. Só falou depois:

Voltemos à minha última pergunta. Para onde você pretende ir? — perguntou.

Para Jerusalém. Agora devo pensar em Sara, minha irmã. Se os cristãos entrarem, ela está condenada. E, mesmo que não entrem, preciso cuidar dela.

Vou com você.

Nem pense nisso — replicou a judia, decidida.

Se é verdade o que você disse sobre nós, devo ter fé no meu modo de ser. E também Anselmo, com seu sacrifício, me indicou o caminho a seguir — insistiu Inês.

Já os envolvi demais nos meus problemas. Não quero que alguém arrisque ainda a vida pelas minhas convicções.

Então, digamos que eu vou pela sua irmã... — especificou Inês. E também por Ricardo, naturalmente. Mas isso ela não disse a Rebeca, enquanto a pegava pelo braço e a impelia na direção da cidade.

 

Jamal continuava cruzando com fugitivos. Neste passo, pensou, a cidadela não poderia conter todos os prófugos e, mesmo admitindo que conseguiria salvar Sara, achava difícil fazê-la entrar. À medida que subia rumo ao norte, as expressões que percebia no rosto dos concidadãos eram cada vez mais aterrorizadas, reflexo do contato com os infiéis.

Ouvia dizer que os francos estavam se dirigindo à área oriental, para a mesquita al-Aqsa e a Cúpula da Rocha. Não duvidava de que profanariam ambas, e de que quem tivesse se refugiado ali, contan­do com a sacralidade do lugar para a própria salvação, simplesmen­te se ofereceria indefeso às espadas deles. A reflexão lhe deu asas nos pés: de fato, o mesmo valia para a sinagoga. Dificilmente os cristãos a respeitariam.

Passou ao lado da igreja de são Tiago, onde era conservada a cátedra do homem que Rebeca lhe revelara ser o irmão de Jesus. Prometera-se ir visitar o edifício, mas nunca tivera tempo. Duvidou que algum dia viesse a ter essa possibilidade.

Jamal continuou subindo rumo à Porta de Jaffa, dobrando em seguida a leste para chegar à artéria principal da cidade, aquela que havia sido o cardo* romano. Passou junto da oliveira milenar na qual, como se supunha, Jesus fora acorrentado à espera do processo do sumo sacerdote. Uma vez no caminho central, fez-se mais atento. Os infiéis podiam surgir de um momento para outro, se fosse verda­de que estavam afluindo à área sagrada.

Cobriu rapidamente o percurso em descida que levava ao vale e depois subiu de novo. Viu guerreiros egípcios e sudaneses, e também milícias citadinas, correndo em grupos esparsos, uns em direção ao oriente, outros ao encontro dele, na direção sul. Deixou à sua esquerda a cidadela, com os vizinhos e imponentes alicerces do que havia sido o palácio do rei Herodes, e em seguida, passou ao lado do Santo Sepulcro e do Gólgota. E ali percebeu os primeiros francos.

A maioria se aglomerava diante da entrada da Anástase, o nicho construído sobre o túmulo de Jesus, ou então mais no alto, a breve distância, em torno da igreja edificada no topo do monte Calvário. Estavam todos ansiosos para entrar, agradecer a Deus e rezar, ou tal­vez, pensou Jamal sem espanto, para depredar. Mas alguns corriam atrás dos fugitivos, com as cotas e os escudos sujos de sangue; outros duelavam com árabes suficientemente corajosos para ainda opor resistência. Ele também o faria, prometeu a si mesmo, mas depois; agora, precisava deixar Sara a salvo.

Só desejava passar através das malhas do avanço adversário sem ser notado e chegar o mais depressa possível à sinagoga. E de fato os soldados inimigos não atentavam para ele, preferindo se concentrar na busca de butim dentro das casas ou, eventualmente, na persegui­ção aos inermes: velhos, mulheres e crianças, não suficientemente ágeis para fugir rumo ao sul depois dos primeiros sinais de invasão.

Viu dois cristãos se lançarem sobre uma mulher que fugia com um menino nos braços. Um dos soldados empurrou-a para o chão e lhe abriu as pernas, o outro agarrou o bebê pelos tornozelos e bateu-o várias vezes contra a quina da casa de onde mãe e filho acabavam de sair.

Jamal se forçou a não intervir. Devia prosseguir sua corrida.

Mas foi obrigado a parar logo depois. Um guerreiro franco, evi­dentemente convencido de que ia ser atacado por ele, dispôs-se a enfrentá-lo. Jamal desembainhou a espada e fez o mesmo; evitou a cutilada do outro e, com o escudo, jogou-o no chão, prosseguindo sua corrida. Cruzou com outros dois, tão empenhados em puxar uma carroça cheia de objetos sacros — a presença de cruzes douradas atestava o saque a uma igreja — que nem o perceberam. Outros o ignoraram de igual modo, para se concentrar no butim recolhido numa mesquita.

Ao que parecia, pensou, os conquistadores não faziam distinções de fé. Ali estava o verdadeiro móvel da adesão deles ao empreendi­mento.

Tinha quase chegado ao bairro judaico. Mas entrar lá não seria fácil. Aquele havia sido o primeiro setor saqueado da cidade, e mui­tos guerreiros cristãos ainda circulavam pelas ruas, à caça de objetos de valor, dinheiro, pessoas desafortunadas a quem atacar e edifica­ções a invadir a ferro e fogo.

Deu-se conta de ser o único indivíduo em armas, não pertencen­te ao exército conquistador, a circular por ali. De fato, dois francos perceberam isso e se lançaram contra ele. Logo atrás dos atacantes, Jamal viu a sinagoga.

Estava em chamas.

Sara viu cair diante de si um tição ardente. Alguém o lançara de uma janela. Gritou aterrorizada, retraindo-se, mas a sinagoga estava lota­da de gente e não havia espaço para se subtrair ao incêndio que já começava a irromper no interior. Ela olhou para cima: do lado de fora, o fogo lambia quase todas as janelas.

O edifício inteiro estava circundado pelas chamas.

O fogo atingira as roupas de um velho rabino ao lado dela. Logo depois alcançou os assentos de madeira, reduzindo ainda mais o espaço à disposição dos refugiados. Os gritos ecoaram no alto teto do local. Em poucos instantes, o rabino se transformou em uma pira funerária, e as chamas que o envolviam atingiram Sara.

A jovem viu arder a orla de suas vestes e, aos gritos, jogou-se ins­tintivamente contra a parede. Diante dela havia muita gente, mas todos se esquivaram, temendo ser atingidos pelo fogo. Assim, Sara pôde prosseguir e apagar as chamas esfregando-se à alvenaria. Mas a fila de assentos chegava até ali; alimentado pelo braseiro dos móveis, o fogo ameaçou-a de novo.

Encontrou o nicho para os rolos da Torá e se encolheu ali den­tro, justamente quando a cortina de chamas passava junto dela. Depois olhou para o lado, na direção do matroneu:[10] a escada para subir até lá estava tomada de assalto. Aquela altura o térreo já era atravessado por línguas de fogo, e o piso mais elevado tinha pareci­do à maioria a única esperança de salvação, embora temporária. Sara deixou o nicho e caminhou rente à parede em direção à escada. Uma mulher lhe obstruiu o caminho com gritos dilacerantes, arrancando a própria veste inflamada. Seu corpo estava coberto de queimaduras. Sara a empurrou, cheia de horror, e prosseguiu sua corrida.

As chamas haviam alcançado a base da escada, impedindo o acesso. Ao lado ficava uma das duas entradas da sinagoga e, pouco adiante, a fonte para as abluções. Nenhuma das pessoas que prece­diam Sara ousava transpor a cortina de fogo e acessar as escadas, mesmo sabendo que, de um momento para outro, seriam alcançadas pelas chamas. Por isso, deixaram a jovem passar. O terror dela se transformara em pânico.

Então viu a fonte das abluções. Notou que ainda havia água. Encolheu-se sobre si mesma e saltou o fogo. Imediatamente depois, como calculara, caiu na fonte, e o contato com a água logo apagou as chamas que haviam começado a se atear à sua roupa e aos seus cabelos. Saiu da fonte, com a veste chamuscada e rasgada, e subiu a escada até o balcão já cheio de gente.

Olhou para baixo. O fogo recobria toda a superfície da sinagoga e não havia mais ninguém, vivo, que não estivesse completamente envolto pelas chamas. Uma fumaça acre subia, recobrindo os sobre­viventes ali em cima. Gritos de terror, preces, lamentos, invocações a Deus se misturavam aos acessos de tosse.

Sara chorou. Pela fumaça que lhe agredia os olhos, pelo calor insuportável, pelo medo que lhe triturava as vísceras.

Sentiu alguma coisa ceder embaixo de seus pés. Todos gritaram.

O balcão estava desabando.

 

Jamal se jogou no meio dos dois soldados francos. Com o escudo, aparou o golpe do da esquerda, e, com a espada, o ataque vindo da direita. Depois de passar entre eles, virou-se e trespassou um, mas não pôde evitar que o outro o golpeasse no ombro esquerdo. A dor o obrigou a jogar fora o escudo, mas não o impediu de reagir com uma investida desesperada, que balançou o adversário, obrigando-o a se descobrir e a expor o peito.

Depois de extrair do corpo a espada ensangüentada, o emir tirou de sua segunda vítima a cota de malha e recomeçou a corrida, mesmo cambaleando por causa do cansaço e da dor causada pela ferida. Outros francos se aprestavam a confrontá-lo, mas, quando compreenderam que ele se dirigia à sinagoga envolta em chamas, pararam, curiosos, para admirar o espetáculo.

Se ele quer ser assado lá dentro, que vá!

E, se conseguir fazê-los sair, nós nos divertiremos degolando um a um!

Jamal alcançou a entrada correspondente à abside. O portãozinho estava ardendo. O fogo parecia destinado a alcançar em pouco tempo a edificação adjacente, uma casa de dois pisos ainda íntegra. Jamal lançou fora a espada, mas não a malha de ferro que subtraíra ao soldado morto; então começou a escalar a parede externa da habitação, segurando-se aos interstícios entre um bloco de pedra e outro. Já no alto, içou-se sobre o teto, de onde podia ver à altura dos olhos uma das janelas da sinagoga.

Levantou-se para tomar impulso, apertou fortemente com ambas as mãos a malha de ferro e, em seguida, saltou.

À muito custo conseguiu se agarrar ao peitoril da abertura. A malha de ferro lhe permitiu agüentar o contato com o calor da pedra aquecida, mas o ombro ferido cedeu, obrigando-o a permane­cer por alguns instantes pendurado apenas pelo braço direito. Conseguiu se içar até ver lá dentro. Havia sobreviventes, e estavam todos no piso superior. Embaixo, só devastação e chamas.

Içou-se mais, a fim de se preparar para entrar. Pareceu-lhe notar algum movimento na estrutura do balcão. Descartou tal pensamen­to, convencendo-se de que era a agitação dos sobreviventes a lhe dar essa sensação, mas em seguida viu dois homens perderem o equilí­brio e caírem lá embaixo.

Olhou melhor. Sim, o balcão estava cedendo.

Olhou de novo.

Ela estava ali.

Estava com os cabelos chamuscados, o rosto enegrecido, a roupa reduzida a farrapos. Mas estava viva.

Foi então que o balcão desabou. Jamal viu a superfície sobre a qual se amontoavam os refugiados se desintegrar em poucos instan­tes e homens, mulheres e crianças despencarem no vazio. Ergueu-se uma nuvem de fumaça, mas não produzida pelo fogo. Uma pilha de detritos se formara na abside, uma espécie de ilha circundada por um mar de chamas.

Braços, pernas, corpos afloravam daquele acúmulo de entulho que, com o desmoronamento, havia sufocado o incêndio embaixo dele, mas também havia alguns sobreviventes.

Jamal procurou-a desesperadamente com os olhos, como se a força de sua mirada conseguisse fazê-la emergir dos escombros. Encontrou-a. De joelhos, ferida, coberta por uma pátina de poeira e fuligem, mas ainda viva.

Ele não hesitou mais.

Jogou-se lá dentro.

 

Acelerou o passo, mas o tumulto já era tanto que ele não podia avançar rapidamente. Mais de uma vez, tropeçou em cadáveres espa­lhados pelo terreno: homens dilacerados, mulheres desventradas. Observava estas últimas com atenção, esperando não ver Sara. Esperou também reconhecê-la, três anos após um encontro fugaz, mas indelevelmente impresso em sua memória, e com a perspectiva de encontrar, na melhor das hipóteses, uma jovem sofrida e maltratada.

Não havia muitas mulheres por ali. E nunca estavam sozinhas ou incólumes. Ricardo as perscrutava, forçando-se a não atentar para os sofrimentos delas; havia sempre a possibilidade de que Sara tivesse sido engolida pela multidão ou acabado prisioneira de alguém.

Estava caminhando na direção onde supunha encontrar o bairro judaico. Mas não tinha uma idéia muito precisa de como agir. De­veria procurar em todas as casas? Nos locais de culto? E, mesmo que a encontrasse, ela o reconheceria? Ou, ao contrário, no meio de tanta agitação, iria fugir, tomando-o por um dos agressores?

Sentiu-se ridículo. Envolvera-se numa busca sem esperança, que só um estúpido presunçoso poderia conceber. Balançou a cabeça, furioso consigo mesmo e, no entanto, incapaz de desistir.

Em seguida a viu.

Não. Sara não.

A irmã. Rebeca. E também Inês.

Que diabo faziam ali? E juntas ainda por cima?

Foi um salto na voragem, o de Jamal. Transpôs o mar de fogo e ater­rissou na ilha de escombros. Um impacto terrível, uma dor lanci­nante na tíbia. Talvez a tivesse fraturado.

Não deu importância a isso. Estava a poucos passos de Sara, finalmente.

Levantou-se mancando e estendeu o braço para ela. A jovem estava com as mãos na cabeça e berrava. O emir segurou-a por um ombro, mas ela se soltou sem olhar. Então ele agarrou-a pelo outro e tentou abraçá-la, mas Sara continuava a se esquivar.

— Sou eu! Jamal! — gritou o emir, prendendo-lhe o rosto entre as mãos. Só então ela pareceu reconhecê-lo. — Vamos, eu a levo para fora! Confie em mim! — continuou ele, colocando-a nas costas.

Do monte de entulho até a saída eram poucos passos. Mas em meio ao fogo. As labaredas vinham até a altura do peito, e Jamal levantou Sara mais ainda, sustentando-a com os braços erguidos acima da cabeça. Procurou ignorar a dor na perna, que a muito custo lhe permitia se manter de pé, e a das costas, que quase o impedia de agüentar uma carga que, em outras circunstâncias, seria leve. Depois se jogou no fogo, sentindo a pele se encolher ao contato com as cha­mas e a ardência invadi-lo até dentro dos ossos.

Chegou à saída no instante mais longo e atormentado de sua vida. As chamas que subiam ao longo das duas folhas da porta eram mais altas. Ele empurrou com os pés o que havia restado do móvel com que os refugiados a tinham travado, levantou Sara ainda mais, esticando o braço com o qual a sustentava, e usou o outro para puxar o ferrolho.

Com as chamas que já o envolviam até o turbante, bateu com o ombro nas folhas, abrindo-as. Nesse momento, seu braço erguido cedeu e o corpo de Sara entrou em contato com sua cabeça inflama­da. O que restava das vestes da jovem pegou fogo, mas ele percebeu e a deixou cair; ela rolou pelas pedras misturadas com terra batida e o fogo apagou.

Jamal ardia. Os poucos francos que haviam decidido acompanhar a cena riam às gargalhadas. Sara se levantou, dolorida, e viu aquele homem transformado em tocha lhe estender a mão. Parecia uma saudação.

Horrorizada, enojada, ela se retraiu, virando a cabeça para o outro lado.

O emir caiu de joelhos e, depois, estendido no solo, deixou-se consumir pelo fogo sem um gesto, sem um movimento.

Sara olhou ao redor, soluçando. Agora estava quase nua, chamuscada, e poucos cabelos lhe restavam. Mas as formas de seu corpo conservavam a harmonia de sempre, e os espectadores perceberam.

Muito gentil aquele árabe recuperar para nós uma mercadoria tão preciosa... — disse um franco.

Agora, este espetáculo terá uma conclusão ainda mais diverti­da... — disse outro.

Não creio — discordou uma voz.

Feminina.

Pois é. Acho que vocês devem renunciar ao final, rapazes — acrescentou outra voz.

Masculina.

Inês de um lado.

Ricardo de outro.

E Rebeca um pouco atrás.

— Ricardo! — gritou Sara, correndo para o normando, sem fazer caso da irmã e contornando, desatenta, o corpo incendiado de Jamal, que ainda se movia debilmente na poeira.

Ricardo não foi ao encontro dela. Recebeu-a entre os braços, confuso, tentando reconhecer aquela mulher com poucos cabelos, a figura miúda — bem mais do que ele recordava —, a roupa reduzida a farrapos chamuscados, a pele enegrecida e coberta de queimaduras.

Jamal, em meio ao crepitar de suas próprias chamas, um segun­do antes de sua vida se extinguir, ainda ouviu-a dizer ao normando, deslumbrada:

Eu tinha certeza de que você viria me salvar de novo...

Ricardo perscrutou-a longamente. Tentou acariciar o que lhe

restava de cabelos. Não sabia o que dizer. Inês também a fitava, perguntando-se o que aquela mulher tinha de tão especial para fazer aquele homem extraordinário perder a cabeça. Depois olhou Ricardo e compreendeu que ele estava se perguntando a mesma coisa.

A prostituta sentiu um frêmito de satisfação, mas não o deu a perceber. Rebeca, porém, tinha se aproximado da irmã. Chamou-a. Ao ver que ela não a escutara, gritou com força:

Sara!

A jovem saiu do êxtase.

Rebeca... você voltou... Agora, estão aqui todas as pessoas que gostam de mim... — disse, voltando a fitar Ricardo.

Não exatamente — replicou Rebeca, com sua habitual tendên­cia a especificar. — Falta Jamal. Sabe notícias dele?

Claro. Está ali — respondeu Sara, apontando para trás com displicência.

Rebeca olhou horrorizada a silhueta em chamas que acabava de se imobilizar.

Ele... salvou você? — perguntou com voz embargada, aproximando-se do cadáver ardente.

Finalmente, Sara parou de fitar Ricardo e inclinou a cabeça, olhando para o chão.

Humm... sim — respondeu a meia-voz, como uma menina encabulada.

Rebeca se sentiu fremir de raiva. Estava para abrir a boca, mas um dos soldados presentes não lhe deu tempo...

Amigo, essa judia é nossa — gritou, dirigindo-se a Ricardo. — Chegamos primeiro. A não ser que você seja amigo dos judeus, e não nosso, porque, nesse caso... — insinuou, erguendo a espada.

Nesse caso o quê? — replicou Ricardo, afastando Sara com decisão e brandindo por sua vez a espada. — Vamos combater entre nós por uma mulher? Há muito o que depredar aqui em Jerusalém. O que estão esperando?

Que você nos entregue a mulher.

Venham buscar — respondeu Ricardo.

Não banque o engraçadinho. Nós somos cinco e você, só um.

Dois — esclareceu Inês, agitando a própria espada.

Três — completou Rebeca, agarrando uma trave que jazia no chão.

Houve alguns instantes de silêncio entre os presentes. Apesar dos berros e ruídos de guerra que se ouviam ao redor, todos puderam perceber distintamente o crepitar das chamas que ainda envolviam o corpo de Jamal.

Em seguida, um dos soldados partiu para o ataque. Escolheu Inês. A mulher se esquivou em cima da hora para evitar o golpe e imediatamente lhe assestou outro no dorso, aproveitando-se do desequilíbrio dele. A cota de ferro salvou o adversário, que ainda assim foi parar no chão. Ela lhe desfechou um pontapé no rosto, fazendo rolar para longe o elmo, e depois acabou com ele enfiando-lhe a espada verticalmente, no pescoço.

Outro já se preparava para atingi-la com uma cutilada nas costas. Mas o berro de Sara ao ver Rebeca desestabilizar o cristão com a trave permitiu que Inês se voltasse a tempo e acertasse no estômago o novo antagonista.

Nesse meio-tempo, Ricardo enfrentava os outros três, enquanto Sara se colocava rapidamente atrás dele. O normando atuou defen­sivamente, usando a espada a fim de aparar as cutiladas dos adversá­rios. Mesmo quando tinha a possibilidade de atacar, preferia renun­ciar a isso para não deixar a jovem a descoberto.

Conseguiu resistir até que as duas mulheres vieram em seu socorro. Rebeca, mantendo a bolsa a tiracolo, tinha agora a espada e o escudo de uma das duas vítimas de Inês, embora não parecesse saber usá-los. A prostituta avançou decidida, atraindo a atenção de um dos atacan­tes de Ricardo. Só então o normando se adiantou um passo, aprovei­tando a distração do adversário para trespassá-lo no flanco.

No mesmo momento Rebeca, consciente de não poder competir com soldados, livrou-se da espada lançando-a contra um dos guer­reiros ainda vivo. Este não usava malha de ferro, mas somente um camisão de couro sem mangas; a arma o feriu no ombro e ele fugiu sem fazer qualquer tentativa de defesa. O outro não hesitou em lhe seguir o exemplo.

Ótima equipe... — comentou Inês, sorrindo. — Podemos nos oferecer como guarda-costas de algum soberano, e não de uma mulherzinha amedrontada.. — acrescentou, encarando Sara com ar de superioridade.

Esqueça — respondeu Ricardo. — Devemos sair logo daqui e deixar a salvo estas duas moças.

Mas, desta vez, você irá depois ao nosso encontro, não? — quis saber Sara.

Aqui, ninguém está em condições de prever o que será de nós daqui a pouco — respondeu resoluto o normando, virando-se em seguida para Rebeca. — Eu poderia levá-las para a cidadela, onde estão se refugiando o governador e todos os cidadãos da parte meri­dional da cidade. Eles fizeram acordos com o conde de Toulouse e ninguém poderá tocá-los. Mas existe o problema do manuscrito. O conde certamente mandará revistar todo mundo para encontrá-lo.

De novo esse manuscrito... E então? — interveio Inês.

Então, devemos nos dirigir a leste e tentar sair por lá. Depois, toma-se o rumo do Jordão. Do outro lado do rio, vocês estarão a salvo — explicou Ricardo.

E você, o que vai fazer? Vai nos deixar lá e voltar para os ado­radores do crucifixo? — insistiu Sara. — Vem até aqui para me salvar e depois me abandona de novo?

Ricardo achou que não devia responder. Não queria se rebaixar aos olhos das outras duas mulheres. E eram mulheres de cujo respei­to ele fazia questão. Por outro lado, não teve oportunidade de dizer alguma coisa.

Lá estão elas! Ali! — Ouviu alguém gritar pouco adiante, a nordeste. Olhou na direção de onde provinham os gritos e viu um pelotão de soldados a pé, um dos quais os apontava.

 

— É aquele que nós fizemos ir embora do acampamento! — disse Inês, dirigindo-se a Rebeca. — Depressa, vamos fugir! — acrescentou, começando a correr, e virando-se somente para conferir se os outros três a seguiam.

Seguiam.

Inês estava terrivelmente excitada. Jamais se sentira tão viva, vital, necessária. Já não era um brinquedo para os homens, mas um perigo para eles. Descobria em si mesma, atitudes de comando e uma determinação da qual não se acreditava capaz. Sentia-se importante para aquele grupinho de pessoas.

Longe de odiar Rebeca por tê-la arrastado àquela história, era- lhe secretamente agradecida.

Não teriam esperanças se a cidade estivesse semi-deserta. Mas havia pelas ruas uma confusão inaudita: perseguidores, perseguidos, desvalidos, cadáveres, carcaças de cavalos e camelos, ruínas, foguei­ras, carroças abandonadas, num mercado caótico onde a única coisa que se podia adquirir era a morte.

Ricardo tomou Rebeca pelo pulso e a exortou a passar à frente, a fim de guiá-los. Ela o encarou, perturbada por aquele contato, e por sua vez segurou a irmã e ladeou Inês, indicando-lhe o caminho a seguir. Caminhavam sobressaltados, nunca em linha reta, chocando-se ininterruptamente contra fugitivos cuja cabeça, instantes depois, era separada dos ombros por uma espada cruzada. Rebeca tropeçou num crânio, fazendo-o rolar na direção de Sara, que se deteve e ber­rou mais do que havia feito até então.

Ricardo impeliu a jovem, que reagiu agarrando-se a ele, quase impedindo-o de prosseguir. O normando olhou para trás: seus per­seguidores estavam próximos, mas no meio havia uma multidão de indivíduos ocupados em se massacrar reciprocamente. Ele segurou Sara pela cintura, colocou-a sobre os ombros e recomeçou a abrir caminho em meio ao tumulto, arriscando-se a receber uma cutilada destinada a um árabe que lhe passava ao lado.

Inês também se voltou. O homem que ela enganara no acampa­mento parecia o mais decidido na perseguição. Abria espaço entre as pessoas com ímpeto, ignorando os outros fugitivos e derrubando até mesmo os companheiros empenhados na matança. Quando teve a mulher ao seu alcance, pegou um dardo e lançou-o com toda a força: a arma foi parar diretamente nas costas de um civil árabe que tenta­va escapar de outro cristão, o qual protestou com ele por ter lhe rou­bado o prazer de degolar sua vítima. Com horror, Inês viu que da cintura dele pendiam quatro braços, macabros troféus amputados de suas vítimas inermes.

Continuaram a correr, desejando não ver o que acontecia ao redor. Um menino atado à cauda de um cavalo e arrastado na poei­ra. Outro com a cabeça esmigalhada entre dois escudos. Uma pilha de cabeças. Um velho pendurado a uma trave pelos tornozelos, nu, espancado nas partes íntimas pelas empunhaduras das espadas. Outro pendurado pelos genitais. Homens reduzidos a uma pasta pelos cascos dos cavalos. Homens dentro de uma poça de sangue. Vísceras espalhadas pelo chão. Uma carroça lotada de objetos sacros. Mulheres cortadas ao meio na vertical, inclusive com a cabe­ça partida em duas metades, como uma maçã. Mulheres ainda vivas nos braços dos cruzados, mas que prefeririam estar mortas. Mulheres obrigadas a assistir às torturas contra os próprios filhos.

Risadas, gargalhadas obscenas e vulgares dos estupradores, dos assassinos, dos seviciadores. Gritos, urros dilacerantes e atrozes de suas vítimas.

O horror.

O inferno, pensou Ricardo. Seus companheiros tinham vindo para ganhar o paraíso e, em vez disso, tinham criado um inferno. O maior inferno já visto sobre a Terra. E, ironia da sorte, por certo os padres lhes teriam prometido e confirmado o paraíso justamente graças àquele inferno.

Quanto mais prosseguiam para leste, mais a tropelia aumentava. Os muçulmanos fugiam todos naquela direção, e os cruzados os per­seguiam. Os quatro, apertados em meio a um mar de pessoas, arris­cavam até a se perder uns dos outros. Ricardo exortou Rebeca e Inês a lhe darem as mãos. Tentaram então avançar em fila indiana, mas a prostituta acabou indo na frente, Rebeca atrás com a sacola dos rolos e o normando no meio, ainda levando Sara sobre os ombros.

Desse modo, Rebeca se viu cara a cara com a irmã.

Você percebeu que Jamal morreu para salvá-la? — gritou.

Sim, claro que sim, eu percebi. Acha que sou alguma estúpida?

Estúpida? Não. Insensível. Sem coração. Como pode tê-lo ignorado assim? Aquele homem a amava. A ponto de morrer. E o demonstrou.

Mas eu não. Eu amo Ricardo, e não posso fazer nada.

Mas o que isso tem a ver? — emendou Rebeca. — Um homem morreu para defendê-la. Você pode amá-lo ou não, mas não pode deixar de ter consideração por ele, de lhe dar um pouco de atenção na hora da morte! Ele escolheu morrer, em vez de se salvar!

— Teria morrido do mesmo modo, como todos estes aqui ao redor. Apenas pensou em ser útil, só isso...

Ricardo não pôde evitar intervir:

— Não foi assim. Ele poderia se refugiar na cidadela com o governador e salvar a própria vida, por força dos acordos com Raimundo de Toulouse. — O normando estava desconcertado.

Sara não respondeu.

Rebeca e Ricardo refletiram.

Inês exortou todos a acelerar o passo.

Estavam no vale do Tyropeion, ao lado do Haram esh-Sherif, o recinto nobre, como os muçulmanos chamavam a área da esplanada do Templo. Era ali que a matança estava atingindo o ápice. Eviden­temente, os egípcios tinham se refugiado na área sacra com a intenção de preparar ali a última defesa, mas os francos não lhes permitiram isso, alcançando-os antes que eles pudessem se entrincheirar. Rebeca viu, para além do muro de sustentação, a cúpula da mesquita al-Aqsa cheia de gente: homens e mulheres que se agarravam desesperadamente uns aos outros para não cair lá embaixo, onde os aguardavam as espadas dos francos. As sete arcadas do vestíbulo frontal eram um formigueiro de pessoas: sobre as cabeças delas volteavam espadas e lanças, que com freqüência desapareciam no tumulto, para reemergir entre esguichos de sangue.

Uma multidão se concentrava também ao redor da Cúpula da Rocha, cerca de cem passos mais ao norte. As arcadas de acesso, das quais, segundo a tradição, eram destinadas a pender as balanças para pesar a alma dos mortos, estavam realmente se enchendo de cadáve­res. O mármore cinza e as maiólicas com arabescos que revestiam as paredes externas estavam respingados de vermelho. A cúpula, cujo ouro resplandecia à luz já declinante do sol, parecia um astro prestes a cair sobre a Terra, como sinal do apocalipse em curso.

Rebeca se perguntou se os prófugos tinham se abrigado também na caverna subjacente à Rocha, onde se dizia que Davi, Salomão, Elias e o Profeta haviam pregado. Sem dúvida os cristãos também os alcançariam ali. Se era verdade que no Poço das Almas se reuniam as dos defuntos, para rezar à espera do Juízo Final, os mortos não pre­cisariam percorrer um longo caminho nem esperar muito tempo.

Pensou que o pobre Jamal a teria considerado blasfema. Pergun­tou-se se um dia ainda poderia discutir com alguém tão brilhante e tolerante. Ou, melhor, perguntou-se se ainda poderia discutir com quem quer que fosse.

Ricardo a exortou de novo. Pois é, Ricardo. Certo, ele não dispu­nha da cultura do emir, mas, em compensação, parecia ter o espíri­to igualmente aberto, refletiu ainda, antes de se concentrar na fuga.

Voltavam-se alternadamente, só para constatar que os persegui­dores não os perdiam de vista, embora não conseguissem ganhar ter­reno. Por outro lado, de nada serviria alcançar uma saída com os olhos deles ainda em suas costas.

Logo depois, as coisas pareceram se complicar. De sudoeste avançavam outros cruzados, cuja presença bloquearia, dali a pouco, o acesso ao setor meridional. Eram os provençais de Raimundo de Toulouse, explicou Ricardo, os quais finalmente haviam entrado na cidade depois de dar ao governador e aos prófugos que o acompa­nhavam o tempo necessário para se abrigarem na cidadela. Somente a porção sudeste do núcleo habitacional permanecia aparentemente livre, mas convinha ir depressa, antes que a subida das tropas fran­cas bloqueasse todos os acessos à parte meridional de Jerusalém.

Rebeca apanhou um tição caído de uma edificação em chamas. Depois passou à frente do grupo e tomou, sem hesitações, uma ruela que contornava a esplanada, descendo para a margem oriental da cidade. Inês a seguiu, enquanto Ricardo se atrasava um pouco, por causa da obstrução de alguns civis cristãos que acorriam à área sacra, a fim de participar do massacre. Alguns passos adiante, Inês se vol­tou, e só então percebeu que um dos perseguidores já estava perto do normando. Viu Sara se contorcer, gritando de medo, e Ricardo se mover com dificuldade na tentativa de se defender. Correu para ajudá-los enquanto o soldado desfechava uma cutilada, que o nor­mando conseguiu evitar deslocando-se com surpreendente rapidez.

Sara caiu no chão e, na tentativa de se proteger atrás de Ricardo, rolou entre os pés dele, fazendo-o tropeçar. O adversário preparou um novo golpe, mas Inês surgiu de improviso no meio do tumulto e o trespassou no estômago.

Se tivéssemos deixado você participar do primeiro assalto — comentou o normando com um sorriso, levantando-se e ajudando Sara a fazer o mesmo —, talvez pudéssemos ter conquistado esta cidade logo, sem tantos sofrimentos...

E talvez nossos companheiros não estivessem tão exasperados, depois de um mês de assédio, a ponto de se abandonarem a um mas­sacre destas proporções — respondeu ela.

Não conte muito com isso... — replicou Ricardo.

Recomeçaram a abrir caminho entre as pessoas. Enquanto isso, os perseguidores não desistiam. Pelo contrário: pareciam até mais numerosos.

Venham atrás de mim! — gritou Rebeca. Desceu uma escada­ria e se meteu entre os escombros de palácios imponentes, que haviam pertencido à primeira dinastia islâmica. Um ou outro fugiti­vo corria em busca de um esconderijo contra a fúria homicida dos cruzados, mas, no conjunto, havia agora pouca gente.

Rebeca circulava entre as ruínas com segurança. Esperava que a multidão tivesse impedido os perseguidores de vê-los se desviarem.

Nada feito.

Os soldados ainda vinham atrás. Inês os viu segundos antes de transpor os restos daquilo que havia sido um muro divisório entre jardins. Disse isso a Rebeca, que se detivera para perscrutar as ruínas. Um instante depois, a judia localizou uma abertura no terreno, exortou-os a segui-la e desceu uma rampa de degraus irregulares. Ricardo não hesitou, mantendo-se logo atrás, enquanto Inês ficou contemplando um pouco o tortuoso vão, amplo e quase da altura de um homem. Depois deu uma olhada para trás, percebeu que os per­seguidores ainda não estavam à vista e entrou.

A tocha de Rebeca e a luz débil que se filtrava de fora lhes possi­bilitaram continuar bastante expeditos, apesar das contusões e dos arranhões que o contato com as estreitas paredes de pedra e com os seixos lhes provocavam. Enfrentaram com a mesma decisão uma nova rampa, para, em seguida, desacelerar somente ao fim dos degraus; alguns passos adiante, o túnel pareceu se alargar, permitin­do que Ricardo ladeasse Rebeca.

Você sabe aonde estamos indo? — cochichou.

Só sei que daqui a pouco vamos descer mais e recomeçar a caminhar. A certa altura, haverá uma espécie de bifurcação: à direi­ta, chega-se logo à fonte de Gihon, e à esquerda toma-se uma galeria comprida que leva ao exterior, até a piscina de Siloé. Talvez alguém já tenha vindo de fora para buscar água, assim é melhor irmos para a piscina — respondeu a moça.

Como é que você conhece estes túneis?

Muita gente os conhece aqui em Jerusalém. Eles existem há tempos imemoriais, para permitir aos habitantes, em caso de assé­dio, tirar água da fonte, que se situa fora das muralhas.

Prosseguiram rapidamente, graças à largura maior do túnel, mas, nos pontos onde o declive era mais forte, os degraus, apenas esboça­dos na rocha e consumidos pelo tempo, obrigavam-nos a desacele­rar. De novo, uma luz flébil surgiu diante deles. Desta vez, vinha de baixo. Um buraco vagamente redondo no terreno. Rebeca entrou cautelosamente por ali, procurando encontrar uma sólida base de apoio para os pés e protuberâncias na rocha às quais pudesse se agar­rar. Inês a seguiu imediatamente, enquanto Ricardo cuidou de Sara, que olhava a borda da voragem com um misto de medo e repulsa. O normando pegou a jovem pelas axilas, e só então ela pareceu se tranqüilizar, deixando-se conduzir docilmente para baixo, onde as mãos robustas de Inês se aprestaram a sustentá-la. Finalmente, Ricardo também desceu, e só então Rebeca retomou a caminhada, guiando a fila ao longo de um túnel cujo teto baixo obrigava o nor­mando e a francesa a baixarem a cabeça.

Estavam com água até os joelhos, e a largura da galeria só permi­tia a passagem de uma pessoa por vez. Sara não demorou a claudicar, obrigando o resto do grupo a reduzir a marcha.

O teto, agora, era mais alto.

— Por que não leva de novo nos braços essa aí? — propôs Inês a Ricardo, sem tratar de esconder o despeito. O normando não disse uma palavra; deteve-se para esperar Sara, tentando observar os tra­ços dela na sombra. Se a escuridão não tivesse tornado indefiníveis as expressões, a jovem perceberia que o homem por quem suspirava a estava olhando com pena. Fosse como fosse, ele a segurou com delicadeza e carregou-a novamente nas costas, recomeçando a cami­nhar. O nível da água se elevou progressivamente, sem, no entanto, ultrapassar a cintura.

As respirações ofegantes que ecoavam no túnel, o barulho dos passos e o rumor da água impediam de perceber qualquer rumor que não fosse produzido por eles mesmos; no entanto, não parecia que os perseguidores tivessem intuído a direção que os quatro haviam tomado.

Mesmo assim, mantinham-se bem atentos a não produzir sons e ruídos fortes demais, para evitar assinalar sua presença a quem esti­vesse atrás ou adiante. Ricardo começava a sentir o peso de Sara, que se agarrara a ele com força. Isso contribuía para tirar o fôlego do normando, e o comportamento da jovem, contraposto à atitude decidida e resoluta das outras duas mulheres, deixava-o menos determinado e convicto.

A certa altura, Ricardo pisou em falso. Perdeu o equilíbrio e dei­xou cair a moça, que, por sua vez, foi parar na água. Apavorada, Sara gritou. Seu grito ribombou por todo o conduto, dando a impressão de que poderia se propagar até a superfície.

Se nos pegarem, saberemos a quem agradecer... — comentou Rebeca, cuidando de se fazer ouvir pela irmã, que Ricardo estava ajudando a se levantar.

Você acha mesmo que eu sou uma inútil, um peso para os outros, uma ingrata e insensível, não é? — gritou-lhe Sara, com raiva.

Rebeca não respondeu. Inês virou a cabeça para o outro lado.

Claro. Nem precisa falar. Sua expressão já é bastante eloqüen­te — continuou Sara. — Mas, se me despreza tanto, por que veio me salvar?

Você é minha irmã. E tudo que me resta — respondeu final­mente Rebeca, olhando Ricardo por um instante.

O normando sustentou o olhar.

Não sou tão má quanto você acredita. Apenas tenho muito medo. De tudo. Inclusive de ficar sozinha — justificou-se Sara.

Eu também estou começando a ter medo; se não apressarmos o passo. Se eles tiverem nos ouvido, não demorarão a nos alcançar — interrompeu-os Inês, impaciente.

Sua declaração decidida encerrou a discussão. Recomeçaram a caminhar um atrás do outro, Sara por último, dando a mão a Ricardo. Avançaram assim sem outros incidentes ou ameaças, enquanto o túnel se tornava cada vez mais alto, mas também mais estreito. As paredes pareciam querer esmagá-los e o espaço para a passagem parecia delineado para uma figura humana. Depois, um vislumbre de luz apareceu diante deles. Rebeca apressou o passo e a luz se tornou cada vez mais intensa, até que os cobriu de todo.

Caminhando finalmente sobre uma base estável de pedra apare­lhada, com a água correndo ao seu lado por um canal estreito, che­garam à abertura semicircular do túnel. Estavam na piscina de Siloé.

Avançando ao longo da borda interna, que mal aflorava da água, subiram a rampa de íngremes degraus à esquerda, lentamente, com muita cautela. Diante deles, o vale do Cedron e, ao fundo, o monte do Escândalo. O sol já se encontrava atrás da escarpa e das muralhas de Jerusalém; dali a pouco, viria o ocaso. Olharam para a direita, na direção do vale da Geena, e não viram ninguém. À esquerda, um esporão de rocha.

E um cavalo.

Dois cavalos.

Na sela, outros tantos cavaleiros, os elmos com a viseira abaixa­da, escudo, cota imaculada, lanças com estandarte.

O estandarte de Toulouse.

 

Atrás dos dois cavaleiros, um punhado de infantes.

Rebeca se sentiu confusa. Instintivamente, fez menção de voltar para o túnel, mas topou com Ricardo, que vinha logo atrás.

É inútil. Estamos diante do conde Raimundo de Saint-Gilles — disse o normando, fitando seu comandante.

Ouviram passos ressoarem no túnel. Cada vez mais próximos. Cada vez mais fortes. Surgiu do lado de fora um soldado. Era o guar­da do recinto dos prisioneiros. Sempre ele. Reconheceu Rebeca e Inês. Notou que a primeira carregava a sacola.

Aí está o que o senhor procurava, duque! Nas mãos dessa judia suja! — gritou, erguendo a espada sobre a cabeça de Rebeca.

A lâmina desceu. Sara gritou "Não!", interpondo-se entre a arma e a irmã.

O golpe partiu ao meio a cabeça de Sara.

Rebeca soltou um berro.

Inês apontou sua espada para o soldado.

Ricardo acolheu com a ponta da própria espada um outro armígero que subia da piscina.

Godofredo de Lorena.

Um dos dois cavaleiros apontou a lança para Ricardo.

Pare! — gritou o outro cavaleiro. Era Raimundo. Fez o animal avançar até o normando, enquanto outros soldados saíam da galeria.

Você me salva e depois me trai, Ricardo? — inquiriu o conde, levantando a viseira do elmo e fitando seu lugar-tenente.

Ricardo não soube como reagir. Muitas emoções juntas, até para um cínico como ele: surpreendido em flagrante pelo seu comandan­te, acuado por Godofredo de Lorena, obrigado a assistir à morte da mulher a quem acreditara amar.

Baixou os olhos, envergonhado, e pousou-os sobre o cadáver dilacerado de Sara, que Rebeca, de joelhos e em prantos, segurava entre os braços.

Essa gente está com aquilo que o sumo pontífice nos encarre­gou de procurar — declarou Godofredo, encarando primeiro Raimundo e em seguida Inês, a quem dirigiu um olhar de desprezo.

Eu sei. Quem me contou foi justamente um deles — respon­deu calmamente o conde de Toulouse. — E pensar que o senhor não conseguiu extrair essa informação, nem mesmo torturando aquele pobre padre... — acrescentou, manifestando sua desaprovação à ati­tude do duque.

Tão pobre e tão piedoso que escondeu documentos que podiam prejudicar a Santa Madre Igreja. Mereceu tudo que aconte­ceu a ele — replicou Godofredo, sem se alterar.

Um momento... Como os senhores souberam? — interrompeu-os Ricardo.

Seu amigo bizantino. Aquele Emanuel... — respondeu Raimundo. — Ele foi me procurar ontem à noite. Estranho, não? Em vez de se apresentar ao comandante a quem estava subordinado... Vê-se que torturar padres não lhe serviu de nada, duque — prosse­guiu, virando-se para Godofredo. — Mas, ao que parece, o senhor veio à saber do mesmo modo... — acrescentou.

Godofredo se dignou a explicar:

Eu estava rezando no Santo Sepulcro quando meus homens me informaram que essa puta — e, naturalmente, apontou Inês — havia entrado no perímetro com sua amiga judia. Mandei segui-las e depois fui ao encontro dos soldados...

Não posso acreditar que Emanuel tenha nos traído... — disse Rebeca, ainda soluçando.

E eu não posso acreditar que fui traído pelo meu lugar- tenente — replicou Raimundo. — Mas não creio que vocês devam considerar traidor aquele bizantino. Ele estava convencido de que vocês não tinham escapatória e me confidenciou quem escondia os rolos. Em troca, obteve minha palavra de honra de que não lhes faria nada; foi por isso que ele não o procurou, duque Godofredo. Deve ter pensado que a palavra de um torturador de padres não tinha o menor valor. Era um homem honesto, e creio que esse manuscrito constituía para ele um grande peso; tinha vindo a Jerusalém para buscar Deus e certamente achou que negar à Igreja um documento desses não combinava com seus propósitos.

Você deu sua palavra, mas eu não! — exclamou Godofredo, dando um passo em direção a Rebeca, com a espada desembainhada. — Eu mato esses três, como cães! Principalmente essa puta, que me enganou desde o primeiro momento! — acrescentou, fitando Inês.

A prostituta sustentou o olhar, mas não falou.

Raimundo fez seu cavalo avançar, colocando-se entre o duque e os outros.

Você não vai matar ninguém — declarou, gélido, bloqueando o braço de Godofredo com a haste de sua lança. — Para mim, é ques­tão de honra. Não somente fiz a promessa ao grego, mas também impediria você de qualquer maneira, pelo homem que me salvou a vida duas vezes. Eles nos entregarão os manuscritos e nós os deixa­remos ir.

Godofredo fez um gesto de irritação e refletiu por alguns instantes.

Só se for eu a entregá-los ao sumo pontífice — disse, afinal.

Desta vez, foi Raimundo quem refletiu.

Está bem — respondeu, voltando-se em seguida para o normando. — Ricardo, agora estamos empatados.

Em seguida se dirigiu a Rebeca. Não falou nada. Limitou-se a estender o braço, esperando a bolsa.

Rebeca ainda mantinha entre os braços o cadáver da irmã. Por alguns instantes, não se moveu. Olhou a mão do conde.

Não... não fomos nós, judeus, que matamos seu deus... — disse.

Ricardo a encarou, lívido. Mesmo naquelas circunstâncias, ela

ainda se metia a fazer polêmica.

Mulher, minha paciência tem limite. Entregue-me esta bolsa — retrucou Raimundo.

É a única esperança para nós, judeus. A única esperança de não continuarmos sofrendo perseguições.

A Santa Madre Igreja deve tutelar sua integridade — disse o conde. — Sobretudo agora que a cristandade assumiu novamente a responsabilidade por estes lugares sacros. Seu povo, minha jovem, sofreu muito pela culpa de seus antepassados, não nego. Infeliz­mente, até mesmo a fé mais branda encontra aplicações imperfeitas, por causa da falibilidade dos seres humanos. Mas uma religião que invoca a fraternidade universal é o melhor modelo ao qual um homem pode tender, ainda que jamais consiga alcançá-lo. Agora, peço-lhe pela última vez: entregue-me essa bolsa.

Rebeca refletiu. Olhando a embocadura do túnel, viu que havia um respiradouro livre para entrar na piscina. Moveu-se rapidamen­te e, insinuando-se entre Godofredo e um dos soldados dele, aproximou-se do fluxo de água.

Prefiro jogá-la na água e arruinar os rolos — disse, ameaçando deixar cair a sacola.

Raimundo não se alterou. Disse apenas:

Mesmo assim, obteremos nosso objetivo, não acha?

Godofredo esboçou um sorriso depreciativo.

Nesse caso, eu já não me sentiria vinculado por nenhum acor­do e tiraria uma bela satisfação... — disse por sua vez, lançando uma olhada eloqüente para Inês e acariciando a lâmina da espada.

Rebeca refletiu um pouco mais. Pensou em Emanuel, em Jamal, em Firuz, em Anselmo, em Sara, em seu pai. Aqueles rolos haviam causado demasiadas vítimas entre as pessoas que lhe eram caras, di­reta ou indiretamente. Ela não conseguiria suportar outros mortos.

Estendeu o braço com a sacola para Godofredo, que arrancou das mãos dela o objeto. Depois de examinar avidamente o conteúdo, o duque fez um aceno aos seus soldados.

Vamos embora — disse. — Não temos mais nada a fazer aqui. — E se afastou pelo vale da Geena.

Os homens que haviam ficado se entreolharam. Após alguns ins­tantes de silêncio, Raimundo se debruçou na sela e, esboçando um sorriso, perguntou:

E vocês, o que farão agora?

Inês era quem tinha as idéias mais claras.

Meu senhor — respondeu —, eu gostaria de continuar como soldado. Peço permissão para me unir às suas tropas e servi-lo, com uma fidelidade que não lhe trará arrependimento.

Raimundo a observou um pouco e assentiu:

Que seja — disse, virando-se em seguida para Rebeca. — E você, judia?

Rebeca hesitou.

Antes de mais nada, vou sepultar minha irmã. Ela me salvou a vida, e eu jamais a suporia capaz de semelhante gesto. Depois, creio que devo me afastar de Jerusalém. Talvez volte para a Europa, para o Reno... — concluiu.

Raimundo encarou Ricardo, que acompanhara com atenção as respostas das duas mulheres. E isso não havia escapado ao conde, que disse:

Naturalmente, você pode continuar servindo no meu exérci­to, na mesma função que exercia antes. Eu lhe confiarei um pequeno feudo aqui na Terra Santa. Mas, se não quiser continuar combaten­do conosco, não vou censurá-lo. Então lhe darei um prêmio em dinheiro e o deixarei ir para onde quiser. — E se dispôs a esperar a resposta.

Ricardo hesitou, olhando ora uma, ora outra mulher, dispostas respectivamente à sua direita e à sua esquerda.

Inês se colocou de perfil, assumindo uma postura veladamente provocante e fitando-o demoradamente com um sorriso convidati­vo, antes de olhar para o outro lado. Rebeca lançou a Ricardo ape­nas uma olhada fugidia, baixando a cabeça assim que cruzou com a mirada dele, sem se mover nem falar, embora esboçando um sorriso encabulado.

Ricardo perscrutou Inês, observando seu porte altivo, o rosto sem defeitos, a cintura alta e os ombros largos, os cabelos longos e ondulados que lhe desciam pelas costas e sobre os seios proeminen­tes. Depois observou Rebeca, seus cabelos presos, o nariz pronuncia­do, o queixo pontudo, as costas encurvadas, os fianças largos demais.

Os olhos intensos.

O espírito indômito.

O normando voltou o olhar para o alto, na direção das mura­lhas. Colunas de fumaça subiam além dos merlões, gritos atroavam no vale, clangores de armas ressoavam no ar. Jerusalém tinha caído.

Mas não era o fim. Haveria mais incêndios, mais gritos, mais clangor de armas.

O massacre estava só no início. E também a luta contra os reinos islâmicos estava só no início.

Não para ele, porém. Sua busca estava concluída.

— Creio que irei para a Europa — disse afinal, aproximando-se da judia.

 

Judéia, 107 d.C.

Zoker sabia não ter mais muito tempo de vida. Recordou aque­la noite de trinta e sete anos antes, quando, pela primeira vez, tinha visto homens crucificados. Centenas de homens crucificados. Na­quele momento, espantara-se com a absurda vontade de sobrevivên­cia deles, que os levava a fazer força sobre as pernas, soerguer a caixa torácica e continuar respirando, mas conseguindo apenas prolongar o suplício e os sofrimentos.

E agora ele estava fazendo o mesmo. Fizera-o por todo o dia anterior e durante a noite, desde quando os solertes funcionários do imperador Marco Ulpio Trajano o tinham pregado à cruz, ao lado de seu irmão Tiago. Este havia sucumbido logo, justamente como o Messias, o tio Jeshua. Na realidade, o que o espantara não tinha sido a brevidade da agonia de Tiago, mas a demora da sua: o estilo de vida, enquanto nazireus, tornara-os bastante longevos, e tais padecimentos destroncariam corpos bem mais jovens, que havia muito tempo tinham deixado para trás a idade em que os homens já podiam se considerar velhos.

Pela enésima vez, impeliu para cima as panturrilhas entorpeci­das, alavancando-se sobre o cravo que lhe perfurava ferozmente os tornozelos. Arqueou o esterno, arfando para inspirar. E recomeçou a esgotar o ar, perguntando-se por quanto tempo resistiria desta vez.

A lembrança daquela noite entre os crucificados, diante das muralhas de Jerusalém, conduziu-o mentalmente àquilo que aconte­cera no perímetro interno. À corrida pelas galerias, a fim de escapar da sentinela romana, ao encontro com os zelotas, à chegada à casa de Simeão. A imagem que seu olhar havia captado acompanhara-o por todo o resto da vida, e Zoker tinha certeza de que ela se reapresentaria até mesmo no momento, já próximo, em que ele fecharia os olhos para sempre.

Ainda via Simeão, o primo de seu pai, crucificado, embora com cordas, nas traves do teto, assim como o carrasco tentando extorquir dele o segredo do manuscrito de Tiago, o Justo. E via também a si mesmo, jovem e atlético, recuperar-se da surpresa e se lançar contra aquele homem, imobilizando-o e desarmando-o.

Lançara-lhe uma chuva interminável de acusações, aquelas que lhe reservava havia anos e aquelas às quais o incitavam as circunstân­cias do momento. E, por fim, aquelas provocadas pela reação daque­le homem, pela extraordinária dialética e pela força impressionante que ele sabia dar às suas palavras, a ponto de ter sabido impelir até Tiago, o Justo, a rever as próprias posições e chegar a um compro­misso sobre a difusão da Boa-Nova.

Zoker ouvira-o admitir que não se opusera à execução de seu patriarca e, pior, que até assistira ao suplício, ao lado do sumo sacer­dote Anano. Ouvira-o vangloriar-se de ter ajudado os romanos a superar os obstáculos para a conquista de Jerusalém, indicando-lhes a melhor estratégia e os setores mais débeis.

Tinha desejado matá-lo, por todas aquelas traições: aos seus che­fes, à sua fé, ao seu povo.

No entanto, não pudera evitar deixá-lo falar ainda mais. E não esquecera as palavras dele, interrompidas por um projétil romano caído sobre a casa, o que lhe permitira fugir com Simeão e o memorial.

— Uma religião deve unir, e não dividir — dissera o homem, antes de desaparecer entre os escombros do teto derrubado. — Uma religião deve salvar, e não condenar. O pacto entre Yahvé e Moisés criou uma contraposição entre Israel e os outros povos. A Nova Aliança de Cristo reúne os povos sob o único Deus, irmana todos os homens em Jesus Cristo. Por que o Senhor deveria se submeter ao sacrifício da cruz para resgatar um povo que já era escolhido por Deus? Não, o Salvador sofreu e se imolou para que todos pudessem ser salvos. Todos! Pelo pecado de um só, Adão, todos foram consti­tuídos pecadores; e agora, pelo sacrifício de um só, Jesus Cristo, todos serão salvos!

"Cristo me investiu da missão de fazer vocês superarem o zelo estéril por obras e preceitos que os escravizaram, para convidá-los a praticar, guiados pelo influxo do Espírito, o amor, a caridade, a ale­gria, a paz, a mansidão, a fidelidade e a bondade. Se a Lei fosse essen­cial à salvação, o sacrifício de Cristo seria inútil. Lembra-se do que Deus disse a Abraão? 'Em ti serão abençoadas todas as gentes.” Conseqüentemente, todos aqueles que têm fé são abençoados junto com Abraão. Deus concebeu a vinda e a morte vicária de Jesus Cristo para lembrar a vocês que o que importa para a salvação é a fé, e não as obras, e que todos podem ser salvos, e não somente o povo de Israel!

"Eu falo pela autoridade não de um profeta, não de um messias, mas do filho de Deus. Porque somente Deus pode conceber e pro­mover uma fraternidade universal; qualquer outro homem, por mais extraordinário que seja, não pode unir todas as gentes. Por con­seguinte, Jesus é Deus. O pacto mosaico, Jerusalém, o próprio Israel são apenas partes de um todo, que os hebreus gostariam de transfor­mar em obstáculos, e é necessário removê-los para que a mensagem de Cristo chegue a todos. Cristo é o sinal de que Deus decidiu ocupar-se de todos os homens, e não só dos israelitas! Cristo é o testemunho, perante todo o mundo, de que Deus é Deus, e não um dos romanos, gregos, egípcios ou persas!

"Vocês, com seu mesquinho apego às tradições, com seu nacio­nalismo e a intolerância que demonstraram, condenariam Cristo ao esquecimento e transformariam a crença nele em uma religião de poucos e perseguidos eleitos. Vocês tiveram nas mãos a salvação do mundo, mas seus preconceitos os impediram de reconhecê-la! Deixaram-se abater pela crucifixão do Senhor, sem compreender que a salvação da humanidade extrai justamente dela a sua origem!

"Graças ao que Ele me transmitiu, pude enfim interpretar o sig­nificado do sacrifício de Jesus Cristo e transformar uma derrota em uma vitória!

"Eu sou Paulo de Tarso, o ministro da reconciliação, a quem vocês deveriam agradecer, se aquele que está ligado a vocês pela carne for conhecido por todos como Deus, e não como um messias de Israel! E é a mim que devem agradecer se ficarem livres do fardo do pecado, a morte, e tiverem a vida eterna!

 

 

POSFÁCIO

A história da Igreja primitiva encontrou seu principal cronista em Eusébio, bispo de Cesaréia e conselheiro espiritual do imperador Constantino, o Grande. Pelo menos, sua História eclesiástica é a mais rica entre as coletâneas de fontes sobreviventes, permitindo-nos fazer uma idéia da evolução do cristianismo nos três primeiros sécu­los de sua existência. Entre outras coisas, Eusébio escreve que, durante o reinado de Trajano, foram crucificados dois descendentes de um irmão de Jesus chamado Judas. Fornece até os nomes deles: Tiago e Zoker, assegurando também que eles "presidiram a todas as Igrejas como testemunhas e membros da família do Senhor". Por outro lado, o mesmo autor refere várias notícias sobre Tiago, o Justo, "irmão do Senhor", derivando-as em grande parte das Memórias de Hegésipo, uma obra que lamentavelmente se perdeu.

Mas, afora Eusébio de Cesaréia, na Igreja primitiva muitos fala­ram de Tiago, o Justo, e dos irmãos de Jesus. Na abertura de cada parte deste romance, transcrevi algumas das fontes e das citações existentes, que extrapolei de uma coletânea bem mais ampla, privi­legiando aquelas extraídas dos textos canônicos. Em particular, a tradição que identifica em Tiago o sucessor de Jesus, o primeiro bispo de Jerusalém e, por conseguinte, em substância, o primeiro papa, em vez de Pedro, é por demais difundida nos Evangelhos apó­crifos e entre os Padres da Igreja para ser apenas uma mera invenção posterior. O Evangelho de Tomé é um exemplo disso. Nele, lê-se: "Os discípulos disseram a Jesus: 'Sabemos que tu nos deixarás: quem será grande acima de nós?' Jesus lhes respondeu: 'Aonde fordes, seguireis Tiago, o Justo, aquele por motivo do qual foram criados o céu e a terra.'"

Por outro lado, entre os Evangelhos canônicos somente o de Mateus relata a bem conhecida investidura de Pedro por parte de Jesus. Depois, com a destruição de Jerusalém e a transferência de Pedro para Roma, teria prevalecido a tradição que fazia justamente de Pedro o primeiro sucessor de Cristo, sancionando a preeminência da cidade capitolina. De passagem, vale a pena assinalar que, seja num texto canônico como a Epístola aos Gálatas, de são Paulo, seja num apócrifo como as Homílias clementinas, o próprio Pedro pare­ceria subordinado a Tiago.

Portanto, é bem compreensível que a existência desse Tiago e de seu papel represente até hoje um problema. Tratava-se de uma figura verdadeiramente importante da Igreja primitiva, de um personagem demasiado incômodo para encontrar lugar na tradição canônica.

Igualmente palpável é o conflito que surgiu, logo após a crucifixão de Jesus, sobre a atitude a manter quanto à evangelização. Ao que nos parece entender, a comunidade de Jerusalém, presidida por Tiago — mas talvez não só por ele —era favorável à difusão da men­sagem de Cristo apenas entre os circuncidados, ou seja, o povo hebraico; outros, provavelmente aqueles menos ligados ao ambiente palestino, ou seja, os hebreus helenizados, encabeçados por são Paulo, queriam uma difusão também entre os gentios não circuncidados. Além disso, com base nas indicações das fontes, devemos con­siderar provável o pertencimento dos parentes de Jesus — qualquer que fosse o grau de parentesco que os ligava a Cristo — à facção que poderíamos definir como "perdedora", isto é, a dos nacionalistas.

A queda de Jerusalém nas duas revoltas sucessivas entre os sécu­los I e II d.C. deve ter representado uma guinada na evolução do cristianismo; seguramente, sua matriz judaica, de início predominante, redimensionou-se até se limitar a alguma seita marginal, com epicentro bem distante dos lugares que realmente importavam. Sobreviveu apenas o judaísmo de algum modo tolerado pelos domi­nadores romanos, ou seja, o rabínico e o cristão de tendência universalista/pacifista, já desprovido das conotações subversivas que haviam acompanhado o início do movimento. Sua afirmação aca­bou por redimensionar a responsabilidade dos romanos na morte de Jesus, amplificando a dos compatriotas dele: uma operação espontâ­nea desde a Diáspora, e provavelmente tornada consciente e programática a partir do momento em que o cristianismo se tornou reli­gião oficial do Império Romano.

No que se refere a são Paulo, que teve tão grande papel na cons­trução da nova religião, devemos admitir, com Riccardo Calimani (Paolo, 1'ebreo che fondò il Cristianesimo, Mondadori, Milão, 1999), que seu destino permanece envolto na lenda. No final do século II d.C., Tertuliano escreve que ele morreu decapitado em Roma; mais de um século depois, Eusébio de Cesaréia parece confir­mar isso, mas situando o episódio numa data mais tardia. E pouco demais para levar em conta essa informação, o que me ofereceu a possibilidade de imaginar um encontro entre Paulo e Zoker em Jerusalém, durante o assédio de Tito.

Por fim, o Jesus histórico e o desenvolvimento do cristianismo dos primórdios são temas de estudos relativamente recentes, mas que já contam com uma vasta bibliografia. Na Itália, cabe a Corrado Augias e Mauro Pesce, com Investigação sobre Jesus (Bertrand Brasil, 2011), o mérito de terem trazido esses aspectos à atenção do grande público, traduzindo para uma linguagem compreensível as doutas indagações de exegetas e biblicistas, peritos e especialistas de várias confissões, autores de textos francamente árduos para o curio­so comum, mas também para o crente que se considere conhecedor das Escrituras.

E o debate sobre a natureza dos indivíduos citados como irmãos e irmãs de Jesus se encaminha cada vez mais para um reconhecimen­to deles como irmãos de sangue. Não somente exegetas protestantes, mas até insignes estudiosos católicos, como J. P. Meir, professor na Catholic University of America, ou ainda o dominicano François Refoulé, diretor da Escola Bíblica de Jerusalém, não tiveram dificul­dade em admitir isso.

Quanto a Tiago, enfim, sua figura vem se revalorizando progres­sivamente, após milênios de olvido. Para este romance, fui tentado a utilizar as corajosas teorias de Robert Eisenman, expostas na cir­cunstanciada obra James, the brother of Jesus (Penguin, 1998); con­tudo, por mais brilhantes e engenhosas que sejam, considerei-as demasiado temerárias, e teria sido francamente difícil expô-las e motivá-las numa obra de ficção. Mais equilibrado, em contraposi­ção, pareceu-me o volume de Pierre-Antoine Bernheim, Tiago, irmão de Jesus (Record, 2003), bastante cauteloso em sua exposição, tanto que não desagradará a quem quer que se considere ofendido por estudos de tal gênero.

 

 

 

[1] Askenaz — filho mais velho de Gômer (Gen 10,3); seus descendentes formam os citas (Jer. 1,27). Na literatura posterior, o nome Asquenaz denota os povos ger­mânicos Rifa e Torgarma. (N. do E.)

[2] Espécie de calção largo, de comprimento até os joelhos. (N. T.)

[3] O mesmo que balestras. (N. T.)

[4] Grande escudo de madeira movimentado sobre rodas ou cilindros, usado para resguardar grupos de soldados. (N. T.)

[5] Braço lançador. (N. T.)

[6] Diminutivo de carpine (em português, "carpino" ou "carpa"), árvore da família das betuláceas. (N. T.)

[7] Ou fogo sagrado, fogo de santo antão. Trata-se do ergotismo, doença causada pelo esporão-do-centeio (Claviceps purpurea), fungo que pode infectar cereais comestíveis. (N. T.)

[8] Antigas máquinas bélicas de arremesso. (N. T.)

11 Antiga máquina de guerra para lançar pedras. Neste romance, o autor também usa o termo (petriera, em italiano) para se referir às que arremessavam projéteis incendiários. (N. T.)

[10] Área destinada às mulheres. (N. T.)

 

                                                                               Andréa Frediane 

 

 

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