Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
JOGO DUPLO
Segunda Parte
Não respondeu e foi instalar-se num dos maples em frente da cama. A chuva trouxera consigo uma mudança de temperatura. Estava nitidamente mais frio. Sempre que o Outono começa no Lena, é como se Deus abrisse a porta de um frigorífico sobre a Terra. De início, sente-se um sopro frio e, seguidamente, começa a geada, camada a camada, até tudo ficar congelado.
- Vai constipar-se, Valia loanovna - comentou Chukov, ao mesmo tempo que voltara a incidir a luz sobre ela. - O seu roupão de seda pouco ajuda. Venha para a cama.
- Você é doido? - bufou. - Tenho medo dos trovões e preciso de companhia. É tudo. Quando deixar de relampejar, vou-me embora.
- O mau tempo pode durar até de manhã.
- Nesse caso, permita-me que fique aqui sentada na sua companhia até de manhã.
- E se trocássemos de lugar? Você na cama e eu no maple. Posso enrolar-me num casaco quente. - Saltou da cama, tirou o casaco do armário e enrolou-se nele. Ela olhava-o como uma fera que não desprega os olhos do caçador, refugiada na caverna.
- Enfie-se na cama, Valia loanovna. Está um calor maravilhoso por baixo dos lençóis. Sempre que me deito sou um verdadeiro forno. Em cinco minutos, é só calor à minha volta.
Não lhe deu resposta, limitando-se a levantar-se e a meter-se na cama. Chukov sentou-se no maple que ela acabara de deixar e aspirou fundo.
- Com os diabos! Que cheiro é este? - quis saber. Acho um perfume divino.
- Originário da China - esclareceu. - Feito à base do óleo de uma rosa vermelha de pequenos botões. Desconheço o nome. Deve ser uma rosa selvagem.
- E o que a leva a querer ir para um campo de concentração? - quis saber Chukov, enrolando-se mais no casaco. Estava realmente uma temperatura de gelo e ainda não tinham ligado o aquecimento central do hotel. - Só a espera suor, cheiro a sangue, pus e fedor a cloacas. O cheiro a transpiração e urina de milhares de homens. O cheiro a mofo de roupa. E está aí com um perfume de rosas chinês. É uma coisa perversa.
- Esse problema não é seu, Vassia Grigorevitch. Tem frio?
- Um bocado.
Um novo e forte relâmpago interrompeu-o. A trovoada ribombava mesmo por cima deles, como que envolvendo o universo. A mulher puxou o lençol até ao queixo. Os olhos amendoados tornaram-se maiores com o medo.
- Temo-la mesmo aqui - disse Chukov. - Era capaz de operar com trovões?
- Era.
- Mesmo que tremesse de medo?
- Na mesa de operações não tenho medo nem tremo.
- Nesse caso, devia trazer sempre uma mesa de operações em miniatura consigo...
- Essa sua forma de falar enoja-me. Anseio por me ver no acampamento e não ser obrigada a voltar a pôr-lhe a vista em cima.
- Anseia por um campo de concentração?
- Sim. Trata-se de uma missão.
- Irá seleccionar os doentes e mandar para o trabalho tudo o que possa correr. Depressa se transformará na pessoa mais temida em Ottok.
- É uma perspectiva que me atrai.
Chukov calou-se. Olhou-a pensativamente e enrolou-se mais no casaco. A chuva açoitava a cidade; até onde se divisava a mais pequena estrela, o céu assemelhava-se a um mar infindo que nesse momento se abatia sobre a terra.
- Porque se calou? - quis saber decorrido um grande bocado. - Porque me olha dessa maneira?
- Estou a reflectir, Valia loanovna.
- Em quê?
- Em se pensaria, sentiria e reagiria de uma outra maneira se fosse um pouco menos sombria e enigmática, se o homem exacto lhe conseguisse mostrar o que é o amor.
- O seu tema favorito! - Virou-se para o outro lado, de costas para ele, e enroscou-se entre os lençóis. - Presumo que não espera uma resposta...
Chukov ficou a noite inteira sentado no maple, de início acordado e depois deixando-se, a pouco e pouco, imergir num sono sobressaltado. A trovoada afastou-se, mas a chuva continuou a cair. A manhã surgiu tão cinzenta e triste como se o próprio Sol se tivesse afogado.
Sobressaltou-se quando ela o abanou. Já tinha tomado duche e estava penteada. O rosto enigmático apresentava novamente a impenetrabilidade dos Asiáticos.
- Você ressona - informou num tom de voz claro. E não passa de um imbecil, Vassia Grigorevitch. Desejo-lhe um belo dia...
Saiu, fechando a porta atrás de si.
Chukov levantou-se satisfeito do maple, espreguiçou-se, fez alguns exercícios livres, para desentorpecer os músculos, e em seguida aproximou-se da janela. A chuva caía ainda, impedindo a visibilidade, como se o hotel se encontrasse debaixo de água.
«Presta-me homenagem, Dunia», disse Chukov em voz alta. «Como me portei? Foi terrivelmente difícil fazer-lhe frente. Será capaz de devorar um homem como uma teia de aranha. Um combate com ela será de vida ou de morte...»
O comboio de mercadorias estava de facto pontualmente carregado, dois dias depois, na estação de mercadorias de lakutsk. Compunha-se de duas locomotivas, catorze vagões, duas carruagens da mais antiga construção e sete vagões-jaulas chapeados, de transporte de gado, que até aí tinham esperado num desvio. Através de algumas vigias avistavam-se lenços ou tiras de camisas rasgadas à guisa de sinais de solidão e miséria: «Socorro! Socorro! Fecharam pessoas aqui dentro. Não se afastem, vejam-nos bem, conservem a imagem gravada no coração. Em cada vagão-jaula de transporte de gado viajam sessenta ”almas mortas”, esqueletos que respiram, amigos. Com a pele apenas a cobrir-lhes os ossos. Há sete semanas que vimos a caminho, do campo de concentração de Pern. Rezem por nós, amigos.
Vuginskaia já estava instalada no seu compartimento de primeira classe quando Chukov, com a mala por cima da cabeça, correu através da chuva e se acercou da carruagem.
Arranjara lugar junto da janela, acenou-lhe e riu quando ele, completamente ensopado, subiu aos tropeções para o compartimento. Atirou a mala para a rede de bagagens, despiu o casaco, que pingava, e pendurou-o na manivela de alarme colocado por cima da porta.
- Quase não nos vimos nestes dois dias - observou. Uma situação insustentável, Valia loanovna. Deixou ordem no hotel para não dizerem, mas a verdade é que estava no seu quarto. Bati muitas vezes à porta do quatrocentos e quarenta... Tinha o rádio ligado. «Bom», pensei com os meus botões. «Está zangada comigo. Contudo, ainda nos voltaremos a ver. Mais tarde, no comboio.» E como vê, acertei. Esta carruagem é só para nós?
- É. Mandei-a reservar para carruagem de socorros médicos. O encarregado dos transportes diz que podemos demorar uma semana de viagem. Precisamos, por conseguinte, de um posto sanitário.
- O seu gado viaja na parte traseira do comboio.
- Eu vi-os - retorquiu num tom reservado. - Perto de quatrocentos presos. Um terço composto por mulheres.
Escancararam a porta da carruagem. Um oficial da escolta fitou a médica e os olhos arredondaram-se-lhe de admiração. Cumprimentou e presenteou Chukov com um olhar inexpressivo. Era um tenente-coronel com um aspecto enérgico, pressupostamente capaz de impressionar a bonita camarada.
- Há ainda um lugar vago? - perguntou, aproximando-se.
- Não - respondeu Valia loanovna com voz de fanfarra. - Aqui é uma enfermaria militar. Saia.
O tenente-coronel fitou-a incrédulo e apontou seguidamente para Chukov.
- E este é talvez o seu primeiro doente, camarada?
- Vá à merda! - replicou bruscamente.
O tenente-coronel pestanejou, deitou um olhar mau e irritado a Chukov e saiu da carruagem. Os vidros da janela estremeceram.
- Você é incrível, Valia - comentou Chukov secamente. - É um verdadeiro choque ouvi-la falar. Quem a vê sente desejo de beijar a natureza por ter produzido uma coisa assim e depois você abre essa boca de sonho e solta cá para fora verdadeiras barbaridades. Como se deve interpretar isso?
- Faz perguntas demasiadas, Vassia Grigorevitch - replicou, olhando através da janela. - Engula o que vê e escuta. Nenhum de vocês merece mais do que isso.
Falámos de pontualidade relativamente ao comboio? Tratou-se de uma mera expressão retórica. O comboio estava preparado com todo o seu aparato - o que era uma coisa digna de elogio. No entanto, o maquinista há uma hora que preparava a partida, ao telefone da estação, com todos os funcionários que eram necessários para pôr um comboio em movimento. Não se pode muito simplesmente puxar pela sirena e pôr a máquina a fumegar. Se bem que a via férrea do comboio de mercadorias, que partia de lakutsk, se separasse dos carris habituais e seguisse pela taiga, como que marcada com régua, por um pequeno desvio através das florestas densas, sem nada que se lhe opusesse pelo caminho - a não ser que qualquer velho e cansado veado tivesse escolhido precisamente os carris para se entregar a uma sonecazinha - tudo obedece ao método. E que é um russo sem um regulamento? Nesse aspecto assemelha-se, como um irmão, aos Alemães. Surge o desespero quando não há ninguém para ditar qualquer sentença.
- A chuva! - queixou-se o maquinista quando apareceu, decorridas três horas, na carruagem da médica. - Esta chuva! Um dilúvio. Em lakutsk diz-se «Parta!» O entroncamento de Simiansk telefona: «Fique. O solo por baixo da linha férrea não está seguro.» E o posto de controlo de Bioronovo comunica: «Somos alguns profetas? Está a chover.» Mas que diabo de resposta. E a quem atribuem a responsabilidade? A mim, como é óbvio. «Quem são vocês?», perguntam as autoridades públicas. «Pertencem ao caminho-de-ferro soviético? Claro que não... têm carris próprios, comboios e carruagens próprias, ninguém pode passar pelas vossas vias férreas e agora estás para aí a querer saber se podes partir. Pergunta aos teus camaradas de Ottok.»
- E porque não pergunta? - retorquiu Chukov.
- Em Ottok ninguém responde - esclareceu o maquinista passando as mãos pelo rosto. Estava visivelmente nervoso. - Talvez se tenham afogado todos. Nunca houve uma chuva assim por estes lados e eu nasci em lakutsk.
No entanto, acabou por se seguir viagem nesse dia... não de manhã, como estava planeado, mas quando a tarde ia já avançada. Chukov e Vuginskaia continuavam sós na carruagem, se bem que por várias vezes oficiais ou civis, que deviam ser engenheiros como Chukov, tivessem metido a cabeça através da porta e perguntado delicadamente se havia um lugarzinho livre. Mas sempre que tal acontecia, a voz de Valia loanovna fazia-se ouvir:
- Aqui é uma enfermaria militar.
Quem, no entanto, se atrevia a fitá-la com uma expressão de descrença e no olhar um nítido reflexo de desejo viril ante tal beleza feminina, tinha de retirar a cabeça a toda a pressa, pois ela atirava-lhe violentamente com a porta.
- Já aguentei mais que o suficiente - declarou quando o sétimo inquiridor recuou espantado. Levantou-se, foi buscar uma pasta à mala de viagem, tirou uma folha de papel e escreveu com baton vermelho-vivo em grandes letras: «Entrada proibida. Enfermaria militar.» Colou a folha com adesivo à porta de vidro e brindou com um olhar desagradável um homem que se preparava precisamente para entrar na carruagem.
- Se alguém abrir a porta - disse a Chukov -, nesse caso entro em acção! Apenas terá de o segurar, mas você é robusto.
- O que a leva a fazer isso, Valia loanovna? - perguntou.
- Apeteceu-me estar sozinha consigo.
- Muito grato...
- Não meta ideias na cabeça, Vassia Grigorevitch. Quero estar consigo por mero interesse científico.
- Quer que me dispa? - perguntou Chukov num tom inofensivo e fitando-a com o seu característico olhar sonhador. - Garanto-lhe que me encontro em perfeito estado anatómico e com as coisas no seu lugar.
- O que fará se lhe derem duas brigadas de presos?
- Sei que as vou ter a meu cargo. Para a construção de estradas. O que farei? Serei uma pessoa.
- Uma grande palavra, camarada Chukov.
- Uma bela palavra, camarada Vuginskaia.
Quando um comboio acaba por sair da estação, um verdadeiro acontecimento que se tinha esperado horas a fio, sente-se uma emoção sublime. Acreditem-me, camaradas! Segue-se, acima e mais do que tudo, a vastidão, o desconhecido, a aventura. O guinchar das rodas transforma-se em música e o vapor do tênder acorda recordações de infância. Chegou-se à conclusão estatística de que setenta por cento de todos os jovens desejaram uma vez na sua vida ser maquinistas de comboios... não constitui o facto uma prova do profundo e comovedor romantismo que uma caldeira a vapor é capaz de provocar?
O maquinista entrou na carruagem depois de ter lido o papel com as indicações escritas a baton e ter decidido que um maquinista tem acesso a tudo, porque o comboio é seu.
- A linha está livre - anunciou num tom feliz. Ottok ainda não forneceu, realmente, qualquer informação, mas, seja como for, podemos viajar durante um dia e uma noite. Já é alguma coisa com esta chuva. Confiemos no bom trabalho dos que colocaram os carris.
No entanto, não foram estes que causaram preocupações, mas os construtores de pontes. E pela manhã, precisamente às cinco e vinte e dois. O comboio aproximava-se de um riozinho que, tendo em conta as proporções siberianas, não passava de um regato e se chamava Tiugania, quando as luzes vermelhas de cada lado dos carris sinalizaram que havia algo que não estava em ordem. Em seguida, no cinzento da manhã imerso na chuva torrencial, apareceram três trabalhadores que agitavam igualmente lanternas vermelhas. Os pobres homens estavam metidos em fatos de borracha como se fossem mergulhadores e ocupavam o meio dos carris. O comboio meteu travões a fundo, da locomotiva saiu um apito ensurdecedor e Valia loanovna rolou no banco da carruagem. Caiu sem mais nem quê no chão do compartimento.
Antes de adormecerem, ainda tinha havido uma breve discussão.
- Está cansada - dissera Chukov à companheira. Vejo nitidamente. Porque não dorme? Tem receio de que possa interpretar falsamente a sua posição horizontal?
- Você é mesmo nojento - respondera, servindo-se do casaco como travesseiro e estendendo-se no banco. Pronto, estou deitada. Satisfeito?
- Não.
- O que falta? Porque não diz: «Esqueceu-se de vestir a camisa de noite»?
- Usa camisa de noite? Mas que antiquada, Valia loanovna. Um corpo deve respirar e é por isso que durmo sempre nu.
- Hoje também? - retorquiu com um reflexo de irritação nos olhos rasgados.
- É impossível.
Levantou a cabeça. O cabelo negro, com um brilho metálico, reluzia iluminado pela luz fosca do tecto. - Para si existem realmente impossíveis?
- Agora sim. - retorquiu Chukov, observando-a descaradamente. «Es perigosa de mais», pensou. «Não és uma aventura que possa durar meramente uma viagem de comboio. Agarras-te com unhas e dentes a quem se te entregar.» Ainda nunca consegui andar nu na presença de uma mulher bonita sem satisfazer determinadas necessidades biológicas...
- Esteja quieto - sibilara Vuginskaia. - Não passa de um maldito tagarela, Vassia Grigorevitch.
Voltou a deixar cair a cabeça no casaco enrolado, fechou os olhos e cruzou as mãos sobre os seios bem modelados. Chukov estava ocupado a pensar se ela esperava que se inclinasse para ela e a beijasse. Ou que lhe desabotoasse a blusa e lhe acariciasse os seios, deslizando a mão pelo regaço e apalpando-lhe suavemente as pernas com dedos ternos. Mais não era possível. não se podia tapar a porta da carruagem com uma cortina, e mesmo que se apagasse a luz, a claridade do corredor continuava a permitir que se visse tudo. E o maquinista passava o tempo a entrar e a sair, ou então os oficiais andavam pelo corredor a fumar e a esticar as pernas de um lado para o outro.
No entanto, seria que ela esperava qualquer coisa do género? Mantinha-se deitada, como que num convite. As pálpebras descidas vibravam ligeiramente, uma prova de que não estava a dormir, mas apenas numa expectativa dos minutos seguintes. Chukov levantou-se, foi buscar o seu casaco, desenrolou-o e cobriu o corpo de Valia. Quando se ia a afastar, ela estendeu a mão e agarrou-o.
- Obrigada - agradeceu baixinho.
- Não quero que fique gelada - retorquiu.
- Dentro de si vivem duas personalidades, Vassia Grigorevitch.
- Bate certo - concordou com honestidade. - No entanto, nenhuma delas vale grande coisa. Durma bem, Valia loanovna.
- Desejo-lhe o mesmo, Vassia...
Estendeu-se no banco em frente do dela e reparou como o observava através dos olhos semicerrados. «Não vou ter contigo», pensou ao mesmo tempo que virava a cara para a parede, o que não era muito delicado, na medida em que tinha de lhe apresentar o traseiro. No entanto, tal atitude enquadrava-se na imagem que se esforçava por traçar a seu respeito. «Só haverá perigo se ela vier ter comigo», continuou a pensar. «Com os diabos! Sei exactamente o que está a pensar e o que pretende... quer no Texas, no Alasca, em Moscovo ou na viagem para a solitária Sibéria, uma mulher é sempre um aglomerado de ansiedades secretas. E todas ficam felizes quando alguém resolve desfazer esse aglomerado.»
Caiu, por conseguinte, do banco, naquele alvorecer inundado de chuva, quando o comboio travou repentinamente.
Chukov bateu fortemente com a testa de encontro à parede da carruagem, praguejou como um bom russo com as palavras menos lisonjeiras, em seguida deu meia volta e ajudou a companheira a pôr-se de pé. Nas outras carruagens devia ter acontecido o mesmo, na medida em que por todo o lado se ouviam vozes irritadas. No corredor empurravam-se homens semi vestidos.
, - Parámos - anunciou Chukov, encostando a cara ao vidro da janela. - No meio da região. Não prevejo nada de bom.
O maquinista não demorou a trazer certezas. Irrompeu pela carruagem, sentou-se no banco e olhou para Vuginskaia quase suplicante.
- Deixem-me respirar um pouco na vossa companhia
- gemeu. - Os outros camaradas... mas que conduta. Quase me cuspiram. Sou responsável que o céu desabe? Sou um sofredor como todos. Mas, não... nada disso. Têm de ter alguém em quem despejem a raiva, como porcas a cagarem junto a um tronco de árvore. O que se passa, afinal? O rio está seis vezes mais alto do que o habitual e nove vezes mais largo. Como era possível calculá-lo de antemão, pergunto? Há alguma hipótese de se prever tais anomalias? Concluindo e resumindo: a ponte está destruída. Fim de estação.
- Sendo assim, voltamos para trás? - quis saber Chukov.
- Voltar para trás nem pensar. Podemos dar-nos por satisfeitos por termos chegado até aqui. O que acha que temos atrás de nós? Um novo dilúvio. Deixou de haver terra firme numa área de milhares de verstas. Apenas pântanos. Se, neste momento, descerem da carruagem, camaradas, ficarão afundados até à barriga das pernas. Como nabos metidos na terra. E querem responsabilizar-me por isso. Não é de desesperar?
- E o que se vai seguir? - quis saber Vuginskaia. Teremos de esperar aqui sem nos mexermos, até nos afundarmos? A chuva pode continuar a cair durante dias.
- Tem razão, camarada, tem razão. Falei com o chefe do departamento da via férrea. Só há duas hipóteses. Ou esperamos até chegarem as primeiras geadas e o solo ficar duro...
- Isso é pura imbecilidade! - comentou a médica em voz alta.
Ou tentamos atravessar o rio com barcos e jangadas, e teremos de esperar do outro lado até um comboio de Ottok nos ir buscar. Em qualquer dos casos, teremos de esperar.
- E onde vamos buscar os barcos e as jangadas? - perguntou Chukov.
- Não é problema. Já está resolvido - anunciou o maquinista orgulhosamente. - Do outro lado do rio ficg Novo Sosnovka. Apenas uma aldeiazinha, mas a duas verstas de distância, na taiga, erguem-se vinte barracas de presos. Todos políticos. - Cuspiu e olhou à volta à espera de aprovação. - Um monte de farrapos. Serão mobilizados e terão de andar como se lhes metêssemos fósforos no cu. Terão de nos levar para o outro lado. A todo o comboio.
- Com esta chuva? Com a corrente tumultuosa do rio? - retorquiu Chukov.
- Muitos deles morrerão afogados. Mas interessa alguma coisa? Finalmente, terão oportunidade de fazer qualquer coisa pela pátria. Até que cheguem os militares de lakutsk, os nossos heróicos pioneiros, e construam uma ponte, há muito que teremos atravessado o rio e iremos a caminho de Ottok. Teremos a coragem e a força de vencer este dilúvio. Iremos deixar que nos vençam? Num sítio onde temos milhares de inimigos do Estado que finalmente vão poder trabalhar, em vez de estarem a encher a mula à nossa custa? Prestem bem atenção, camaradas, a como se organiza uma coisa destas.
- Gostava de ver... - retorquiu Chukov com uma expressão séria e fitando a companheira. - Uma ponte de homens nesta natureza em fúria...
- Porque não? -declarou ela friamente, como se lhe tivesse perguntado o que pensava. - No entanto, acabará por se transformar num canibal, Vassia Grigorevitch.
- Não estou a compreender...
- Acabará por se devorar a si mesmo, camarada Chukov - esclareceu num tom de voz claro. - Terá de engolir toda a Sua humanidade. Só assim sobreviverá. Estamos na Sibéria...
Seja qual for a organização, até a melhor (e o que aqui acontecia neste riozinho Tiugania, transformado em corrente tumultuosa, exigia um exemplo da arte mais requintada de improvisação soviética), precisa de tempo. Antes que um grão de trigo rebente, decorrem meses e até mesmo a mais simples flor de campo precisa de uma fase de desenvolvimento, cada erva daninha cresce segundo as leis da natureza... O que se pode fazer com um ser considerado abaixo de erva daninha, aprendeu Chukov mas horas que se seguiram.
Ao romper do dia, que não ’trouxe sol porque apenas a água caía do céu e absorvia a luz até a reduzir a uma difusa claridade, o comboio mantinha-se, por conseguinte, parado e de nada valia que a escolta dos deportados rosnasse, que os passageiros civis, na sua maioria engenheiros, cientistas, geólogos e técnicos de foguetões, praguejassem como garotos mal-educados... O atormentado maquinista, depois de ter informado Chukov e a companheira, correu novamente ao longo do comboio bloqueado a gritar que o programa do Partido não previa como se actuar diante de um dilúvio, nem tão-pouco como se segurar carris que se vão afundando por debaixo das rodas das carruagens.
- Mais quatro dias desta chuva e transformamo-nos num barco - rugia o maquinista a todos os que o incomodavem e lhe mostravam ordens de marcha ou datas de apresentação. Tivessem aceite um cargo em Novgorod, em Irkutsk ou em Smolenska... estariam, neste momento, com o cu sentado numa poltrona e poderiam apalpar uma secretária por baixo da roupa, camaradas. Contudo, estamos no meio da Sibéria. Aqui é terra virgem. E vocês são os pioneiros destinados a desvirginá-la. Pertence-vos coragem e força. Comportem-se, pois à altura.
Lá fora decorria o que se chamava organização. A ligação pela rádio com a aldeia de Novo Sosnovka e principalmente com o enorme campo de concentração estava nas melhores condições - bastava falar de uma margem para a outra do rio. Em contrapartida, lakutsk e Ottok mantinham-se caladas e o telegrafista do comboio dava desesperadamente o seu melhor.
- A chuva ensopa as próprias ondas emissoras - acabou por declarar num tom resignado. - Eu sei, eu sei, camaradas, é estupidez, mas não consigo.
Na sua carruagem, onde ainda estava pendurado o letreiro pintado a baton com os dizeres «Entrada proibida. Enfermaria militar» ( tanto Chukov como a companheira estavam ao abrigo de visitas e sentavam-se à janela, olhando lá para fora, para este mundo cinzento constituído por florestas, um rio saído para lá das margens, uma estrada transformada em pântano e lances de carris que se afundavam na lama. Alguns homens com botas de borracha enormes e gabardinas de oleado amarelas e capacetes de plástico na cabeça, semelhantes aos que os operários da construção civil ou das fábricas costumam usar, corriam ao longo do comboio, examinavam, sem saber o que fazer, os carris e o comboio afundado num beco sem saída, falavam seguidamente para transmissores portáteis que Miller conhecia pelo nome de walkie-talkies e chamavam aparentemente quaisquer serviços públicos distantes, para que os ajudassem. Tudo isto durou três horas. O rio deu a sensação de encher ainda mais e chovia com tanta força que a água caía do céu incolor como uma cortina única, por detrás da qual tudo eram sombras.
- Quando acontece qualquer coisa na Rússia, é radical comentou Chukov bem-humorado e recostando-se. Tirou um cachimbo do bolso do casaco e encheu-o com uma mistura de tabaco e machorka, o tipo de luxo que se pode permitir um engenheiro da classe média. A médica assistia aos preparativos de cenho franzido. O rosto fino, de olhos um tanto oblíquos, amendoados, mostrava-se reservado. O cabelo negro, de brilho metálico, despenteado após a noite agitada, rodeavam-lhe a cabeça como um véu.
- Aqui não é sala de fumo - comentou, quando Chukov meteu o cachimbo na boca e começou à procura de fósforos no bolso das calças.
- Onde é que diz isso? - retorquiu. - Não vejo qualquer letreiro.
- Digo eu que isto não é sala de fumo. Na porta está escrito «Enfermaria militar».
- É assim que as coisas úteis recebem algemas - replicou Chukov, que tinha encontrado os fósforos, mas sem riscar nenhum. Limitou-se a brincar com a caixa. Os olhos, tão diabolicamente sonhadores e capazes de destroçar o coração de uma mulher, fixaram-se implorativamente em Vuginskaia.
- Tenho de lhe contar uma história. Valia loanovna. Há três anos, feri-me numa coxa devido a uma derrocada de madeira, felizmente a uma distância suficiente das partes que eu, e sobretudo as mulheres, particularmente apreciam e admiram no meu corpo...
- Tenho fome - interrompeu-o bruscamente. - Vou à carruagem-restaurante.
No entanto, manteve-se sentada, limitando-se a olhar pela janela para a paisagem inundada pelo dilúvio.
- Prometo-lhe que vamos comer uma kascha juntos, Valia loanovna. Por conseguinte: feri-me na coxa. Nada de muito grave. Fiquei apenas três semanas numa clínica, confiado aos cuidados de duas enfermeiras que (só mais tarde vim a descobrir) deitavam à sorte diante da porta do quarto qual delas me iria despir. Serviam-se de bolinhas de algodão: «Mão esquerda, mão direita... onde está?» A que vencia tinha sempre umas mãos maravilhosamente quentes...
- Quando vamos comer? - interrompeu-o Valia irritada.
- Já em seguida. Só lhe queria contar isto: nessa enfermaria também havia a proibição de fumar, mas todos os quartos cheiravam a machorka. Os médicos, o médico-chefe, as enfermeiras, todos fumavam, mas ninguém falava no assunto. Havia quem fumasse na casa de banho ou debaixo dos lençóis. Juntamente com o cheiro a urina havia um visível cheiro adocicado.
- Acabou? - inquiriu-lhe num tom mais acalorado.
Acabou finalmente?
- De contar este episódio, sim.
- Tem ainda mais episódios ocorridos num acampamento?
- Só mais um. Apetece-me uma cachimbada.
- Aqui, não - retorquiu, batendo com os pés no chão. Na medida em que, preparada para a longa viagem, pusera novamente as bonitas e maleáveis botas altas, umas calças azuis que faziam recordar jeans e por cima (pelo menos agora) uma blusa verde, estava muito sedutora. O bater de pés condizia com o olhar, que lançava chispas douradas. - vá lá para fora, para o corredor.
- Sou uma pessoa cómica, Valia loanovna - declarou Chukov, ao mesmo tempo que continuava a brincar com a caixa de fósforos. - Não sou um fumador inveterado. As minhas paixões não se libertam através do fumo, permanecem bem firmes na minha mão. Contudo, sempre que fumo tenho um bom motivo para o fazer. Um bom almoço, uma notícia agradável, uma informação bem sucedida, a descontracção junto de uma mulher bonita e nua ou (tal como agora) um espectáculo como o que me oferece a sua irritação. Será a minha melhor cachimbada... Quero dizer, pois, que se pode fumar.
Fitou-o quase sem acreditar num atrevimento daquela ordem e em seguida levantou-se de um salto e começou a bater, de punhos cerrados, no vidro da carruagem.
- Detesto-o - gritou ofegando, contra a sua vontade, mas sem conseguir controlar a respiração. - Acredita realmente que você e o seu comportamento actuam numa mulher como se fosse champagne? Não passa de água insípida. Choca. Caldo. Você mete-me nojo.
Chukov concordou com vários acenos de cabeça, tirou do bolso um maço de Papyrossi que tinha comprado em lakutsk e atirou-o sem uma palavra a Vuginskaia. Agarrou-o num movimento reflexo, mas logo o atirou para o assento.
- Não me consegue levar - replicou aos gritos.
- Levá-la a fumar um cigarro não me perturba um mínimo que seja. Nunca levo mulheres bonitas a cometerem banalidades. Convido-a meramente a acompanhar-me. Cometer em conjunto o que é proibido constitui o picante no quotidiano sem interesse.
- Seu titã esperto! Génio de palavras. Aqui, nesta carruagem quente e ao abrigo da chuva, pode ser como Sansão que arranca as colunas do solo... mas depois, lá fora, na chuva, no rio, as suas palavras de nada valem. - Nesse aspecto, confesso, também tenho medo.
-Ah!
- Medo por si, Valia loahovna. Se realmente formos assim tão loucos e quisermos atravessar o rio, gostava de a afivelar às minhas costas, tal como se transportam as crianças na África e na Ásia.
Calou-se e os pontos dourados das pupilas brilhavam novamente. Seguidamente, nos cantos da boca desenhou-se um esboço de sorriso que iluminou o rosto fino como um sol interior. Chukov fitou-a desconcertado. Sem despregar o olhar do dele, agarrou nos Papyrossi, tirou um cigarro do maço e colocou-o nos lábios pintados de vermelho.
- Tem lume, Vassia Grigorevitch?
Chukov riscou um fósforo, ela acendeu o cigarro rapidamente e ainda teve tempo bastante para acender o cachimbo com o mesmo fósforo. O tabaco dele tinha um cheiro acre semelhante ao de couro húmido. Ela torceu o nariz pequeno e afilado. Farejava como um esquilo.
- Ganha assim tão pouco? - perguntou em seguida.
- Sou um simples engenheiro. Os médicos podem, talvez, dar-se ao luxo de fumar tabaco turco ou da Grusínia. Eu não. Quer que apague o cachimbo?
- Não. Por favor, não. Habituo-me.
Voltou a sentar-se à janela a olhar para a chuva torrencial a fumar lentamente o Papyrossi. Chukov aproximou-se, as ancas tocando-lhe nos ombros, e teve a sensação de que estremecia. Diante do comboio, na direcção do rio, corriam agora muitas figuras silenciosas através da chuva. Pedaços da ponte destruída eram rapidamente levados pela torrente... a catástrofe dava a sensação de completa.
- Todos os Planos dos Cinco ou dos Dez Anos para nada servem - observou Chukov puxando à lógica. - A natureza da Rússia não se submete a regulamentos. Pode tentar-se manejá-la, mas no fim acaba sempre por fazer o que quer. A Rússia é como uma mulher. Pode-se pussuí-la, mas não nos pertence.
- Nunca amou verdadeiramente, Vassia Grigorevitch. Para si, a mulher não passa de um corpo. Apenas matéria. Lamento-o.
- Senti uma vez o que é o amor, para lá do divino, se é que posso utilizar uma expressão tão fora de moda. O amor que nos transporta a uma cama de estrelas, para lá de tudo o que é terreno, embora os corpos se entreguem a qualquer coisa de extraordinariamente criativo. Contudo, não é assim que se sente... morre-se de uma certa maneira e apenas se continua a viver para o amor, numa dimensão extraterrena, para além dos corpos suados, colados, quentes, trémulos, que se movimentam como duas prensas enormes e gritam impulsionados pela paixão que deles se desprende. Tudo a que chamamos amor, felicidade, realização, libertação preenche-se num outro espaço que, no momento da entrega absoluta, emerge numa profunda ânsia de eternidade. Numa vida real morremos milhares de vezes, para voltarmos a renascer outros milhares...
A mulher mordeu o filtro do Papyrossi e encostou os ombros às ancas de Chukov.
- É capaz de amar com uma tal intensidade, Vassia Grigorevitch? Com os diabos! Sinto ciúmes dessa mulher. Era capaz de a matar. Ali no rio, tal como se afoga um gato acabado de nascer. Quem era? Vai dizer-me?
- Chama-se Dunia Andreievna Koroliov.
- É atraente?
- Não. Bonita.
- Compreendo - retorquiu, ao mesmo tempo que esmagava o cigarro no cinzeiro colocado por baixo da janela da carruagem. - Quem é amada por um homem numa cama de estrelas tem de ser bonita como uma estrela. Onde vive?
- Não sei.
- Está tudo acabado?
- O nosso serviço separou-nos. Apenas, porém, geografícamente. Este amor gotejou do próprio Sol e uma coisa assim não desaparece.
- E acredita, de facto, que essa maravilhosa Dunia lhe vai permanecer fiel? Quanto tempo ficará em Ottok ou Verkokrassnoi? Dois anos? Três anos? Quanto tempo durará a sua missão?
- Três anos... - mentiu Chukov. - O que significam três anos para um russo?
- Para uma mulher que se deitou com ele numa cama de estrelas, três dia de solidão já se tornam insuportáveis. Essa mulher está em brasa, cada vez mais, e cada minuto a queima. Não me disse que o vosso amor gotejou do Sol? Se desprender vida, essa mulher estará a arder por dentro. Não entende nada de mulheres, Chukov! - pôs-se em pé de um salto, afastou Chukov da janela e encostou a cara quente ao vidro frio. O cabelo, de um negro metálico, formava uma moldura a enquadrar-lhe o rosto. - Dunia engana-o! - gritou sem se tirar da mesma posição e de certo modo por entre a chuva que entrava. - Engana-o! Todos os dias. Todas as noites. Fá-lo com todos os que lhe aparecem. Confia que ela passa o tempo a pensar em si? Que da garganta lhe sai o grito.
«Oh, Vassia, Vassia!» enquanto alguém está em cima dela? Sente-se mais calmo? Serve para lhe aumentar o orgulho? Minha Dunia, minha estrela, minha gota de sol... cada orgasmo é morrer um pouco e cada poro do seu corpo me pertence... mas nela entram Fiodor, Davidov, Stanislav, Vassili, Afanasi e Valeri! Porque não morre de dor. Vassia Grigorevitch? Não suporto isto!
- Ela é fiel! - insistiu Chukov sombriamente. - Sei que me é fiel. Neste amor apenas existe a fidelidade ou, como acabou de dizer, apenas a morte.
- Mataria Dunia se descobrisse que um outro homem lhe beija o corpo?
- Não sei, Valia loanovna. Talvez não. Contudo, vingar-me-ia noutras mulheres. Destruí-las-ia com o meu amor. Dava-lhes a conhecer o céu e depois abria a porta, empurrando-as para o nada.
- Era bem capaz de o fazer - acedeu ela quase num- fio de voz. - É precisamente o tipo de homem com tal possibilidade. Devia matá-lo, Vassia Grigorevitch. Permita que me refugie na minha função de médica. Você é uma febre que se tem de eliminar.
Encolheu os ombros como a querer dar a entender que todas o sabiam e não procuravam defender-se.
No princípio do comboio, na caldeira, formava-se agora uma densa nuvem de vapor... estava a deixar-se escorrer a água do cilindro a vapor para tornar a máquina mais leve. Era um disparate que a nada conduzia, mas vinha dar um tom dramático à cena. Na parte traseira do comboio, onde se encontravam as carruagens dos homens, os soldados de vigia marchavam disciplinadamente apesar da chuva torrencial. Não traziam capas de plástico, como os operários da construção civil, e tanto os uniformes como os sobretudos logo se ensoparam e minutos depois pesavam como chumbo. Apesar disso, marchavam como se estivessem na parada, levando na vanguarda um tenente. Um pelotão digno de pena, composto por homens molhados até aos ossos e que cumpriam ordens naquele inferno de chuva! Tudo continua! Não capitulamos perante a chuva, a lama e um rio que saiu das margens! Como disse Lenine: «Só a morte nos arranca ao cumprimento do dever!»
- Na minha opinião, Valia loanovna - prosseguiu Chukov com a cara encostada à janela fria e húmida -, você é uma daquelas mulheres cuja capacidade de amar pode destruir mundos e dar origem a novas constelações...
- Não sei, Vassia Grigorevitch - respondeu num tom de voz quase inaudível que nada fazia recordar o tom vitorioso e dominador, mas apenas vibrações arrancadas ao mais profundo do enigma da mulher.
- Posso dizer-lhe que nunca amou, Valia loanovna?
- Talvez - acedeu, colocando-se ao seu lado. Ficaram de rostos colados junto ao caixilho frio. Os soldados de vigia continuavam a marchar através da chuva fustigante, assemelhando-se a marionetas, com os fios movimentados por um teatreiro enlouquecido. No entanto, tudo obedecia a um sistema: avançavam batendo os pés na direcção da carruagem dos presos, visivelmente para irem utilizar aqueles homens como os primeiros trabalhadores destinados a vencer a fúria do rio.
- Existiram homens, como é óbvio - retorquiu Vuginskaia naquele tom de voz estranhamente suave. - Estudantes. Colegas. Uma vez até uma loucura. Um artista de circo. Um trapezista. Deu uma queda, operei-o e duas semanas depois fui com ele para a cama. Uma única vez. Cheirava a arena. Sabe? Aquele cheiro muito particular que fascina toda a gente, mas que, quando se está na cama, logo se torna insuportável. Pelo menos, no que me diz respeito. Sou uma esteta. Um corpo, mesmo com o suor do amor, deve cheirar a mel. - Soltou repentinamente uma gargalhada e bateu com os dois punhos no peito de Chukov. - Isto é de doidos! De doidos! Estamos para aqui no meio da Sibéria, vencidos pela natureza, e contamos coisas um ao outro do mais fundo da alma. Que significa isto, Vassia Grigorevitch?
- Talvez nos faça falta, Valia - respondeu, agarrando-lhe fortemente os pequenos punhos. - Nunca teve oportunidade de falar do assunto.
- Nunca, nunca. E então? Vai tirar-me a roupa e possuir-me em cima do banco?
- Não.
- Por causa da Dunia? - retorquiu, consultando o relógio de pulso. - São agora oito e trinta e nove minutos. Neste momento a Dunia está a sair da cama de algum homem ou a tomar duche e a tirar o cheiro. Acredita, realmente, que a Dunia está a pensar em si?
- A esta hora ocupa-se com as torneiras da leitaria
- retorquiu num tom mais acalorado.
- Ah! Parabéns! É então uma rapariga de bar?
- Peço-lhe que não continue a falar neste assunto. Por favor. Não lhe posso dizer mais nada. A Dunia é um sorriso dos lábios de Deus.
- Que frase para um comunista! Você é um desses que ainda acreditam nesse Cristo?
- Você nunca acreditou, certo?
- Nunca. Os meus antepassados tinham os seus deuses tártaros, depois o Islão veio ter connosco e mais tarde a cruz dos cristãos. Tudo isso acompanhado de violência, sangue, mortos, perseguições... infiltraram-nos no cérebro a consciência de Deus. Até que se deu a grande libertação...
- A revolução socialista. É esse o seu problema - interrompeu-a Chukov, batendo com os nós dos dedos no vidro. Veja o que se está a passar: os nossos presos entram em acção.
Do fundo do comboio serpenteava uma massa escura e aglomerada ao longo da chuva impiedosa. Os soldados assemelhavam-se a um enxame, seguravam as metralhadoras prontas a disparar - como se alguém pudesse ter a coragem de fugir! -, gritavam ordens, soltavam os gritos estereotipados de «Davai! Davai!» e empurravam os presos ao longo do comboio, até junto do rio. Os operários da construção, embrulhados nas coloridas capas de oleado amarelas, misturavam-se no meio deles, o que não fazia parte das ordens. Mas quem era capaz de manter a ordem aqui? Um outro grupo arrastava pesadas traves de ferro para fora do vagão de mercadorias. Num carreiro aberto por trinta homens puxados a cordas - Chukov contou-os - enterrava-se um pesado suporte de aço, reforçado em T, na lama, que chegava até aos joelhos.
Bateram delicadamente à porta da carruagem. O maquinista apareceu novamente, ensopado, formando uma pequena poça de água aos pés, mas rindo de contentamento. Só o Diabo sabia porque tinha simpatizado com Chukov e Vuginskaia, mas aparecia sempre para dar informações.
- Um plano genial! - exclamou orgulhosamente. Estamos a construir, como nos velhos tempos, um cabo de aço sobre o Tiugania. Aqui um suporte de aço encavado na terra, do lado de lá um outro, a seguir o cabo de aço e presos a ele os barcos. Com mil diabos! O rio não nos vencerá! Atravessamo-lo e a partir de Novo Sosnovka podemos, provavelmente, continuar o caminho em camiões até Ottok. Estamos agora a provar em que consiste a iniciativa.
- Vou lá fora - declarou Chukov. - Considero um empreendimento perigoso. Custará a vida de pessoas.
- Patifes! Sabotadores! Traidores à pátria! Quem se preocupa com isso? Quem tem de os alimentar? Nós - retorquiu o maquinista com um riso crítico. - Fique aí sem se molhar, camarada, até tudo estar resolvido.
- Vou ajudar! - insistiu Chukov, vestindo o casaco, ao mesmo tempo que a companheira atava silenciosamente um lenço na cabeça, escondendo o cabelo negro e brilhante. Você não vai! - ordenou Chukov num tom que não admitia réplica.
- Não sou adulta? Se vai sair, vou consigo. Talvez seja preciso um médico.
- Certo! Só que a chuva a deitará por terra.
- Nesse caso, carregue-me às costas como as mães africanas fazem aos filhos -gritou-lhe, ao mesmo tempo que aplicava novamente o tom de fanfarra, o que estranhamente o acalmou. A ternura demonstrada até esse momento começava a influenciá-lo. - Foi você que se ofereceu para o fazer, Vassia Grigorevitch.
- Muito bem! - acedeu. Afastou o surpreendido maquinista de junto da porta, percorreu o pequeno corredor e escancarou a porta da carruagem. A chuva, que agora nenhum vidro de janela ou parede detinha, açoitou-o, como se o universo, transformado em água, se abatesse sobre a Terra. Dois operários que tinham sido destacados pelo destino para esse acontecimento passaram correndo pela porta escancarada e surpreenderam-se quando subitamente as capas de oleado amarelas lhes foram arrancadas dos corpos. Chukov atirou uma delas a Valia loanovna, ao mesmo tempo que se cobria com a outra. Os operários roubados praguejaram, insultaram Chukov, precipitaram-se para a porta, mas o maquinista já lá estava, pôs-se atrás de Chukov e gritou com voz de trovão: Calma, camaradas! Sigam! Sigam! Eles são da Central! Vão buscar outras capas! Calem o bico! Desapareçam.
Os operários que, entretanto, já estavam ensopados até aos ossos, deitaram um olhar mau a Chukov. Lia-se-lhes nos olhos: «Esta gente da Central fica sempre melhor servida! Apesar de se viver numa democracia comunista!» Obedeceram, porém, e afastaram-se a correr para irem buscar sacos que estavam a ser precisamente descarregados do vagão de mercadorias número dois. Ainda não se sabia se pretendiam enchê-los de terra e construir um dique numa parte do rio.
Chukov saltou para a lama que tinha sido uma linha férrea e ergueu Valia loanovna em peso, tirando-a da carruagem. Era leve como uma pena; calculou que pesasse uns cinquenta quilos. Quando deslizou ao longo do corpo dele até ao chão, o rosto roçou no dele. Foi como o toque de dois pólos magnéticos.
Enrolaram-se nas capas de oleado amarelas e foram percorrendo o caminho, junto aos presidiários, até ao rio.
Só ali tiveram consciência da verdadeira proporção da catástrofe. A ponte estava completamente destruída, apenas um pilar de cimento se conservava erguido nas águas selvagens e tumultuosas, de encontro ao qual as ondas se quebravam. Uma pessoa qualquer que aqui dispunha de poder surgiu junto de Chukov e da companheira, pronunciou estupidamente o seu nome, que ninguém percebeu no meio do barulho, e em seguida gritou:
- O rio subiu seis metros acima do normal! Quem iria imaginar uma coisa destas? É um absurdo. Aqui acontece cada coisa, camaradas! No Verão pode jogar-se ao berlinde no leito do rio, tão seco está. Oh, que merda!
Contudo, não foram os seis metros acima do normal que tiraram a palavra a Chukov, tão-pouco a ponte destruída, a terra inundada, as casas submersas pela água, o comboio atolhado na lama... não! Foi algo muito diferente. Olhou incrédulo para a outra margem do rio, onde numa grande clareira de taiga, entre os rochedos, se adivinhavam os contornos de uma aldeia.
Ali se encontravam, metidos até ao peito nas águas tumultuosas, atados com cordas à margem e igualmente ligados uns aos outros, homens formando uma longa cadeia, homens que arrastavam algo, espetavam estacas de ferro e empurravam barcos largos e chatos através da lama até junto do Tiugania. Nada mais nada menos do que este espectáculo do outro lado. Ali, os presos ajudados meramente pela força das mãos, enterravam o suporte de aço reforçado em T, incitados pelos gritos dos soldados da guarda.
- Com o acampamento de Sosnovska temos agora cerca de mil e quatrocentos homens em acção - explicou o desconhecido que tinha poderes e cujo nome ninguém compreendia. - Se tudo correr bem, daqui a duas horas a primeira embarcação já está a vogar nas águas.
- Mas isto é uma loucura! - observou Chukov num fio de voz. - A imagem absoluta da loucura. Os barcos viram-se imediatamente, apesar dos cabos de aço. Aliás, como pretendem que os cabos do outro lado cheguem aqui? Têm barcos com arpão?
Conhecia do Alasca aquele sistema. Ali, sempre que não havia hipótese de pontões, atiravam-se cabos de aço de uma para outra margem, e assim serviam para a passagem. Contudo, para tal existiam canhões especiais e âncoras especialmente inventadas para o efeito. Aqui, porém, apenas se contava com homens cansados, semimortos de fome, magros, desesperados, «almas mortas», como os Russos chamavam aos presos condenados a trabalhos forçados na Sibéria. Nada mais tinham do que as mãos, as parcas forças e o rugir incitador dos guardas. «Davai! Davai! Trabalhem, seus cães. Ganhem o que comem. Até agora têm sido inúteis, mas a pátria precisa finalmente de vocês.»
- Traremos os cabos através do rio - explicou o mesmo homem. - Com um barco a motor.
- Com o quê? - repetiu Chukov, limpando a água que lhe escorria pelo rosto. Valia loanovna, que estava a seu lado, não passava de uma mancha amarela que se aninhava na capa de oleado.
- Tem alguma solução melhor, camarada?
- Esperar. A nossa grande qualidade.
- Nem na Sibéria, nem aqui, nem agora. Continuará a chover e depois nada mais se poderá conseguir. O rio está...
- Seis metros acima do normal, eu sei. E quando estiver a dez?
- Então, o rio virá lamber-me o cu! - gritou o homem por entre a chuva.
- É o que acontecerá se se sentar num desses barcos.
- Gostava de ter um espírito de humor como o seu. Tem qualquer sugestão razoável, camarada engenheiro?
- Devia-se utilizar o pilar de cimento que ainda se mantém de pé e chegar até lá com cabos metálicos. Como posto intermédio.
- E o turbilhão à volta dele? Não está a ver esse maldito turbilhão?
- Tem razão.
- Cada barco afundar-se-á de encontro ao pilar de cimento. Palavra que sim.
- Acredito. Contudo, por este processo afogam-se centenas de pessoas.
- Talvez não... depende do sítio - retorquiu aquele homem com um gesto da mão. - Resta, por conseguinte, o barco a motor.
- E qual a potência do motor?
- Um fora-de-borda. Quarenta cavalos.
Chukov apertou mais a capa de encontro ao corpo. A chuva entrava por todos os sítios.
- Já alguma vez tentou chegar à Lua com uma bicicleta, irmãozinho? - retorquiu em seguida.
O homem deitou um olhar mau na direcção de Chukov e prosseguiu caminho.
- Diz-se cada estupidez - resmungou, afastando-se. Faça você melhor, camarada...
Não se podia fazer o que quer que fosse de melhor, pois a situação piorava de instante a instante. Chukov nunca imaginara que do céu pudesse cair tanta água. Também durante a preparação especial que recebera no Alasca ninguém lhe dissera que uma coisa daquelas era possível. Tinham passado por tudo ao longo do treino: tempestades de neve, vento gelado, vida em grutas ou - no extremo oposto calor ardente, falta de água, um solo que estalava, tal a seca. Durante o Inverno tinham comido carne de martá crua e no Verão cobras e gafanhotos... Só nunca ninguém tinha pensado em chuvas torrenciais. Claro que tinham posto a hipótese das chuvas normais da Primavera e do Outono, pedaços de gelo gigantescos vogando nas correntes siberianas ou estepes geladas dias a fio, amarelas de tão queimadas pelo frio e açoitadas por ventos de areia... mas algo como a chuva que aqui desabava era um absurdo meteorológico e, por conseguinte, não fazia parte do curso.
Passadas duas horas e meia, a estaca dupla em T estava realmente enterrada na margem deste lado, a dois metros de profundidade. Escavada, enterrada, enfiada, apenas e só pelas mãos dos homens. Chukov sacudiu a cabeça... era inacreditável. Se se contasse uma história daquelas no Ocidente, todos levariam o dedo à testa. As lerias dos agentes!
Vuginskaia já esteve em acção e trabalhava debaixo de quatro lonas que tinham esticado entre estacas de madeira. Até agora havia trinta e quatro feridos, na sua maioria casos de contusões e escoriações, mas igualmente três braços partidos. Para além disso, três ataques de coração e um homem com os nervos em frangalhos e que não parava de gritar: «Escavem a terra. Somos toupeiras. Somos toupeiras!» Aplicou iodo nas feridas, fez talas para os braços partidos, ligou, deu gotas a beber aos cardíacos e uma injecção ao homem fora de si, depois do que ele tombou como uma árvore abatida. Apareceu-lhe espuma nos lábios, mas ninguém se preocupou com isso.
- Podia ajudar-me - observou quando Chukov rastejou por debaixo das lonas estendidas. Valia loanovna ajoelhava-se na lama, que era muito simplesmente a única cama que existia para os feridos. - Tem algum jeito para medicina?
- Acho que sim - respondeu Chukov, despindo o casaco a um dos presos. Por baixo surgiu um peito magro com a pele esfarrapada a toda a largura do lado direito. Era um dos homens que fora atingido pelo poste reforçado em T, quando este começara a oscilar. Tinha acontecido há uma hora. Desde essa altura que o homem se encontrava para ali deitado na lama esperando, pacientemente, o seu destino. - Já uma vez espremi uma borbulha...
- Idiota! - interrompeu-o, ao mesmo tempo que as pupilas deitavam chispas douradas. - Tome gaze e tintura de iodo. Desinfecte o peito do homem.
- E depois?
- O sanatório mais próximo para convalescentes fica duas mil verstas a sul.
- Isso acalma-me extraordinariamente - comentou Chukov, pegando na gaze, agitando o frasco de iodo castanho e inclinando-se sobre o ferido. - Vai arder-te um bocado, irmãozinho, mas pelo menos não te arriscas a uma septicemia - disse, ao mesmo tempo que fitava interrogativamente o homem enterrado na lama. - Sabes o que é uma septicemia?
- Faça o que tem a fazer, meu amigo - retorquiu o ferido estendendo-se na lama, como se estivesse deitado numa bela e limpa cama de enfermaria. - Já escrevi sobre o tema. Sou escritor.
- Uma bela profissão, mas não na Sibéria.
- Uma profissão perigosa... na Rússia.
- Que idade tem?
- Cinquenta.
- Nesse caso, deve ter escrito várias coisas desagradáveis.
- Escrevi apenas que a Rússia se está a arruinar com a sua administração interna.
- Se uma coisa dessas merece castigo, cada um dos estados deste mundo deveria desaparecer do mapa durante cinquenta anos! Console-se, irmãozinho. Quem critica a administração estatal, ou é imbecil ou louco. O Estado não conhece outro vocabulário. Cerre bem os dentes e belisque o cu... cá vai o iodo!
Chukov colocou a gaze com iodo no peito ferido. O homem teve um ligeiro estremecimento, rangeu os dentes, fechou os olhos, as lágrimas correram-lhe pelo rosto emagrecido, mas não soltou um som. Decorrido um grande bocado, disse com uma voz entrecortada e enfraquecida pela dor:
- Obrigado, amigo. Faz bem. Faz mesmo muito bem.
- O iodo devia ser agraciado com o Prémio Nobel.
- Também isto! Quero dizer -continuou o escritor tentando esboçar um sorriso feito esgar -, o facto de se poder falar consigo. Não sabe o valor que existe em se poder falar com pessoas. Com pessoas! Quantas pessoas existem ainda em três mil e quinhentos milhões de pessoas? Uma delas é você. Obrigado.
Chukov levantou-se e passou ao ferido seguinte. A médica seguiu-o com um olhar desconfiado. Chukov sentiu-se mesquinho, o que por outras palavras significava culpabilidade ou consciência. «Ele chama-me pessoa», pensou, «e aqui estou, para desvendar os segredos da sua pátria. Agradece ao homem que lhe prejudica a pátria. Esqueçamos todo esse palavreado imbecil de que trabalhamos para a paz do mundo, que o conhecimento da força do inimigo constitui uma protecção para os mais fracos. Somos profissionais impassíveis ao serviço da destruição, mais nada. Fornecemos os elementos e os outros intervêm com armas. E agradece-me. Como sendo uma das poucas pessoas Tudo isto mete nojo, meu pobre e magro irmãozinho de peito ferido...»
A médica aproximou-se dele quando se ajoelhava junto de outro ferido que tinha o braço dobrado em ângulo, para trás. Uma fractura como vinha na enciclopédia. O ferido esboçou um sorriso na direcção de Chukov, como se não sentisse qualquer dor nem se preocupasse que o braço viesse a recuperar normalmente. Tinha escutado o diálogo com o escritor e via agora um amigo em Chukov.
A amizade representa quatro quintos da vida num campo de concentração. O restante quinto traduz-se em trabalho, comer, beber, dormir, a satisfação das necessidades físicas e, durante as longas noites silenciosas, o pensamento na casa ou numa mulher. Contudo, nada disto vale o que quer que seja comparativamente a uma amizade. A união chama-se sobrevivência na Sibéria.
- Quanto tempo? - perguntou o ferido num tom quase jovial.
- O quê? - retorquiu Chukov.
- Incapacidade de trabalho.
- É uma coisa que compete ao médico. Não sou médico. Estou apenas a ajudar a camarada. É a nova médica do acampamento de Ottok.
- Que pena! Uma avezinha tão bela com garras de aço. Olhe para o meu braço... são pelo menos seis semanas de gesso e depois quatro semanas de trabalho leve. Dez semanas sem ir para a pedreira. É como se voltasse a nascer.
- Fala demasiado, Vassia Grigorevitch - dirigiu-se Vuginskaia a Chukov, enquanto agarrava bruscamente no braço virado do ferido e o colocava no lugar. O homem gritou, revirou os olhos e mostrou uma expressão como se lhe tivessem metido previamente ar para em seguida o picarem com uma agulha. - Não se cura com palavras, mas com actos!
- O que acabou de fazer foi uma brutalidade - acusou Chukov rispidamente. - Nunca o volte a repetir, Valia loanovna.
- O braço está na posição certa. O que quer mais?
- ripostou, fulminando-o com umas pupilas de cintilações douradas. O rostozinho tártaro assemelhava-se a uma máscara, mas nas maçãs salientes surgiu um vermelho-vivo, como se estivesse a arder por dentro. «Santo Deus! Que mulher», foi o pensamento que acorreu a Chukov. «Pode-se amá-la e a seguir destruí-la. Outra coisa não é possível. Ou então fugir-lhe com um medo real, depois de se assistir a um episódio deste tipo, e é precisamente o que devo fazer! Uma vez nos braços desta mulher, uma pessoa fica reduzida à forma mais elementar. Desintegra-se!»
- E o que pretende fazer se voltar a repetir? - inquiriu ela num tom cheio de agressividade.
- Talvez a desanque.
- Seria a sua morte.
- Indiferente para mim. Contudo, iria ser derrotada pela primeira vez na vida.
Puseram o braço do ferido em talas, ataram-no com ligaduras de gaze e não voltaram a trocar palavra entre si.
- O gesso será posto mais tarde, na enfermaria do acampamento - informou Vuginskaia, dirigindo-se ao preso. Fizeste mal os cálculos, patife. É o braço esquerdo. Podes continuar a partir a pedra com o direito. Se for preciso, parto-te os dois.
- Merda! - O preso fitou Chukov de relance, enquanto ela se foi acocorar por baixo da lona baixa e esticada na lama, junto a um homem que respirava com dificuldade. Tinha o rosto azulado e inchado. - Porque é que as mulheres se transformam em seres tão nojentos mal vêm para os acampamentos? Um médico de enfermaria é aceitável. Com ele pode lidar-se... mas uma médica?! Apto para o trabalho. Apto para o trabalho. Apto para o trabalho... mesmo quando nem com uma palha podemos!
- E aí que reside a resposta. Uma mulher entre milhares de homens na solidão da Sibéria. A crueldade é o escape que lhe resta.
- Sou professor de electrotecnia - prosseguiu o homem com a fractura de braço. - Dez anos por derrotismo. Apelidei de idiotice o Plano dos Cinco Anos. Uma trapalhada de papéis e de projectos sem fundamento técnico. Sei o que está a pensar. Os nossos astronautas. São cavalos de parada que representarão o mundo num picadeiro gigantesco. Milhares de cavalariças com rocins miseráveis, mas ninguém vê. A Rússia vive um imenso advento. Entramos numa corrida técnica e já nos grupos cimeiros, mas os outros têm sapatos de corrida e nós ainda usamos botas cardadas.
- Venha cá, Vassia Grigorevitch - chamou a companheira, do outro extremo da enfermaria improvisada. - Aqui vai ter hipótese de ver uma perna esmagada que tem de ser amputada.
Chukov avançou dobrado até junto de Vuginskaia e acocorou-se ao seu lado. O ferido tinha perdido os sentidos e a perna estava esmagada acima do joelho. As esquírolas atravessaram a rede de músculos... que não passava de um bocado de carne lardeada.
- Está disposta a fazer uma amputação aquil - retorquiu Chukov desconcertado.
- Não. No acampamento, como é óbvio.
- O homem nunca conseguirá atravessar o rio com a perna nesse estado.
- Melhor para ele, então - disse, cobrindo a perna esmagada e erguendo-se. Apesar da capa de oleado, estava completamente encharcada, a blusa verde colava-se-lhe ao tronco e Chukov apercebeu-se de que não trazia soutien por baixo. O tecido molhado fazia ressaltar os seios pronunciados, aureolados pelos pequenos bicos redondos e duros. Notou-lhe o olhar e torceu o nariz.
- Tem um olhar penetrante! - observou.
- Desculpe, Valia loanovna - disse, voltando costas e abandonando a enfermaria improvisada.
Lá fora, colocou novamente a capa de oleado amarelo por cima da cabeça e correu até ao rio, que continuava a aumentar. Centenas de presos esforçavam-se por encher sacos com terra molhada e construir um miserável dique em redor do local onde estava enterrada a estaca reforçada em T. Na outra margem do rio, onde aparentemente todo o acampamento de Novo Sosnovka estava em acção, pois também formigava de pessoas, tinham-se amarrado três cabos de metal a suportes e árvores de tronco grosso e colocava-se na água, neste momento, o barco com o motor fora-de-borda. O homem que ali dava ordens - Chukov acabou finalmente por saber o seu nome, chamava-se Afanasi Korneivitch Pribilov - surgiu novamente ao seu lado, ofegando como um hipopótamo.
- Agora vai chegar o cabo, camarada! E depois forma-se o nosso batelão. É coisa certa. Como se este maldito rio tivesse força para nos esmagar!
- Quantas baixas há? - quis saber Chukov.
A comunicação entre os dois walkie-talkies estabelecia-se em boas condições”. Pribilov esboçou um gesto largo.
- Setenta e duas. Afogaram-se nove. Levados pelo turbilhão. Algumas vezes tenho a impressão de que os farrapos humanos do acampamento se prejudicam a si mesmos, procuram até a oportunidade de se matarem.
- Ficam com o problema resolvido.
- Ah! Ah! - gargalhou Pribilov, ao mesmo tempo que dava uma palmada no ombro de Chukov. - Vejo que é uma pessoa espirituosa. Simpatizo consigo. Pensa como eu: tudo na vida é uma merda... a solução consiste em lhe dar o tempero certo.
- Mas, sendo assim, também temos de a comer, o que não me agrada - retorquiu Chukov aproximando-se a tão curta distância do rio em fúria que as primeiras ondas tumultuosas lhe molharam as pontas dos pés. Do outro lado, empurravam o barco a motor para o Tiugania, seguro por cabos e cerca de trinta homens. Era impossível contá-los ao certo. De súbito, a médica surgiu novamente ao lado de Chukov, um escaravelho amarelo que se lhe encostou, levantou a capa dele e se abrigou sob a protecção do seu oleado. A proximidade do corpo voltou a irritá-lo, imediatamente. Eram quase dois num só; sentiu que estava gelada e rodeou-a com o braço.
- Todos os feridos estão tratados - informou. - Satisfeito, meu grande urso?
Olhou-a pelo espaço de momentos: para os bicos dos peitos ressaltando através do tecido molhado, o rosto de maçãs salientes inundado pela chuva impiedosa, os olhos cor de amêndoa, os cabelos escuros e compridos colados à cabeça devido à humidade e que nem mesmo assim tinham perdido o brilho metálico. Aço preto.
- É curioso! - observou.
- O que é curioso?
- A Dunia também me chamou «grande urso».
- Não sabia. Nunca mais voltarei a tratá-lo assim. Nunca mais. Nunca disse tais palavras. Esqueça-as. Oh, como a odeio, a essa Dunia. Até os nomes me rouba!
- Valia loanovna... Nunca devíamos cometer o erro de sermos mais do que amigos!
- Outra coisa seria terrível para os dois.
- Devia dar-lhe um beijo pela lucidez com que encara as coisas.
- E discute-se tudo isto debaixo de uma capa de oleado, numa terra açoitada por um segundo dilúvio. Somos completamente loucos, Vassia Grigorevitch.
- É maravilhoso ser-se louco desta maneira! Levar uma vida normal representa a antecipação do inferno. A condenação eterna, tal como a vejo, consiste em se estar sentado numa poltrona com as pantufas calçadas e a brincar com as próprias mãos.
O maquinista do comboio veio interrompê-los. Aproximou-se a correr como um gigantesco insecto amarelo, agitando os braços no ar.
- Perdemos o contacto pela rádio com Ottok! Fim de Ottok. No entanto, também não nos podem ajudar. Estão inundados. Imaginem só, camaradas. O próprio campo de aviação militar está inutilizado. A chuva fez com que a pista de aterragem abatesse um metro. Os helicópteros e os aviões estão nos hangares com água até às asas. Que catástrofe! O que escreverão nos jornais...
- Absolutamente nada - interrompeu-o Pribilov insidiosamente. - Para o mundo exterior, nós não existimos. O ponto onde estamos não passa de uma mancha branca em todos os mapas. Desabitado. Taigas. Por conseguinte, Ottok não nos pode ajudar. Muito bem. Continuemos a fazer as coisas à nossa maneira.
Do outro lado tinham conseguido lançar à água o barco a motor com os cabos enrolados seguros fortemente. Quatro homens treparam para a embarcação, instalaram o motor-de-borda e ataram-se por sua vez aos ganchos onde se costumam prender os ramos.
- Recebem uma condecoração se conseguirem chegar até nós? - inquiriu Chukov num tom sarcástico.
- Não - retorquiu Pribilov com uma sonora gargalhada, pois achava Chukov um homem espirituoso e simpático. Era uma coisa que fazia falta a um homem dinâmico e que convivia com os presidiários. - Todos recebem duzentos e cinquenta gramas de carne na sopa.
- Tem muito mais valor do que uma condecoração.
- Não duvide! - concordou Pribilov com uma expressão jovial. - Se uma coisa dessas se viesse a saber, tínhamos trezentos e quarenta e quatro voluntários.
- Então a sop’a em Novo Sosnovka é certamente menos que caldo.
- Uma norma fixa. Muitos nómadas nas taigas vivem pior. Ah! Veja só! O barco fez-se ao largo. Se ao menos agora, o motor se aguentar!
Era uma verdadeira loucura o que acontecia na outra margem, mas por duzentos e cinquenta gramas de carne na sopa de água uma pessoa é capaz de arriscar a vida! Os quatro presos conseguiram, de facto, aguentar-se no caudaloso rio e manobrar o arco, não em linha recta, rumo à margem oposta, o que significaria naufrágio certo, mas avançar a toda a força lutando contra o turbilhão selvagem, rio abaixo. Aproximaram-se, por conseguinte, do outro lado, dançando sobre as ondas e conquistando a motor o Tiugania enlouquecido.
- Estão, de facto, a merecer a ração extra! - comentou sarcasticamente Chukov. - Ainda lhes deviam dar um punhado de feijões, Pribilov.
- Isso é da conta do chefe do acampamento. Sou apenas construtor de pontes.
- E quem é o chefe do acampamento?
- Um major, Vassili Mikailovitch lankov.
- Um homem tratável?
- Ressente-se da Sibéria e da fama de mulheres.
- Um antipático, portanto?
- Esperava outra coisa? Hurra! O barco consegue! Está apenas a trinta metros!
Tratava-se de trinta metros que nem sequer um homem treinado com Chukov transporia como voluntário. No Alasca também tinha havido águas selvagens e, durante a preparação, obrigam-nos a atravessar cataratas com canoas índias. Por duas vezes, o general Orwell deslocara-se especialmente de avião do Colorado, até à margem mais bravia do Colorado River, no Gran Canyon, e dissera: «Então, jovens! Mostrem ao velho rio que são os melhores. Espero-vos no quadrado XVI! Se não chegarem, não vos aguarda nada de bom! Até à vista!...»
E tinham chegado. Destroçados, ensanguentados, por baterem de encontro às rochas, «feitos em tiras» pelo rio, tão mortos de cansaço que Orwell lhes concedera uma semana de férias, o que significava uma menção mais honrosa que a condecoração por valentia.
Contudo, aquilo nada fora comparativamente à luta com este Tiugania. Nessa altura tinham estudado em pormenor o Colorado servindo-se de mapas especiais... aqui, na Sibéria, quatro homens munidos com um ridículo barquinho de motor fora-de-borda atiravam-se de encontro a uma tempestade que desabava sobre a terra, como acontecera no princípio do mundo.
Ao lado de Chukov passaram a toda a pressa os presos saídos do comboio, que corriam ao longo do rio para lançarem novos cabos ao barco mal este estivesse a uma distância permissível. Em redor do poste reforçado em T, os sacos de areia tinham pelo menos detido um pouco a fúria do rio, de qualquer maneira a ponto de - caso a monobra resultasse se poder amarrar o cabo de aço para a travessia. Cerca de quarenta homens mantinham-se de pé firme agarrados ao poste e às cordas que lhes tinham atado em redor da cintura.
Nos últimos e infernais trinta metros, percorridos sob assassinas subcorrentes, dado que aqui nunca existira um leito de rio, ficou-se com a sensação de que os quatro homens iriam malograr. O barco recebeu um embate violento, rodopiou, mas não se afundou. Em seguida, conseguiu novamente impor-se ao rio e chegar próximo da margem.
- Estes homens mereciam a amnistia pelo empreendimento - observou Chukov em voz alta. - O que tem realmente de se fazer para se conseguir a amnistia?
- Ser um bom comunista... como nós - retorquiu Pribilov, voltando a soltar uma gostosa gargalhada. - Vencer rios nada tem a ver com o comunismo, é coisa que merece unicamente duzentos e cinquenta gramas de carne.
Com mil raios! Conseguiram em pleno! Quando o primeiro cabo da margem deste lado alcançou o barco e dois dos quatro homens o ataram à quilha, o rio infernal foi vencido. Com a ajuda de trinta homens puxaram o barco através da corrente, saltaram em seguida lá para dentro, abraçaram os quatro, beijaram-se e felicitaram-nos como se fossem astronautas acabados de aterrar na estepe caucásica. Depois, puxaram o barco para a terra, que nada mais era que lama, e içaram os rolos de cabo. Conseguira-se a ligação com a margem oposta.
- Estou verdadeiramente surpreendido - exclamou Chukov com honestidade, voltando a pensar na sua acção no Alasca e no Colorado. Rodeou com o braço a companheira, que, gelada, se lhe enroscou como um cão molhado e infeliz.
- Confesso que hoje aprendi muito convosco!
A travessia, após se terem esticado os cabos e seguro os barcos nos mesmos, não foi uma insignificância mas uma
operação terrivelmente dura. Mas tudo correu sem dificuldades, se se puser de parte que três barcos se viraram e os passageiros, juntamente com caixas e caixotes, se afundaram, sem salvação, no rio. O mesmo aconteceu a nove soldados da vigia e, embora fosse um raciocínio terrível, Chukov,pensou num certo sentido de justiça do destino. «Também estes soldados têm pais e mães, amigas e noivas e deram-lhes ordem de destacamento
para a Sibéria e vigia dos presos. Quando atiravam sobre as figuras, faziam-no por não saberem mais do que isso, porque lhes tinham dado ordens nesse sentido. São homens que não mais se precisa de tratar como tal. E uma norma simples, todos a entendem, e se se quiser ser um bom soldado há que seguir sem reflectir.»
Até à tarde - choveu sem interrupção, com a mesma intensidade, o céu apresentava-se cinzento e o universo dava a sensação de uma plenitude de água até ao infinito - o comboio estava esvaziado e tudo o que levava foi colocado na margem oposta. Restavam apenas ainda os privilegiados: alguns geólogos, engenheiros, três oficiais, um técnico de foguetões, dois cientistas atómicos, a médica, o maquinista e Chukov.
- Fico com o meu comboio - declarou o maquinista, olhando heroicamente em seu redor. - Há algum capitão que abandone o seu navio enquanto ele ainda balouça? Nenhum! O meu comboio ainda está aqui! Vou sentar-me na locomotiva e esperarei. Continuação de boa viagem, camaradas. Tudo acaba, e o mesmo acontecerá com este dilúvio.
Decidiu-se que se faria a travessia com dois barcos e Vuginskaia exigiu que a metessem no mesmo barco de Chukov. O barco que ia na frente deles transportava os feridos... em que se incluíam também o escritor e o professor de electrotecnia. Tinham-se colocado os feridos como troncos de madeira alinhados e até acamados. O importante era que sobrevivessem, chegassem à outra margem do rio, fossem transportados para a enfermaria do acampamento de Novo Sosnovka, onde teriam algumas semanas de descanso. Estarem deitados numa tarimba, num catre fedorento, cobertos com um lençol urinado e nada mais fazer do que passar pelo sono... pensar... recordar... mergulhar na esperança - isso significa um pedaço de céu.
O último barco seguia com Chukov, Valia loanovna, um arrogante capitão do Exército Vermelho, que considerava a sua capa de oleado amarelo como uma ofensa mas, mesmo assim, a utilizava como protecção, e um geofísico que tinha um medo pavoroso, se deixou cair no barco, estendeu-se no chão e entregou, aparentemente, o destino nas mãos de Deus. Afanasi Korneivitch Pribilov, o homem mais importante que se encontrava nesta margem, despediu-se de todos como se fossem parentes próximos.
- Foi uma maravilha falar com vocês! - gritou. Boa viagem! Boa viagem!
Em seguida, abraçou Chukov e Vuginskaia e deu um impulso ao barco para que deslizasse para o rio, preso pelos cabos.
Chegaram ao outro lado transformados em ratos ensopados. As ondas continuavam a bater de encontro ao barco. Nenhum plano servia, era como se avançassem através de uma queda de água. O facto de terem conseguido atingir a outra margem num barco semicheio de água constituiu um enigma que dava muito que pensar.
Do lado de Novo Sosnovka foram recebidos pelo homem que mais interessava a Chukov nesse momento: o major Vassili Mikailovitch lankov, o comandante do campo de concentração. Os seus milhares de prisioneiros não só tinham amarrados os cabos de aço de maneira a formarem uma ponte provisória como tinham erguido diques de pedras, depois do que os betumaram com terra. Impediram por este processo que as águas do rio, cada vez mais cheio, invadissem o vale rochoso e submergissem a aldeia de Novo Sosnovka. Assemelhando-se a um bando de milhares de castores, arrastavam troncos e pedras sem outros meios de ajuda que não fossem as mãos e os ombros, puxando os cabos atrás de si. Era uma imagem grandiosa, como que saída do Apocalipse. Cadáveres em acção.
O major lankov, de estatura média e com um pouco de barriga, dotado com o tipo de pele crestada que o revelava como um velho siberiano, fez uma correcta saudação militar quando o último barco aportou, seguramente, a terra. Tinham-no informado do outro lado, através do walkie-talkie de quem estava a chegar: um engenheiro que tinha, aparentemente, plenos poderes conferidos pelo Comité Central de Irkutsk e uma médica que se ocupara de doentes e feridos neste universo de chuva, sob lonas de oleado esticadas. No acampamento, dirigido por lankov, os feridos foram transportados em cuidados médicos para a aldeia e deitados em enxergas. O major não considerara necessária a presença de um médico.
- A situação é desesperada - declarou lankov, após se terem procedido às apresentações. - Não existe ligação com Ottok. Toda a região é um verdadeiro pântano. Já experimentámos com camiões, mas enterram-se. Cheguei mesmo a pensar em montar trenós e mandá-los puxar pelos meus homens.
- Homens como se fossem animais de carga... até Ottok?
- retorquiu Chukov, como se não acreditasse nos seus ouvidos.
- Porque não? São elementos importantes para Verkokrassnoi. O que nenhum automóvel consegue, nem tão-pouco um helicóptero com um tempo destes... consegue um homem! Vinte homens à frente de um trenó... também conseguem vencer a lama! Não me olhe como se fosse o demónio em pessoa. Aqui existe uma tradição. Ao longo de centenas de anos, os rebocadores do rio arrastaram barcaças pela corrente da Sibéria. O que teria sido da Rússia sem os rebocadores do Volga e do Don? Podíamos voltar a tentar uma vez mais, camaradas. Temos pessoas que cheguem.
Não fazia sentido dizer em pleno rosto do major lankov que o deviam matar. Deixaram a margem do rio e avançaram, através da aldeia, num camião que se enterrou na lama até chegar ao chão rochoso do barranco de Novo Sosnovka. Ali fazia-se o possível por enfrentar a água, empilhavam-se sacas diante da porta e levava-se o gado para as florestas mais altas, para ali o prender a troncos de árvores. Se o mundo realmente não submergisse debaixo de água, estava seguro. Nenhum rio conseguiria atingir aquela altura.
O acampamento distava apenas quatro verstas. As ruas estavam fortificadas com placas de pedra e no meio grossas estacas de madeira; um subsolo pouco seguro. Quando surgiram os abarracamentos, as redes de arame farpado electrificadas, com as torres de vigia, a elevada paliçada interior, as casas de pedra dos homens da guarda e do comando militar, que - como sempre - se erguiam fora do acampamento em si, as garagens e as oficinas, o armazém, a lavandaria e o pequeno crematório com a estreita chaminé de cimento, Chukov sentiu-se praticamente em casa.
Tudo isto, igualmente, se construíra com uma genuína fidelidade para a preparação dos agentes americanos no Alasca. Havia fotografias que bastassem dos campos de concentração soviéticos, bem como informações exactas. Tinham nessa altura vivido nove semanas num acampamento com condições idênticas às que Chukov vinha encontrar aqui. O que a outros horrorizaria, despertava-lhe interesse. O major lankov deu-se, aparentemente, conta do facto.
- Um belo aquartelamento - observou orgulhosamente. - Posso afirmar, com todo o direito, que é um modelo. - Inclinou-se na direcção do ouvido de Chukov para que a médica não lhe escutasse as palavras. - Só não temos uma coisa que existe em Ottok, o que aumenta as agressões: não há um campo de mulheres nas proximidades! Nem uma só mulher para além das que habitam na aldeia. E com um montante de trezentos homens! Propus um bordel a lakutsk por processos oficiais. Recusado. Quando digo aos meus soldados «Erguer armas!», há sempre mocas que se levantam.
Soltou uma gargalhada, voltou a recostar-se e virou-se para Vuginskaia, que seguia no banco traseiro. A chuva não conseguira lavar-lhe a beleza.
- A nossa enfermaria é igualmente um modelo - gritou através da chuva que caía e do ruído do motor. - Verá com os seus próprios olhos, camarada. O chefe dos médicos é o doutor Fediunin. Procedeu-se a um inquérito estatístico em todos os campos, uma análise geral no Gulag. Novo Sosnovka apresentou o menor número de doentes. Nem chegou aos dois por cento. Não é alguma coisa?
- E a taxa de mortes? - inquiriu Chukov despreocupadamente.
- Uma média normal - respondeu o major lankov com um gesto largo. - Tem de se estabelecer a proporção entre o rendimento e o desgaste, camarada. E neste ponto ocupamos um lugar nos grupos cimeiros!
«Ainda acabo por te matar», pensou Chukov friamente. «Antes de abandonar o teu campo, Vassili Mikailovitch lankov, esmago-te o crânio. Ninguém te encontrará jamais. Serás dado como desaparecido misteriosamente na Sibéria. Também foi uma coisa que aprendemos durante a preparação.»
Viram-se obrigados a permanecer duas semanas no campo.
O plano que metia os trenós e os presos como cães de tiro provou-se impraticável. O próprio major lankov o verificou quando, dois dias mais tarde, o rio chegou à aldeia e fez com que o caminho para Ottok se assemelhasse a um deserto de água. Restava, meramente, esperar que o dilúvio parasse e o frio iminente transformasse a chuva em neve e gelasse o solo. Nessa altura seria o grande acontecimento por todo o lado. O gelo na Sibéria tem uma dureza superior à de uma auto-estrada.
Chukov e a médica ocupavam dois quartos no comando militar, no exterior do complexo do campo. A comida era boa e condimentada, havia mesmo vinho caucasiano, de que o major lankov muito se orgulhava. Os presos são surpreendentemente pacíficos quando se sabe, tal como sucede noutros campos, onde colocar a parte dos criminosos, basicamente os capatazes, e os agentes provocadores. Numa palavra, a hierarquia interna do campo. Desde as latrinas ao crematório, a vida dos presos estava dominada pelos criminosos, que eram os homens de confiança dos guardas e viviam de subornos. Os menos beneficiados eram os presos políticos. Eram considerados como idiotas, pois deixar-se enterrar em vida por um ideal constituía para os criminosos o cúmulo da estupidez.
- Só se verificou uma única revolta - disse o major lankov, quando mostrava o campo a Chukov e à companheira no quarto dia e, naturalmente, acompanhado por uma forte escolta militar, na medida em que milhares de presos a quem é dado ver uma mulher extraordinariamente bonita correspondem a milhares de granadas prontas a explodir. Foi logo a seguir à morte de Estaline. Quando a notícia se espalhou, começaram a pensar que podiam servir-se dos músculos. Houve setenta mortos. Os fanáticos enfrentaram realmente as nossas metralhadoras. A partir daí seguiu-se uma tranquilidade absoluta. Os detidos têm ao dispor uma autonomia administrativa, um chefe de campo que eles escolhem, uma banda de música, um grupo teatral, um clube desportivo, um grupo de xadrez e um grupo coral. Este último chegou a ganhar, há três anos, em lakutsk, o segundo prémio num concurso.
- Surpreendente! - observou Chukov com honestidade. Examinou o campo, verificou que tudo estava de acordo com as afirmações de lankov, numa escala muito primária... mas a verdade é que correspondia ao real. «Não o vou matar», pensou Chukov. «Não pode sair da pele em que está metido. É um russo. Persegue os homens até caírem na pedreira, mas à tarde podem jogar xadrez ou dançar ao som das valsas de Strauss. E o grupo de teatro está a ensaiar O Inspector, de Gogol. Não dá para entender. Nunca se compreenderá o espírito russo. Nunca. Pertence a um dos fenómenos deste mundo.»
A enfermaria do campo era uma catástrofe - de certo modo a excepção. O chefe dos médicos, o Dr. Fediunin, que media quase dois metros de altura - um leptossómico de costas dobradas, óculos de armações metálicas, olhos lacrimejantes e psiquicamente tão atormentado pela sua fealdade que nem por uma puta tinha hipótese de ser recuperado, pois num âmbito de quinhentas verstas nem putas havia -, estendeu uma mão flácida a Chukov e à companheira e mostrou-lhes seguidamente o que chamava enfermaria. Das quarenta camas existentes, apenas nove estavam ocupadas. Eram casos que, indubitavelmente, se encontravam num estado adiantado. Segundo parecia, para o Dr. Fediunin uma doença só merecia cama em tais condições.
A médica não fez um único comentário. Examinou os doentes, atravessou as outras salas, a sala de operações, a Bania, a farmácia, a cozinha e a sala de autópsia, pela qual o Dr. Fediunin nutria uma paixão secreta: antes de mandar seguir os mortos para o crematório, cortava-os primeiro e dissecava cada um dos cadáveres, organizadamente, em bocados. Um puzzle na proporção inversa.
À despedida, Vuginskaia não estendeu a mão ao seu colega, Dr. Fediunin, mas disse-lhe calmamente:
- Uma bela enfermaria. Os meus parabéns. Gostaria de ter uma assim em Ottok.
- Você é louca, Valia loanovna? - observou mais tarde Chukov, quando estavam sós no quarto dele, a beber chá. Elogiou este estábulo da morte? Quer ter um idêntico em Ottok? O que se passa consigo?
- Vi o horror estampado nos seus olhos, Vassia Grigorevitch - respondeu-lhe num tom ameno e bebendo o chá fumegante, em pequenos goles. - E disse-o conscientemente, para o atingir. Quero atingi-lo no mais fundo do seu maldito autocontrole. Um homem de pedra! Ainda acabo por o fazer em pedaços, juro-lhe! Frade mendicante que arrasta atrás de si uma santa chamada Dunia...
- Dunia Andreievna anda a causar-lhe grandes preocupações, certo?
- Você ama-a, como se ama a própria luz dos olhos.
- Mais, Valia loanovna. Se fosse necessário, daria a própria vista para voltar a vê-la.
- A uma dessas, os meus antepassados tártaros teriam arrancado a língua. - Ergueu-se abruptamente, atirou a chávena de chá para o chão de madeira e dirigiu-se à porta. Amo-o - disse-lhe, de costas voltadas.
- Eu sei.
- E não faz nada, Vassienka?
- Nada.
- Uma mulher confessa-lhe que o ama e fica sentado na cadeira, como se estivesse colado ao assento? Deviam esquartejá-lo, Vassia...
- Se nos amarmos, acabamos por nos destruir, Valia.
- E não é maravilhoso? Ser destruído pelo amor? É o máximo que pode acontecer a uma pessoa: atomizar-se em paixão.
- Concordo consigo, Valia!
- Concordo consigo! - repetiu, dando meia volta. Os olhos negros eram agora apenas pontos dourados. Pupilas abrasantes. Nas maçãs salientes deste rosto maravilhoso, representando a fusão de dois continentes, espalhava-se um vermelho de fúria. - Pedi-lhe a sua opinião? Seu monstro! É a personificação da arrogância com esse olhar sonhador. «Concordo consigo». É como se estivesse a pronunciar a morte em cada palavra.
- Não posso permitir-me amá-la, Valia - retorquiu Chukov. A voz dele era uma carícia. Valia sentiu-o através da pele e encolheu os ombros. Era um assentimento que lhe provinha das entranhas; estava em causa um dom paradisíaco-infernal que lhe tirava toda a vontade do corpo.
- Porquê? - perguntou-lhe, usando a voz velada, a ternura que lhe vinha da alma.
- E uma coisa que não lhe posso explicar. Nunca! Não pense que é por causa da Dunia. Ponhamos a Dunia completamente fora da questão. Muito simplesmente não posso dizer-lhe.
- Entendo tudo, Vassia...
«Não», pensou Chukov. «Nunca compreenderás que neste sítio está sentado Bob Miller, major da CIA americana. A Dunia aceitou o facto, o que nunca aconteceria contigo, Valia loanovna. Tu nunca. Toda a pessoa, mesmo a que se julga um titã, tem as suas fronteiras. E o mesmo acontece com todo o tipo de amor. Podem fundir-se metais e dividir-se átomos, mas nunca apagar um incêndio com gasolina. -É isso precisamente o que não te posso explicar, bela Vuginskaia...»
- Não dizes nada? - observou num fio de voz. Voltara-lhe novamente as costas e mantinha-se junto da porta com a mão no puxador. Bastava-lhe dar três passos na sua direcção, precisava meramente de a levantar do chão e levá-la para a cama. Era o que esperava dele. As pernas tremiam-lhe como que percorridas por uma corrente eléctrica.
- Não. Não digo nada - respondeu. - Não destruas o nosso pequeno mundo, Valia.
- Quero destruí-lo contigo.
- E as nossas cinzas desaparecem nas águas. Faz algum sentido?
Não lhe deu resposta, saiu do quarto escancarando a porta e batendo-a com tanta força que a fechadura saltou. Chukov ouviu-lhe os passos no corredor e um som nítido de criança magoada. Ia a chorar, um choro sonoro que se afastava com ela.
O posto de ligação com os agentes americanos isolados voltou a ser mudado e situava-se agora em Fort Patmos, um ninho do Missuri, rodeado de pântanos, que na altura em que se ergueu Fort Patmos se revelaram de grande utilidade na medida em que os índios se encontravam impossibilitados de atacar o forte com os seus cavalos. Contudo, tudo isso ocorreu há cento e cinquenta anos. Actualmente Fort Patmos não tinha quaisquer direitos, era uma espécie de cidade fantasma, como se dizia ao Ocidente dos EUA, e por esse motivo o general Orwell tinha declarado:
- É lá que nos instalaremos!
As pessoas já se haviam acostumado aos caprichos de Orwell, o quartel-general de Washington deu o seu amém a tudo e, por conseguinte, com a ajuda da famosa perfeição americana, rapidez e um exército das mais modernas máquinas, ergueu-se um centro de informações nos antiquíssimos e agrestes rochedos.
Orwell não se enganara nos cálculos. A contra-espionagem estava perplexa. O estado-maior de Orwell desaparecera subitamente, como que atirado para o nada. O adversário andava às voltas, de cabeça perdida, e seguia pistas totalmente falsas.
No entanto, Orwell estava preocupado.
De Vinniza, Bob Miller tinha ainda conseguido informar que o mais perigoso e o seu melhor colega soviético, Andrei Nikolaivitch Pleniakov, saíra da secreta Frazertown, situada junto ao Bug, e se infiltraria nos EUA como John Barryl. A partide então tinham-se colocado sob vigia todos os aeródromos e portos, em resumo, cada buraco que permitisse a uma pessoa introduzir-se nos EUA. Todos os postos secretos das fronteiras canadense e mexicana tinham sido alertados... Não apareceu, porém, qualquer John Barryl onde quer que fosse.
Orwell mantinha a sua calma paternal, só que as palavras expressavam o que o preocupava.
- Sei que Pleniakov está no país - declarou durante a primeira reunião em Fort Palmos. Apenas estavam presentes quatro oficiais, os mais aptos que ainda havia no destacamento de Orwell. Todos os restantes se encontravam em actividade na Rússia. - Com mil raios! Sinto-o, como se fossem os pintelhos de uma mulher. Está aqui. E aplica as suas capacidades precisamente onde se pode tornar mais perigoso para nós. E que sabemos a seu respeito? Apenas o nome russo e o americano. Ponto final. Nem desenho, nem fotografia ou tão-pouco o retrato-robot. O único que conhece bem Pleniakov é Bob. Mas onde está Bob? Algures, no caminho entre lakutsk e Verkokrassnoi. É esta a pergunta que faço a mim mesmo e a vocês, meus caros senhores: «O que é neste momento mais importante? Fotografias da nova base soviética de foguetões intercontinentais na Sibéria ou desmascarar o agente Pleniakov? Onde se situa o maior prejuízo para o nosso país?» Verkokrassnoi fica... mas Pleniakov infiltra-se entre nós e desaparece como fumo. Quanto a mím, não há que hesitar. Bob tem de regressar. Só existe um homem capaz de identificar Pleniakov... ele!
- E qual a sua ideia para chegar até Bob, sir? inquiriu um dos oficiais.
- Até Bob sair da Rússia, dá tempo ’a que Pleniakov há muito se tenha estabelecido - retorquiu outro.
Orwell fez um aceno de cabeça vigoroso. Eram tudo coisas que sabiam e lhe tinham custado muitas noites sem dormir.
- Olham-me como se fosse uma vaca que, quando mungida, desse coca-cola - comentou com uma expressão de poucos amigos. - Tenho exacta consciência da delicadeza da minha posição, rapazes. O homem mais importante dos Serviços Secretos de Moscovo move-se livremente entre nós. Só o diabo sabe como se conseguiu infiltrar no país... mas conseguiu. Herbert...
- Um capitão colocou-se em posição de sentido. Suspeitava do que Orwell lhe reservava, e não era nenhum mar de rosas.
- Irá tentar ir ter a Irkutsk com Galina Teofilovna, ao Hotel Sibir e contactar Bob. Já deve ter dado informações de onde quer que se encontre. Em seguida, resta-lhe uma única missão, Herbert: regressar imediatamente aos Estados Unidos. Ponha-o a par da verdade tal como é: Pleniakov escapou à nossa vigilância. Preciso de Bob Miller!
Vassili Mikailovitch lankov podia dar-se ao luxo de ser um cão de faro sempre com a vista em cima dos presos, que a Rússia tinha por direito tratar como estrume. Uma coisa não se podia negar a seu respeito: conservara a perspicácia de saber onde acabavam os limites humanos. Aqui, em Novo Sosnovka, situavam-se muito simplesmente nas ruas. No sentido restrito. A chuva infindável que caiu, ininterruptamente, quatro dias, seis dias, oito dias, como se do outro lado do hemisfério se despejasse um oceano de chuva sobre a Sibéria, transformou a região num autêntico pudim. Já alguém tentou avançar com um camião através de um pudim? Ou fazê-lo com trenós puxados por vinte homens que se afundam até aos joelhos? Não dá, muito simplesmente, resultado... Podem escavar com raios laser através da lama, mas não há hipótese de avançar mais de cem metros com pneus, varais ou botas. Em seguida, desiste-se resignadamente: «É tudo merda, irmãozinhos!», volta-se com o mesmo esforço ao sítio de partida e fica-se à espera do que a natureza tem para oferecer nos dias seguintes. O facto de tudo mudar e nada permanecer numa posição de constância, o facto de a vida constituir uma permanente mutação possibilita que se compreenda porque é que um russo é um apaixonado do tempo e sabe esperar.
Todos os acontecimentos têm fronteiras, até mesmo uma chuva diluvial. Portanto, para quê queixas, camaradas? Depois da chuva vem o vento frio, em seguida neva e gela, as árvores estalam sob a geada rigorosa... e esse maldito, danado rio Tiugania desaparecerá sob uma espessa camada gelada e apaziguar-se-á. Sabemos tudo isso, meus caros amigos. A Sibéria não consegue dar cabo de nós. Isso só aconteceu no primeiro ano, quando idealistas que éramos, pensámos que não iríamos sobreviver. Em seguida, porém, cuspimos nas mãos e demos início ao combate... contra as taigas, contra as torrentes, contra a geada, contra as pragas de mosquitos no Verão... e contra a vastidão e a solidão de uma beleza triste. Até este momento, saímos permanentemente vencedores. Ano após ano. E continuaremos a vencer. Fizemos da natureza da Sibéria nossas amantes…
O major lankov colocou, assim, à prova dois trenós carregados a mais não poder atrás dos quais se esforçavam vinte presidiários, e mandou-os pela estrada que levava a Ottok.
Depois de nove presos terem sucumbido, os outros jazerem apáticos na lama, deixando-se chicotear pela chuva, e os trenós se terem afundado até aos varais, o que obrigou a que os descarregassem e os trouxessem de volta ao acampamento, laqkoy disse a si mesno «Não!» e telegrafou a seguinte mensagem para Ottok:
«Se pretendem a mercadoria, venham buscá-la a Novo Sosnovka. Talvez sejam mais espertos do que nós.»
Aparentemente tal não acontecia, porque ninguém chegou de Ottok - como fazê-lo, aliás? -. e recebeu-se o desafio sem réplica. Apenas as comunicações telegráficas prosseguiram e concordou-se que o reforço número X/169 - essa a informação oficial - ficasse suspenso até ao rodar dos acontecimentos.
No acampamento verificaram-se poucas transformações. As brigadas de trabalho na pedreira continuaram em acção, na medida em que a chuva não impede que se partam pedras. Até mesmo os comandos de derrube da madeira trabalhavam com as suas serras mecânicas, deitando abaixo as gigantescas árvores das taigas. Só que os troncos permaneciam, naturalmente, sem que ninguém lhes mexesse até os poderem puxar com os pesados camiões de arrasto.
A geada acabara de chegar - dizia o major lankov a Chukov.
Passavam juntos os tempos livres no aquartelamento militar, jogavam xadrez, bebiam vinho da Grusínia e contavam histórias de mulheres. Era a única coisa que ainda mantinha lankov potente, pois não se podia dar ao luxo de em Novo Sosnovka montar a mulher de um honesto camponês e camarada. Era uma coisa que os seus soldados tentavam e, por esse motivo, todos os dias havia brigas e desordens no local. E coisa que não acontece a um oficial. lankov dispunha meramente da altura das férias - algumas semanas por ano em Taschkent. Acreditava que ali viviam as únicas mulheres do mundo que, depois de engrenadas, já não paravam até ficarem praticamente prostradas. Quem desconhecia o facto sentia um medo a princípio, pois podiam ser montadas até à morte.
Por conseguinte, contavam esse tipo de histórias mesmo na presença de Vuginskaia, pois - na opinião do major lankov uma pessoa está sempre a aprender e ainda mais quando se é uma camarada médica. De vez em quando participava na conversa o Dr. Fediunin, esse odioso leptossómico, que fitava Valia com uns olhos de lobo faminto e descrevia as autópsias que praticava. As palavras saíam-lhe como se estivesse a sentir um orgasmo.
Uma tarde, Valia loanovna apareceu no quarto de Chukov, sentou-se na cama e cruzou as mãos” no regaço.
- Tudo isto está certo? - perguntou.
- O quê? - retorquiu Chukov, que fora buscar uma garrafa de vinho à messe dos oficiais e encheu dois copos de plástico. Não havia mais nada. A ligação com a margem oposta voltara a interromper-se há dois dias, a rede de cabos há muito que estava inundada e os postes reforçados em T erguiam-se no rio tumultuoso como dois indicadores gigantes. Do comboio, o maquinista telegrafava que estava bem, que a água ainda não chegara aos carris e mantinha a posição de um capitão que defende o seu navio... Todos o sabiam, pois não parava de o dizer, recebia elogios que lhe davam prazer e desejavam-lhe sorte.
- Essa coisa das mulheres - respondeu a companheira. - As orgias que trocam diariamente entre vocês.
- Não - respondeu Chukov. - Tudo vai de mal a pior.
- E porque passam o tempo a falar dessas coisas? Porque se entregam a essas porcas fantasias?
- Porque me amas, Valiachka?
- Isso é diferente, Vassienka.
- Para lankov, não. Passa todo o longo ano nesta solidão rodeado de milhares de presidiários e quase trezentos soldados, nada mais lhe restando do que as suas recordações. E quanto mais se lembra, mais marcadas, fortes e intensificadas pelo desejo se tornam as suas experiências. Nunca ouviste falar de pessoas famintas que sonham com gansos suculentos, assados e com um aroma divinal? E que depois se atiram ao chão e comem erva e areia, desenterram vermes e caçam lagartas?
- E nunca sentes esse tipo de desejo?
- Não.
- És um ser superior?
- Peço-te por favor que não recomeces, Valia loanovna. Claro que não sou um ser superior. Estás sentada aqui na minha cama, tens a saia puxada para cima, vejo perfeitamente que usas umas cuecas azuis-claras, através das quais se escapa um montinho de pêlos escuros... e sinto-me como um tigre prestes a saltar sobre a presa. É isso precisamente o que sinto. Todos os meus músculos estão retesados.
- Mas apesar de tudo continuas a sonhar com essa tal Dunia Andreievna. Sê essa fera... não te exijo mais nada!
Deixa o coração para Dunia, mas não esqueças o teu instinto natural.
- Estamos metidos num círculo vicioso, Valia. Não faz sentido. Suplico-te: não te rebaixes com as tuas pretensões, que apenas encontram uma recusa. Tudo isso só serve para gerar um ódio que não podemos superar.
- O que não te agrada em mim? - quis saber, voltando a utilizar-se do tom suave, ao mesmo tempo que os pontos dourados das pupilas brilhavam. Chukov sabia que se tornaria terrivelmente perigosa. Desabotoou a blusa e, dado não usar soutien, revelou os seios pequenos e pontiagudos. Tinha uma pele branca, apesar da marca âmbar deixada pela origem dos antepassados tártaros.
- És uma mulher com tudo no lugar, Valia - declarou num tom indiferente.
- Onde está a fera de que falavas, Vassienka?
- Amanhã tentarei afastar-me de ti. Seja como for. Nem que tenha de me balouçar de árvore em árvore como um macaco. Temos de nos separar, Valia.
- Sabes que não houve um único homem que me tenha visto nua? - perguntou ternamente.
- Tiveste alguns amantes. Falaste-me deles...
- Teve de ser sempre tudo no escuro. Nunca se acendeu a luz. Houve um que tentou estender a mão para a carrapeta do candeeiro... dei-lhe um murro entre os olhos que o fez desmaiar. E, neste momento, ponho-me nua diante de ti. Não sei o que se está a passar comigo.
- É por esse motivo que tenho de me ir embora,. Valia.
- Avançou na sua direcção e no momento em que ela se deitou na cama e fechou os olhos, compôs-lhe a blusa e puxou-lhe a saia até aos joelhos. Todo o corpo de Valia tremia e cerrou os punhos.
- Estou louca - confessou rispidamente. - Não sabias?
- Em Ottok tudo se normalizará, Valia.
- Agora não estamos em Ottok e... tens-me deitada na tua cama. Sabes o que tenciono fazer? Vou portar-me, de facto, como uma louca. Irei ter, toda nua, com o major lankov.
Ah! Ele e as malditas putas de que está sempre a falar! Sou melhor do que elas. Não vou abaixo mesmo depois de dez orgasmos. E depois de estar com lankov, vou ter com o doutor Fediunin e da cama de Fediunin passo à de outros oficiais... um a seguir ao outro... sentes-te capaz de o suportar? Sentes-te capaz de o encarar? Sentes-te capaz de ficar para aqui a pronunciar uma fraseologia vã, bonita e franca com ar teatral, enquanto estou com o Fediunin na mesa de autópsias...
- Cala a boca, Valia! - interrompeu-a Chukov tenso. Inclinou-se sobre ela e enterrou-lhe as mãos nos cabelos negros com um brilho metalizado. Ela conservava os olhos fechados. - Cala a boca, com mil diabos! Ainda nunca bati numa mulher em toda a minha vida... mas é o que farei contigo para que fiques quieta.
- Não te sentes capaz de o suportar, pois não? - gritou-lhe. Abriu os olhos... crateras negras de solo dourado. O rosto, de uma beleza indescritível e maravilhosa, adquiriu uma expressão excitada. - Era o mesmo que matar-te se eu e o lankov, junto do tabuleiro de xadrez... Bate-me, vá! Bate-me! Toca-me pelo menos uma vez, nem que seja com os punhos...
- Rodeou-lhe o pescoço com os braços, puxando-o para baixo, mas ele ofereceu resistência e sabia que, naquele momento, se iniciava uma fase que ela nunca lhe perdoaria. Bate-me, vá! Preciso de te dizer como vou fornicar com todos os outros? Sabes a que é que os Tártaros chamam a «cavalgada do Sol»? Queres que o faça com Fediunin, que só se excita com os cadáveres? Bate-me, vá. Oh! Porque não sinto as tuas mãos?
Também esta tarde terminou ao som monótono do cair da chuva e da marcha compassada de centenas de botas, no momento em que as brigadas de trabalho regressavam da pedreira. Uma massa de homens despedaçados pela água e pelas pedras que partiam.
Chukov sempre conseguira acalmar a médica. No entanto, teve de lhe fazer concessões... no oitavo dia foi encontrá-la deitada na sua cama, quando regressou ao quarto, depois de ter jogado algumas partidas de xadrez com o major lankov. Foi a primeira vez que se dispôs imediatamente a abandonar o quarto, mas Valia loanovna disse-lhe:
- Não fujas como uma raposinha diante do urso. Nada mais pretendo de ti. Apenas me sinto bem assim.
- E achas que aguento?
- Esse problema é teu, Vassia Grigorevitch...
- E vai ser assim todas as noites?
- Todas, meu querido - garantiu com uma ruidosa gargalhada. Descontraiu-se alegremente, e o corpo esbelto, de pele branca com um leve traço amorenado, descreveu um arco para cima, como uma corda retesada e pronta a disparar. Os seios ressaltavam, pontiagudos, à luz nua e desprotegida da lâmpada eléctrica pendurada no tecto de madeira e o espaço negro entre as pernas constituía o outro extremo da ponte. Em seguida, descaiu novamente o corpo e os músculos descontraíram-se.
Chukov não pronunciou palavra. Nesta primeira noite, foi sentar-se à janela, olhou para a entrada do acampamento e forçou-se a esquecer a presença de Valia, que estava dois metros atrás de si. Pensou intensivamente em Dunia, nos dedos que lhe arranhavam as costas, nos dentes aguçados que lhe mordiam o pescoço e o peito, nas palavras arquejantes, que eram um grito de êxtase, e a sua calma quando, mais tarde, se aconchegava nos seus braços e se deixava afundar na infinita felicidade.
O que levara Deus a criar mulheres como’estas? Dunia Andreievna e Valia loanovna. E porque é que a vida de um homem é tão curta sempre que Deus lhe oferece tais maravilhas?
Houve uma vez em que o major lankov perguntou:
- O que se passa, realmente, com a nossa médica? Mostra-se sempre lacónica, anda pálida e fita todos como se abríssemos a braguilha na sua frente. E quando serve de auxiliar do doutor Fediunin nas suas selecções diárias...
- O que faz? - interrompeu Chukov, que nada sabia desse assunto. Durante o dia era raro ver Valia. Ia frequentemente até à pedreira, assistia ao trabalho e fotografava, de memória, pormenorizadamente e para sempre, as imagens comoventes que se lhe ofereciam. O martírio dos homens semimortos de fome que tinham de partir pedra, os métodos dos comandos, que se deixavam guiar meramente pelos padrões mas não conheciam qualquer sentimento de piedade nem de humanidade, e a vontade secreta destes presos quanto a serem mais fortes do que a pedreira, mais fortes do que a Sibéria, mais fortes do que tudo que sobre eles se abatia. Um dia, o acampamento terminaria, um comboio iria levá-los para a liberdade, viam-se algures numa rua, numa praça, num quarto, sem terem quem quer que fosse atrás deles munido de uma metralhadora. Voltaram a ver as mulheres e as filhas, o pai e a mãe, o filho, o neto, toda a vida que amavam.
Era essa a linha de pensamento junto ao rio e na aldeia de Novo Sosnovka.
Também aqui se trabalhava até cair, contra o rio que agora deixara de ter fronteiras ao sul e nas margens escarpadas de Novo Sosnovka fazia frente às montanhas e a uma parede de pedra, terra e troncos com que se tinha fortificado o barranco. Se assim não fosse, há muito que Novo Sosnovka teria desaparecido sob as águas.
Assim, era muito pouco o que Chukov sabia diariamente em relação à companheira. Agora, escutava da boca do major lankov que servia de ajudante ao Dr. Fediunin na enfermaria do campo. Era uma coisa lógica, dada a sua profissão de médica, mas havia uma coisa que perturbava Chukov e que se resumia à palavra «selecção». Significava controlar os boletins médicos diários e seleccionar quem estava realmente doente ou quem, apesar de tudo, podia ser considerado apto a trabalhar na pedreira ou no dique.
A respeito de Fediunin, sabia-se que poucos boletins médicos elaborava. Orgulhava-se da sua enfermaria militar, praticamente sem utilidade. Os incuráveis ficavam apenas um dia de cama, depois do que se mudavam para a mesa de autópsias de Fediunin. Conservava um diário meticuloso e exacto e, por três vezes, descobria doenças extraordinariamente raras, entre elas um pênfigo, o qual não podia tratar com os meios de que dispunha... Descreveu, no entanto, até ao fim o apodrecimento horroroso do pobre homem.
- Valia irá provocar uma bela tempestade em Ottok
- comentou o major lankov, observando o tabuleiro de xadrez. Chukov tinha-o arrastado para o xeque-mate, mas talvez houvesse ainda qualquer saída. - Na estatística da Comissão Gulag, o lugar dos relatórios médicos ocupa uma posição muito baixa. Ou, por outras palavras, têm lá alguns médicos que encaram os doentes como doentes mesmo. Também pode ser natural. E agora vai-lhes cair em cima uma Valia loanovna que se assemelha a um turbilhão. O próprio doutor Fediunin morde o lábio inferior...
- O que significa isso? - quis saber Chukov, ao mesmo tempo que uma terrível suspeita o assaltava.
- Há quatro dias que deixámos de ter doentes entre nós.
- E não toma qualquer atitude, Vassili Mikailovitch?
- Sou médico porventura? Cabe-me qualquer apreciação? Sou um soldado, comandante do acampamento, e satisfaço-me com a capacidade de trabalho. Ainda não conseguiu dar-me xeque-mate... Ah! Ah! Observe só esta jogada, Chukov.
- Movimentou uma peça do tabuleiro, mas Chukov não estava atento. - E, no entanto existem diariamente feridos na pedreira - observou em voz alta. - Ligam-nos, dão-lhes um comprimido para as dores... e em seguida regressam ao trabalho. Já houve mesmo discussões médicas entre Fediunin e Vuginskaia. Deve ter sido algo importante, na medida em que Fediunin é um preguiçoso e não atende a pormenores. No entanto, Valia... mantém-se na sala de observações e declara num tom de voz que não admite réplica: «Curado! Curado!». O doutor Fediunin nem se atreve a abrir a boca.
À noite, ela voltou a deitar-se na cama de Chukov. Nua, com uma pele sedosa, os cabelos negros soltos e os reflexos dourados nas pupilas. Um aroma a perfume de rosas inundava suavemente todo o quarto.
Desde que passara a ocupar-lhe a cama desta maneira, Chukov tinha-se habituado a dormir no chão, tapado apenas com os lençóis e o casaco. Era, de facto, duro e, quando ela lhe falou no assunto, limitara-se a responder:
- Não há nada melhor para os discos da coluna. Como médica, devias sabê-lo.
Naquele dia,- as coisas tinham assumido uma outra perspectiva. Entrou no quarto, atirou o casaco para as costas da cadeira e dirigiu-se imediatamente à cama. Valia loanovna encolheu a perna esquerda. «Agora, vai fazer o mesmo à direita», pensou, «depois apoia-se nos ombros e faz a habitual e maldita ponte.» Era sempre o mesmo, todas as tardes, vezes seguidas até se deitar na sua cama de cobertores. Admirava-lhe a persistência, a sua oferta sem palavras e a aceitação silenciosa da recusa.
«Quando virá o frio?», pensava algumas vezes. «Quando é que o solo finalmente ficará gelado para podermos continuar caminho?» No entanto, chovia, chovia continuamente, e a chuva não sabia para onde se dispersar. Em lakutsk teimava-se que toda a vida na taiga, a noroeste do Lena, estava submersa. O próprio Lena, em muitos lugares, transformara-se praticamente num mar interior. Para onde iria tanta água? Se tudo gelasse repentinamente - e na Sibéria tudo era possível de uma noite para a outra - a região transformar-se-ia num espelho gelado em milhares de verstas. Também isso seria uma catástrofe.
Chukov impediu a formação da ponte de reflexos sedosos, ao mesmo tempo que puxava para baixo a perna direita de Valia, quando ela iniciou os movimentos esperados. Nos olhos surgiu-lhe imediatamente uma ferocidade destruidora. Ergueu os ombros e retesou os músculos do pescoço.
- Levanta-te! - ordenou Chukov num tom ríspido. Levanta-te imediatamente!
- Estás a pôr-me fora? - perguntou num tom perigosamente baixo.
- Não precisas desta cama. Tens precisamente à disposição trinta e sete camas vazias na enfermaria. As três ocupadas talvez também passem a estar livres amanhã ou depois de amanhã. Não há doentes novos para Vuginskaia.
- Doentes? Homens doentes? Será que há disso?
- retorquiu, cruzando os braços por baixo da nuca e fazendo ressaltar os pequenos seios. - Os homens são tão fortes! São todos tão fortes! Nada os consegue abalar, nada os faz cair de joelhos, nunca enfraquecem! Se são todos uns rochedos... porque não hão-de trabalhar nos rochedos? Como é possível que um homem esteja doente? Doentes são apenas os seres capazes de sensações, pois as doenças são coisas que se sentem. E os homens têm sentimentos? Não conheço um único que seja. Se fores capaz, mostra-me um!
Aproximou-se dele, construiu a habitual ponte com a velocidade de um raio e colou-se-lhe ao baixo ventre.
- Os homens têm coração? - gritou. - Só se souber que têm coração é que passo a saber que podem estar doentes,.
Chukov não respondeu, abandonou-a nesta posição com todos os nervos e tendões retesados e depois saiu do quarto. Pôs um oleado a cobrir-lhe a cabeça e correu até à enfermaria, onde foi encontrar o Dr. Fediunin, que lia um livro especializado. Fediunin ficou tão surpreendido que deixou cair os óculos do nariz.
- Você, Vassia Grigorevitch? A esta hora da noite? É qualquer coisa relacionada; com. medicina’?» Não se sente bem? A camarada Vuginskaia decerto o poderá...
- É de Valia loanovna que se trata, doutor Fediunin. O senhor é ou não o chefe dos médicos aqui no acampamento?
- Mas pode recusar-se-lhe alguma coisa, camarada? Ela quis seleccionar, portanto deixei-a. Fá-lo maravilhosamente...
- Demais! Em milhares de presos não há boletins médicos! Onde se viu tal coisa?
- É surpreendentemente, mas o olhar arguto de Yuginskaia para as doenças de todo o género...
- Sou um simples engenheiro - interrompeu-o Chukov calmamente. - Tenho, no entanto, amigos poderosos em Irkutsk e em Moscovo. Não tenho qualquer pejo em os informar do que vi aqui...
- Camarada Chukov... - retorquiu o Dr. Fediunin.
agarrando os óculos com as duas mãos. - Sou um homem. Quando entreguei a selecção a Valia loanovna, ela beijou-me. Uma vez apenas, mas é coisa que nunca mais se esquece. Não compreende?
- Sei que existe um decreto que obriga a que se devem tratar todos os presos dos campos de concentração com os cuidados inerentes à humanidade.
- Não me faça rir! - comentou o Dr. Fediunin com um riso seco. - É este, por acaso, o primeiro campo que visita?
- De facto.
- Então, seja feliz e permaneça assim durante muito tempo, é o que lhe desejo e invejo. Preocupe-se com a sua função de engenheiro... Não repare, por favor, no espectáculo que ladeia o seu caminho. De acordo. Vou falar com Valia. Tenciono retirar-lhe novamente a selecção... mas digo-lhe também o que me levou a proceder dessa maneira. Viverá um inferno.
- Com prazer. Boa noite, doutor Fediunin.
- Para si também, Vassia Grigorevitch. Será a sua última boa noite.
Abrigando-se sob o oleado, Chukov regressou a correr, através da chuva, ao aquartelamento militar. «Se Fediunin soubesse quem é realmente Chukov», pensava pelo caminho. «Um nome famoso - embora não tenha a mínima relação com o marechal do Exército Vermelho -, algumas insinuações de que se conhecem camaradas poderosos (será que mudou alguma coisa com o marechal?), uma tomada de posição firme, e podem-se abrir portas ou fechar portas contra as quais os outros batem com as cabeças. Neste aspecto a Rússia em nada se diferencia do Ocidente.»
Quando voltou a entrar no quarto, a cama estava vazia. Ficou admirado, mesmo irritado, e até com uma sensação desagradável no estômago. Deu meia volta e dirigiu-se ao major lankov. Este já estava deitado e só, com satisfação de Chukov, ouvindo música num transistor. Música clássica transmitida de lakutsk. Do compositor Mujorski.
- Gosta de música clássica? - perguntou Chukov para dizer qualquer coisa. O major lankov respondeu com um aceno de cabeça satisfeito.
- Você não? A maioria dos russos gostam de música clássica.
«É verdade», pensou Chukov. «Conferência do professor de música, no Alasca, na cidade fantasma de Smolenska. Seis conferências sobre as preferências dos Russos no campo da música. Para além do folclore, principalmente os clássicos. Ópera e ballet. Na Rússia há mais pessoas a saberem quem é Beethoven do que na Alemanha. Estás a descuidar-te, Bob Miller! Como dizia o general Orwell: ”Pensar sempre nos pormenores. O esquecimento de pormenores pode levar-nos à perdição.”»
- Porque veio até aqui, Vassia Grigorevitch - perguntou lankov.
- Para lhe falar verdade, por nada. Passei junto do seu quarto e ouvi a música. Senti-me atraído.
- Então sente-se e escute a peça até final... Chukov não tinha outra alternativa. Enroscou-se numa
cadeira, recalcou a ansiedade e levantou-se imediatamente a seguir aos últimos acordes.
- Obrigado - agradeceu. - Foi um prazer. A rádio é uma invenção genial.
Saiu, precipitou-se de volta ao quarto, mas a companheira continuava sem aparecer. Não podia estar com o Dr. Fediunin, pois acabara de vir de lá e agora tornava-se impossível ir espreitar as camas de todos os oficiais. Nem todos estavam a escutar música clássica nessa noite.
Foi até junto da janela, observou o acampamento, inundado pela chuva, começou a passear no quarto de um lado para o outro, como se estivesse numa jaula pequena de mais para a fera aprisionada, e de vez em quando parava em frente da cama, na qual ainda era visível a marca deixada pelo corpo dela. Também o seu perfume ainda pairava no aposento. O aroma a rosas.
Passada uma hora, acabou por se dirigir ao quarto que o major lankov destinara a Vuginskaia. Um tenente vira-se obrigado a deixá-lo livre e dormia agora no quarto de um camarada.
Valia loanovna estava sentada, com os joelhos dobrados em cima da cama, vestida com uma camisa de noite com bordados tártaros. Quando Chukov entrou, sacudiu a cabeça e os longos cabelos negros caíram-lhe como um véu metálico sobre o rosto. Só lhe era permitido olhar para a cortina negra... o que estava para lá tinha de ser adivinhado.
- Porque te foste embora? - inquiriu, erguendo a voz.
- Andaste à minha procura?
- Porque é que...
- Andaste, realmente, à minha procura? Correste de um lado para o outro com um inferno no coração e uma pergunta na boca: «Onde está ela? Onde pode estar? Com quem está na cama? Oh! Vou matar quem neste momento a, tiver debaixo dele! Destruo o mundo inteiro! Onde estás, Valiachka, onde estás? Ando às apalpadelas, como um cego que quer encontrar novamente a luz.» Mas ela não estava lá, não estava em parte alguma e sentiste-te a sangrar por dentro. Como é belo tudo isso...
Porque estás aqui? – explodiu.
- Puseste-me fora. Já te esqueceste? Sou tão obediente como um, cãozinho amestrado... Vou...
- A partir de amanhã, o doutor Fediunin não te deixará fazer a selecção.
- Foi o que suspeitei. O grande Chukov, o urso forte, ditou ordens - interrompeu-o, afastando para o lado o véu de cabelos com as mãos. «Que rosto!», pensou Chukov. «Que mulher!» Comprimiu os lábios e verificou como era qente a respiração que lhe saía do peito e tentava controlar. - O que é que o czar da Sibéria ainda tem a acrescentar?
- Vem ter comigo... - disse, excitado, - Se temos que nos despedaçar, que não seja à distância.
Manteve-se enroscada na cama, mas ele não ficou à espera da atitude seguinte. Saiu do quarto batendo com a porta atrás de si e foi para os seus aposentos. Deitou-se, no escuro, em cima da cama e quedou-se de olhos na porta.
Ela veio. Precisou apenas de uma nesga para se introduzir no quarto. À luz difusa que, vinda do acampamento, se introduzia através dos reposteiros viu como se deteve junto da porta, despindo a camisa, que deixou cair no soalho. Em seguida, escutou os passos leves dos pés descalços... e surgiu da escuridão, corpo esguio, pele brilhante, com as mãos humildemente cruzadas no ventre.
- Não acendas a luz - repetiu num fio de voz. - Se o fizeres, aperto-te a garganta. Juro-te que o faço.
Voltou-se de lado, ela deitou-se junto dele e atirou-se-lhe repentinamente como se fosse uma gata, batendo-lhe com os punhos nos ombros.
- Cão! - arquejou. - Maldito cão! O que fizeste de mim?
Mais tarde, quando ela adormeceu, acendeu a luz e observou-a. Devem-se admirar as maravilhas antes que voltem a desaparecer...
«Dunia!», pensou. «Tens de me perdoar. Nunca o saberás, nem te vou contar e, apesar disso, tens de me perdoar. Com esta atitude talvez tenha salvo a vida de centenas de presidiários.»
Era um tipo de raciocínio tão vulgar e falso que se envergonhou de si mesmo’, mas levou-o até ao fim, porque esta mentira era a sua única justificação.
Em seguida, voltou a apagar a luz do tecto, colocou a cabeça entre os seios pontiagudos e agora abandonados e adormeceu, mergulhado na sua pele com um aroma a rosas perfumadas que se lhe entranhava no próprio corpo.
Nas torres de vigia, fazia-se revista ao acampamento. Era parte do regulamento, mas no momento uma estupidez. Quem se atreveria a fugir nesta imensidade de água?
Algures, durante a noite, Valia loanovna sentiu que a cabeça de Chukov repousava entre os seus seios. Não se levantou, deixou-se envolver numa vivência extraterrena.
- Amo-te - pronunciou no meio do sono e acariciou-lhe a cabeça com as mãos. Um movimento inconsciente, ditado por um instinto primitivo. - Amo-te, meu grande urso...
Calina Teofilovna continuava a trabalhar na loja de cosméticos do Hotel Sibir, em Irkutsk. Não era apenas de momento o melhor mas também o único «homem» de Orwell que ele tinha na Sibéria em contacto com a Central. O novo homem em lakutsk, com quem Bob Miller deveria entrar em contacto, tinha sido preso dez dias antes da chegada de Miller ao Lena e, antes de lhe conseguirem fazer uma lavagem ao cérebro, suicidara-se. De uma maneira muito simples. Quando o levaram para julgamento, limitou-se a fugir e a deixar que o abatessem pelas costas com os disparos de uma MP1. Galina declarou, com um terrível sentido prático: foi vítima de um acidente.
O contacto mais próximo estava como guarda-livros de uma fábrica de fio de estambre em Tchita e não fazia a menor ideia da existência de um tal Vassia Grigorevitch Chukov, que ia a caminho de uma nova base de foguetões em Verkokrassnoi. Além disso, Bob Miller ainda não conseguira entrar em contacto com ele através do seu pequeno emissor, na medida em que era difícil comunicar com Irkutsk.
O que dissera Galina Teofilovna: «A partir de agora está entregue a si mesmo. Ninguém o vai ajudar. No caso de voltar a Irkutsk, estou aqui.»
Dava a sensação de não acreditar que isso viesse a acontecer. O número de agentes americanos que tinham desaparecido para sempre na Sibéria continuava por apurar. Galina conhecia apenas alguns deles. De cada uma das vezes que via desaparecer os homens sentia uma grande pena.
No caso de Bob Miller ainda tinha sido pior. À tristeza misturava-se uma ânsia, um sentir que lhe roía as entranhas. Por esse motivo reagiu ainda com um choque maior quando, através do contacto V, que se encontrava algures no Japão e dispunha de um longo alcance, recebeu a intimação de chamar imediatamente Bob Miller à base.
- Como? - respondeu, fugindo por completo ao tom indiferente que era usual naquele tipo de diálogo. - Encontra-se só, algures no Lena. Ainda não forneceu qualquer informação até hoje. Quem pode saber onde vive agora? Foi infame da vossa parte deixarem-no tão desamparado.
- Enviámos o homem errado para a Rússia, sir - declarou o capitão Herbert Donald, quando informou o general Orwell do último contacto pela rádio havido com Irkutsk. Porquê precisamente Bob? Onde quer que apareça, põe as mulheres loucas. Agora, também Galina Teofilovna está apanhada na rede. Se houvesse possibilidade de televisionar radiogramas, não faltariam lágrimas. Se os nossos amigos Russos o pudessem fazer, apanhavam-no imediatamente. O rapaz deixa sempre um rasto de corações despedaçados. Qual é, porém, o serviço secreto a quem ocorre uma ideia dessas? Quem é que já conseguiu conquistar a Rússia de calças debaixo do braço?
- O seu humor é bem conhecido, Herbert! - observou o general Orwell, nada divertido, se bem que sempre encarasse as faltas dos seus rapazes com uma indulgência paternal. Contudo, já tinha suspeitado qualquer coisa do género. Só que nada relacionado com as mulheres... Bob anda algures na taiga e acredita estar completamente abandonado!
- É essa a acusação que Galina nos faz.
- Esse o motivo por que não entra em contacto. Para quê? Tem a sua missão e só voltará a aparecer quando a tiver ou quando não a tiver realizado. Ou então não tornaremos a ouvir falar nele. São estas as três hipóteses, e todas elas há muito que me preocupam. Pleniakov está entre nós. É uma oração que recito em cada hora que passa e para a qual não tenho amém. Galina não pode contactar com Bob. Por conseguinte como chegar a Bob no meio da taiga? Dantes, podia-se destacar um outro homem para ir procurar Bob. Já não é processo que resulte. Além disso, travamos uma luta contra o tempo
- prosseguiu Orwell juntando as mãos, a que apoiou o queixo proeminente. Os oficiais, que se sentavam à sua volta numa mesa comprida, sabiam que uma bomba estava prestes a rebentar! O velho ofegava. «O que irá dizer, nem sequer sonho será. Só que conseguirá dar-lhe concretização!»
- Washington tem uma ideia infame - declarou Onvell, arrastando cada palavra. - Oponho-me, resisto-lhe, mas quanto mais penso nela e analiso a situação... A verdade é que temos de dizer continuamente, meus rapazes: «É a paz», só que nós, os da CIA, levamos a cabo uma guerra, que se verifica num túnel ’escuro. Ninguém se apercebe, apenas os implicados. Até nos métodos somos iguais, só que um é mais fantasista do que outro, e a isso se chama, seguidamente, êxito. O que Washington decidiu em caso de estrema necessidade... Digamo-lo numa palavra: para se ir buscar Bob de maneira a que este desmascare Pleniakov, temos de sacrificar um homem.
Orwell dirigiu um aceno de cabeça a todos os homens, surpreendidos e silenciosos, que se sentavam em redor da mesa.
- Sinto o mesmo que vocês - declarou num tom rouco. - Sinto repugnância ante a ideia, mas a verdade é que existe Pleniakov, que pode prejudicar imensamente o nosso país. A defesa ante um mal tão importante, que abrange a nação inteira, vale a vida de um homem?
- Quem? - quis saber o capitão Donald num fio de voz.
- Ben Lauritz.
- Mas ele está em Volgogrado e conserta jantes de tractores.
- Deve cometer uma parvoíce propositada, deixar-se prender e confessar que é um espião americano. E deve dizer que esteve em Verkokrassnoi. Os Russos farão marcadas referências à prisão, omitindo naturalmente Verkokrassnoi, e
- Orwell ergueu a voz - Washington irá especular sobre o assunto. Os Soviéticos adoram fazer-se vítimas. A confissão de Ben será transmitida pela televisão e pela rádio, para que todo o mundo veja como os Americanos são pérfidos. Nessa altura, Ben (será uma mensagem de vida ou de morte) deixará escapar o nome de Verkokrassnoi. Os Russos não conseguirão cortar a emissão com a rapidez necessária. E é aí que reside a nossa esperança. Meu Deus! Permiti que Bob também ouça esta mensagem pela rádio ou que alguém lhe fale nisso. Então, ficará a saber que tem de regressar! Era essa a grande ideia - concluiu Orwell, fechando os olhos.
E agora envergonhemo-nos todos durante dez segundos, antes de darmos a ordem de sacrifício dirigida a Ben Lauritz, em Volgogrado.
- Devia ouvir, Vassia Grigorevitch! - disse o major lankov uma noite de sábado, em que Chukov voltou a aparecer-lhe para uma partida de xadrez. Apesar da hora tardia, a médica trabalhava ainda na enfermaria. O Dr. Fediunin já não compreendia o mundo e muito menos as mulheres, pois as quarenta camas tinham sido repentinamente ocupadas. Os doentes e os feridos recebiam um tratamento intensivo, os mesmos que ainda há três dias Valia loanovna tinha mandado para a pedreira, sem mesmo se dignar a vê-los.
Toda a sua personalidade se modificara. Actuava segundo o padrão em que se enquadrava à primeira vista... mais terna, suave, impelida por emoções secretas. Uma mulher que tinha contemplado o céu e que agora conhecia todas as estrelas. Fediunin não tinha outra explicação para além da velha fórmula de que «com as mulheres nunca se sabe». São mais impenetráveis do que um pâncreas! Também neste órgão se verificam alterações, mas quando se dá por elas já é tarde demais. Esperara uma tempestade quando Chukov lhe tinha dito que a médica não mais deveria proceder à selecção e, na manhã seguinte, comunicara-lhe cautelosamente que o chefe dos médicos de Novo Sosnovka se chamava Dr. Fediunin e não Vuginskaia. No entanto, que reacção teve afinal? Interrompeu-o e replicou num tom suave: «Já sei disso.» Em seguida, sentou-se à secretária e, decorridos vinte minutos, todas as camas da enfermaria se encontravam ocupadas. Todos os que necessitavam de cuidados, embora fossem capazes de trabalhar, foram chamados depois do turno de trabalho... Uma coisa única, totalmente inacreditável, que levou a que no acampamento se interrogassem sobre quem teria morrido em Moscovo, ou quem dirigia um novo curso. Outras explicações não eram, muito simplesmente, de acreditar.
- O que é que eu devia ouvir?-perguntou Chukov sentando-se por detrás do tabuleiro de xadrez. A rádio transmitia música popular do mar Baikal. - Desta vez é Beethoven ou Tchaikovski?
- Nem um nem outro. Volgogrado. Uma confissão pública. Uma coisa absurda, camarada - respondeu lankov bebendo um gole de vinho e empurrando um maço de Papyrossi na direcção de Chukov. - Transmitido para todo o mundo pela rádio e pela televisão. Um novo escândalo. Ah! Mais uma vez provaremos ao mundo inteiro os canalhas e criminosos de guerra que são os Americanos.
- Os Americanos? - incitou Chukov, ao mesmo tempo que acendia um Papyrossi sem que a mão lhe tremesse. O que se passou? Não faço a mínima ideia. O que é que os capitalistas magicaram desta vez?
- Apanhámos peixe grosso. Um espião americano! Há um ano que está a viver como operário de uma oficina de tractores em Volgogrado. Comunicaram a notícia há três horas. Prenderam-no ontem. E a partir daí tem estado a confessar publicamente na rádio e na televisão. Parece disposto a dizer tudo. É um pontapé nas canelas do Ocidente! Aqueles canalhas!
- Já anunciaram o nome do americano? - inquiriu Chukov despreocupadamente.
- Claro! E, agora, decerto que na América andam todos nervosíssimos. O tipo chama-se Ben Lauritz.
Ben! O pequeno Ben, conhecido pela alcunha de o Esquilinho pois, em todos os exercícios nas florestas, era sempre o primeiro a chegar ao cimo das árvores e sabia trepar como nenhum outro colega do curso. Ben que, de início, não fora aceite no destacamento especial por medir apenas um metro e sessenta e cinco e que depois aplicou um golpe de rins ao primeiro-sargento Humpry, que o impossibilitou de andar direito durante três dias. Ben, que uma vez dissera: «Fico três anos como agente na Rússia. Em seguida, todos me vão lamber o cu. Depois caso. dedico-me à fazenda de amendoins do meu pai e só penso em pescar salmão e fazer filhos.
Chukov bebeu um gole de vinho. Exteriormente mantinha-se calmo, descontraído, sereno, à excepção da indignação que todo o russo denota sempre que um espião americano é desmascarado. O major lankov tinha disposto as peças no tabuleiro e esfregava as mãos.
- Como me cabe a desforra, sou eu a começar. Desta vez, não me vence, Vassia Grigorevitch!
- Quando é a transmissão pela rádio?
- Daqui a uma hora mais ou menos. Até lá, ainda tenho tempo de lhe dar xeque-mate. Uma aposta? Estou bem-disposto! Este êxito da nossa contra-espionagem! Darem a volta a um agente de primeira dos Americanos...
«Darem a volta ao Ben1? Impossível! Devem-no ter enchido com drogas para que dissesse tudo o pretendido. Será meramente um boneco falante. Nas presentes circunstâncias confessará mesmo ter tido uma relação homossexual com Kissinger. Depois de se ter desprovido um homem de vontade própria, pode-se-lhe arrancar o impossível. Só pode ser assim... Mas dar a volta ao Ben? Nunca, meu caro lankov!»
O rádio continuou a transmitir música popular do mar Baikal. De vez em quando havia uma interrupção por uma locutora que anunciava melodicamente que, dentro em breve, se transmitiria a confissão do espião americano. O major lankov acolhia cada uma destas declarações com um grunhido sonoro e satisfeito.
- Agora a CIA deve estar toda borrada! - afirmou no meio do jogo.
- Concordo. Não deviam estar a contar com isto.
- E esse porco do americano irá desaparecer na Sibéria!
- Acabarão por o trocar após um certo tempo - observou Chukov num tom pausado. - Acontece de vez em quando, Vassili Mikailovitch. Todos os Estados têm alguns espiões de reserva a fim de regularizarem elegantemente este tipo de eventualidades...
- E não acha uma pulhice, Vassia Grigorevitch? Deviam abatê-los todos a tiro!
- Pense no facto de que a nossa gente também regressa à Rússia por este processo. A espionagem assemelha-se ao nosso jogo de xadrez, lankov. Algumas vezes recebe você o xeque-mate, outras eu... e outras há em que lhe tiro todas as figuras e outras é você que o faz. E, em seguida, voltamos a pôr tudo nos devidos lugares e o jogo continua. A diferença reside em que a acção não vale dez copeques, mas a paz mundial.
- Vivemos num mundo louco, não acha? - retorquiu lankov assumindo um tom filosófico. - Puxou pensativamente o fumo, bebeu um gole de vinho, examinou o tabuleiro de xadrez e reconheceu que não há uma só geração que viva segundo as leis da lógica. - Nós os dois nada podemos mudar, Vassia Grigorevitch - acabou por concluir.
- Claro que não.
A emissão de música popular chegou ao fim. lankov recostou-se na cadeira e apontou para o rádio.
- Deve ir agora para o ar! Só de pensar que todo o mundo está a escutar! Que situação ridícula para os Americanos.
Falou um locutor. Informou que se iria estabelecer a ligação com Moscovo. Faltavam apenas dez segundos para a audição do americano Ben Lauritz, em Volsoerado...
«Faz boa figura, Ben», pensou Chukov, ao mesmo tempo que bebia serenamente o vinho. «Saberei imediatamente, ao ouvir-te, se te encherem de drogas. Conheço a tua voz, a entoação. Estamos todos contigo, Esquilinho...»
Rádio Moscovo. A informação de que estavam ligados a cento e trinta e quatro postos emissores. Em seguida, a comunicação com o grande salão de audiências do Palácio de Justiça de Volgogrado. Ruídos de vozes, o bater das chapas das máquinas dos repórteres e o barulho das câmaras de filmar. Ben Lauritz já se encontrava, por conseguinte, no salão de audiências, atrás da barra, e dava a sensação de sorrir. Será que se aperceberia para o que estava a servir?
- Quem me dera agora um aparelho de televisão! - queixou-se lankov. - Gostava de ver tudo o que está a acontecer.
- Também eu! - respondeu Chukov com sinceridade. Calou-se abruptamente. Um locutor fez um breve resumo
do que decorrera até esse momento. Tinham prendido Ben Lauritz quando fora surpreendido a radiotelegrafar secretamente no acampamento. Um capataz e um operário haviam-no visto e telefonaram à milícia. Ben tinha-se deixando prender sem oferecer resistência e admitido tudo.
Chukov pegou noutro cigarro e conservou-o entre os lábios sem o acender. «Há qualquer coisa que não joga bem!», pensou imediatamente. «O Ben não é parvo! Radiotelegrafar em plena fábrica de tractores, onde toda a gente entra e o movimento se assemelha ao da Broadway! há; qualquer- coisa por trás! No final do curso, Ben obteve a classificação de 1,7... colocou-se entre os primeiros dez. E, de súbito, faz uma imbecilidade destas?»
- Agora vão interrogar o nosso homem - disse o major, lankov oferecendo lume a Chukov. Mostrava-se tão agitado como um corredor de sprint antes do tiro que anuncia a partida. - Vai ser de estalo!
E aconteceu realmente. Chicotadas após chicodadas -. Pergunta, resposta. Suposições, explicações. Era surpreendente tudo o. que Ren Lauritz ali dizia.
- Chama-se? – ouviu-se alguém perguntar. Era um coronel da KG-B, como o locutor tinha previamente anunciado.
- Ben Lauritz - surgiu a resposta num tom calmo.
- É americano?
- Sou natural da Jórgia,
- Tem a patente de major?
- Sim,
- É membro da CIA americana?
- Sim.
Chukov continuava a fumar, de olhos fixos no tecto de madeira. «O que se passa, Ben?», pensava. «A tua voz tem a clareza de sempre. Não soa a drogas nem a lavagem de cérebro. Não faças disparates, Ben! Não te deixes levar pelo medo! Vais regressar! Farão a permuta! Nunca tiveste medo, Ben! Não acredites no que te contaram, Ben! Não apodrecerás na Sibéria!»
Ben Lauritz continuou a falar. Mal soava a pergunta, dava a resposta como que em ricochete.
- Tinha a missão de fazer espionagem na União Soviética?
- Sim.
- Tinha a missão de observar em Volgogrado a evolução dos carros blindados e telegrafar informações?
- Não.
O coronel da KGB deu a sensação de ficar admirado. Seguiu-se uma pausa. O zumbido das câmaras de filmar era agora o único som. Não? Como não? Durante o interrogatório a que se procedera na noite anterior, tudo tinha ficado esclarecido. Nessa altura, Ben Lauritz prometera dizer toda a verdade. Haviam-lhe oferecido, como troca, ficar nas proximidades de Moscovo, num campo de espera até se verificar a permuta. Uma espécie de lugar de cura em tudo semelhante à Sibéria.
- Não? - A voz do coronel da KGB aumentou de intensidade. - A missão da CIA era, no entanto, bem definida! Introduziu-se na Rússia sob o disfarce de um operário soviético, conseguiu um lugar em Volgogrado e trabalhava ali há um ano!
- Tudo isso é verdade! - retorquiu Ben Lauritz. Chukov mordeu o lábio inferior e o major lankov resfolegava de excitação e surpresa. - Mas falta o resto. Tinha mais missões a desempenhar...
«Enlouqueceste, Ben», gritava o íntimo de Chukov. «Ben! Rapaz! Cala a boca!»
- A minha missão principal... - e Ben passou a falar rapidamente e com grande clareza, articulando perfeitamente as palavras, do que Chukov se deu imediatamente conta ...era chegar à nova base de foguetões de Verkokrassnoi. E consegui! Está cumprida! Totalmente cumprida!
- Bravo, rapaz! - elogiou o general Orwell nesse mesmo instante em Fort Palmos. - Saíste-te maravilhosamente! Agora, podes contar o que quiseres.
A sala estava a abarrotar de oficiais da CIA. O interrogatório estava a ser transmitido pela televisão, via Cuba. Encontravam-se montados na sala quatro grandes televisores a cores. A imagem estava tão nítida como se Ben estivesse na frente deles, como se agora fosse possível apertar-lhe a mão por este golpe de mestre. Os oficiais aplaudiram, até que Orwell fez um aceno de cabeça.
Todos viram claramente a camisa de onze varas em que o coronel da KGB se metera. Uma situação fatal para a sua carreira, na medida em que agora o mundo inteiro sabia que em Verkokrassnoi existia uma nova base de foguetões. Um dos maiores segredos da União Soviética acabara de ser desvendado. Cortar a ligação e fazer referência a uma avaria técnica era ilógico.
Ben Lauritz soltou uma breve gargalhada, que as câmaras televisivas apreenderam. E, em seguida, acrescentou algo que ninguém tinha esperado:
- Com isto podemos finalizar a emissão. Vou calar a boca e se me torturarem...
A avaria técnica entrou em cena. A imagem desapareceu. Igualmente na rádio a voz do locutor soou num tom que procurava abafar a perturbação: «Uma avaria inesperada do posto de ligação Volgogrado-Moscovo obriga-nos, infelizmente, a interromper o interrogatório. Passamos a transmitir música de ballet de Borodine e Glinka.»
- Merda! - desabafou o major lankov. - Agora que se estava a tornar interessante. Ouviu o que ele disse? O tipo esteve em Verkokrassnoi.
Chukov fez um aceno silencioso de concordância. A oração que Orwell fizera, tinha sido ouvida. Bob Miller não só escutara a emissão como compreendera a intenção. «Tudo está cumprido!», dissera Ben muito claramente. Fora a mensagem por que se sacrificara. «Querido, leal e pequeno Ben... se nos voltarmos a ver, dou-te um beijo como se fosses a mais atraente de todas as mulheres.» Chukov não acreditava nem por um momento que Ben Lauritz tivesse estado realmente em Verkokrassnoi. Sabia que um único homem estava a caminho da base de foguetões, solitário como um enorme lobo-cinzento. E esse homem era ele, Vassia Grigorevitch Chukov!
A rádio transmitia música de Borodine. lankov baixou o som do aparelho e voltou a dedicar a atenção ao jogo de xadrez. Mostrava-se visivelmente irritado com a interrupção do sensacional interrogatório.
- Dou-lhe xeque-mate em três jogadas! - explodiu.
Quer uma aposta?
- Acredito que seja capaz, Vassili Mikailovitch. Já não estou em forma.
- Sente-se tão irritado como eu por causa da interrupção, certo? Um porco daqueles! Infiltrar-se em Verkokrassnoi! Um tipo assim devia ser abatido e não trocado. Com os conhecimentos que agora tem!
- E precisamente isso que me faz deixar de estar em forma! - justificou-se Chukov, erguendo-se. - Desculpe-me, Vassili Mikailovitch. Não sou capaz de continuar com o jogo. Amanhã à noite dou-lhe a desforra. Vou para a cama.
- Desconhecia inteiramente que era tão bom patriota, Vassia Grigorevitch! - elogiou o major lankov apertando as duas mãos de Chukov. - Vou deixar o tabuleiro tal como está.
- Faça isso - concordou Chukov, voltando a cabeça na direcção do rádio, de onde ecoava uma música arrebatadora e vibrante. - Glinka?
- Exacto. O grande bailado Ruslan e Ludmila.
- Maravilhoso! - retorquiu Chukov, ao mesmo tempo que avançava, lentamente, até à porta. - Um admirável bailado de morte...
Deu meia volta e saiu do quarto.
Diante da porta respirou fundo. Os últimos minutos tinham representado um enorme esforço de controlo de nervos. Estar despedaçado por dentro e não poder demonstrar é mais desgastante do que um esforço físico. Devia ter acontecido, algures, qualquer coisa de terrível que fizera com que Ben Lauritz se sacrificasse aos Soviéticos... Apenas para estabelecer contacto com ele, Bob Miller-Chukov. A mensagem não podia ter um significado diferente. Dado não existir um processo mais fácil de chegar a Bob Miller, houvera que deitar a mão a este recurso desesperado. Tivera de se preparar algo de sensacional, que se soubesse em toda a União Soviética. Só assim havia hipótese de que Bob Miller tomasse conhecimento daquela importante informação que Ben Lauritz pronunciara pela rádio no final do interrogatório: «...a nova base de foguetões em Verkokrassnoi... está cumprida. Totalmente cumprida...»
O facto significava, traduzido na ordem a Bob Miller: «Interrompa imediatamente a sua acção, não se preocupe mais com a base de foguetões e entre o mais rapidamente possível em contacto connosco, pois precisamos impreterivelmente da sua presença noutro local!»
Vuginskaia continuava a trabalhar na enfermaria. Chukov encontrou o quarto vazio. Quando espreitou para o edifício baixo e comprido, ’avistou, por entre a cortina de chuva, a janela iluminada da sala de observações e operações.
O Dr. Fediunin estava feito em tiras. Era a primeira vez que a enfermaria do campo entrava verdadeiramente em acção. Admirou-se dos meios que possuía e tudo o que se podia utilizar. Também a mesa de operações voltara a servir, decorrido longo tempo. O lugar de trabalho preferido de Fediunin tinha sido, até esse momento, a mesa de autópsias, instalada na sala ao lado. Vuginskaia rebentava furúnculos, tratava de feridas antigas, descuidadas, purulentas e escutava, pacientemente, as queixas dos homens, que não lhe descreviam doenças visíveis porque habitavam o interior do corpo. Neste campo o Dr. Fediunin mostrara sempre uma desconfiança enorme, porque o que não se vê é, no mínimo, semi-real. Dores no baixo-ventre, no peito, na cabeça, nas costas, nos ombros ou no estômago, qualquer as pode fingir e os presidiários eram actores exímios. Andavam aos tombos.
aparentemente eram a imagem da morte em pé, mas quando, mais tarde, estavam deitados na enfermaria do campo, riam como imbecis. Era voz corrente que o Dr. Fediunin apenas dava como doentes aqueles cujo sofrimento era manifesto. Uma úlcera no estômago ou uma tuberculose não pertenciam a esse número... só eram reconhecidas como doenças quando os doentes estavam próximos do fim. No momento da autópsia, o Dr. Fediunin regozijava-se com os preparativos aprendidos em compêndios.
Vuginskaia actuava de uma forma totalmente diversa!
Apalpava, auscultava, testava reflexos, escutava os ruídos interiores do corpo, fazia análises ao sangue e à urina
- o que levava o Dr. Fediunin à íntima convicção de que o laboratório, até aí completamente inútil, entraria em actividade - e ia ao ponto de colocar os presidiários na balança para verificar o peso.
Era uma coisa que Fediunin considerava realmente exagerado e inútil.
- Respeito os seus motivos, Valia loanovna - observou num intervalo dos exames, que aproveitaram para fumar um cigarro. - Mas pesá-los! Aqui não é uma estância de engorda!
- Cada presidiário deve manter a impressão, de que não deixou a qualidade de ser humano - respondeu-lhe calmamente, soprando o fumo através dos lábios proeminentes, na direcção do tecto. Estava irresistível e Fediunin amaldiçoou-se por ser um homem tão horrível, que apenas conseguisse despertar pena numa mulher como Vuginskaia. - Nesse aspecto também se encontra incluído o peso. Agora, todos pensam que, em breve, receberão uma alimentação melhorada.
- Ah! É isso então! - exclamou Fediunin, olhando-a fascinado. - Um pouco de encenação para o espírito, um pouco de ilusão! Um requinte, Valia loanovna! O moral para trabalhar será elevado por essa crença! E eu que já estava a pensar...
- O que estava a pensar, camarada? - aquela «camarada» soava tão frio e numa colocação de distâncias como que pronunciado através de uma parede de vidro. O Dr. Fediunin ajeitou os óculos de aros metálicos. Esta mulher conseguia esmagá-lo com uma palavra.
- Receei que levasse demasiado à letra o decreto de Gulag. Transpira humanidade, mas é irrealizável. Conversa ideológica... devemos fazer uma universidade de todos os campos de concentração? Pergunto a mim mesmo o que acontecerá? Está a habituar os presidiários a um método de tratamento, mas a verdade é que um dia seguirá viagem para Ottok. Podia dizer: «Ponto final! Aqui o chefe dos médicos sou eu. Você está apenas de visita, detida neste local devido à chuva. Nada tem que meter o nariz na enfermaria! Está a interferir de uma maneira inconcebível!» Contudo, nada digo de semelhante. Considero a sua passagem por Novo Sosnovka como o voo do ganso selvagem. Caiu do céu, esteve de passagem e desapareceu no infindo azul. Só que o momento em que pairou sobre nós é maravilhoso e arrebatador.
- Acho que se repete muito! - retorquiu Vuginskaia, atirando o cigarro para o chão e esmagando a ponta com o bico do sapato. - Devia escrever acerca disso, Fediunin. Não apenas sobre relatórios de autópsias. Na minha opinião, podia chegar a poeta!
- Quem me iria ouvir? - queixou-se em voz baixa, com um sabor a tragédia.
- Isso é um problema de todos nós - replicou com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo que batia as mãos com força e se levantava de um salto da cadeira. - Continuemos. O seguinte, Piotr!
Piotr era o enfermeiro, um de seis que lá fora, na pedreira, se tinham transformado em heróis desconhecidos. O que o Dr. Fediunin descurava, tentavam-no com os primitivos meios ao seu alcance. Tinham ”salvo vidas de seres humanos e ninguém se apercebera que assim era.
O seguinte. Uma palavra inteiramente nova no campo.
Como se se tratasse de uma verdadeira consulta médica.
O que se passa, irmãozinhos? De onde chegam as novas ordens? Procuram obter-se informações... deve ter realmente morrido um dos grandes de Moscovo...
Há muito que as linhas telefónicas tinham sido destruídas pela chuva torrencial. O rio, de momento um mar vasto, de onde se erguiam as-árvores da taiga, quais algas gigantescas, tinha vergado e destruído os postes. Os cabos eléctricos também haviam deixado de produzir corrente. Algures, na imensidão das águas, em qualquer estação geradora, tinha ocorrido um curto-circuito, que mergulhara toda a região de Ottok no escuro. Da estação principal de lakutsk, tinha-se cortado a corrente de toda a região a fim de evitar acidentes por electrocução.
Novo Sosnovka não ficou privada de luz por esse motivo. Era a vantagem de se ter um campo de concentração nas proximidades. Para casos de emergência tinha-se construído um gerador próprio, movido a gasolina. E gasolina era coisa que não faltava em armazém. Até esse momento não era a chuva nem o corte normal de corrente que iriam levantar dificuldades.
No campo, os projectores continuavam a brilhar, em todas as barracas e casas havia luz e também as ligações telefónicas no interior do acampamento continuavam a funcionar, na medida em que havia instalações domésticas que recebiam energia de uma grande bateria. Apenas as ligações com a cidade e, por conseguinte, com o exterior estavam inutilizadas. A ligação pela rádio era a única possibilidade de contacto com o exterior.
O major lankov encarava a situação despreocupadamente. Chegou mesmo a dizer a Chukov:
- Não posso telefonar. Muito bem! Também não posso receber chamadas. Melhor ainda! A melhor vida que se pode levar na Rússia é a que não se encontra sob vigia!
Nesse momento, Chukov serviu-se da ligação interna para comunicar com a enfermaria. A informação de Ben Lauritz tinha-o afectado mais do que queria dar a entender. Não que tivesse estado particularmente interessado em chegar sem falta a Verkokrassnoi... O caminho até lá era uma estrada infernal, já o sabia de início, e o facto de lhe poder fugir era razão para cantar Aleluia. Contudo, a maneira como o tinham chamado de volta, aquele acto desesperado de sacrificar Ben Lauritz para o informar, suscitava o pânico. Tirou todo o descanso a Chukov. Foi a primeira vez que quebrou um dos princípios básicos da sua profissão: «Mantém-te invisível! Em silêncio! Contacta apenas quando em caso de extrema necessidade.» Ou como o general Orwell expressava: «Quando tiverem água até ao pescoço... ainda podem respirar! Quando a água chegar à boca... ponham-se em bicos dos pés! Dêem apenas o alarme quando se estiverem a afundar!»
Para Chukov, este ensinamento deixara de ter qualquer validade na actual situação. Precisava de informações. Quando se dava Beri Lauritz aos Soviéticos como pasto é porque a água - segundo a linha de raciocínio de Orwell - já tinha chegado aos olhos.
Na enfermaria, o Dr. Fediunin foi atender o telefone.
- Ah! E você, Vassia Grigorevitch? - disse. - Estava a pensar que o bom e antigo Deus nos ia telefonar a dar os parabéns. Não pode fazer uma ideia do que está a acontecer por estes lados.
- O que está a fazer Valia loanovna? - perguntou Chukov.
- Precisamente a rebentar um furúnculo do tamanho de um punho. E no corredor há ainda catorze doentes à espera.
- Ainda demorará?
- Até que Valia vá ter consigo? Decerto ainda umas duas horas. Esta mulher não sabe muito simplesmente o que é o cansaço! Consegue entender? Só de a observar sinto-me totalmente esgotado. Quer alguma mensagem para Valia?
- Não - respondeu Chukov, respirando fundo. - Não havia melhor oportunidade do que esta para entrar em comunicação com Calina Teofilovna, no Hotel Sibir. - Vou ler qualquer coisa e ficar à espera.
- Só tem o que merece! - concordou o Dr. Fediunin com uma risada. - Tramou tudo com a sua teimosia. A sério que me sentirei contente quando a chuva parar ou chegar a geada e puderem desaparecer todos novamente de Novo Sosnovka.
- Também eu - retorquiu Chukov bem do fundo. Também eu!
Em seguida, pousou o auscultador, tapou a janela com a cortina, foi buscar o saco de viagem ao canto do quarto e tirou do saco de plástico o pequeno emissor metido no radiotransístor. Puxou a enorme antena para fora, marcou no emissor a onda de frequência de Galina Teofilovna e rodou em seguida o botão do emissor.
Soou a chamada combinada em russo: s
«POMBA! POMBA! POMBA! POMBA!...»
Rodar da antena. Soaram ruídos no alto-falante, as perturbações atmosféricas interferiram e fizeram-se ouvir, soou entretanto o barulho de outros emissores de ondas curtas que se encontravam no âmbito da mesma frequência. No entanto, Galina Teofilovna manteve o silêncio. A esta hora, há muito que estava no quarto e a perfumaria do Hotel Sibir estava fechada. Também devia ter ouvido a transmissão de Ben Lauritz, ou mesmo visto na televisão, e havia uma ordem expressa de Orwell para se estabelecer contacto com Chukov.
Antena para trás. A tecla do emissor. «POMBA! POMBA! POMBA!»
Colocação para receber. Chukov enfiou o cabo dos pequenos auscultadores no aparelho, a fim de poder distinguir os sons mais facilmente. Regulou a emissão em fracções de milímetros, procedeu à mais perfeita sintonização de que foi capaz e escutou, atentamente, os inúmeros ruídos. Irkutsk estava longe... Se conseguisse realmente contactar Galina Teofilovna, seguir-se-ia uma espécie de entendimento cochichado. Também nada mais queria do que saber porque é que tinham sacrificado Ben.
Chukov sentiu-se como se lhe tivessem aplicado um golpe de karate na nuca quando escutou nas suas costas a voz fria de Vuginskaia. Não tinha dado pela sua entrada; não ouvira passos nem bater à porta. Toda a sua atenção auditiva estava concentrada nos barulhos que pairavam no éter... O Dr. Fediunin dissera que ela só dali a duas horas estaria livre. Contudo, comunicara-lhe imediatamente, como é óbvio, que Chukov tinha telefonado. Com um pouco de malícia mesmo: «O pobre sente-se tão só no quarto vazio...»
- O que estás a fazer aí? - perguntou Valia loanovna da porta, empregando um terceiro tipo de voz: entre o dominador e o arquejar ansioso erguia-se uma frieza e agudeza de aço. - Vassia...
Chukov tirou o auscultador do ouvido e desligou o emissor. Em seguida, voltou-se lentamente na sua direcção e olhou-a em silêncio com a característica expressão sonhadora.
- Isso não é um rádio! - declarou sibilina. Tinha o rosto contorcido e os lábios tremiam-lhe.
- Não. Não é - concordou, tenso.
- É um pequeno emissor...
«Exactamente a mesma situação de com Dunia Andreievna», pensou. «E, no entanto, completamente diversa. A Dunia atacou-me, lançou-se contra mim, bateu-me e beijou-me e estava disposta a morrer comigo. Depois ainda me ajudou a fugir de Frazertown num camião do lixo. Era um amor até às últimas consequências.»
E, agora, Valia loanovna. Mantinha-se diante da porta, pequena, estrondosamente bela, mas com todo o corpo retesado, qual pantera pronta a desfechar o salto de morte. Nos olhos não lhe brilhava clemência ou tão-pouco compreensão. Nem sequer a sombra de uma dúvida, que devia estar ligada a uma tal eventualidade, era visível. ~~ - Há quanto tempo estás aí? - perguntou-lhe serenamente.
- Desde que puseste o auscultador no ouvido. Fediunin disse-me que tinhas telefonado. «Oh! Ele está com saudades minhas», pensei e corri imediatamente para o teu lado. Vim encontrar-te ajoelhado no chão, utilizando um emissor secreto! Vassia...
- O que queres saber?
- Disseste-me uma vez: «Não nos podemos amar. Tenho Uma missão mais importante do que o nosso amor.»
- É verdade.
- É essa a missão? - quis saber, apontando para o pequeno emissor.
- Sim.
- Quem és?
- Vassia Grigorevitch.
- Quem és realmente? - gritou, aproximando-se com um olhar semelhante ao de uma fera. Cintilante, faminta, cruel. - Quem és? De lakutsk a Ottok. De Ottok a Verkokrassnoi! É esse o teu caminho?
Estava a tornar-se perigoso. A voz fria e clara ecoava no quarto. Impeliu Chukov a uma resolução desumana.
- O que sabes de Verkokrassnoi? - perguntou.
- Tanto como tu. No entanto, tu vais a caminho de saber tudo. Não é verdade? Para quem? Um russo atraiçoa a sua pátria! Um russo! Deviam abatê-lo a tiro!
A última possibilidade, a última saída, uma última e pequena ponte através da qual havia a fuga.
- Amas-me, Valia loanovna? - perguntou ternamente.
- Amo a Rússia! Vassia! Porque o fizeste? A nossa Rússia!
- Lançou-se-lhe como uma gata eriçada, mas ele agarrou-a e atirou-a para cima da cama. À exacta semelhança de uma gata, voltou a erguer-se rapidamente e de novo saltou sobre ele.
- Matar-te! - explodiu num grito infernal. - Abater-te a tiro é o que te farão! Quem és? Quem és?
A decisão tornara-se inabalável. «Pensa sempre que só há uma vida!», dissera Orwell. «Agarra-a bem! Ninguém te irá oferecer outra!»
- Sou Bob Miller - respondeu Chukov.
- Um... um americano...
- Um americano. Os olhos arregalaram-se-lhe. Chegara a percepção –o total desabamento de todo o seu mundo interior. Compreendia todo o jogo, em que apenas tinha sido uma peça. A mentira. A traição.
Deu um salto com a intenção de chegar à porta e dar o alarme. No entanto, e simultaneamente, a mão direita de Chukov desabou sobre a bela nuca de Vuginskaia. Seguiu-se um barulho horrível e um estalo. Era um golpe mortal que tinham praticado na América em tábuas de madeira, macacos e finalmente até em tijolos. Valia loanovna caiu, sem um gemido, como se todos os ossos do seu corpo se tivessem pulverizado. Nem sequer se ouviu o ruído do embate no soalho... Escorregou como algo sem peso e ficou aos pés dele, com os olhos abertos, se bem que o gelo da morte não tivesse apagado os reflexos dourados das pupilas.
Chukov não precisou de muito tempo para pôr tudo em ordem. Empacotou novamente o emissor, embrulhou
Valia loanovna numa das capas de oleado amarelo, pendurou o saco de viagem ao peito, ergueu o corpo sem vida de Vuginskaia aos ombros e pegou na mala.
À porta, olhou para todos os lados. Não era necessário.
Aquela hora, toda a gente dormia.
O corredor apresentava-se vazio e imerso em escuridão. Com o mínimo de ruído possível avançou às apalpadelas até à porta, puxou o fecho para baixo com o cotovelo esquerdo e saiu para o ar livre. O acampamento estava iluminado pelos feixes dos projectores instalados nas torres de vigia. A parte militar estava mergulhada no escuro.
Chukov rodeou com a mão direita o corpo da mulher, que levava, aos ombros e enfrentou a. chuva impiedosa. Não correu... avançou como um homem cansado que não pode desistir de fazer o seu trabalho.
Dados alguns, passos, já tinha desaparecido na noite e na chuva. Há sete anos quando se erguera o campo de concentração nas redondezas de Novo Sosnovka, os primeiros colonos presidiários tinham construído uma estrada segura entre o acampamento e a aldeia. Uma boa estrada, bastante metida na terra e’ alcatroada com pedras que tinham sido partidas na pedreira à força de mãos, debaixo de pragas, gemidos, dores, desmoronamentos e mortes por desfalecimento. Passou a ser o único caminho seguro na região, quando os períodos dos lamaçais começavam na Primavera e no Outono e o país se transformava num pântano.
Era por esta estrada que rolavam os camiões do acampamento transportando, com suportes especiais, os troncos de árvores cortados na taiga, até ao rio Tiugania, onde eram carregados em jangadas e depois empurrados na direcção do rio Viliu, que os levava por sua vez até ao Lena, o grande rio da Sibéria. Ali, no sítio em que o Viliu desembocava no Lena, junto à aldeiazinha de Arita, apanhavam-se os troncos, amarravam-se a enormes colunas e levavam-se em potentes barcos de arrasto até às gigantescas fábricas de lakutsk. Na falta de utilização da estrada segura era impossível para Chukov chegar ao rio, patinhando na lama, carregado com Vuginskaia às costas e a bagagem na mão. O rio constituía a única hipótese de fuga. De uma fuga rápida, pois quando, na manhã seguinte, se descobrisse que tanto Vuginskaia como Chukov faltavam, o major lankov daria de imediato início a uma acção de busca. De forma alguma incitado pela suspeita de que qualquer monstruosidade política se havia passado, mas pura e simplesmente preocupado que Valia loanovna e Vassia Grigorevitch tivessem ido dar um passeio cedendo ao impulso do amor, e apesar do mau tempo, podendo ter-se perdido. Que outra explicação restava? Ultrapassava toda a capacidade de entendimento que duas pessoas tivessem muito simplesmente desaparecido do aquartelamento militar sem qualquer motivo.
Restava-lhe, pois, a estrada. Chukov atingiu-a depois de ter dado a volta pela casa da guarda, que bloqueava a entrada ao destacamento militar do acampamento.
Na casinha, ao lado da pedreira, tudo estava imerso na escuridão. Decerto diziam que com um tempo destes era esforço perdido estar de vigia junto da janela e ao longo da noite. Quem iria chegar ou partir. O que aconteceria? A terra estava ensopada, o rio transformara-se num mar infindo e tumultuoso e, caso anteriormente não se tivesse construído a aldeia e o acampamento sobre uma espécie de estrado, nessa altura todos estariam sentados nos telhados ou ver-se-iam obrigados a acampar nas florestas, acima dos barrancos. Os camponeses de Novo Sosnovka já tinham levado o gado para as alturas. Não confiavam no muro de protecção que se erguera contra o rio e, principalmente, no tempo, que naquele ano parecia ter enlouquecido.
Após ter chegado à entrada, Chukov ajeitou Vuginskaia mais aos ombros, agarrou o cadáver com o braço direito, voltou apegar na mala e interrogou-se, pelo espaço de momentos, se não seria preferível deitar a mala ao rio. O mais importante, o seu miniemissor, estava metido no saco que levava pendurado ao pescoço. Dentro dele havia igualmente alguns objectos de toilette, alimentos, uma farmácia portátil e um par de sapatos sobressalentes. A mala continha tudo o que uma pessoa normal precisa de levar consigo em viagem, principalmente se estiver predestinada a passar alguns meses na solidão. Continha o indispensável tabuleiro de xadrez para o Russo, alguns livros de esquerda e mesmo um conjunto de discos de música clássica, com a esperança de que também na Sibéria houvesse um gira-discos, na medida em que não há um só russo que não goste de música. Era uma mala com um fato sobressalente e dois bonés, luvas e um pijama de riscas azul-escuras, tudo característico de um cidadão normal que examinou a mala antes de ter sido alvo de qualquer tipo de suspeita.
Diante do que esperava Chukov, esta mala passava a ser um objecto inútil. O caminho para Verkokrassnoi, até à base de foguetões, exigia o disfarce perfeito. Tinha ido por água abaixo após Ben Lauritz ter confessado que já lá estivera. Fizera essa afirmação diante do tribunal soviético e Chukov recebera a mensagem. O caminho de volta a Irkutsk era, agora, a viagem de alguém que fracassara na Sibéria. Nos documentos oficialmente preparados, seria o próprio Chukov a declarar que por motivo de uma doença só agora observada sob outras condições climatéricas - um enfizema - deixara de poder estar na Sibéria e recebera ordens de regressar ao Centralburo. Para todos os funcionários da milícia que pudessem vir a pedir-lhe a documentação, o enfizema soaria como doença invulgarmente misteriosa e grave. Não se pode deter um camarada atacado de enfizema. Não se sabe, realmente, que tipo de doença é e se até se pega, mas deve tratar-se de qualquer coisa muito especial, na medida em que quem deixa de estar apto para viver na Sibéria, que pode aguentar todo o tipo de pessoas e de doenças, tem de ser forçosamente um camarada digno de pena.
Chukov seguiu ao longo da estrada, até avistar os contornos das primeiras casas de Novo Sosnovka. A chuva chicoteava-o, escorria pela capa de oleado em que tinha embrulhado o cadáver da companheira, entrava-lhe na manga, porque tinha de agarrar o cadáver ao ombro, e ensopava-lhe todo o lado direito. A água encontrava como saída a perna das calças ou saía-lhe, a cada passo, dos sapatos, semelhantes a uma pequena fonte. Para chegar ao rio, tinha de atravessar a aldeia- Era esta a única hipótese que lhe restava. Chukov deteve-se e fitou as casas como que desenhadas para lá da cortina de chuva. «Com este tempo e a esta hora», pensou, «é pouco provável que alguém ande pela rua, espreite pela janela ou faça outra coisa que não seja dormir.» E se, apesar de todos estes prós, alguém o visse?
Havia um discurso do general Orwell que ultrapassava tudo o que de bons discursos se podia considerar. Todos os participantes do curso na cidade fantasma do Alasca o tinham decorado: «Quem, na nossa profissão, se detém com medo, deve levantar-se imediatamente e ir vender queijo. Não que tenha qualquer coisa contra o queijo, pois como-o com agrado... mas o queijo é queijo e a vossa vida deixa de valer um pedaço de Camembert. Se pensarem ”se”... no preciso instante em que pronunciavam a palavra, falham...»
Chukov avançou com passada firme. Chegou às primeiras casas e atravessou a rua na direcção do dique e do rio. Não olhou para a esquerda nem para a direita. «Quem me quiser chamar, também o fará mesmo que o não veja», pensou. Dos celeiros e das casinhas de madeira ladraram alguns cães, pintando de vida o ruído monótono da chuva. Um dos cães, junto a uma das casas mesmo no centro da aldeia, parecia louco. Mordeu a corrente e fez um barulho tal que Chukov se espantou que, com uma algazarra daquela ordem, ninguém aparecesse para verificar o que levava o cão a ter aquele comportamento.
No entanto, não apareceu vivalma. A chuva, que caía ininterruptamente há semanas, tinha abafado os ânimos, eliminado reacções, submergido o quotidiano. Todos continuavam sentados à espera do gelo que afastaria o dilúvio. Em seguida a chuva cederia lugar à neve, a terra iria gelar e entorpecer o rio enlouquecido. E quando surgissem as tempestades de nordeste, sabia-se que o Inverno salvara a situação. Ficaria, como é óbvio, a marca da catástrofe da inundação. Milhares de quilómetros quadrados da floresta de taiga encontravam-se aprisionados nas águas geladas. A camada de gelo permanecia, mas debaixo dela escoar-se-iam as águas, o Tiugania voltaria a ser um rio normal e seguia-se o primeiro acto do espectáculo: a camada de gelo abriria fendas, descendo ao mais fundo do leito, por todo o lado iriam ouvir-se como que tiros de canhão, os troncos irromperiam do gelo, embatendo uns de encontro aos outros com uma espécie de grito que ficava nos ouvidos.
Assim será, mas ainda há chuva, camaradas! Uma chuva que tamborila de encontro aos telhados e às janelas! Espreguicem-se junto dos quentes fogões. A manhã cinzenta e sombria não demora a chegar!
Chukov continuava a avançar pelo meio da rua, mudando de vez em quando, com um movimento seco, o peso de Vuginskaia de um ombro para o outro. Era tão leve em vida como pesada agora depois de morta. «Também isto é um fenómeno», pensava Chukov. «Quando anteriormente a tinha diante de mim a rir, era capaz de lhe pegar pela cintura e de a erguer sem esforço. Elevava-se graciosamente no ar e gritava: ”Urso! Grande urso! Urso cheio de força!”» E pensava ainda que também Dunia Andreievna lhe tinha chamado urso e se tinha aconchegado nos seus braços: «Mas eu sou um tigre e um tigre é mais forte do que um urso!» Eram esses os momentos em que lhe ferrava os dentes nos braços, nos ombros, nos músculos do peito e lhe deixava todo o corpo marcado com as mordidelas dos dentes pequenos e aguçados. Chukov atravessou a aldeia adormecida, encontrou apenas um ser vivo que se atreveu a enfrentá-lo ao ar livre, um cão de pêlo eriçado que lhe rosnou, e sentiu-se irritado com aqueles latidos ruidosos. «Alguém tem de o ouvir», pensou. «Não há cão algum que ladre sem motivo. Até mesmo numa aldeia da Sibéria, quando um cão ladra, o avô mais coxo levanta a cabeça e adquire uma expressão dura. Algures, haverá uma pessoa que chegará à janela e me avistará.»
Nunca soube se tal aconteceu, mas o certo é que ninguém o chamou. Atingiu o dique que continha a torrente e deixou cair Vuginskaia dos ombros até ao chão rochoso. Ouviu-se um baque surdo, a capa de oleado abriu-se e a cabeça de Vuginskaia ficou à chuva. O cabelo negro de um metal brilhante tapava-lhe o rosto, principalmente os olhos e o nariz. Só a boca se lhe via... entreaberta, e mesmo depois de morta ainda com aquele traço de erotismo que dela se desprendia quando entreabria ligeiramente os lábios e percorria rapidamente a língua pelos dentes da frente e pelo lábio superior, para seguidamente esperar se esta sedução viperina era entendida.
Chukov tirou pela cabeça a correia a que estava preso o saco de viagem, deixou cair o fardo junto do corpo de Vuginskaia nas pedras e inclinou-se em seguida sobre ela, a fim de cobrir novamente o rosto de Valia com a lona. Percorreu o dique até ao sítio para onde a gente de Novo Sosnovka tinha puxado os barcos, longe do rio saído do leito e que até aí fora seu amigo e os sustentara com a sua riqueza em peixe sempre que as hortaliças e os pequenos campos cultivados de centeio não constituíam meios de subsistência bastantes.
Chukov escolheu um barco pequeno mas estável, virou-o e colocou-o em cima das costas, inclinadas para diante. À semelhança de uma tartaruga gigante que arrasta esforçadamente a sua pesada casca, Chukov transportou o barco até ao dique, junto a um local que lhe permitia empurrá-lo para as águas tumultuosas e selváticas do rio. Sentou-se arquejante na extremidade do barco, encharcado pela chuva, recuperou do esforço despendido com umas expirações profundas e regressou, seguidamente, até junto de Vuginskaia. Levou-a primeiro para dentro do barco, depois voltou atrás a buscar o saco, empurrou a embarcação, de bordo bastante alto, até à água e saltou lá para dentro, antes que a torrente impiedosa o levasse com ela.
Em poucos segundos, o rio arrancou-o à margem, atirou-o para a borbulhante vastidão de água, o barco oscilou e começou a girar sobre si próprio e Chukov necessitou dos maiores esforços para, com o auxílio dos remos, impedir que mergulhasse no turbilhão fatal. A pouco e pouco conseguiu chegar ao meio do rio, afastar-se da margem rochosa. Necessitou de todas as suas forças e quando, finalmente, se viu numa corrente rápida mas já não redemoinhante, recolheu os remos, inclinou o tronco para diante e ficou preso de uma prostração quase total.
Havia uma fusão de tempo e de espaço. A água e o escuro da noite eram um só, a margem esquerda apenas oferecia vagos contornos a Chukov e, à direita, estendia-se a planície aquática até às florestas, que davam a sensação de vogar quais algas gigantescas.
Chukov não soube quanto tempo permaneceu aprisionado dentro do barco. Apenas se ergueu quando se sentiu encharcado até aos ossos, dentro de água. Lançou a mala borda fora e em seguida ajoelhou-se e puxou Vuginskaia para cima da borda.
«Não pensar», dizia de si para si. «Deixa de pensar mais do que as forças te permitem, Bob! Mataste-a com um golpe de mãos e quando jazeu na tua frente com a cabeça pendente sentiste um baque no coração. Em seguida, disseste: ”Foi em legítima defesa.” Foi pura e simplesmente necessário. Não te teria perdoado - como outrora Dunia em Frazertown - pelo facto de seres um agente americano. Ter-te-ia enviado para a morte impiedosamente; por conseguinte, foi dentro de uma absoluta justiça que a mataste. Na nossa profissão de merda está em causa mais do que uma pessoa... trata-se de um povo inteiro. Trata-se do equilíbrio do poder, da libertação do medo, da sobrevivência pela astúcia dos fracos sobre os restantes. Atém-te a esta menina, Bob. Adapta-te às circunstâncias... e despede-te finalmente de Valia loanovna.»
Chukov cerrou os dentes. Servindo-se das duas mãos, agarrou Vuginskaia pela cintura, ergueu-a borda fora e em seguida mergulhou-a no rio. Como se ainda lhe quisesse dar uma vez mais um atestado de beleza, a capa de oleado abriu-se, formando como que uma jangada debaixo do corpo, e neste leito improvisado jazia, com os braços estendidos, a boca entreaberta que parecia chamá-lo... e manteve-se junto ao barco, sempre à tona de água, como se não se pudesse separar de Chukov.
Com uma exclamação surda, Chukov agarrou num dos remos do barco, e com ele empurrou três, quatro vezes, até a capa de oleado se afundar nas águas e fazer desaparecer a poça de ar que marcava o sítio fatal. O corpo de Vuginskaia virou-se e depois afundou-se no turbilhão envolvente. Contudo, esboçou uma última despedida a Chukov. A água mostrou-lhe ainda os braços, e a última imagem gravada no cérebro de Chukov, foram as palmas das mãos. Era como se lhe tivesse acenado, até finalmente os dois símbolos de dez dedos acabarem por ser tragados pelas águas.
Chukov voltou a recolher o remo, tirou os sapatos e começou a retirar a água que enchia o barco. Travava uma luta esforçada contra a chuva e o rio.
A ausência de Valia loanovna e Vassia prigorevitch ainda não tinha sido notada. O major lankov esperou uma meia hora para tomar o pequeno-almoço, riu em seguida com os seus botões, disse de si para si que não se deviam arrancar os apaixonados, que não conhecem horas às suas ilusões desta primeira fase, e bebeu sozinho o chá, comeu sozinho o pão com salsichas e foi dar uma volta pelo acampamento para escutar o relatório da manhã, como sempre acontecia.
Quarenta e três boletins de doentes internados. Cento e dois ambulatórios. O facto significava que os homens estavam deitados nas barracas e aqueciam-se junto aos fogões.
- Não é possível! - exclamou lankov ao analisar a lista. - Não pode continuar assim!
- Indicações da camarada Vuginskaia! - observou o jovem tenente que estava nesse dia de serviço no campo olhando de través para o telefone. - Liguei imediatamente para o doutor Fediunin quando recebi os boletins informativos. Ele disse-me precisamente estas palavras: «Deixe-me em paz, camarada tenente! Já não sou responsável pelo que quer que seja enquanto Valia loanovna estiver no campo. Não tem realmente qualquer autorização para se meter no âmbito médico deste acampamento. Não passa de uma hóspede entre nós. Contudo, explique isso a esta mulher! Nada há a fazer contra a sua vontade. É muito simplesmente como se nos matasse.»
- Muito bem, Leonid Lukanovitch - concordou o major lankov esboçando um gesto, o que fez com que o tenente respirasse de alívio. - Eu mesmo vou esclarecer este assunto. Mande sair da cama os cento e dois doentes ambulatórios e envie-os imediatamente para a pedreira
- Haverá problema - observou o tenente apreensivo.
- Os doentes irão marchar com grandes protestos e a camarada Vuginskaia certamente os ouvirá.
- Será informada. - O major lankov meteu a lista coom as informações médicas debaixo do braço e saiu. Passou junto do quarto de Valia, hesitou, mordeu o lábio inferior e prosseguiu caminho até aos seus aposentos. Dali, telefonou ao Dr. Fediunin para a enfermaria do campo.
O Dr. Fediunin já estava a trabalhar, ajudado por três enfermeiros. Vuginskaia dera baixa a 43 doentes que, para Fediunin, nada mais representavam do que um prazer na mesa de autópsia. No momento em que o telefone tocou, estava a limpar uma ferida enorme da barriga da perna.
- Já esperava por uma coisa assim, Vassili Mikailovitch
- retorquiu de imediato Fediunin, quando lankov se identificou. - Talvez seja mais forte do que eu e consiga aguentar durante mais do que uma hora o bombardeamento desta mulher possessa do demónio. No entanto, também acabará por ceder, lankov. Aposto consigo tudo o que é possível. Ou cede a esta mulher ou será destruído por ela. Enquanto ela permanecer por estes sítios, decidi submeter-me à sua vontade. É um mistério como Vassia Grigorevitch se consegue entender com ela. Na cama, ainda deve ser mais dominadora... Uma mulher capaz de arrancar o coração a um morto!
- Dei ordem de alta aos cento e dois ambulatórios, doutor Fediunin - anunciou lankov num tom obstinado. O tenente Senikev já vai a caminho.
- Vou desocupar-lhe imediatamente uma cama, Vassili Mikailovitch - tossicou o Dr. Fediunin, um tique que o caracterizava sempre que o atingia uma emoção violenta. Sofria, nessas alturas, a impressão de ter os brônquis atacados. - Não sairá ileso...
O major lankov pousou o auscultador sem lhe dar resposta, voltou a meter a lista de doentes debaixo do braço e dirigiu-se ao quarto de Valia. Bateu delicadamente à porta, não obteve resposta - o que também não tinha esperado -, abriu a porta, examinou o quarto e fez um aceno de cabeça ao verificar a cama por desfazer. Ficou parado diante da porta do quarto de Chukov, saboreando um pouco a emoção de ser um voyer, ainda que somente de ouvido, mas lá de dentro não lhe chegou qualquer ruído capaz de lhe dar a entender as primeiras horas da manhã de um homem viril.
O major lankov tossiu sonoramente, tão alto que quase se assemelhava a uma atitude de provocação. Em seguida bateu com os nós dos dedos na porta e ficou à espera.
Silêncio. Nem o afastar de cobertores, as palavras sussurradas, pés descalços percorrendo o soalho. Decerto o teriam ouvido: a porta era um pouco espessa e por debaixo havia uma frincha tão larga que era impossível não se aperceberem de uma presença no corredor.
- Camarada Chukov... - chamou lankov do outro lado da porta. - Vejo-me forçado a interromper o seu merecido sono. Se quiser fazer o favor de chegar cá fora... é um caso de emergência. - E, em seguida, acrescentou com um prazer infantil: - Infelizmente, não consigo descobrir a camarada Vuginskaia em parte alguma. Trata-se dela. Preciso impreterivelmente da sua ajuda, Vassia Grigorevitch...
«Agora será o fim no quarto», pensou lankov satisfeito. «Se bem conheço Yuginskaia, abrirá a porta de rompante sem se envergonhar de estar na companhia de Chukov, com o suor do amor ainda nos cabelos e a expressão de quem foi satisfeita na cama. Não. Não existe o sentimento da vergonha em Vuginskaia. Invejável Vassia Grigorevitch!»
lankov compôs um sorriso no rosto para, pelo menos, conseguir uma expressão amável se Valia loanovna abrisse a porta de rompante. Contudo, nada disso aconteceu. lankov esperou ainda até tomar o fôlego e fitou indeciso a porta. «Muito bem», pensou. «Estão esgotados e dormem, como se lhes corresse chumbo em vez de sangue nas veias. É compreensível. Também um homem como Chukov, um homem que parece uma árvore e um monte de músculos, dá o máximo e fica prostrado. Contudo, não é motivo para não dar resposta a um amigo que lhe pede ajuda.»
Bateu novamente à porta, sem que desta vez fosse melhor sucedido, e atreveu-se a rodar o puxador. Com grande surpresa, este não lhe ofereceu resistência, a porta abriu-se e proporcionou-lhe o espectáculo de uma cama em desalinho, mas vazia.
Tomado de uma emoção estranha que o assaltou repentinamente, lankov entrou no quarto e olhou à sua volta. A mala de Chukov tinha desaparecido... foi a primeira coisa que lhe chamou a atenção. No cabide da parede já não estava pendurado o casaco. Também faltavam as capas de oleado. Em três passadas, lankov chegou junto do velho roupeiro, escancarou as portas e também ali se lhe deparou o vazio. Recordava-se perfeitamente de que Chukov tinha arrumado no armário algumas camisas” e a roupa interior.
lankov regressou apressadamente ao seu quarto e telefonou, um após outro, para todos os postos, por onde tinha forçosamente de se passar quando se saía do campo. A resposta era em todos os lados a mesma: os colonos dos trabalhos forçados tinham marchado pontualmente, mas ninguém vira o camarada Chukov nem tão-pouco a camarada Vuginskaia.
- Qualquer deles teria dado nas vistas! - respondeu o oficial de vigia.
- Pois é claro! - explodiu lankov. - Desligou, marcou o número da enfermaria do campo e arrancou o Dr. Fediunin a um enorme furúnculo que se preparava para tirar. - Valia loanovna está consigo? - gritou lankov sem delongas.
O Dr. Fediunin não pareceu no mínimo surpreendido, lankov despertou para a realidade de que ele pudesse responder tão calmamente depois das perguntas que lhe fizera.
- Bem me apetecia que estivesse aqui - retorquiu o Dr. Fediunin num tom de voz agudo. - Faz diagnósticos, mete-me os doentes na cama, desaparece e deixa-me entregue a uma terapia que tenho de ir rebuscar nos livros. Nunca pensei ser um bom médico interno.
lankov sentia a cabeça a andar à roda. Olhou quase sem acreditar para o auscultador do telefone.
- Acaba de me dizer que desapareceu? - repetiu num tom lento e vincando bem as palavras.
- Certo.
- Como sabe que desapareceu?
- Não está aqui na enfermaria, por conseguinte, para mim desapareceu. Tentei telefonar-lhe, mas não me responde do quarto. Também Chukov se mantém no anonimato. Ou será que se devoraram um ao outro na noite passada?
lankov resfolegou e bateu com a mão que tinha livre no tampo da mesa.
- Venha imediatamente ter comigo, doutor Fediunin!
- ordenou acaloradamente. - Imediatamente!
- Impossível. Estou a operar um furúnculo!
- Venha imediatamente! - repetiu lankov num tom duro. - E uma ordem, camarada Fediunin.
Ouviu qualquer comentário de Fediunin, mas não se deteve com averiguações. Voltou a agarrar no auscultador e telefonou às barracas do aquartelamento, onde o serviço diário se processava apesar da chuva. Apresentar armas, inspecções, exercícios, manejo de aparelhagem, politização. Quer na Sibéria ou em Kansas City, a conversa é sempre a mesma, apenas a retórica muda.
- Preciso de dois oficiais! - anunciou o major lankov excitado. - Com farda de combate e armados. Imediatamente! - Voltou a pousar o auscultador, como se tivesse recebido um choque eléctrico repentino, e olhou para a porta.
«E impossível», pensou. «E, dadas as circunstâncias, não pode ter sido outra coisa. Uma pessoa que se satisfaz sexualmente a esquartejar cadáveres, que espera como um gato diante do esconderijo do rato que alguém morra, pode ser capaz, por uma questão de orgulho, de ajudar o destino sem qualquer tipo de escrúpulos.»
O major lankov sobressaltou-se quando a porta se escancarou. O alto e seco Dr. Fediunin entrou de rompante, ajeitou, com o indicador, os óculos que lhe escorregavam pelo nariz e postou-se tremendo de irritação em frente da secretária de lankov.
- O que aconteceu? - gritou. - Que tom de voz passou subitamente a dominar aqui? «É uma ordem!» Sei perfeitamente, Vassili Mikailovitch, que também olha para Vuginskaia como um mastim para uma cadela com cio. No entanto, precisamente por esse motivo, deve compreender que me é impossível opor-me a coisas que ela ordena.
- Onde está ela? - inquiriu lankov rispidamente.
- Quem?
- Vuginskaia.
- Na cama de Chukov.
- Não está.
- Não? Então se não sabe...
- Você sabe, doutor Fediunin! - exclamou lankov, olhando por cima do ombro de Fediunin. No corredor, estavam à espera dois tenentes em uniforme de combate. Entenderam o olhar de lankov, deixaram-se ficar do lado de fora e dedicaram toda a atenção ao médico da enfermaria. Fediunin estava demasiado excitado para se aperceber do que se passava à sua volta. Além disso, tinha a consciência tão limpa que nunca lhe passou pela cabeça estar a tornar-se alvo de uma desconfiança que lhe podia ser fatal.
- Quando foi a última vez que viu a camarada Vuginskaia ontem à noite? - inquiriu lankov num tom reservado. Interrompeu de imediato a resposta de Fediunin com a pergunta feita. Fediunin fitou surpreendido o major lankov através das lentes.
- Não olhei para o relógio. Mas, seja como for, era tarde. Chukov telefonou para a enfermaria e perguntou quanto tempo ainda iria durar o trabalho. «Ele sente a minha falta?», exclamou quando lhe comuniquei o telefonema. Atirou com os instrumentos que segurava na mão e desapareceu muito simplesmente a correr. Até esse momento, nunca assistira a uma tal ansiedade e prazer sustido. Presumo que se terá atirado a Chukov como uma fera.
- E foi esse o pensamento que explodiu dentro de si, não é verdade? Correu atrás dela!
- Que disparate! Tinha uma perna aberta em cima da mesa. Um fleimão extenso. Ainda ando às voltas com ele. Valia loanovna deixou-me muito simplesmente a perna, tal como uma leoa abandona aos abutres os restos do banquete.
- Uma feliz comparação, doutor Fediunin! - observou lankov num tom sombrio. - Sempre que olho para si, tenho perguntado a mim mesmo: «Raios me partam, com quem se parece este Fediunin?» E acabou de me ilucidar: com um abutre. E isso mesmo! - rematou, recostando-se na cadeira e agarrando como que distraídamente o coldre da pistola que tinha no cinturão. Os oficiais que se encontravam no corredor esboçaram um aceno silencioso na direcção de lankov. Tinham, porém, um olhar tão indefeso como o de Fediunin, que se apercebera e seguira o movimento de lankov ao agarrar a pisola.
- O que... o que significa isto? -perguntou Fediunin acaloradamente. - Está a comportar-se como se isto fosse um interrogatório, Vassili Mikailovitch...
- E é um interrogatório! Voltou a autopsiar durante a noite e a queimar partes de cadáveres?
- Não - balbuciou Fediunin, arregalando os olhos por detrás das lentes dos óculos. - Está louco, camarada major. Completamente louco. Um interrogatório! Por que motivo me interrogam? O que... o que se passa aqui?
- A camarada Vuginskaia e o camarada Chukov desapareceram. No meu campo! Sem deixar rasto! E há a certeza de que não saíram do campo. Também porquê e para onde? Para se deitarem ao rio, de mãos dadas, num acesso de paixão? Com esta chuva? - colmatou lankov com uma risada amarga. Fitava Fediunin com uma expressão que não deixava dúvidas quanto aos pensamentos que o assaltavam. - Não afirmou a Leonid Lukanovitch que se devia matar Vuginskaia?
- Tudo isto é uma loucura! - gaguejou o Dr. Fediunin.
- Que lhe está a passar pela cabeça, Vassili Mikailovitch? Não pode haver nada de mais absurdo!
- Não há dúvidas de que Valia loanovna e Vassia Grigorevitch se encontravam no acampamento quando ainda estava a trabalhar na enfermaria.
- Claro! Tenho esse álibi. Há três enfermeiros e os doentes como minhas testemunhas... -retorquiu Fediunin deixando que o ar lhe escapasse através dos dentes. Um ligeiro tremor apoderou-se-lhe de todo o corpo. lankov observava-o com gozo. Para ele significava uma espécie de admissão de culpabilidade. Um homem que nada tem a esconder não treme.
- E a que horas fechou a enfermaria?
- Sempre essa sua preocupação com o tempo! Não costumo trabalhar com o relógio pendurado ao pescoço - explodiu Fediunin. - Depois de ter tratado do fleimão, examinei ainda os três outros que tinham sido acabados de operar, certifiquei-me de que tudo estava a correr bem e depois fui para o meu quarto.
- Tal como numa clínica universitária! - retorquiu lankov num tom hostil. - Uma estranha visita no meio da noite aos casos problemáticos, doutor Fediunin. Operou-se em si uma transformação surpreendente. Do médico da enfermaria que, segundo as estatísticas, tinha o menor número de doentes para o Albert Schweitzer da Sibéria. E tudo só porque Vuginskaia conseguiu atingi-lo com um raio! No entanto, a verdade é que ela desapareceu sem deixar rasto, juntamente com o seu amante legítimo. Não é curioso?
- Por mim, investigaria - comentou o Dr. Fediunin com um nó na garganta. - Deve ter acontecido qualquer acidente.
- Já se está a proceder a investigações. E um acidente? No aquartelamento militar? No meio de uma noite perfeitamente calma? Se não vivêssemos numa ilha agreste, no meio de uma imensidão de água, diria: «Foram dar um passeio ao luar.» Também se pode ser romântico na Sibéria. Mas com uma chuva destas? Apenas o senhor, doutor Fediunin, descobriu um método perfeito de fazer com que as pessoas desaparecessem sem deixar rasto! Seria fácil esquartejá-los, ao rival e à amante inatingível...
- Não continue a falar dessa maneira! - gritou Fediunin, apoiando-se de punhos cerrados na secretária de lankov, ao mesmo tempo que a sua cabeça de abutre balouçava de um para o outro lado. - Protesto contra esta sua maneira de se me dirigir!
O major lankov ergueu-se. Do corredor avançaram os dois oficiais, que se colocaram à direita e à esquerda do Dr. Fediunin. O médico endireitou-se como se tivesse recebido uma pancada na nuca e olhou boquiaberto à sua volta. Nunca fora uma beleza nos dias da sua vida, mas agora parecia verdadeiramente feio.
- Impossível... - balbuciou. - Impossível...
- Está sob prisão, doutor Fediunin - declarou lankov num tom sonoro e reservado -, até se ter esclarecido o misterioso desaparecimento de Valia loanovna e Vassia Grigorevitch.
- Apresento novamente o meu protesto! - disse Fediunin com voz fraca.
- Bem pode fazê-lo! - retorquiu lankov com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo que os dois oficiais agarravam Fediunin pelos braços. - Vou pregar o seu protesto na parede. Seria, no entanto, melhor que arranjasse uma explicação para o facto de duas pessoas poderem muito simplesmente desaparecer.
- Eu? Mas eu como? - replicou Fediunin, ao mesmo tempo que os óculos lhe pendiam do nariz. Caíram no chão, mas não os apanhou.
- É o único no campo que tinha um duplo motivo para odiar Vuginskaia e o major Chukov. Em primeiro lugar o seu amor insensato e desesperado por Valia, em segundo a revelação do seu fracasso como médico. Levem-no - rematou lankov com um aceno de cabeça.
Sem qualquer outra objecção ou uma palavra que fosse o Dr. Fediunin deixou-se levar. Mais tarde, um dos oficiais informou o major lankov de que o médico se tinha sentado na cama a chorar como uma criança.
O céu resumia-se a um amontoado de nuvens cinzentas, continuava a chover, o rio era ainda uma corrente tumultuosa, que embatia agora contra as vertentes rochosas da planície. Todos os contornos se haviam afundado... a região não passava de um mar em fúria, um novo mar siberiano. De pouco servia a Chukov que em lakutsk se tivesse declarado o estado de emergência neste local e que milhares de soldados e operários das fábricas, munidos de grandes barcos a motor de fundo raso e pontões dos sapadores, arrancassem os camponeses dos telhados das casas, retirassem do rio o gado que flutuava afogado, erguessem instalações improvisadas nas escolas e Mginásios e também que das regiões do Sul fossem enviados para lakutsk comboios de mercadorias cheios de alimentos, cobertores, medicamentos e camas de campanha.
Ninguém sabia qual o cenário que se apresentava ao norte. Todas as ligações estavam interrompidas e apenas pela rádio se receberam algumas informações escassas, como as enviadas do campo de Novo Sosnovka, de onde o major lankqv comunicou que a aldeia e o campo, graças à altura, se encontravam fora de perigo, mas que em redor dominava o caos. Apenas água, água, água. E continuava a chover. Alguns helicópteros, que percorriam centenas de verstas sobrevoando a região em todos os sentidos, tiravam aerofotografias. Depois disso ficou-se com a certeza de que a Sibéria vivia a maior inundação de que até então havia memória. A tradição não rezava que, a norte de Viliu, alguma vez a taiga se tivesse transformado num mar.
Chukov avançou muito rapidamente até ao meio das águas do grande Lena. O barco, equipado com um alto motor fora-de-borda, comprovou-se de uma grande estabilidade... embateu, algumas vezes, de encontro a troncos de árvores flutuantes, que lhe abalaram fortemente a carcaça, e Chukov deu o máximo do seu esforço servindo-se novamente dos remos como forma de luta ante os troncos, a fim de os afastar. Por vezes era bem sucedido, outras no entanto era-lhe impossível evitar o choque. Nesta segunda hipótese, Chukov era praticamente arrancado ao assento, agarrava firmemente o saco de viagem junto ao peito e preparava-se para mergulhar no rio e tentar nadar até atingir algures um sítio em segurança. «O Alasca», pensava. «Como praguejámos quando Orwell nos mandou para águas em fúria, rios pejados de rochedos enormes, contra os quais éramos impiedosamente arremessados. Cada um de nós recebeu um barco, uma embarcação velha e apodrecida, e quando nos encontrávamos no meio das águas tumultuosas tínhamos de abrir o fundo ao barco e saltar para a água com a bagagem. Catorze homens foram parar, mais tarde, à enfermaria com os ossos partidos. Um deles, que bateu com a cabeça de encontro a um escolho, veio a ser dado como inútil, pois passou a sofrer de ataques epilépticos. O jovem foi reformado com uma pensão. Uma reforma prematura, aos vinte e oito anos! Uma boa reforma, pois o Exército mostrou-se excepcionalmente generoso... mas será que se pode substituir por dólares uma mente arruinada?
E, seguidamente, as excursões de Orwell no mar. Com rajadas de vento de oitenta ou noventa quilómetros, saltámos borda fora, precisamente a três milhas de distância da costa. Um pequeno cruzador de salvação seguiu, na realidade, atrás de nós e foi pescando todos do mar em fúria, sempre que a lâmpada que se trazia ao pescoço acendia no vermelho. Orwell não ficava melindrado, pois cada homem tem um limite de resistência, atrás do qual se inicia o pânico. No entanto, quem atingia a costa sentia um orgulho natural. E Bob Miller tinha conseguido tal proeza por duas vezes. Nunca pudera explicar como fora possível... pois só depois veio a saber pelo general Orwell que se tinha previsto que ninguém aguentaria até à costa.»
Algures, perto da manhã, Chukov cedeu perante o sono. Deitou-se no barco entre os dois bancos, com o saco de viagem atado em redor do pescoço, as mãos sem abandonar os remos, e dormiu. As forças tinham atingido o limite. Lutara contra o rio durante horas a fio. Quando acabou por rolar entre os dois assentos, já tudo lhe era completamente indiferente.
- Que todos me lambam o cu! - dissera Chukov em voz alta. - Se me queres, rio de merda... serve-te lá! Estou mole como um pudim. Acabaste por me vencer, rio!
Seguiu-se novamente a fase da revolta, a última reserva de forças... ajoelhou-se no barco, olhou para a imensidão infinita e tumultuosa, avistou ao lusco-fusco da manhã cinzenta os troncos de árvores arrastados pela torrente e arrancados da terra pela raiz, todo um emaranhado de ramos enrolados uns nos outros e até mesmo um pedaço de um telhado vogando nas águas.
«Agora, em Novo Sosnovka, pensou, «já deram pela minha falta e pela de Valia. O que irá fazer o major lankov? Procurar, praguejar e ruminar como terá sido possível. Não encontrará, porém, qualquer explicação. Irá viver toda a vida com este mistério.»
No entanto, invadia-o o cansaço, por mais que lutasse contra. Cantou em voz alta, falou consigo próprio, insultou o rio, contou anedotas e finalmente porcarias, recordações dos bordéis do Novo México e de Houston, de Lilly com o cu tatuado e de Blondie, com uns pintelhos tão crescidos entre as pernas que davam para fazer tranças. Quando tomou consciência que nada daquilo o ajudava e um peso de chumbo o afundava, começou a gritar de encontro ao casco do barco, mas também este tipo de revolta se provou inútil... Finalmente, deitou-se no fundo do barco e adormeceu.
Um pesado embate de encontro ao barco acordou-o. Era dia claro, tanto quanto a luminosidade da chuva o permitia. O barco estava voftado de lado e preso, como que emoldurado, entre árvores derrubadas, por detrás das quais se estendia terra firme, que conduzia à taiga. Neste local, o rio em fúria perdera a sua liberdade ilimitada; embatia ainda de encontro ao declive agreste e derrubava árvores, mas sem conseguir ser dono e senhor.
«Terra», pensou Chukov. Voltou a ajoelhar-se no fundo do barco, agarrou-se à borda e fitou a densa floresta. «Uma margem! Terra firme! Estarei ainda no Tiugania, ou será já esta a região do Viliu?»
O barco rangia por entre os troncos, de encontro aos quais as ondas embatiam fortemente. A água borbulhante, ultrapassou a borda e invadiu o barco.
«Saltemos, pois, para fora», pensou Chukov. Esfregou os braços contra o corpo, para activar a circulação do sangue, pendurou o saco ao pescoço e saltou do barco para um comprido tronco de árvore que levava à margem, qual pequena ponte.
«Tudo se repete», pensou. E em tudo existira a lógica. O treino na floresta filipina. O rio de águas amarelas onde as cabeças dos crocodilos arregalavam os olhos, como passas enfeitando um bolo. E um único caminho... um sinuoso tronco de árvore, para atravessar de uma a outra margem.
E seguindo-o de muito próximo, os perseguidores, em fardas de fantasia, mas com a ilusão de desancar Bob Miller, se o apanhassem. «No real, isto significa: seguem-te até não passares de um farrapo de carne», dissera Orwell. «Pensa sempre que se trata de sobrevivência.»
Em frente, pois, sobre as águas no tronco estreito. Sobre o rio de águas amarelas e as cabeças dos crocodilos à espreita. Não olhar para baixo, para os olhos frios e redondos, as filas de dentes aguçados nas mandíbulas compridas e achatadas. Em frente, Bob! Já não estás num exercício vigiado por um posto de auxílio secreto... vives uma realidade simulada, mas fatal.
Tinha conseguido, de gatas, inclinado para diante, no tronco liso e escorregadio dos limos. «E se cerrar os dentes, vou conseguir», tinha dito nessa altura de si para si. «Há uma quantidade de raparigas que nunca te perdoarão, Bob Miller, que tenhas servido de pasto aos crocodilos.»
Em frente, depois, na outra margem, esperava-o o general Orwell, que o abraçou.
- Espantoso, Bob! - tinha-o elogiado. - Em que vinhas a pensar quando vogavas no meio do rio, em cima do tronco?
- Em Susan, sir - respondera Bob Miller, ao mesmo tempo que só nessa altura o suor do medo lhe escorria pelo rosto. - Tem um sinalzinho por baixo do seio esquerdo que parece uma estrela. Era caso para a elegerem, sem mais, a xerife.
- És um cão sem emoções, Bob - contrapusera Orwell.
- E, no entanto, tens esse ar de anjinho. Acho que nem tu próprio sabes o perigo que representas.
Só mais tarde Miller veio a descobrir que tudo - até o rio de águas amareladas - não passava de cenário. O tronco de árvore estava preparado, as cabeças de crocodilo eram provenientes de Hollywood e feitas de plástico. Tinham mesmo sido utilizadas nos filmes de Tarzari.
- Se o tivesse sabido, sir - dissera Miller ao general Orwell -, tinha-lhes feito a vontade e caído ao rio.
- Foi melhor assim, Bob. Talvez um tronco de árvore venha a ser alguma vez a tua última esperança.
O reverso da medalha de Orwell:
- Não sou um profeta - afirmara. - Sou apenas um homem que conhece a merda em que se verão metidos.
Neste momento, uma árvore constituía realmente a única saída de uma imensidão de água. Chukov continuou a dirigir o tronco, escutou como, nas suas costas, o barco embateu mais algumas vezes de encontro a um tronco e acabou por se despedaçar. Teve de perfazer os últimos metros através do emaranhado de ramos e saltou, seguidamente, para o solo pantanoso de onde fora arrancada a árvore. As raízes erguiam-se na chuva como tendões, músculos e veias de um corpo gigantesco e despedaçado.
Chukov sentou-se numa raiz com a grossura de um braço, a contemplar o seu inimigo vencido, o rio.
- Tive sorte - pronunciou num tom rouco. - Podias ter-me vencido. Sou bom nadador, mas sempre desconfiei da água, com mil raios! Nem sequer me posso dar ao luxo de um whisky.
Continuou ainda algum tempo sentado na raiz da árvore, pôs em seguida o saco às costas e começou a subir o declive, na direcção da floresta, que agora lhe parecia a coisa mais maravilhosa do mundo. Árvores erguendo-se na direcção do céu chuvoso numa atraente mescla de cores. Pinheiros verde-escuros, larícios amarelo-dourados, bétulas gigantes de folhas douradas, onde brilhavam pontos vermelhos... Chukov parou e respirou fundo. O Outono! A «taiga flamejante», como se lhe chamava na Sibéria. Um sopro de beleza, antes que os primeiros ventos da geada tudo destruíssem.
A chuva tinha diminuído. A água deixara de cair em catadupas do céu cinzento, para se limitar a um fio. Transformava-se, subitamente, em chuva normal e a natureza acalmava-se a pouco e pouco. Por esse mesmo motivo, estava a arrefecer. Chukov sentia-se um tanto gelado nas roupas ensopadas e começou a correr pela vertente, a fim de aquecer, pensando alegremente na fogueira luminosa e quente que dali a pouco acenderia.
«Primeiro, chegar à floresta», pensou. «Depois, construir um abrigo de ramos e folhagem, como aprendemos no treino de sobrevivência, meu velho. Algumas estacas firmes enterradas na terra, depois o telhado entrançado, com várias camadas, e inclinado para deixar escorrer a chuva... E a terminar, a fogueirazinha. Tudo isso vai durar apenas duas ou três horas, depois do que te enroscarás, bem seco. Vai ser um problema encontrar madeira seca para a primeira fogueira. Ramos da mata. Depois de conseguidas as chamazinhas iniciais... a vitória. A restante madeira ponho-a a secar em redor da fogueira.»
Continuou a correr, de boca aberta e ofegante, atingiu a orla da floresta e apoiou-se respirando com dificuldade à primeira árvore. O cenário à sua volta era grandioso: uma planície aquática com ilhas de árvores, tanto quanto a vista alcançava. «Será uma terra morta», pensou Chukov. «Aqui já nem os animais vivem. É muito provável que seja eu o único ser vivo.»
Avançou mais pela floresta, que neste local era muito densa e enredada, e descobriu um local sob árvores de troncos entrelaçados, que se assemelhavam a um telhado, decidindo construir ali o seu acampamento.
Não albergava ilusões relativamente aos dias seguintes. Esperava-o uma vagabundagem através da taiga, sempre rumo a leste, até atingir o Lena. Seguiria depois rio acima, até encontrar a primeira colónia. Teria atingido o alvo. Chegar a lakutsk, e depois a Irkutsk, constituía uma questão de meio de transporte e não de aventura. Viajar como russo e com privilégios oficiais através da Rússia não é problema. Apresentam-se os documentos, deixa-se verificar os diversos carimbos e diz-se orgulhosamente: «É assim, camaradas.» O caminho mais longo é o que se faz através dos departamentos burocráticos. Conseguido isso, o mundo torna-se pequeno.
Uma frase sempre aplicável no âmbito dominado pelos burocratas. E onde não é assim...
Chukov tirou o saco das costas, retirou uma pequena bússola e verificou em que direcção ficava o leste. À sua frente a poderosa orla costeira. A floresta, nas suas costas, situava-se a norte. «Tentemos descrever um arco», disse Chukov em voz alta, ao mesmo tempo que metia novamente a bússola dentro do saco. «Orwell nunca te perdoará que tenhas ficado encravado no barco. Devias ter conseguido seguir até ao Lena. Agora, tens de te arrastar seja lá como for, meu velho.»
Sentia-se gelado, correu um pouco em círculo, descontraiu os músculos e dedicou-se depois a procurar, debalde, madeira seca e material para o seu telhado.
Doze dias mais tarde, caçadores iacutos da região encontraram, a nove verstas da margem do Lena, perdido na taiga, um homem semimorto de fome. Rastejava pelo solo, puxando um saco atrás dele, e afundou a cara no solo, quando o chamaram. Correram na sua direcção, voltaram-no de costas e verificaram que tentava mastigar um bocado de cortiça. O homem ardia em febre e dava a sensação de alguém cujo fim estava iminente.
- Homens! - disse Chukov num tom de voz quase inaudível. Diante dos seus olhos vogavam os contornos dos rostos dos caçadores iacutos, perdendo-se como nuvens arrastadas pelo vento. - Homens... lakutsk... Camaradas... tenho de chegar a lakutsk.
Os caçadores carregaram o estranho num trenó preparado para deslizar não só através da neve, mas pelo solo liso da floresta, taparam-no com peles e deram-lhe a beber um chá amargo e escuro de um termo. Um veado, atrelado ao trenó, voltou a cabeça e fitou Chukov.
«Um inundo de loucos!», pensou Chukov. «Iacutos com veados domesticados, mas com um termo! Com mil raios. O chá é mesmo bom! Queima como se fosse fogo, vira-me o estômago vazio...»
- Comida - pediu. - Qualquer coisa de comer.
Os caçadores sacudiram negativamente a cabeça, um deles sentou-se num trenó diante de Chukov, soltou um grito e seguidamente deslizaram, puxados pelo veado, através da floresta. Homens duros. Por várias vezes a cabeça de Chukov balançou, desconfortavelmente, ao atravessarem a terra irregular. Em seguida, desmaiou.
Quando recuperou os sentidos estava deitado em cima de peles espessas, numa cabana. Uma mulher gorda e sorridente mexeu, ao seu lado, numa vasilha com leite quente e ácido que cheirava horrivelmente, fez alguns sinais com a mão, depois levantou-se e saiu apressadamente. Chukov soergueu-se. Sentia-se com forças e repousado. Verificou, admirado, que estava nu por debaixo das pesadas peles. O peito e as costas ardiam-lhe como se estivesse deitado sobre brasas. Inclinou-se na direcção do fogo e viu que, na realidade, tinha o corpo coberto de pequenas pústulas.
O iacuto que Chukov avistara pela primeira vez, e se transformara em seu anfitrião, entrou na cabana e acocorou-se diante de Chukov. Falava um russo iacuto horrível, mas apesar de tudo compreensível.
- Ias morrer - disse-lhe. - Estavas quente como um fogão. Agora, estás vivo.
- Apanhei um pneumonia, não foi? - perguntou Chukov, batendo cuidadosamente no peito. - Untaram-me com quê?
- Papas de folhas - respondeu o iacuto com um sorriso de um canto ao outro da boca. - Toda a febre desaparece. Folhas boas.
- Precisava de umas calças - retorquiu Chukov com uma risada fraca. Sentia-se mais forte do que realmente estava... a febre tinha-o prostrado. Verificou-o ao juntar as pernas para se levantar. Não conseguiu. Caiu como se não tivesse ossos. «Devia untar Orwell com esta papa», pensou. «Ainda não a conhece. Também deviam ensinar a preparação desta papa aos agentes da CIA. Bob Miller informou que com ela se pode salvar a vida.»
- Há quanto tempo estou aqui? - perguntou.
- Nove dias.
- E sempre inconsciente?
- Acordávamos-te, dávamos-te de comer e depois deixávamos-te continuar a dormir.
- Não dei por nada - retorquiu, examinando-se e vendo que tinha o corpo limpo. Tinham-no tratado como se fosse uma criança, mudado quando fazia as necessidades, levado os excrementos e voltado a colocar a papa. Assim se havia afugentado a febre. Durante nove dias.
- Como lhe posso agradecer, camarada? - inquiriu Chukov.
- Não me tratando por camarada - respondeu o iacuto com uma estranha fixidez no olhar.
- Ah! Tudo bem. Chamo-te amigo, então?
- Es um funcionário?
- Sou um simples engenheiro que foi surpreendido pelas cheias. Tenho de seguir imediatamente para lakutsk, a fim de me apresentar. Perdi tudo... o meu transporte, os meus apetrechos, os meus camaradas. Segui sempre para leste, através da taiga. «Quando chegares ao Lena», dizia para mim mesmo, «estás salvo. E a floresta dá-te alimento.» Uma porcaria de floresta, caro amigo. Não vi um animal que fosse e coloquei as melhores armadilhas. No entanto, sim... uma vez uma lebre pôs-se na minha frente, no décimo dia, incrivelmente próximo... sentada e a olhar-me, como se soubesse que estava fraco de mais para erguer nem que fosse a mão.
Uniu as pernas e cobriu-se, porque a mulher entrou novamente. Trazia uma papa de centeio, em que se viam uns pedaços de carne. O prato era de madeira, cortado de um tronco... só que na mão trazia uma colher moderna. Inoxidável. À venda em qualquer armazém. Chukov agarrou na colher e segurou-a na frente do iacuto.
- Quem vos traz estas coisas? - inquiriu.
- Somos nós que as vamos buscar. Uma vez por ano vamos a Tastumus. Daí parte um comboio para lakutsk.
- Sempre?
- Duas vezes por semana.
- Dou-vos cem rublos, se me levarem imediatamente para Tastumus.
- Duzentos rublos! - gargalhou o caçador, imperturbável. - Tens na tua bagagem dois mil e trezentos rublos... Como vês, somos gente honesta!
- Dou-vos trezentos, se partirmos amanhã.
- Estás demasiado fraco, Vassia Grigorevitch... Chukov encolheu os ombros. Havia qualquer coisa aqui que não batia certo.
- Como sabes o meu nome? - perguntou.
- Está nos teus muitos documentos - respondeu o iacuto, erguendo-se da posição de cócoras. - Aprendi a ler. Na escola de Sangar. Contudo, ninguém conseguiu transformar-nos em russos. Nunca o conseguirão. És um russo orgulhoso, certo?
- Neste momento sou um miserável russo nu, meu amigo. Esta situação mudou num abrir e fechar de olhos. Um dos elementos mais jovens da tribo, talvez o filho, trouxe as roupas de Chukov. Vestiu-se e verificou que tinha perdido, pelo menos, uns cinco quilos. Quando saiu da cabana, o ar frio bateu-lhe como se fosse um martelo. Agarrou-se com força ao ombro do velho iacuto e cambaleou.
- Temos de ir a cavalo durante quatro dias até Tastumus... - esclareceu o caçador.
- Sou bom cavaleiro - garantiu Chukov fazendo esforço por se manter de pé. Avançou alguns passos hesitantes, depois estendeu os braços e meteu nos pulmões o ar frio e revigorante. O céu apresentava-se sem nuvens, azul-escuro e atravessado por um reflexo dourado.
«O famoso céu da Sibéria», pensou Chukov. «Há homens que se enamoram deste céu como se fosse uma mulher bonita.»
- Aguento os quatro dias - garantiu Chukov. Quando partimos?
- Quando quiseres. Amanhã já. Foi uma cavalgada difícil.
Não demorou quatro dias, mas seis, na medida em que pouco avançaram nos primeiros dias, pois os iacutos não tinham pressa. Chukov cerrava os dentes, mantinha-se firme na sela c só descia do cavalo quando o iacuto dizia: «Fim do dia. Descansar!»
A estação da Tastumos era uma miserável construção de madeira e a via férrea revelou-se uma linha de segunda, que transportava a pedra ferruginosa de uma mina para lakutsk. Estava sempre reservada uma carruagem para o pessoal que ia de férias, contente não só por poder ir a um cinema na cidade, mas também por ter uma rapariga debaixo. Durante a viagem inteira até lakutsk não se falava de outra coisa.
- Adeus! - despediu-se o iacuto, quando Chukov lhe pagou os trezentos rubles e ocupou um lugar sentado na carruagem. - E tenha cuidado, amigo...
- Voltei a sentir-me forte e saudável...
- Não falo disso - retorquiu o companheiro, abraçando Chukov como se fosse seu irmão. E ao mesmo tempo que o beijava numa das faces, segredou-lhe baixinho ao ouvido:
- Tens muito mais do que os documentos com carimbo... És meu amigo, porque não és russo!
Deu uma pancada amigável nos ombros de Chukov, voltou-se rapidamente e avançou a passo rápido na direcção dos cavalos.
Já é por si um acontecimento atravessar a Sibéria num comboiozinho a apitar e a deitar fumo, sempre ao longo do imenso Lena, neste ponto tão vasto que dificilmente se avistava a outra margem, apenas divisável como uma faixa fantasmagórica no horizonte. A chuva que caíra durante semanas também fizera o rio sair das margens neste sítio, mas que importância têm, na vastidão do Lena, cem metros a mais ou a menos? Aqui tinha-se em conta o risco das inundações, mas a situação iria mudar nos próximos anos ou séculos. Havia planos detalhados para instituir a ordem num rio tão poderoso como o Lena e, acima de tudo, utilizar a força imprevisível das suas águas em benefício da electricidade. Planos para futuras gerações de pioneiros siberianos, só que um ruso não pensa, como um europeu, em pedaços limitados de tempo, pois a sua bitola é tão vasta como a terra que domina.
Constitui, no entanto, uma emoção muito especial viajar num comboio a abarrotar de mineiros alegres e entusiasmados que vão passar catorze dias de férias a lakutsk. Apenas alguns deles eram casados e pensavam com ansiedade no encontro com as mulheres e os filhos. A maioria eram rapazes jovens e robustos ou indivíduos no auge da virilidade, habituados ao calor e ao gelo da taiga, sedentos da pele e do cabelo da mulher. Um aglomerado de força primitiva na minha definição! Seguiam sentados nos duros bancos de madeira, contemplavam pela janela as águas próximas do Lena e falavam uns aos outros do que pretendiam encontrar no dia seguinte em lakutsk. Pelo que se lhes ouvia, estavam dispostos a despedaçar cada mulher, a aguentar até lhes faltar o fôlego, semelhantes a uma carpa que se atira para a terra, luta por respirar e sente o sangue a martelar na cabeça.
- E você o que vai fazer, camarada? - perguntou um robusto montanhês a Chukov, que se mantinha, silenciosamente, acocorado a um canto. Estendeu-lhe um maço de Papyrossi, tirou do bolso da capa de oleado um frasco de pepinos em conserva e abriu a tampa. Eram pepinos verdes, bonitos, longos... um verdadeiro prazer para a vista. O indivíduo rebuscou no frasco, escolheu um exemplar magnífico e exibiu o pepino com um largo sorriso. - Isto ainda é pequeno em relação ao que espera a Maria! - exclamou, entusiasmado. - Digo-vos uma coisa, amigos: quando penso nela, não fico em nada inferior a um longo pepino!
Deu uma mordidela no pepino, o suco escorreu-lhe pelos cantos da boca, depois pelo queixo, indo molhar a camisa. Foi saudado por risos e palmas.
- E eu sou do baril - continuou o touro. - Não olhem para as minhas calças, camaradas. Podem ficar complexados.
- Inclinou-se para Chukov e estendeu-lhe um pepino. E você, vizinho? Está para aí sentado como se o tivessem castrado!
Chukov agarrou no pepino, comeu-o em três dentadas e, seguidamente, meteu na boca o Papyrossi que o outro lhe oferecera. Um outro mineiro ao seu lado deu-lhe lume.
- Sinto-me contente. Tenho quatro mulheres à minha espera em lakutsk...
- Ah! Mas que gabarola! - comentou o robusto indivíduo dos pepinos. Levantou-se de um salto, pôs-se diante de Chukov e respirou fundo. O tórax estava inchado como um balão e as pernas firmes como duas colunas. - Quatro mulheres! Logo à primeira vai cair para o lado sem fôlego! De onde vens, camarada? Nunca te vimos por estes lados...
- Sou engenheiro...
- Oh! Com que então viaja connosco um senhorinho!
- gargalhou o touro com voz de trovão. - Claro que vai dar cabo das quatro mulheres! Cálculos para cada vez que montar... Temos aqui, sentado, amigos, um tipo com uma moca matemática!
A carruagem ecoava com os risos. Chukov ergueu os olhos para o montanhês, atirou o cigarro para o chão e esmagou a ponta. Em seguida dobrou-se para a frente, pegou no frasco de pepinos que estava em cima do banco e lançou-o contra a porta. Despedaçou-se com um ruído de vidro quebrado. Os belos pepinos entornaram-se e os condimentos em que eram conservados espalharam-se pelo chão.
O touro fitou Chukov surpreendido, aparentemente não compreendendo que alguém tivesse ousado pôr-lhe a mão nos pepinos, rangeu os dentes e cerrou os punhos enormes.
- Este é doido! - acabou por observar, fora de si. Um murro meu será o bastante para lhe pôr a cabeça ao pé do umbigo, camaradas! Estragou os meus pepinos... - Subitamente, com a velocidade de um raio, agarrou Chukov pelas bandas do casaco e arrancou-o do assento. Estavam agora na frente um do outro, com igual estatura, só que o russo era mais corpulento e transbordava uma força bruta. Chukov sorriu intimamente. «Meu caro jovem!», pensou. «Se, nesta altura, estivesse tanto em forma como daquela vez em Frazertown, quando eu e o John quase nos matámos no ringue por causa da Norma, bastava um directo no queixo para te pôr de olhos virados para o tecto. No entanto, a vossa taiga deu cabo de mim. Agora, sou meramente a sombra de Bob Miller, que, em tempos, aportou furtivamente à costa do mar Negro, no vosso país. ”Podes comer pedra e cagar areia”, disse-me uma vez Orwell. Errou, sir Jack. Na preparação, pode-se simular os infernos mais autênticos... mas quando se está a viver a realidade, uma pessoa sente-se com os ossos todos partidos e não há forma de o evitar. Transformei-me num tipo mole e fraco, que apenas tem um desejo: dormir três dias e três noites em lakutsk, numa cama a valer. Sei agora porque é que os meus antecessores desapareceram na taiga. A melhor defesa na Rússia é a sua vastidão. No entanto, regressei, siri Por isso devemos sentir-nos orgulhosos, embora me encontre neste estado.»
- Os meus belos pepinos! - dizia o indivíduo taurino.
- Vamos! Vai apanhá-los e come-os. Come-os até ao último pedaço ou enfio-tos pela goela abaixo! Estás a entender-me, camarada engenheiro?
Na carruagem fez-se um silêncio repentino. Acabara a brincadeira e... o que agora se seguiria era assunto sério e de morte. Como é que aquele pálido engenheiro pudera fazer uma coisa assim? Atirar o frasco dos pepinos de encontro à porta! Não conheceria o valor dos pepinos nesta região?
- Vai apanhá-los - ordenou de novo o mineiro, sacudindo Chukov como se este fosse uma batedeira. - Estou na disposição de te espetar como a um leitãozinho!
- Largue-me, camarada - disse Chukov, sem erguer a voz. - Não me agradaria magoá-lo...
- O que é que ele está para aí a dizer? - rosnou o touro. - Ouviram bem, amiguinhos? Não me quer magoar! Dá cabo dos meus pepinos e diz...
- Em lakutsk compro-lhe dez frascos novos...
- Comprar? Qual é o que de nós come pepinos comprados? Uns pequenos e miseráveis pepinos? Estes pepinos foram semeados no jardim e preparados em conserva por Lisa Alexandrovna. E de cada vez que me aparecia com um pepino, sempre um maior e mais espesso do que o outro, dizia-me: «Compara, lakovenka! Agora ficaste mesmo a perder!» E nunca perdi, camaradas. E ele atira-me os pepinos contra a porta! Pepinos postos em conserva com tanto amor e cuidado.
Largou Chukov, empurrou-o de encontro à porta fechada da carruagem etomou balanço para um directo. Foi um erro, pois quem percebe de antemão que alguém o pretende atingir pode esquivar-se. Perigosos são, meramente, os golpes de que não se suspeita e não se vê de onde partem. É um princípio da velha escola de boxe.
Chukov esquivou-se e disparou a direita. Colocou todo o peso neste directo, atingiu o gordo precisamente na boca do estômago e verificou cheio de espanto como o indivíduo ficou muito simplesmente sem ar, deu meia volta e aterrou de joelhos, inclinado para a frente, no chão da carruagem. Um camarada prestável ainda lhe agarrou na cabeça para evitar que batesse com a cara e se ferisse. Não conseguiu, porém, evitar que o corpo pesado caísse sobre os pepinos espalhados e os esmagasse debaixo de si.
Chukov voltou a sentar-se, cruzou as pernas e fitou amigavelmente os incrédulos companheiros de viagem. Os olhos leais e a expressão sonhadora, que, num espaço menor ou maior de tempo, acabavam por conquistar todas as raparigas, até serviam para actuar nestes homens endurecidos.
- Alguém tem um Papyrossi que me ofereça? - perguntou Chukov.
Seis maços amarrotados foram estendidos na sua direcção. Tirou um cigarro do maço que lhe pareceu menos sujo e acendeu-o nos quatro fósforos que imediatamente lhe deram lume. O homem de quem aceitara o cigarro olhou em volta orgulhosamente. Considerara o facto como uma escolha.
- Espantoso, camarada! - observou o trabalhador que ia junto a Chukov. lakov Petrosovitch nunca passara por uma coisa assim. Até hoje, sempre se saiu vencedor. Era o maior de boca, de músculos e com o que tem nas calças...
- O meu êxito não chega a esse ponto. - Os homens riram e também não foram ajudar o outro quando se mexeu com um gemido sobre os pepinos esmagados. Ainda meio aturdido, quis levantar-se mas os músculos não lhe obedeceram.
- Vai ficar muito tempo em lakutsk? - quis saber um outro montanhês.
- Não. Porquê?
- lakov Petrosovitch irá espiá-lo e tentará lavar a sua desonra. Tem de o vencer, caso contrário ficará com a fama de rastos. É considerado invulnerável. Até aqui podia dar-se ao luxo de tudo. Montava todas as moças de cozinha e tractoristas, e depois de o fazer chegava a vez das camponesas da região. E os maridos? Quando lakov Petrosovitch aparecia como um mamute, deitavam-lhe tudo aos pés e punham-se a milhas. Quantas e quantas vezes o invejámos.
- Só pensam em mulheres? - interessou-se Chukov num tom prazenteiro.
- E é de admirar? Somos novecentos homens c apenas trinta mulheres trabalhavam na mina. É um problema, camarada. A verdade é que não somos presos nem condenados, mas operários livres que trabalham para o progresso. Se não nos dessem licença para irmos de vez em quando a lakutsk, éramos granadas prontas a explodir!
lakov Petrosovitch ergueu-se, amparado à porta, limpou os restos de pepino do fato e voltou-se para Chukov.
- Devemos ser amigos, camarada engenheiro - balbuciou num tom sombrio. - Esqueçamos o que se passou...
Abriu a porta e saiu para o corredor. Deixou-se ficar ali até surgirem os arredores de lakutsk.
- Acautele-se, camarada - avisou o vizinho da esquerda de Chukov em voz baixa. - Não acredite na amizade dele. Segui-lo-á em lakutsk como um lobo feroz. Qual o seu destino?
- Irkutsk.
- Ainda bem. Ele nunca chegará lá. Não traz dinheiro suficiente para apanhar o avião. Vai de avião, certo?
- Claro!
- Faça o possível por arranjar lugar no próximo avião. Cada dia que passar em lakutsk é perigoso para si...
O comprido comboio carregado de minério, com a locomotiva ruidosa, não foi evidentemente dirigido para a bonita e limpa estação de caminho-de-ferro principal de lakutsk: parou numa enorme estação de mercadorias, um tanto afastada do novo centro da cidade. Daqui partiam constantemente eléctricos a abarrotar para lakutsk. Nos locais de manobras sentavam-se bonitas jovens de casacos acolchoados e barretes de pele. O frio já tinha chegado a lakutsk, mas não havia ainda geada, nem tão-pouco nevara.
Chukov meteu o saco de viagem debaixo do braço esquerdo e, juntamente com os restantes operários, saiu do comboio para, através de uma confusão de carris e agulhas e por entre comboios de mercadorias parados, chegar à paragem dos eléctricos. A meio caminho, lakov Petrosovitch pôs-se a seu lado. Os outros olharam-nos curiosamente. Será que se tratava da vingança impiedosa?
- Onde irá ficar? - perguntou o colosso de carne. Os pepinos tinham deixado manchas no fato. Não tinha um aspecto famoso.
- No Hotel Lena - respondeu Chukov sem hesitar.
- Num sítio tão luxuoso?
- O Centralburo paga.
- Para isso têm dinheiro, os camaradas importantes!
- comentou lakov amargamente. - Li, algures, no programa do Partido, que não existem classes baixas. Todos os membros são iguais. E, afinal, como é na vida? Você vai para o Lena e eu só posso espreitar do lado de fora. Posso convidá-lo?
- Para ir aonde?
- A uma autêntica taberna de trabalhadores. Pertence a Marija. Uma mulher fantástica. Meio asiática, meio russa. Estas mestiças têm pimenta no cu, digo-lhe eu! Marija tem uma rodagem que até a mim me tira o fôlego... é uma verdadeira maravilha.
- Conheço essas raparigas de sangue asiático – retorquiu Chukov calmamente. «Valia loanovna Vuginskaia foi um dos melhores espécimes», pensou. «Nela ardia o calor abrasante das vastidões mongólicas, mas também o frio impiedoso de uma taiga imersa na geada. Entregava-se, mas podia apunhalar com um abraço.» - Quando e onde nos encontramos?
- Venho buscá-lo. Depois de amanhã - retorquiu lakov Petrosovitch com uma gargalhada. - Hoje e amanhã não saio de cima de Marija. No entanto, depois de amanhã estarei em frente do hotel. Digamos... às sete da tarde?
- Às sete horas.
- Será uma festa.
- Estou convencido que sim.
Separaram-se na paragem dos eléctricos como dois bons e velhos amigos. lakov seguiu pela linha 3. Chukov tinha de esperar pelo da linha l, que levava ao centro da cidade. O seu vizinho do comboio bateu-lhe nas costas.
- O que lhe disse lakov? - perguntou em voz baixa.
- Vai buscar-me depois de amanhã ao hotel. Quer ir divertir-se comigo.
- Não vai fazê-lo, pois não, camarada? Era a sua morte. Trata-se de uma armadilha.
- Eu sei - retorquiu Chukov com uma risada de agradecimento. «Depois de amanhã, há muito que estarei em Irkutsk», pensou. «Junto da bela Galina Teofilovna. Se é que ainda trabalha na perfumaria do Hotel Sibir. Uma jovem corajosa. De duas em duas noites senta-se na arrecadação das camas velhas e telegrafa para os Estados Unidos. Daqui, POMBA, POMBA, POMBA... e do outro lado sussurram: Daqui FLOCO DE NEVE, FLOCO DE NEVE, FLOCO DE NEVE... Um código idiota. Um romantismo parvo numa profissão mortal. Pombos e flocos de neve... quem regressa da taiga limita-se a bater na testa e a dizer bem do fundo: «Olho do cu!»
- E como se irá proteger? - perguntou o operário. Chegou o eléctrico da linha 1... e o da linha 3 acabava precisamente de partir. lakov Petrosovitch fez um aceno de despedida com a mão grande e gorda e Chukov correspondeu.
Tudo parecia tão completamente inofensivo!
- Vou na companhia de um amigo da KGB...
- Tem um amigo na KGB? - retorquiu o operário, fitando Chukov com uma expressão surpreendida.
- Porque não?
- Boa estada em lakutsk, camarada. - O operário subiu para o eléctrico, sentou-se num lugar afastado de Chukov e não disse nem mais uma palavra.
KGB... três maiúsculas que penetravam mais intensamente nos ossos de um russo do que setenta graus negativos.
Chukov chegou sem mais problemas ao Hotel Lena, o novo palácio, ornamentado com altas colunas no hall de entrada. O recepcionista reconheceu-o imediatamente. Sim. Era o camarada que tinha amansado a violenta Vuginskaia.
O recepcionista deu o alarme com um imperceptível aceno de cabeça. O gerente do hotel precipitou-se para o balcão e cumprimentou Chukov como se fosse um membro do Politburo. Os outros camaradas da recepção também o cumprimentaram. Que alegria! O domador de Vuginskaia reaparece!
- O seu quarto está livre - anunciou o gerente do hotel. - Que feliz acaso, não é verdade? Ainda não chegou a sua bagagem? Pode perguntar-se como passa a camarada Vuginskaia?
- Não trago mais bagagem - informou Chukov, com uma palmada no sujo saco de viagem. - É tudo. Acabo de chegar da região das inundações.
- E a camarada Vuginskaia?
- Ainda conseguiu seguir viagem para Verkokrassnoi... Fiquei mais um dia e foi o fim.
- Deve ter sido horrível assistir ao que aconteceu. A televisão transmitiu imagens - retorquiu o gerente do hotel, ao mesmo tempo que esboçava um gesto dissimulado. Um groom acorreu imediatamente e pegou no saco de Chukov. Levou-o até ao elevador, como se fosse uma estátua de ouro. - O que posso fazer por si, camarada? Tem algum desejo?
- Tenho - respondeu Chukov, olhando para o elevador, cuja porta se abria convidativamente. - Gostava de dormir... nada mais que dormir...
Para um russo é sempre imponente examinar documentos oficiais com muitas assinaturas e carimbos. É uma prova das suas bases administrativas, de quem trata dos seus assuntos, da perfeição do aparelho burocrático e da organização da vida.
Chukov conheceu o milagre de um documento profuso em carimbos que imediatamente lhe proporcionou ingresso na Central para Irkutsk e depois no departamento de reservas do campo de aviação. Nos documentos preparados apenas colocara a data de partida; tudo o mais havia sido falsificado até ao pormenor pelos especialistas da CIA.
A bonita jovem que por detrás do balcão tinha de tratar da papelada fitou Chukov quase surpreendida. Como sempre
- Chukov já tinha experiência suficiente para o saber o olhar sonhador não errou o alvo; a jovem soltou uma ligeira risada e respirou fundo para fazer sobressair ainda mais a blusa, por si bem provida.
- Os aviões estão superlotados para os próximos oito dias, camarada - disse. - Posso colocá-lo na lista de espera, e se alguém desistir...
- O que acontece raramente.
- Muito raramente.
- Nesse caso, leia o documento e entregue-o ao camarada director...
A bonita jovem examinou os carimbos e as assinaturas, interessou-se mais pelo nome do que pelo conteúdo, e deitou um olhar de relance à lista dos passageiros já com reserva.
- É quase impossível, Vassia Grigorevitch - disse. É urgente?
- Quanto mais olho para si, camarada, mais desejo tenho de ficar em lakutsk - respondeu, apoiando-se ao balcão, ao mesmo tempo que deitava um olhar romântico à jovem e lhe provocava dessa forma um íntimo palpitar desenfreado.
- Podíamos ir ao cinema, ao teatro, às marionetas, dançar e ir para a cama... uma ocupação maravilhosa, pombinha...
- Vou falar com o camarada chefe. - A jovem, corada até às orelhas, pegou no documento, apertou-o contra o peito e desapareceu a correr por uma porta do fundo. Entretanto, Chukov ficou a examinar os cartazes das paredes, as típicas fotos de propaganda penduradas em todas as recepções dos campos de aviação, uma faixa de areia do mar Negro com pessoas alegres e seminuas. O muro do Kremlin com o mausoléu e a Torre Spasski. As excursões a Leninegrado. Um pedaço de troika numa floresta coberta de neve. A gigantesca deusa da Vitória empunhando a espada na colina Mamaiev de Estalinegrado, que agora se chamava Volvogrado. Bela Rússia, feliz Rússia, próspera Rússia, pacífica Rússia. Não havia cartazes dos campos de concentração siberianos. Tão-pouco das minas na montanha nem das pedreiras onde trabalhavam os banidos. Mas porquê também? Na Alemanha havia alguns cartazes mostrando os campos de concentração? «Viste a floresta e as montanhas... o grande acontecimento turístico!» E nos EUA penduravam-se cartazes das reservas dos índios na floresta? Ou dos bairros dos negros? «Visitem Harlém... Brancos que passeiem de noite sem companhia, aprendam a salvar a vida! Horas inesquecíveis por um punhado de dólares...»
Chukov estava precisamente a observar um cartaz com uma cena de bailado do Teatro Bolschoi, quando o camarada director surgiu apressadamente da porta do fundo. A bela pombinha, ainda com o rosto afogueado e um olhar intencional para o corpo musculoso de Chukov, foi pôr-se junto de um ficheiro, admirando silenciosamente o cliente.
- Este problema do voo é realmente sério, camarada Chukov - disse o director do campo de aviação.
-Estamos na Sibéria -contrapôs Chukov calmamente-, te, onde nunca se desistiu frente a qualquer problema. Teríamos alguma vez conquistado a Sibéria se .assim não fosse? pergunto: para nós, os pioneiros do socialismo, há realmente problemas?
«Oh! Claro», pensava o bom homem por detrás do balcão. «Parece tão afável e é um dos da pior espécie. Um atirador de palavras! Vem da pátria russa até à Sibéria e comporta-se como se pudesse andar a passear aqui como na Praça Vermelha. Existe, porém, o documento. Uma quantidade de carimbos e de assinaturas, na verdade ilegíveis mas provenientes das mais altas hierarquias de Irkutsk e de Moscovo. Com estes documentos derrubam-se torres... mas não servem para aumentar de tamanho um avião.»
- Tenho de partir amanhã para Irkutsk - disse Chukov antes daquele bom homem formular qualquer resposta. Deixo ao seu cuidado a forma de o conseguir, camarada.
- Amanhã? É completamente impossível. Uma delegação cubana, convidada do Estado, reservou nove lugares do avião.
- E os restantes nove lugares? Apenas preciso de um. Não sou um monstro, amigo.
- Os nove lugares estão reservados há uma semana. Três funcionários do Partido, dois oficiais, três professores e o famoso cantor Stanislav Korneivitch Slobin. Amanhã à noite irá cantar Boris no Teatro de Ópera de Irkutsk. Onde vê qualquer possibilidade para si, Vassia Grigorevitch?
- Sento-me no colo do piloto ou do co-piloto.
- É evidente que não lhe agradaria - retorquiu o director com uma risada azeda. - Porque não debaixo da saia da hospedeira?
- Combinado! - exclamou Chukov jovialmente. Escreva o meu nome na lista dos passageiros.
Ainda decorreu um bocado nesta troca de palavras, até apresentarem a Chukov a permissão, a todos os títulos excepcional, de viajar no cockpit, num assento de dobradiça atrás do comissário de bordo. Não se pode muito simplesmente fazer vista grossa a um documento com tantos carimbos e assinaturas. Sabe-se lá o que mais tarde pode vir de Moscovo? Há tanta gente importante na Rússia que quando se ocupa uma posição na baixa hierarquia tem de se agir cautelosamente. Num abrir e fechar de olhos, baixa-se de posição para simples bagageiro.
O director do campo de aviação sentiu-se contente quando, finalmente, viu Chukov pelas costas.
- Um homem antipático - desabafou com a jovem, que continuava apoiada ao ficheiro e praguejava contra o destino.
- Claro que reviras os olhos e apertas as pernas... mas um destes quanto mais longe melhor! Quem viaja com carimbos tem mais poder para nos prejudicar que para nos beneficiar. Nota bem o que te digo, vaca de olhos arregalados.
A bela avezinha ficou ofendida, virou-se na direcção de dois novos clientes e berrou-lhe:
- Aqui não estamos em Moscovo. Ou também tem um documento com vinte carimbos?
Na manhã seguinte, Chukov encontrava-se atrás da barulhenta delegação cubana, no hangar, e esperava pelo autocarro que os levaria até junto do avião. Os cubanos, praticamente na totalidade homens com barba à Fidel Castro e vestidos com o mesmo tipo de uniforme verde-acastanhado, aparentavam uma ruidosa jovialidade e contavam uns aos outros, na sua língua materna, o espanhol, as histórias de raparigas por que tinham passado em lakutsk. Chukov, que, infelizmente, compreendia espanhol, aparentava desinteresse e interrogava-se sobre tudo a que uma mulher asiática teria de se submeter, caso fosse a acreditar nos cubanos. Segundo o que diziam, as jovens siberianas eram as mais quentes de todo o mundo. Já que eram naturais de Cuba a afirmá-lo, devia existir algo de verdade na afirmação.
Mais tarde, já no avião, quando Chukov, depois de cumprimentar a tripulação, seguia sentado no cockpit atrás do comissário de bordo, no lugar com dobradiças, os cubanos foram mesmo ao ponto de cantar. Tinham trazido garrafas de vodka, instalaram-se nos assentos e bebiam como se fosse água o conteúdo dos invólucros de plástico distribuídos pelas duas hospedeiras.
Como já era de esperar, as duas jovens não demoraram a apresentar queixa ao comandante de bordo. Era impossível atravessarem o avião sem que, pelo menos, seis cubanos tentassem apalpá-las por baixo das saias. A passagem ao longo do corredor resumia-se praticamente a uma passagem de mão em mão, que tinham um único lugar como alvo. O que acabaria por se desenrolar constituía uma questão delicada, pois o voo até Irkutsk durava quase três horas.
- É sempre o mesmo com estes convidados estrangeiros!
- lamentou-se o comandante de voo. Tinha-se voltado na direcção de Chukov e retirado os auscultadores. O co-piloto estabeleceu contacto com a torre. - Temos de os tratar como amigos da União Soviética, mas comportam-se como porcos. Acha que devia ir lá fora e dar-lhes uma ensinadela? Escute só isto, camarada! Agitam o vodka dentro deles quando as hospedeiras se aproximam, agarram-nas e querem que se sentem com eles nos assentos. Não é a primeira vez que acontece. Assistia ao mesmo com uma delegação sul-americana. Quando interferimos, já quase tinham despido Calina lakovlevna. Estávamos a sete mil metros de altitude e, juntamente com seis homens, travámos uma batalha contra o grupo embriagado. Quando aterrámos em Irkutsk, três ambulâncias vieram buscar os feridos. Sentia-me capaz de os matar a todos. - O comandante de voo, um homem desportivo e ainda novo, apontou com o polegar para a sala de convívio. Os cubanos entoavam cantos revolucionários. - A esses, temos de lhes bater com chaves de parafusos!
Soltou um suspiro, voltou a colocar os auscultadores e informou a torre que os amigos da União Soviética cubanos iriam provavelmente aterrar deitados em Irkutsk. As duas hospedeiras entraram no cockpit e apoiaram-se, tremendo de irritação, à parede.
- Não voltamos a sair daqui! - declarou uma delas. Arrancam-nos as roupas. Não levante voo, Fiodor Anatolovitch! Exija que expulsem estes indivíduos do avião.
- São convidados do Estado - explodiu o comandante de voo.
- Mas as minhas pernas não são propriedade do Estado
- retorquiu a hospedeira. - Não vamos sair daqui!
- Deixe isso comigo! - declarou Chukov calmamente. - Acompanha-me, camarada comissário?
- Com prazer! - respondeu com um largo sorriso o comissário de bordo, um homem de meia-idade. - Qual a sua ideia?
- Temos vodka a bordo?
- Bastante - disse a hospedeira.
- Nesse caso, que venha! - disse Chukov apertando o cinto de segurança. A torre deu o sinal de descolagem. Ninguém foi verificar se os cubanos tinham apertado o cinto. Seria exigir demasiado das hospedeiras que fossem espreitar para o colo daqueles homens de comportamento selvagem.
- Quando estivermos nas alturas, destribuo a beberragem adicionalmente. Dentro de uma hora, no máximo, deixamos de ouvir qualquer som.
- E vomitarão toda a minha máquina - explodiu o comandante, assustado.
- É coisa que se pode limpar! - exclamou Chukov, erguendo as duas mãos. - O que prefere; sacrificar as suas hospedeiras ou ter o avião vomitado?
- Vamos partir! - decidiu o comandante. - Gostava mesmo de saber o que os outros países fazem com estes convidados!
«Podia responder-te, Fiodor Anatlovitch», pensou Chukov. «Mas será que te vai ajudar? Tens de os. levar para Irkutsk e quando chegarem lá haverá uma delegação para os abraçar, beijar nas faces, gritar ”Amizade! Amizade!” e dizer com um sorriso amável: ”Tivemos o maior prazer na vossa companhia.”»
Foi um voo surpreendentemente calmo. Os cubanos agarravam-se aos assentos, já paralisados pelo vodka, e quando Chukov avançou pelo corredor com o carro das bebidas e distribuiu mais garrafas nem as recebeu de volta. Um dos oficiais que seguia a bordo agarrou Chukov pelo braço.
- Devia ter-se vergonha! - observou duramente.
- Não iria melhorar a situação - contrapôs Chukov.
- E continua a distribuir mais vodka!
- Para os manter atordoados, camarada coronel - respondeu Chukov, agarrando-se ao carrinho das bebidas. É o que se chama a política dos corações desfeitos.
- O que é que disse? - perguntou o oficial soviético.
- Os cubanos regressarão à pátria e dirão: «Embebedámo-nos e tivemos putas na Rússia, amigos! Uma maravilha! É um bom país! São mesmo amigos! Viva a União Soviética!»
- explicou Chukov olhando amigavelmente o oficial, que o escutava surpreendido. - É ou não um sucesso político? Os processos através dos quais se conquista a amizade devem ser elásticos...
A aterragem em Irkutsk, que se sobrevoou uma vez, com uma vista espantosa sobre o mar Báltico e a taiga maravilhosamente colorida, processou-se normalmente, se se tomar em conta que, quando o avião pousou na pista, sete passageiros perderam o equilíbrio no corredor, pois naturalmente, não estavam com os cintos postos. Sofreram algumas beliscaduras, mas no estado em que se encontravam nem deram por nada.
Chukov despediu-se da tripulação como se fossem irmãos, beijou as hospedeiras e deixou atrás dele a desilusão de não ter combinado encontrar-se com elas. Ouviu alguns comentários neste sentido. Em Irkutsk começava uma nova etapa na vida de Chukov, e não se decidiu por logo se meter na cama de uma mulher, por mais maravilhoso que pudesse ser.
Chukov apanhou, imediatamente, um táxi do campo de aviação para o Hotel Sibir e entrou no sumptuoso hall de entrada com um à-vontade provocante. O seu aparecimento logo chamou as atenções: como é que um homem vestido com uma roupa tão suja e um saco ainda mais sujo debaixo do braço se atrevia a entrar neste salão de mármore, onde os camaradas impecavelmente trajados demonstravam inconscientemente que nunca existirá uma sociedade sem classes? Um recepcionista veio imediatamente ter com Chukov, ergueu-se como um arcanjo na sua frente e dirigiu-se-lhe com marcado desprezo:
- Perdeu-se certamente, não? Vou levá-lo novamente até lá fora.
Chukov soltou uma gargalhada e deixou cair o saco no chão de mármore. Soou como que uma bofetada. Duas senhoras que estavam próximo sobressaltaram-se e distanciaram-se rapidamente daquele homem sujo. Dois empregados do hotel deram a volta ao balcão da recepção. Como apoio ao recepcionista.
- Se me puseres a mão em cima, irmãozinho - avisou Chukov delicadamente -, desfaço-te primeiro o ouvido direito, depois o esquerdo e a seguir o nariz, até ao rabo! Estamos entendidos? E, agora, escuta bem o que te vou dizer, cabeça de atum. Chamo-me Vassia Grigorevitch. Do Hotel Lena, em lakutsk, reservaram-me um quarto de primeira nesta tua espelunca. Venho, tal como estou, da região das cheias, e se não saíres da minha frente meto-te no saco!
O recepcionista deu um salto para o lado, girou nos calcanhares e gritou através do luxuoso hall:
- Um quarto para o camarada! Está reservado. Acompanhe-me, por favor, camarada Chukov.
É curiosa a importância que os nomes conhecidos podem ter. Embora Chukov passasse a vida a acentuar que não era parente do marechal da União Soviética, bastava apenas o nome para que todos o cumprimentassem cortesmente. Não é nada absurdo, meus caros! Pensem no que aconteceria se num hotel da Alemanha Ocidental um homem se apresentasse na recepção, anunciando: «Sou Napoleão Bonaparte.» Existem apenas duas possibilidades: internarem-no num manicómio ou tratarem-no com o supra-sumo da delicadeza.
Os Russos decidem-se sempre pela delicadeza. Guardam sempre o manicómio como segunda saída...
Puseram, assim, à disposição de Chukov o quarto reservado antecipadamente. Um groom pegou sem pronunciar palavra no saco imundo e levou-o até ao nono andar, quarto 956. O chefe dos recepcionistas voltou a estudar respeitosamente o documento cheio de carimbos e de assinaturas e copiou o nome de Chukov e o número do passaporte para o livro de registo dos hóspedes. Como se pode errar! Entra um ’vagabundo pelo palácio de mármore do Sibir e quem é, afinal?
Uma alta personalidade. Um engenheiro qualificado. Um especialista. Um homem com bons amigos a apoiá-lo.
Chukov deu meia volta e desceu as escadas que levavam à per fumaria-hour i q u e. Mesmo à distância, avistou através das montras de vidro o rosto maravilhoso e triangular de Calina Teofilovna. Estava a arrumar novos perfumes na prateleira e não havia mais ninguém na loja.
Chukov entrou sem fazer ruído, tossiu ao de leve e disse:
- Quando se estica, tem um traseiro maravilhoso, OI! Galina Teofilovna voltou-te com uma exclamação abafada e olhou perplexa para Chukov. Os lábios tremiam-lhe violentamente.
- Você... -balbuciou.- Está vivo? Regressou mesmo?
- Já alguma vez viu um espírito tão atrevido, minha pombinha? Suba ao meu quarto. Ficará admirada com o que um fantasma é capaz de partilhar consigo.
- Céus! Mas que aspecto, Vassia!
- O de um homem que felizmente a taiga cuspiu. Sabe o que aconteceu em Ottok?
- A televisão e a rádio transmitiram noticiários - respondeu Galina, respirando fundo uma ou duas vezes. Tinha uns seios bonitos e bem providos. Chukov não voltara a recordar-se deles.
- E nadei no meio do estrume.
- É essa a ideia com que se fica ao vê-lo. Vamos comprar já um fato. - Apoiou-se à prateleira dos frascos de perfume e continuou a olhar Chukov como se ele fosse um fantasma. Tinha o rosto bem maquilhado, um vermelho-vivo nos lábios e sombra azul nas pálpebras. Quem vende cosméticos tem de ser uma demonstração ao vivo dos produtos. É um milagre que esteja aqui, Vassia, sabe? Um verdadeiro milagre. Eu... eu...
- Já me tinha riscado do mundo dos vivos. Como aos meus colegas que estiveram aqui antes de mim.
- Sim. Não tinha a mínima hipótese de alguma vez regressar. Em que quarto está?
-Número novecentos e cinquenta e seis. Vou subir imediatamente, abrir a cama e esperar por si, Galinuchka. Apareça dentro de vinte minutos. Quero tomar banho primeiro. Sou um indivíduo encantador quando cheiro a sais de banho.
- Nunca pensa noutra coisa?
- Tinha-me esquecido totalmente de como é bonita. Venho esfomeado da floresta, Galina...
- e com o aspecto de quem vai atacar a qualquer momento. De acordo. Vou ter consigo daqui a vinte minutos.
- Terei apenas a toalha a volta da cintura. Não se vá surpreender com tanta beleza num só corpo. - Chukov olhou em volta. Continuavam sós na loja e não se via ninguém nas proximidades que pudesse entrar. - Como vai o «tiozinho»?
- quis saber.
-Mais tarde. - Galina Teofilovna agia com a maior precaução, como se estivesse a mostrar uma loção de barbear a Chukov. Falar, naquele momento, do general Orwell era mais que loucura. As informações recebidas de Fort Patmos nos últimos dias também se assemelhavam a uma catástrofe.
- Ainda tens dinheiro? - perguntou em voz baixa.
- Bastante.
- Então compre um fato antes do mais. No corredor, a terceira loja do lado esquerdo.
- Já vi. E que preços! - retorquiu Chukov com um esboço de sorriso. - Que cor acha que me vai bem? Cinzento ou azul? Liso ou de riscas? Fico melhor de jeans apertados. Mas aqui não há jeans apertados...
- A taiga não serviu para o modificar em nada - observou Galina irritada. - Céus! Vá para o seu quarto. Nem sabe o que o espera.
- Mas que feitio infernal, Galina. Serei um anjo, se lhe der prazer.
Riu, voltou-se e saiu com passos rápidos. Galina ficou a vê-lo afastar-se até desaparecer na loja de fatos.
«Deus do céu! Ele conseguiu!», pensou, fechando os olhos por momentos. «Regressou! O único homem que ainda pode ajudar o general Orwell...»
Chukov tinha-se barbeado e tomado banho, mas não andava pelo quarto com uma toalha enrolada; optara por vestir o fato novo e uma camisa lavada e fora ao ponto de pôr gravata. Acabava precisamente de acender um cigarro quando Galina entrou. Dispensara-se de bater à porta, limitando-se muito simplesmente a entrar furtivamente. Dava igualmente a sensação de não se ter utilizado do elevador, mas de ter subido as escadas a correr até ao nono andar... respirava com dificuldade, comprimia as duas mãos junto ao coração e encostou-se à porta. Chukov apagou o fósforo e atirou-o para uma jarra de flores vazia. Tinham-se esquecido de pôr cinzeiro no quarto.
- Desiludida, Galina? - perguntou-lhe.
- Desiludida porquê? - replicou.
- Por não me ter apresentado nu à sua frente. Apressou-se tanto e veio encontrar o tipo já vestido!
- Merecia uma bofetada, Vassia .Grigorevitch!
- Achei melhor falarmos primeiro do «tiozinho» e só mais tarde recolhermos ao ninho doméstico. Prometo-lhe que me demoro exactamente quinze segundos a despir. Pode cronometrar o tempo.
Galina Teofilovna aproximou-se, deixou-se cair numa poltrona forrada a couro e estendeu a mão na direcção de Chukov. - Dê-me um cigarro.
- Fuma?
- De vez em quando. Sempre que estou emocionada. É de admirar que os meus nervos estejam abalados? Você regressou!
- Fumou até meio o cigarro que Chukov lhe estendeu, puxando fumaças rápidas e prolongadas, antes de prosseguir o diálogo. - Até os mais incrédulos entre nós rezaram para que o conseguisse!
- O que fizeram com o Ben Lauritz? - perguntou Chukov num tom duro.
- Ouviu a audiência do tribunal e as declarações que fez?
Era esse o objectivo.
- Sacrificaram o Ben.
- Não demorará a ser trocado. O Orwell negociou a permuta de Ben por três homens de topo soviéticos. Não víamos qualquer outra hipótese, Vassia Grigorevitch, de o informar que a missão Verkokrassnoi tinha sido anulada e devia regressar. Orwell precisa de si. Actualmente é mais importante nos EUA do que a nova base de foguetões.
- O Ben não esteve, portanto, em Verkokrassnoi?
- Não. Contudo, aqui julga-se que sim e todo o segredo já não o é mais.
- Está a falar como se fosse um garanhão da CIA. Porque não diz simplesmente: Vem cá, Vassia. Senta-te ao meu lado, pega-me na mão e acaricia-me o peito... Desejo-o tanto!
Calina Teofilovna fez de conta que não ouvira nada e olhou para Chukov, continuando encostada à parede.
- Orwell perdeu o rasto - limitou-se a dizer. - A vossa gente corre de um lado para o outro como galinhas depenadas em vida. Conseguiu-se desmascarar sete agentes de Frazertown... mas o mais perigoso continua sem aparecer.
- Andrei Nikolaivitch Pleniakov, conhecido por John Barryl... -observou Chukov num tom tenso.- O meu amigo John...
- De acordo com as suas informações telegrafadas, deve ter saído de Vinniza para se infiltrar nos EUA. Contudo, não houve registo de entrada de John Barryl, fosse onde fosse... todos os postos de fronteira tinham o nome dele na lista, todos os aeroportos, todos os portos marítimos, todas as estações de polícia. Contudo, apenas o nome. A descrição de Barryl adapta-se a centenas de milhares de homens.
- É um homem deslumbrante, Calina! Todas as mulheres deixam cair a saia ao olhá-lo...
- Ao que parece, ninguém o fez, pois há muito o teríamos apanhado. Até agora já prenderam vinte e nove Barryls. Todos bravos e leais amaericanos.
- Pobres rapazes!
- Um deles tinha mesmo oitenta e nove anos.
- Posso garantir que o meu amigo John só tem trinta e três. Ninguém será capaz de chegar a um disfarce tão perfeito
- riu Chukov, sentando-se junto de Calina, no braço da poltrona. Pôs a mão direita no busto firme e redondo. Não a afastou, mas os olhos estreitaram-se-lhe.
- Só você conhece John Barryl. Por isso se tornou necessário chamá-lo imediatamente de volta. Já vê como o assunto é importante, a ponto de termos sido obrigados a sacrificar Ben Lauritz.
- Foi uma canalhice de primeira. O Ben é um indivíduo excepcional!
- Orwell suspeita de que a esta hora Barryl já se apoderou de uma posição importante e infligiu grande mal ao seu país. Foi você próprio que telegrafou que Barryl será um dos adversários mais perigosos que alguma vez se infiltraram nos EUA.
- E é verdade - concordou Chukov, beijando Calina no pescoço e acariciando-lhe o peito. Ela começou a respirar com mais força pelo nariz, mas não se mexeu nem se opôs. Estivemos prestes a dar cabo um do outro por causa de Norma Taylor.
- Quem é ela? - interessou-se Calina rispidamente. Nesse momento, agarrou na mão vagabunda de Chukov e afastou-a do peito. - Nunca mencionou o nome. Em nenhuma das informações telegrafadas.
- Norma chama-se na realidade Dunia Andreievna Koroliov, um diabo de saias, de cabelos negros, daquelas que fazem cair os aviões quando o piloto casualmente as descobre em terra. Prepara batidos no balcão de uma leitaria e ocupava-se de hamburgers. Lá havia um movimento enorme. Pelo menos uma vez durante o dia, todos iam ao restaurante de Billy para deitar uma vista de olhos ao decote de Norma ou admirar-lhe as pernas esguias sob a mini-saia.
- Mas foi com ela para a cama!
- Acertou, Galinuschka.
- Você é odioso.
- É o que me dizem todas as mulheres e, em seguida, despem-se. Habituei-me a aceitar o facto como parte do meu destino.
- E só porque essa maldita Dunia era sua amante, não telegrafou o.nome dela? Vai ter dificuldade em explicar isso ao «tiozinho», Vassia Grigorevitch.
- De forma alguma. Segundo tudo indica, em Frazertown setenta por cento dos habitantes femininos permanecem na cidade. Como pertencendo ao quadro. Fazem parte da engrenagem da preparação. O nome de Norma não interessava, pois, ao general Orwell - retorquiu Chukov, que se levantou, afastando-se de Galina e começando a passear pelo quarto. «Dunia, minha moça», pensou. «Por tua causa estou a mentir com unhas e dentes. Quanto mais o tempo nos separa, mais te amo. Nunca acreditei que fosse possível. Uma pessoa agarrar-se a uma ilusão e acreditar que alguma vez se tornará realidade.»
- Ama essa Dunia? - perguntou Galina com o sexto sentido que todas as mulheres possuem em situações semelhantes.
- Amo.
- E, apesar disso, prepara-se para me despir... - Entretanto, podíamo-nos ir divertindo.
- Você é um homem que se devia matar sem qualquer pena, Vassia Grigorevitch. O que significa uma mulher para si? Apenas um corpo? Apenas uma sexualidade física? Um objecto de despejo? Aviso-o de que se me voltar a agarrar lhe dou cabo dessa maldita cara de anjo.
- Está com ciúmes, Galina Teofilovna - observou Chukov, parando na sua frente. - Todos os homens são fanfarrões e não se deve esquecer. Todos os homens se consideram irresistíveis. Falam das suas vivências, embora só tenham ocorrido em imaginação.
- Você não! Consegue o que quer.
- E está preparada para me dar.
- Odeio-o!
- O ódio gera as maiores paixões. Se neste momento formos juntos para a cama, sabemos exactamente que não nos veremos mais. Continuará a viver em Irkutsk e eu, algures, pelo mundo. Para quê esse ciúme de Dunia?
- Para si, ela é mais do que uma recordação.
- Também nunca mais verei Dunia.
- Mas se fosse possível, sentir-se-ia o homem mais feliz deste mundo.
- Não o nego.
- E atira-me muito simplesmente essa afirmação em cara? Gostaria de dormir consigo e apunhalá-lo pelas costas, Vassia - disse Galina Teofilovna, reclinando a cabeça para trás e fitando o tecto do quarto. Era mais bonita do que Chukov a avaliara... Quanto mais se olhava para ela, mais um traço de beleza se lhe ia descobrindo. Tinha a saia puxada para cima, revelando pernas esguias, de coxas firmes.
- Possuo instruções precisas para o caso de realmente voltar da taiga. Regressa à situação de oficial soviético.
- O meu uniforme ficou em Vinniza.
- Vai receber um novo e documentos perfeitos. É agora um membro da KGB.
- Da KGB? Pode ser perigoso, Galina.
- Nem pense nisso. Oficiais do Politburo aparecem inesperadamente nos postos de controlo e voltam a desaparecer sem deixar rasto. Não são obviamente as pessoas mais queridas. São, no entanto, também os eleitos, a quem ninguém pergunta se estão legalizados. Ninguém os detém, mesmo quando fazem as coisas mais inconcebíveis. Você, por exemplo, vai pescar...
- Deus do céu! Quem teve uma ideia dessas? - interrompeu-a Chukov, sentando-se na mesinha em frente dela. Estava a olhar-lhe para as pernas, o que não lhe passou despercebido. Contudo, não puxou a saia para baixo. Onde vou pescar?
- A sul do pequeno porto de Nauschki, no rio Selenga. A cem metros, rio acima, já se chama Selenga Gol.
- Soa-me a problema de palavras cruzadas.
- Irá pescar para a fronteira com a Mongólia. E quando estiver sentado despreocupadamente numa embarcação, virá um barco a motor buscá-lo, vindo da Mongólia.
- Mas que dramático! Os rapazes de Fort Patmos andam a ler demasiados romances de espionagem. Não é mais simples se mergulhar durante a noite nesse rio e nadar até à região mongólica?
- Não resulta. A fronteira encontra-se rigorosamente vigiada por matilhas de cães e por patrulhas. É totalmente impossível - até mesmo para um oficial da KGB - alguém andar de noite no rio. A sua passagem para a Mongólia terá de parecer como se fosse raptado na frente de todos.
- O facto causará um imenso burburinho diplomático.
- Já se fizeram os devidos cálculos. Deseja-se um estreitamento das relações soviético-mongólicas.
- E volto a fazer o papel de idiota que arrisca a cabeça. Está a ver bem a porcaria de profissão que temos, Galina? Como é importante cada dia que vivemos! Amanhã mesmo tudo pode ter chegado ao fim. Somos forçados a aproveitar e gozar cada hora. Devíamos, pois, ir para a cama juntos.
- Amanhã, de manhã, apanhará o avião para Ulan-Ude e daí para Kiakta. É a grande cidade fronteiriça. De Kiakta a Nauschki é uma hora de automóvel. Telegrafarei hoje mesmo, à noite, para o B III, em Suhe Bator, a dizer que está preparado para que o desviem.
- Temos algum contacto na Mongólia?
- Em Ulan-Bator está o capitão Cárter. Dirige um negócio de peles. Há quatro dias que tem o companheiro, precisamente o B III, à espera em Suhe Bator. Já lhe tinha dito que todos rezámos pelo seu regresso. Orwell organizou tudo para esta eventualidade.
- E se não tivesse regressado? Havia todas as hipóteses de que morresse. Foram iacutos que me salvaram.
- Orwell teria de se habituar à ideia de engolir o maior fracasso de toda a sua carreira.
- Quando fala, Galina, assemelha-se totalmente a um punho cerrado. No entanto, as suas pernas revelam o caminho para uma invulgar ternura.
- Pense noutra coisa, Vassia Grigorevitch – retorquiu Galina, levantando-se da poltrona, tirando da mala a tiracolo um mapa da região mongólica e lançando-o a Chukov. Apanhou-o no ar e começou a abanar-se. - Estude bem a paisagem. Deve aprender a movimentar-se como se há muito conhecesse a região. E conte com os tiros que irão disparar dos postos fronteiriços ao aperceberem-se de que o vão raptar.
- Pelo que vejo, trata-se de um panorama fantástico! Para Orwell pensar numa coisa destas, deve estar bem metido na merda.
- Trata-se igualmente de provocar um incidente na fronteira. Os mongóis irão pensar que você transpôs conscientemente as águas territoriais mongólicas e estão no direito de o prender. Além disso, os soldados soviéticos têm como alvo os mongóis. Os pequenos ferrões também queimam...
Avançou até à porta e parou de costas para Chukov, como que esperando o seu chamamento. Perante o silêncio, disse em voz alta:
- Tenho tudo preparado. A hora de transmissão é à meia-noite em ponto. Quer que dê alguma mensagem da sua parte?
- Quero - respondeu Chukov, desdobrando o mapa da região mongólica. - Peça ao capitão Cárter que tenha à minha espera uma garrafa de whisky. Se este rapto resultar, bem preciso dela. Depois da transmissão vem ter comigo, Galina?
- Não.
- É pena. Um dia tão movimentado merecia outro final que não fosse ficar deitado na cama somente a pensar em si.
Galina Teofilovna não lhe deu resposta. Saiu do quarto batendo com a porta.
Entretanto, deu-se um final de dia dramático, a milhares de verstas a nordeste, em Novo Sosnovka. Ali, enforcou-se, nessa noite, o médico do campo, Dr. Fediunin, na sua cela, servindo-se para o efeito de um lençol rasgado em tiras. Não viu qualquer outra saída depois de o major lankov o ter informado, com uma lógica fatídica, que apenas ele podia ser o assassino de Valia loanovna Vuginskaia e de Vassia Grigorevitch Chukov. O constante ruminar «Não fui eu!» deixara de ter qualquer poder comprovativo. E mais também Fediunin não podia dizer. O que representam as palavras contra o facto de que dois hóspedes do campo de concentração tinham desaparecido sem deixar rasto e de que o ciúme sempre constituiu um bom motivo de assassínio?
Cerca da uma -e meia da manhã, Chukov foi acordado. Um corpo elegante, quente e nu, meteu-se junto ao seu por baixo dos lençóis e agarrou-se-lhe imediatamente. Ia para dizer alguma coisa, mas uma respiração quente inundou-lhe o rosto.
- Cala a boca! - sussurrou uma voz completamente perturbada. - Se dizes uma palavra que seja, mato-te.
Galina Teofilovna era uma amante silenciosa. Numa situação em que Dunia teria mordido e arranhado e Vuginskaia gemido como uma gata selvagem, Chukov nada mais ouvia que a sua respiração ofegante. Também não havia luz... Na mais completa escuridão, Galina era a imagem da suavidade. Apenas disse à despedida, num fio de voz: «Obrigada, monstro», depois do que se esgueirou da cama e saiu a correr do quarto.
Chukov deu um salto atrás dela, acendeu a luz, mas apenas ouviu algures o bater de uma porta no corredor.
Na pequena mesa estava um fardo. Tratava-se do uniforme soviético com os documentos necessários. Por baixo da mesa avistou as botas engraxadas.
«A Mongólia espera por si, major Chukov...»
De manhã, Chukov voltou a passar pela perfumaria-bourique, para se despedir de Galina. Mas ela não estava. Uma outra vendedora asiática, de baixa estatura, explicou-lhe num gorjeio que Galina dera parte de doente. Chukov engoliu o desejo de perguntar onde ela morava. O primeiro mandamento era não dar nas vistas. Meteu debaixo do braço o saco de viagem - que continha o uniforme soviético -, deixou os melhores cumprimentos a Galina, pagou a conta do hotel na recepção e apanhou, seguidamente, um táxi para o aeroporto.
Chegado lá, foi aos lavabos, vestiu-se e reapareceu na pele de oficial, depois de ter esperado o suficiente para saber desaparecidos os camaradas que ocupavam os gabinetes à direita e à esquerda. Só no hangar tomou consciência de que havia um erro em toda aquela perfeição. Nem um só oficial da KGB se apresenta com um saco de viagem tão sujo como o dele.
Encostou a uma coluna este sobejo da taiga, dirigiu-se a uma loja e comprou uma mala de couro, simples mas resistente, com o tamanho suficiente para nela caber o saco de viagem. A vendedora pouca atenção prestou a Chukov. Era um cliente como outros mais. Na loja notava-se um grande movimento... aqui em Irkutsk podiam-se comprar muitas coisas mais baratas do que noutras cidades. Principalmente peles. E o Inverno preparava-se para atacar. O vento que soprava sobre o mar Báltico já tinha a geada em si.
Chukov arrumou o saco de viagem na mala acabada de comprar, deixou que o revistassem e tomou seguidamente o avião para Ulan-Ude. Estava a abarrotar de passageiros do Norte, que, na sua maioria, usavam já sobretudos e barretes de pele ou bonés de riscas, coloridos, com orelhas. Chukov era o único de pele branca... recebeu um cumprimento particularmente caloroso da hospedeira, deram-lhe um lugar junto à entrada e como boas-vindas uma chávena de chá verde.
- No avião viaja um da KGB - informou a hospedeira à tripulação do cockpit. - Parece inofensivo, mas quando se fixa bem o olhar há qualquer coisa por detrás.
Foi meramente um voo curto. Diante do edifício do terminal de Ulan-Ude, Chukov enfrentou pela primeira vez um mundo desconhecido. Aqui era a Ásia, aqui era a Mongólia, embora tudo aquilo se generalizasse sob o nome de Rússia. Na grande praça do parque estavam à espera autocarros e bondes, mas nas ruas que levavam à cidade genuína avançavam igualmente compridas filas de camelos, e carroças de madeira puxadas por juntas de bois seguiam aos solavancos. Um céu maravilhosamente azul, sem nuvens mas frio, pairava sobre a região.
Um buriata pequeno e de pernas tortas, que se via estar muito mais familiarizado com as costas de um dos pequenos cavalos de pêlo amarelo do que com um volante, bateu a pala do boné colorido e apontou na direcção de um Volkswagen preto estacionado junto ao passeio.
- Camarada major Chukov? - perguntou. Chukov, porém, tomou as suas precauções. Compôs uma expressão arrogante e olhou para o indivíduo como para alguém que lhe tivesse salpicado as botas.
- Não o conheço - retorquiu Chukov friamente. Desapareça do meu caminho.
- O seu automóvel espera-o, major.
- Não tenho automóvel. Vêm buscar-me.
- O seu automóvel tem a matrícula O I - riu o interlocutor.
O I era a identificação de Galina Teofilovna. Apenas um agente o poderia saber. Mesmo assim tornava-se aconselhável continuar a fingir nada saber.
- Você está bêbado, rapaz! - observou Chukov rispidamente. - Afaste-se já ou chamo a milícia.
- Os documentos estão no porta-luvas. O automóvel tem o depósito cheio. Boa viagem, camarada major. A chave já está metida na ignição. Siga pela estrada principal até Ust-Kiakta e depois meta pelo caminho estreito na direcção de Nauschki. Uma pequena ponte atravessa o rio Selenga. Para lá da ponte começa a região fronteiriça. Hoje o comando das patrulhas pertence ao capitão Deinekov. É um homem de sorte, Vassia Grigorevitch. O capitão Deinekov é um imbecil e um bêbado pacífico. Se o encontrar quando a tarde já for adiantada, estará certamente bêbado. Não terá dificuldades em iludir a patrulha da fronteira.
Chukov não deu resposta. Passou pelo pequeno buriato, dirigiu-se ao Volkswagen estacionado e meteu-se lá dentro.
A chave encontrava-se, de facto, na ignição, o depósito da gasolina estava cheio, os documentos metidos no porta-luvas aberto. Rumo ao aquartelamento militar de Ulan-Ude. Um serviço impecável. A gente de Orwell actuava com classe.
Chukov pôs-se em marcha sem olhar em redor e deu a volta à cidade. Memorizara a planta da cidade, depois de a ter estudado durante uma hora. Chegou à larga via que conduzia a Kiakta e tinha pouco movimento, pois quem estava interessado em ir até à fronteira mongólica? Apenas algumas caravanas de camelos se juntavam na estrada que levava ao Sul. Animal atrás de animal, ligados uns aos outros por cordas. Buriatos sorridentes cavalgavam ao lado dos camelos e incitavam-nos com gritos agudos. O tempo parara. Já há trezentos anos que as velhas caravanas de camelos seguiam aquele caminho, transportando peles, barretes e vasos de olaria, fardos de seda e de feltro, bem como tapetes coloridos e bordados.
A tarde já ia, realmente, adiantada quando Chukov chegou à pequena localidade de Nauschki. Atravessou-a, avistou o aquartelamento militar e as pequenas casernas da patrulha fronteiriça, esquivou-se ao encontro com o capitão Deinekov e seguiu com o Volkswagen directamente até ao rio. Quando desceu, logo se aproximou um jeep a toda a velocidade, erguendo nuvens de poeira. Chukov encostou-se à capota do motor do Volkswagen e ficou à espera. Compôs uma expressão muito arrogante e o segundo-sargento que desceu do jeep não previa nada de bom. Um major na região fronteiriça é algo a que não se está habituado. Quando se aproximou mais e reconheceu as insígnias no uniforme, sentiu um aperto no estômago. O que está a fazer um oficial da KGB em Selenga? Só se podia tratar de um controlo. Se vinha da presença de Deinekov, o camarada estaria certamente na disposição de tomar atitudes drásticas.
- Preciso de um barco - declarou Chukov, depois de o segundo-sargento ter gritado a plenos pulmões: «Segundo-sargento Baidukov com dois homens da patrulha da fronteira.» Baidukov fitou o major da KGB sem conseguir articular palavra e, seguidamente, olhou para o rio.
- Um barco? - repetiu.
- Um barco, seu lamechas! -gritou Chukov.- É assim tão raro? Quero ir pescar.
- Agora?
- Não aprendeu no curso que é à tarde que os peixes mordem mais facilmente o anzol? - rosnou Chukov. - Ao romper da manhã e ao cair da tarde. O que aprendeu, afinal? A não mijar nas calças? Arranje-me imediatamente um barco, Baidukov! Quis falar com o seu comandante de companhia, mas o capitão Deinekov... - Chukov interrompeu-se e fitou Baidukov intensamente. O segundo-sargento entendeu o que o silêncio queria dizer. «Está novamente bêbado, o bom do capitão», pensou. «Oh! E precisamente quando aparece uma fiscalização da KGB. Deixarão de querer aqui o bom do capitão. Bem tinha suspeitado que o camarada major é dos duros!»
- Há um barco, trezentos metros rio a cima. Pertence ao pescador Fettisov.
- Traga-o aqui, Baidukov.
- Aqui? Cem metros mais à frente é a fronteira.
- Acha que não sabia? - gritou Chukov, batendo com o punho na capota do motor. - Já alguma vez se ouviu uma coisa assim? Um segundo-sargento a querer ensinar um major! Deviam destacar imediatamente esta patrulha de fronteira para o Norte.
Foram palavras mágicas. Para o Norte... tal significava a taiga, ou mesmo o desconsolo da tundra. Sob um gelo eterno. Baidukov fez a continência, rodou sobre os calcanhares e regressou a correr até junto do jeep. Arrancou envolto numa nuvem de poeira e regressou vinte minutos depois. Um barco balouçava, de quilha para cima, no jeep. Os dois soldados do Exército Vermelho junto e atrás de Baidukov mantinham-no agarrado. O segundo-sargento, segundo parece, tinha contado tudo, pois olhavam para Chukov como se pretendessem espancá-lo.
- Para a água! - ordenou Chukov com uma incrível arrogância. Tirou a mala do assento ao lado do condutor e seguiu atrás dos três homens, que empurravam o barco para a margem e o metiam no rio.
«Ninguém que me conhece, acredita nos seus olhos, nem sequer Orwel, que espera tudo de mim», pensou. «Três guardas da fronteira soviética a arrastarem o meu instrumento de fuga para o Selenga e a ajudarem-me a passar para a Mongólia. Se contasse uma coisa destas apanhava um soco na boca e tinha de pagar uma rodada por uma mentira indecente. Não é muito simplesmente uma coisa em que se acredite.»
Chukov meteu-se no barco, afastou-o da margem à força de remos e logo às primeiras remadas tomou consciência de que não iria ser assim tão fácil subir o rio. O segundo-sargento e os dois soldados mantinham-se no arvoredo da margem e seguiam-no com o olhar.
- Está a afastar o peixe com os seus olhos de goraz, Baidukov! - gritou Chukov. - Mande embora a sua patrulha. Posso pescar sem a sua presença...
Baidukov fez a continência, esboçou um gesto na direcção dos soldados e regressou ao jeep. Só que não arrancou. A esperança de Chukov, relativamente à sua partida, não se concretizou. Verificou, pelo contrário, que tanto o segundo-sargento como os soldados iam buscar as metralhadoras ao jeep e as engatilhavam.
«São bem-intencionados, aqueles queridos camaradas», pensou Chukov, continuando a remar para a fronteira com a Mongólia. Dedicou toda a atenção aos remos e recordou-se do tempo em que tinha ganho tantos prémios na equipa de remo da Universidade. Miller, o ás: basquetebol, ráguebi, natação, remo e principalmente boxe. As equipas rivais da Universidade respiraram de alívio quando Miller iniciou a carreira militar, onde foi procurar a agitação desejada.
«Ainda sou bom», pensou Chukov, satisfeito. «Mergulhar e remar com força. Erguer os remos, mergulhar, avançar. Sempre no mesmo ritmo. O barco deve voar como se fosse um avião.»
Tomou consciência de que se estava a aproximar perigosamente da fronteira mongólica, porque o segundo-sargento começou a agitar desesperadamente os braços e correu para a margem. Chukov estava já tão longe que não havia voz que o alcançasse. Ouviu atrás de si, no entanto, um nítido zumbido, que se aproximou rapidamente e se transformou no ruído de um motor.
O barco a motor do B III.
Chukov deu mais três fortes impulsos com os remos e ficou à espera. Na margem, Baidukov disparou três tiros de aviso e começou aos saltos, como que picado por um enxame de abelhas. O pequeno barco a motor aproximou-se, descreveu um círculo em redor de Chukov, entrepôs-se entre ele e a margem soviética e um homem acenou a bandeira mongólica intencionalmente na direcção de Baidukov.
O segundo-sargento e os dois soldados atiraram-se ao chão e dispararam para o alvo proposto. Um outro homem no barco a motor - seria o B III? - puxou o barco com um arpão.
- Salte para bordo, Miller - gritou. - Depressa!
- Estão a cometer um erro - retorquiu Chukov. - Sou Vassia Grigorevitch...
- Deixe-se de idiotices e salte.
Chukov pegou na mala, procedeu como se o estivessem a puxar para o barco, resistiu violentamente e subiu em seguida, para logo se deixar cair no fundo do barco. Alguns tiros bastaram para que o B III furasse o barco, que se afundou rapidamente. O barco a motor afastou-se a toda a força e desapareceu numa curva.
- Devíamo-nos fuzilar uns aos outros! - gritou Baidukov na margem para os seus soldados. - Mesmo diante dos nossos olhos... um major da KGB... Estamos perdidos, camaradas!
Mantiveram-se sentados na margem e concordaram em não ter visto nada. Se ninguém dissesse nada, ninguém fizesse perguntas e não se desse pela falta de um major, o melhor seria esquecer tudo. E, caso mais tarde procurassem um major da KGB, ninguém poderia garantir que o segundo-sargento Baidukov estava de serviço a essa hora, nesta parte do rio.
Fettisov, o pescador, também não servia de testemunha... não estava em casa quando Baidukov lhe foi buscar o barco. Tudo permaneceria no âmbito do enigma.
Na margem mongólica, por detrás da curva do rio, Chukov reapareceu do fundo do barco, onde se deitara. O homem que tomou pelo B III ia sentado junto ao leme e parou o motor. O mongol que tinha agitado a bandeira esboçou um sorriso satisfeito dirigido a Chukov. Tudo acontecera mais facilmente do que se imaginara.
- Um trabalho de mestre! - elogiou Chukov, falando agora inglês. - Parabéns!
- Obrigado, major Miller - agradeceu o B III com um aceno de cabeça para o fundo do barco. - Dispa-se. Não pode entrar em Ulan-Bator na qualidade de major soviético. O capitão Cárter tem a garrafa de whisky à sua espera.
- Galina transmitiu realmente essa mensagem?
- Sim e mais ainda. Estou encarregado de lhe dizer que é um patife e nunca mais poderá amar tanto um homem como a si. Foi a última frase que conseguiu pronunciar. Em seguida, começou a chorar...
«Bio-jet» é um novo tónico à base de cacau, adicionado com vitaminas. A acreditar na propaganda, faz bem a todos: convalescentes, crianças em crescimento, homens feitos, avós, raparigas, mulheres grávidas e mães, mulheres e os que passaram pelo serviço militar. Com o «Bio-jet» os desportistas criam forças renovadas e inconcebíveis, os soldados transformam-se em heróis e os homens cansados adquirem potência... a vida com «Bio-jet» é uma autêntica maravilha.
Não é, portanto, de admirar que os representantes do «Bio-jet» encontrassem todas as portas abertas e ouvidos predispostos. Anunciados por uma imensa campanha de reclamo na televisão, os representantes eram recebidos como os portadores do soro da eterna juventude. O que a coca-cola levou, praticamente, um século a conquistar para se transformar em padrão nacional, foi obtido pelo «Bio-jet» no prazo de um ano. Todas as semanas havia um programa televisivo chamado «Os records». Uma emissão requintada... quer se apresentasse um desportista, um professor de Física ou um cantor, uma dona de casa modelo, que não arranjara um esgotamento, apesar de dez filhos barulhentos, ou uma rapariga superexcitante que brilhava no écran e consentia um olhar para a blusa ousada e decorada... havia sempre a servir de cenário de fundo, como que por acaso, uma embalagem de «Bio-jet».
A bebida de cacau que representava a força, a beleza e a juventude.
John Barryl tinha como missão ser representante do «Bio-jet» no Novo México, sendo esse o cargo de que realmente necessitava para se infiltrar em toda a parte. Conduzia uma carrinha da firma com grandes embalagens de «Bio-jet» pintadas de cada lado e usava um boné com os dizeres «O Homem Bio-jet»; vestia um fato-macaco branco que tinha escrito tanto no peito como nas costas, em letras garrafais, «Bio-jet... e viverá até aos 100».
A nível dos EUA, não era imaginável nada mais discreto do que este disfarce de chamariz. John Barryl viajava através do país, todos o cumprimentavam, todos o conheciam e ninguém lhe fazia perguntas. A sua infiltração na sociedade americana fora totalmente conseguida.
O seu golpe de mestre consistia em que já há catorze dias que fornecia as cantinas das centrais nucleares americanas em Los Alamos. O homem mais perigoso de Moscovo tinha alcançado o seu objectivo: a cidade nuclear de Los Alamos franqueava-lhe as portas. Quando a carrinha da sua firma aparecia, as barreiras erguiam-se sem controlo. John Barryl acenava amigavelmente às sentinelas e gritava:
- Já beberam os vossos copos, rapazes? O que sentem debaixo das calças? - E passava todas as barreiras ao som de risos e graças picantes.
Um representante do «Bio-jet» não constitui, porém, uma sensação. Para quem está tão farto de slogans de propaganda como os habitantes dos EUA, um homem como John Barryl era uma figura familiar pertencente ao quotidiano.
Sensacional era, no entanto, para os homens da cidade nuclear de Los Alamos uma rapariga que trabalhava na Cantina II do grupo investigador de cisão nuclear e que, uma hora depois de ter entrado pela primeira vez ao serviço, já dispunha de êxito total. O facto devia-se à blusa bem provida e às pernas compridas e esguias, tão apertadas nos jeans cingidos que ninguém precisava de adivinhar o que estava por baixo. Perguntava-se à boca cheia como é que a rapariga conseguia vestir umas calças tão apertadas e se seria difícil despir-lhas.
Havia ainda à acrescer que trouxera consigo algumas receitas novas de batidos de leite e já há alguns dias que também utilizava o «Bio-jet». Sempre que alguém se aproximava do seu balcão e lhe dizia «Como se pode resistir a uma coisa destas, jovem? Pões um fortificante no leite, dás às ancas e temos de nos comportar como rapazinhos bem-comportados. É contra a natureza!», ela dava sempre a mesma resposta: «Faça essa pergunta à sua mulher, mister. Libertá-lo-á dessa sobrecarga.»
O chefe da cantina foi interpelado variadíssimas vezes. Há quatro dias que Stan Wolter amaldiçoava a hora em que tinha contratado a jovem, após ter procedido a todas as medidas de segurança e de ter recebido o consentimento da Divisão de Pessoal. Escreveu um cartaz, pregou-o na porta da cantina e acabou, assim, com todas as perguntas. No papel estava escrito:
«Chama-se Norma Taylor. Não é parente de Liz Taylor, x nasceu no Texas e acha que todos os homens são idiotas. As suas medidas: 93-74-90. Perguntem-lhe pessoalmente onde mora. Contudo, podem poupar-se ao esforço.»
Em Los Alamos este cartaz tornou-se quase tão famoso como a primeira e aqui totalmente conseguida cisão nuclear do mundo.
Apesar disso, continuava a haver homens, principalmente oficiais, incapazes de se resignar a que por detrás do balcão dos batidos de leite se encontrasse um tal tesouro e que mais tarde fosse passar a noite sozinha, certamente num confortável apartamento. Contudo, Norma Taylor fazia ponto de honra de conservar a sua fama de «mulher frígida». Até o primeiro-tenente Hendrik Gulbrannson, um indivíduo da altura de uma árvore - como o nome indicava - e de origem sueca, que tinha a fama de conseguir conquistar todas as mulheres com os seus radiosos olhos azuis, pois logo deixavam cair a roupa aos seus pés, debalde fez o cerco à Taylor. Chegou a mandar-lhe rosas vermelhas, numa tentativa de romantismo... Mas com uma alegria maliciosa de todos os observadores, as rosas foram parar ao lixo sem terem passado por uma jarra sequer.
Tão-pouco um serviço de espionagem, montado com perfeição militar, serviu para explicar a abstinência de Norma. Descobriu-se de facto onde morava - em casa de um droguista, num pequeno sótão -, mas jamais se viu ao seu lado uma companhia masculina. O droguista, interrogado com todos os quês e porquês por especialistas do Departamento de Defesa de Los Alamos, apenas afirmava que Norma Taylor, apesar da sua aparência, era um modelo de discrição e moralidade. Raras vezes saía, não recebia visitantes masculinos, adorava música clássica, mas também jazz e os autênticos e velhos blues de New Orleans (o droguista ouvia a música frequentemente, quando ela punha o gira-discos alto de mais), ia uma vez por semana ao cinema, não ia dançar, também não tinha amigas. Os ouvintes respiravam de alívio, pois se fosse lésbica teriam recebido um duro golpe! Numa palavra, viva tão discretamente que quase era anormal. Apenas uma vez tinha permitido um ligeiro revelar do seu interior - pelo menos era assim que o droguista lhe chamava -, quando no decorrer de uma conversa lhe perguntou se em Los Alamos havia qualquer coisa como uma Liga dos Direitos da Mulher.
- Não pode ser verdade! - exclamou um dos oficiais, realmente surpreendido. - Norma Taylor unida às mulheres alienadas? E não há nenhum de nós, rapazes, que o possa evitar? Devíamos ter vergonha! Não podemos deixar rolar uma pepita de ouro.
- Irei tentar uma última aproximação através da música clássica - dispôs-se Hendrik Gulbrannson. Trabalhava como oficial de vigia no Laboratório V da cisão nuclear, um dos poucos militares entre investigadores civis. Quando os laboratórios encerravam, à noite, e as informações diárias laboratoriais eram fechadas à chave em armários blindados, iniciava-se a missão de Gulbrannson. Controlava todos os dispositivos de segurança, o policiamento electrónico, as câmaras televisivas colocadas por todos os cantos e os alarmes, que funcionavam com raios invisíveis. Através de processos humanos era impossível chegar aos documentos do grupo de investigação quando o trabalho acabava. Apenas espiões efectivos nos Serviços de Investigação - como fora o caso do casal Rosenberg - tinham conseguido levar para o exterior material secreto. Contudo, também aqui actuavam os especialistas de Gulbrannson. Todos os que saíam do edifício nuclear eram revistados. A partir do Laboratório V havia apenas um caminho através dos aparelhos de raios X e que conduzia ao exterior. Os microfilmes, fosse em que lugar do corpo os metessem, ficavam inutilizados com estes raios invisíveis. Enegreciam.
Não conseguiam, portanto, avançar em relação a Norma Taylor. O que falava, mais tempo com ela, e a quem demonstrava mais amabilidade, era o representante do «Bio-jet», o fortificante vitaminado. Também ele foi observado pela turba dos conquistadores de Norma: nada se descobriu a seu respeito para além de que tinha uma boa aparência, uma graça sempre na ponta da língua, era capaz de fazer discursos maravilhosos sobre a sua bebida de cacau e - quando estava em Los Alamos - frequentava a taberna de Jimmy e de vez em quanto jogava uma partida de bilhar nas traseiras. Um homem inofensivo, cem por cento dedicado à sua profissão. Ninguém o tinha visto de outra maneira que não com o fato macaco branco e o boné de pala «Bio-jet... e viverá até aos 100».
Algumas vezes, John Barryl era chamado à parte sempre que vinha da companhia de Norma. Se tivesse aceite todas as ofertas, conseguiria um bom part-time. Alguns propunham-lhe cem dólares por uma oportunidade de falar a sós com Norma. Um major, pai de quatro filhos, acenou-lhe mesmo com quinhentos dólares se John conseguisse convencer a frígida Norma a encontrar-se com ele no cinema. Contudo, não eram apenas os militares, que se assemelhavam a granadas de mão prontas a rebentar, mas também os cientistas de ar grave, a acorrerem cada vez em maior número ao balcão dos batidos. Estes lançavam olhares intencionais, fixavam a blusa bem provida de Norma, sorriam-lhe com ar de imbecis e tornavam-se mais insuportáveis com as suas batas brancas de laboratório do que os soldados de uniforme. Houve até um professor que revelou a sua preferência por um batido de leite «Bio-jet» com natas e tentou que Norma Taylor se interessasse por ele, proferindo uma conferência sobre «Superdesenvolvimento biológico por irradiações atómicas».
Norma escutou-o com paciência e por fim observou tranquilamente:
- O leite custa trinta centimes. Sem irradiações... Estalaram as gargalhadas, mas todos os que pensaram que um professor humilhado graduaria as suas visitas enganaram-se. O professor Verner Lovinsky voltou no dia seguinte à hora do almoço, bebeu o seu batido de leite pelos trinta centimes e comeu ainda uma sanduíche de salame.
Então aconteceu o inacreditável! Norma Taylor trouxe-lhe a sanduíche, ficou parada junto à mesa de Lovinsky e trocou um olhar com ele. Muito breve, seguido de algumas frases, que os que estavam perto ouviram. Norma disse:
- Estive a pensar no assunto, professor. Nesse crescimento enorme. E, no entanto, uma coisa disparatada. Com um sol tão artificial fica-se de facto independente de qualquer tipo de tempo. Deixa de haver colheitas más e teremos apenas colheitas excelentes. Que loucura!
Nessa tarde o professor Lovinsky voltou ao laboratório com as pernas a tremer. O primeiro-tenente Gulbrannson, que se metera em despesas e comprara uma sinfonia de Beethoven - a terceira, dirigida por Bernstein -, seguiu-o com uma expressão sombria e apanhou-o junto à entrada para o reactor simultâneo.
- Você e essa imbecilidade do supercrescimento! - disse-Ihe Gulbrannson sem hesitação. - Não pense que ficaremos a assistir calmamente às suas investidas a Norma. Deus do céu! Você é um homem famoso, mas pequeno de mais para Norma.
- É o que lhe vou provar! - retorquiu Lovinsky juanescamente. - Agora sei o que Norma sempre andou em busca. Um companheiro intelectual! E não um cabeça-de-atum com um uniforme!
- Quer meter-se em problemas, professor? - perguntou Gulbrannson com uma expressão sombria. - Podemos dificultar-lhe a vida.
- Você? Ah, deixe-me rir!
- Recorde-se de que tem a maioria dos oficiais de Los Alamos contra si. Apenas lhe resta a emigração...
- Mas isso são métodos de gangsters! Informarei as autoridades superiores!
- Neste momento estamos sós. Será, portanto, palavra contra palavra. E não há memória de que alguém chame mentiroso a um oficial americano sem provas. Pense bem no assunto, professor. A sua tranquilidade para se dedicar às investigações nucleares não é mais importante do que as ancas de Norma?
Também John Barryl olhou criticamente para Norma quando na sua visita seguinte ao armazém da cantina procedeu ao fornecimento do «Bio-jet». Aqui estavam sós. Se alguém entrasse podia vê-lo de longe. Havia apenas esta porta. o tacto de Norma estar a contar as embalagens era perfeitamente lógico e não dava azo a suspeitas.
- O que queres de Lovinsky? - perguntou John Barryl, enquanto Arrumava as embalagens de «Bio-jet» nas prateleiras. Essa coisa da irradiação atómica é um velho barrete.
Contudo, no Laboratório V faz-se alguma coisa. O que conseguiste saber?
- Nestes últimos cinco dias chegaram duas delegações do Pentágono e participaram numa reunião secreta. Ficaram duas horas na Casamata VI. Depois, espalhou-se um cheiro enorme a ferro queimado - respondeu Norma, encostando-se à prateleira. - Não sei mais nada, John. Lovinsky é meramente um chamariz... quero aproximar-me de Gulbrannson por meios decentes. Irá esforçar-se tanto por me conquistar que mais tarde andará como um cãozinho atrás de mim.
- O que significa conquistar? - inquiriu Barryl, franzindo o sobrolho. - Mato quem quer que te ponha a mão em cima, Norma! Como odeio todos estes bodes lascivos! Quando ouço como falam de ti e o que querem fazer contigo se conseguirem apanhar-te! Nesses minutos sinto crescer o instinto de matar dentro de mim. Sabes como
te amo...
- Tínhamos combinado não falar disso, John.
- Tenho de o fazer se tencionas atrair o Gulbrannson. Só essa ideia me põe louco!
- Há uma missão a cumprir, John...
- Tudo tem limites. Norma.
- Sabes quais foram as palavras do general Sinionev quando se despediu de mim em Frazertown? «O teu lugar de infiltração, jovem, é Los Alamos», disse. «Sabes o que é, realmente, Los Alamos? Voltarás a encontrar Andrei Nikolaivitch.» Acrescentou, porém: «Nunca esqueças uma coisa: não tens vida privada! Vives apenas para a tua missão, para a tua pátria! A Rússia é dona não só do teu espírito mas do teu corpo também. É a tua arma mais forte contra o capitalismo. Entendes-me?» E respondi: «Entendo, sir». O que terias respondido?
- Falaste disso ao Bob?
- Sim. - Era fácil mentir-lhe. Quando Barryl desapareceu subitamente de Frazertown, Bob estava ainda no bar de Hillmoore, preparando os seus cocktails infernais. Pensava muitas vezes naquela última noite com ele, depois de saber que ele era americano. Recordava-se da despedida, da lata do lixo com que o tinha ajudado a desaparecer de Frazertown, dos dias solitários que se haviam seguido e das noites mais solitárias ainda, trespassada de preocupações e devorada pelo desejo dos seus abraços. Tinham sido dias sombrios, até que Sinionev também a chamou à Câmara Municipal e lhe comunicou que estava decidido o seu destacamento para os EUA. Voara, pois, rumo a Nova Iorque por Viena.
- E o que disse Bob? - quis saber Barryl.
Norma voltou à realidade com um estremecimento e concentrou-se novamente em John.
- Chamou porco a Sinionev. Conheces perfeitamente a sua maneira de ser.
- Contudo, não lhe dissestes que já estavas... - Barryl engoliu as últimas palavras. - O amor pela pátria também tem os seus limites, Dunia.
- Estás louco? - retorquiu, fitando-o com os olhos escudos e bufando como uma gata assanhada. - O meu nome é Norma, idiota!
- Exacto, sou mesmo idiota. Porque estou a tomar parte em tudo isto? Porque ando com este boné horrível e este ridículo fato-macaco? Porque não te digo: «Anda, Norma! Somos americanos. Infiltraram-nos aqui, manejaram as nossas entranhas até considerarmos cada russo como um inimigo. Tínhamos de ser americanos perfeitos. E agora somos... e, no entanto, continuam a não permitir que o sejamos perfeitamente. Tenho a minha profissão, vendo ”Bio-jet” e ganho bem. Podes arranjar um emprego em qualquer lado. Vamos casar-nos, alugar casa e viver como um nojento casal americano. A Rússia... é o outro grande bloco do poder no Leste. Nós, os Americanos, temos todo o direito de desconfiar desse bloco.» Ou digamos muito simplesmente: «Que nos interessa a política? Temos o bife na frigideira, a cerveja no frigorífico, o automóvel diante da porta e para o próximo ano compramos uma casinha. E que quem nos quiser apanhar, vá para o Inferno! Principalmente esses malditos Russos...»
Estás doido de todo, John! - Interrompeu-o Norma assustada.
- Porque não hei-de dizer tudo isto? Quem mo impede? . Um punhado de homens do Kremlin? Um general...
- Cala a boca, John.
-Se me amas tanto como te amo, tão incondicionalmente, vem comigo. Estou disposto a romper... Telegrafo amanhã mesmo a minha demissão para Moscovo.
- Sabes perfeitamente o que isso significa. Serás riscado de todas as listas. Serás um homem morto.
- Mas que pode viver contigo. O que me compensará de tudo.
- Sabes tão bem como eu que é impossível, John. Porque continuamos a debater o mesmo assunto? Porquê? Só serve para nos atormentarmos. - Foi arrumando as embalagens de «Bio-jet» na prateleira, de forma a que as letras ficassem para a frente. Uma actividade absurda, apenas para se voltar de costas e não de ter de fitar John olhos nos olhos. Nunca lhe poderia dizer que o seu destacamento para a América, em que nunca tinha acreditado quando estava em Frazertown, significava para ela mais do que uma missão pela pátria. «Vou ter a oportunidade de rever o Bob», pensara imediatamente quando Sinionev lhe dera a ordem. «E encontrá-lo-ei se estiver na América. Primeiro deixo passar alguns meses, obedecendo docilmente às ordens de Moscovo... e depois irei informar-me a Washington sobre onde encontrar um tal major Bob Miller. Perguntar-me-ão: «O que quer ao major?» E responderei: «Tenho um filho dele.» Ainda não o conhece, porque não sabe o que se passou. Talvez apareça um outro oficial que queira ver primeiro a criança... terá de se convencer. Será mostrada uma criança que se pediu emprestada durante um dia a alguém conhecido. Tudo isto tem de ser preparado e necessita do seu tempo. Contudo, não é coisa de que se possa falar a John Barryl. Se soubesse tudo isto, era decerto suficientemente russo para me matar.»
- És um Pleniakov - retorquiu num fio de voz. - Não podes viver sem a Rússia.
- Tu representas a Rússia e a América numa só pessoa. Tu és um mundo inteiro, Norma - disse, olhando-a com uma expressão prescrutadora. Pela primeira vez, desde que se tinham revisto em Los Alamos, atreveu-se a fazer a pergunta que arrastara consigo durante todo o tempo. - É por causa do Bob? O que se passou depois de ter saído de Frazertown, Norma?
- Dás-te verdadeiramente conta de como a tua pergunta é insultuosa?
- Isso não é uma resposta.
- O Bob é teu amigo.
- O facto não o impediu de andar atrás de ti.
- Não fizeste o mesmo sempre que o Bob não se encontrava por perto?
- Amo-te, Norma...
- E se o Bob pensar da mesma maneira?
- Não é o tipo de homem que se prenda a uma mulher. Céus, tantas vezes o demonstrou na tua frente! Quantas vezes discutimos e nos ameaçámos de pancada só porque via em ti um colchão com vida...
- Ele disse-te isso? - perguntou calmamente. Os olhos estreitaram-se-lhe como os de uma fera antes do salto.
- Não. Podia-se intuir das suas palavras.
- Nunca o voltaremos a ver, John.
- O que nos impede, então, de nos casarmos?
- A nossa missão - retorquiu, pegando no recibo que Barryl já tinha preenchido e assinado. -Está tudo em ordem?
- Apenas me controlam superficialmente - respondeu Barryl, metendo o recibo no bolso do peito do fato-macaco.
- Não irão examinar eternamente todos os fornecimentos de «Bio-jet» aos raios X. Não há melhor disfarce. Afasta-te do Gulbrannson, Norma!
- Ele tem na mão a chave de todos os dispositivos de segurança.
- Nunca ta dará, nem sequer na cama. No entanto, um dia irão encontrá-lo com o crânio esmagado ou um buraco na fonte.
- És um homem estranho, John - observou Norma pensativamente. - Capaz de matar e de amar no espaço de segundos.
- Vales bem isso, Duniachka.
- É um erro, John - contrapôs em voz baixa. - Vocês, os homens, apenas se interessam pela aparência de uma mulher, mas não pelo seu íntimo. A maior parte das mulheres são muito diferentes do que deixam transparecer.
- Amo-te como es. Por dentro e por fora. E um amor sem perguntas.
- Nesse caso, não perguntes! - replicou num tom de voz que o acalmou. - Imagina que não nos tínhamos voltado a ver.
- E a única coisa de que não sou capaz - disse Barryl acaloradamente. - Rever-te era um desejo que me levou mesmo ao ponto de rezar. Foi o que fizeste de mim!
Em Fort Palmos apenas quatro homens sabiam que o oficial que descera do helicóptero era o major Miller. A sentinela de vigia à entrada do velho forte colocou-se em posição de sentido, examinou os passes, telefonou para a Central e seguidamente permitiu-lhe o acesso.
Miller sacudiu a cabeça quando se viram no pátio interior do antigo forte. Contrariamente a toda a tradição militar americana, não flutuava qualquer bandeira num poste elevado. Nada dava a entender que neste deserto se escondia temporariamente o quartel-general do Grupo de Destacamento I da CIA.
- E vocês acreditam realmente que aqui ninguém vos descobre? - perguntou Miller aos oficiais que o acompanhavam. - Vocês menosprezam realmente o outro lado! Eles agarram-se-vos como chatos e vocês não dão por nada. Conheci os tipos do lado de lá e embebedei-me com eles ao desafio... O que Moscovo nos envia é o primor da elite.
Orwell bem pode esconder-se calmamente por aqui. Há muito que os Russos têm o nome de Fort Patmos assinalado nos seus mapas com um círculo vermelho. O homem que vos fornece o leite pode chamar-se Vassili Adolfovitch lerofiev...
- Desde que estiveste entre os nossos amigos «vermelhos», farejas russos por toda a parte ou quê? - Os oficiais riram. Conduziram Miller até à próxima sentinela, que se encontrava diante do edifício em ruínas do governo militar do forte, e deram-lhe uma palmada no ombro. - Estás outra vez no Novo México e não na taiga.
O general Orwell recebeu Miller como a um filho pródigo, atraiu-o, praticamente, sem palavras a si, e pôs-se diante dele como se estivesse a contemplar um quadro.
- Estás com mau aspecto, Bob! - observou. - No entanto, conseguiste maravilhas. Já soube através do Cárter tudo o que aconteceu. O curioso é que os Soviéticos não reagiram. Não houve um protesto por causa do incidente fronteiriço, nem uma queixa por causa da troca de tiros, nem fotografias dos elementos do Exército Vermelho... absolutamente nada. Parece tratar-se de uma nova táctica. - Orwell arrastou Miller até uma cadeira, tirou da secretária whisky e dois copos e encheu-os até meio. Era uma coisa que Orwell nunca fazia. Devia estar iminente qualquer diálogo quente que apenas se podia suportar com umas goladas de álcool. O que aconteceu na Rússia, Bob, podes contar-me depois. Tivemos de te mandar regressar, porque aqui não avançámos.
- Já estou a par que Pleniakov vos escapou! - retorquiu Bob, bebendo imediatamente, como brinde, um ligeiro gole de whisky que lhe queimou a garganta. Bob considerou a sensação agradável, na medida em que se coadunava com o seu estado de espírito. - Não foi nada leal o vosso procedimento com Ben Lauritz - comentou rispidamente.
- Eu sei, Bob - concordou Orwell, fitando o tampo da secretária. - Travámos longos debates sobre o assunto. Contudo, que outro meio podíamos utilizar para te informar? E o Ben é um indivíduo fabuloso. Acedeu imediatamente, quando lhe fizemos a proposta. Podia optar, Bob. A decisão cabia-lhe inteiramente. Se tivesse respondido que não, teríamos aceite. Contudo, dispôs-se logo - retorquiu Orwell, ao mesmo tempo que se voltava para trás, retirando um telex da pasta aberta. - Convence-te disso. O acordo é perfeito. Dentro de quatro semanas, o Ben será trocado por três agentes soviéticos. Já está em Moscovo e é tratado como uma castanha quente. Além disso, há a considerar que os Russos acreditam realmente que ele se introduziu na base de foguetões de Verkokrassnoi.
- E apesar disso não o trocam? - observou Bob, enquanto lia o telex, devolvendo-o em seguida a Orwell.
- Oferecemos-lhe três agentes do topo. Sentíamo-nos culpados em relação a Ben Lauritz. De resto, um deles é igualmente um aluno de Frazertown. Trabalhava como contabilista na Central Eletric que fabrica os monitores electrónicos para nós. Descobrimo-lo casualmente através de uma antiga caixa postal.
- Não conseguiram que estabelecesse contacto com Pleniakov?
- Já tinha saído de Frazertown na altura do ingresso de Pleniakov. Não o conhece. Aliás, ninguém o conhece... além de ti. - Orwell voltou-se novamente para trás e empurrou um grosso dossier na direcção do interlocutor. - Temos aqui todos os John Barryl que encontrámos até agora, juntamente com os respectivos currículos. Todas as listas telefónicas foram examinadas por computador e todos os registos na polícia observados de fio a pavio. Foi a maior busca até hoje efectuada nos Estados Unidos... e nada. Todos os Barryl sujeitos a investigação revelaram-se como cidadãos leais.
- E quantos Barryl andam por aí que não têm telefone e a quem a polícia nunca porá o dedo em cima?
- É aí que nós nada mais podemos contar do que com o acaso. Talvez nos descrevas tão perfeitamente Pleniakov que nos permita fazer um retrato robot. É possível, Bob?
- Difícil, sir - respondeu Bob, fechando momentaneamente os olhos. Memorizou Pleniakov. Como dançava com Norma no bar de Hillmoore. Como se sentava na gigantesca ceifeira-debulhadora, vestido apenas com uma fina camisola interior, a tapar-lhe os ombros largos e musculosos. Como se mantinha de pé no ringue, aplicando os mais duros golpes como se fossem carícias. Como, uma manhã, de cabeça perdida, apareceu à porta dele e gritou: «O que aconteceu a Norma? Saiu do restaurante do Billy e não foi para casa! É o fim, Bob. Não consigo pensar em mais nada!», enquanto quatro metros à frente, Norma estava deitada na cama e tremendo de medo.
«Poderia descrever-te correctamente, Andrei Nikolaivitch. Vejo-te em todas as situações por que uma pessoa pode passar, da felicidade à dor, da ternura ao ódio. Contudo, um retrato-robot nunca define essas coisas... não se podem passar ao papel.»
- Seria um tipo de descrição aplicável a milhares de pessoas - prosseguiu Bob, tenso. - Um metro e oitenta e sete de altura, cabelo claro e cortado curto. Uma figura desportiva. Um rosto jovem a que não se dá trinta e cinco anos. Um tipo que inspira imediatamente confiança, que se gostaria de ter como amigo... Acha que é coisa que se possa desenhar ou pintar? Até um Leonardo da Vinci se negaria...
- Permites-me que te diga Merda!, Bob - resfolgou Orwell, provocando um esboço de sorriso em Bob.
- À vontade, sir.
- Tiraste fotografias em Frazertown, Bob!
- E de que maneira! - esclamou Bob com uma gargalhada, fitando o general Orwell com uma expressão sonhadora. «As fotografias de Norma!», pensou. «Toda a sua atraente nudez na minha cama. A sua fotografia mais bela, espreguiçando-se diante do espelho. O sol da manhã espelhava-se como uma auréola vermelha nos seus seios. «Em seguida atirara a máquina para o lado e levara-a novamente para a cama. Tinham decorrido horas em que o mordia e lhe arranhara as costas com as unhas afiadas, semelhantes a marcas de chicote. Claro que também fotografara Pleniakov. A nadar no Bug, diante da ceifeira-debulhadora, antes de um desafio de futebol. Também ninguém o proibira de fixar a imagem fotográfica de Frazertown. A praça do mercado, o gigantesco hamburger plastificado de Billy em cima do telhado, o estádio, o ginásio de boxe de Harry Fulton, a Câmara Municipal com a bandeira americana. Em Frazertown era-se realmente um americano livre. Só que depois...
- Quanto às fotografias, tudo estava brilhantemente organizado - explicou Bob, afastando recordações para longe. - Entregavam-se os rolos para revelar e ampliar no laboratório fotográfico de Jack Maxwell e podiam-se ir buscar as fotografias, três dias depois. Exactamente como entre nós. Contudo, agora segue-se o mais importante. Jack mostrava-se satisfeito com todas as fotografias tiradas, e até nos podíamos sentar a uma mesa e admirar as suas obras de arte. Jack chegava mesmo a dar ensinamentos sobre exposição e as lentes oclusivas, quando uma fotografia não era bem conseguida... e seguidamente recolhia de novo as fotos e metia-as numa máquina de destruição, colocada junto ao balcão. Apenas restavam bocados sem sentido. Era assim o da fotografia em Frazertown. Jack Maxwell chama-se, de resto, Afanasiv Ilitch Novochishin. Se, por conseguinte, vier a ser publicada algures uma fotografia com o nome de Maxwell... pode ser de Afanasiv.
Orwell escreveu imediatamente o nome e voltou à prestar atenção a Bob.
- E a tua minimáquina?
- Caiu-me à água quando tive de eliminar o Fulton. Só mais tarde dei por isso. Uma falha. Confesso.
- E no microfilme tinha fotografias de Pleniakov? - inquiriu Orwell voltando a integrar-se na pele do profissional e no tratamento por você, após ficar encerrada a conversa privada.
- Claro. Além de algumas paisagens muito’ belas de Frazertown, tiradas do rio - acedeu Bob com um encolher de ombros, à guisa de desculpa. «Além de todas as belas fotografias de Norma», pensou. «Quando adormecera esgotada e oferecia o corpo na cama, de joelhos encolhidos e a menor
vibração de nervos excitados visível ainda sob a pele das coxas. Uma mulher daquelas só se encontra uma vez na vida... mas não lhe posso dizer nada disto. Também não perdi a máquina fotográfica no Bug. Tive-a sempre comigo, num saco de plástico impermeável, no fundo do saco de viagem. Esteve sempre em todo o lado... na viagem de comboio para Ottok, nas grandes cheias, no campo de concentração de Novo Sosnovka. Levei-a também na viagem para o Lena e quando rastejei de gatas pela taiga e dizia: ”agora rastejas como um cão sarnoso...” Só quando desfiz as malas no Hotel Lena em lakutsk, verifiquei que a máquina desaparecera. Os iacutos tinham-na roubado... e era impossível voltar a recuperá-la. Durante nove dias fui um cadáver com vida, sir, e depois alegrei-me por conseguir voltar a correr. Nessa altura não pensei na máquina. Devo confessar-lho, -sir? De vez em quando, uma pessoa tem o direito de esconder algo que lhe abre fendas no polimento...»
- Merda duas vezes, Bob - retorquiu o general Orwell com um encolher de ombros. - Imagine que tínhamos agora uma fotografia de John Barryl. Apenas demorávamos uns dias a caçá-lo!
- Não se pode viver de contos de fadas, sir.
Orwell fitou Miller intensamente. Não era normal que se falasse daquela maneira com um general.
- A Rússia afectou-o, Bob - observou Orwell, sublinhando as palavras. - Estou curioso por ouvir o seu relato. Onde estava quando escutou o processo jurídico de Ben?
- Num campo de concentração rodeado de água por todos os lados. Foi ali que me vi forçado a matar com um golpe de karate uma das mais belas jovens que alguma vez tive na cama. A médica Valia loanovna Vuginskaia. Tinha o cabelo de um negro metalizado, nos olhos rasgados brilhavam continuamente partículas douradas, e quando se vinha erguia os punhos e gritava: «Canalha! Patife! Porco!» Depois chorava de felicidade e adormecia enroscada no meu corpo, como se fosse uma gata. Tinha seios pequenos e pontiagudos com mamilos de um vermelho-escuro, quase negro. Matei-a, porque entendi a mensagem de Ben e tentei entrar em contacto com Irkutsk. Foi nessa altura que me surpreendeu. Viera ter comigo para fazer amor. O que quer saber mais, sir?
Orwell fitou Bob Miller pensativamente e mordeu o lábio inferior.
- Está com os nervos em franja, Bob - replicou. Vejo e oiço que assim é. Devia passar seis semanas numa casa de repouso e receber tratamento de um psiquiatra. Não lhe passe pela cabeça que não compreendi a sua situação. Quando Calina Teofilovna informou que tinha chegado a Irkutsk, chegaram-me as lágrimas aos olhos. Não estou a mentir, Bob. Contudo, agora não temos tempo a perder. Não pode descansar. Tem de descobrir onde está John Barryl.
- Uma agulha no palheiro.
- Será que trocou de nome e deixou de se chamar Barryl?
- Não acho provável. Em Frazertown todos se integram de tal maneira nos diversos cargos e personalidades que uma substituição brusca apenas poderia significar um factor de insegurança. Pleniakov foi transformado em Barryl e assim permaneceu.
- Qual a região particularmente favorecida no plano do destacamento de Barryl?
Bob reflectiu. As conferências, os filmes, as horas de treino, os debates... eram obrigações. Uma vez que Bob não era incitado a treino especializado, pois o Centralburo não tinha o seu nome na lista, dispunha de bastante tempo livre até entrar de serviço como barman no bar de Hillmoore. Comia no restaurante de Billy, em companhia de Norma, ou praticava desporto, treinava no ginásio de Fulton contra o punchingball ou o saco de areia, ou ainda alugava um barco a remos para passear no Bug, que ali recebera o nome de Silver River. Uma vida estúpida. Em contrapartida, Pleniakov estava frequentemente ocupado. Referiu-se, por vezes, a cursos com um pequeno número de participantes e relacionados com física atómica. Bob tentara infiltrar-se nestes grupos, mas quando se apercebeu do rigoroso controlo quanto ao acesso no anfiteatro desistiu!
- São precisos passes especiais - dissera-lhe Pleniakov.
- Pede um ao presidente da Câmara. Só ele os pode conceder.
Bob fizera o possível por se poupar a aparecer ao general Sinionev. Mantinha-se no papel do barman despreocupado mas, curiosamente, Pleniakov, apesar de amizade que os unia, não se referia a este curso particularmente secreto. Nessa altura, Bob pensara: «Temos tempo. Há-de chegar a altura em que te vou arrancar tudo o que pretendo saber de ti.» No entanto, seguira-se o repentino destacamento de Pleniakov e esse plano fora por água abaixo.
- Sem querer dar-lhe certezas sir - disse agora
- Penso que Barryl foi destacado para uma central nuclear...
- Bob! - exclamou Orwell, levantando-se da secretária com um salto - É uma flor num deserto! Já não andamos às apalpadelas. Podemos passar em revista os locais relacionados com a energia nuclear.
- É um belo trabalho, que irá durar um ano...
- Não faz uma ideia do que já levámos a cabo para deitar a mão a esse maldito John Barryl. A nossa esperança é a de que ainda não esteja nos Estados Unidos.
- Coisa em que não acredito, sir.
- Nem tão-pouco, Bob. Sinto em todos os poros que está no país - retorquiu Orwell. dando a volta à secretária e abrindo uma gaveta com um fecho de segurança. Dela retirou um dossier, que consultou. Bob agarrou na garrafa de whisky que tinha ao seu lado e encheu o copo. Orwell observava-o com as pálpebras descidas.
- A embriaguez ilude mas não cura, Bob - declarou num tom severo. - Esqueça essa médica...
- Não é apenas Vuginskaia que está em causa, sir.
- Mais outra mulher? Então não me admiro nada com o seu aspecto. Também matou a outra?
- Não, sir - respondeu Bob, endireitando-se na cadeira.
- Seria uma mulher com quem passaria toda a vida.
- É você a dizer isso, Bob? O coração em chaga? tão desesperado...
- Totalmente, sir - riu Bob sem vontade. - Contudo, acaba por se sobreviver - rematou, apontando para o dossier. - Tem aí qualquer pista que conduza a Pleniakov?
- Talvez - respondeu Orwell, passando os olhos por uma folha escrita numa caligrafia miúda. - Tenho aqui uma lista de todas as empresas relacionadas com a cisão nuclear ou coisas afins. Como é evidente, há muito que foram fiscalizadas. Não há qualquer empregado com o nome de John Barryl. Examinámos todos os que foram contratados durante os últimos seis meses... Barryl, ou Pleniakov sob outro nome, teria caído na rede. De todos os lados, respostas negativas. No entanto, se Barryl fosse infiltrado na nossa investigação nuclear, seria no processo da produção. De outra maneira, não tem acesso aos planos.
- Pode conseguir contactos. Pleniakov pode dispor de ilimitados meios financeiros para comprar delatores - retorquiu Bob, esvaziando de um trago meio copo de whisky. Orwell observava-o de sobrolho franzido. «Assim não vais lá, jovem» pensou. «Corres lentamente à frente dos cães. Deve ser uma maravilha de mulher, a que conseguiu voltar os miolos tão completamente a um Bob Miller. Vinniza, a taiga, a fuga através da Mongólia, suportou tudo com bravura. E será precisamente uma mulher a deitar por terra Bob Miller? Seria a graça mais irónica do destino.»
- Comecemos pelo topo, Bob - disse em voz alta. Com mil raios. Ponha esse copo de lado e ouça-me como deve ser. Conhece Los Alamos?
- Quem não ouviu falar, siri A nossa Miami das bombas atómicas - retorquiu Bob com um gesto. - Pleniakov seria idiota se se metesse por essas bandas. Era o mesmo que atrever-me a infiltrar-me no quartel-general da KGB, em Moscovo. Los Alamos oferece tanta segurança como Fort Knox.
- Pense como russo, Bob.
- Foi o que aprendi a fazer. Por conseguinte, sir, penso que...
- Tem ordem para partir para Los Alamos.
- Sou eu que lhe digo: É um macaco, Tovaritch! replicou Bob, falando em russo. - O general Orwell fez uma careta, como se tivesse bebido vinagre, mas não interrompeu Miller. - Porque não me exiges que corte o instrumento ao presidente?
- Não percebo o que está para aí a resmungar, Bob, mas de uma coisa tenho a certeza: na qualidade de oficial soviético nunca se recusaria a uma ordem. - Orwell voltou a instalar-se à secretária e colocou o dossier nos joelhos. - Vai, portanto, partir para Los Alamos.
- De acordo - assentiu Bob, voltando a falar inglês. E depois apresenta-se o bom Andrei Nikolaivitch em Los Alamos e só lhe resta rezar à Nossa Senhora. Todos nós sabemos quanto tempo demora a construir uma rede de agentes. E logo em Los Alamos!
- Pleniakov tem tempo. Ou em Frazertown aprendeu algo sobre a escassez do tempo?
- Pelo contrário. Ali pratica-se a virtude russa de esperar. Aliada um pouco à rapidez de raciocínio americana...
- O que constitui uma mistura extraordinariamente perigosa, Bob! - rematou Orwell. - Segundo acredito, quando Pleniakov estiver no seu local de destacamento (pode não ser precisamente Los Alamos, mas é por lá que começamos) vai tecer desconsoladamente a sua rede como uma aranha e depois apanhar as pequenas moscas. É por esse meio que chega à vareja, até se ver bem no meio da nossa Pesquisa, sem ter dado um único passo nesse sentido. Um plano com base no tempo... E quanto mais se demorar no país, mais se integrará e se infiltrará sem dar nas vistas entre nós. Um americano entre americanos. Popular nos restaurantes, no bilhar, no salão de jogos, no drugstore, no posto de gasolina, em vários clubes. E quando casar, tiver filhos e ingressar num partido, o seu disfarce estará tão perfeito que só ele o poderá desmascarar, dizendo: «Sou Pleniakov, sua cambada de idiotas!» - Orwell respirou fundo depois de todo este discurso. - Só você, Bob, o conhece realmente! Tem perfeita consciência do que isso significa para o nosso país?
- Acho, sir, que nunca me vi numa situação tão estúpida. Devo, portanto, partir imediatamente para Los Alamos?
- É uma sugestão. Tem qualquer outro plano? retorquiu Orwell, atirando o dossier para cima da secretária.
- Não precisa de perder tempo com qualquer fiscalização dos funcionários. Como lhe disse, já foi efectuada sem qualquer êxito.
- Verificarei quem vive por perto - declarou Bob, agarrando no copo de whisky e fitando Orwell com uma expressão inocente. - Posso servir-me do resto, sir?
- Afaste-se do álcool, Bob. Vai receber ainda uma lista de todos os militares que trabalham em Los Alamos. O oficial dos Serviços Secretos é o primeiro-tenente Hendrik Gulbrannson.
- Oh, céus! O belo viking! - exclamou Bob, levantando-se.
- Conhece-o?
- Entrou na Academia Militar quando eu saí. Vivemos juntos durante quatro dias num bloco e depois dei-lhe uma tareia de morte. Andava atrás de Lydia. Lydia era cozinheira. Custou-me a despedir-me para sempre das tortas de chocolate!
- O que é que faria, Bob, se repentinamente deixasse de haver mulheres no mundo? - retorquiu Orwell, sacudindo a cabeça.
- Punha-me imediatamente à disposição de Deus para que criasse uma outra mulher a partir de uma costela minha.
- Essa da costela vem mesmo a propósito, Bob observou Orwell, com um riso paternal. - O jantar de hoje são costeletas com couve-lombarda. Discutiremos os pormenores da sua acção depois de comermos.
Ainda nessa noite um helicóptero transportou Bob Miller para Albuquerque, junto ao Rio Grande. Los Alamos, na fronteira da montanha San Juan, distava apenas cento e cinquenta quilómetros. A separá-los havia a região montanhosa do Novo México, banhada pelo sol e semeada de rochedos e areia avermelhada. Uma região tão solitária como a taiga. Só que a taiga, com as suas florestas ondulantes, era mais bonita... Aqui, a Sul dos EUA, havia apenas montanhas nuas, extensões de cactos no deserto, uma seca poeirenta, solidão com um calor ardente e, de vez em quando, uma tempestade de areia que envolvia toda a terra em nuvens vermelhas.
À noite, já Bob Miller se encontrava à janela do seu quarto, na caserna de Albuquerque. Erguia-se na orla da cidade e estava rodeada pelo’ silêncio do deserto. Os oficiais seus companheiros tinham trazido a Bob duas garrafas de tequilla mexicana. «Para companhia», como disseram. Bob tinha agradecido, mas ainda não bebera uma só gota da aguardente infernal.
«O que aconteceria se realmente encontrasse Andrei Nikolaivitch?», pensou. «Será que a nossa amizade vai perdurar e acabarei por o convencer a pôr tudo de lado e a pedir asilo político... ou surgirá entre nós uma inimizade à qual apenas um de nós sobreviverá?
Encolheu os ombros e fechou a janela. Do deserto uma brisa fria entrava no quarto.
Bob deitou-se em cima da cama vestido como estava e pôs as mãos debaixo da cabeça. Sentiu-se invadido por uma ânsia enorme e repentina por Dunia Andreievna. Sentia-se como se ela estivesse ali no quarto, na casa de banho, a tomar um duche e acabasse por vir ter com ele, com as gotas de água semelhantes a pérolas escorrendo-lhe pela pele aveludada.
- Meu pequeno tigre! - diria, depois do que lhe estenderia os braços e se deixaria cair sobre ele, apoderando-se-lhe de todo o corpo num espaço de segundos.
- És doido, Bob! - exclamou em voz alta. Pegou na garrafa de tequilla, arrancou a rolha com os dentes e levou-a aos lábios...
Hendrik Gulbrannson tinha preparado tudo até aos últimos pormenores, com a perfeição de membro do Estado-Maior.
Tinha sabido através de Stan Wolter, o chefe da cantina, que Norma Taylor queria ir nesse dia ao cinema e sairia uma hora mais cedo. O caminho que seguia já era conhecido: desde a cantina do Destacamento II, através do Portão V, e, depois do controlo, até à estação, onde os autocarros esperavam pelos trabalhadores em longas filas. Na maioria das vezes, Norma ia de autocarro até à cidade. Era prático, na medida em que a paragem ficava apenas a cinquenta metros do sítio onde morava. Contudo, também era frequente Norma ir de motorizada para casa. Tinha sido a sua primeira aquisição em Los Alamos. Uma máquina japonesa, com uma cilindrada de 95 centímetros cúbicos, velocidade máxima de 65 quilómetros, pintada de amarelo-claro, e uma cesta pendurada na roda traseira, muitíssimo prática para as compras no supermercado, onde ia diariamente. John Barryl aprovara a compra, pois o veículo dava uma maior mobilidade a Norma. Um automóvel teria chamado as atenções. Uma rapariga que trabalha ao balcão do leite não se podia dar ao luxo de comprar um automóvel, a não ser que estivesse em causa um amigo rico. No entanto, era um factor a pôr completamente de parte. Há dois dias que pertencia mesmo à Liga dos Direitos da Mulher. Quando se soube disso na central nuclear, houve alguém que sugeriu que se pusesse gravata preta durante um dia. Agora, Norma estava completamente perdida para o mundo dos homens.
Gulbrannson soubera, por intermédio de Stan Wolter, que nesse dia Norma iria utilizar a motorizada. Preparara, por conseguinte, o seu plano, e ficou, uma meia hora antes de ela aparecer, num sítio bastante escondido no caminho que conduzia através das frias montanhas. Numa curva, por detrás de um espinheiro. Esgotou o tempo a escutar música de rádio e com o contentamento da antecipação. Quando chegou a altura por que esperara tão penosamente, desligou o rádio, pôs o motor a trabalhar e dedicou-se a observar a estrada solitária através do largo retrovisor.
Decorridos cinco minutos, surgiu ao longe a luz fraca da motorizada. Gulbrannson apagou os faróis, esperou até que Norma - era realmente ela - passasse por ele, e em seguida foi atrás dela pela estrada. Decorridos alguns metros, tinha-a apanhado. Começou a segui-la de muito perto, viu comoela praguejava, erguia o punho e tentava manter-se na estrada, mas Gulbrannson apertou-a tanto com o automóvel que acabou por saltar para não ser empurrada contra as rochas.
Gulbrannson carregou nos travões e saiu do automóvel. Norma Taylor encostou-se à parede rochosa, respirando com dificuldade.
- Está bêbado? - gritou imediatamente quando no escuro não reconheceu o homem que desceu do automóvel.
- Não se atreva a aproximar-se mais. Atiro-lhe a minha motorizada a essa cabeça de borracho!
- Desconhecia por completo que fosse capaz de praguejar essas ordinances - disse Gulbrannson num tom alegre. Já a sabia capaz de uma incomensurável violência. Tenho um fraco por temperamentos desenfreados.
Avançou até mais perto de Norma, uma figura alta e esguia desprendendo elegância, acentuada pela farda. Não pusera o boné, a fim de aproveitar o impacte dos cabelos louros. Norma reconheceu-o. Riu-se, mas quem a conhecesse bem teria consciência de que agia com a maior prudência. Era um riso gelado que assinalava perigo.
- É você, Hendrik? - retorquiu num tom tenso. - Que prazer lhe dá ter-me assustado desta maneira? Ou será que hoje à noite bebeu um pouco a mais?
- Estou sóbrio até à medula dos ossos, Norma. - Agora, Gulbrannson encontrava-se na sua frente e apenas a motorizada os separava. - Sabe que tenho vivido como que ardendo em febre até me ocorrer esta ideia para lhe conseguir falar a sós?
- Uma ideia bastante violenta, Hendrik. Por pouco esmagava-me de encontro às rochas.
- Estou louco por si, Norma.
- Agora, achava melhor que fosse até a casa e tomasse um duche frio.
- Não consegue qualquer outra terapia para um homem que morre de amores por si?
- Não num local solitário e à noite.
- A situação pode mudar-se imediatamente, Norma,
- Nesse caso, tire o automóvel para me deixar seguir caminho.
- Tenho um disco comigo. Beethoven. A Terceira Sinfonia. Dirigida por Bernstein. Não lhe interessa?
- Hoje, não. Comporte-se como uma pessoa sensata, Hendrik e vá-se embora. Já conheço a sua terceira sinfonia...
- Mas não me conhece a mim, Norma - interrompeu-a Gulbrannson arquejante. - Tão-pouco a minha primeira, a segunda ou a minha nona sinfonia. Consigo toco violino, rufo tambores, toco todos os instrumentos de sopro de mundo, e aposto que será capaz de me escutar e de me acompanhar. Você é completamente diferente do que quer dar a entender. É um vulcão apagado, que neste momento vou pôr em ebulição.
Apesar do aviso, tudo aconteceu tão repentinamente que Norma nem teve tempo de lhe aplicar um golpe de karate. Gulbrannson agarrou-lhe nos braços, por cima da motorizada, encostou-lhe a cabeça ao peito, o que praticamente lhe tirou a respiração, e em seguida arrastou-a até ao automóvel. Ainda tentou afastar-se, quis gritar, atingi-lo com a cabeça, mas ao agarrá-la de surpresa Gulbrannson ficara senhor da melhor posição. Bateu-lhe com a cabeça no tejadilho do carro e depois empurrou-a para o banco traseiro. Atou-lhe as mãos e os tornozelos com tiras de plástico preparadas antecipadamente, amordaçou-a, beijou-lhe o nariz e os olhos, arrancou-lhe a blusa e apalpou-lhe os seios.
- Sonhei com isto - disse com uma respiração ofegante, a voz rouca e preso de uma enorme excitação. - É-me totalmente indiferente o que possa acontecer amanhã, Norma. Podes denunciar-me, que negarei tudo. Mas também pode suceder que ainda nos entendamos durante a noite e tenhas realmente prazer. Sou um amante espantoso.
Fechou a porta do automóvel, pôs-se atrás do volante e avançou. Estava tão excitado que não avistou pelo retrovisor a carrinha que, igualmente sem luzes, avançava cuidadosamente pela noite e tinha parado na mesma altura em que Gulbrannson o fizera. Agora ia segui-lo e tomou o mesmo desvio pedregoso escolhido por Gulbrannson. A carrinha deteve-se junto às rochas, um homem de fato-macaco branco desceu e correu, ao abrigo da sombra lançada pelas rochas, direito ao automóvel, que tinha parado junto a um monte de pedras.
Gulbrannson puxou Norma do banco traseiro, pô-la de pé e começou a acariciar-lhe os seios.
- Tinha imaginado tudo isto de uma outra maneira pronunciou num tom rouco. - Tencionava realmente tocar-te a sinfonia, abrir uma garrafa de champanhe e deixar que as coisas acontecessem por si. No entanto, o comboio partiu, deixando-nos na lama. O principal, no entanto, é que te tenho. Ficarás entusiasmada com a agulha que vai tocar o teu disco!
- Estás assim tão certo disso? - perguntou uma voz nas suas costas.
Gulbrannson deu meia volta. Tinha um olhar terrível, semelhante ao de um touro que vê uma capa vermelha na sua frente e contra ela investe permanentemente com os cornos. Reconheceu John Barryl, vestido com o fato-macaco com os dizeres habituais e cerrou os punhos.
- Desaparece, palhaço do cacau! - gritou. Em seguida, porém, tomou aparentemente consciência de que tinha agora uma testemunha perigosa, o que abalava a sua posição. Pretendeu puxar rapidamente o revólver, mas John Barryl antecipou-se-lhe.
Com uma violência enorme, um martelo atingiu o crânio de Gulbrannson e esmagou-o. Ele afundou-se sem um som, caiu junto a Norma, de encontro ao automóvel, ficou estendido no chão e só nessa altura um fio de sangue começou a escorrer da horrível ferida, inundando-lhe o rosto.
John Barryl retirou cuidadosamente o plástico da boca de Norma, para não lhe magoar os lábios, e em seguida transportou-a rapidamente como se fosse uma boneca enorme através da pedreira até à sua carrinha. Só então lhe soltou as pernas e as mãos.
- Estás a ver que não te podem deixar sozinha? exclamou, puxando Norma para o cobertor de lã que estendera no chão da carrinha. - Tenho de estar sempre ao teu lado...
Até essa altura tinha-se calado. O espectáculo do homem com o crânio esmagado, de onde jorrava o sangue, tinha-a paralisado. Deixou-se cair para trás, soltando um suspiro, e tapou os seios com a blusa.
- Também me teria saído bem sem ajuda. E sem assassínio - dissera-lhe em voz baixa.
- Seria praticamente um milagre!
- Teria de me soltar as pernas. Com as pernas unidas, não há homem que consiga o que quer que seja. E então ter-lhe-ia acertado em cheio nas partes baixas.
- E depois?
- E depois o quê?
- Iria seguir-te com o teu ódio até ao fim do mundo. Fosse como fosse, encarregar-se-ia de que te pusesses a mexer da cantina. E depois?, continuas a perguntar. Todo o nosso trabalho teria sido inútil. Norma... pensa bem! Devíamos realmente casar... Então, acaba-se tudo isto. Se isso te põe mais calma, grande patriota, diz para ti própria: «A Rússia assim o quer!»
Guiou cuidadosamente até à estrada e chegou à cidade de Los Alamos sem que alguém àquela hora desse por eles. No pátio da casa que Barryl alugara para o «Bio-jet», e onde fazia armazém, tirou novamente Norma da carrinha.
- A minha motorizada! - exclamou subitamente. - A minha motorizada vai estragar tudo. Continua na estrada!
- Achas que sou idiota? - retorquiu Barryl com um aceno na direcção da carrinha. - Arrumei-a antes de vos ter seguido até à pedreira.
- Nunca cometes um erro? - perguntou num tom acalorado. - Nunca?
- Quase nunca - respondeu John Barryl, abrindo a porta da casa. - Sobes ou tens medo de que possa tomar o lugar de Gulbrannson?
- Não o farias, John.
- Talvez seja um erro...
- Também não tinhas necessidade de o fazer, John. Apoiou-se-lhe, tomada de uma súbita fraqueza. Ele colocou-lhe o braço em redor da cintura, atraiu-a a si e sentiu a pressão dos seios firmes. Era como outrora, em Frazertown, quando tinham dançado juntos pela primeira vez. Uma sensação atordoante. - Dá-me mais um pouco de tempo e depois casamos.
- Norma! - Queria beijá-la, mas ela interpôs a mão entre os lábios. - Vou deitar-me como um cão à tua porta e ficar à espera.
Acariciou-lhe os olhos, fazendo-o suspirar ante o gesto terno e beijou-lhe as palmas das mãos com os lábios secos.
«Temos de nos despedir, Bob», pensava entretanto. «É um disparate ficarmos à espera um do outro. Nunca mais nos voltaremos a encontrar. Contigo estava no céu, mas tenho de continuar a viver na Terra. Nunca te esquecerei, Bob... no entanto, a vida continua e cada vez nos vai separando mais um do outro, casarei com Andrei Nikolaivitch e serei uma boa esposa. Não é uma traição. Bob. Sempre pensarei em ti, como num maravilhoso conto de fadas...»
- Faz-me uma chávena de chá muito forte, John - pediu entrando à frente dele em casa. - Tenho de coser a blusa em tua casa. Não posso andar assim pela cidade.
O cadáver de Hendrik Gulbrannson foi descoberto de manhã pelos trabalhadores da pedreira.
Gerou-se um enorme burburinho. A Polícia Militar barricou todas as saídas, buscou pegadas, o que naquele chão rochoso não deu resultado, e um médico da enfermaria militar garantiu:
- O Hendrik foi atingido com um objecto rombo. O assassino deve possuir uma força monstruosa... abrir um crânio desta maneira, é quase anormal!
Ao mesmo tempo que na pedreira se colocava o corpo de Gulbrannson num caixão, aterrava o major Bob Miller no campo de aviação militar de Los Alamos. Tinha decidido não percorrer de automóvel a distância que ia de Albuquerque até à cidade nuclear através de um caminho poeirento, mas preferira examinar do ar a região inóspita. Sobrevoou igualmente o terreno da central de investigação nuclear, depois de lhe ter sido dado consentimento pela vigia de terra. Caso contrário tê-lo-iam abatido sem hesitações.
Lá de cima, tudo parecia terrivelmente monótono e sujo. O berço da era atómica não era nada atraente.
Logo a seguir à aterragem, Bob foi informado de que tinham assassinado Gulbrannson na noite anterior. Ainda não tinham assassinado Gulbrannson na noite anterior. Ainda não tinham detectado um possível criminoso. Contudo, as más-línguas afirmavam já que se deviam interrogar os homens casados cujas mulheres tinham escolhido a cama de Hendrik. Havia também mexicanos de sangue quente que bem gostariam de o ver no Inferno.
- Os mexicanos utilizam a navalha - comentou Bob, enquanto iam atravessando o campo que levava ao edifício de controlo. - É pena. Gostaria de ter voltado a rever Hendrik. Tinha uma maneira de ser simpática: por mais que se lhe batesse no traseiro, nunca se ofendia!
Até por volta da hora do almoço Bob andou bastante ocupado: a ser apresentado a todas as pessoas importantes e a pronunciar o veredicto de que a CIA trazia Los Alamos debaixo de olho. Fê-lo conscientemente. «Se estiver aqui algum que trabalhe para os dois lados», especulou «dará imediatamente o alarme. Trabalhar com insegurança não é nada agradável.»
- O que me diz a um bom almoço, major? - perguntou o director do Bloco V ao inesperado convidado. - Temos aqui uma cantina maravilhosa. E na cantina uma surpresa que não lhe vou revelar. É algo que deve ver e apreciar como especialista.
Bob fez um aceno de cabeça afirmativo, sem compreender os esboços de sorriso que se desenhavam nos lábios dos outros presentes. Saíram juntos do laboratório, atravessaram o amplo pátio entraram no edifício da Cantina II. Stan Wolter, que já tinham chamado, veio ao seu encontro e cumprimentou Bob com um amistoso «Como está, major?» Ninguém diria quanto a morte de Gulbransson o afectava. Só ele sabia atrás de que caça o morto tinha ido na noite anterior. Considerava fora de questão que Norma lhe tivesse esmagado o crânio. Gulbrannson devia ter sido assassinado antes de encontrar Norma. Fosse como fosse, Wolter achou melhor não dizer palavra sobre o assunto.
- A nossa Cantina II - anunciou o director do Bloco V com visível orgulho. - E ali, major, por detrás do balcão da leitaria, está a coisa mais bela que Los Alamos tem para oferecer! - acrescentou com um gesto largo.
Bob Miller estremeceu. A palavra «leitaria» assemelhou-se a ter recebido uma pancada na nuca. Virou-se lentamente e respirou fundo.
Nesse mesmo momento, por detrás das torneiras cromadas, surgiu uma cabeça de cabelos negros e compridos, e uma mão colocou um batido em cima do balcão. Seguidamente, a cabeça ergueu-se. Uns olhos enormes e negros fitaram o recém-chegado.
Os olhos encontraram-se pelo espaço do segundo em que sentiram o coração a saltar-lhes do peito. Foi uma explosão silenciosa. Céu e Terra eclodiram, sem que os que os rodeavam disso se apercebessem.
Norma...
Bob...
Ficaram em frente um do outro, com a fixidez de estátuas e sem despregarem os olhos um do outro.
«Vou morrer», pensou. «Oh, céus. Vou morrer! Vou morrer! Bob. Bob. Agarra-me. Vou morrer...»
- Quer beber leite, major? - perguntou o director do’ Bloco V atrás das costas de Miller.
- Sim... - respondeu a voz de Bob, como que vinda do fundo de um poço. - Um... um batido de morangos...
Interrompeu-se. Era-lhe impossível pronunciar outro som que fosse.
Olhou para Norma, ela olhou-o e teve a sensação de estar a sangrar de cem feridas.
A Rússia estava em Los Alamos.
Um batido de morangos é uma bebida preciosa, podem acreditar-me, quer a vossa preferência vá para whisky, cognac ou outras coisas do género. Leite gelado, batido com um pouco de espuma, com um tom rosado, conferido pelos morangos, constitui, a uma temperatura de trinta e cinco graus à sombra, uma frescura que invade todo o corpo. A maioria das leitarias utiliza, para o sabor a morango, um xarope de aroma artificial... Norma Taylor, ou antes Stan Wolter, o gerente da cantina de Los Alamos, dava valor à autenticidade e qualidade e utilizava as melhores matérias-primas, por conseguinte, morangos verdadeiros, esmagados. Além disso, não estavam trinta e cinco graus na cantina, pois o ar condicionado trabalhava suavemente e proporcionava uma temperatura agradável. Apesar disso, Bob Miller sentiu-se como se estivesse no deserto ardente e o batido de morangos soube-lhe a fel.
O director do Bloco V, à semelhança de todos os que se sentavam em redor de Bob Miller, alardeava uma sonora jovialidade, principalmente quando, com sorrisos dissimulados, se deu conta de que Norma Taylor, conhecida por «a Frígida», devia ter causado uma tão profunda impressão em Bob que este se mantinha calado, agarrando o recipiente de plástico com um olhar sonhador e fitando a toalha da mesa redonda.
Norma serviu o leite, silenciosamente e sem que a mão lhe tremesse. Bob fitou aquela mão, de que conhecia todos os poros, as pequenas e esguias articulações, os dedos finos, as unhas capazes de se transformarem em garras e de lhe rasgarem a pele, quando Norma explodia em toda a sua paixão e no momento do êxtase final deixava de saber o que fazia.
- Obrigado - agradeceu Bob acaloradamente, quando a mão de Norma desapareceu do seu campo de visão. Não ergueu os olhos, mas, tal como em Frazertown, sentiu que o olhar dela lhe queimava a nuca. - O batido está com bom aspecto. Onde aprendeu a fazê-los, Norma?
Não lhe respondeu, colocou os restantes copos em cima da mesa e desapareceu, rapidamente, por detrás das torneiras cromadas. Um forte atrás do qual se entricheirava. Ali, passou por água os copos utilizados, afastou com uma sacudidela o cabelo comprido e negro que lhe caía sobre o rosto e dissimulou a emoção que se apoderara de cada um dos seus músculos.
«Agora, Bob, basta uma palavra tua e a minha vida acaba. Também trago comigo uma cápsula de veneno, escondida entre os seios, numa roseta do soutien. É um veneno com uma acção de segundos. Basta uma palavra tua, Bob!»
- Não é o tipo dela, major! - riu o director do Bloco V, bebendo o batido. - Tínhamos apostado que, pelo menos, Norma lhe daria uma resposta. Contudo, depois de até se ter tornado membro da Liga dos Direitos da Mulher...
- E porque a conserva aqui, se é tão mal-educada? interrompeu Bob. O primeiro gole do batido chegara-lhe. Não conseguia muito simplesmente beber mais.
- Acha possível mandar embora uma visão destas? retorquiu um jovem primeiro-tenente que bebia whisky e distribuía cigarros à sua volta. - Norma é mais interessante do que uma corrida de cavalos. Se soubesse, major, qual o preço a que subiram as apostas de quem conseguir dobrar Norma...
- Acho de muito mau gosto - comentou Bob Miller, afastando o copo de leite e erguendo os olhos para Norma. Avistava-lhe apenas o emaranhado de cabelos negros, em parte ocultos pelas torneiras cromadas do balcão.
- O que é que Los Alamos tem para nos oferecer, Bob?
- retorquiu o director do Bloco V, esfregando os pés um no outro. - Lá fora um calor abrasante, à nossa volta montanhas frias, alguns cinemas e bares na cidade, e para além disso o trabalho nas centrais. É uma glória trabalhar para a pátria...
Na realidade, é tudo uma grande merda. Morre-se de tédio. Por mais macabro que possa soar, o assassínio de Hendrik Gulbrannson veio dar um pouco de agitação a esta espelunca. E agora está aqui.
- No que me diz respeito, pouca alegria lhe irei dar, sir - replicou Bob, erguendo-se abruptamente. - Uma pergunta, meus senhores. Sentem-se tão em segurança aqui em Los Alamos como em Fort Knox, não é verdade?
- É uma afirmação que se pode fazer sem dúvida. As nossas medidas de segurança são perfeitas.
- Devia canonizar a sua crença na perfeição. - Os companheiros olharam Bob Miller surpreendidos e ergueram-se também das suas cadeiras de plástico. - Não existe a perfeição, se bem que nós, os Americanos, nos orgulhemos de ter estabelecido a união entre a técnica e o homem. - Fitou pelo espaço de segundos a fila dos seus acompanhantes e soltou aquela gargalhada ilusória, sonhadora e alegre que sempre enganava e levava a conclusões erradas. - Quanto tempo é necessário para fazer ir pelos ares uma porta blindada?
Os técnicos fitaram-no surpreedidos.
- Quem pode calcular uma coisa dessas, major? retorquiu um deles. - Em primeiro lugar, o sistema de alarme impede que alguém se aproxime da porta. Em segundo, era preciso um corrosivo especial. E em terceiro...
- Norma Taylor é uma porta blindada?
- Das mais fortes - disse o director do Bloco V falando do fundo do coração.
- Então veja como a nossa perfeição é fraca!
Bob Miller afastou-se do círculo dos acompanhantes e dirigiu-se a passo rápido até ao balcão reluzente. Norma ergueu a cabeça, e os cabelos escuros esvoaçaram... Nos olhos grandes e escuros havia todo um misto de medo, interrogação e amor.
- É um peneirento! - sussurrou um dos oficiais. Podia evitar esta cena ridícula.
Bob parou diante do balcão e olhou para a mão de Norma, que deslizou lentamente da cintura até ao peito, detendo-se no rego marcado. O polegar e o indicador agarravam - sem que os outros o vissem - a roseta do soutien. Os cantos da boca tremiam-lhe... o único traço de emoção no rosto de uma beleza fascinante.
- Deixa isso! - ordenou Bob por entre os dentes e de forma a que apenas Norma o ouvisse. - A morte não é solução. Aliás não conseguirás meter nada na boca. Sou mais rápido que tu. - E prosseguiu, em voz alta: - Acha preciso, Norma, tapar essa visão maravilhosa com as mãos? Não me olhe como se tivesse vontade de me comer vivo. Não me assusta. Até me sentiria, pelo contrário, no sétimo céu se me mordesse na altura exacta. Devíamos experimentar, Norma. Existe uma espécie de canibalismo erótico em que não há necessidade de despedaçar a carne. Conheço, por exemplo, uma rapariga cuja pele cheira a pêssegos acabados de colher...
Os companheiros de Bob mantinham-se como que pregados ao chão e apostavam em silêncio que, no mínimo, o major iria receber uma sonora bofetada aplicada pela mão dura de Norma. Nunca ninguém se atrevera a dizer-lhe qualquer coisa do género. A ninguém passara tal ideia pela cabeça.
Norma Taylor mantinha-se em silêncio; havia, no entanto, um brilho no seu olhar. Não existia força humana nem vontade que conseguissem abafar a emoção que se traduzia em lágrimas.
- Gostaria de sair consigo - disse Bob. - Ir tomar um cocktail a qualquer lado. Sem truques... Não tenho habitação própria aqui, moro na caserna dos oficiais. Também não tenho um quarto alugado num motel fora da cidade. Também não lhe vou desapertar o fecho depois do quarto copo. Quando está livre?
- Hoje, às cinco da tarde... - respondeu Norma num tom de voz entrecortado.
Em toda a cantina reinou a maior das surpresas. Norma Taylor respondia a uma proposta masculina. Algures, devia ter caído um santo do altar. O inconcebível acontecia!
- Venho buscá-la, Norma. Entendido?
Fez um aceno de concordância. No entanto, os olhos escuros imploravam: «Tem pena de mim, Bob! Não sei o que queres fazer comigo, mas sei que tens de fazer alguma coisa. Na vossa mais secreta central nuclear há uma russa! Contudo, também não viveu uma vez um dos mais perigosos americanos numa cidade fantasma junto ao Bug e viu tudo o que pertencia ao maior segredo da Rússia? Foi liquidado depois de desmascarado? Foi passado clandestinamente para fora numa lata de lixo, por baixo de restos de comida. Por uma rapariga chamada Dunia Andreievna. Uma rapariga que apenas conhecia o comunismo, apenas o ódio ao capitalismo, apenas a missão de liquidar o mundo ocidental... até que dois corpos nus suaram de amor até ao esgotamento e tudo o que tivera valor se desfez e foi reduzido ao nada sob as carícias das mãos os beijos de lábios quentes e entreabertos. Surgiu um novo mundo, a perfeição desde a ponta dos pés à ponta dos cabelos: um mundo consolidado e soldado a partir de dois corpos em brasa. O princípio de toda a vida, uma fusão de estrelas no infinito. Duas pessoas cujo grito de amor significava a morte constante e o renascer sempre novo.
É tudo, Bob. E, agora, faz o que quiseres.»
- Tem automóvel, Norma? - perguntou Bob.
- Não. Uma motorizada.
- Arranjarei carro - Bob estendeu a mão. Norma hesitou, em seguida tirou a mão do peito e da cápsula de veneno oculta no soutien e deixou-a prender nos seus dedos. Ele apertou-lha, mas não recebeu resposta. - Já bastantes idiotas lhe disseram como é bonita, Norma - prosseguiu Bob em voz alta. - Teve toda a sensatez em não os escutar. É o tipo de mulher que realmente não devia existir. Se houvesse mais como você, acabava-se a ordem no nosso mundo... Até às cinco, Norma.
Não esperou qualquer resposta, deu meia volta e regressou até junto dos seus companheiros. Todos o olhavam como se tivesse acabado de vencer sozinho a guerra do Vietname. O director do Bloco V estava mesmo corado e a suar, como acontece aos hipertensos.
- Uma coisa destas merecia que se gravasse numa placa em letras douradas! - exclamou com voz rouca. - Confesse-me uma coisa, Bob: consegue hipnotizar as mulheres com os seus olhos sonhadores? O seu olhar franco traz à superfície ocultos complexos de Diana? Acredita, realmente, que Norma estará à sua espera às cinco da tarde?
- Preciso de um bom automóvel, gente - disse Bob despreocupadamente.
- Tem ao dispor o meu Oldsmobil, do modelo mais recente.
- E onde é que se pode comer bem por aqui?
- No drive-in do Jerry. Contudo, também é motel... e foi uma das coisas que desmentiu à Norma.
- Certo. Eu próprio cozinharei.
- O que quer dizer com isso?
- Assarei nas montanhas, à boa maneira antiga, um pedaço de lombo de porco numa fogueira.
- Com a Norma? Loucura, Bob!
- E mais romântica do que vocês todos pensam - retorquiu, pondo o boné e ajeitando o uniforme. - Tem muitos conhecidos?
- Deus do céu! Todos a conhecem. Quem não anda à volta de Norma como um gato?
- Um amigo certo?
- Ninguém lhe pôs alguma vez o dedo. Só dois homens podem falar um pouco com ela. Um deles é Stan Wolter, o gerente da cantina...
- Examinado?
- E de que maneira! Foi seu colega na CIA, até ter recebido no Vietname um estilhaço de granada que lhe destruiu o cu. Ficou apenas com metade das bochechas. Ao olhar para Stan não se vê... usa sempre calças largas. Apenas se isola quando vai nadar. Deve ser um espectáculo curioso ver um homem sem cu. No entanto, a mulher já se habituou.
- E o outro? - interessou-se Bob, dirigindo-se para a saída da cantina.
- Um rapaz totalmente inofensivo. Fornece para a cantina, o Exército, as lojas de Los Alamos, os supermercados. Em resumo, para quem quiser, o milagre «Bio-jet» «Se és impotente na cama, bebe uma chávena de Bio-jet. Depois da quinta chávena, rapaz, não perdes mais o impulso. E se ela quiser mais, esvazia o pacote.» Os tipos fazem um negócio chorudo com esta bebida vitaminada de cacau.
- E a Norma fala com esse homem do «Bio-jet?»
- De negócios, como é natural. Ele traz a mercadoria, ela paga a conta e ele vai-se embora. Não é o tipo de Norma. Anda sempre vestido com um fato-macaco branco que tem escrito no peito: «Bio-jet... e viverá até aos 100». E no boné traz: «O homem Bio-jet». Tem sempre uma piada quando vem aqui. Há pouco disse: «Participação oficial! A firma Bio-jet não se responsabiliza por calças rebentadas e botões de breguilha descosidos.» É um número. No entanto, precisamente o oposto do que a Norma gosta. Quando o vê chegar faz uma cara como se a besuntassem de ácido clorídico.
Bob fez um aceno de cabeça afirmativo. Perguntar mais teria sido indiscreto. E havia bastantes perguntas a fazer. Há quanto tempo já estava na América? Desde quando tinha contacto com Los Alamos? Porque é que o seu nome não aparecia nas listas que incluíam todas as pessoas contratadas no último ano? Ocorrera aqui o descuido fatal de se pensar que uma empregada da leitaria com uma figura divinal e uns olhos ardentes se coadunava com a cama e não com a lista de hipotéticos agentes? Quem fiscalizara Norma Taylor e não fornecera informações? Devia ter sido Hendrik Gulbrannson, a quem ontem tinham esmagado o crânio com um martelo, segundo dizia o médico legal. Haveria interligações?
Bob deteve-se junto à porta da cantina antes de sair e virou ainda uma vez a cabeça para trás. Novamente o seu olhar se encontrou com o de Norma, fundindo-se como que numa chama única.
«Não tenhas nada a ver com nada, Dunia», implorava o seu olhar. «Diz-me antes: ”Sou a agente mais desastrada que Moscovo alguma vez infiltrou. Ocupo-me dos batidos e afugento os homens... foi este, até agora, o meu único
êxito.” Mas o que farei se me disseres: ”Sei o que se passa no Laboratório e já enviei os planos para Moscovo”... O que farei nesse caso, Dunia?»
Virou costas rapidamente e saiu da Cantina II. Os outros oficiais, investigadores, técnicos e chefes de secção que o acompanhavam esboçaram sorrisos. «Apanhou-a, pensaram. «Aquele último olhar... Será que se lhe pode levar a mal? Contudo, amanhã deitaremos o nosso querido major ao tapete. Nunca conseguirás gozar da companhia de Norma uma noite nas montanhas desertas comendo um assado. Nunca! Nem mesmo chegará a sair de automóvel com ela. Às cinco da tarde estará aqui como o automóvel e ficará à espera, enquanto o tempo escorregará como areia numa ampulheta. Depois, Bob Miller partirá os belos dentes a Norma Taylor.»
- Gostava de ir ver o meu quarto, gente! - disse Bob, quando se viram novamente na grande praça do forte, entre as colunas. - Tomar um banho, dormir uma meia hora e depois comprar a carne para assar. Onde fica o drugstore mais próximo que venda equipamento de campismo?
- Em Los Alamos. A loja de Luschek, na Rua dos índios - respondeu o primeiro-tenente que viajara com Miller até à cidade nuclear, fitando-o com uma genuína surpresa. Acha que tem mesmo hipóteses com a pequena, major?
- Sou um soldado, meu amigo - disse Miller soltando uma ligeira gargalhada. - Agradam-me as fortificações, principalmente quando têm formas tão redondas.
Quando chegaram as cinco da tarde já esta frase circulava no interior de Los Alamos.
Bob Miller estava às cinco em ponto junto ao seu Oldsmobil amarelo... pertencia ao director do bloco; esperava e fumava um cigarro, quando, nove minutos mais tarde, Norma Taylor saiu da zona interior, rigorosamente vigiada, atravessando o Portão III. Ninguém a controlou como fazia parte do regulamento. Não teve de atravessar as máquinas de raios X, nem sequer foi detectada com o aparelho radiogoniométrico... As quatro sentinelas limitaram-se a rir, disseram-lhe algumas graças e deixaram-na passar sem qualquer impedimento. Dando às ancas e com um vestido tão curto que lhe revelava, ostensivamente, as pernas compridas e esguias e o cabelo escuro atado com uma fita vermelha, aproximou-se de Bob. Trazia pendurado na mão esquerda um saco grande com listas claras. Também este não fora revistado nem radiogoniometrado. A queda nuclear da América podia ter sido trazida para o exterior desta maneira... Ninguém seria capaz de acreditar em tal coisa ante estas pernas, este andar, a parte de cima do vestido ousada e com o último botão desapertado, mostrando o rego dos seios proeminentes. Bob deitou o cigarro para o chão e pisou-o. Sabia que ele e Norma estavam a ser observados por uma quantidade de olhares. E ela, evidentemente, também o sabia. Trabalhar com energia nuclear em Los Alamos deixara de ser sensação. Mas que um Bob Miller conseguisse de facto sair com Norma Taylor de automóvel era ainda caso para largas discussões. Sobretudo relativamente ao professor Verner Lovinsky, que até esse momento fora encarado como favorito e decidira embriagar-se nessa tarde e ganhar dessa forma coragem para insultar o Exército e o fascínio do uniforme.
- É sempre assim! - comentara à hora do almoço quando se comprovou que Norma Taylor mostara pela primeira vez uma excitação de mulher. - O uniforme! O que é que isso significa? Quando o despe tem um corpo igual ao de todos nós. Quanto à inteligência, nem vale a pena falar.
- Aqui estou, Bob... - disse Norma suavemente, quando chegou junto dele.
- Tão simples como isso! - observou Bob con um aceno de cabeça. - Estive a observar-te. Nenhum controlo, nem a mínima fiscalização, a saída livre... Os homens transformaram-se em macacos sorridentes quando te vêem.
- Vais soltar novamente o grito da selva, como outrora?
- Bem podias levar na mala a morte da América sem que ninguém te detivesse.
- Podia sim. Bob - concordou, encostando-se ao seu lado, ao radiador do grande automóvel, olhando na direcção do Portão III, por onde saía nesse momento o segundo turno, que estava a ser controlado, radiogoniometrado e passado a pente fino. - Nunca acreditava em ti quando me contavas uma coisa que não aprendemos em Frazertown, apesar do aprofundamento dos cursos: Que vocês, os Americanos, ficam feitos imbecis diante das mulheres. Sempre a mesma ânsia de voltarem ao peito. São a personificação do complexo freudiano.
- Sobe! - ordenou Bob num tom duro. Abriu a porta e ficou à espera. Passou por ele, e ao fazê-lo pôs-lhe a mão na que ele mantinha no fecho da porta.
- Amo-te, Vassiuchka... - disse no tom suave com que ele sonhara durante semanas a fio e que o envolveu como uma golfada de sangue que começa imediatamente a martelar no cérebro. - Vais matar-me fora da cidade, certo?
- Se achas que sim, porque acedeste a vir comigo?
- Deve ser bom morrer nas tuas mãos.
- Com mil raios! Sobe imediatamente - explodiu. Esperou até a ver sentada, fechou a porta, deu a volta ao
carro, sentou-se ao volante, pôs o motor a trabalhar e arrancou a toda a velocidade. Sem tirar o dedo da buzina, afugentou os trabalhadores que se dirigiam a casa. A maioria vociferou, levou o dedo à testa... mas Miller continuou com um roto de pedra, rumo à larga avenida, e ali travou tão subitamente que Norma bateu com a testa no pára-brisas. Tal como se estivesse à espera de qualquer coisa do género, o embate não foi muito violento... Tinha-se agarrado ao puxador e fincado bem as pernas no chão do automóvel.
- Tenho comigo carne e um grelhador - comentou num tom acalorado. - Dentro de duas horas nasce a Lua. Podia ser tudo tão romântico como outrora, no Bug. Sentávamo-nos num dos bancos pintados de branco junto à margem e atrás de nós brilhava o hamburger gigante do telhado da espelunca do Billy. Não te posso oferecer o Bug nem o monstro de plástico... mas apenas a Lua e a solidão plena de lembranças. O que dizes a uma pedreira... que fica apenas a umas milhas? Norma nem sequer pestanejou. Limitou-se a afastar com as duas mãos umas madeixas da testa e recostou-se no assento. Cruzou as pernas. A saia, já por si curta, subiu inteiramente e revelou a coxa. Bob olhou de esguelha.
- Um biquini verde... como em Frazertown - observou.
- Tinha-me atado e queria violentar-me...
- Gulbrannson?
- Ao chegar à pedreira deixou de estar alerta. As pernas atadas não são a posição mais ideal para o êxito. Viu-se obrigado a baixar-se e havia bastantes pedras aguçadas em volta.
- Mataste Gulbrannson? Nunca o terias feito. Nunca. Não és capaz desse tipo de coisas, Dunia!
- Fomos preparadas para eliminar todo o tipo de excitação masculina nas situações adequadas. Quem o sabe melhor do que tu? - retorquiu virando a cabeça na sua direcção e soltando uma gargalhada. Era como se estivesse sentado ao seu lado em Frazertown num automóvel e quisesse ir ao bar de Hillmoore. À sua volta não havia o Novo México, mas as vertentes suaves da Ucrânia do Sul, os campos de trigo, os jardins em flor e, para lá da curva, o belo rio que aqui se chamava Silver River e não Bug. E sobre as suas cabeças o céu estrelado da Rússia a inundar os corações de uma melancolia com sabor a felicidade.
Um mundo maravilhoso, cheio de mentira, baixeza e morte! Um mundo nojento, só que ninguém o quer ver dessa perspectiva.
- Continua a guiar, meu querido - disse-lhe suavemente. Encostou-lhe a cabeça ao ombro e deixou-se estar nessa posição, enquanto ele descia a estrada a bastante velocidade. - Esperei por esta hora, mas nunca acreditei que alguma vez se concretizasse. Dois grãozinhos de trigo na imensidade unindo-se novamente... que coisa impossível! Nem sequer num conto fantástico, nem sequer com a varinha mágica de todas as fadas poderia acontecer tal coisa. No entanto, sonhei com isso... Todas as noites em que olhava para o céu, para as estrelas ou as nuvens, para a chuva ou simplesmente para as trevas e dizia: «Boa noite, Vassiuchka. Ficas sempre comigo. Mostraste-me que o amor é imorredouro. Boa noite, meu querido!» E depois adormecia sempre maravilhosamente por estar nos teus braços...
- Que informações telegrafaste até agora para Moscovo?
- perguntou Bob num tom rouco. Afastou-se da estrada principal e seguiu para as montanhas, por um caminho acidentado e despovoado, ao longo de frios barrancos.
- Amo-te, Bob - respondeu. - Tenho-te novamente. O maior dos milagres aconteceu... Falaste em Moscovo? O que é Moscovo? Quem é Moscovo? Ouvimos essa palavra alguma vez? Moscovo... Onde foste buscar essa expressão? O que significa?
Travou e agarrou Norma pelos ombros, atraindo-a a si. Estava semideitada contra o peito dele e com o ombro direito de encontro ao volante. Devia causar-lhe dores, mas nada o acusou na sua expressão. Apenas os olhos grandes e negros deixaram transparecer um brilho bem do fundo.
- Meu pobre Vassiuchka! - pronunciou suavemente. Não sabes o que deves fazer. Posso ajudar-te? O veneno está na pequena roseta entre os seios. Contudo, tens de ser tu a tirá-lo e a meter-mo na boca. Eu própria não o farei... vê... abro apenas a boca. Morderei a cápsula e engolirei... a decisão é apenas tua, ursinho.
Inclinou mais a cabeça para trás, abriu a boca e fechou os olhos. A língua surgiu entre os dentes, passou pelos lábios e deu a sensação de o chamar. «Mata-me no momento em que o céu se abre para mim.»
Ele levou-lhe a mão à boca a tapou-lha. Os lábios fecharam-se imediatamente, os dentes fecharam-se com o ruído de garras enterrando-se nos tenares da mão.
- Tiveste acesso a dossiers secretos? - gritou-lhe.
- Estava tão excitado que lhe faltava a voz
Sacudiu negativamente a cabeça, sem lhe soltar a mão.
Sentiu como o sangue corria e a língua sorvia o sangue. Contudo... não o largou, à semelhança de uma fera agarrada à presa.
- Enviaste fotografia para Moscovo?
Voltou a sacudir a cabeça sem lhe soltar a mão de entre os dentes. Com a mão direita tacteou-lhe o peito, desapertou-lhe um botão do uniforme; meteu a cabeça pela abertura e afundou-se nos pêlos do seu peito. Era simultaneamente uma carícia e um agatanhar, um êxtase arrebatado e uma posse cheia de uma ternura abrasadora. «É o meu corpo» significava tudo aquilo. «Ele e o que está por cima, ao lado, por baixo e por trás pertence-me a mim, apenas a mim! O calor do teu sangue, o respirar dos teus poros, o brilho do teu suor, o retesar dos teus músculos, os tendões dos teus nervos... Vassiuchka... pertence-me a mim... a mim... a mim...»
- Estás apenas aqui para servir de agente - disse-lhe, respirando com dificuldade.
Voltou a fazer um aceno. Soltou-lhe a mão, mas continuou a prender-lhe os cabelos do peito entre os dedos. Observou a mão e beijou as gotas de sangue que escorriam da pequena e funda mordidela.
- Não foste tu que afirmaste que o amor pode ser uma espécie de canibalismo? - retorquiu num tom de voz quase infantil.
- Quando saíste de Frazertown?
- Nove semanas após a tua fuga. Tão de repente como era hábito acontecer em Frazertown. De uma noite para o dia. Apeteceu-me beijar e abraçar o paizinho Sinionev quando me comunicou: «Daqui a quatro dias, Norma Taylor, vai viajar por Viena até Nova Iorque como representante de uma firma de perfumes. Em Nova Iorque receberá mais ordens.» E assim foi. Fui seguidamente contratada para me ocupar de batidos de leite, tal como o previsto no plano. Senti-me tão feliz! Estava na América! No teu país. E gritei para o céu: «Permiti que o volte a ver. Céu infinito! Oferece-me um novo milagre.»
Voltou a beijar-lhe as gotas de sangue que lhe escorriam da mão, arrancou-lhe os restantes botões do uniforme e enterrou-lhe o rosto no peito. Mordeu-lhe os pêlos e o ofegou como um cãozinho sedento. Ele fechou os olhos, rodeou-lhe os ombros com os braços e entregou-se à louca emoção de se deixar asfixiar por uma nuvem quente e renascer para uma vida maravilhosa.
«Nunca tomei consciência», pensou «que o amor faz parte da criação que Deus ofereceu aos homens.»
- E tu onde estiveste? - quis saber.
- Na Sibéria.
Endireitou a cabeça. Agarrou-lhe os cabelos com as duas mãos e puxou-lhe o rosto para baixo.
- Onde? - balbuciou. - Onde... Vassiuchka?
- A noroeste do Lena. A caminho da vossa nova base de foguetões, em Verkokrassnoi.
- E viste-a?
- Nunca cheguei até lá. Fui obrigado a regressar.
- Que bom. Céus! Mas que bom! - Beijou-o, beijou-lhe o rosto e puxou-lhe os cabelos. E, de súbito, soltou uma gargalhada, que lhe percorreu todo o corpo, e aninhou-se como uma gata. -E aqui estamos nós, Vassiuchka... os dois grandes espiões, o orgulho das nossas nações. E em que nos transformámos? Em dois fracassados. Os cegos que voltaram a ver após se reencontrarem... Oh! Como é belo... como é belo...
Bob Miller decidiu-se a não falar de Pleniakov nem da sua missão de descobrir a pista ao desaparecido John Barryl. Era fantasiar em demasia pensar que Dunia e Pleniakov pudessem formar uma equipa em Los Alamos. Era um objectivo que ia totalmente contra à preparação a que assistira em Frazertown. Se Dunia Andreievna recebera ordem para, mediante um cuidadoso afastamento das amizades, se infiltrar lentamente nos segredos de Los Alamos, não era de acreditar que também Pleniakov ali estivesse.
Esperou até que Dunia parasse de rir e, seguidamente, abriu a porta do carro. O mistério da noite pairava sobre as frias montanhas crestadas pelo sol. A pedra estalejava sob o calor que a atinjira, só que por um breve espaço de tempo. As noites no deserto arrefeciam depressa e a pedra quebradiça não conservava o calor. Era uma terra morta, a que apenas o sol iluminava de vida para simultaneamente a destruir.
- Agora vamos fazer uma fogueira e assar o nosso porquinho - disse Bob com uma alegria um tanto significativa, mas que passou despercebida a Dunia... Desenroscou-se do assento, ofereceu as pernas nuas ao ar das montanhas e sentia-se envolta por uma felicidade onde deixara de haver lugar para problemas. Bob foi buscar à mala do carro a grelha de ferro, a madeira seca e as costeletas, metidas num saco de plástico e já condimentadas. Retirou ainda um cesto com taças cheias de salada de frutas e couve-lombarda já cozinhada e que apenas era necessário aquecer.
Preparou a grelha, acendeu a fogueira, que ateou com álcool, e foi rodando o espeto com a carne. Norma observava-o, ainda sentada dentro do automóvel, com a porta aberta.
- É verdade que não alugaste um quarto num motel? perguntou.
- Não. Todos os donos de hotéis nas redondezas de Los Alamos estão avisados, e dariam imediatamente o alarme assim que aparecêssemos. Se há coisa que não me agrada, é fazer amor sob olhares estranhos.
- A vida é uma perfeita loucura. Vassiuchka. Imaginei centenas de vezes como seria se realmente nos voltássemos a ver. «Julgo», «pensei que vou gritar e atirar-me a ele como um tigre sobre a sua presa. Irei comportar-me como uma louca, pois o nosso amor é a coisa mais louca que alguma vez duas pessoas puderam viver. Temos ordem de nos matarmos um ao outro... e abraçamo-nos, possuímo-nos e perdemo-nos um ao outro.» Foi isso tudo o que imaginei e como se passou realmente? Estamos entre frias montanhas num barranco agreste, Vassia Grigorevitch pôs um pedaço de porco num espeto e começa a cozinhar como um pastor. E Dunia Andreievna, queimada pelo desejo, irá arranjar a mesa, aquecerá as couves, deitará a salada de frutas em tacinhas de plástico e deixará que a informem sobre o que ha para beber...
- Champanhe. Na mala do carro, numa caixa frigorífica...
- Oh, Bob!... Como te amo...
Regressou de junto do grelhador, onde agora as chamas chegavam, pendurou o porco assado no espeto de ferro e puxou Dunia para fora do automóvel. Desabotoou-lhe o vestido em silêncio, libertou-lhe os belos seios, meteu a mão no soutien, de onde retirou a pequena cápsula de veneno, atirando-a para os rochedos. Ela não o impediu. Manteve-se imóvel, enquanto ele lhe desapertava o vestido, e só quando lhe sentiu os dedos no seio a sua pele vibrou e se arrepiou, como se tivesse frio. Foi uma sensação indescritível que se espalhou a todos os nervos e se lhe apoderou de cada partícula do corpo. Um momento em que se dispôs a deitar-se em cima da capota do automóvel, entregando-se como nem os animais eram capazes.
- Não precisarás dela! - exclamou Bob, quando a cápsula se esmagou, algures, nos rochedos.
- Ainda tens a tua? - perguntou com a respiração ofegante.
- Não. Devolvia-a, quando regressei da Sibéria. Pertence ao equipamento quando se é destacado para acção.
Ergueu a cabeça e cheirou.
- Que aroma, Dunia! Bem assado, não? Nada melhor do que uma fogueira. E, no entanto, há ainda um outro processo de assar maravilhosamente um ’porco inteiro. Em África, faz-se isso. Principalmente no Congo. Abre-se uma cova, tapa-se com pedras, aquecem-se depois essas pedras ao rubro, apaga-se a fogueira, põe-se a carne a assar nessa cova aquecida, cobre-se de terra e deixa-se ficar o porco durante algumas horas na própria gordura. Digo-te tudo isto porque nunca comeste tal coisa...
- Porque não me beijas? - perguntou-lhe ternamente. Porque vens agora falar-me de porcos derretidos em gordura? Vassiuchka... sempre que pensava em ti, cerrava os punhos entre as coxas... Andava, sentava-me ou deitava-me e cerrava os dentes e ao meter os punhos entre as coxas, gritava: «Vassia! Vassienka! Meu querido! Meu querido!» Compreendes bem o que te estou a contar? Não me envergonho de te dizer tudo isto. Deviam cortar-me a língua, mas... tenho de expressar o que sinto! É tão compreensível, tão belo e tão necessário como respirar.
Ergueu os braços. O vestido caiu-lhe até aos pés, libertou-se dele, abriu o soutien e tirou o pequeno biquini verde. Em toda a sua branca nudez, dava a sensação de pairar no crepúsculo vermelho, impelida pelo vento ainda quente que soprava através dos barrancos e lhe agitava os cabelos pretos.
- Enquanto estiveste longe, não vivi - disse, abrindo os braços. O busto ressaltou, ergueu-se nos bicos dos pés e as pernas compridas e esguias deram a sensação de se levantar do chão. A sombra rubra do entardecer reflectia-se nos contornos dos músculos e modelava-lhe o corpo, com um toque de perfeição jamais conseguido no ser humano.
- O meu coração bateu, os pulmões respiraram, movimentei-me... e foi tudo. Só tu és a vida! O que fizeste de mim, Bob?
- Já me fizeste essa mesma pergunta em Frazertown.
- Ainda te recordas?
- De cada palavra, de cada acto, de cada suspiro.
- Um pequeno bungalow de madeira, caiado de branco. Os móveis maiores eram a cama e o bar...
- Também não precisávamos de mais nada, Dunia. Deitou-se para trás, apoiou-se com metade das costas ao radiador do automóvel e abriu os braços e as pernas, como que numa entrega ao amor, numa crucificação ao prazer.
- E tu ficas para aí a falar, a falar! - gritou, arranhando a tinta do automóvel.- Ficas aí e tens medo que o bocado de carne se queime. Esperei por ti... Sabes como o tempo custa a passar aqui? Na Sibéria foste para a cama com as mulheres dos iacutos ou dos buriatos? Em Irkutsk e lakutsk tiveste belas damas cheirando a água de rosas? ratinhas que guinchavam quando te caíam nas mãos? E eu o que fiz? Sonhei apenas contigo, gritei o teu nome de encontro às paredes, atirei-me ao chão em todo o lado, algures num campo de trigo, atrás de uma árvore, entre montes de pedras, fechava os olhos e tu estavas ao meu lado, sentia-te dentro de mim fitando o Sol ou as estrelas... Apenas tu existias... apenas tu...
- Olhou-a, agarrou-lhe os braços em oferta, atraiu-a a si e levou-a até à porta de trás do automóvel. Ela segui-o cambaleante, continuando com os olhos fechados, e estendeu-se no assento de cabedal macio do banco traseiro. O tremor do corpo nu acentuou-se, o corpo iniciou movimentos e quando sentiu a pele, os músculos, a força da virilidade que a penetrava, voltou a enterrar as unhas dos dedos esguios nas costas e a morder-lhe o pescoço fortemente, como se fosse um vampiro.
- Somos animais, Vassiuchka! - gritou, quando conseguiu recuperar o fôlego, e todas as palavras lhe saíam agora como um grito quente. - Temos uma bestialidade superior à dos animais... Fica assim... fica... Neste momento o mundo devia acabar... agora... agora... Vassiuchka... o céu desabar...
Quando saíram novamente do automóvel, os corpos brilhantes de suor, batidos pelo frio da noite, com um cobertor a tapar-lhes os ombros, cheirava horrivelmente a carne queimada. O pedaço de carne de porco continuava a girar, qual negro torrão, no grelhador movido a pilhas eléctricas.
- Agora temos mesmo de ir a um motel - disse Bob, limpando com a ponta do cobertor o suor que escorria dos seios de Dunia. Encostou-se a ele e percorreu-lhe todo o corpo com as mãos numa carícia suave, - Ou podemos ir até tua casa?
- Impossível - respondeu, abanando a cabeça. Aluguei um quartinho a um droguista. Tenho fama de ser uma rapariga honesta... - Soltou uma gargalhada, beijou a mordidela enorme que lhe dera no pescoço e agasalhou-se mais no pequeno cobertor. Já não soprava vento, mas o frio começava a cair das estrelas sobre o deserto.
«É impossível», pensou «Às oito ia encontrar-me com Pleniakov. Espera por uma resposta minha. Pelo sim, para nos casarmos. Agora, estará à espera em frente da casa do droguista, impaciente e preocupado.»
Embrulhou-se completamente no cobertor quando Bob se afastou, dirigindo-se até junto da roupa espalhada e vestindo novamente o uniforme, peça por peça. Ficou a observá-lo, sentou-se no pára-choques traseiro, esfregou as solas dos pés uma na outra e pensou: «Nunca deveriam encontrar-se. Bob e Andrei Nikolaivitch. Há que evitar uma coisa dessas. Mas como?»
Baixou a cabeça e tapou os cabelos suados com o cobertor. «Tenho de o matar» pensou «O que me resta? Liquidarei Pleniakov, para empregar a linguagem de Moscovo. Nunca fujas a um perigo que possas aniquilar. É o que pensará Pleniakov quando vir novamente Bob. Tenho de ser mais rápida do que ele.
- Tencionas ir nua até ao drive-in do Jerry - perguntou Bob. Estava diante dela já fardade e arrancou-lhe o cobertor, cobertor.
- Querias beber uma taça de champanhe na minha companhia, Vassi - respondeu, esforçando-se por dissimular o gelo que dela se apoderara. - A nossa garrafa de champanhe...
Fez um aceno afirmativo, dirigiu-se ao porta-bagagens, abriu a mala frigorífica, tirou uma garrafa, desrolhou-a quase sem barulho e encheu dois copos de plástico a transbordar de genuíno champanhe russo.
- Faltam-nos as taças de champanhe apropriadas. Dunia
- disse.
- Estende as mãos - retorquiu suavemente. Obedeceu-lhe. Ela despejou um pouco de champanhe dos
copos de plástico para as palmas das mãos dele, inclinou a cabeça e sorveu o líquido. Era um gesto comovedor e de uma tão infinda ternura.
- Nenhum champanhe me soube tão bem - disse num tom de voz quase inaudível. - Atordoa como veneno. Agora, leva-me para uma cama, Vassiuchka. Deitar-me ao teu lado, sentir-te e saber que irá ter a duração de uma vida... Agarrou no cobertor que estava por terra ao seu lado e enrolou-se novamente nele. - Estou gelada. Dá-me mais um gole, Bob...
Levou muito simplesmente a garrafa à boca, e bebeu enquanto Bob Miller reunia as roupas espalhadas em redor.
Exactamente como Bob suspeitara, ao motel drive-in já tinham chegado as notícias quando estacionou o Oldsmobil junto a um dos pequenos bungalows. Na recepção do edifício principal esperava-o um Jerry Hamlok sorridente que, imediatamente, lhe acenou com uma chave no momento em que Bob Miller transpôs a porta giratória.
- Tem o número vinte, major - informou Jerry jovialmente. - O nosso melhor apartamento. Cama francesa, roupeiro com espelho, a pequena torneira junto à do banheiro deita água-de-colónia e, na própria cama, está metido um barzinho. Nem mesmo precisa de se levantar, basta virar-se para o lado... Ah! Ah! O nosso quarto para noivos é famoso pelo serviço impecável e discreto. Debaixo do travesseiro encontrará igualmente uma pequena caixa com lenços de papel...
- Cala o bico, Jerry! - interrompeu-o Bob, rispidamente.
- Basta que desligues a campainha que está por baixo da cama. - Aproximou-se e, quando colocou uma nota de cem dólares no balcão, os olhos de Jerry arregalaram-se.
- Quem está por trás disto, rapaz? Vamos. Cospe tudo cá para fora!
- Todo o Bloco V do laboratório. Anunciaram-no como o menino-prodigio, major. O facto de ir para a cama com Norma vale para cada...
- Se continuas a falar dessa maneira, ficas com o lábio inchado, Jerry - interrompeu-o Bob calmamente. – Tenho uma direita que vale uns bons quintais. Afasta-te do caminho, se entendes alguma coisa de física. Dá-me a chave. O que te encarregaram de informar para Los Alamos pela rádio?
- Apenas que chegou.
- Nesse caso, faz o gosto aos rapazes e diz-lhes: «O major Miller resolveu casar com Norma Taylor. E muito em breve.»
- Trata-se de alguma piada, sir?
- Afasta-te do meu alcance, Jerry. É melhor.
- Mas só conhece a Norma há algumas horas.
- Basta-me para conhecer o seguimento da história - retorquiu, arrancando a chave com o número vinte dos dedos moles de Jerry e atirando-a ao ar. - E agora deixa-nos em paz, Jerry. Garanto-te que quem quer que nos perturbe irá parar ao hospital.
O Oldsmobil já estava estacionado diante do número vinte. Bob avançou olhando surpreendido para Norma, que se sentava atrás do volante. Ele tinha parado diante do número nove.
- Fui avançando - anunciou, descendo.
- Sabes ler pensamentos?
- Segui-te e vi através do vidro que Jerry brincava com a chave do número vinte. É, portanto, o nosso quarto. Lógico, ursinho?
- A mulher agente - disse, abrindo a porta. O pequeno apartamento era constituído por uma sala de entrada com roupeiro e um grande quarto com maples, uma cama larga e uma parede de armários com espelho a todo o comprimento. Em cima da mesa estava um ramo de flores - tal a certeza de que Bob Miller acabaria por vir para aqui. Os estores das janelas estavam descidos.
Bob Miller levou o indicador aos lábios e percorreu o quarto nas pontas dos pés. Verificou o abat-jour do candeeiro. Revistou junto da cama, debaixo da cama, no ramo de flores, por detrás dos dois quartos - estampas emolduradas em madeira - todas as almofadas das portas. Só depois de terminada a inspecção lhe fez um aceno de cabeça. Norma tinha-se mantido em silêncio junto à porta do quarto, encostada à parede. Desnecessário será dizer o que Bob procurava.
- Nada - comunicou-lhe.
- Debaixo da alcatifa... sussurrou-lhe.
- Não posso dar cabo do quarto. Vem cá - Puxou Norma até meio do quarto, olharam-se no espelho é riram um para o outro. - Caros amigos - começou Bob Miller em voz alta. - Se esconderam algures a vossa escuta, quero que saibam neste momento que Norma e eu nos amamos, que vamos casar, beber juntos um cocktail, em seguida uma garrafa de champanhe e finalmente fazer na cama o que vocês, seus cães danados junto aos gravadores, desejariam ardentemente poder fazer com ela. Não me incomoda que estejam à escuta. Contudo, se ficarem com os tímpanos em mísero estado, a culpa é só vossa. Despe-te rapidamente, Norma.
Fitou-o e sacudiu a cabeça.
- Não! - proferiu no mesmo tom de voz. - Não o farei. Não sou qualquer puta. Se há alguns cavalheiros sentados junto a gravadores, têm de desligar já os aparelhos. Caso contrário durmo no maple.
- Quem nos está a escutar não são cavalheiros, Norma!
- retorquiu Bob Miller dando a volta ao quarto e apalpando as paredes com as palmas da mão. Se de facto tinham colocado microfones, quem o fizera era indubitavelmente mestre no assunto. - Gostam de música de rádio, rapazes? - perguntou Bob junto às paredes. - É um velho truque, mas presumo que também previram isso. E se passássemos a noite dentro do automóvel? Decerto não tomam Bob Miller por um idiota qualquer!
Dirigiu-se ao bar, abriu-o e retirou o shaker, o balde do gelo e algumas garrafas. Com movimentos lentos e de gata, Norma atravessou o quarto e sentou-se num maple.
- Quero ir-me embora, daqui - disse. - Por favor...
- Foi precisamente o mesmo que pensei. Contudo; primeiro vamos saborear uma bebidazinha. Conheces o Coktail-Marmon? Escutem gente: um terço de soda, um terço de cherry brandy, um terço de vermute francês, agitar com gelo e guardar com limão. Dois copos são o suficiente para que as cuecas das senhoras voem pelo quarto. Mas agora não vão ouvir, mais nada, seus onanistas. O que vos tenho a dizer escutarão amanhã...
Cada um bebeu três copos do cocktail. Devolveram seguidamente a chave ao surpreendido Jerry e regressaram às frias, muito frias montanhas do deserto.
Ali, estacionaram o automóvel num caminho secundário, passaram para o banco traseiro e de novo se aqueceram, os corpos unidos, por baixo do fino cobertor.
- Amanhã vou alugar uma casa para nós - disse Bob, acariciando os seios de Norma com as duas mãos. - E telegrafas para Moscovo a comunicar que deixou de existir uma Dunia Andreievna. És Norma Taylor... Quero nunca ter consciência de que és russa.
- Serei sempre russa, Bob - retorquiu, prendendo as mãos que o acariciavam e fitando-o. A pequena luz no tecto do automóvel que tinham deixado acesa lançava-lhe pequenos reflexos nas pupilas escuras. - Eras capaz de esquecer a América?
- Sim. Há coisas mais importantes.
- É essa a diferença que te separa dos Soviéticos. Um russo nunca poderá esquecer a sua pátria, mesmo no caso de um amor sem barreiras como é o nosso. Pensarei sempre: «A nossa felicidade é tão grande, tão infindável como a taiga, como o céu sobre a Sibéria, como as estepes de Kasaktã.» Vim deste infinito para te oferecer uma felicidade sem limites. Isto é a Rússia, Vassiuchka. Tens de o sentir...
- E sinto - respondeu pondo-lhe o braço por baixo das coxas e atraindo-a a si. - Sinto-o muito mais do que quando estive perdido na Sibéria...
O corpo uniu-se mais ao dele e a voz tinha feito a pergunta.
- Só tenho afinal pensado em mim. O que aconteceu na Sibéria?
- Mais tarde, Dunienka, mais tarde - disse, ajeitando o cobertor e apagando a pequena luz do interior. Sobre as frias montanhas raiava uma luz pálida. - Para quê falar disso? Temos tanta coisa a esquecer e muito mais a melhorar... Ambos devíamos fugir ao passado.
- E podemos?
- Vou tentar com todas as minhas forças.
- Eu também, Vassiuchka, eu também. - Enroscou-se nele, metendo o rosto na curva do pescoço. - Seremos dois seres novos, como nunca existiram até hoje...
«E de manhã», pensou «Andrei Nikolaivitch Pleniakov vem perguntar-me se estou disposta a casar com ele. Deus do céu, que não conheço, suplico-te: ajuda-nos...»
Na tarde seguinte, depois do almoço, Norma Taylor estava novamente atrás do bar, preparando batidos de leite. Sentia toda a atmosfera de sensação que pairava na cantina. Os homens desfilavam por ela como que em parada, fitavam-na, sorriam, mas deixavam escapar comentários tolos ou atrevidos, para casos do género, Norma tinha três recipientes de litro cheios de melaço ao lado dela e estava disposta a atirá-los à cabeça de cada um daqueles imbecis. Apenas o patrão, Stan Wolter, o homem do traseiro estilhaçado, lhe perguntou quando se apresentou, como sempre pontualmente, ao serviço:
- Está tudo a correr bem, jovem? E respondera:
- Tudo, Stan. Eu e Bob estamos unidos. Depressa, não foi? É como numa trovoada. Ninguém sabe como e onde um raio atinge.
A partir desse momento Stan Wolter começou a passar avisos. Em primeiro lugar, por causa de Bob Miller, a respeito do qual se sabia que, como homem do topo da CIA, não tinha pejo algum em dar cabo dos que os rodeavam e em segundo lugar por causa de Norma, que, finalmente, se tinha tornado uma mulher e através da sua ligação a Miller velada pela calma dos homens que até ao dia anterior não largavam a Cantina II, como galos de capoeira.
As coisas não eram tão simples para Bob. Estava sentado num gabinete que lhe tinham posto à disposição na Central e lia precisamente o protocolo da investigação do assassínio de Hendrik Gulbrannson, cujo dossier tinham mandado buscar, no momento em que o telefone tocou.
Mesmo antes de o homem do outro lado do fio pronunciar uma palavra, já Bob sabia quem lhe estava a telefonar. A respiração forte pelo nariz assemelhava-se a uma melodia conhecida.
- Bom dia, sir - cumprimentou Bob amistosamente. Em Los Alamos a esta hora já estão trinta graus à sombra. Como vão as coisas em Fort Palmos?
- Estamos novamente em Fort Thompson, Bob. - A voz do general Orwell ouvia-se com tanta clareza como se estivesse muito perto de Bob. - Na sala ao lado, doze dos seus amigos estão a postos. Se lhe dissesse os nomes, daria saltos de alegria. Todos amigos do Alasca. Presumo que tenha algo a comunicar-me, Bob. Estamos preparados para o grande acontecimento.
- Obrigado, sir - agradeceu Bob Miller, olhando surpreendido para o auscultador. - Os convites para o meu casamento chegarão pontualmente. Contudo, não era minha intenção tanta pressa. Tenho a informá-lo oficialmente, sir, que me apaixonei ontem por Miss Norma Taylor, nascida em Waco, no Texas.
- Nesse caso, faz a escolha errada, Bob - Retorquiu o general Orwell secamente. - Proceda a uma averiguação mais detalhada antes de dar o «sim» diante do reverendo. A senhora com quem ontem à noite festejou o amor com uma resistência digna de louvor (uma sorte que o Oldsmobil tenha molas tão boas) chama-se Dunia Andreievna Koroliov, nascida em Liski, a sul de Voronech. Certo, meu querido Vassiuchka, meu ursinho forte...?
- Sir... - interrompeu-o Bob sentindo-se envolto numa onda de calor que dava a sensação de lhe’arrancar os miolos.
- Eu...
- Quis fazer de «mosquinha morta», Bob. Um jogo duplo arriscado e fatal na nossa situação. Reconheço que o seu encontro com Dunia foi um caso elementar. E é louvável que você e Duniachka tenham decidido afastar-se de tudo e, possivelmente, plantar amendoins. Ainda não estabeleceram planos fixos para o futuro...
- Pôs-nos sob escuta, sir...
- Onde foi buscar a ideia que lhe iríamos pôr um automóvel à disposição que não estivesse preparado? Tudo no apartamento vinte do motel do Jerry se destinava a caçá-lo de volta ao carro. Missão conseguida. Contudo, já antes tínhamos escutado. Entre nós, Bob, como homens e como amigos: não conheço essa tal Dunia, mas deve ser uma mulher capaz de fazer perder a cabeça a qualquer homem, Bob, e foi o que lhe aconteceu. Você, o meu melhor homem. O meu orgulho do Alasca. O meu modelo. O que tenho registado em fita magnética (o seu acampamento com o assado queimado, a sua festa com champanhe) e o que aconteceu antes e depois pode enterrar-se em cofres blindados ou considerar-se como impotência psíquica.
- Alegra-me que lhe tenha agradado, sir - retorquiu Bob maliciosamente. - Que conclusões devo tirar?
- Presumo que o seu conhecimento com Dunia Andreievna vem de Frazertown.
- Ouviu tudo, sir.
- Nunca foi mencionado o nome dela nas suas informações.
- Também nunca pensei que Dunia fosse destacada para os EUA. Pensei que pertencesse ao pessoal do quadro de Vinniza.
- Porque me está a mentir tão descaradamente, Bob? Não disponho da sua total confiança? Estamos sós neste momento e falo-lhe sem testemunhas nem registo magnético. Dou-lhe a minha palavra.
- Acredito em si, sir.
- Dunia dominou-o com o seu amor e o seu corpo. Não quis muito simplesmente tomar consciência do perigo que ela pode representar.
- É isso mesmo, sir - retorquiu Bob regidamente. - E quando a revi ontem em Los Alamos compreendi a Bíblia que fala da transformação em estátuas de sal.
- Mas durante a noite deixou que todo o sal se derretesse.
- Interroguei Dunia. Não está há muito tempo em Los Alamos. Ainda não formou uma rede de agentes. Não estabeleceu relações importantes. Dedicou-se antes do mais a radicar-se e a conquistar a confiança geral. Nada telegrafou para Moscovo a não ser que conseguiu o lugar na leitaria da Cantina II. A sua posição de ataque. Nunca passou daí.
- Isso também nós sabemos. Enquanto explorava intensamente a alma russa, estávamos a trabalhar nós toda a noite. Há dois homens que procuraram um contacto estreito com Dunia-Norma...
- Um tal professor Lovinsky e um representante do «Bio-jet». Toda a Los Alamos sabe.
- Lovinsky está fora de causa - retorquiu o general Orwell, dando a sensação de estar a folhear dossiers.
- Quanto ao homem do «Bio-Jet» nada sabemos ainda realmente. Esperamos que da Central nos enviem o nome durante a manhã. No laboratório só o conhecem por «o cómico Johhny». Deve contar anedotas picantes.
- Também já sei disso. Quer por acaso saber uma delas, sir? «Se tens muita coisa por baixo, o Bio-jet ainda te arranja mais».
- Deve ter bebido o produto centenas de vezes.
- Obrigado, sir.
- Voltemos a Dunia. Está realmente na disposição de casar com ela?
- Estou.
- Tal como escutámos, com o nome de Norma Taylor. Sabe perfeitamente, Bob, até que ponto podemos ser condescendentes. Estou preparado para aceitar como verdadeiros os documentos falsos de Norma e a abençoar a vossa felicidade, sob a condição de que Norma nos forneça os nomes e moradas que conhece. E conhece alguns, Bob.
Posso jurar-lhe! Moscovo não coloca agentes em posições de espionagem sem construir à sua volta uma rede de contactos, mensageiros, caixas postais e chefes dos agentes. Tal como acontece entre nós. Nesse aspecto somos todos iguais. Dunia Andreievna seria a primeira agente na história da espionagem a trabalhar totalmente só. E você, Bob, também sabe que falo verdade. A sua Norma dispõe de contactos de todos os tipos. Esses temos de os conhecer...
- E se negar?
- Está a mentir! Convença a sua pombinha, Bob? Se para você a pátria se tornou repentinamente um monte de merda, lutem agora a nível de felicidade e de bem-estar pessoal. Apesar de você ser um amor de moço, agiremos energicamente contra a sua Dunia caso se decida a não falar. Foi aliás uma maravilha que lhe tivesse tirado a cápsula do veneno!
- Também tem isso nessa maldita fita magnética?
- Tudo, Bob - respondeu o general Orwell com a mesma respiração arquejante de há pouco. - Em que ficamos, jovem?
- Cumprirei o meu dever, sir - declarou Bob num tom sonoro e duro. - Mas quando tiver tudo atrás das costas...
- Por favor, Bob. Guarda essas considerações para ti!
- interrompeu-o Orwell num tom paternal. - Esse tipo de coisas não está nada de acordo contigo.
- Quando posso sair do Exército, sir?
- Quando me trouxer Pleniakov, Bob. Tratarei da sua promoção a coronel e depois voltaremos a falar do assunto.
- Gostaria de tomar conta do restaurante e do motel do •meu pai, sir.
- Um homem como você, Bob?
- Sei o que a América investiu em mim, sir. Contudo, presumo que saldei a conta em Vinniza e na Sibéria.
- Você é um oficial e não um pequeno comerciante, Bob.
- Há generais actores de cinema, sir, e actores de cinema que gostariam de ser presidentes. Porque não há-de um coronel vender hamburgers e cachorros quentes?
- Deixemos essa conversa para mais tarde - pediu a voz de Orwell, novamente funcional. - Descubra-nos Pleniakov. Já interrogou Dunia a esse respeito, Bob?
- Segundo as leis da lógica, não está por perto dela.
- Segundo as leis da lógica, já você a estas horas devia ter desaparecido na taiga. E onde está? Na cama da sua amante russa, e ainda por cima no local secreto mais protegido da América. Chama a isso lógica?
- Faço o que posso, sir - declarou Bob num tom decidido.
- E se o caminho até Pleniakov passar, no entanto, por Dunia? Tenho um leve pressentimento, Bob. Conhece bem este meu sexto sentido. Quer que o desligue da sua missão? Vou nomear o capitão Redder como seu sucessor.
- Obrigado, sir. Vou conseguir sozinho. Se há algo a conseguir, apenas eu o poderei. Quem conhece Pleniakov além de mim?
- Dunia - observou Orwell. - Decida-se agora, Bob! Cabeça bem alta, jovem... Não o invejo. Conquistou a mais encantadora das mulheres... mas ela também afirmou claramente: «Serei sempre russa.» Deus permita que o consiga impedir...
Ouviu-se um ruído. O general Orwell tinha desligado. Bob pousou também lentamente o auscultador, cruzou os braços atrás da nuca e fitou o tecto caiado de branco. O ruído do ar condicionado assemelhou-se subitamente ao motor de um avião a jacto. Todos os barulhos, o próprio zumbir de uma mosca, assumiram proporções gigantescas.
«Vai dizer-me tudo», pensou Bob. «Não há outra mulher que me possa amar tanto como ela. Contudo, existirá realmente um amor sem barreiras? Existirá a entrega sem segredos?»
Serei sempre russa... Era esta a fronteira?
John Barryl apareceu novamente em Los Alamos com a sua carrinha de transporte pintada de branco e as caixas de «Bio-jet». Os guardas fizeram-lhe o controlo de sempre, ou seja, o de nunca se limitarem a detê-lo para ficar a par das graças mais recentes e picantes. Em seguida, estalaram de riso e Pleniakov obteve permissão de ingresso no recinto interno e paragem na Cantina II.
Conhecia de olhos fechados o caminho para o armazém. Arrastou três caixotes com «Bio-jet» para o local e ali soltou um assobio agudo que chegou ao balcão, ficando à espera de Dunia. O gerente, Stan Wolter, não estava por perto. Andava às voltas com o carrinho das compras do supermercado de Los Alamos, abastecendo-se com as compras da semana para a sua cozinha.
Pleniakov estava encostado a uma prateleira quando Dunia apareceu no armazém. A jovem abandonara por alguns minutos a máquina dos batidos de frutas. Pleniakov tinha um aspecto cansado. Esperara toda a noite diante da casa do droguista, mas Dunia não fora dormir a casa. Seguidamente pusera-se atrás de uma garagem - com roupas de civil e não com o conhecido fato-macaco do «Bio-jet» - e ficara a observar a chegada de Dunia ao trabalho. Apresentara-se pontualmente, como todas as manhãs, mas não de motorizada. Tinha apanhado um táxi. E vestia a mesma roupa do dia anterior, calçava os mesmos sapatos e Pleniakov notou principalmente que estava menos penteada que o habitual.
O facto despertou-lhe uma onda de ciúme e pensamentos desordenados, que só de dentes cerrados e com a autodisciplina férrea a que estava habituado conseguiu dominar.
- Onde estiveste? - quis saber imediatamente quando Dunia entrou no armazém e fechou cuidadosamente a porta. Encostou um caixote de encontro à porta, a fim de estar devidamente prevenida contra visitas indesejáveis e inesperadas. Faria o barulho suficiente quando Stan Wolter regressasse do supermercado.
- O que significa isso: «Onde estiveste?» - retorquiu.
- Passei toda a noite diante da tua porta.
- Não tínhamos combinado encontrar-nos, John. Hoje, à noite...
- Chegaste de táxi! Onde está a tua motorizada?
- Nas traseiras.
- Nesse caso, ontem também saíste daqui de automóvel?
- Será que o major Pleniakov está neste momento a interrogar o capitão soviético Dunia Andreievna?
- Gostava de saber com quem é que a minha futura mulher passou a noite!
- Poderia dizer que estive de serviço.
- Um homem, portanto! - exclamou Pleniakov, respirando com dificuldade. Passou as mãos pelo rosto fatigado, sem esconder como tremiam. - A noite inteira... - prosseguiu num tom mais acalorado. - O que... o que é que ele soube? Quem é? Tens fotografias, microfilmes, fórmulas? Era... era assim importante para nós? Acho que darei em louco” se continuar com esta conversa, Dunia.
- Não disse que estive de serviço - replicou. - O que disse foi: «Poderia-dizer que estive de serviço.»
- Onde estiveste?
Pleniakov avançou subitamente, puxou Dunia para si e sacudiu-a. Ela defendeu-se, ao mesmo tempo que lhe atingia a canela esquerda com a ponta do sapato, precisamente no sítio em que nem que fosse um gigante a largaria. Pleniakov soltou um gemido, encostou-se dorido à prateleira e fitou Dunia com um olhar chispante. Abria e fechava as mãos como se.fossem duas bombas capazes de lhe sugar a dor.
- Estiveste com um homem.. - explodiu. - Amo-te com tudo o que vai do Céu ao Inferno... e tu passas a noite inteira com um homem! Porque é que matei o Gulbrannson? Porquê? Se queres ser uma puta, que diferença faz? Só de pensar naquela noite, há dois dias. Estava disposto a atraiçoar a minha Rússia por tua causa. Acreditei em ti, Dunia. Num mundo novo...
- Eu tenho um mundo novo, Andrei Nikolaivitch.
- Com outro homem! Oh, céus! Como vou suportar uma coisa destas? Quem é? conheço-o? - Apesar da tremenda dor que ainda sentia na canela, esforçou-se, novamente, por se desencostar da prateleira e agarrar Dunia, mas ela esquivou-se e pôs-se muito direita.
- Está quieto! - ordenou sombriamente. - Ergueu a mão direita, com o bordo na direcção de Pleniakov. Conhecia bem o gesto. Sabia perfeitamente como ela era rápida no karate e naquele momento sentia-se demasiado fraco para reagir quando o pudesse atingir. - Falámos uma vez em como não somos suficientemente fortes para levar a cabo as nossas missões...
- Tu e eu juntos. Amo-te mais do que a uma ordem vinda de Moscovo.
- E se a partir de agora estiver sozinha?
- Não podes fazê-lo. Prendo-te.
- Como major da KGB?
- Como um pobre homem que jaz aos teus pés - respondeu Pleniakov apoiando-se à prateleira. Dificilmente se podia aguentar na perna esquerda, tanto lhe doía o sítio atingido pelo sapato de Dunia.
- E partindo do princípio que amo outro homem?
- Isso é impossível! Não faz sentido.
- E porque não?
- E americano? É
- Conheces perfeitamente a ordem L/I/U.
- Mas que patriota, Andrei Nikolaivitch! - riu, se bem que se tratasse do riso de uma gata perigosa. - Liquidação de todos os traidores. Eliminação de todos os elementos inseguros. A escolha entre os maus! Só que, quando há um Pleniakov que pretende evadir-se, esquece o número L/I/U! Mas que egoísmo tão contraditório! Que traição tão imunda à Rússia! E é o grande Pleniakov a fazer tal afirmação.
Avaliou-o com o olhar e sentiu-se horrorizada com o pensamento, tão claro e simples, de poder matar Andrei Nikolaivitch, sem o mínimo arrependimento. Ele era o único e grande perigo relativamente ao seu amor por Bob, e tudo o que pudesse manter ou salvar este amor era bom e justo e enquadrado numa moral muito particular: «Faço-o por Bob.»
Era horrível ter uma tão nítida consciência. Recuou mais um passo e fitou desapiedadamente Pleniakov, que continuava a sentir aquela dor na canela.
Debaixo do avental branco, cingido ao corpo, usava uma pequena pistola. O objecto-brinquedo, com coronha de prata, e um homem como Pleniakov soltaria uma sonora gargalhada se o pudesse ver. Só que estava carregado, pronto a disparar, e a curta distância servia para despedaçar o coração ou fazer um buraco fatal na testa.
- Em que estás a pensar? - perguntou Pleniakov, respirando fundo. - No mesmo?
- Sim - respondeu, ainda que sem expressar até onde ia o tipo de cogitações a que se entregava.
«Aqui não tem cabimento», pensava friamente. «Aqui, entre as prateleiras, não é possível liquidá-lo. Para onde levaria o cadáver? Tem de ser um desaparecimento sem rasto. De súbito o homem do «Bio-jet» deixa de se ver em Los Alamos. A sua carrinha de transporte está no pátio das descargas, mas ele desaparece sem se saber como. São frequentes coisas assim. Uma pessoa muda de vida. Durante uns dias irão ficar admirados, falar do acaso, fazer conjecturas, e depois cairá no esquecimento.»
- O que devo telegrafar para Moscovo? - perguntou Pleniakov, rompendo aquele silêncio confrangedor.
- Amo a Rússia e sempre a amarei.
- Isso não chega. Não é uma despedida nem motivo para o teu afastamento. Quero ver o homem que conseguiu que Dunia Andreievna se transformasse numa traidora à sua pátria.
- Nunca! - opôs-se, erguendo a voz. - Nunca o verás.
- Não te largarei um momento de vista - decidiu, afastando-se da prateleira e dirigindo-se, a coxear, até à porta das traseiras do armazém. «Como todos mudámos», pensou ela subitamente. «Dantes, em Vinniza, éramos russos -alegres e felizes, e Andrei e Vassia eram os melhores amigos, se bem que lutassem pelos favores de Dunia Andreievna. Cada um sabia para onde seria destacado, o que o esperava mais tarde... E agora está nos EUA, o grandioso e sagrado serviço pela pátria começa, mas todos os ideais transportados se desfazem como a poeira do deserto circundante de Los Alamos.»
- Não nos devíamos voltar a ver, Andrei - afirmou suavemente.
- Impossível, Dunia. Amo-te - respondeu Pleniakov, voltando-se junto à porta.
- Mas já não faz sentido, Andrei.
- Não podes muito simplesmente telegrafar para Moscovo: «Já não quero!» Sabes perfeitamente o que acontece depois.
- E tens de o fazer, não é verdade? Como prova do teu patriotismo, da tua obediência incondicional. Eras realmente capaz, Andrei? De me matares em cumprimento de ordens da KGB?
- Não quero pensar nisso! Não falemos sequer nesse assunto.
Fez um aceno afirmativo. «Pela última vez», pensou. «Acho que serias capaz, Andrei, de cumprir sem hesitar as ordens de Moscovo. És um soldado, és um oficial do Exército Vermelho... Para ti uma ordem é como o bater do coração. Não se pode exigir mais de ti... desde que pensas que sempre viveste segundo directivas traçadas pelos outros. És um ponto de situação entre o homem e a máquina, uma execução perfeita do plano soviético. Oh, Andrei! Em que transformaram o amor de pessoa que eras... És digno de pena! Contudo, pode acontecer outra coisa. Se Andrei deixar de cumprir incondicionalmente as ordens de Moscovo, um outro tomará o seu lugar: um robot dos Serviços Secretos que executa friamente as ordens sem olhar a sentimentos. Que não sabe do que se trata, que não me conhece, não conhece o Andrei, nem tão-pouco o Bob...»
- Hoje à moite - murmurou num tom hesitante. - Às oito da noite, no vale dos Nove Abetos. Será a última vez, Andrei.
- Não acredito - retorquiu acaloradamente. - Não consigo muito simplesmente acreditar. O que quer que te tenha dado volta à cabeça não te impedirá de seres eternamente Dunia Andreievna. Tens um coração arrebatado e o significado é só um: Rússia.
Saiu a coxear, subiu para a carrinha branca do «Bio-jet» e arrancou a toda a velocidade.
Um pouco à distância encontrava-se estacionado um grande Oldsmobil amarelo. Pleniakov não lhe prestou atenção quando passou por ele e também não se deu conta de que estava a ser seguido pelo automóvel a uma distância normal.
Só na estrada, depois de os dois carros terem passado o controle sem que os detivessem, o que para Bob Miller constituiu mais uma prova da falta de cautela aqui existente, pois a mera inscrição «Bio-jet» era um passaporte de inocência, é que o Oldsmobil acelerou e se aproximou da carrinha branca de transporte. Pleniakov avistou-o de facto através do amplo retrovisor, mas tinha mais com que se preocupar do que com automóveis desconhecidos. Verificou, naturalmente, que um oficial americano se sentava atrás do volante, mas era uma situação que pertencia ao quotidiano em Los Alamos e não fez soar qualquer campainha de alarme no cérebro de Pleniakov.
Bob Miller tinha visto sair do armazém o homem do «Bio-jet» e sentiu-se totalmente na dúvida. O boné da pala ocultava-lhe o rosto, e uns óculos de sol de lentes escuras modificavam-lhe as feições. As medidas podiam bater certo. Pleniakov tinha a mesma largura de ombros e o mesmo aspecto desportivo, mas este homem coxeava e era mais largo do que o musculoso Andrei Nikolaivitch.
Apesar de tudo, Bob Miller fez a experiência. Uma conversa não prejudica ninguém. Aproximou-se ainda mais da carrinha branca e buzinou, fazendo sinal de ultrapassagem. Pleniakov olhou surpreendido pelo retrovisor e, pondo o braço fora da janela, deu a entender que ia parar no próximo parque de descanso.
Chegaram ao local decorridas quatro milhas. Uma ampla baía metida nas rochas. Já ali estavam estacionados alguns grandes camiões. Os motoristas sentavam-se nos estribos ou em mesinhas de campo desmontáveis, comiam enormes fatias de pão com manteiga e bebiam leite gelado de termos. Nessa altura, ao sol, deviam estar perto de quarenta graus.
Pleniakov virou no parque de estacionamento, um maravilhoso e discreto local de encontro, como Bob Miller verificou, travou e desceu da carrinha branca do «Bio-jet». Bob parou atrás dele e desceu com toda a tranquilidade de um homem seguro de si. Aproximou-se lentamente do homem do «Bio-jet», que puxou o boné da pala para trás e tirou os escuros óculos de sol. Uns cabelos claros surgiram por debaixo do boné e uns olhos profundos avaliaram o oficial americano.
«É ele», pensou Bob. «Meu Deus! E Andrei Nikolai vitch!» O pressentimento de Orwell bateu novamente certo. Dunia e Pleniakov formam uma equipa em Los Alamos. «A missão que se iniciara em Vinniza continuava agora rumo ao fim. Os agentes mais perigosos de Moscovo estavam na sua mão. E não só... Um deles transformara-se no seu destino, infiltrara-se na sua vida para não mais dela sair.
Bob e Pleniakov ficaram à distância de dois metros; seguidamente, detiveram-se como que obedecendo a uma voz de comando silenciosa e fitaram-se. O rosto de Pleniakov contorceu-se.
- John... - exclamou Miller, e só com esforço se expressou num tom de voz firme. - John Barryl!
- Bob! Tu... és realmente, Bob...
- Sim.
- Com o uniforme de um major dos EUA. Nunca te teria conhecido à primeira vista. Um disfarce fantástico. Bob!
Franquearam a distância que os separava, e ficaram em frente um do outro, olhando-se bem no fundo.
- Bob! - pronunciou Pleniakov num tom mais entusiasmado. - Gostaria de te abraçar e beijar, como fazíamos antigamente. Contudo, todos têm os olhos postos em nós. Daria nas vistas.
- De acordo. Não temos nada ar de homossexuais.
- O mesmo patife de sempre!-_ comentou Pleniakov com um sorriso e estendendo a mão a Miller. Segurou-a por momentos e largou-a novamente. - Como estou contente, Vassia Grigorevitch - exclamou baixinho e com a voz trémula de emoção.
- Bob Miller... Agora não cometas erros, Johnny! Sou Bob Miller, major do Exército. E tu és o homem do «Bio-jet», o das anedotas picantes. Um disfarce fantástico também.
- Há quanto tempo estás aqui, Bob?
- Só há dois dias.
- Directamente de Moscovo?
- Depois de alguns desvios, John. Repentinamente surgiu a ordem: «De volta a Los Alamos, onde algo correu mal...»
Pleniakov engoliu algumas vezes em seco. «Já sabem», pensou. «E Moscovo. Sabem muito simplesmente tudo. Para eles não existe jogo das escondidas. A organização exerce um trabalho perfeito.»
- Dunia... - exclamou sufocado. - Trata-se de Dunia... de Norma. Não é verdade?
- Sim...
- E maravilhoso que te tenham enviado, Bob. Agora, estamos novamente os três juntos, como em Vinniza. Deixei de me entender com a Dunia... Talvez tu o consigas. Sempre te escutou mais a ti do que a mim... sempre o notei, mas nunca o disse. Outrora, em Vinniza, eras o conquistador. Muitas vezes tive vontade de te esmagar o crânio por isso. E, agora, enviam-te precisamente para que ponhas novamente a Dunia na linha. Sabes que gostava de casar com ela?
- Já esperava uma coisa assim. E porque não o fazes?
- Há esse maldito americano. O que sabe a KGB a respeito dele? Tens ordem para o liquidar?
- Serão as circunstâncias a decidir - retorquiu Bob. Pôs o braço em redor dos ombros de Pleniakov e dirigiram-se como velhos amigos, que já eram, até à carrinha branca, à sombra da qual se puseram. - Foste tu, portanto que liquidaste esse tal Hendrik Gulbrannson, certo? - perguntou Bob num tom despreocupado.
- Fui. Ele queria violar a Dunia.
- Por isso mereces um louvor de Moscovo.
- Obrigado, irmãozinho - agradeceu Pleniakov, que se mostrava visivelmente feliz. A presença de Vassia Grigorevitch comprovava que se podia solucionar o problema de Dunia. Já que Moscovo enviava o major Chukov a Los Alamos, erguer-se-ia aqui o fulcro da infiltração nos EUA.
- Mas que surpresa para a Dunia!
- Vais encontrar-te com ela?
- Hoje, às oito da noite, junto aos Nove Abetos. É um vale por detrás da cidade. Vou já...
- Vais já calar a boca, Andrei Nikolaivitch. - interrompeu-o Bob Miller, tirando um maço de cigarros do bolso e estendendo-a a Pleniakov. - Apareço subitamente... Terá o efeito de um choque, de que nos devemos servir. Tenho indicações precisas.
- Podias... podias liquidar a Dunia? - gaguejou Pleniakov.
- Não. Seria uma missão tua, John.
- Nunca, Vassia. Nunca! - opôs-se Pleniakov, puxando o fumo com tanta força que dava a sensação de ir comer o cigarro. - Não posso.
- Moscovo espera acima de tudo resultados.
- Ainda decorreu pouco tempo - retorquiu Pleniakov, expelindo o fumo com um suspiro. - Estou, no entanto, de posse de uma nova fórmula de material líquido combustível para foguetões. E o que é ainda mais espantoso: trabalham em casamatas subterrâneas num material de composição nuclear. Dentro de dois anos, cada foguetão será um laboratório atómico em miniatura e as distâncias no universo serão percorridas como se se atravessasse meramente uma rua. Só ainda se desconhece como dominar o calor de fricção no interior da atmosfera. Ainda não existe uma liga metálica para esse efeito...
Bob Miller fitou Pleniakov com uma admiração silenciosa. «E o melhor homem de Moscovo», pensou honestamente. «Tens capacidade para eliminar a América, Andrei Nikolai.
- Será uma noite interessante no vale dos Nove Abetos
- comentou Bob com uma tranquilidade férrea. - É realmente um milagre ter-te encontrado, irmãozinho.
- E eu sinto-me tão feliz como uma adolescente depois do primeiro baile. A Dunia, o Vassia e o Andrei estão novamente juntos... -que mais pode acontecer?
- Nada de importante - respondeu Bob secamente.
- Esta noite... será uma festa em família, rapaz!
Uma hora mais tarde, Bob estava novamente em comunicação com o general Orwell. A ligação com Fort Thompson encontrava-se em óptimas condições. Num tom de confiança que apenas se podia permitir uma conversa privada com Orwell, afirmou Bob:
- Pode ir passar férias descansadamente a Miami, sir. Deitar-se ao sol na areia quente e arranjar fungos nos pés. Vou mandar-lhe Pleniakov ao domicilio...
- Onde está ele? - gritou Orwell. - Pela primeira vez desde que Bob o conhecia, perdeu a frieza e a convicção proverbiais, que sempre constituíram um exemplo para os alunos. Embora todos conhecessem secretamente Orwell como o «paizinho Jack», ele era a pura definição da frieza. Nem sequer conseguiram abalá-lo quando lhe tinham raptado a mulher, Mary, com quem surpreendentemente tinha um casamento feliz que durava há trinta e dois anos e a quem também isso diferençava Orwell de quase todos os homens - nunca atraiçoara.
- Bob! - exclamou Orwell num tom descontrolado para a sua maneira de ser. - Tem John Barryl em seu poder?
- Despedimo-nos, há uma hora, atrás de uma carrinha de entregas brancas, com três beijos na face, à boa maneira da amizade soviética...
- Você é um patife dos diabos, Bob!
- Não. Pleniakov é realmente meu amigo. O que complica tudo, sir. Andrei Nikolaivitch já se encontra de posse de segredos americanos, que comprovam exactamente aquilo que sempre soube: é o melhor homem de Moscovo! É um génio! É, no entanto, também o meu melhor amigo...
- Bob! Você é um americano e um homem do topo da CIA!
- E permite-me que seja igualmente uma pessoa, siri
- Se conseguir dar a volta a Pleniakov...
- Nunca o conseguirei, sir. Pleniakov é um russo tão perfeito como eu um americano perfeito.
- Então, não há meia saída. Tem de matar... Bob! pigarreou. Orwell. «Ah! Agora, põe o jogo a descoberto!», pensou Bob, satisfeito. «Agora, embandeira em arco!»
- E... a sua Dunia tem alguma coisa a ver com isto?
- perguntou Orwell sem erguer a voz. Sempre que o general se expressava com maneiras teatrais, tornava-se um jogo arriscado.
- Era a esse respeito que pretendia falar-lhe sir.
- Bob! Você é um soldado e está de serviço.
- Entrego-lhe Pleniakov, se obtiver permissão para casar com Norma Taylor. Como Norma Taylor. Sem problemas nem embargos. O seu passaporte falso passará a autêntico. Nunca foi Dunia Andreievna nem jamais será interrogada. É a empregada dos batidos da Cantina II de Los Alamos, natural do Texas. Desconhece inteiramente...
- Bob! Está a pressionar-me a mim e à CIA?
- Proponho uma troca - respondeu Bob num tom de voz claro e calmo. - Tal como sacrificou Ben Lauritz na Rússia por mim, e Ben será a curto prazo secretamente permutado, da mesma forma troco Dunia Andreievna por Andrei Nikolaivitch Pleniakov. Não falemos das práticas do nosso serviço. Conhecemo-las até ao pormenor da vírgula.
- Podia mandá-lo prender neste momento, Bob. Tem consciência disso?
- E nunca receberia Pleniakov! Possui informações das nossas recentes experiências, como as de apetrechar os foguetões espaciais com laboratórios próprios, de cisão nuclear...
Nem sequer o senhor sabia disso!
Orwell manteve um silêncio momentâneo, apenas se ouvindo a sua respiração ofegante ao telefone. Via-se naquele momento forçado a ultrapassar hierarquias superiores, mas o tempo urgia. O que Bob dava a entender significava - caso Moscovo o descobrisse por intermédio de Pleniakov - não uma mera catástrofe nacional mas também mundial.
- Case com Dunia - pronunciou-se Orwell finalmente.
- Contudo, terá realmente de despir o uniforme, Bob.
- Já lho tinha dito, sir. Não me restam dúvidas nesse aspecto.
- Quando vai entregar-me Pleniakov?
- Amanhã, por volta da meia-noite.
- Em Los Alamos?
- Em Los Alamos.
- Ainda esta noite lhe vou enviar reforços por avião, Bob.
- Peço-lhe que não o faça, sir - opôs-se Bob, sacudindo negativamente a cabeça. É uma coisa que devo fazer só. Àndrei Nikolaivitch é realmente o meu melhor amigo...
O vale dos Nove Abetos não é de forma alguma um local retirado de um livro de espionagem, se bem que o nome soe a violência, mistério, fantasmas, nervos arrasados, pelo menos de acordo com o conceito primário ocidental. Alguém que um dia se deitou aqui com uma bela jovem - pelo menos é a história que corre em Los Alamos - assim baptizou este vale de rochas com o seu conjunto de árvores. E, dado a jovem dever ter sido particularmente boa em questão de movimentação, o entusiasta nem sequer reparara que os nove abetos eram apenas oito e além disso tão secos e cobertos de poeira, tão desesperadamente implantados no chão rochoso e ali agarrados, que havia que ter compaixão pelas oito miseráveis arvorezinhas. Homens menos sensatos do que os americanos, eventualmente alemães do mar Negro, há muito que teriam instalado uma canalização de águas, para que os abetozinhos corajosos não ficassem completamente à mercê das raras bênçãos do céu. Quando é que alguma vez chovia em Los Alamos, de maneira a permitir que as oito solitárias árvores deste vale pudessem matar a sede?
Também como local para namorados, há muito que os Nove Abetos tinham perdido o seu significado. Não porque não. oferecessem solidão - nesse aspecto ninguém se podia queixar -, pois outrora verificara-se uma verdadeira corrida para este barranco. Tudo quanto era jovem em Los Alamos ou ainda se julgava com juventude suficiente (até mesmo avôs com secretárias da idade dos netos ali tinham ocorrido) ia de automóvel até aos Nove Abetos, estacionava - como já se disse o vale era estreito - em círculo, ao lado e em fila, como num cinema ao ar livre, só que as imagens movimentadas não passavam na tela, mas por detrás dos pára-brisas. Não é coisa para toda a gente. Muitos olhares examinando o que os rodeava e comparando - resta alguma coisa mais? testemunhavam frustrações e impotências, complexos de inferioridade e muitas vezes esforços não conseguidos... numa palavra, a torrente de automóveis não demorou a acabar, pois as montanhas em Los Alamos ofereciam bastantes outros vales, onde as pessoas, num automóvel e sem competidores, podiam ser sempre os melhores. Foi assim que o vale dos Nove Abetos se transformou no local mais solitário de toda a região. Foi desterrado, pois ninguém podia mais ter certezas de estar realmente só... era o suficiente para que ninguém mais fosse até lá de automóvel.
Bob Miller tinha estacionado o seu Oldsmobil num vale próximo e percorrera uma milha a pé. Estava, nesse momento, sentado ao fundo do barranco, perto de um dos oito abetos, a coberto da noite, à espera de Pleniakov e de Dunia Andreievna. Certificara-se de que ninguém o tinha seguido. Quando Orwell prometia o que quer que fosse, podia-se acreditar na sua palavra.
Bob fumou dois cigarros, abrigou o pequeno ponto luminoso na mão em cova e observou o penso com que tivera de tapar a mordidela, depois de a pincelar com tintura. Os dentes aguçados de Dunia que se lhe tinham agarrado à mão assemelhavam-se realmente às presas de uma pequena fera.
«O que vou fazer se a Dunia me mentiu?», pensou Bob vezes sem conta. E se o maldito pressentimento de Orwell estiver certo? Se, por detrás de Dunia, se oculta uma aparelhagem perfeitamente funcional da KGB, uma rede informativa formada por chefes de agentes e contactos? A presença de Pleniakov poderia significar isso mesmo: não era por acaso que o melhor homem de Moscovo trabalhava precisamente com Norma em Los Alamos e que, na realidade, tudo se processava, como haviam sido treinados em Vinnia, dentro da maior perfeição. O bar, a terna jovem de formas perfeitas... e um John Barryl que fornecia à cantina o tónico «Bio-jet» e conquistava a confiança geral, nas zonas principais, com as suas graças espirituosas. Este género de truque simples era a melhor forma de êxito. Qual o homem que não entabulava imediatamente relações de íntima afinidade com alguém bem fadado pela natureza?
«O que faço, afinal?» continuava a pensar Bob Miller. «No que se refere a Pleniakov, é tudo muito claro. Quando me reconhecer como americano, tornar-se-á novamente tão perfeitamente russo que a nossa amizade se fará em estilhas. Será meu rival... mas a Dunia?»
Bob examinou novamente o penso que pusera na mão e pensou na mordidela que tinha no pescoço. Pelas costas tinham-lhe escorrido gotas de sangue, como se lhe estivessem a bater com uma chibata de pregos... De manhã, pegara num outro espelho, que pusera na frente para observar bem as costas reflectidas no grande espelho da casa de banho. Viam-se perfeitamente os arranhões que as unhas de Dunia haviam traçado. Uma amostra de paixão.
Tudo aquilo se resumia a mentira? Apenas um momento vulcânico? Seria, quando se enfrentassem num trio e tirassem as máscaras, uma russa à semelhança de Pleniakov? Ou estaria realmente presa a Bob Miller, como lhe sussurrara junto ao rosto, de respiração ofegante?
«Deixei de viver... apenas existo através de ti...»
Bob esmagou o cigarro numa rocha. Ao longe, escutou o ruído de um motor. Vinho do estreito caminho de acesso à pedreira, e caso não se tratasse de um casal de pombinhos, ainda novo em Los Alamos, apenas poderia ser Pleniakov. Dunia viria certamente de motorizada. Também este era um disfarce perfeito. A jovem dos batidos, que deseja apanhar o fresco do vale. Uma self-made-woman- Além disso, membro da agressiva Liga da Mulher. A aluna de Vinniza utilizava condignamente os seus predicados.
Bob levantou-se e ocultou-se por detrás da árvore. Um Wolkswagen de modelo antigo entrou, ruidosamente, no vale e estacionou num dos lados do caminho. Um homem desceu e começou a olhar perscrutadoramente à sua volta. Parecia um empregado de um posto de gasolina regressado do trabalho. Fato-macaco azul, um boné amarrotado, botas de meio cano com as calças metidas por dentro. Um amaericano genuíno.
- Estamos sós, Andrei Nikolaivitch - disse Bob, por detrás do abeto. - Pleniakov deu meia volta com a rapidez de uma catapulta, atirou-se imediatamente ao chão e logo apresentou com uma velocidade incrível um revólver de tambor na mão. As sombras da noite projectadas nos rochedos, serviam-lhe de refúgio. Bob fez um aceno de cabeça satisfeito.
-Não desaprendeste nada, irmãozinho - observou num tom prazenteiro. - As mesmas reacções, com a velocidade de um raio. Ainda te recordas como nós, cheios de raiva e de ciúme até à ponta dos cabelos, queríamos dar um pontapé no traseiro um do outro e os nossos pés se enredavam a meio, porque tínhamos a mesma rapidez e o mesmo tipo de pensamento?
Pleniakov ergueu-se das sombras protectoras. Bob saiu igualmente detrás da sua arvore. Avançavam ao encontro um do outro de braços estendidos e, nesse momento, puderam finalmente beijar-se na face, à maneira russa, e abraçar-se como irmãos.
- Nunca tive um amigo como tu, Vassia - disse Pleniakov, emocionado. - E nunca terei outro igual.
- Não creio nisso, Andrei - retorquiu Bob, libertando-se do abraço de Pleniakov. - Só se nos tivéssemos conhecido noutro local e não precisamente em Frazertown. E não com estes objectivos...
- Também pensei nisso, Vassia Grigorevitch - observou Pleniakov, fitando Bob ingenuamente com os olhos azuis.
- O pálido luar que pairava como uma nuvem no meio da pedreira iluminava-lhes os rostos. - És, porém, incondicionalmente meu amigo...
- O que significa incondicionalmente?
- Recebeste ordens de Moscovo, eu sei. Caso contrário, agora não estarias aqui. E sei que se trata da Dunia.
- Sempre admirei o teu sentido das coisas iminentes, Andrei - declarou Bob mais acaloradamente.
- Vinniza deu-nos a todos muita coisa, Vassia. Dantes quase rebentávamos de patriotismo. Trazíamos a honra de vinnizianos, como se andássemos de medalha de ouro ao pescoço. Tudo pela União Soviética, tudo pela vitória sobre o capitalismo! Libertação do proletariado! A nossa vida pelo poder militar do nosso Exército Vermelho!
- Falas como se tudo isso fosse coisa morta, Andrei.
- Amo a Dunia.
- Eu sei.
- Vou casar com ela.
- E o que tencionas fazer. E então?
- Gostava de te pedir uma coisa na qualidade de meu melhor amigo - prosseguiu Pleniakov, respirando mais fortemente. Estava invulgarmente excitado. O coração dava a sensação de lhe querer saltar do peito e o sangue martelava-lhe a tal ponto nas veias que sentia dores de cabeça. Telegrafa para Moscovo a informar que eu e a Dunia desistimos.
- É impossível!
- Suspeitava de que me ias dar essa resposta. Não podias responder de outra maneira. O exemplar major Chukov! O modelo impecável! Esse é um dos lados, Vassia. Contudo, és também uma pessoa. Sê apenas pessoa frente ao teu amigo e à Dunia.
- É isso precisamente o que quero ser... e por esse motivo não posso, por maior que seja o meu desejo, telegrafar a vossa decisão para Moscovo. Precisamente porque se trata da Dunia.
- Podes dizer que não a encontraste. Que já desaparecera de Los Alamos, com destino desconhecido. Até preparei uma carta. Ela escreverá a carta, se lhe pedir.
- Seria horrível - comentou Bob com uma linha dupla de raciocínio. - Somos ambos profissionais, Andrei. Podia eliminar-te, neste preciso momento, como traidor à nossa nação. Ou podias eliminar-me tu e ficar com o caminho livre para ti e para a Dunia. Nenhum de nós fará tal coisa, porque somos amigos. No entanto, os amigos na política, e precisamente na nossa profissão, estão quase sempre condenados ao fracasso. Não devíamos ter um coração dentro do peito, mas uma pequena máquina.
- Mas temos um coração, irmãozinho! - exclamou Pleniakov, atormentado. - O que se pode fazer contra isso?
- Sabes perfeitamente que Moscovo apenas se interessa pelos resultados - retorquiu Bob Miller, que respirava fortemente pelas narinas. Iniciara-se o grande momento... o instante decisivo no grande jogo duplo. O que sabia o melhor homem de Moscovo? - Apenas se pode actuar com o êxito entre mãos. Conseguiste resultados?
- Sim - respondeu Pleniakov com toda a simplicidade.
- São suficientes para que possa telegrafar para Moscovo.
Em troca das informações de Pleniakov, a sua liberdade e a de Dunia. Ficarão furiosos na KGB, sabe-lo bem... mas, se valer a pena, desistirão de duas pessoas para adquirirem possivelmente o poder sobre milhões. Bob fez uma pausa. A pergunta seguinte continha o destino da América.
- O que tens para oferecer, Andrei?
- A fórmula básica de um novo material líquido de impulsão, de que já te falei. Fotografias de um novo local de experiências para minilaboratórios atómicos, os precursores de foguetões atómicos.
Bob engoliu em seco. Era quase humanamente impossível continuar a manter a calma.
- Mais alguma coisa? - perguntou por entre dentes.
- Uma série de experiências praticamente concluídas de um canhão de lasers de construção requintada, cujo feixe de raios consegue trespassar os mais pesados blindados até agora construídos como se fossem manteiga. Se este canhão de lasers for produzido, podemos eliminar todo o tipo de blindados. Teriam o mesmo valor de latas - prosseguiu Pleniakov. - E finalmente o mais importante: uma informação sobre as últimas experiências com raios de partículas minúsculas de átomos, de urânio e velocidade ultra-sónica para inflamação controlada de uma fusão nuclear.
- Portanto, a bomba de hidrogénio como nova fonte de energia pacífica? E tens tudo isso em teu poder, Andrei?
- No fundo falso da carrinha do «Hio-jet» - respondeu Pieniakov, colocando as duas mãos nos ombros de Bob Miller. - É suficiente para Moscovo, irmãozinho? - perguntou quase ternamente.
- E que de maneira!
- A Dunia e eu seremos felizes. Não me perguntes, por favor, para onde iremos. Sê um grande e único amigo, para não me fazeres essa pergunta, Vassia. Queremos ficar tranquilos para sempre. Também em relação a ti, desculpa. Não como pessoa... mas se te víssemos, teríamos sempre de pensar em Moscovo.
- E, no entanto, a Rússia nunca vos poderá perdoar.
- Também não o queremos. A Dunia e eu somos uma pequena Rússia feliz.
Puseram-se de ouvido à escuta na escuridão. Vindo das rochas, ouviram o roncar típico de uma motorizada. A noite devolvia o barulho multiplicado pelas montanhas frias e queimadas.
- Vem aí a Duniachka! - anunciou Pleniakov num tom cheio de ternura. - Volta a esconder-te atrás dos abetos. Quero preparar a Dunia para a tua presença. Evitar-lhe o choque. Tens alguma ideia de como é?
- Uma vaga recordação.
- Ainda está mais bonita. Não há mulher mais bonita. Vamos! Esconde-te, irmãozinho.
Bob Miller desapareceu a coberto das sombras do abeto. Pouco depois, surgiu à entrada da pedreira a pequena luz da motorizada. O ruído diminuiu, Dunia desligou o motor e apagou a luz. Empurrou a motorizada ao longo daquele último bocado, dirigiu-se ao velho VW e apercebeu-se de que Pleniakov já chegara. No selim da motorizada, sob a palma da mão, estava a pequena pistola de coronha prateada. O mecanismo de segurança estava solto... e à velocidade que podia disparar nenhum desprevenido reagiria.
- Andrei Nikolaivitch! - chamou baixinho. - Onde estás? Vamos. Não quero jogar às escondidas. Se soubesses como me sinto cansada! Foi um dia difícil... O que decidiste!
- Um céu de felicidade, Duniachka! - respondeu Pleniakov, surgindo das sombras. - O destino está a nosso favor, joga do nosso lado. Comprei a nossa liberdade de Moscovo com três trunfos na mão. Podes estar tranquila... completamente tranquila, minha pombinha... Chegou alguém que nos vai ajudar, porque é como nosso irmão... Mostra-te, meu amigo!
Dunia agarrou a pequena pistola e perscrutou a mancha sombria dos oito abetos. Conservava a motorizada na sua frente como se fosse um escudo que a tornasse invulnerável.
Bob avançou lentamente da sombra. De início apenas uma sombra, mas quando o pálido luar lhe mostrou o uniforme soltou um grito.
- Bob! Não! Bob! Para trás! Para trás! Bob...
- Reconheceste-o imediatamente, então? - retorquiu Pleniakov com uma gargalhada. - Sim. Vassia Grigorevitch está cá. Não é uma maravilha? Entregará o material a Moscovo e dar-nos-á a liberdade em troca...
- Bob! - balbuciou Dunia, que mantinha a pequena pistola na mão, escondida debaixo do selim da motorizada.
- Não podia fazer outra coisa, Dunia - disse Miller, erguendo os braços. - No entanto, agora o caminho está realmente desimpedido...
- Ouviste? - exclamou Pleniakov, louco de alegria.
- Confirma-nos! E o que diz um major Chukov...
Bob Miller fitou Pleniakov com um olhar triste. Neste momento não se tratava apenas de compaixão por Andrei Nikolaivitch, nem de um sentimento esmagador por uma tragédia crescente... No seu íntimo existia um vazio terrível, onde a sua própria voz repetia cada vez mais alto: «És um porco, Bob! Um porco sujo! Não há desculpa para este jogo duplo. E nem sequer te serve a do patriotismo. És o patife mais ordinário que por aqui vegeta. Despedaçaste a alma de um verdadeiro amigo. Nem sequer perguntes a ti próprio se alguma vez te conseguirás libertar disso.»
- Sou Bob Miller... - começou num fio de voz.
- Ele! Ele mata-te! - gritou Dunia, quase se esganiçando. - Afasta-te da luz, Bob!
Perplexo, Pleniakov fitava ora Dunia, ora Bob. Ainda não entendia. Apenas pensava numa coisa: «Ela pensa que vou matar o Vassia por ele querer levá-la de volta a Moscovo. Minha pobre pombinha. Não fazes uma ideia do que estivemos a falar. Vassia Grigorevitc está do nosso lado. Somos pessoas livres. Livres!»
- Explica-lhe tudo, Vassia - pediu Pleniakov, ao mesmo tempo que esfregava as mãos. O revólver de tambor estava novamente enfiado no cinto de cabedal, que atara no fato-macaco. - Diz-lhe que tu...
- Tenho de te dizer, Andrei Nikolaivitch: Sou Bob Miller...
- Claro! - concordou Pleniakov continuando a rir. Um americano-modelo. Não faças teatro, irmãozinho. Porque não o cumprimentas, Dunia?... Quem iria pensar que Chukov é o nosso libertador?...
- Já falei com a Dunia - interrompeu-o Bob num tom de aço. Sei que é difícil para ti entenderes tudo isso, Andrei. És uma pessoa leal e boa, um homem sem defeitos nem malícia, apesar de seres um diabo de um espião e um daqueles tipos capazes de pôr o mundo às avessas. Quando foste subitamente destacado de Frazertown, pregaste-me um susto tremendo: «Agora irá perder-se, algures, na América.» Em seguida, também me escapei da vossa perfeita cidadezinha americana junto ao Bug, com a ajuda de Dunia. Numa lata de lixo, metido debaixo de restos de comida mal-cheirosos e fermentados. Dantes, já tinha ido para a cama com a Dunia. Foi um difícil jogo das escondidas...
- Não é verdade, Vassia... -balbuciou Pleniakov. Os olhos azuis arregalaram-se. Levou as mãos ao pescoço e rasgou a camisa por baixo do fato-macaco, até meio do peito.
- Ontem estive novamente com a Dunia e chocámos como duas estrelas cintilantes que se encontrem no universo.
- Estás... estás a dizer-me isso tudo para me levares a combater, como dantes...
- Dantes foi um jogo, major Pleniakov - interrompeu-o Bob levantando a voz. - Hoje é a realidade... Reconheces o que isso significa? Tudo o que outrora, e sob a aparência de não mais sair com vida de Frazertown, se iniciou, conseguiu vingar actualmente. Tenho-te diante de mim, sei quais os documentos que escondes no fundo falso da tua maldita carrinha do «Bio-jet». Tenho finalmente em segurança o agente mais inteligente de Moscovo e que fracassou por causa de uma mulher. De facto, a mais bonita mulher criada por Deus. - Bob mostrou a mão direita. Estava desarmado. Também não tinha qualquer arma no bolso nem no cinturão do uniforme. - Vem cá, Andrei Nikolaivitch. Dá-me a mão e diz em voz alta: «Cago em tudo. A partir de agora ficarei a ser apenas John Barryl!» Para mim chega.
- Quem és tu realmente? - retorquiu Pleniakov, como se as cordas vocais lhe tivessem deixado de funcionar coordenadamente. Continuava imóvel, no meio do vale, iluminado pelo pálido luar, enquanto Bob tinha a vantagem de estar um tanto oculto na obscuridade do oitavo abeto. Dunia, que conservava a pequena pistola na mão, invisível sob o selim da motorizada, pôs-se ao lado de Pleniakov, apoiada ao carro. Andrei Nikolaivitch encontrava-se inevitavelmente armadilhado, só que muito simplesmente não se apercebia.
- Sê sincero, Vassia. O que és em Moscovo?
- Presumo que... o grande desconhecido. Um nome: major Chukov, que aparece, subitamente, sem qualquer ordem, em Vinniza e volta a desaparecer repentinamente e da mesma forma. Um major Chukov que ninguém conhece e em que também só se repara depois de deixar de aparecer. A vossa organização é espantosa. Pleniakov, mas, como acontece entre nós tem as suas fendas, buracos, através dos quais se pode entrar e sair. Nenhum ser humano é perfeito, o que também seria horrível.
- Quem és tu? - gritou Pleniakov subitamente. Um grito que penetrou Bob até aos ossos, semelhante ao grito de morte de um cavalo e que permanece para sempre no ouvido.
- Bob Miller... major da CIA. Sempre o fui em Frazertown, só que vocês todos me viram de uma maneira diferente.
Pleniakov calou-se e baixou a cabeça. Compreendeu finalmente. Para ele era o desabar de um universo. A mulher que amava, o homem que era seu amigo, como não haveria outro em tempo algum... Tudo batia certo, estavam ali ao seu lado... e, no entanto, o mundo assumia uma feição totalmente diversa. O horrível jogo duplo que recebia aqui o ponto final, este diabólico mascarar e desmascarar que, neste momento, acontecia e que era jogado sem consideração pelas pessoas que pensavam de uma forma totalmente diferente, sentiam de uma forma totalmente diferente, queriam viver de uma forma totalmente diferente, este jogo representado por fantoches humanos que, a partir de uma Central que não conhecia sentimentos nem moral, eram impelidos como que por uma pena e agiam até ao parar dessa mesma pena. Era todo este reconhecimento monstruoso que invadia Pleniakov como uma tempestade gigantesca.
- E então? - quis saber Bob, enquanto Pleniakov, ainda incapaz de articular um som, se mentinha sob o luar como que petrificado. - Dá-me a mão, e tudo acaba aqui.
- Não - respondeu Pleniakov num fio de voz. - Não, Bob.
- Pretendias ficar na América como John Barryl.
- Com a Dunia...
- Isso deixou de ser possível. No entanto, para John Barryl há lugar onde quer que seja.
- Sou Andrei Nikolaivitch Pleniakov, major do Exército Vermelho - declarou John, pronunciando bem as palavras. Todo o choque que o abalara desaparecera como que por encanto. «Tudo perdido», pensou. «A mulher que amo. O amigo que é como que um irmão para mim. As informações mais importantes que Moscovo teria possibilidade de receber nos últimos trinta anos. Tudo perdido. Será que o major Pleniakov também deve ser lançado para o lixo?»
- Mete o major do Exército Vermelho no cu! retorquiu Bob em voz alta.
- Não devias dizer isso, Bob. Isso não! - disse Pleniakov respirando com força. - Permaneçamos o que somos, Bob. Com todas as consequências. Com maior razão ainda. Estamos sós... e o que se passar é a nossa pequena guerra pessoal. Um major do Exército Vermelho contra um major do Exército americano!
- Não te dás conta de que é inútil? - ripostou Bob Miller. - Não te restam hipóteses.
- Tenho a hipótese de morrer como um oficial que se preza. Cabe-me a honra de ter feito alguma coisa pelo meu grande e belo país.
- O cabeça-de-burro emanado da fábrica ideológica de Moscovo! - comentou Bob, olhando na direcção de Dunia.
- Porque não te pronuncias, Duniachka?
- Estou à espera - respondeu num tom rouco.
- Estás armado, Bob? - quis saber Pleniakov.
- Não. Quando vou ao encontro de um amigo, não levo arma.
- Oh, céus! Poupa-me a essa palavra «amigo»! exclamou Pleniakov, dirigindo a mão ao revólver, só que ao mesmo tempo ecoou a voz de Dunia. Dura e cortante.
- Tira a mão, Andrei. Estou a fazer pontaria. Pleniakov deu meia volta. Fitou a boca da pequena pistola de coronha prateada, e se bem que a arma fosse minúscula... àquela distância não lhe podia escapar. Deixou cair as mãos e a cabeça pendeu-lhe para a frente.
- Dispara, Duniachka! - exclamou num fio de voz. Peço-te. Suplico-te: dispara! As duas pessoas que me são mais queridas na vida matam-me. É o tipo de morte que posso suportar.
- És um cabeça-de-burro idealista! - explodiu Bob. Já me apercebera disso em Vinniza. Para ti só existe a Rússia?
- Só. Enquanto puder respirar, sentir, sofrer e ver. Ninguém no mundo entenderá uma coisa dessas. A Rússia não é um Estado... a Rússia é mãe ”e sagrada, e todos somos seus filhos.
- Isso é de nilista.
- De um nilista frente ao vosso Deus cristão. No entanto orar à Rússia, beijar o solo da Rússia, cavalgar através das suas estepes e florestas, através dos campos de girassóis que se estendem de uma ponta à outra do horizonte, banhar-se como que num mar de milhões de pequenos sóis, para junto aos grandes rios e sentir como a eternidade corre neles, toda esta imensidade de beleza e bênção da natureza, tudo isto é um Deus capaz de me fazer ajoelhar. E ainda me perguntas se para mim a Rússia existe? Se não gostaria de ser John Barryl? Já alguma vez, Bob, conheceste algum russo que te dissesse: «Sou um emigrante feliz»? Se mencionares a Rússia, certamente as lágrimas lhe subirão aos olhos. - Voltou-se para Dunia, que continuava de arma apontada na direcção da testa de Pleniakov, o alvo mais seguro para o objectivo que se propunha. - Também contigo se passará o mesmo, Duniaschka. Chamar-te-ás Norma Miller... Mas todas as manhãs, quando te penteares, verás no espelho a imagem de Dunia Andreievna. Apesar disso, serás feliz com o Bob, eu sei. Mas o que me resta?
Abriu bem os braços e avançou lentamente na direcção de Bob Miller.
- Vassia Grigorevitch (e é a última vez que te trato por este nome) és o meu único amigo. Tira o revólver que trago no cinto e liquida-me.
- Estás completamente doido, Andrei - pronunciou Bob num tom quase inaudível e irreconhecível. Completamente, rapaz.
- Proporciona-me uma morte decente.
- Vamos até ao motel mais próximo e apanhamos uma bebedeira!
- Sou major do Exército Vermelho! - insistiu Pleniakov, detendo-se muito perto de Bob Miller. Fitaram-se nos olhos e toda a amizade voltou a eclodir e a açoitá-los. Sei que se te atacar, Dunia me atingirá pelas costas. Não é uma morte decente, Bob. Mereço uma coisa melhor.
- A vida, Andrei. A vida!
- Mesmo agora?
- Um momento! - Bob Miller deu a volta por detrás de Pleniakov, estendeu a mão e fez um gesto com os dedos. Dá-me o teu brinquedo prateado, Dunia! - ordenou num tom imperativo. - Além do mais, não me agrada uma mulher capaz de matar uma pessoa.
- Por ti até matava Deus! - respondeu duramente.
- É muito dramático, mas pura baboseira! - comentou Bob, tirando-lhe a pistola da mão e atirando-a para o escuro, para o meio dos oito abetos. Dunia soltou um grito... ambos ficavam indefesos diante de Pleniakov, que tinha o revólver totalmente carregado no cinto. Bastava-lhe um gesto rápido. Pleniakov deu a sensação de pensar exactamente o mesmo. Soltou uma risada forçada e triste.
- Mas que confiança, Bob.
- Entre amigos é compreensível!
- É um jogo de morte.
- Joguei muitas vezes e ganhei. Agora, dá-me o teu revólver, Andrei. Com o punho voltado para mim.
- Não - recusou Pleniakov num tom duro e claro.
Bob não se mexeu, mas Dunia retesou-se como uma gata antes do salto.
- Cão! - insultou. - Canalha! Terás de te haver primeiro comigo.
Precipitou-se para a frente, meteu-se entre Bob e Andrei e bateu com tanta força no peito de Pleniakov, servindo-se dos dois punhos, que o fez cambalear.
- Dispara, agora! - ordenou-lhe. - Dispara, cão tinhoso!
Pleniakov sacudiu a cabeça e fitou Dunia tristemente.
- Ela julga-me capaz de uma coisa dessas, Bob - disse lentamente. - Entendes isto? Ama-te e está cega... mas também devia ainda ser capaz de sentir quem é Andrei Nikolai vitch.
- Creio que se trata de um assunto entre homens - declarou Bob calmamente. - Há duas hipóteses, Dunia. Ou nos deixas sós e esperas por nós no barranco... ou ficas, atamos-te com o o cinto, e quando tudo estiver acabado serás a mulher mais solitária deste mundo. O que preferes?
- Bob ... - Mantinha-se diante dele, fitando-o com os grandes olhos negros, o cabelo em desordem, abalada pelo medo. - Nunca mais te deixarei só, Bob...
- Só hoje, querida. Afasta-te ou vemo-nos obrigados a prender-te!
Fez um aceno de cabeça silencioso, pegou na motorizada e começou a empurrá-la na sua frente. Desapareceu lentamente, envolta na sombra da montanha, e ouviu-se-lhe o afastar dos passos e o rolar de pedras soltas, que eram impelidas pelas rodas da motorizada.
Esperaram ainda uns minutos e afundaram-se mais para o interior das sombras dos oito abetos. Para o caso de Dunia voltar atrás e os observar... deixaria de poder reconhecer o que quer que fosse. Bob deu uma pancada no ombro de Pleniakov.
- Estamos numa embrulhada dos diabos, Andrei comentou. - Convencer-te não consigo e matar-te é totalmente impossível. Ignorar tudo, encontra-se fora de questão.
O que tens na tua carrinha de «Bio-jet» chega para fazer recuar a América um século, caso as informações cheguem a Moscovo. Não entregas os documentos de livre vontade. Talvez os trocasses pela Dunia, mas antes fazer uma escada de corda até à Lua do que entregar-te a Dunia. Também me poderias abater neste momento, só que muito simplesmente não o fazes. Todo este jogo duplo apenas demonstra como nós, profissionais frios, nos encontramos dependentes das mais profundas emoções. Ao longo de anos preparam-nos para máquinas de combate, e o que resta? Olhamo-nos, Andrei, e seríamos capazes de uivar. Ninguém que não tenha vivido uma coisa destas, conseguirá acreditar. Tudo o que sobre nós se escreveu em milhares de romances não passa de clichés baratos. Um médico é um herói de bata branca ou um seguidor de Frankenstein é um espião tem de ser um assassino frio ou um imbecil a que se tire prontamente o cérebro. Agora, estamos aqui os dois na noite, temos o mais quente material entre mãos e gostaríamos de nos acariciar: Meu caro Andrei... meu caro Bob... não é mesmo uma vida de merda?
- Mas temos de nos separar, Bob - retorquiu Pleniakov com um nó na garganta.
- Disso não tenho dúvidas.
- Estás disposto?
- A quê, jovem?
Pleniakov tirou o revólver do cinto e estendeu-o a Bob Miller com o punho virado na sua direcção. Contudo, ele não lhe pegou.
- Já te disse uma vez: não disparo contra ti - declarou Bob num tom de voz duro.
- Nenhum disparará contra o outro, Bob.
- E resolvemos o nosso problema como cow-boys a disparar para garrafas?
- Contra as nossas cabeças, Bob - respondeu Pleniakov, virando o revólver para si e abrindo o tambor. Despejou os cartuchos na mão esquerda, pegou numa única bala e voltou a colocá-la no tambor. - Vocês chamam-lhe «a vontade de Deus»... nós contrapomos: «a roleta russa». Entendido?
- Bob Miller fitou Pleniakov e o seu olhar perdeu-se nos rochedos frios.
«O Alasca», pensou. A cidade russa de Smolenska, a réplica de Frazertown junto ao Bug. Orwell diante de dez finalistas do curso especial. Os melhores, como sempre afirmava.
-- Não posso obrigar-vos - dissera. - Até aqui suportaram tudo... mas o que se vai seguir não é um exercício, não existe ajuda, nem haverá simulacro. Aqui é mesmo a sério. Além do mais, é também proibido... mas muita coisa do que fazemos aqui é proibido por lei. Lá fora também não terão que se preocupar com leis, mas apenas com a vossa missão. Portanto: quem está disposto a jogar a roleta russa? Conhecem as regras: no tambor do revólver há uma bala, só que ninguém sabe em que buraco. O tambor roda algumas vezes sobre o próprio eixo, seguidamente põe-se a mão no gatilho e encosta-se o cano da arma à fonte. Disparar e esperar. Se faz meramente «clique»... teve-se sorte. Ganhou-se a roleta. No entanto, caso se ouça «pum»... fica-se com a certeza de um funeral militar com todas as honras. Porque vos estou a propor isto, rapazes? Não porque talvez se vejam alguma vez na situação de aguentar uma roleta russa... era moda no tempo dos czares. No entanto, quem encosta o cano da arma à fonte consciente de que pode falhar é uma pessoa que me sinto capaz de colocar em posição de relevo no Kremlin. - Em seguida Orwell pusera um pequeno revólver em cima de uma mesa e metera as mãos no casaco do uniforme. - Chamem-me à vontade um cão danado, rapazes
- dissera duramente. - Suportarei o insulto. A bala está metida na câmara e o tambor já rolou. Quem lhe pega?
Ninguém o fizera no Alasca. Tinham ficado pregados ao chão e olhado de través para Orwell. «O velho está doido», tinham-se limitado a pensar. «Até aí não chega a preparação de especialistas. E mesmo que sejamos expulsos do curso... pelo menos será com vida!»
«Óptimo!», comentara Orwell depois de alguns minutos de espera. «Respeito-vos. Não estão dispostos a desperdiçara vida.»
Em seguida, pegara no revólver, encostara-o à fonte e disparara antes que os dez oficiais tivessem possibilidade de o desarmar. Orwell caiu ao chão, devido ao embate dos dez homens sobre si, mas o revólver fizera meramente «clique». O general Orwell continuou vivo. Nessa altura, Bob Miller arrancara o revólver dos dedos dobrados de Orwell e depois abrira o tambor. Estava vazio. Não havia uma só bala nos buracos. Portanto, nada se poderia ter passado. Típico de Orwell.
Contudo, desta vez, aqui no vale dos Nove Abetos, havia uma bala num dos buracos. Pleniakov mostrara-a com toda a clareza a Bob Miller. Agora, voltou a estender-lhe o revólver. A mão não lhe tremia.
- Porquê primeiro eu? - perguntou Bob, fitando os olhos azuis e leais de Pleniakov. «São de facto malditamente leais», pensou Bob. «Se ao menos, Andrei estivesse disposto a destruir os documentos relativos às novas armas.»
- Como primeiro, tens a maior chance, Bob - respondeu Pleniakov com uma breve risada. - Fazemos duas tentativas, o que significa quatro buracos. O revólver tem seis. Achas leal?
- Ainda resta uma- saída, Andrei. Vamos até essa porcaria da carrinha «Bio-jet» e queimamos todos os documentos que escondeste no fundo falso.
- Não. _ Era uma situação que não deixava dúvidas. Bob pegou no
revólver e desengatou o cão.
- E porque não?
- Já deixaram de me pertencer... pertencem à Rússia.
- Estás em solo americano.
- Mas sou russo. Basta de conversas. Começa!
- O que será da Dunia se perder, Andrei?
- Deixo-lhe a decisão - respondeu Pleniakov, afastando os cabelos louros da testa. - Sabes como a amo.
- Tentará tudo para te matar. Estás consciente disso?
- Submeter-me-ei à sua sentença. Na minha opinião, Bob, hoje foi a noite em que os três caímos por terra. Não há vencedores. - Bateu com a mão no peito de Miller e ergueu-lhe o queixo. - Começa, com mil raios! Não aguento mais...
Bob Miller ergueu o revólver, encostou-o a fonte direita, colocou o dedo no gatilho e, antes de o puxar, procurou com os olhos uma vez mais a saída da pedreira. Não via Dunia, mas sabia que ela se acocorava algures na sombra dos rochedos e esperava; mordia os punhos cerrados e estremeceria ao primeiro tiro.
- Se sobreviver, Andrei - disse Bob muito baixo - vou tomar conta do motel e do restaurante do meu pai. Juro-te.
- E se for esse o meu destino, dedicar-me-ei à música retorquiu Pleniakov, respirando fundo. - Sei tocar balalaica lindamente.
- Eu sei. Andrei. Decerto conseguirás um lugar como tocador de balalaica. Não morrerás de fome.
- Certamente que não.
- Tudo bem, Andrei.
Pleniakov fez um aceno de cabeça afirmativo. Fitou o indicador de Bob, que se contraía. Quem, nesta altura, fosse capaz de falar tinha uma máquina e não um coração no peito.
Bob Miller superou o momento.
O cão soltou-se e fez apenas um «clique». Tal como se tivesse disparado gelo, tão frio estava o revólver na sua mão e gelado o cano junto à fonte.
Pleniakov soltou cuidadosamente os dedos de Bob da arma e pegou-lhe.
- Agora eu, Vassiuchka.
Fez rolar o tambor, desengatilhou o cão e ergueu o revólver. Bob reteve a respiração. - é uma loucura, Andrei!
- Sou porventura menos corajoso do que tu? Atreves-te... vou envergonhar-me diante de ti?
- Andrei...
A mão de Pleniakov actuou rapidamente. Quase em simultâneo com o apontar junto à fonte, puxou o gatilho.
«Clique». Apenas o barulho ligeiro e seco. Um mero arroto satisfeito do destino! Muita saúde, camarada!
Pleniakov devolveu a arma a Bob, que já estendera a mão. O mesmo cerimonial. Rolar do tambor. Desengatilhar o cão. Encostar o cano à fonte. Contracção dos dedos.
- O teu último tiro, Bob - observou Pleniakov calmamente.
- E depois?
- Caso eu sobreviva, cada um de nós tem duas mãos, Bob, e portanto deveremos dar cabo um do outro.
Bob concordou com um aceno de cabeça. O dedo puxou o gatilho.
«Clique». O mesmo som maldito e irónico. Podes continuar a viver, mas no íntimo, em cada segundo, morres aos pedaços. Aguenta. O medo devora-te...
Pleniakov pegou outra vez no revólver. Negou-se a rodar novamente o tambor. Segundo as leis da probabilidade, o buraco a seguir estaria igualmente vazio.
- Vamos fazer uma terceira volta, Bob? - perguntou.
- Quero dizer, antes de nos matarmos pelas nossas próprias mãos?
- De acordo. Uma vez mais - concordou Bob, retendo a respiração. Tudo em si se desfazia em pedaços, assemelhando-se ao estilhaçar de um vidro. - Aposto, Andrei, que a nossa roleta não vai...
Pleniakov premiu o dedo. Como se tivesse um pressentimento, riu para Bob e fez-lhe um aceno de cabeça.
Seguidamente partiu o tiro, ressoando por todo o vale num eco multiplicado. Todo o corpo de Pleniakov foi sacudido, quase se ergueu do solo, e depois caiu de lado nas pedras. Continuava com o revólver preso nos dedos.
Dunia surgiu nesse momento a correr, vinda dos rochedos.
Bob - gritou num tom que mais parecia um uivo. - Bob! Bob! Bob! - Começou seguidamente a murmurar coisas sem nexo num tom quase animalesco, como Bob nunca ouvira a qualquer ser humano.
- Bob!
Miller saiu da sombra dos abetos e correu até junto de Pleniakov. Voltou-o para cima. Quando pousou no regaço a cabeça de onde, estranhamente, apenas da fronte direita, corria um fio de sangue, Dunia estava ao seu lado. O grito morreu-lhe na garganta... Fitou Pleniakov, caiu de joelhos junto a Bob e escondeu o rosto no pescoço dele.
- Ainda está vivo - disse Bob, apertando com o polegar o buraco aberto na fonte, como se assim pudesse manter Pleniakov com vida. - Vai buscar o carro. Depressa! Deixa-me! Vai buscar o carro!
- Bob... Bob... oh, Bob!
- O carro! - rugiu. - Com «oh, Bob», não podes dar vida.
Ela pôs-se de pé num salto, soltou novamente um grito e foi buscar rapidamente o velho VW de Pleniakov à entrada da pedreira.
De manhã, por volta das quatro, em Fort Thompson, um adjunto levou o telefone à cama do general Orwell e saiu depois do quarto. Orwell consultou maquinalmente o relógio, sentou-se na cama e levou o auscultador ao ouvido.
- O que aconteceu, Bob? - perguntou.
Era esta maneira de reagir o que mais surpreendia em Orwell... Para ele não existiam surpresas. Um telefonema às quatro da manhã só podia ser de Miller.
- Informo-o, sir, que estou disposto a apresentar a minha demissão - comunicou Bob num tom militar.
- Missão cumprida.
- Tem o Pleniakov, Bob? Meu Deus! Sinto-me capaz de o abraçar. Parabéns! Onde está ele agora?
- No hospital militar de Los Alamos, quarto dez. Ablação neurocirúrgica. Há dez minutos que foi operado ao cérebro. Vai sobreviver.
- Houve combate, Bob?
- Uma roleta russa, sir-Orwell engoliu em seco. Atirou as pernas para fora da cama.
- Você endoideceu, Bob? - explodiu. - O que o levou a meter-se numa coisa dessas?
- Foi o que nos ensinou, sir. Utilizei esse tipo de coragem.
- Mas nessa altura o revólver estava vazio! - gritou Orwell.
- No entanto, só depois o verificámos, sir - retorquiu Bob Miller num tom ainda mais frio. - Vou enviar-lhes seis documentos, sir. Três merecem uma grande compensação por parte dos EUA.
- Mais uma troca, Bob? Está a dar cabo do seu velho papá Orwell.
- O meu amigo John Barryl vai ficar cego, sir. Dos dois olhos. É uma certeza. A bala não lhe roubou a vida, mas destruiu-lhe os dois nervos ópticos.
- O seu amigo, Bob? Ainda?
- O meu melhor amigo, sir. Quero três documentos para troca: um a desligar-me do Exército... o segundo, um passaporte legítimo para Norma Taylor... o terceiro, um passaporte legítimo para John Barryl.
- Bob!
- Um pedido mais modesto para este jogo de merda, não pode existir. Uma decisão e dois passaportes... não valem a segurança da América?
- Não o quero ver partir assim, Bob. E se lhe prometer um lugar no Estado-Maior?
- Em toda a minha vida nunca fui perverso, nem tão-pouco tive tendência para tal, sir - replicou Bob num tom completamente frio. - Contudo, se puder queimar o meu uniforme numa fogueira, e tão rapidamente quanto possível, acho que nesse momento terei uma realização sexual.
- Chega, Bob! - respondeu o general Orwell secamente. - Amanhã, à tarde, estarei em Los Alamos, falaremos de tudo isso e iremos visitar o seu amigo Pleniakov...
- John Barryl, sir.
- Desculpe. John Barryl. Amanhã cedo, darei ordens para Washington no sentido de o dispensarem, com todas as honras, com o cargo de coronel. Satisfeito?
- Obrigado, sir - agradeceu Bob Miller, com um cansaço de morte. A dez metros, deitado na cama, encontrava-se Çleniakov, cego e ainda sob o efeito de anestésicos, enquanto Dunia lhe pegava na mão e lhe limpava os lábios.
- A única coisa que me agrada é o aumento de salário.
- Você sempre foi um patife desavergonhado, Bob, devo dizer-lhe.
- Da sua escola, sir - riu Bob ao auscultador e, se bem que Orwell não o visse, suspeitou que assim era.
- Nunca tive um aluno igual.
- Deve agradecer a Deus por isso - retorquiu Bob num tom de voz que soava um tanto a liberdade. - Faça realmente isso, sir. Estou preparado e esforço-me com todas as forças por esquecer o que fui.
- Foi o meu melhor agente, Bob.
- Isso é o pior de tudo, sir. Vou necessitar de muito tempo para ficar novamente em paz com a minha consciência. ..
Meio ano mais tarde, espalhava-se a notícia de que o restaurante e o motel de Miller se encontravam sob nova gerência. O velho Johannes Miller tinha-se afastado completamente do negócio. Agora, as honras do restaurante eram feitas por um homem novo, alto e robusto, um monte de músculos, onde os olhos, com uma expressão permanentemente sonhadora, davam a sensação de deslocados. Além disso, as roupas valorizavam-lhe de tal maneira o físico que metade da clientela feminina do restaurante ficava com os olhos mais brilhantes e sentia o coração acelerado quando Bob Miller ia até às suas mesas e perguntava - como aos demais -, num tom delicado, se tudo estava em ordem e tinham qualquer desejo.
Em ordem não estava nada nas senhoras a quem Bob diririgia a pergunta e desejos tinham bastantes ao vê-lo, só que na caixa se sentava uma figura de uma beleza espantosa e cabelo negro encaracolado e que nos círculos femininos não despertava elogios,- mas apenas inveja. Nesse sentido estavam recrutados os restantes cinquenta por cento dos clientes, os homens que mandavam reservar todas as mesas perto da caixa e despiam Norma Miller com os olhos. Era-lhes permitido, pois nada melhor para quebrar a monotonia do quotidiano do que um pouco de fantasia, ainda que vagueie debaixo das blusas e saias.
O restaurante estava a dar lucro, nos fins-de-semana estava sempre cheio e os quartos do motel sempre reservados.
Não era, porém, apenas por causa de Bob Miller nem do seu clã de mulheres interiormente excitadas, nem de Norma Taylor e das suas blusas encantadoras que o restaurante estava sempre cheio, cheio nos fins-de-semana... Todos os sábados e domingos, das oito à meia-noite, sentava-se num estrado, em cujo cenário de fundo se projectava uma paisagem da infinda taiga, um homem cego que tocava balalaica. Mantinha quase sempre a cabeça baixa, enquanto os dedos deslizavam pelas cordas. Apenas quando começava a cantar em russo, numa bela e clara voz de tenor, que enchia tanto a sala como a trovoada siberiana projectada nas suas costas sobre as florestas da taiga, erguia a cabeça. Então, fazia-se silêncio no restaurante de Miller, pois todos sentiam a presença de alguém que cantava com toda a nostalgia que um coração pode albergar. Então, movimentavam-se as florestas, ouvia-se a tempestade siberiana, agitava-se a erva das estepes, soavam os cascos dos cavalos, fendia-se o gelo dos rios e os bandos de patos bravos voavam para leste, rumo aos pântanos libertos do gelo.
Algumas vezes, havia quem perguntasse a Bob:
- Onde o foi buscar? Canta como se fosse russo! É como se o fizesse com a própria alma...
- Chama-se John Barryl. Antes de cegar, sempre desejou ir à Sibéria. Uma particularidade temperamental.
Agora sonha com isso. Deixem-no sonhar e ouçam-no. Vale a pena...
Heinz G. Konsalik
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