Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JOGO DUPLO - P.2 / Tami Hoag
JOGO DUPLO - P.2 / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

O agente especial Armedgian, o meu contacto nos escritórios do FBI em West Palm, fornecera-me as informações que tinha obtido junto da Interpol.

De acordo com Armedgian, do registo criminal de Van Zandt não constava qualquer pena de prisão, embora ele figurasse nos arquivos da Interpol, o que, por si só, queria dizer alguma coisa. O homem enfiara as mãos num grande número de negócios, sempre prestes a pisar o risco que delimitava o que era dentro e fora da lei, apesar de nunca ter atravessado para o lado da infracção - ou, fosse como fosse, sem nunca ter sido apanhado.

Não havia menção de ele ter despertado a atenção das autoridades por qualquer ofensa de natureza sexual. Senti-me decepcionada, mas não surpreendida. Se por acaso existissem outras vítimas dos seus encantos bastante duvidosos, o mais provável era serem como a amiga de Irina: jovens, inexperientes e sozinhas num país estrangeiro, receando contar a alguém o que se estava a passar.

Sentindo necessidade de desanuviar a cabeça antes dos jogos de mente programados para a noite, vesti um fato de banho e fui para a piscina, deixando que a água cálida e suave acalmasse o meu corpo, limpando o cérebro cheio de cascalho.

 

 

 

 

 

O Sol já se tinha posto, mas a piscina reflectia um azul nocturno que irradiava das suas paredes. Não pensei em nada de nada enquanto dava umas braçadas indolentes, intercaladas por viragens em movimentos lentos, debaixo de água, quando chegava às extremidades. A tensão começou a desaparecer e durante algum tempo senti-me como se não passasse de um animal aquático esguio, feito apenas de ossos, músculos e instinto. Era uma sensação deveras agradável, ser qualquer coisa assim tão fundamental e desprovida de quaisquer artifícios.

Quando achei que tinha nadado o suficiente, virei-me de costas e comecei a flutuar, olhando para as estrelas que Pontilhavam o firmamento de um negro aveludado. Foi então que Landry apareceu no meu ângulo de visão, de pé, à beira da piscina.

Mergulhei e voltei à superfície, sacudindo a água do cabelo.

 

- Detective, o senhor apanhou-me de surpresa - disse eu saindo da água.

 

Tenho a certeza de que isso não lhe deve acontecer com muita frequência.

Vestia ainda a roupa com que fora trabalhar, se bem que já tivesse alargado o nó da gravata e arregaçado as mangas da camisa.

 

- A culpa é minha por lhe ter dito o código que abre o portão - disse eu. - Teve um dia difícil a arrancar unhas aos seus suspeitos?

 

- Um dia muito comprido - respondeu ele.

 

- Lamento não ter estado presente. Ninguém é melhor como mau polícia do que eu.

 

- Não me restam dúvidas quanto a isso - retrucou ele esboçando um meio sorriso. - Não vai convidar-me a entrar? Dizer-me que a água está óptima?

 

- Isso seria um lugar-comum. A previsibilidade aborrece-me. - Nadei até às travessas de metal, subi e saí da piscina, obrigando-me a não me apressar a cobrir o corpo com uma toalha. Não queria que ele se apercebesse do quanto me sentia vulnerável. Não sei como, pensei que, até mesmo com a pouca luminosidade em redor da piscina, ele conseguiria ver todas as cicatrizes, cada imperfeição que tinha no corpo. Senti-me irritada por me sentir incomodada com isso.

 

Sequei-me com a toalha e esfreguei o cabelo, após o que enrolei a toalha à volta da cintura, como se fosse um sarongue, numa tentativa para esconder a pobre pele cheia de cicatrizes das minhas pernas. Landry observava tudo o que eu fazia com uma expressão imperscrutável.

 

- Nada em si é previsível, Elena Estes.

 

- Aceito isso como um cumprimento, apesar de não achar que você considere a imprevisibilidade como sendo uma virtude. Traz boas notícias? - perguntei, tomando a dianteira em direcção à casa das visitas.

 

- Alguns agentes encontraram o automóvel de Erin Seabright - informou ele. - Estava estacionado por baixo de cerca de quinze centímetros de poeira, a um canto do primeiro lote da entrada dos camiões no centro equestre. Parei com a mão na maçaneta da porta, sustendo a respiração, na expectativa de o ouvir dizer que Erin havia sido encontrada, morta, no porta-bagagens do carro.

 

- A Brigada de Perícia Criminal já se encontra no terreno a recolher impressões digitais e quaisquer outras provas.

 

Suspirei, sentindo um alívio indescritível.

 

- Onde é que disse que foi encontrado? - perguntei.

 

- No primeiro parque de estacionamento quando se entra pelo acesso dos camiões, perto da lavandaria.

 

- E por que motivo é que o teriam deixado aí? - perguntei, embora não esperasse resposta. - Ela teria estacionado o carro próximo da cavalariça de Jade e não a mais de meio quilómetro de distância. Porquê nesse lugar?

 

- Talvez ela tenha aproveitado para deixar roupa na lavandaria - sugeriu Landry encolhendo os ombros.

 

- E depois percorreu a pé toda a distância até às cocheiras do Jade? Mais ainda: caminhou de volta ao portão para se encontrar com quem pensava que iria encontrar-se? Isso não faz sentido nenhum.

 

- Também não faz sentido nenhum que os sequestradores tenham levado o carro para esse lugar - contrapôs Landry. - Eles raptaram-na. Por que motivo é que deviam preocupar-se quanto ao lugar onde o automóvel se encontrasse estacionado?

 

Quando entrámos em casa, eu ia a pensar naquilo.

 

- Para ganharem tempo? - sugeri. - Na segunda-feira teria sido o dia de folga da Erin. Se não fosse a Molly, ninguém teria dado pela falta dela até à manhã de terça-feira.

 

- E mesmo nessa altura, ninguém teria dado pela falta dela, uma vez que o Jade afirmou que ela se havia despedido e mudado para Ocala - acrescentou Landry, concluindo aquela linha de raciocínio.

 

- Como é que ele reagiu ao interrogatório?

 

- Para ele, foi um inconveniente. Tanto o interrogatório como o assassínio.

 

- Ele mostrou nervosismo? - perguntei.

 

- Nada que valha a pena mencionar.

 

- Pois bem... o sujeito ganha a vida a montar cavalos que saltam obstáculos mais altos do que eu. Não se pode dizer que seja um jogo para quem tenha um coração fraco.

 

- Nem o assassínio.

 

Um jogo. Seria difícil que o cidadão comum considerasSe o sequestro e o homicídio como jogos, mas, de uma forma macabra, tratava-se de um jogo. Um jogo em que as paradas eram elevadíssimas.

 

- Os raptores disseram mais alguma coisa? - perguntei.

 

Landry sentou-se, encostando-se todo para trás e mantendo as mãos nas algibeiras. Abanou com a cabeça antes de me responder.

 

- Não. Os telefones em casa dos Seabright estão sob escuta. Também dei instruções a dois agentes para que falassem com os vizinhos. Mas isso não deu em nada.

 

- No armário do televisor, na parte de baixo, há um bar - disse eu, apontando para a sala de estar. - Parece-me que você está a precisar de uma bebida. Sirva-se à vontade enquanto eu me visto.

 

Obriguei-o a esperar enquanto tomava um duche rápido após o que me deixei ficar diante do espelho durante cinco minutos, observando-me atentamente e tentando ler a minha própria expressão fisionómica, que era imperscrutável.

 

A sensação de ansiedade que se recusava a abandonar-me o ventre não me agradava nada. O nó de medo havia sido substituído por qualquer coisa que quase não reconheci: esperança. Não queria que a emoção que sentia face ao regresso de Landry tivesse tanto significado; o facto de estar a pôr-me ao corrente da situação, incluindo-me no caso.

 

- Você disse ao Seabright que era detective particular observou ele. A voz era forte e clara. Decerto estaria colocado junto da porta da casa de banho, do outro lado. - Isso é verdade?

 

- Não foi bem assim - respondi.

 

- Então é uma falsidade.

 

- Não. É uma mentira - corrigi. - Só seria uma falsidade se eu estivesse a tentar passar por aquilo que não sou, e se aceitasse dinheiro do Seabright com base nessa impostura. Não foi o caso.

 

- Você teria dado uma advogada e pêras - retorquiu Landry.

 

Era o que o meu pai sempre tinha dito, razão por que eu optara por uma carreira policial. Nunca quis ser como ele dobrando a lei como se fosse feita de arame, deturpando; de modo a servir as necessidades de gente corrupta, ao serviço da riqueza corrupta. Na altura, eu não tivera a percepção de que, na qualidade de agente da lei, eu própria acabaria por a dobrar de tantas maneiras como ele fazia, justificando desculpando as minhas acções por acreditar que a causa que defendia era justa. Apesar disso, continuava a não ser como ele. E isso era o mais importante.

 

- Já verifiquei o registo criminal do miúdo do Seabright - informou Landry. - Nunca teve nenhum problema com a lei. É um bom estudante e anda empenhado numa série de actividades extracurriculares.

 

- Como pôr-se na filha da mulher do pai?

 

- Pertence ao clube de matemática - respondeu Landry sem acusar a minha ironia.

 

- Não me agrada que ele tenha mentido quanto ao sítio onde esteve no domingo passado - acrescentei.

 

- Tal pai, tal filho - comentou Landry filosoficamente.

 

Vesti roupa interior preta, olhando-me por cima do ombro, como se estivesse à espera de ver Landry na ombreira da porta. Mas não estava.

 

- O Seabright vai sair a terreiro para defender a carne da sua carne, o sangue do seu sangue - disse eu. Vesti uma camisa branca e um par de calças de um castanho cor de tabaco. - Ele não vai permitir que se infira qualquer possibilidade de o Chad estar envolvido no assunto.

 

- Isso, assumindo que seja o pai a providenciar um álibi ao rapaz. Também funciona no sentido inverso.

 

Amarrei a camisa à cintura e saí do quarto. Landry estava encostado à bancada da cozinha, com um uísque na mão. Com um olhar dissimulado, observou o meu vestuário.

 

- Não precisava de se vestir a rigor por minha causa observou ele.

 

-- E não vesti. Mas, continuando, não estou a ver o Bruce Seabright a participar de maneira activa no rapto da Erin. Ainda que ele quisesse que ela desaparecesse, não sujaria as mãos. Seria demasiado arriscado. Portanto, por que motivo é que precisaria de um álibi? - perguntei. u Chad é que andava metido com a rapariga.

 

- E é a Erin que tem cadastro por delinquência juvenil - acrescentou Landry. - Por furto em lojas. Posse de estupefacientes.

 

- Concretamente, o quê?

 

Ecstasy. Foi apanhada numa festa. Levou uma rePreensão. Já pedi a alguém da Divisão de Delinquência Juvenil para que averiguasse os antecedentes dos amigos com quem ela foi detida - continuou Landry. - Também contactei um fulano que conheço na Brigada de Narcóticos para que me informasse sobre o que têm em relação ao traficante.

 

- Quem é esse dos Narcóticos?

 

- O Brodie. Conhece-o?

 

Olhei para os pés, assentindo com a cabeça. Parara defronte de Landry, encostando-me à bancada oposta, com os braços cruzados à altura do peito. O espaço entre nós era tão pequeno que os dedos dos meus pés descalços quase tocavam na biqueira dos sapatos dele. Boa qualidade, de couro castanho e com atacadores. Sem borlas com franjas.

 

Em tempos, Brodie havia sido um dos meus amigos. Ou, pelo menos, foi o que pensara. Arrependi-me de ter feito aquela pergunta. Agora, Landry estava à espera que eu dissesse mais alguma coisa sobre o assunto.

 

- É competente que baste - optei por dizer.

 

- Tenho a certeza de que ele ficaria muito satisfeito com a sua aprovação - comentou Landry com uma entoação de sarcasmo quase imperceptível.

 

Perguntei a mim mesma o que é que Brodie teria dito a meu respeito, não que isso me interessasse por aí além. Landry pensaria aquilo que bem lhe aprouvesse.

 

- O Jade diz que a rapariga, sem mais nem menos, decidiu ir-se embora - continuou Landry. - Foi a última pessoa a vê-la. Quanto a mim, acho que as coisas se passaram deste modo: a Erin sabia alguma coisa em relação ao cavalo que morreu. O Jade queria que ela saísse do seu caminho. Decidiu encenar o rapto, o que lhe daria uns dinheiros suplementares como paga pela maçada. O mais provável é a rapariga estar tão morta como a que apareceu enterrada debaixo do monte de esterco.

 

- Espero sinceramente que esteja enganado em relação à última parte - retorqui, mas sabendo que era muito possível que ele tivesse razão. Eu própria já pensara naquela probabilidade.

 

- Ouça uma coisa, Elena; devo-lhe um pedido de desculpa - acrescentou ele. - É por isso que estou aqui. Talvez se eu lhe houvesse dado ouvidos da primeira vez em que foi falar comigo, a Jill Morone não tivesse morrido. Quem sabe, talvez neste momento a Erin Seabright já estivesse de regresso a casa.

 

- Não sei o que dizer a isso - repliquei com um encolher de ombros.

 

É claro que ele tinha razão, e ambos estávamos bem cientes disso. Eu não estava disposta a oferecer-lhe paliativos, como uma boa mulherzinha que desculpasse as pequenas transgressões do marido. Também não tencionava esfregar-lhe a verdade na cara. Ele limitara-se a fazer um mau juízo de valores. Mas eu era a última pessoa com direito a criticar alguém naquele aspecto.

 

- Não é só você que tem culpas no cartório - observei. - Eu antecipei-me a si. Mas não fiz nada que impedisse a morte dessa rapariga. Também não descobri o paradeiro da Erin. Às vezes, as coisas desenrolam-se ao sabor do destino, sem que possamos intervir.

 

- Acredita verdadeiramente nisso? - perguntou-me Landry.

 

- Tenho de acreditar. Se não acreditasse, então, teria de me culpabilizar por tudo o que sucedesse de mau, quando sei, sem margem para dúvida, que só me cabe a culpa por dois terços desses males.

 

Landry olhou-me por um momento que se prolongou, na minha perspectiva, por uma eternidade. Só queria afastar-me ou mexer-me, mas fiquei sem acção.

 

- O Jade apresentou algum álibi para a noite de ontem? - perguntei.

 

- Uma mulher. Uma cliente. Uma tal Susannah Atwood.

 

- E ela corroborou esse álibi? Landry assentiu.

 

- E ela apresentou alguém que pudesse comprovar a sua história?

 

- Claro que sim - respondeu ele revirando os olhos. O Jade. Porquê? Conhece essa mulher?

 

- Já ouvi falar dela. O Sean conhece-a bem. Tem a reputação de ser uma libelinha da sociedade.

 

- Não quer dizer borboleta?

 

- Não.

 

Landry arqueou o sobrolho.

 

- Eu conheço bem o género dela - acrescentei. - É muito possível que a Susannah pense que fornecer um álibi a um assassino é o sexo oral do próximo milénio. Eu não confiaria nela. Mas, por outro lado, não confio em ninguém. - Vi as horas no meu relógio de pulso e afastei-me da bancada. - Vou ter de o pôr na rua, Landry. Tenho um jantar combinado com o diabo.

 

- Com qual? - perguntou ele.

 

- Com o Van Zandt.

 

Enquanto procurava um par de sapatos, pu-lo ao corrente do que soubera através de Sean e através da Interpol, via Armedgian. Eu dissera a Van Zandt que me encontraria com ele no Players às vinte horas. Sensatamente, declinei a oferta que ele fizera de vir buscar-me a casa.

 

Landry ficou a olhar para o roupeiro, colocando as mãos nos quadris.

 

- Você já me disse que pensa que esse sujeito pode ser um predador sexual; no entanto, vai jantar fora com ele. É isso?

 

- Sim - confirmei.

 

- E se foi ele quem assassinou a Jill Morone? E se ele tiver a Erin sequestrada sabe Deus onde?

 

- Com um pouco de sorte, é possível que fique a saber alguma coisa que me ajude a tramá-lo.

 

- Estará você sob o efeito de crackl - perguntou Landry mostrando-se estupefacto. - Você é estúpida ou quê?

 

- O Van Zandt não se atreverá a nenhuma gracinha comigo - repliquei saindo do quarto de vestir com um sapato de salto alto calçado e outro na mão. - Em primeiro lugar, ele sabe que não me mete medo e que não consegue controlar-me. Segundo, acha que para ele eu valho dinheiro como cliente e não como vítima.

 

- E se ele for um cabrão de um pervertido que só quer violá-la e cortar-lhe a garganta?

 

- Nesse caso, ter-me-ei enganado redondamente em relação ao carácter dele... o que não creio ser o caso.

 

- Elena, tanto quanto sabemos, é muito possível que ele tenha assassinado aquela rapariga ontem à noite. Ele mentiu quando afirmou que não a viu. Esteve no restaurante, no Players. Tanto o empregado do bar como a empregada de mesa disseram que o tinham visto, a salivar enquanto falava com a rapariga. A esta hora já teríamos pespegado Com ele na cadeia se soubéssemos por onde é que anda.

 

- A que horas é que ele saiu do bar do restaurante? perguntei.

 

- Ninguém me soube dizer com algum grau de certeza.

 

- Sendo assim, por que razão não aperta com ele, uma vez que nada o impede de o fazer, se é isso que quer acrescentei. Fui à casa de banho para ver se estava bem penteada. O meu cabelo não tinha ponta por onde se lhe pegasse. - Pode acreditar que eu preferia passar o serão dentro de uma banheira a ler um bom livro. Porém, se ele tiver a Erin escondida algures, tenho a certeza absoluta de que, a si, ele não diria nada a esse respeito.

 

- E está convencida de que vai decidir confessar-se a si? - perguntou-me Landry, bloqueando a ombreira da porta. - Como se isso fosse o mote para um engate: queres ir até minha casa para ver a rapariga que eu raptei? Por amor de Deus!

 

- Sendo assim, por que razão não vai atrás de nós? O que é que o leva a estar tão preocupado?

 

Landry abanou a cabeça, descrevendo uma volta completa e retrocedendo até ao quarto.

 

- É por isto que não quero que você se envolva neste assunto - declarou ele apontando para mim quando deixei a casa de banho. - Você corre atrás dos seus próprios objectivos, anda por aí sem saber bem o que fazer...

 

- Se não lhe agrada, olhe para o outro lado - ripostei, afastando o dedo que ele mantinha mesmo diante da minha cara, sentindo a irritação a fervilhar dentro de mim. - Eu sou uma cidadã comum, Landry. Não preciso da sua autorização, tal como não preciso da sua aprovação. Se eu aparecer morta, saberá logo quem deve prender. Serei a prova de que tanto precisa para resolver a merda do seu caso! Passará a ser um herói no Gabinete do Xerife... De uma penada, livrar-se-ão de mim e apanharão o assassino.

 

- Não faz parte das minhas funções permitir que você seja assassinada! - gritou Landry.

 

- Acredite em mim, se eu própria até agora não atingi esse fim, esteja descansado que não vou permitir que um mentecapto como o Van Zandt o faça por mim!

 

O meu nariz estava quase a tocar no dele e o ar nos escassos centímetros entre nós dois encontrava-se carregado de electricidade. Entretanto, Landry continha bem dentro de si o que tinha vontade de me dizer. Talvez estivesse a contar até dez. Talvez isso fosse tudo o que podia fazer para evitar estrangular-me com as suas próprias mãos. Eu não sabia o que lhe ia dentro da cabeça. Quanto a mim, pensava que estava demasiado perto dele.

 

- Eu também era boa, Landry - afirmei eu numa voz serena. - No meu trabalho. Sei bem que não é essa a recordação que todos querem guardar de mim, mas a verdade é que eu era competente. Você seria um idiota chapado se não aproveitasse essa vantagem.

 

Houve outra eternidade que veio e se foi. Ali ficámos nós a olhar fixamente um para o outro, qual casal de porcos-espinhos encolerizados - com todas as defesas em posição. Landry foi o primeiro a pestanejar e a retroceder um passo. Ocorreu-me que devia sentir-me orgulhosa dessa espécie de vitória, mas o que senti assemelhava-se muito mais a uma sensação de desilusão.

 

- O Van Zandt quer impressionar-me - disse eu. Voltei a entrar no quarto de vestir, onde encontrei uma pequena bolsa de mão com espaço suficiente para guardar o gravador de microcassetes. - Ele quer que eu pense que é um homem muito importante, mas a verdade é que a língua dele é maior do que o cérebro. Sou capaz de fazer com que diga coisas que não devia dizer. Tenciono gravar a nossa conversa. Eu depois telefono-lhe.

 

- Depois de quê? - perguntou Landry num tom que exigia que eu fosse mais específica.

 

- Depois de tomarmos o café - respondi. - Recuso-me terminantemente a prostituir-me, o limite pára aí. No entanto, quero agradecer-lhe pela elevada consideração que mostra ter por mim.

 

- Fico satisfeito por saber que tem um limite - resmungou ele, tirando o telemóvel do bolso; ligou um número e ficou a olhar para mim enquanto esperava que alguém atendesse do outro lado da linha. Eu sabia o que ele estava a fazer. Parte de mim queria pedir-lhe que não o fizesse, apesar do que dissera antes. Mas não me permitiria isso. Eu já chegara tão perto de implorar quanto permitia a mim mesma.

 

- Weiss. Fala o Landry. O Van Zandt está no Players. Vai buscá-lo. - Sem nunca despregar os olhos de mim, voltou a guardar o pequeno telefone na algibeira. - Obrigado pela dica.

 

Só me apetecia dizer-lhe que fosse para o inferno, mas não confiei na minha voz. Senti-me como se tivesse uma pedra quente e muito dura entalada na garganta. Preferia de longe não sentir nada, sem me preocupar com o que quer que fosse, além de viver um dia a seguir ao outro... Também não me importava muito com isso. Quando não se possuem expectativas, nem objectivos ou sentido de vida, é impossível sentirmo-nos decepcionados, tal como é impossível ficarmos magoados.

 

Landry deu meia volta, encaminhando-se para a porta, levando consigo a informação que eu lhe dera, levando consigo os planos que eu fizera para aquela noite, levando consigo a esperança que eu acalentara: ter uma nova oportunidade naquele caso. Senti-me uma idiota. Convencera-me de que ele queria a minha cooperação, mas tudo o que ele desejava era absolver a sua própria consciência. O caso era inteiramente dele. Não consentiria a participação de ninguém.

 

”Obrigado pela dica.”

 

Comecei a percorrer a casa de uma ponta à outra, tentando empurrar as emoções que me avassalavam bem para o fundo da mente. Sentia necessidade de fazer qualquer coisa. Precisava de estabelecer um novo plano de acção. Não estava disposta a ficar em casa a contemplar todos esses sentimentos e, além do mais, não tinha um bom livro que pudesse levar para a banheira.

 

Na minha cabeça surgiu uma ideia que começou a tomar forma. Antes que chegasse a ser mais do que um embrião, já eu tinha mudado de roupa, saindo porta fora.

 

A minha vida teria sido mais fácil se tivesse optado por ir ao Barnes & Noble.

 

O endereço de Lorinda Carlton em Wellington correspondia a uma casa geminada em Sag Harbor Court. A menos que Van Zandt fizesse uma revelação aquando do interrogatório a que Landry o submeteria, não existiriam causas prováveis para a emissão de um mandado de busca. Todavia, caso Van Zandt tivesse estado envolvido no rapto de Erin ou no assassínio de Jill Morone, tendo guardado uma recordação de qualquer das duas façanhas, existiam boas hipóteses de ele se ver livre disso logo que voltasse à cidade.

 

Estacionei num lugar reservado a visitas ao fundo do conjunto de edifícios onde a casa de Lorinda Carlton se situava. Metade das casas do complexo tinha as luzes acesas, se bem que não se visse qualquer actividade no exterior. Não existiam vizinhos afáveis sentados no alpendre da frente, observando a passagem da noite de sábado.

 

Dadas as características de uma cidade como Wellington, e as exibições equestres da temporada de Inverno, todos os anos havia uma grande mudança de inquilinos. Embora algumas pessoas do meio equestre fossem proprietárias de casas na cidade, havia muitos que todos os Invernos habitavam numa casa diferente. Sendo a natureza da gente do hipismo aquilo que é, as acomodações para os seus cavalos são a primeira coisa com que se preocupam, enquanto as acomodações para eles próprios, muitas vezes, são arranjadas tarde e a más horas. Por conseguinte, nos complexos de apartamentos, assim como nas vivendas geminadas, não se respira uma atmosfera de grande sentido de comunidade.

 

A vivenda geminada de Lorinda Carlton situava-se ao fundo de um beco sem saída e estava completamente às escuras. Espreitei por um dos painéis de vidro verticais que ladeavam a porta da frente, procurando a placa de um sistema de segurança. Se este existisse, havia sido instalado fora do meu campo de visão. Se cada vivenda estivesse equipada com um alarme, e eu o accionasse involuntariamente, ser-me-ia difícil poder regressar ao meu carro. Teria de descobrir uma maneira de poder escapar através de uma sebe bastante alta que delimitava o extremo do complexo, esperando que ninguém me visse e, passado algum tempo, quando fosse seguro, teria de contornar a sebe para poder voltar ao automóvel.

 

Com este plano em mente, tirei um par de gazuas da algibeira do casaco e comecei a trabalhar na fechadura da porta da frente. Alguém que por ali passasse casualmente sentir-se-ia menos desconfiado se visse alguém que, segundo pareceria, tentava abrir a fechadura da porta da frente de sua casa, ao contrário do que aconteceria se avistasse alguém que, furtivamente, tentasse entrar pelas traseiras. Por outro lado, se eu fosse interpelada, podia dizer que tinha perdido as chaves, inventar uma história qualquer, contando que vinha passar o fim-de-semana de visita ao meu amigo Van Zandt, o qual, de maneira muito pouco cortês, se esquecera da minha vinda.

 

Contive a respiração enquanto continuava a tentar abrir a fechadura com as gazuas. Não se tratava de uma arte que se ensinasse na academia de polícia. Aprendera-a com um tratador de cavalos quando tinha onze anos. Bobby Bennet trabalhara durante muitos anos nas pistas de corridas de cavalos no Sul da Florida, até que um infeliz mal-entendido acerca de um furto o levou à penitenciária para cumprir uma pena de três a cinco anos. Depois de ter sido posto em liberdade, afirmara que se tinha regenerado, mas tal não significou que se tivesse esquecido das suas antigas artes, as quais me transmitiu porque eu era uma peste e ele achava-me muita graça.

 

Dei graças a Deus pela existência de Bobby Bennet quando senti que a tranqueta da fechadura deslizava. O meu coração ainda batia acelerado quando abri a porta e entrei no vestíbulo. Há muitos sistemas de segurança que permitem a entrada com a chave, mas depois é preciso conhecer o código para digitar num pequeno quadro no espaço de um ou dois minutos, caso contrário, o alarme entrará em acção soando quer dentro da casa quer na empresa de segurança ou instalações policiais a que esteja ligado.

 

Descobri o painel do sistema de controlo na parede adjacente à porta. Uma pequena luz verde indicou-me que o sistema estava desactivado.

 

Aliviada, tratei de meter mãos à obra, começando por ligar um candeeiro de mesa na sala de estar. Algum vizinho que por acaso reparasse nas luzes deduziria, muito simplesmente, que a pessoa que estava no interior da vivenda geminada era quem lá residia, porque, ao fim e ao cabo, que gatuno se permitia acender as luzes?

 

O interior da casa encontrava-se em bastante mau estado, além de cheirar a cão sujo. A alcatifa, em tempos, havia sido branca. O mesmo se passava com os sofás em pele, cheios de rasgões, que tinham agora um aspecto bastante coçado. Van Zandt precisava de encontrar um cliente mais abastado para que a sua vida melhorasse. Era provável que o homem estivesse a pensar em Sean com vista a esse objectivo. Até era muito possível que já andasse a arquitectar um esquema que lhe permitisse ocupar a casa das visitas durante a próxima temporada equestre.

 

Passei pela cozinha, ao estilo das dos navio, onde inspeccionei as gavetas e armários muito por alto. Não encontrei nada além dos habituais utensílios desirmanados, caixas de cereais e detergente para a roupa. Gostava de cerveja Heineken e de sumo de laranja concentrado. Não encontrei quaisquer partes amputadas de cadáveres no frigorífico nem no congelador. Na máquina de secar roupa havia uma pequena carga de roupa lavada, seca e toda amarrotada. Calças, meias e roupa interior. Como se ele se tivesse despido e, acto contínuo, atirasse tudo para dentro da máquina de lavar. A única discrepância era não haver nenhuma camisa. Perguntei-me por que motivo.

 

A sala de estar não me proporcionou nada de interesse. Uma colecção de cassetes de vídeo no armário do televisor. Filmes românticos e de ficção científica. Deduzi que seriam de Lorinda Carlton. Não era capaz de imaginar Van Zandt sentado diante do televisor a ver o Titanic, a chorar enquanto o Leonardo DiCaprio submergia pela terceira vez. Não vi quaisquer indícios da câmara de vídeo que ele levava quando fora a casa de Sean.

 

Subi as escadas que conduziam ao primeiro andar onde ficavam os quartos - um pequeno, decorado com cães de brincar, e o principal, cujo mobiliário era de má qualidade, em contraplacado. Neste último senti o cheiro da água-de-colónia que Van Zandt usava. A cama estava feita e a sua roupa encontrava-se cuidadosamente guardada nas gavetas e no roupeiro. Talvez tivesse dado um bom marido para uma mulher qualquer, não fossem as suas tendências de psicopata e misógino.

 

Encontrei a câmara de vídeo dentro do roupeiro, no chão, ao lado de uma fileira de sapatos. Abri o estojo de couro e examinei as cassetes, todas com etiquetas que indicavam os nomes de cavalos que tinha à venda. Van Zandt filmava os animais e depois fazia uma cópia das cassetes (criteriosamente montadas de molde a mostrarem apenas as melhores características do cavalo em questão), para que os compradores em perspectiva pudessem vê-los. Introduzi uma das cassetes na câmara de filmar para a rebobinar e premi o botão de ”PLAY”. No pequeno ecrã, surgiu um cavalo de pelagem cinzenta que executava uma série de saltos. Estava em boa forma. Mais adiante, a imagem começou a ficar desfocada, mas voltou a ajustar-se, fixando um castanheiro. Interrompi a projecção e passei a outra cassete. Mais do mesmo. Van Zandt não só conseguira filmar imagens do cavalo, como também obtivera instantâneos de uma criatura jovem, doce e sorridente, ligada ao cavalo de uma maneira ou de outra. Na qualidade de cavaleira, moça de estrebaria ou proprietária do animal. Causa para um revirar de olhos, mas nada que alarmasse.

 

Na terceira cassete, deparei com Paris Montgomery montada num castrado negro que tinha uma estrela branca na testa: Stellar.

 

Fiquei com o coração despedaçado ao vê-lo a exibir-se. Era um belo animal, com uma centelha maliciosa nos olhos, que tinha o hábito de abanar a cauda para cima sempre que saltava um obstáculo, como se fosse uma bandeira. Dirigia-se para os obstáculos com entusiasmo, mas os seus saltos não tinham a energia suficiente, pelo que nem sempre conseguia elevar os quartos traseiros a tempo, evitando assim roçar no topo da barreira. Mas eu via a grande força de vontade que o inspirava, a coragem de que o Dr. Dean tinha falado. Quando Stellar derrubava uma barreira, espetava as orelhas e sacudia a cabeça ao pousar os cascos no solo, como se estivesse irritado consigo próprio por não ter feito melhor. Como a gente dos cavalos costumava dizer, ele tinha muita ”garra”; no entanto, era necessário mais do que garra para se ganhar ao nível dos animais de elite, ou para se ser vendido ao preço dessa mesma elite.

 

Por detrás da câmara de filmar, Van Zandt mostrava-se claramente desiludido com o cavalo, o que era comprovado pelo número excessivo de grandes planos do sorriso de modelo no rosto de Paris. Gostaria de saber até que ponto é que os dois teriam uma relação íntima, se Paris Montgomery estabelecia o mesmo limite que eu própria quando a questão era conseguir o que desejava de um homem.

 

Em seguida, as imagens demoraram-se numa rapariga que mantinha Stellar preso pelas rédeas, colocando o cavalo sem cavaleiro numa pose para ser visto de lado. Erin Seabright vestia uma T-shirt colada ao corpo e uns calções que deixavam ver um par de pernas esbeltas e bronzeadas. No momento em que colocava o cavalo de modo a ser visto na melhor posição, ele empurrou-a com o focinho, fazendo com que ela cambaleasse para trás, rindo-se. Uma jovem bonita e com um belo sorriso. Agarrou a cabeça do cavalo, pespegando-lhe um beijo no focinho.

 

A menina má e rebelde que utilizava uma linguagem injuriosa. Não naquela cena. Não me era difícil ver o apego que Erin tinha pelo cavalo. O que era evidente pela maneira como falava com ele, como lhe tocava, a forma como a mão se detinha no pescoço do animal enquanto ela o posicionava. Conhecendo a sua situação familiar, não era difícil deduzir que Erin se sentia mais chegada aos cavalos que se encontravam aos seus cuidados do que à maior parte dos membros da família Seabright. Os cavalos não a julgavam, não a criticavam, nem a decepcionavam. Os cavalos não se interessavam, nem sabiam, se ela quebrava regras ou não.

 

Apercebiam-se apenas do facto de ela ser generosa e paciente ou não, se lhes proporcionava mimos ou não, e se sabia onde é que eles gostavam que os coçassem.

 

Sabia todas estas coisas a respeito de Erin Seabright porque eu própria, há uma vida atrás, fora uma réplica de Erin Seabright. A rapariga que não se enquadrava nos moldes da família, que se recusava a ir ao encontro das expectativas da família; a rapariga que escolhia as suas amizades com base em qualidades pouco recomendáveis. Os seus verdadeiros amigos viviam nos estábulos.

 

Aquela cassete revelava-me mais sobre Erin do que a respeito de Van Zandt. Rebobinei a fita, visionando a parte de Erin uma vez mais, na esperança de vir a ter a oportunidade de a ver a sorrir daquela maneira, mas em pessoa, apesar de saber que, se fosse capaz de a tirar daquela situação de perigo, haveria de passar muito tempo até que ela voltasse a ter vontade de sorrir.

 

Troquei a cassete por outra, acelerando a projecção dos filmes de mais três cavalos, os quais deram lugar a Sean e a Tino; deixei que o filme continuasse à velocidade normal. Homem e cavalo formavam uma imagem encantadora, deslocando-se graciosamente pela pista. Sean era um cavaleiro excelente, forte, elegante, sereno e com um bom domínio corporal. O cavalo de pelagem castanha era esguio e tinha as pernas altas, movimentando-se de uma forma cheia de estilo. A câmara seguia-os enquanto se deslocavam lateralmente através do picadeiro em direcção ao belveder, pares diagonais de pernas que se cruzavam com a graciosidade de uma bailarina de dança clássica, o corpo do cavalo arqueado como a corda de um arco acompanhando as linhas da perna de Sean. Pouco depois, a imagem dos dois desapareceu.

 

A câmara de filmar focou-se no belveder, dando um grande plano de Irina. Ela como que olhava para fora do filme com uma expressão fria cheia de ódio, levando um cigarro aos lábios e expelindo o fumo directamente para a frente. O facto de Van Zandt a observar não parecia enervá-la. Mas fez com que eu sentisse a pele arrepiada. Apeteceu-me ir ao apartamento de Irina para a aconselhar veementemente a fechar a porta à chave durante a noite.

 

Elena Estes, a mãe-galinha.

 

Guardei a câmara no sítio donde a tinha retirado e voltei ao quarto principal, dirigindo-me para o móvel onde se encontrava outro televisor e um aparelho de vídeo. E uma colecção de filmes pornográficos. Várias raparigas com um único fulano. Vários homens com uma única mulher. Sexo entre lésbicas. Maricas. Alguns dos filmes davam a impressão de que talvez fossem violentos, embora não fosse esse o caso com a maior parte.

 

O nosso senhor Van Zandt era um pervertido que acreditava em oportunidades iguais para os dois sexos.

 

Inspeccionei as gavetas das mesas-de-cabeceira e da cómoda. Também olhei para debaixo da cama, encontrando rolos de cotão, assim como alguns cagalhotos de cão já petrificados. A protectora de Van Zandt estava a precisar de outra mulher-a-dias.

 

Não encontrei quaisquer videocassetes relacionadas com o rapto de Erin. Sabia de certeza absoluta que estas estariam em poder do sequestrador. A que fora enviada para casa dos Seabright era uma cassete normalizada. A maior parte das câmaras de vídeo portáteis modernas eram digitais ou gravavam em oito milímetros, ou ainda em pequenas cassetes VHSC como as que estavam no roupeiro. Depois da filmagem, a cassete teria sido copiada através de um aparelho de vídeo para uma fita mais larga. O raptor também precisara de ter acesso a um equipamento de áudio mais sofisticado do que os que eu ali encontrara. A voz na cassete havia sido electronicamente distorcida. Se Van Zandt estivesse envolvido no rapto, teria as cassetes e o equipamento de filmagem ocultos num outro lugar qualquer.

 

Sentindo-me decepcionada, desliguei as luzes e desci as escadas até ao piso térreo. O meu relógio interno dizia-me que chegara a hora de me ir embora. Demorara-me demasiado tempo a ver os filmes dos cavalos. Eu sabia que Landry tentaria manter Van Zandt na sala de interrogatório durante tanto tempo quanto lhe fosse possível, mas era preciso contar com a possibilidade de ele se levantar e sair. O homem não estava sob prisão - pelo menos, que eu soubesse. Van Zandt nem sequer pensava que as leis em vigor nos Estados Unidos fossem aplicáveis à sua pessoa.

 

Olhei para a porta da frente, mas não foi para lá que me encaminhei. À hipótese de acertar em cheio era coisa que nunca me havia atraído. Eu queria encontrar qualquer coisa mais incriminadora do que o gosto pela pornografia, algo - fosse o que fosse - que, mesmo que não o ligasse directamente ao assassínio ou ao sequestro, pelo menos, nos pudesse dar vantagem em relação a ele aquando de um interrogatório posterior.

 

Atravessei a cozinha, transpondo a porta que a ligava à garagem que só tinha espaço para um automóvel e alguns armários ao longo de uma parede. As portas destes estavam fechadas a cadeado. Não tinha tempo para os abrir com as gazuas. Em cima dos armários, num equilíbrio bastante periclitante, havia pilhas de toda a espécie de tralha: uma geleira em styrofoam, artigos de piscina, caixas de refrigerante Diet Rite, uma embalagem com doze rolos de papel higiénico do mais barato. Por outras palavras: nada de especial.

 

Os caixotes do lixo em plástico e os contentores para os recicláveis estavam encostados à parede ao fundo da garagem. Torci o nariz quando me aproximei deles.

 

O lixo de um criminoso pode revelar todo o género de provas que são preciosas. Em grande parte, trata-se de provas sujas de comida, com um cheiro nauseabundo, mas, não obstante, são provas importantes.

 

Afastei a tampa do primeiro caixote do lixo, espreitando para o interior. A única lâmpada que dava luz à garagem encontrava-se na parede junto à ombreira da porta de acesso à cozinha. A potência não era suficiente para eu poder ver bem. Desejei ter trazido a lanterna que tinha no carro, mas agora não havia tempo para ir buscá-la.

 

Comecei a vasculhar o lixo, sendo obrigada a aproximar-me de mais para o meu gosto para ver aquilo para que estava a olhar. Correspondência com publicidade, caixas e embalagens que haviam contido comida congelada de aquecer no microondas, caixas de cartão para ovos, cascas de ovos e os próprios ovos, caixas de pronto-a-comer chinês e de piza. O tipo de lixo que qualquer pessoa teria em sua casa. Não vi nenhuma cópia de recibos de cartões de crédito, nem listas de coisas a fazer que incluíssem um assassínio e um rapto.

 

No entanto, descobri uma lista com nomes de cavalos uma data, a hora de um voo com partida de Palm Beach e à hora de chegada a Nova Iorque, assim como um número de voo e as horas de um outro com destino a Bruxelas. Van Zandt tencionava embarcar os cavalos para Bruxelas. Guardei estas notas no bolso das calças de ganga. Se Van Zandt tinha a intenção de enviar os cavalos para fora do país, poderia aproveitar para se despachar a si próprio juntamente com eles. Poderia seguir no mesmo voo dos cavalos, saindo da jurisdição de Landry como um ladrão que fugisse a coberto da noite.

 

Em seguida, comecei a examinar o lixo do segundo caixote, sentindo que a adrenalina fluía pelo meu sistema como uma droga.

 

A única coisa dentro desse caixote era uma camisa. A camisa que não fora atirada para dentro da máquina de lavar juntamente com as calças, as meias e a roupa interior - roupas que haviam sido despidas apressadamente e logo atiradas para dentro da máquina.

 

Tive de me inclinar mais para dentro do contentor para poder apanhar a camisa que se encontrava no fundo. O cheiro nauseabundo avassalou-me, fazendo com que as lágrimas me assomassem aos olhos e dando-me voltas ao estômago. Mas, apesar deste desconforto, consegui apanhar a camisa, pegando-lhe com a ponta dos dedos e levando-a para junto da luz, a fim de poder inspeccioná-la minuciosamente.

 

Era de algodão egípcio, do mais fino, de um azul quente. Ergui-a até à lâmpada, procurando um monograma, tentando descobrir qualquer coisa que a identificasse como pertencendo a Van Zandt. Não encontrei nada, mas havia qualquer coisa no lado esquerdo do colarinho que talvez identificasse positivamente a pessoa a quem pertencia: nódoas escuras que se pareciam com sangue. A frente da camisa tinha um rasgão enorme que se estendia por quase metade da altura, também manchado de sangue.

 

O meu coração começou a bater mais acelerado.

 

Porém, era muito possível que Van Zandt se tivesse cortado quando se barbeava, alegaria qualquer advogado que o defendesse em tribunal. Mas ter-se-ia ele apunhalado a si próprio enquanto se barbeava?, haveria a acusação de contrapor. Aquela prova podia sugerir que ele talvez tivesse ficado ferido aquando de um confronto físico, adiantaria a acusação.

 

Não me era difícil imaginar Jill Morone a debater-se nas mãos do seu agressor, a esbracejar com os dedos enclavinhados numa tentativa para o arranhar. Era possível que ela lhe tivesse atingido o pescoço, fazendo com que ele sangrasse para a camisa. Se a autópsia revelasse que ela tinha pele junto ao sabugo das unhas... Se Van Zandt tivesse ferimentos no pescoço que correspondessem a isso... Não que eu tivesse reparado em algum; todavia, ele poderia ter ocultado esses ferimentos com o lenço de pescoço que usava sempre. Pensei na cocheira nos estábulos de Jade, naquilo que presumi ser sangue na cama de caruma de pinheiro. Talvez devido ao segundo ferimento. Ela podia tê-lo atingido com qualquer coisa, golpeando-o com um objecto cortante. Ao fim e ao cabo, o excesso de álcool talvez não tivesse sido responsável pela palidez que eu lhe vira na manhã seguinte.

 

O meu coração batia com tal violência que as mãos me tremiam. Tinha-me saído a sorte grande. Em tempos idos, eu teria pago uma rodada a todos os meus colegas que estivessem no bar se tivesse feito um achado destes. Mas, agora, nem sequer poderia reclamar a vitória, para não mencionar que não seria muito bem-vinda num bar frequentado por polícias, ainda que me assistisse esse direito. Deixei-me ficar à luz fraca da garagem, tentando moderar o meu entusiasmo, obrigando-me a reflectir nas próximas medidas, cruciais, que teria de tomar.

 

Era necessário que Landry encontrasse aquela camisa. Por muito que eu tivesse gostado de lha atirar à cara, sabia que, se lha levasse, jamais seria apresentada como prova em tribunal por ser inadmissível face à lei. Na qualidade de cidadão comum, eu não precisava de um mandado para fazer uma busca em casa de alguém. O Artigo Quarto da Constituição protege os cidadãos dos agentes governamentais, mas não uns dos outros. Contudo, eu também não podia estar ilegalmente naquela casa. Se o Van Zandt me tivesse convidado, e se durante a minha visita eu houvesse encontrado a camisa, isso já seria uma história completamente diferente Porém, mesmo assim, era possível que surgissem algumas complicações. Porque em tempos eu trabalhara para as forças da lei, e porque tivera contactos com o Gabinete do Xerife com referência àquele caso, qualquer bom advogado de defesa argumentaria que eu devia ser considerada como uma agente policial, de facto, do Gabinete do Xerife, o que automaticamente me privaria do estatuto de cidadã inocente, impossibilitando-me de apresentar em tribunal a prova que encontrara.

 

Não. Tudo teria de ser feito de acordo com os regulamentos. Havia que estabelecer uma sequência de acontecimentos desde o início do achado desta prova. Era imprescindível que a Polícia fosse à garagem munida de um mandado de busca. Uma informação anónima, juntamente com a história de Van Zandt, e o que o relacionava com Jill Morone, talvez fossem o suficiente para que um juiz tivesse fundamentos para emitir o mandado.

 

Apesar de todo este raciocínio, nem por isso eu queria voltar a pôr a camisa no caixote do lixo. Não podia arriscar qualquer coisa que corresse mal, que Van Zandt não tivesse ficado assustado depois da conversa com Landry, regressando ali para se ver livre daquela prova. Eu precisava de a ocultar num sítio qualquer onde ele não a encontrasse.

 

Assim que esse pensamento me ocorreu, ouvi o barulho do motor de um automóvel que acabara de entrar no caminho de acesso à casa, ao que se seguiu o ruído do portão eléctrico a abrir-se.

 

O portão já subira um terço da sua altura quando dei meia volta e corri para a porta da cozinha, com os faróis que já se assemelhavam a holofotes assestados num prisioneiro em fuga.

 

Ouvi o troar da buzina do carro.

 

Entrei de rompante na cozinha, bati com a porta e tranquei-a por dentro, ganhando alguns segundos preciosos. Freneticamente, olhei em redor à procura de um sítio onde pudesse esconder a camisa.

 

Mas não tinha tempo. Era tarde de mais. Só me restava largá-la e pôr-me em fuga.

 

Enfiei a camisa por detrás de um dos armários inferiores da cozinha, fechei a porta e saí para a rua quando ouvi a chave na fechadura da porta da cozinha.

 

Meu Deus! Se Van Zandt me reconhece...

 

A correr, atravessei a área reservada às refeições, e, batendo com a anca numa cadeira, tropecei, cambaleei e fiz um grande esforço para não perder o equilíbrio, com os olhos sempre fixos nas portas de correr que davam para o alpendre fechado com rede.

 

Atrás de mim, ouvi um cão que ladrava.

 

Cheguei à porta que dava para o alpendre e, cheia de frenesim, agarrei o fecho. Não estava aberta.

 

Ouvi uma voz... Seria de uma mulher?

 

- Cricket, apanha-o!

 

O cão começou a rosnar. Pelo canto do olho, dei conta de que ele se aproximava: um pequeno míssil de pêlo escuro e com dentes ferozes.

 

Com o polegar apalpei o fecho, conseguindo abri-lo. Com brusquidão, empurrei a porta, fazendo-a correr toda para trás sobre a calha e saindo pela abertura quando o cão ferrou os dentes na barriga da minha perna.

 

Sacudi a perna para a frente e o cão começou a ganir quando tentei bater-lhe com a porta no focinho.

 

Lancei-me pelo alpendre em direcção à porta de rede, embati nela, saindo quando se abriu toda para trás com a força do impacto. Encontrava-me no jardim das traseiras.

 

A casa de Lorinda Carlton era a última de uma correnteza. A urbanização era cercada por uma sebe bastante alta. Eu precisava de passar para o outro lado dessa sebe. No outro lado, havia um terreno descampado, que ainda não fora urbanizado, que era propriedade do município de Wellington, e no extremo mais afastado deste terreno situava-se o centro comercial da área.

 

Corri para a sebe. O cão continuava a vir em minha perseguição, sem parar de ladrar e de rosnar. Virei bruscamente a direita, continuando a correr ao longo da sebe, à procura de uma abertura que me permitisse passar para o outro lado. O cão quase me mordia os calcanhares. Enquanto corria, despi o blusão, enrolando uma manga, bastante apertada, à volta do pulso direito, deixando que o resto arrastasse pelo chão.

 

O cão atirou-se ao blusão, abocanhando-o entre as queixadas. Peguei na manga solta com as duas mãos, firmei um pé e girei sobre mim mesma, obrigando o cão a rodopiar preso à extremidade do blusão.

 

Obriguei-o a girar uma vez, duas vezes, como se eu estivesse a lançar o martelo nos Jogos Olímpicos. Soltei a manga.

 

Não sabia a que distância é que o cão seria arremessado, tendo em conta o seu peso e a velocidade, mas foi lançado a uma distância suficiente para eu ganhar alguns segundos. Ouvi um estrondo acompanhado de um ganido precisamente quando deparei com uma maneira de poder saltar para o outro lado da sebe.

 

Avistei uma pequena camioneta de caixa aberta estacionada ao lado de outra casa que também se situava no extremo do complexo. Atabalhoadamente, consegui subir para a capota e daí para o tejadilho, passando para o outro lado da sebe.

 

Aterrei como se tivesse caído em queda livre - joelhos dobrados, queda e rebolar. As dores que percorreram o meu corpo eram agudas e muito dolorosas, começando na planta dos pés e fazendo estremecer todo o meu corpo até ao cimo da cabeça. Por um momento, não me atrevi a mexer-me, deixando-me ficar como que amarfanhada no chão de terra. Mas eu não sabia se fora vista por alguém quando saltara por cima da sebe. Também não sabia se aquele pequeno e maldito cão não tardaria a surgir, penetrando através da folhagem, para me dilacerar com os seus dentes arreganhados e aguçados.

 

Retraí-me toda, e a muito custo, lá consegui pôr-me de pé, começando a andar, mas tendo o cuidado de me manter tão junto da sebe quanto me era possível. Senti duas guinadas fortíssimas em simultâneo, que irradiavam da região lombar, descendo até aos nervos ciáticos e parte posterior dos joelhos, cortando-me a respiração. As costelas magoadas aferroavam-me de cada vez que respirava entrecortada mente. Teria começado aos gritos, não fora o facto de isso também me causar muitas dores.

 

Percorridos aproximadamente cinquenta metros, chegaria ao centro comercial.

 

Encetei uma corrida moderada que deu lugar a um caminhar enérgico, reunindo todas as minhas forças para poder continuar. Suava que nem um cavalo, tendo a impressão de que cheirava a lixo. Ouvi uma sirene, atrás de mim. Quando os agentes de polícia chegassem a casa de Lorinda Carlton/Van Zandt e se inteirassem da entrada forçada, já eu estaria a salvo. Pelo menos, de momento.

 

A sorte não estivera do meu lado. Se eu tivesse saído dois minutos mais cedo... Se não tivesse perdido tanto tempo a ver as cassetes dos cavalos, ou a maravilhar-me perante a colecção de filmes pornográficos de Van Zandt... Se não me tivesse demorado durante aqueles minutos suplementares para ir à garagem remexer no lixo de Van Zandt... Nunca teria chegado a encontrar a camisa.

 

Tinha de telefonar a Landry.

 

Comecei a caminhar em direcção às luzes do largo principal. Era noite de sábado. As pessoas faziam fila no passeio defronte do restaurante italiano, à espera de mesa. Passei pelo estabelecimento, mantendo-me de cabeça baixa, tentando apresentar um aspecto casual ao mesmo tempo que me esforçava por recuperar uma respiração normal. A música filtrava-se pelas portas do Cobblestones, o restaurante a seguir na mesma correnteza de estabelecimentos. Também passei pelo China-Tóquio, altura em que o cheiro a alimentos fritos me chegou às narinas, recordando-me de que ainda não tinha comido.

 

Os seres humanos normais deliciavam-se com um belo jantar de galinha kung pão e sushi. O mais certo era não haver uma única mulher nas proximidades que houvesse forçado a entrada numa casa, com o objectivo de procurar proVas de um assassínio.

 

Mas eu sempre fui diferente.

 

Ao pensar nisto, só me apeteceu chorar e rir ao mesmo tempo.

 

Chegada ao Eckerd’s, uma loja que vendia todo o tipo de artigos, comprei uma garrafa de água, um chocolate Poer Bar, uma camisa barata de ganga e um boné de base-ball além de ter pedido que me trocassem dinheiro para o telefone. Já na rua, tirei as etiquetas da camisa e vesti-a por cima da T-shirt de algodão preto encharcada em suor, arranquei o fio que unia a pala ao resto do boné e pu-lo na cabeça.

 

De uma das algibeiras das calças de ganga tirei dois pedaços de papel: um deles era a lista que tinha encontrado no caixote do lixo de Van Zandt; e o outro, os números de telefone de Landry. Liguei para o do pager, deixando uma mensagem com o número da cabina pública, após o que desliguei. Enquanto esperava, comecei a atormentar-me perguntando-me com que nitidez a mulher que entrara na casa onde Van Zandt residia temporariamente me teria visto, interrogando-me sobre quem seria ela e se Z. também estaria presente.

 

Apesar dos meus receios, não me pareceu que ela tivesse tido oportunidade de me ver bem. Ordenara ao cão que ”o apanhasse”. Decerto que viu o cabelo curto, tendo partido do princípio, a exemplo do que teria acontecido com a maior parte das pessoas, de que os gatunos eram todos do sexo masculino. Os polícias procurariam um homem, caso se dessem ao trabalho de procurar. Uma simples entrada forçada numa casa de onde nada havia sido roubado, nem ninguém ficara magoado. Não me parecia que os agentes policiais envidassem todos os seus esforços para deslindar o assunto. Pelo menos, esperava que não.

 

Ainda que eles se dessem ao incómodo de recolher impressões digitais no local, as minhas não constavam de nenhuma base de dados de criminosos, além de que, numa investigação de rotina, nenhuma outra base de dados era consultada. Porque eu já fizera parte das forças policiais, as minhas impressões digitais constavam dos arquivos de Palm Beach Country, mas não dos mesmos ficheiros das impressões digitais do cidadão comum que infringisse a lei.

 

Mesmo assim, eu devia ter tomado a precaução de usar luvas. Quanto mais não fosse, porque teria sido aconselhável tê-las calçadas quando andei a remexer no lixo.

 

Mantive o papel do invólucro à volta do chocolate enquanto o comia.

 

Eles iriam encontrar o meu blusão - ou o que restava dele quando o cão se decidisse a largá-lo -, mas não havia nada nele que indicasse pertencer-me. Era um agasalho preto sem nada de especial..

 

Tentei lembrar-me se teria deixado alguma coisa nas algibeiras. Um batom Tropicana para o cieiro, o que resta de um rolo de pastilhas de mentol Breathsavers e o recibo de um pagamento a dinheiro numa bomba de combustíveis da Shell. Graças a Deus que não tinha pago com o cartão de crédito. E que mais? Qual fora a última vez em que usara aquele blusão? Na manhã em que fora aos serviços de urgência do hospital.

 

Senti que o coração me caía aos pés.

 

A receita. A receita para os analgésicos que nunca tivera intenção de aviar. Enfiara-a dentro de um dos bolsos.

 

Oh, que grande merda!

 

Mas tê-la-ia eu deixado na algibeira? Não a teria deitado fora, esquecendo-me completamente de que o fizera? No entanto, sabia que a tinha guardado.

 

Senti-me agoniada só de pensar naquilo.

 

Encostei-me à parede, tentando não me esquecer de respirar, recordando a mim mesma que tinha de pensar. O meu nome estava na receita - Elena Estes e não ele Stevens. Este nome não teria o mínimo significado para Van Zandt. A menos que tivesse visto a minha fotografia publicada na Sidelines. À fotografia com a legenda que me identificava a montar na quinta de Sean. E caso isso acontecesse, dentro de quanto tempo é que as peças do quebra-cabeças se ajustariam no seu devido lugar?

 

Um erro estúpido que era fruto do descuido.

 

Se os polícias viessem bater à minha porta, eu tencionava negar que estivera em Sag Harbor Court. Diria que perdera o blusão no centro equestre. Não haveria nenhuma testemunha que corroborasse a mentira que me serviria de álibi. Mas, por amor de Deus?, por que motivo haveria de precisar de um álibi?, diria eu cheia de indignação. Ao fim e ao cabo, não era nenhuma criminosa. Era uma cidadã bem educada que vinha de boas famílias e com muito dinheiro. Não era nenhuma viciada em crack obrigada a roubar para arranjar dinheiro com que comprar a dose seguinte.

 

No entanto, eles mostrariam a minha fotografia a Van Zandt, perguntando-lhe se me reconhecia, e era aí que eu estaria tramada.

 

Raios partissem aquilo, por que razão Landry não me telefonava? Voltei a ligar para o seu pager, deixei o número da cabine com o logo a seguir, desliguei e comecei a andar de um lado para o outro.

 

O mais grave em toda aquela trapalhada não era eu conseguir explicar a situação de molde a não ser implicada. O pior seria se Van Zandt viesse a descobrir a camisa antes de Landry poder ir a casa dele munido de um mandado de busca.

 

Maldição, maldição, maldição! Só me apetecia bater com a cabeça contra a parede de cimento.

 

Não me atrevi a ir ter com Van Zandt. Ainda que tivesse podido arranjar-me e mudado de roupa, aparecendo no restaurante onde o homem esperara por mim para jantar, na esperança de ainda o encontrar, não poderia arriscar-me a ser reconhecida pela mulher - ou mesmo a que o próprio Van Zandt me identificasse como sendo a pessoa que estivera na sua garagem, isto é, se ele também tivesse estado dentro do automóvel. Neste ponto da situação, nem sequer me atrevia a regressar à urbanização para ir buscar o meu carro.

 

Mas que situação tão fodida! Eu havia sido motivada pela melhor das intenções, todavia, existiam boas hipóteses de as minhas acções virem a ter como consequência a perda de uma prova que poderia ter sido crucial, para não mencionar que teria arruinado a possibilidade de continuar a fazer-me passar pelo que não era junto de Van Zandt... o que, consequentemente, se estenderia a todos os que gravitavam em redor de Jade.

 

Esta era a razão por que, em primeiro lugar, eu nunca devia ter-me envolvido, segredava uma vozinha irritante dentro de mim. Caso um assassino conseguisse escapar por causa das minhas acções, isso ficaria a pesar-me na consciência para sempre. Outro fardo que eu seria obrigada a carregar. E se Erin Seabright acabasse por morrer como resultado de...?

 

Por que razão o cabrão do Landry não me telefona. - Ele que se lixe! - resmunguei. Peguei no telefone liguei o 112.

 

O telefone no outro lado da linha tocava sem que ninguém o atendesse. Landry praguejou e desligou. Não reconhecia o número. O 112 no final levava-o a pensar que teria sido Elena Estes quem ligara. Enfiada até ao bonito traseiro só Deus sabia em quê. Poderia apostar com toda a segurança que ela não ficara em casa, metendo-se na banheira acompanhada de um bom livro.

 

Aquela mulher não era deste mundo. Sem o mínimo receio de ir jantar com um provável assassino, impelido pelas suas aberrações sexuais, como se isso não fosse nada de especial. Landry supunha que teria reagido exageradamente face a esse plano. Ao fim e ao cabo, ela era da Polícia isto é, fora. Mais a mais, era a última mulher que faria com que qualquer homem se sentisse compelido a protegê-la, mas, apesar disso, era o que ele tentava fazer. Havia qualquer coisa na falta de sentido dela em preservar o seu próprio bem-estar que bulia com ele, que fazia com que Elena Estes lhe parecesse ser, para cúmulo, bastante vulnerável. Não era capaz de afastar do pensamento a imagem dela a saltar para o estribo do todo-o-terreno de Billy Golam, tentando arrancar-lhe o volante das mãos... para depois ficar Abaixo das rodas... sendo arrastada pelo asfalto como se fosse uma boneca de trapos.

 

Ela não possuía o discernimento suficiente - ou não se interessava o suficiente - para cuidar de si própria. E ele podia apostar, com a certeza quase absoluta de ganhar, que aquela mulher não apreciava nada que ele fizesse isso por ela.

Tinha a impressão de que continuava a ver a expressão nos olhos dela quando ele telefonara a Weiss, dando-lhe instruções para que fosse buscar Van Zandt ao restaurante. A cólera, a dor, a decepção - todas essas emoções veladas por uma indiferença feita de dureza.

 

Landry deteve-se no corredor do lado de fora das salas de autópsia, no Instituto de Medicina Legal. Depois de ter interrogado Van Zandt, apressara-se para conseguir apanhar o médico legista quando este acabasse a autópsia ao cadáver de Jill Morone.

 

O resultado da conversa com Van Zandt redundara numa tremenda frustração, em que ele não se coibira de falar durante uns quinze minutos sobre a inferioridade do sistema judicial dos Estados Unidos, após o que exerceu o direito que lhe assistia de ter um advogado presente durante o interrogatório. Fim de conversa. As autoridades policiais não possuíam nada de sólido para emitir um mandado de prisão. Tal como alguém lhe salientara recentemente, ser um filho-da-mãe não era contra a lei.

 

A verdade é que ele já o tinha enxotado com essa atitude. Se tivesse tido a paciência de esperar até depois da autópsia para deter Van Zandt, teria ficado de posse de alguns factos que poderia atirar para a mesa e que lhe permitiriam dar a volta à situação, utilizando-os contra o homem, de maneira a incutir-lhe receio, fazendo com que ele se descaísse dizendo algo que naquele momento nunca diria.

 

Uma vez mais, Landry repetiu a si mesmo que deveria ter mantido o controlo da situação, sem nunca ter disparado um tiro no escuro - Elena - que só havia aumentado a confusão.

 

Muito gostaria de saber em que se teria ela metido naquele momento. Tinha a certeza de que não seria nada de bom.

 

Elena Estes iria querer inteirar-se de tudo o que dissesse respeito à autópsia. Quereria saber se Jill Morone fora empurrada com a cara contra o chão da cocheira. Tinham-se encontrado aparas de madeira e excrementos de cavalo alojados na sua garganta, assim como dentro da boca e das narinas. Acabara por morrer sufocada. Fora agarrada pela nuca por uma mão forte, a qual exercera pressão suficiente para deixar marcas de dedos na pele. A dada altura, tinha-se debatido, tentando libertar-se do seu agressor, momento durante o qual partira várias unhas. No entanto, e apesar disto, não se haviam encontrado quaisquer fragmentos de pele ou sangue debaixo das unhas que lhe tinham restado.

 

O que, na óptica de Landry, não fazia o mínimo sentido. Ela resistira com tanta violência que quebrara as unhas, pelo que junto ao sabugo deveria ter ficado qualquer coisa que lhes desse uma pista. Fora imobilizada no chão com a cara enterrada na porcaria. Pelo menos, deviam ter encontrado vestígios da camada que cobria o chão da cocheira, assim como de excrementos, debaixo das unhas intactas, que se teriam alojado junto do sabugo quando ela se debatera para tentar pôr-se de pé. No entanto, nada disso fora encontrado.

 

E apesar de a roupa que ela vestia ter ficado rasgada, de uma maneira que sugeria que tinha sido vítima de um crime de estupro, não se haviam encontrado quaisquer vestígios de sémen no corpo. Na realidade, o que pudesse comprovar um acto de violação era mínimo. Alguns arranhões nas coxas, sem que se tivesse detectado qualquer ferida ou hematoma vaginal. Seria possível que o homem que atacara Jill tivesse tomado a precaução de usar um preservativo, ou teria ele perdido a erecção, o que o impossibilitara de levar o seu intento a bom termo? Ou a tentativa de estupro teria sido algo que lhe ocorrera posteriormente, tendo procedido a uma encenação com o fim de ocultar um assassínio inequívoco, uma tentativa para o fazer passar por outra coisa qualquer?

 

Landry podia ter usado todas estas informações contra Van Zandt antes de este ter exigido a presença de um advogado, muito em particular a tentativa, aparentemente falhada, de sequestro. Munido destes conhecimentos, ter-lhe-ia sido possível acertar em cheio no ego de Van Zandt, podia tê-lo atormentado, troçado dele. O homem mostrar-se-ia furioso. Era demasiado arrogante para conseguir dominar o Seu temperamento. No entanto, tivera a esperteza suficiente Para querer um advogado, pelo que agora não haveria lugar a nenhum interrogatório, ninguém para atormentar outro ar sem que esse advogado estivesse presente., Mas quem é que era demasiado arrogante?

 

Landry amaldiçoava-se a si mesmo quando Weiss saiu da sala das autópsias. Weiss, oriundo de Nova Iorque, era um homem baixo que passava um número excessivo de horas no ginásio e, consequentemente, possuía um tronco que dava a impressão de ter sido insuflado. A síndrome dos homens pequenos. Era impossível que os braços conseguissem encostar-se completamente contra os lados.

 

- O que é que achas?

 

- Acho que isto é uma porra, que é muito estranho que as unhas dela estejam limpas - respondeu Landry. - Que tipo de assassino é que mata uma rapariga no que, essencialmente, é um lugar público, e depois perde tempo a limpar-lhe as unhas?

 

- Um que seja esperto - adiantou Weiss.

 

- Ou que tenha sido apanhado com a boca na botija... ou que aprendeu com a experiência - aventou Landry, mostrando-se pensativo.

 

- Alguém que costume ver o Canal Discovery.

 

- Ou que sabe que se não procedesse dessa maneira deixaria provas contra si - retorquiu Landry.

 

- O que significa que ela o arranhou - concluiu Weiss. - O Van Zandt tinha alguma marca de arranhões?

 

- Não, pelo menos que eu tenha visto. Usava uma camisola de gola alta. Também não vi nada que indicasse isso no Jade. Mas a verdade é que não podemos confirmar as nossas desconfianças, a menos que tenhamos provas bastante sólidas que nos permitam detê-los. O laboratório já disse se o que encontrámos na cocheira era sangue?

 

- Não te esqueças de que hoje é noite de sábado lembrou Weiss com um abanar de cabeça e um revirar de olhos. - Se os sogros do doutor Felnick não estivessem a passar o fím-de-semana em sua casa, não teria sido possível fazer a autópsia esta noite.

 

- Não estou de acordo, acho que teria sido feita na mesma - contrapôs Landry. - Os membros da direcção do centro equestre têm amigos muito influentes. Eles querem ver esta coisa resolvida o mais depressa possível. Um assassínio é má publicidade quando se tenta arranjar patrocinadores.

 

- Não é costume as pessoas serem assassinadas em Wellington.

 

Não. Para isso é preciso ir a West Palm.

 

- E quanto ao incidente que ocorreu na outra noite? perguntou Weiss. - Quando alguém soltou os cavalos. Pensas que há alguma relação entre as duas coisas?

 

Landry franziu a testa. Recordou-se dos hematomas que vira nas costas de Elena Estes nessa noite, apesar de, na altura, essas nódoas negras mal se terem registado na sua mente. Ficara demasiado atordoado ao ver as cicatrizes antigas e as marcas que indicavam os pontos onde ela recebera enxertos de pele.

 

Na noite de quinta-feira, Elena Estes fora violentamente agredida, contudo, não dissera nada a respeito de qualquer conotação de natureza sexual. Tinha apanhado de surpresa alguém que na altura soltava os cavalos. O sentido de oportunidade dela não poderia ter sido pior. Mas, naquele momento, Landry perguntava a si próprio se ela teria sido bafejada pela sorte. Jill Morone também estivera no lugar errado à hora mais inconveniente. Apenas a duas tendas de distância.

 

- Não sei - respondeu ele por fim. - O que é que a gente dos serviços de segurança adiantou?

 

- Nada de mais. De acordo com o que eles dizem, praticamente não existe criminalidade no hipódromo. Apenas um roubo esporádico aqui e ali. Nada de muito grave.

 

- Nada de muito grave. Pois bem, agora passou a ser muitíssimo grave. Miss Estes disse-me que o guarda que encontrou nessa noite não lhe agradou nada. Falei com ele no dia seguinte e sou obrigado a confessar que também não gostei dele. Tenciono investigar os seus antecedentes, e depois...

 

- Estes?! - Weiss fitou-o como se tivesse a certeza de que ouvira mal.

 

- A detective - explicou Landry.

 

-- Qual é o primeiro nome dela?

 

-- O que é que isso interessa? - perguntou Landry na defensiva.

 

--Não me digas que ela se chama Elena Estes?

 

--E se for esse o nome dela?

 

Weiss virou a cabeça e o pescoço grosso, muito musculado, fez um som como o de botas pesadas que pisassem conchas fragmentadas.

 

- Ela só arranja problemas, mais nada. Há muita gente que ficaria bastante satisfeita se fosse ela que estivesse deitada naquela mesa de autópsia - replicou Weiss olhando para a porta da sala da morgue.

 

- E tu és um deles? - perguntou Landry.

 

- O Hector Ramirez era um fulano do melhor que podia existir. A cabra fez com que ele ficasse com a cabeça desfeita. Sim, de facto tenho um problema com isso - respondeu Weiss bufando, o que fez com que os braços se afastassem mais uns dois centímetros dos flancos. - O que é que ela tem a ver com este assunto? Ouvi dizer que desaparecera sem deixar rasto.

 

- Não sei nada a esse respeito - ripostou Landry. Ela está metida em toda esta trapalhada porque se dispôs a ajudar uma pessoa que lhe pediu que a ajudasse.

 

- Ah, sim? Pois bem, não preciso do tipo de ajuda dela - disse Weiss agastado. - O tenente sabe que ela está envolvida no caso?

 

- Ora, por amor de Deus! O que é que se passa contigo, Weiss? Estamos nalgum jardim-escola? Tencionas fazer queixinhas dela? - perguntou Landry com uma expressão sarcástica. - Na quinta-feira, ela levou uma sova de criar bicho. Vê se te contentas com isso e ganha juízo nessa cabeça. Temos em mãos uma rapariga assassinada e outra que foi raptada.

 

- Por que razão a defendes tanto? - perguntou Weiss num tom que exigia resposta. - Andas a foder com ela ou qualquer coisa assim?

 

- Eu não estou a defendê-la. Mal a conheço e aquilo que conheço não me agrada - retorquiu Landry. - Limito-me a fazer o meu trabalho. Mas agora somos esquisitos, escolhemos as vítimas a dedo? Terei eu faltado à reunião onde isso foi decidido? Achas que posso ir calmamente para o meu canto todos os dias até encontrarmos uma vítima que eu ache merecedora dos meus serviços? Tenho de dizer que isso vai reduzir em muito as minhas horas de trabalho. Acabam-se as putas viciadas em crack, acaba-se a escumalha de raça branca...

 

- Não me agrada que ela esteja envolvida no caso, mais nada - insistiu Weiss.

 

- E então? Eu também não gosto do que acabei de ver: uma rapariga esquartejada como se fosse uma peça de carne de vaca. Se a tua profissão não te agrada, faz-te motorista de táxi - ripostou Landry, desabrido, virando costas e afastando-se pelo corredor. - Se achas que não estás em condições de trabalhar neste caso, diz ao chefe e desaparece para dares o lugar a alguém que o possa fazer.

 

Nesta altura, o pager de Landry deu outra vez sinais de vida. O detective praguejou, olhou para o mostrador e dirigiu-se para o telefone começando a marcar um número.

 

- Fala Landry. - Ouviu a descrição do telefonema mínimo, em que alguém dizia saber com exactidão onde havia uma prova relacionada com o homicídio de Jill Morone. Essa prova encontrava-se num armário da cozinha da casa onde Tomas Van Zandt vivia temporariamente.

 

- Decide-te de uma vez por todas, Weiss - disse Landry, impaciente, quando desligou o telefone. - Tenho de tratar de arranjar um mandado de busca.

 

Ao fim e ao cabo, um mandado de busca não é uma coisa que qualquer detective possa obter através do seu computador. Não pode, assim, sem mais nem menos, ir falar com o chefe para que este lho emita. Tem de haver um depoimento ajuramentado por escrito, que corrobore os motivos do pedido, especificando as causas prováveis que justifiquem esse mandado de busca, descrevendo minuciosamente aquilo que se espera vir a encontrar. Caso se pretenda efectuar essa busca durante a noite, é necessário apresentar argumentos convincentes que provem a existência do perigo iminente de essa prova vir a ser destruída, ou da possibilidade de outro crime poder estar prestes a ser cometido, caso contrário, a busca a uma casa durante a noite poderá ser considerada como fundamento para uma acção judicial por assédio injustificado. Esse depoimento ajuramentado terá de ser encaminhado para um juiz, o qual decidirá com base nele se deve ou não emitir o mandado de busca.

 

Tudo isto leva o seu tempo. E durante esse período, o suspeito poderá fazer qualquer coisa - destruir as provas incriminatórias ou pôr-se em fuga.

 

Encontrar-se-ia Van Zandt no automóvel com a mulher? Eu não sabia dizer. Sabia apenas que o carro tinha uma cor escura, mas não houvera tempo para fixar a marca e o modelo. Era muito possível que fosse, ou não, o Mercedes que Trey Hughes emprestara a Van Zandt para este utilizar durante a temporada equestre. Deduzi que a mulher seria Lorinda Carlton.

 

Em relação a quem quer que me tivesse avistado, na hipótese de a camisa ser vista nas minhas mãos, a minha esperança era essa pessoa pensar que eu teria levado a camisa quando saí da casa.

 

Vi as horas no meu relógio, perguntando-me se os agentes de uniforme já teriam começado a bater às portas da vizinhança onde eu deixara o meu carro. Se eu aparecesse, com ar casual e as chaves de um BMW na mão, correria o risco de ser interpelada? Dirigi-me para a bomba de combustíveis da Chevron, onde me servi da casa de banho para me lavar como podia, voltando a ver as horas. Já decorrera mais de uma hora desde a minha fuga.

 

Tomei pelo caminho mais comprido de regresso a Sag Harbor Court. Não avistei nenhum polícia, nem lanternas que me indicassem uma busca em curso. O Mercedes preto de Van Zandt encontrava-se estacionado defronte da casa de Lorinda Carlton.

 

Ele não desatou a correr pela rua fora a fim de me agarrar. As coisas pareciam estar tão tranquilas em Sag Harbor Court como haviam estado quando cheguei. Perguntei-me se, ao fim e ao cabo, Lorinda teria participado o arrombamento da porta de sua casa, ou se a sirene que ouvira há pouco era de um carro-patrulha com destino a outro local. Também gostaria de saber se, entretanto, Van Zandt teria voltado, tendo conseguido dissuadi-la de telefonar para a Polícia, uma vez que não quereria ver a casa invadida por uma data de agentes.

 

Incapaz de conseguir dar resposta a estas perguntas, e continuando preocupada com a possibilidade de vir a ser apanhada, meti-me no carro e deixei Sag Harbor Court, pondo-me a caminho de casa e fazendo um desvio para passar por Binks Forest.

 

Avistei uns dois automóveis estacionados na rua onde os Seabright residiam. Provavelmente, pertenceriam a uma patrulha de vigilância. No interior da casa havia várias luzes ligadas.

 

Queria poder estar lá dentro, o que me permitiria avaliar o grau de tensão entre os presentes. Desejava ver Molly, para lhe dar a saber que não estava sozinha. Eu continuava do seu lado.

 

No entanto, acabara de fazer a maior burrice do século, comprometendo o meu disfarce, além de ter comprometido a admissibilidade em tribunal de uma prova que talvez tivesse ligado Van Zandt a um crime de homicídio.

 

Sim. Teria sido um conforto para ela. Saber que eu estava do seu lado.

 

Sentindo-me deprimida e preocupada, fui para casa tentar organizar as ideias, esperando que o pior pudesse acontecer.

 

- Isto é um ultraje! - protestava Van Zandt. - Esta terra agora passou a ser um estado policial?

 

- Não me parece - respondeu Landry, abrindo a porta de um armário e espreitando para o interior. - Se a Polícia mandasse no estado, tenho quase a certeza absoluta de que eu estaria a ganhar mais dinheiro.

 

- Não sou capaz de acreditar que haja alguém que possa pensar que o Tommy fizesse uma coisa tão horrível!

 

Lorinda Carlton exibia aquela expressão de alguém que desejara em tempos ter sido hippy, mas que, muito provavelmente, fora despachada para um colégio interno. Devia andar pelos quarenta e tal anos, tinha cabelos compridos e escuros com trancinhas muito apertadas; vestia uma T-shirt com a estampagem de uma merda qualquer alusiva à New Age. O mais certo seria ela jurar a pés juntos que descendia dos xamãs índios ou que seria a reencarnação de alguém da antiguidade egípcia.

 

Mantinha-se ao lado de Van Zandt, como se tentasse colar-se a ele. Mas ele mostrava-se indiferente à sua presença. Tommy.

 

- Esta casa nem sequer é minha - dizia Van Zandt. Como é que se atrevem a entrar em casa da Lorinda desta maneira?

 

Weiss voltou a mostrar-lhe o mandado de busca, inclinando ligeiramente a cabeça para trás, de forma a conseguir olhar com superioridade um homem que tinha mais quinze centímetros de altura do que ele.

 

- Sabe ler inglês? Pode ver que é o nome e a morada dela que estão escritos aqui.

 

- Ele está a viver aqui, não é verdade? - perguntou Landry, falando com a mulher.

 

- É meu amigo - respondeu ela com uma expressão muito dramática.

 

- Sim, sim. Mas talvez não fosse má ideia se reavaliasse essa amizade.

 

- Ele é o homem mais honesto e mais generoso que conheço - afirmou Lorinda.

 

Landry pôs os olhos em alvo. Aquela estava a pedir a palavra ”vítima” tatuada no meio da testa. O estupor do cãozito asqueroso não lhe largava os pés, sempre a ladrar e a rosnar. O bicho tinha a constituição de um torpedo peludo e com dentes aguçados. Sem dúvida que não hesitaria em morder se lhe dessem oportunidade para tal.

 

É

 

- Não sei o que é que pensam que vão encontrar disse Van Zandt.

 

- Uma camisa ensanguentada - replicou Weiss procurando por baixo do lava-loiça. - Uma camisa rasgada e cheia de sangue.

 

- E por que razão estaria na minha posse uma coisa dessas? Mais ainda, por que motivo a teria guardado num armário da cozinha? Isso é absolutamente ridículo. Pensam que sou estúpido?

 

Nenhum dos detectives lhe deu resposta.

 

Landry estendeu a mão para afastar uma pilha de listas telefónicas em cima do frigorífico, de onde caiu o pó acumulado numa nuvem espessa. A pessoa que lhes fornecera aquela pista tinha especificado que a camisa estava num armário; todavia, ele decidira alargar o âmbito do mandado de busca, de modo a abranger toda a propriedade, prevenindo a hipótese de Van Zandt ter transferido a prova para outro lado. E tudo parecia apontar nesse sentido. Já tinham passado revista a todos os armários da cozinha. No primeiro andar, encontrava-se um agente que vasculhava os roupeiros e as gavetas da cómoda.

 

- Com que fundamento é que o juiz emitiu este mandado de busca? - perguntou Van Zandt. - Ou dar-se-á o caso de terem autorização para perseguir qualquer pessoa que não seja um cidadão norte-americano?

 

- Houve um juiz que determinou que existiam causas prováveis para se acreditar que este objecto se encontra em sua posse, Mister Van Zandt - respondeu Landry. - Temos uma testemunha. O que é que lhe parece como fundamento?

 

- Mentira! Vocês não têm nenhuma testemunha.

 

- E como é que o senhor estaria ciente disso se não esteve presente e não assassinou a rapariga que apareceu morta? - perguntou Landry arqueando os sobrolhos.

 

- Não matei ninguém. E quem é que poderia saber o que tenho nesta casa? Além de um gatuno que assaltou a casa, não houve ninguém que viesse aqui. Mas tenho a certeza de que isto não lhe interessa.

 

- Quando é que ocorreu esse assalto? - perguntou Landry casualmente enquanto examinava o local onde as máquinas de lavar e secar roupa estavam instaladas.

 

- Esta noite - interveio Lorinda. - Precisamente quando cheguei a casa vinda do aeroporto. Deparei com alguém na garagem. O Cricket foi atrás dele, mas o gatuno conseguiu fugir.

 

Ao ouvir o seu nome mencionado, o cão recomeçou a ladrar.

 

- Levaram alguma coisa?

 

- Que eu tenha dado por isso, até ao momento, não. Mas tal não altera o facto de haver alguém que arrombou a fechadura da porta.

 

- E há alguma coisa que nos leve a acreditar que a fechadura foi forçada?

 

Lorinda Carlton franziu as sobrancelhas.

 

- Ligou para o cento e doze?

 

- E o que é que teriam feito? - intrometeu-se Van Zandt mostrando uma expressão de desagrado. - Nada. Não levaram nada. Vocês ter-me-iam dito para se passar a ter mais cuidado ao fechar as portas. Uma perda de tempo. Fui eu que disse à Lorinda para não estar com essa maçada.

 

- Porquê? Já tinha a sua quota-parte de agentes policiais por uma noite? - perguntou Landry com sarcasmo. - Uma atitude muito sensata. Tanto quanto sabemos, temos uma pessoa que assassinou alguém na semana passada, mas agora anda para aí à solta graças a si.

 

- Nesse caso, você devia ter apanhado essa pessoa quando alguém foi assassinado - declarou Van Zandt enfaticamente.

 

- Sim. Estamos a trabalhar nisso - adiantou Weiss, dando um encontrão a Van Zandt quando passou por ele a caminho da sala de estar.

 

- Conseguiu ver, com alguma clareza, essa pessoa, Miss Carlton? - perguntou Landry, pensando que seria obrigado a fechar Elena Estes numa cela enquanto aquela trapalhada não fosse deslindada. E se Lorinda Carlton tivesse decidido ligar para o 112, talvez naquele momento esse problema já estivesse resolvido.

 

- Nem por isso - admitiu ela, agachando-se para apanhar o cão. - Estava bastante escuro.

 

- Era um homem? Uma mulher? Branco? Sul-americano? Preto?

 

- Não lhe sei dizer - retorquiu ela com um abanar de cabeça. - Acho que a pessoa era de raça branca. Talvez sul-americano. Não tenho a certeza. Era de constituição franzina. Usava roupas escuras.

 

- Estou a ver - disse Landry mordendo o lábio. Jesus Cristo! O que teria imaginado Elena Estes para fazer uma coisa daquelas? Que talvez encontrasse uma camisa ensanguentada? Mas a verdade é que fora apanhada no acto, pelo que Van Zandt tivera tempo para se livrar dessa prova enquanto ele tratava de arranjar o mandado de busca.

 

- Quer participar o ocorrido? - perguntou Weiss. Lorinda Carlton quase ignorou a pergunta, limitando-se a um pequeno abanar de cabeça e mantendo-se concentrada no cão.

 

- Bem... não levaram nada...

 

Além do mais, Van Zandt não queria que os polícias invadissem a casa, passando-a a pente fino. Por isso haviam decidido não participar à Polícia. E em que diabo estaria aquela mulher a pensar? Como é que ela podia dar ouvidos ao homem que a aconselhava a não telefonar para a Polícia depois de a casa ter sido assaltada, sem ter deduzido imediatamente que ele estaria a tentar ocultar qualquer coisa?

 

A fundamentação lógica de uma vítima sistemática era algo que nunca deixava de o espantar. Landry estava inclinado a apostar que Lorinda fora casada com um ou dois homens que não prestariam para nada, e aquele mentecapto tinha, vá-se lá saber como, conseguido convencê-la de que era um bom sujeito... enquanto vivia da generosidade da pobre mulher.

 

- Essa pessoa pode ter estado aqui para deixar essa prova que vocês procuram - sugeriu ela. E Landry ficou a saber como Van Zandt justificara a presença de uma camisa toda manchada de sangue.

 

- Está a referir-se à prova que ainda não encontrámos? - perguntou Weiss.

 

- Podemos recolher as impressões digitais; talvez consigamos algumas que pertençam a um criminoso com cadastro - adiantou Landry, olhando para Van Zandt. É claro que teríamos de recolher as vossas impressões digitais a fim de vos eliminar de uma possível lista de suspeitos.

 

Não sei se sabem, mas o fulano pode ser um assassino em série ou algo do género. Quem sabe se não será procurado por todo o mundo?

 

Van Zandt semicerrara os olhos, que mostravam uma expressão dura como o aço.

 

- Cabrões, grandes filhos-da-mãe! - praguejou entre dentes. - Vou telefonar ao meu advogado.

 

- À vontade, Mister Van Zandt - replicou Landry, passando por ele para ir à garagem. - Desperdice o seu dinheiro ou... melhor dizendo, o dinheiro do otário que lhe permite os meios para poder pagar os serviços de um advogado como o Bert Shapiro. Não há nada que ele possa fazer que nos impeça de fazer uma busca a esta casa. Do que o senhor está bem ciente, e, ainda que se tenha visto livre dessa camisa, nós temos algum sangue como prova, que recolhemos na cocheira onde a Jill Morone morreu. E não se trata de sangue dela. É seu! Mais cedo ou mais tarde, vamos acabar por o encostar à parede.

 

- Esse sangue não é meu! - ripostou Van Zandt. Eu nem sequer estive lá.

 

- Nesse caso, decerto que não porá objecções a uma análise ao seu sangue que prove a sua inocência, não é verdade? - perguntou Landry detendo-se, já com a mão na maçaneta da porta.

 

- Isto é assédio policial. Vou telefonar ao Shapiro.

 

- Tal como eu disse - acrescentou Landry com um sorriso maldoso -, estamos num país livre. Mas quer saber o que é muito engraçado em relação a este assassínio? Inicialmente, pareceu ser um crime de estupro; no entanto, não encontrámos nenhum sémen. O patologista não encontrou nenhum vestígio de esperma. O que é que aconteceu, Van Zandt? Não quis comê-la depois de ela ter morrido sufocada? Gosta delas a gritar e a espernear? Ou dar-se-á o caso de não ter tido força na verga?

 

Van Zandt dava a impressão de ter a cabeça prestes a explodir. Num gesto brusco, pegou no auscultador, deixando-o cair, do telefone de parede. A raiva era tanta que todo ele tremia.

 

Landry saiu pela porta da cozinha. Pelo menos, conseguira afectá-lo, e de que maneira.

 

Durante os quarenta minutos seguintes, passaram a casa a pente fino - e dez desses serviram única e exclusivamente para irritar Van Zandt ainda mais. Se tivesse existido alguma camisa ensanguentada, a verdade é que já tinha desaparecido. O que encontraram resumia-se a uma colecção de cassetes de filmes pornográficos a que nunca ninguém naquela casa se dera ao trabalho de limpar o pó. Landry tinha a certeza de que sentia mordidelas de pulgas nos tornozelos através das meias.

 

Weiss dispensou o agente que fora com eles, ficando a olhar para Landry, como se lhe perguntasse: ”E agora?”

 

- Portanto, trata-se de um gatuno que assaltou a casa- insistiu Landry quando estavam reunidos no vestíbulo. - Reparou em que direcção é que ele fugiu?

 

- Saiu pelo alpendre e depois atravessou os jardins da vizinhança, correndo ao longo da sebe - respondeu Lorinda. - O Cricket ainda correu atrás dele. O meu pequeno herói tão corajoso. Depois ouvi um ganir terrível. Essa pessoa horrorosa deve ter-lhe dado um pontapé.

 

O cão ergueu o olhar para Landry, começando a rosnar. A este também apeteceu, e muito, dar-lhe um pontapé. Cão ranhoso, um saco ambulante de pulgas.

 

- Vamos passar uma vista de olhos lá por fora - disse o detective. - Talvez o sujeito tenha deixado cair a carteira quando fugiu. Às vezes, a sorte está do nosso lado.

 

- Não hão-de encontrar nada - atalhou Van Zandt. Eu próprio já passei uma vista de olhos pelas redondezas da casa.

 

- Pois sim, mas não se pode dizer que o senhor pertença à nossa equipa - interveio Weiss. - Tencionamos ver com os nossos próprios olhos. De qualquer maneira, obrigado.

 

Van Zandt virou costas, bufando de raiva.

 

Weiss e Landry foram buscar uma lanterna ao carro-patrulha. Lado a lado contornaram a vivenda até às traseiras, fazendo incidir o facho de luz nos arbustos e na relva. Caminhavam na direcção que Lorinda Carlton lhes indicara até terem saído da urbanização, sem sequer encontrarem um papel que tivesse embrulhado uma pastilha elástica.

 

- Uma coincidência bastante estranha - começou

Weiss a dizer enquanto caminhavam -, o facto de a casa onde o Van Zandt está a viver ter sido assaltada precisamente quando ele estava a ser interrogado.

 

- Crime de oportunidade.

 

- E o gatuno não levou nada.

 

- Roubo interrompido.

 

- E depois há alguém que nos dá uma dica.

 

- A cavalo dado não se olha o dente, Weiss - retorquiu Landry filosoficamente com um encolher de ombros. Pode morder.

 

O telefonema foi feito às três horas e doze minutos da manhã.

 

Molly tinha tirado o telefone sem fios do carregador na sala de estar e, sorrateiramente, subira até ao primeiro andar, escondendo o aparelho por baixo de uma revista, em cima da mesa-de-cabeceira. Não lhe permitiam que tivesse o seu próprio telefone no quarto, apesar de, praticamente, todas as raparigas da sua turma o terem. Bruce acreditava que uma jovem com o seu próprio telefone era meio caminho andado para problemas.

 

Também não permitia que Chad tivesse o seu telefone, apesar de Molly saber que este tinha um telemóvel e um beeper, pelo que ele e os falhados dos amigos podiam passar a vida a enviar mensagens de texto de uns para os outros, contactando-se através dos beepers como se fossem gente importante. Bruce não tinha conhecimento disso. Molly guardava segredo porque gostava ainda menos de Bruce do que de Chad. De acordo com o que Bruce estipulara, todos os que viviam naquela casa - excepto ele deviam fazer os seus telefonemas do telefone da cozinha, onde todos podiam ouvir as conversas.

 

O telefone tocou três vezes. Molly ficou a olhar para o aparelho quando já o tinha na mão, sustendo a respiração e apertando o gravador de microcassetes com força na outra Pequena mão suada. Receava que Bruce não atendesse o telefone. O que pudesse acontecer a Erin era-lhe completamente indiferente. Mas, quando Molly decidiu atender, o telefone Deixou de tocar. Mordeu os lábios, premindo o botão de Rendimento, assim como o botão de gravação no gravador.

 

A voz que começou a ouvir era aquela voz horrível, distorcida e maldosa que escutara no filme em vídeo, como algo que tivesse sido extraído de um filme de terror. Cada palavra era arrastada e proferida com uma lentidão deliberada, metálica e sinistra. Os olhos de Molly encheram-se de lágrimas.

 

- Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

- De que é que está para aí a falar? - perguntou Bruce.

 

- Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

- Não foi porque eu quisesse.

 

- Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

- A culpa não foi minha. Não fui eu quem telefonou aos chuis. O que é que quer que eu faça?

 

- Leve o dinheiro ao local indicado. No domingo. Às dezoito horas. Nada de polícia. Nada de detective. Apenas você.

 

- Quanto? - perguntou Bruce.

 

- Leve o dinheiro ao local indicado. No domingo. Às dezoito horas. Nada de polícia. Nada de detective. Só você. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

Dito isto, a comunicação foi cortada do outro lado da linha.

 

Molly premiu o botão que desligava o seu telefone, ao mesmo tempo que desligava o gravador. Tremia tanto que acreditou estar prestes a adoecer. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço. Aquelas palavras ecoavam continuamente tão altas que lhe apetecia bater com as mãos nos ouvidos para as eliminar, mas aquele som encontrava-se dentro da sua cabeça.

 

A culpa era dela. Tinha pensado estar a fazer a coisa mais acertada, a coisa mais inteligente. Acreditara que era a única pessoa que faria alguma coisa para salvar Erin. Decidira entrar em acção. Pedira ajuda. E agora Erin podia vir a morrer. E isso por culpa dela.

 

Culpa dela e de Elena.

 

Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

Na hora incerta antes do amanhecer Quase ao fim da noite interminável...

 

As coisas de que nos recordamos são estranhas, assim como o são as razões que nos levam a recordarmo-nos delas. Lembrei-me dessas linhas de um poema de T. S. Eliot porque, aos dezoito anos, e como caloira obstinada na Duke, tivera uma paixoneta obsessiva pelo meu professor de Literatura, Antony Terrell. Ainda me lembro de uma discussão deveras apaixonada, cujo tema foram os trabalhos de Eliot, enquanto tomávamos um cappuccino no café da zona, em que Terrell defendia que os Quatro Quartetos exploravam as questões que se prendiam com o tempo e a renovação espiritual, tendo eu apresentado o argumento de que Eliot era a causa de base que dera origem ao musical Caís da Broadway e, consequentemente, uma peça que era uma merda.

 

Eu teria argumentado que o céu era azul só para poder estar junto de Antony Terrell. Debate: a minha imagem de marca de namoradeira.

 

Agora, enquanto permanecia aninhada a um canto do sofá, roendo a unha do polegar e olhando à distância pela janela, por entre o claro-escuro que antecedia a alvorada, não pensava em Antony. Estava a sós com as minhas incertezas, pensando no que se seguiria depois de uma noite interminável. Não me permiti o luxo de reflectir em questões de renovação espiritual. Muito provavelmente, por pensar que tinha perdido a minha oportunidade de ir para o inferno.

 

Senti o corpo atravessado por um tremor, estremecendo violentamente. Não sabia como poderia viver comigo própria, caso o facto de ter sido apanhada em casa de Van Zandt tivesse sido a causa do desaparecimento da prova que poderia demonstrar que ele era o assassino. E se ele, de uma maneira qualquer, tivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento de Erin Seabright, e se eu houvesse destruído as hipóteses de vir a ser acusado por estar relacionado com esse rapto, levando-o à prática do crime de homicídio...

 

Engraçado. Antes de ter ouvido falar pela primeira vez em Erin Seabright, não sabia como viver comigo própria por Hector Ramirez ter morrido em consequência das minhas acções. Nem me interessava saber... A diferença era que agora aquela situação começava a preocupar-me.

 

Algures em tudo isto, a esperança aproximara-se sub-repticiamente pela porta das traseiras. Se tivesse batido abertamente à porta, tê-la-ia expulsado tão depressa quanto mandaria embora um qualquer missionário que andasse a pregar de porta em porta. Não, obrigada. Não quero o que anda a vender.

 

”A esperança” é a coisa com penas

 

Que se empoleira na alma

 

E que canta sem palavras

 

Sem nunca parar - nunca, jamais.

 

                 EMILY DICKINSON

 

Eu não queria alimentar esperanças em relação a mim mesma. Queria limitar-me a existir.

 

A existência não é complicada. Um pé de cada vez a frente do outro. Comer, dormir, funcionar. Viver, viver verdadeiramente, com todas as emoções e riscos subjacentes a vida, é uma tarefa difícil. Cada risco traz consigo a possibilidade quer do sucesso quer do fracasso. Todas as emoções têm uma contrapartida. O medo não pode existir sem a esperança, tal como a esperança não existe sem o medo. Eu não queria nenhum. Tinha os dois.

 

O horizonte ficou de um tom rosado enquanto eu o contemplava pela janela, avistando uma garça-real branca que voava, recortando-se contra a faixa rosada entre a Terra e a escuridão do firmamento. Antes que eu pudesse considerá-la como um sinal de qualquer coisa, fui ao quarto para trocar de roupa, vestindo um traje de montar.

 

Ainda não tinha aparecido nenhum agente policial a bater à minha porta pela calada da noite, a fim de me interrogar a respeito do meu blusão e do assalto à casa de Linda Carlton/Van Zandt. A minha pergunta era: se os agentes da polícia não haviam encontrado o meu blusão, quem o descobrira? Teria sido arrastado pelo cão, que o levara de volta para casa da dona? O trofeu pelo seu esforço. E Lorinda Carlton e/ou Van Zandt teriam ido em minha perseguição, acabando por encontrá-lo? Se, em última análise, Van Zandt tivesfe descoberto a receita em meu nome, o que poderia acontecer a seguir?

 

A incerteza é sempre o inferno de quem trabalha fazendo-se passar pelo que não é. Eu construíra um castelo de cartas, apresentando-me como sendo uma pessoa a um grupo de gente e algo completamente diferente a outro. Não me arrependia da decisão que me levara a agir desse modo. Sempre estivera bem ciente dos riscos. O truque era colher as compensações antes de ser apanhada, antes que as cartas se desmoronassem. Todavia, não me sentia mais perto de poder trazer Erin Seabright de volta ao mundo dos vivos, e se viesse a ser desmascarada pela gente dos cavalos, então, todos os meus esforços teriam sido em vão, além de ter estado muito aquém do que Molly esperava de mim.

 

Dei de comer aos cavalos, hesitando se devia, ou não, telefonar a Landry, ou se era mais aconselhável esperar que ele me contactasse. Queria saber como é que a conversa com Van Zandt tinha corrido e se a autópsia ao cadáver de Jill Morone já fora realizada ou não. Mas o que me levaria a pensar que ele responderia ao que eu queria saber, depois de ter agido da maneira como agira na noite anterior? Era ago a que eu não sabia responder.

 

Deixei-me ficar em frente da cocheira de Feliki enquanto ela acabava o pequeno-almoço. Era uma égua de pequeno porte, com uma cabeça bastante grande e muito pouco característica de uma fêmea, mas, em contrapartida, tinha um coração e um ego tão grandes como os de um elefante, e um temperamento para dar e vender. Com bastante regularidade, conseguia bater cavalos mais cotados em competições hípicas, e, se tivesse sido capaz, decerto teria feito aos rivais um gesto obsceno com o dedo quando saía triunfante do picadeiro.

 

A égua espetou as orelhas, fitando-me e sacudindo a cabeça como se me dissesse: ”Para que é que estás para aí a olhar?”

 

Soltei um riso abafado, uma reacção que era uma surpresa agradável no meio de tanta coisa desagradável. Tirei uma pastilha de hortelã-pimenta do bolso. As orelhas da égua espetaram-se ainda mais ao ouvir o ruge-ruge do papel enquanto eu desembrulhava a pastilha, pousando a cabeça por cima da portinhola e exibindo a sua expressão mais sedutora.

 

- Saíste-me uma bela prenda - disse eu. Delicadamente, tirou o mimo que lhe estendi na palma da mão, começando a mastigar a pastilha. Afaguei-lhe o focinho e ela derreteu-se toda. - Sim - murmurei quando ela estendeu a cabeça à procura de outro mimo. - Trazes-me recordações de mim própria. Com a diferença de que a mim só me dão desgostos e coisas más.

 

O som de pneus que rolavam no caminho de acesso à casa despertou-me dos meus devaneios. Vi um Grana Am metalizado ao fundo das cavalariças.

 

- A prova do que eu estava a dizer-te - comuniquei eu à égua. Ela olhou para o carro de Landry, de orelhas alerta. À semelhança de todas as éguas de primeira categoria, Feliki estava sempre atenta à presença de intrusos e a possíveis situações de perigo. Rodopiou na cocheira, relinchou e deu um coice na parede.

 

Não fui ao encontro de Landry. O interessado era ele, pois que viesse ter comigo. Em vez disso, dirigi-me para a cocheira de D’Artagnon, de onde o tirei, levando-o para a área onde cuidávamos dos cavalos. Pelo canto do olho, vl que Landry se encaminhava para mim. Estava vestido para ir trabalhar. A brisa matinal atirava-lhe a gravata vermelha para cima do ombro.

 

- Você levantou-se muito cedo para alguém que ontem à noite andou a vaguear pela cidade.

 

- Não sei de que é que está a falar. - Escolhi uma escova do armário, começando a escovar a pelagem do cavalo um pouco ao acaso, o que teria merecido a reprovação de Irina, que começaria a resmungar em russo, se aquele não fosse o seu dia de folga.

 

Landry encostou-se de lado a um pilar, com as mãos nas algibeiras.

 

- Deduzo que não saiba nada sobre um arrombamento e entrada forçada na casa de Lorinda Carlton... a habitação onde o Tomas Van Zandt está a residir temporariamente?

 

- Não. O que é que se passou? - perguntei com uma expressão de inocência.

 

- Ontem à noite recebemos um telefonema através do cento e doze, em que nos garantiram que encontraríamos uma prova incriminatória que ligaria o Van Zandt ao assassínio da Jill Morone.

 

- Magnífico! E conseguiu encontrar essa prova?

 

- Não - respondeu Landry.

 

Senti que o coração me caía aos pés. Só me ocorria uma notícia que pudesse ser pior do que aquela, e que se relacionaria com o facto de o corpo de Erin Seabright ter aparecido. Pedia a Deus para que esta última não fosse a próxima.

 

- Você não esteve lá - continuou Landry.

 

- Eu disse-lhe que ia para a cama acompanhada de um livro.

 

- Não, você disse-me que ia para a banheira ler um livro - corrigiu-me ele. - Isso não é resposta.

 

- Não me fez qualquer pergunta concreta. Fez uma afirmação.

 

- Na noite passada, esteve nessa casa? - perguntou Landry sem estar com meias-palavras.

 

- O que o leva a pensar que estive? Encontrou as minhas impressões digitais? Qualquer coisa que me tenha caído dos bolsos? Imagens da câmara de filmar do sistema de segurança? Uma testemunha? - perguntei contendo a respiração, sem saber bem qual a resposta que mais recearia.

 

- Arrombamento e entrada forçada são infracções à lei.

 

- Sabe... acho que ainda me lembro disso dos tempos em que trabalhei para a Polícia. Está a dizer-me que encontrou provas de que houve uma entrada forçada nessa casa?

 

Landry não me pareceu ter ficado satisfeito com a minha réplica.

 

- O Van Zandt conseguiu regressar a casa antes de eu ter obtido o mandado de busca. Se essa camisa estava lá conseguiu livrar-se dela.

 

- Que camisa é essa de que está a falar? - perguntei, fazendo-me de novas.

 

- Raios a partam, Elena Estes! - ripostou ele, frustrado, agarrando-me por um ombro para me virar de frente, com tanta brusquidão que D’Artagnon ficou surpreendido. O macho portentoso recuou contra as traves, deu um salto em frente, mas depois acalmou-se, recuando.

 

Com o punho fechado, dei um soco no peito de Landry. Foi o mesmo que esmurrar um bloco de cimento.

 

- Por amor de Deus, veja lá o que faz! - declarei eu numa voz sibilada.

 

Largou-me e deu alguns passos à retaguarda, mais atento ao cavalo do que a mim. Aproximei-me do animal para o acalmar. D’Artagnon ficou a olhar para Landry, sem saber bem se acalmar-se seria a opção mais assisada. Era evidente que ele teria preferido fugir dali a galope.

 

- Não dormi nada - disse Landry à guisa de justificação para o seu procedimento. - Não estou com disposição para jogos de palavras. Ainda ninguém lhe leu os direitos que a lei lhe confere. Nada do que disser poderá ser usado contra si. E de qualquer maneira, nem o Van Zandt nem a parva da mulher querem apresentar queixa à Polícia, porque, tal como com certeza você sabe, não roubaram nada da casa. Quero que me diga o que viu.

 

- Se ele já destruiu essa prova, isso já não interessa. Seja como for, sou obrigada a imaginar que você pode fazer uma descrição pormenorizada do que quer que ela fosse, caso contrário, o juiz não teria emitido o mandado de busca. Ou ter-lhe-á ele proporcionado dados concretos durante o interrogatório? O que, a ser o caso, teria exigido que você fosse mais esperto, empatando-o durante o tempo necessário para conseguir o mandado e proceder à busca.

 

- Não chegou a haver nenhum interrogatório. Ele telefonou ao advogado.

 

- Quem é ele?

 

- O Bert Shapiro.

 

Espantoso. O Bert Shapiro era uma réplica do meu pai em termos de clientes da alta-roda. Perguntei a mim própria qual dos pacóvios agradecidos é que pagava os honorários desse advogado.

 

- Isso foi uma pena - retorqui. O que era a dobrar para mim. O Dr. Shapiro conhecia-me desde criança. Se Van Zandt lhe mostrasse a receita do hospital, eu estava tramada. - E é uma pena você não ter esperado até à conclusão da autópsia para o chamar. É possível que nessa altura conseguisse alguma coisa com que o abanar antes de ele ter usado a palavra ”advogado”.

 

Com isto, atingi-o num ponto nevrálgico. O que verifiquei ao ver as contracções dos músculos dos maxilares.

 

- A autópsia revelou alguma coisa de especial? - perguntei.

 

- Se tivesse revelado, decerto eu não estaria aqui. Encontrar-me-ia no ringue a dar cabo das fuças desse filho-da-mãe, com advogado ou sem advogado!

 

- É-me difícil imaginar que ele tenha esperteza suficiente para escapar a uma acusação de homicídio.

 

- A menos que tivesse adquirido experiência no assunto - adiantou Landry.

 

- Mas nunca foi apanhado - repliquei, escolhendo uma almofada branca com o monograma de Avadonis bordado num dos cantos do assento e colocando-a no dorso de D’Artagnon; depois tirei a sela de suporte da parede e coloquei-a no cavalo. Tive a sensação de sentir a tensão dentro de Landry enquanto me observava. Ou, quem sabe, talvez a tensão fosse minha e não dele.

 

Contornei o cavalo para ajustar o arção da sela - uma tarefa que tinha de ser feita por fases e, no caso do DAr, como Irina lhe chamava, significava um processo ridiculamente gradual, porque ele era, citando Irina, ”uma flor de estufa muito delicada”. Apertei mais um furo na correia, após o que me baixei para ajustar uma das protecções para as pernas. Não me escapou que Landry mudava constantemente de posição, num sinal de desassossego.

 

- Os Seabright receberam outro telefonema - informou ele por fim. - O raptor disse que a rapariga seria punida porque o Seabright quebrara as regras.

 

- Oh, meu Deus! - exclamei, sentando-me sobre os calcanhares e sentindo-me enfraquecida por ouvir aquilo. - Quando é que esse telefonema foi feito?

 

- A meio da noite.

 

Depois de eu ter deitado tudo a perder em casa de Van Zandt. Depois de Landry ter posto em prática o mandado de busca.

 

- Destacou alguém para vigiar o Van Zandt? - perguntei.

 

- Não, o meu tenente não aprovou essa medida - respondeu Landry com um abanar de cabeça. - O Shapiro já estava a argumentar assédio policial por causa da busca. Não temos absolutamente nada de que possamos acusá-lo. Como é que poderíamos justificar mantê-lo sob vigilância?

 

Esfreguei a testa numa tentativa para me libertar da tensão.

 

- Magnífico. Isso é uma maravilha - ripostei com ironia.

 

Van Zandt era livre de fazer o que lhe desse na real gana. Porém, mesmo que não fosse esse o caso, sabíamos que o rapto não era exclusivamente obra dele. Tinha havido uma pessoa encarregada da câmara de vídeo e outra que manietara a rapariga. Não existia nada que impedisse um desses parceiros de fazer mal a Erin, ainda que Van Zandt fosse mantido sob vigilância as vinte e quatro horas do dia.

 

- Eles vão fazer-lhe mal porque eu o envolvi no assunto - afirmei eu.

 

- Em primeiro lugar, você sabe tão bem como eu que é muito possível que a rapariga já esteja morta. Em segundo lugar, sabe também que procedeu da forma mais acertada. O Bruce Seabright não teria feito rigorosamente nada.

 

- Neste momento, isso não me serve de grande consolação - redargui, pondo-me de pé e encostando-me ao armário; cruzei os braços junto do peito. Senti-me atravessada por outro tremor, ao pensar nas consequências que Erin Seabright sofreria em virtude das minhas acções. Isto é, se ela não estivesse já morta.

 

- Eles combinaram outro ponto para a entrega do dinheiro - continuou Landry. - Com um pouco de sorte, para o fim do dia já teremos detido o cúmplice dele.

 

Com um pouco de sorte.

 

- Onde e quando? - perguntei.

 

Landry limitou-se a olhar para mim, com os olhos velados pelas lentes escuras dos óculos de sol, uma expressão empedernida no rosto.

 

- Elena, você não pode estar presente.

 

Fechei os olhos por uns instantes, sabendo antecipadamente qual o rumo que a conversa levaria.

 

- Não pode excluir-me do caso, assim sem mais nem menos.

 

- Isso não depende de mim. O meu tenente é que se encarregará das operações. Parece-lhe que ele vai permitir que você participe? Ainda que essa decisão dependesse de mim, acha que eu deixaria que você participasse depois da gracinha de ontem à noite?

 

- O resultado dessa gracinha foi uma camisa rasgada e manchada com o sangue de um suspeito de homicídio atalhei.

 

- Que não está em nosso poder.

 

- A culpa disso não é minha - ripostei de imediato.

 

- Você foi apanhada.

 

- Nada disso teria acontecido se, ontem à noite, você não se sentisse compelido a mostrar quem é que manda, levando Van Zandt para o interrogar quando o fez - argumentei. - É muito possível que eu tivesse conseguido arrancar-lhe qualquer coisa durante o jantar. Você podia ter ficado com ele depois disso, depois da autópsia. Nada o impedia de o deter e de tratar de arranjar o mandado de busca, o que permitiria que fosse você próprio a encontrar essa camisa. Mas não. Você não podia fazer as coisas dessa maneira e agora o fulano anda à solta por onde quer...

 

- Ah, foi por minha culpa que você forçou a entrada nessa casa - cortou Landry, mostrando uma expressão de incredulidade. - E suponho que também tenha sido culpa do Ramirez o facto de ele se ter posto à frente da bala que o matou.

 

Fiquei sem respiração, como se ele me tivesse dado uma bofetada. O meu primeiro instinto foi recuar. Não sei como, consegui evitar essa reacção.

 

Ambos permanecemos imobilizados a olhar um para o outro durante um tempo que me pareceu interminável, uns momentos horríveis, em que o peso das palavras de Landry ficou a pairar no ar. Depois, numa atitude de grande deliberação, virei-me e voltei para junto de D D’Artagnon para lhe colocar a outra protecção nas pernas.

 

- Meu Deus - murmurou Landry. - Peço desculpa. Eu não devia ter dito isto.

 

Não repliquei. Estava inteiramente concentrada a apertar as correias da protecção, alinhando-as o melhor possível.

 

- Peço desculpa - repetiu Landry quando me endireitei. - Mas você consegue irritar-me a um ponto que...

 

- Não esteja a culpar-me pelo seu comportamento interrompi-o, virando-me para ele. - Já carrego culpa suficiente sem ter de carregar também com a sua.

 

Landry desviou o olhar, manifestamente envergonhado devido à sua conduta. Eu teria de bom grado dispensado aquela pequena vitória. O preço que paguei por ela foi demasiado elevado.

 

- Você é um filho-da-puta, Landry - acrescentei, mas sem qualquer emoção. Se, em vez disso, tivesse dito: ”Você tem cabelo curto”, a ênfase nas palavras teria sido a mesma. Limitara-me, simplesmente, a atestar um facto.

 

- Sim. Sou - disse ele meneando a cabeça. - Posso ser.

 

- Não tem de ir tratar da entrega de um resgate? Quanto a mim, tenho um cavalo para montar. - Com estas palavras, peguei nas rédeas de DAr, que estavam penduradas num gancho, para o arrear. Landry não se mexeu.

 

- Tenho de lhe fazer uma pergunta - adiantou ele. Parece-lhe que o Don Jade possa ser cúmplice do Van Zandt neste assunto? No sequestro?

 

Antes de lhe responder, reflecti naquela possibilidade.

 

- Tanto o Van Zandt como o Jade estavam relacionados com o caso do Stellar... Estou a referir-me ao cavalo que foi morto. Ambos podem vir a receber uma bela maquia, caso o Trey Hughes compre o cavalo de saltos belga.

 

- Portanto, até certo ponto, são sócios no negócio.

 

- Até certo ponto - concordei. - O Jade queria ver-se livre da Jill Morone... talvez por ela ser estúpida e preguiçosa, ou talvez porque soubesse alguma coisa a respeito do Stellar. A Erin Seabright era a tratadora pessoal desse cavalo. Não é descabido deduzir que também tenha sabido alguma coisa. Porquê? Tem alguma coisa de que possa acusar o Jade?

 

Landry debateu consigo próprio se devia responder-me ou não. Finalmente, respirou fundo e expirou, optando por me mentir. Do que me apercebi de imediato. Vi-o na expressão dos seus olhos, vazios e sem emoção. Olhos de polícia.

 

- Eu só tento ligar as pontas - afirmou ele. - Existem coincidências a mais para que todos estes acontecimentos não estejam relacionados entre si.

 

Abanei a cabeça, esboçando o meu meio sorriso de azedume e ironia, pensando na conversa de Sean, em que alvitrara a hipótese de Landry estar bem para mim. Com certeza. Eu e Landry. Um enlace arranjado no inferno.

 

- Então, o que é que a autópsia revelou? - voltei a perguntar. - Ou isso também é um segredo de estado?

 

- A morte foi por sufocação - respondeu Landry.

 

- E ela foi violada?

 

- Pessoalmente, estou em crer que alguém tentou violá-la, mas não conseguiu concluir o trabalho. Ela apareceu de cara para baixo no chão da cocheira, tendo sufocado enquanto ele tentava violá-la. Aspirou vómito e excrementos de cavalo.

 

- Meu Deus! Pobre rapariga. - Ter uma morte daquelas e nenhuma das pessoas que ela conhecera havia chorado por ela.

 

- Também existe a probabilidade de o crime de estupro ter sido encenado - aventou Landry. - Não se encontraram quaisquer vestígios de sémen.

 

- Descobriram alguma coisa debaixo das unhas? perguntei.

 

- Nem sequer um fragmento de pele.

 

Acabei de apertar as fivelas do arção da sela, virei-me e fiquei a olhar para ele.

 

- Ele limpou-lhe as unhas?!

 

- Talvez não seja tão idiota como se possa pensar respondeu Landry, encolhendo os ombros.

 

- Isso mostra um comportamento deliberado - repliquei. - Não tem nada a ver com: ”Com a breca, sufoquei acidentalmente esta rapariga e agora só me resta entrar em pânico.” Isso é um modo de operar. Não é a primeira vez que ele faz isso.

 

- Já comecei a trabalhar o ângulo do modo de operar através da base de dados do VICAP1, além de já ter contactado a Interpol e as autoridades belgas, para saber se há registo de crimes similares.

 

Os meus pensamentos já se haviam concentrado no que poderia significar para Erin se ela estivesse nas mãos não de um sequestrador, cujo único móbil seria o dinheiro, mas sim nas de um assassino em série, cujos motivos sinistros só ele é que conheceria.

 

- É por isso que eles têm o cadastro dele - disse eu, falando mais para mim própria do que para Landry. - Essa merda a respeito das práticas que ele aplicava nos negócios... eu sabia que isso não batia certo com relação ao envolvimento da Interpol. O Armedgian, grande filho-da-puta! - invectivei entre dentes.

 

- Quem é o Armedgian? - perguntou-me Landry.

 

As informações facultadas pela Interpol haviam sido filtradas através dele. Se estivesse certa, vindo a provar-se que Van Zandt tinha um historial documentado como predador sexual, isso significaria que o meu bom amigo do FBI tinha guardado essa informação para si próprio. E eu sabia por que razão. Porque eu deixara de pertencer ao clube.

 

- Os agentes federais contactaram os seus serviços? perguntei.

 

- Que eu saiba, não.

 

- Só espero que isso signifique que estou enganada, e não que eles são apenas uns mentecaptos.

 

- Ora, não há dúvida de que eles são uns mentecaptos declarou Landry. - E se alguém tentar meter o bedelho no meu caso, quem se intrometer ver-se-á com um novo caso entre mãos. - Landry viu as horas no relógio de pulso. - Tenho de me pôr a andar. Temos um mandado para passar uma busca aos apartamentos da Jill Morone e da Erin Seabright.

 

1 Programa de Apreensão contra o Crime Violento. (N. da T.)

 

Vamos ver se descobrimos alguma coisa que nos aponte uma direcção qualquer.

 

- Também encontrarão uma data de coisas que pertencem à Erin no apartamento da Jill - informei, pegando nas rédeas do meu cavalo.

 

- Como é que sabe isso?

 

- Porque, na fotografia que tenho da Erin, ela usa a blusa que a Jill Morone tinha vestida quando morreu. Foi por isso que pareceu que a Erin se mudara... a Jill roubou tudo o que era dela.

 

Levei o D D’Artagnon para fora da cavalariça até ao bloco de montar, deixando que Landry saísse sozinho. Pelo canto do olho, vi que ele se tinha detido, com as mãos nas ancas, a olhar para mim. Por detrás dele, a porta que dava para a sala de estar abriu-se, deixando ver Irina, que vestia um pijama de um tom azulado, com uma caneca de café na mão. Lançou a Landry um olhar contundente quando passou num andar deslizante a caminho das escadas para o seu apartamento. Ele não reparou nela.

 

Montei o cavalo e dirigimo-nos para o picadeiro. Não sei durante quanto tempo é que Landry ainda ali ficou. Quando tomei as rédeas, apaguei da mente tudo o que restara do nosso encontro. Inspirei o ar impregnado com o cheiro do cavalo, sentindo o sol que me aquecia a pele, ouvindo a viola eléctrica de Marc Antoine, que interpretava um tema de jazz, difundido através do sistema de som do picadeiro. Eu estava ali para me purificar, para conseguir um sentido de orientação, para sentir o conforto dos músculos que me era familiar, e o fio de suor que corria entre as minhas omoplatas. Se não tivesse merecido um momento de paz, não seria isso que me impediria de o gozar.

 

Quando acabei, Landry já tinha partido. Mas entretanto apareceu outra pessoa.

 

Van Zandt.

 

- Portanto, a pessoa que encontraram morta no hipódromo era ela?

 

Landry olhou de lado para a senhora idosa. Vestia umas calças elásticas cor-de-rosa e tinha uma camisola pelos ombros, calçando uns chinelos de quarto enfeitados com uma coisa penugenta. Nos braços, sustinha um gato grotescamente gordo e com uma pelagem alaranjada. O felino parecia muito capaz de morder.

 

- Não lhe posso responder a isso, minha senhora respondeu Landry, examinando o interior do apartamento bastante exíguo. Cheirava a mofo e o aspecto era nojento. Dava a impressão de ter sido virado de pernas para o ar. Houve alguém que viesse cá desde a noite de sexta-feira?

 

- Não. Ninguém. E tenho estado sempre em casa. O meu amigo Sid tem ficado em minha casa - confidenciou ela com um corar de falso pudor. - Desde que soube que a outra tinha desaparecido, deduzi que uma rapariga deve ter todo o cuidado possível.

 

- Por que razão está tão desarrumado? - perguntou Landry abrangendo aquele espaço com um gesto do braço.

 

- Porque ela é uma porca, só por isso! Não que eu goste de falar mal dos mortos, mas... - Eva Rosen interrompeu-se, olhando para o tecto manchado de nicotina para ver se Deus estaria a observá-la. - Ela também era má. Sei que tentou dar um pontapé ao meu Cedi.

 

- O seu quê?!

 

- O Cedi - esclareceu a mulher erguendo o gato, que começou a miar agressivamente.

 

Landry dirigiu-se para um monte de roupa deixada em cima da cama por fazer. Grande parte das peças pareciam pequenas de mais para Jill Morone. Muitas ainda tinham as etiquetas das lojas.

 

- Eu acho que ela roubava - acrescentou Eva. E, então, como é que ela morreu?

 

- Nesta fase das investigações não posso comentar esse assunto.

 

- Mas houve alguém que a assassinou, não é verdade? Foi o que os jornais disseram.

 

- Ah, sim?

 

- Tratou-se de um crime de natureza sexual? - Era evidente que ela esperava que fosse. As pessoas são seres espantosos.

 

- Sabe se ela tinha algum namorado? - prosseguiu Landry, ignorando as perguntas dela.

 

- Essa? - ripostou ela fazendo uma careta. - Não, mas a outra tinha.

 

- Está a referir-se à Erin Seabright...

 

- Tal como eu disse à sua amiguinha quando ela esteve a falar comigo. Um Thad qualquer coisa.

 

- Quer dizer Chad? - corrigiu Landry, aproximando-se de uma mesinha de café atulhada de papéis que haviam embrulhado guloseimas e um cinzeiro a transbordar. O Chad Seabright?

 

- Eles tinham o mesmo apelido? - perguntou Eva, mostrando-se horrorizada. - Eram casados?

 

- Não, minha senhora - clarificou Landry, passando uma vista de olhos por uma pilha de revistas. People, Playgirl, Hustler. Jesus Cristo!

 

- Com a breca! Mesmo debaixo do meu tecto!

 

- Alguma vez deu pela entrada ou saída de alguém? perguntou Landry. - Amigos ou amigas? Alguém do trabalho das raparigas?

 

- Do trabalho - confirmou ela.

 

- O Don Jade?

 

- Não conheço esse. Estou a falar da Paris - respondeu ela. - Uma loura bonita, muito simpática. Tem sempre tempo para dar dois dedos de conversa. Nunca se esquece de perguntar pelos meus bebés.

 

- Bebés?!

 

- O Cedi e o Beanie. Era ela que pagava a renda... a Paris. Tão boa rapariga.

 

- Qual foi a última vez que ela veio cá?

 

- Ultimamente não tem vindo. Sabe... anda sempre muito atarefada. Monta esses cavalos. Pumba! Por cima dos obstáculos - proferiu ela, deslocando o gato gordo que tinha nos braços como se tencionasse arremessá-lo. As orelhas do felino achataram-se ao mesmo tempo que emitia um som saído da garganta que se assemelhava ao de uma sirene.

 

Landry encaminhou-se para a mesa-de-cabeceira ao lado da cama, abrindo a gaveta.

 

Bingo!

 

Tirou uma esferográfica da algibeira e, cuidadosamente, afastou para o lado um vibrador cor-de-rosa antes de pegar no seu prémio. Fotografias. Retratos de Don Jade montado num cavalo preto com uma faixa de vencedor ao pescoço. Fotografias dele a saltar com outro cavalo por cima de uma barreira altíssima. Outra em que estava ao lado de uma rapariga, cuja cara havia sido riscada ao ponto de ter ficado irreconhecível.

 

Landry voltou a fotografia para poder ver o reverso. A primeira metade da inscrição também fora riscada com uma caneta, com tanta força que fizera um sulco no papel, embora de maneira tão atamancada que continuava a ser possível lê-la.

 

Para a Erin.

 

Com amor, Don.

 

- Ele tem de ter movimentos mais arredondados, mais suaves, durante a transição para as descidas.

 

Van Zandt estacionara na berma da estrada - um Chevy azul-escuro e não o Mercedes -, encostando-se à vedação a observar-me. Ao vê-lo, senti o estômago às voltas. Eu tinha acalentado a esperança de que a próxima vez em que o visse, se não fosse nas notícias, enquanto era levado sob prisão pelas autoridades, pelo menos que fosse no centro equestre, rodeado por uma multidão.

 

Com toda a precaução, saltou por cima do cercado e aproximou-se do picadeiro; tinha os olhos ocultos pelas lentes espelhadas dos óculos de sol, mostrando uma fisionomia inexpressiva que traduzia calma. Achei que ainda exibia um aspecto adoentado, perguntando-me se seria a acção de matar que perturbava o seu organismo, ou o perigo de vir a ser apanhado. Ou ainda a ideia de ter algo por concluir. Eu.

 

Lancei um breve olhar à área adjacente às cavalariças onde estacionávamos os automóveis. O carro de Irina desaparecera. Ela devia ter saído enquanto eu estava concentrada nos meus exercícios de equitação.

 

Não avistei qualquer sinal da presença de Sean. Se já tivesse regressado a casa depois de uma noite fora, decerto dormiria até tarde.

 

- Deve descontrair mais as costas, de modo a que o cavalo também possa ter o dorso mais solto - disse-me Van Zandt.

 

Perguntei-me se ele saberia, prevendo de antemão, num canto fatalista da minha alma, que ele sabia. As possibilidades desfilaram pelo meu pensamento, como tinha vindo a acontecer a todas as horas desde que eu deitara tudo a perder na casa de Lorinda Carlton: o homem encontrara a receita, reconhecendo o meu nome que entretanto vira na Sidelines, ou então teria sido Lorinda Carlton que havia reconhecido o nome. Era muito possível que essa revista se encontrasse algures na casa. Talvez tivessem visto a fotografia quando estavam juntos. Até podia ser que Van Zandt houvesse reconhecido o cavalo, ou o meu perfil, ou que tivesse juntado as peças do quebra-cabeças com base na alusão que fora feita na quinta de Sean. Também era possível que tivesse encontrado o blusão com a receita no bolso, deduzindo que Elena Estes trabalhava para a Polícia, e que procedia a uma busca enquanto ele era interrogado por Landry; ligara para o advogado, pedindo-lhe que verificasse o nome. Decerto que Shapiro teria reconhecido o meu nome. No entanto, para o caso, não interessava qual a maneira como ele descobrira a verdade acerca de mim. O que importava era o que ele tencionava fazer com respeito a isso. Se soubesse que eu estivera em sua casa na noite de sábado, então, saberia que eu vira a camisa manchada de sangue. Agora, arrependia-me de não ter guardado aquela coisa, estando-me nas tintas para as consequências na admissibilidade em tribunal. Do mal, o menos: ele estaria na cadeia, pelo que eu não me encontraria sozinha com um homem que acreditava ser um assassino.

 

- Experimente outra vez - incitou ele. - Deixe-o entrar num semigalope.

 

- Já estávamos a acabar por hoje.

 

- Americanos - retorquiu ele, desdenhoso, mantendo-se no extremo do picadeiro, com as mãos nos quadris. -- O cavalo ainda mal aqueceu. O trabalho só agora é que começou. Ponha-o a andar num galope moderado.

 

A minha vontade era desafiá-lo; no entanto, manter-me montada no cavalo pareceu-me preferível a estar no mesmo plano que ele, onde o homem me levava a vantagem de mais ou menos doze centímetros e uns trinta quilos a mais. Pelo menos até conseguir saber o que lhe ia na mente, inteirando-me do que ele saberia ou não, pareceu-me melhor fazer-lhe a vontade.

 

- Num círculo de vinte metros - instruiu Van Zandt. Posicionei o cavalo num círculo com vinte metros de diâmetro, tentando respirar de modo a concentrar-me, mas apertava as rédeas com tanta força que me pareceu poder sentir a pulsação através delas. Por uns momentos, fechei os olhos, expirando e sentando-me com firmeza na sela.

 

- Relaxe as mãos. Porque está tão tensa, ele? - perguntou-me ele numa voz tão melíflua que me provocou um arrepio pelas costas abaixo. - O cavalo sente a tensão no seu corpo. O que faz com que também fique tenso. Mais força na sela e menos nas mãos.

 

Esforcei-me por adoptar a postura que ele me aconselhava.

 

- O que é que o trouxe aqui tão cedo? - perguntei.

 

- Não fica contente por me ver? - perguntou ele por sua vez.

 

- Teria ficado muito mais satisfeita se o tivesse visto ontem ao jantar. Deixou-me pendurada. Essa atitude não faz com que ganhe nenhuns pontos comigo.

 

- Fui detido por uma razão inevitável - explicou ele.

 

- Foi levado para uma ilha deserta? Um lugar onde não há telefone? Até mesmo a Polícia permite um telefonema aos detidos.

 

- É aí que pensa que eu estive? Na esquadra da Polícia?

 

- Pode acreditar que não sei nem me interessa saber.

 

- Tive o cuidado de deixar um recado ao chefe de mesa. Não me foi possível telefonar-lhe. Você não me deu o seu número de telefone - retorquiu ele, mudando de entoação de um momento para o outro. - Concentre-se, concentre-se, concentre-se! - instruiu num tom autoritário. Mais energia, menos velocidade. Vamos lá. Sente-se bem nele!

 

Consegui dominar o cavalo debaixo de mim até o colocar quase no ponto onde o queria, com os cascos a baterem num compasso a três tempos.

 

- Por acaso, está a tentar atirar-se a mim, dando-me uma lição de equitação de borla?

 

- Nada é de borla, ele - redarguiu ele. - Leve-o até ao trote. Como o pousar de uma pena.

 

Fiz como ele me instruía - ou, melhor dizendo, tentei -, tendo fracassado devido à tensão que me invadia

 

- Não deixe que ele perca o porte desse modo! - admoestou-me Van Zandt. - Quer que caia sobre os quartos dianteiros?

 

- Não - respondi.

 

- Então, porque permitiu que isso acontecesse? A resposta implícita é que eu era estúpida.

 

- Outra vez! A trote! Com mais energia na transição e não menos!

 

Repetimos o exercício vezes sem conto. De cada vez havia qualquer coisa que não estava bem, e essa coisa era, sem margem para dúvidas, culpa minha. A transpiração começou a acumular-se no pescoço portentoso de D D’Artagnon. A minha T-shirt estava completamente ensopada. Comecei a sentir cãibras nos músculos lombares. Os braços estavam tão exaustos que tremiam.

 

Comecei a questionar a minha sensatez. Não conseguiria ficar montada no cavalo durante todo o dia, e, quando desmontasse, cairia redonda no chão, sem acção, como se não tivesse ossos, qual alforreca que desse à costa. Pela sua parte, Van Zandt decidira punir-me e eu sabia que ele desfrutava do mal-estar que me causava.

 

-... e faça com que ele como que flutue até entrar num trote lento, semelhante a um floco de neve a poisar no solo.

 

Uma vez mais, obriguei o cavalo a uma passada lenta, sustendo a respiração na expectativa da próxima explosão de mau humor.

 

- Está melhor - admitiu ele a contragosto.

 

- Já chega - declarei eu, deixando que as rédeas pendessem, soltas. - Está a tentar matar-me?

 

- E por que razão haveria eu de lhe fazer uma coisa dessas, ele? Nós somos amigos, não é verdade?

 

- Foi o que pensei - respondi.

 

- Também eu pensei isso.

 

Falando no passado, intencionalmente, deduzi; não era uma utilização errada de linguagem.

 

- Mais tarde, nessa mesma noite, telefonei para o restaurante - continuou Van Zandt. - O chefe de mesa disse-me que você nem sequer tinha ido lá.

 

- Ai, isso é que fui. Você é que não estava lá. E depois decidi vir-me embora - repliquei mentindo. - Não vi nenhum chefe de mesa. Na altura, devia estar na casa de banho.

 

Van Zandt reflectiu na minha história.

 

- Você é muito boa - disse ele por fim.

 

- Em quê? - perguntei, observando-o enquanto obrigava D D’Artagnon a descrever um círculo, até que a respiração do cavalo recomeçasse a fazer-se com regularidade.

 

- Nos exercícios de equitação, é claro.

 

- Você acabou de passar meia hora a gritar comigo para que eu conseguisse efectuar uma transição de movimentos decente.

 

- Precisa de um treinador forte. É muito obstinada.

 

- Não preciso que me maltratem.

 

- Pensa que posso maltratá-la, que sou um filho-da-mãe? - perguntou ele com uma falta de emoção que era mais perturbadora do que a sua atitude habitual. - Eu acredito firmemente na disciplina.

 

- Em pôr-me no meu lugar? - perguntei. Ele não me deu resposta.

 

- O que o trouxe aqui tão cedo? - voltei a perguntar. - Com certeza que não foi para me pedir desculpa pela noite passada.

 

- Não tenho nada de que pedir desculpa - retrucou Van Zandt.

 

- Você não reconheceria uma ocasião para isso ainda que eu o esbofeteasse. Veio falar com o Sean por causa do Tino! A sua cliente já chegou da Virgínia?

 

- Veio ontem à noite. Imagine o choque que ela sentiu quando chegou a casa e deparou com um intruso.

 

- Houve alguém que forçou a entrada em casa dela? Mas isso é terrível. Roubaram alguma coisa?

 

- Por estranho que possa parecer, não.

 

- Sorte a sua. Ninguém a magoou, pois não? Aqui há umas noites vi uma reportagem no noticiário sobre um casal de idosos que foram roubados em sua casa por dois haitianos armados com catanas.

 

- Não, ninguém lhe fez mal. A pessoa fugiu. O cão da Lorinda correu pelos relvados da vizinhança, indo em perseguição do assaltante, mas voltou apenas com um blusão que conseguira abocanhar.

 

Uma vez mais, senti o estômago às voltas. Apesar do calor, fiquei com a pele dos braços toda arrepiada.

 

- Onde é que está a sua moça de estrebaria? - perguntou-me Van Zandt, olhando na direcção das cavalariças. - Por que motivo não está aqui para tratar do cavalo?

 

- É o intervalo para um cafezinho - respondi desejando que isso fosse verdade. Reparei que o olhar de Van Zandt se dirigiu para o estacionamento, onde o meu BMW se encontrava sozinho.

 

- Uma boa ideia, o café - proferiu ele. - Ponha o cavalo na cocheira, para que possamos tomar um café, aproveitando para estabelecer novos planos.

 

- Ele precisa de levar uma mangueirada.

 

- A russa pode tratar disso. É uma tarefa dela e não sua.

 

Ainda pensei em pegar nas rédeas e passar por cima dele. Mais fácil de dizer do que fazer. Ele seria um alvo em movimento, pelo que o D Ar tentaria não o atingir. Mesmo que conseguisse fazer com que ele caísse por terra, como actuaria a seguir? Teria de saltar por cima de uma vedação para sair da propriedade. Não sabia se o D’Artagnon estava em condições de poder saltar. Não seria de pôr de parte a hipótese de ele se recusar a saltar, projectando-me para fora da sela.

 

- Venha - ordenou Van Zandt. Voltou-se e encaminhou-se para as cavalariças.

 

Eu não sabia se ele estava armado. Sabia apenas que eu não tinha nenhuma arma. Se entrasse com o homem, ele teria uma grande vantagem.

 

Juntei as rédeas. As minhas pernas apertaram-se à volta dos flancos de D’D’Artagnon. O animal como que dançou debaixo de mim, resfolegando pelas narinas.

 

Entretanto, apercebi-me de uma espécie de clarão de cor junto do cercado, chamando a minha atenção e obrigando-me a olhar. Molly. Tinha encostado a bicicleta e trepado pela vedação, e agora corria na minha direcção.

 

Levei um dedo aos lábios, na esperança de que ela me entendesse, para não me chamar pelo meu nome. Como se isso interessasse. A minha formação como filha de um advogado: nunca admitir seja o que for. Até mesmo face a provas inegáveis: negar, negar, negar.

 

Molly endireitou-se, olhou para mim e depois para Van Zandt, que acabara de reparar nela. Desci do D’D’Artagnon e estendi a mão na direcção da garota.

 

- É a Miss Molly, a Magnífica, - exclamei. - Vem visitar a sua tia ele.

 

Os olhos dela espelharam uma expressão de incerteza, mas a sua fisionomia não deixava adivinhar nada. Muita prática em lidar com situações voláteis entre Krystal e os homens da vida desta. Aproximou-se de mim, respirando esforçadamente, com a testa brilhante por estar perlada de suor. Coloquei um braço em redor dos ombros franzinos, apertando-a momentaneamente, desejando ter poder para a tornar invisível. Ela encontrava-se ali por minha causa e agora, também por minha causa, corria perigo.

 

Van Zandt fitou-a com uma expressão que se assemelhava muito a um sentimento de reprovação.

 

- A tia ele? Tem família que viva por perto?

 

- Tia honorária - expliquei. Os meus dedos fecharam-se no braço da garota. Dirigi-me a Molly. - Molly Avadon, este é Mister Van Zandt, um amigo.

 

Eu não queria que o homem estabelecesse uma associação entre ela e Erin. Também raciocinei que para Van Zandt fazer com que eu desaparecesse seria uma coisa, mas talvez pensasse duas vezes quando se tratasse de matar alguém que pensava ser da família de Sean. Era forçoso que ele seguisse a linha de raciocínio de qualquer psicopata, imaginando que teria uma boa oportunidade de conseguir safar-se do que fizera até então. Caso contrário, deduzi que já estaria a bordo de um avião a caminho de Bruxelas ou com destino a qualquer outro local. Caso continuasse convencido de que poderia sair incólume daquela situação, isso significava que, na sua perspectiva, poderia continuar a levar a cabo os seus negócios nos Estados Unidos, sem nada que o impedisse de prosseguir a convivência com os ricos e os famosos.

 

Uma vez mais, o olhar de Molly desviou-se de mim para Van Zandt, cumprimentando-o com uma reserva feita de frieza.

 

- Olá, Molly - saudou Van Zandt com um sorriso forçado.

 

- Prometi à Molly que hoje iríamos ver a exibição hípica - disse eu. - É melhor esse café ficar para outra altura, Z. Não estou a ver a Irina e tenho de pôr este cavalo na cocheira.

 

O homem franziu o sobrolho ao ouvir isto, avaliando as suas opções.

 

- Nesse caso, permita-me que a ajude - ofereceu-se ele, pegando nas rédeas de D’Artagnon.

 

Com olhos cheios de preocupação, Molly fitou-me. Pensei que devia dizer-lhe que se fosse embora, que corresse à procura de ajuda. Mas, antes que eu pudesse passar dos pensamentos à prática, Van Zandt voltou-se para nós.

 

- Vamos, Miss Molly - disse ele. - Interessa-se por cavalos? Como o seu tio Sean?

 

- Mais ou menos - respondeu Molly.

 

- Nesse caso, venha ajudar-nos a tratar deste cavalo.

 

- Não - intervim - Se ela for espezinhada, a culpa será minha. - Olhei para Molly, tentando obrigá-la a ler os meus pensamentos. - Molly, minha querida, que tal se fosses até à casa do tio Sean para ver se ele já acordou?

 

- Ele não está em casa - atalhou Van Zandt. - Telefonei do carro enquanto vinha para cá, mas quem me atendeu foi o atendedor de chamadas.

 

- Isso quer dizer apenas que ele não atendeu o telefone - replicou Molly. Van Zandt franziu o sobrolho, continuando a caminhar em direcção ao estábulo com o cavalo pelas rédeas.

 

Baixei-me como se quisesse dar um beijo na face de Molly, segredando-lhe ao ouvido:

 

- Telefona para o cento e doze.

 

A garota virou-se e correu para a casa principal. Van Zandt olhou-a por cima do ombro, observando-a a correr.

 

- Não acha que ela é adorável? - perguntei. Ele não emitiu qualquer comentário.

 

Entrámos na cavalariça e ele levou D’Artagnon para a área onde os cavalos eram cuidados, retirando-lhe a sela e os arreios e prendendo-o à corda. Fui para o lado oposto do cavalo, agachando-me para lhe tirar as protecções das pernas, e mantendo-me nessa posição, mas sempre a observar Van Zandt.

 

- O senhor deve-me um jantar - afirmei.

 

- E a ele deve-me uma lição.

 

- Isso quer dizer que estamos quites? - perguntei.

 

- Não me parece - respondeu ele. - Não acho que tenha aprendido tudo o que posso ensinar-lhe, ele Stevens. Contornou a dianteira do cavalo enquanto eu ia para o lado oposto, baixando-me para desafivelar a outra protecção das pernas.

 

- Aprendi, sim, se eu assim o achar.

 

- Há muitas lições a aprender - retorquiu, com uma expressão enigmática.

 

- Apesar de não precisar de um mentor, agradeço-lhe na mesma.

 

Dirigi-me para o armário onde os artigos de limpeza dos cavalos estavam guardados e, sub-repticiamente, tirei uma tesoura. Não hesitaria em espetá-lo com ela, caso me sentisse ameaçada.

 

Pensei que talvez devesse atacá-lo, quer ele ameaçasse a minha segurança quer não... uma vez que a melhor defesa era o ataque. Era um assassino. Por que motivo haveria eu de correr o risco de ele me atacar, de poder fazer mal a Molly? Não me seria difícil aproximar-me mais dele e espetar-lhe a tesoura na barriga, à altura do umbigo. Ele começaria a sangrar antes de poder fazer o que quer que fosse, sem compreender que eu o matara.

 

E eu alegaria legítima defesa. A chamada para o cento e doze corroboraria o facto de eu me haver sentido em perigo. Van Zandt já era conhecido dos agentes do Gabinete do Xerife como suspeito de um homicídio.

 

Também podia pedir ao meu pai que me defendesse em tribunal. A imprensa adoraria. Pai e filha pródiga reunidos enquanto ele luta para a salvar da câmara da morte.

 

Eu nunca tinha ceifado uma vida deliberadamente. Perguntei a mim própria se sentiria remorsos, sabendo o que sabia sobre Van Zandt.

 

- Podíamos ter formado uma boa parceria, você e eu declarou ele, deslocando-se à volta do cavalo até à parte da frente.

 

Ocultei a tesoura na palma da mão, observando-o a vir direito a mim.

 

Tinha os braços a tremer, tanto devido à fadiga como aos nervos que se haviam apoderado de mim. Perguntei-me se teria força suficiente para lhe espetar a tesoura na barriga.

 

- Você fala como se esta fosse a última vez que o vejo retorqui. - Tenciona ir a algum lado? Ou sou eu que estou de partida?

 

Continuava com os óculos de sol, o que me impedia de lhe ver os olhos. A sua expressão fisionómica não deixava transparecer qualquer emoção. Não acreditava que ele se atrevesse a matar-me ali, naquele momento. Mesmo que estivesse disposto a matar Molly também, não havia maneira de ele ter a certeza se Sean estaria em casa ou não.

 

- Não tenciono ir a parte alguma - replicou, aproximando-se mais de mim.

 

- Tomas! - chamou a voz de Sean do interior das cavalariças. Senti-me percorrida por uma onda de alívio, qual vaga gigantesca que levasse consigo as forças que ainda me restavam. - Estava a ver que você nunca mais voltava cá a casa! Ninguém tentou ofendê-lo desta vez, pois não?

 

- Somente no seu orgulho - proferi eu, encostando-me ao armário e pondo a tesoura de lado. - Recusei-lhe a satisfação de vir a ser meu professor de equitação.

 

- Oh, meu Deus! - exclamou Sean, rindo-se. Quem é que quereria essa tarefa? Ela eviscerou o último, servindo os restos mortais com molho e esparguete, acompanhados com favas e um belíssimo chianti.

 

- Está a precisar de ser domada - redarguiu Van Zandt, esforçando-se por esboçar um sorriso um pouco a contragosto.

 

- E eu precisava de voltar a ter vinte anos, mas isso também jamais acontecerá - retorquiu Sean encaminhando-se para mim. - Minha querida, a Molly está à tua espera cheia de impaciência. E se te despachasses? Eu trato do DD D’Artagnon.

 

- Mas sei que também precisas de te apressar - contrapus eu. - Não é hoje que tens um almoço?

 

- É verdade - confirmou Sean, olhando Van Zandt com uma expressão de quem se desculpava. - ”Os Cavaleiros contra as Dores Reumatóides”, ou qualquer outra causa igualmente meritória. Lamento ter de pô-lo a andar”

 

Tomas. Telefone-me amanhã. Podemos combinar um jantar Ou qualquer coisa assim. Talvez quando a sua cliente da Virgínia chegar possamos ir todos jantar fora.

 

- Sim, claro - anuiu Van Zandt. Aproximou-se de mim, pousando as mãos nos meus ombros e beijando-me nas faces. Primeiro, a direita, depois a esquerda e a direita de novo. Como os Holandeses. Olhou para mim e pareceu-me sentir um sentimento de ódio na expressão que se reflectia nos seus olhos, até mesmo através dos óculos de lentes espelhadas.

 

- Até mais ver, ele Stevens.

 

Comecei a tremer violentamente enquanto observava Van Zandt, que se afastava no seu automóvel. Ele podia ter-me assassinado. Também era possível que tivesse sido eu a matá-lo.

 

Até mais ver...

 

- O que raio é que se está a passar aqui? - perguntou Sean num tom autoritário. - A tua amiguinha veio ter comigo esbaforida, dizendo-me que ligasse para o cento e doze.

 

- Fui eu que lhe disse para fazer isso. Não pensei que estivesses em casa. Chegaste a telefonar? - perguntei.

 

- Não. Preferi vir aqui para te salvar! Por amor de Deus! Não ia ficar em casa à espera que os cabrões dos polícias chegassem enquanto um tarado qualquer se entretinha a desmembrar-te.

 

- O meu herói! - exclamei eu enlaçando-o nos meus braços.

 

- Explicações, por favor - pediu Sean, mas numa voz firme.

 

Afastando-me dele, olhei ao longe para me certificar de que o demónio não tinha mudado de ideias, regressando para junto de nós.

 

- Tenho boas razões para acreditar que o Van Zandt assassinou a rapariga que apareceu morta no centro equestre.

 

- Jesus, ele! E porque não está ele na prisão? O que é que ele veio fazer aqui?

 

- Ele não está preso porque conseguiu livrar-se da prova que o incriminava. O que eu sei porque vi a dita prova e telefonei anonimamente para a Polícia. Mas quando o Landry chegou ao local, já tinha desaparecido. Tenho a impressão de que o Van Zandt sabe que eu sei.

 

Sean ficou a olhar para mim, mostrando-se chocado e tentando absorver tudo o que eu acabara de dizer. Pobre rapaz. Não lhe passara pela cabeça em que sarilho estava a meter-se quando decidiu acolher-me em sua casa.

 

--Vou aproveitar estes momentos de silêncio para te reavivar a memória: tu é que me meteste nesta trapalhada disse-lhe eu.

 

Sean pôs-se a olhar para o tecto e depois para o corredor, concentrando o olhar em D’Artagnon, que esperava pacientemente que o levassem para a cocheira.

 

- Em princípio, trata-se de um desporto para gente fina - afirmou Sean. - Com animais encantadores, pessoas gentis, competição cortês...

 

- Todas as actividades têm o seu lado mais sombrio. O que já tiveste oportunidade de comprovar.

 

- Sim - concordou Sean, abanando a cabeça com uma expressão grave que reflectia tristeza -, já vi pessoas que foram enganadas, conheço pessoas intrujadas em negócios de cavalos, tal como sei de gente que conseguiu sair-se impunemente de práticas bastante duvidosas. Mas, por Deus, ele! Assassínio? Rapto? Estás a falar de um mundo que me é inteiramente desconhecido.

 

- Enquanto eu estou atolada nesse mesmo mundo retorqui, estendendo a mão para lhe afagar o rosto bonito. Tu querias que eu fosse algo interessante.

 

- Se eu tivesse feito a mais pequena ideia... Desculpa-me, minha querida.

 

- Não. Eu é que peço desculpa - retorqui sem saber muito bem como fazê-lo por ter recebido a visita de um assassino em casa de um amigo. - Eu podia ter dito ”não”. Ou podia ter-me afastado quando o Gabinete do Xerife começou a investigar o caso. Mas não o fiz. A escolha foi miNha. Mas a verdade é que eu não tinha o direito de te arrastar para este assunto.

 

Ficámos os dois em silêncio, como que mergulhados num estado de incredulidade; ambos nos sentíamos desoreentados. Sean enlaçou-me, abraçando-me e depositando-me um beijo no cimo da cabeça.

 

- Por favor, tem cuidado, ele - murmurou ele. - Não te salvei de ti mesma para vires a morrer assassinada

 

Eu mal conseguia recordar-me da última vez em que alguém me tinha abraçado. Já me esquecera de como era agradável sentir-me envolvida pela ternura de outra pessoa. Tinha esquecido como era preciosa e frágil a preocupação genuína de um amigo verdadeiro. Senti-me muito afortunada - outra emoção que experimentava pela primeira vez em muito tempo.

 

Um dos cantos da minha boca ergueu-se quando olhei para ele.

 

- Não há mal que não venha por bem - disse eu, deixando-me de devaneios.

 

Pelo canto do olho, vi Molly que, de olhos arregalados, espreitava para dentro da cavalariça.

 

- Ele já se foi embora, Molly - sosseguei-a. - Está tudo bem.

 

A garota recompôs-se, começando a percorrer o corredor, libertando-se dos últimos vestígios de medo de uma criança assustada que correra em busca de ajuda.

 

- Quem era o homem? - perguntou ela. - É um dos raptores?

 

- Ainda não sei. É possível que seja. Mas, de qualquer modo, é um homem mau. Disso não me restam dúvidas. Tive sorte por tu teres aparecido na melhor altura, Molly. Estou-te muito grata.

 

- Peço desculpa - começou ela a dizer, fitando-me com a sua expressão de jovem mulher de negócios, depois de olhar para Sean -, mas preciso de falar consigo em particular, Elena.

 

- Vou tratar do D’Artagnon - anunciou Sean diplomaticamente depois de ter arqueado as sobrancelhas. Preciso de fazer qualquer coisa que me acalme os nervos. Ainda é muito cedo para tomar uma bebida.

 

Agradeci-lhe e levei Molly para a sala de estar. A fragrância do café que Irina preparara enchia a sala. Abstraidamente, perguntei a mim mesma por que motivo teria descido do seu apartamento para fazer o café. Dispunha de uma pequena cozinha exclusivamente para seu uso pessoal. Mas, agora, isso não interessava. Grata pelo café que ainda restava na cafeteira, servi-me de uma chávena que levei para o bar, acrescentando-lhe uma porção generosa de uísque. Cedo de mais, o caraças!

 

- Queres tomar alguma coisa? - perguntei a Molly. Água? Um refrigerante? Um uísque de malte duplo?

 

- Não, obrigada - declinou ela educadamente. AElena está despedida.

 

- Desculpa?!

 

- Lamento muito, mas vejo-me forçada a dar o nosso contrato por terminado - acrescentou ela.

 

Olhei-a demoradamente com uma expressão perplexa, tentando descobrir o que motivara aquela decisão. Foi então que me recordei das notícias que Landry me havia dado, descortinando-as por entre o manto de névoa que eram as ameaças veladas de Van Zandt.

 

- Tenho conhecimento do último telefonema, Molly. O detective Landry contou-me.

 

O rosto de feições miúdas, mas com uma fisionomia cheia de firmeza, tinha a palidez do medo. As lágrimas assomaram-lhe aos olhos por detrás das lentes dos óculos.

 

- Eles vão fazer mal à Erin, e tudo por minha causa. Porque a contratei e a Elena envolveu os detectives da Polícia no assunto.

 

Eu nunca tinha visto ninguém com uma expressão de tanta tristeza. Molly Seabright encontrava-se no centro da sala, com as suas calças encarnadas e uma T-shirt azul-marinha, as pequenas mãos enclavinhadas diante de si, esforçando-se denodadamente por não chorar. Perguntei a mim própria se teria mostrado metade do desânimo que via à minha frente quando, praticamente, dissera as mesmas palavras a Landry havia algum tempo.

 

Saindo de detrás do bar, com um gesto indiquei-lhe uma das poltronas em pele, sentando-me numa outra.

 

- Molly, não te culpabilizes pelo que foi dito durante esse telefonema. Tu tomaste a atitude mais acertada quando Procuraste alguém que pudesse ajudar-te. Onde é que a Erin Já estaria se não tivesses decidido falar comigo? O que é queo Bruce teria feito para que ela voltasse para casa?

 

As lágrimas já tinham começado a cair dos olhos de Molly.

 

- M... mas eles d... disseram que a Polícia não devia ser contactada. Talvez, s... se fosse apenas a Elena...

 

Peguei-lhe nas mãos, apertando-as. Estavam tão frias como gelo.

 

- Isto não é tarefa para uma só pessoa andar a investigar, Molly. Precisamos de todos os recursos a que possamos recorrer para tentar reaver a Erin e para apanhar as pessoas que a raptaram. O Gabinete do Xerife tem acesso a registos telefónicos e criminais; têm meios para pôr os telefones sob escuta, analisando as provas que lhes chegarem às mãos. Teria sido um erro crasso não os envolver no caso. Tu não fizeste nada de mal, Molly. Nem eu. Os únicos que estão a proceder mal neste assunto são os que levaram a tua irmã.

 

- M... mas a voz disse repetidamente que e... ela iria pagar o preço porque nós q... quebrámos as regras.

 

Molly afastou as mãos das minhas para procurar qualquer coisa na bolsa patusca que trazia presa à cintura, apresentando um gravador de microcassetes.

 

- Tem de ouvir isto - disse ela, estendendo-me o minúsculo aparelho.

 

- Gravaste o telefonema?

 

Assentiu com a cabeça enquanto procurava um bocado de papel na bolsinha, entregando-mo.

 

- Também tomei nota do número de onde o telefonema foi feito.

 

Peguei no gravador e no pedaço de papel, premindo o botão que reproduziria a pequena cassete. Comecei a ouvir a voz mecanizada e alterada através do pequeníssimo altifalante. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço. Estas duas frases repetiam-se interminavelmente, intercaladas pelos comentários concisos de Bruce. E depois leve o dinheiro ao local indicado. No domingo. As dezoito horas. Nada de Polícia. Nada de detective. Só você. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço. você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preÇo. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preÇo.

 

Molly tapou a boca, fazendo força com a mão. As lágrimas corriam-lhe livremente pelas faces abaixo.

 

Eu queria rebobinar a cassete para ouvi-la outra vez mas decidi não o fazer na presença da garota. Mesmo assim, sabia que ela ouviria aquela voz durante os pesadelos que passariam a atormentá-la.

 

Pensei nas coisas que haviam sido ditas, na maneira como tinham sido ditas.

 

”Nada de Polícia. Nada de detective.

 

Estariam eles a referir-se a Landry? Ou a referir-se a mim? Como teriam eles sabido do envolvimento de qualquer de nós? Não houvera automóveis da Polícia nem ninguém de uniforme que tivesse sido destacado para casa dos Seabright. Tal como não existira qualquer contacto directo com os raptores. Na hipótese de eles vigiarem a casa à distância, teriam visto somente alguns homens que entravam e saíam da casa no sábado.

 

Nada de Polícia. Nada de detective.

 

Landry e Weiss tinham falado com a maior parte das pessoas das relações de Jade, fazendo-lhes perguntas sobre Jill Morone e Erin. Todas essas pessoas saberiam, desde logo, que o Gabinete do Xerife estava envolvido na investigação de um crime de homicídio. Mas eu estava disposta a apostar que não se fizera qualquer menção ao sequestro, tendo sido dito apenas que Erin desaparecera, querendo-se saber se alguém a teria visto ou tido notícias dela.

 

Nada de Polícia. Nada de detective.

 

Porquê diferenciar, caso o detective - singular - fosse Landry? Quem saberia que ambos estávamos envolvidos?

 

- A que horas é que este telefonema foi feito? - perguntei a Molly.

 

- Às três horas e doze minutos da madrugada. Depois do fiasco na casa onde Van Zandt vivia temporariamente.

 

Além dele, quem mais teria conhecimento do meu envolvimento? Os próprios Seabright, Michael Berne e Landry. Eliminava-se Molly. Eliminava-se Krystal. Bruce fora quem atendera o telefonema, portanto, não poderia ter sido ele a fazê-lo. O que não o ilibava de ter participado, uma vez que sabíamos que havia mais de um raptor, além de termos conhecimento de que Bruce mentira quanto ao seu paradeiro à hora em que Erin fora sequestrada.

 

Parecia pouco plausível que o autor desse telefonema tivesse sido Van Zandt, tendo-o feito de casa, dado que nessa altura já sabia que a Polícia o procurava devido ao assassínio da rapariga, e para o interrogar com relação a Erin. Embora não fosse impossível que ele tivesse feito o telefonema de outro telefone. Também suponho que ele o poderia ter feito do conforto do seu quarto, utilizando um telemóvel enquanto via na televisão um dos seus filmes pornográficos. Lorinda Carlton estaria no quarto contíguo com o seu horrível cãozinho.

 

- Quis ligar para esse número, mas tive receio de o fazer - disse Molly. - Sabia que os detectives estariam à escuta. Pensei que poderia meter-me em sarilhos.

 

Levantei-me e dirigi-me para o telefone do bar, liguei o número e fiquei a ouvir o toque do outro lado da linha sem que ninguém atendesse. Olhei para o apontamento de Molly, a letra de imprensa muito cuidadosa, ainda que infantil. Aquilo é que era uma menina esperta - ter-se lembrado de gravar a conversa telefónica e tomar nota do número. Doze anos e era mais responsável do que qualquer outro membro da sua família.

 

Naquele momento, muito gostaria eu de saber o que Krystal estaria a fazer enquanto Molly se encontrava ali a salvar a minha vida, tentando, simultaneamente, salvar a da irmã.

 

- Vem comigo, Molly - pedi-lhe.

 

Fomos para a minha pequena vivenda, onde eu tinha a lista com os números que recolhera do telefone de Bruce Seabright, a fim de poder comparar o número que Molly apontara, na esperança de que correspondesse a algum deles. O número condizia com dois dos telefonemas que haviam sido feitos para o telefone de Bruce. O indicativo pertencia à área de Palm Beach.

 

Eu já dera a Landry uma cópia desses números. Entretanto, decerto ele já se teria inteirado do nome dos assinantes - caso houvesse nomes que correspondessem a todos esses números.

 

Parece-lhe que o Don Jade possa ser o cúmplice do Van Zandt neste assunto? No rapto]

 

Teria Landry conseguido estabelecer uma relação entre este número e Jade? Seria essa a coisa que ele decidira a guardar para si mesmo?

 

Na minha perspectiva, não fazia nenhum sentido que Jade tivesse sido descuidado ao ponto de se servir de um número de telefone cuja origem seria facilmente detectada para fazer as suas exigências quanto ao pagamento de um resgate. Qualquer idiota teria conhecimentos suficientes para fazer esse tipo de contacto telefónico através de um telefone público, ou por um telemóvel pré-pago.

 

Se o telefonema tivesse sido efectuado através de um telemóvel pré-pago, como o que eu comprara no dia anterior, e os serviços da Polícia tivessem conseguido descobrir que esse número correspondia a uma determinada loja onde o aparelho fora vendido, então, era possível que já se encontrassem de posse de elementos que lhes permitissem identificar Jade pela descrição feita pela pessoa que o vendera.

 

- E agora, o que é que fazemos? - perguntou Molly.

 

- Primeiro, quero que fiques com isto - respondi, entregando-lhe o telemóvel que comprara para ela, juntamente com uma folha de papel onde já escrevera os números onde poderia contactar-me. - Isto é para poderes falar comigo. Vem com uma hora de chamadas pré-pagas. Estes são os meus números de telefone. Se vires ou ouvires qualquer coisa sobre a Erin, deves ligar-me de imediato.

 

Ela olhou para o telefone barato como se eu lhe tivesse oferecido uma barra de ouro.

 

- Os teus pais sabem que saíste de casa?

 

- Eu disse à minha mãe que ia dar uma volta de bicicleta.

 

- E desta vez ela estava consciente?

 

- O suficiente.

 

- Eu levo-te a casa de automóvel - ofereci-me. Não precisamos que a Polícia comece a procurar-te também.

 

Dirigimo-nos para a porta, mas, então, Molly virou-se Para mim fitando-me.

 

- Tenciona ir ao local combinado para a entrega do resgate? - perguntou-me.

 

- Não me é permitido fazer isso, mas tenho outras pistas que quero investigar. Continuo a trabalhar para ti?

 

- E quer continuar? - perguntou-me ela por sua vez, mostrando-se insegura.

 

- Sim - respondi. - Quero. Mas mesmo que me despeças, tenciono acompanhar o caso até acabar. Quando começo qualquer coisa, tenho de a levar até ao fim. Quero que a Erin volte para casa sã e salva.

 

Sem largar o telemóvel, Molly enlaçou-me pela cintura, dando-me um forte abraço.

 

- Obrigada, Elena - agradeceu-me com uma expressão mais séria do que qualquer garota de doze anos devia ter.

 

- Eu é que te agradeço, Molly - retribuí, imprimindo um significado às minhas palavras de que ela jamais se aperceberia. Só esperava vir a ser merecedora da confiança e da gratidão que ela me manifestava. - Tu és uma pessoa muito especial - acrescentei quando ela retrocedeu. É um privilégio conhecer-te.

 

Molly ficou sem saber o que dizer; aquela criança tão especial, que eu tivera a sorte de conhecer, passava despercebida em relação às pessoas que mais deveriam tê-la apreciado. De certa maneira, supus que isso talvez fosse preferível. Molly conseguira resultados muito melhores, criando-se a si própria, do que a mãe alguma vez teria conseguido.

 

- Quem me dera não ter de ser especial - confessou-me numa voz que mal se ouvia. - Quem me dera poder ser uma rapariga absolutamente normal, com uma família normal, vivendo uma vida normal.

 

As palavras dela soaram-me tão familiares... Em tempos, também eu tivera doze anos, desejando poder ter uma família normal, desejando não ser uma espécie de ovelha ronhosa da família, aquela que não se enquadrava no seio familiar. Indesejada pelo homem que, supostamente, devia ser o meu pai. Um fardo para a mulher que, supostamente, devia ter sido a minha mãe. Com doze anos de idade, há muito que eu havia perdido o valor como um acessório da vida dela.

 

- Não estás sozinha, Molly - disse-lhe eu, a única coisa que naquelas circunstâncias poderia dizer-lhe. - Nós, as miúdas especiais, temos de nos manter unidas.

 

- Vamos trazê-lo para a esquadra? - perguntou Weiss. Tinham-se reunido no espaço apertado do gabinete do tenente - Landry, Weiss e outros dois detectives: Michaels e Dwyer, assim como um recém-chegado ao grupo, por sinal nada bem-vindo, o agente especial do FBI, Wayne Armedgian. O tenente William Dugan, da Brigada de Furto e Homicídio, instalara-se por detrás da sua mesa de trabalho, com as mãos nos quadris; era um homem alto, de pele bronzeada e cabelos grisalhos, que sonhava reformar-se e participar numa competição para veteranos da Associação de Praticantes Profissionais de Golfe.

 

- O que é que lhe parece, James? - perguntou Dugan olhando para Landry.

 

- Na minha opinião, o que temos é muito circunstancial e pouco sólido, a menos que o tipo sanguíneo do Jade corresponda ao que recolhemos na cocheira onde a Jill Morone foi assassinada. Mesmo assim, seria difícil mantê-lo sob prisão com base nisso. Isto é, se fizéssemos a mínima ideia de qual é o seu tipo sanguíneo. Com certeza que não será ele quem nos dará essa informação voluntariamente. Precisaríamos de uma ordem do tribunal para fazer uma colheita de sangue. Além do mais, sabemos que, seja como for, o mais provável é esse sangue ser do Van Zandt.

 

- Isso é o que tu achas - contrapôs Weiss. - Há testemunhas que dizem que o Jade discutiu com a rapariga no Players. Acrescente-se a isto o facto de ele ter mentido quando disse que não voltou ao centro equestre.

 

- Ele mentiu quanto ao facto de não ter tido de voltar - corrigiu Landry. - Não há ninguém que tenha estado de serviço aos portões que diga que ele foi lá. Da mesma maneira que ninguém o viu nas cavalariças.

 

- Também ninguém viu o Van Zandt - interveio Weiss.

 

- Tanto um como o outro sabem bem por onde devem entrar sem serem vistos - afirmou Landry com um encolher de ombros. - O Van Zandt só faltou pôr-se em cima da Jill Morone no Players antes de o Jade ter chegado. Para não mencionar o facto de que houve alguém que nos deu a dica sobre a camisa ensanguentada.

 

- Camisa que não temos em nosso poder - recordou-lhe Weiss. - Nem sequer sabemos se existe realmente. Só sabemos que a Jill Morone destruiu artigos de vestuário do Jade que valiam uns dois mil dólares. Se ele tivesse entrado na cavalariça nessa altura e a tivesse apanhado... É muito possível que, exaltado como é natural que ficasse, nem pensasse duas vezes antes de a matar, após o que teria encenado um crime de estupro, tentando fazer com que parecesse obra do Van Zandt. Talvez tenha sido ele mesmo a deixar a camisa deliberadamente, tendo ligado para o cento e doze.

 

- Digamos que ambos são responsáveis - alvitrou Landry. - Não é uma hipótese que me surpreendesse. Podem vir a ser executados lado a lado.

 

- O que sabemos nós desse telefonema para o cento e doze? - perguntou Dugan.

 

- Foi feito de uma cabina pública junto da Publix, perto do centro comercial da Baixa, a meio quarteirão da casa onde o Van Zandt está a residir temporariamente - adiantou Weiss, observando Landry.

 

- O advogado do Van Zandt já começou a gritar que se trata de assédio policial, alegando uma conspiração - retorquiu Dugan.

 

- O juiz Bonwitt já declarou que possuíamos fundamentos suficientes para que ele emitisse o mandado de busca - continuou Landry. - Portanto, o Bert Shapiro pode ir dar uma grande volta ao bilhar grande.

 

- Conspiração de conluio com quem? - perguntou Armedgian, que até aí estivera calado.

 

- Alguém forçou a entrada em casa do Van Zandt

ontem à noite, à mesma hora a que ele esteve aqui connosco explicou Weiss. - E depois disso recebemos a dica a respeito da camisa manchada de sangue.

 

- Não faz grande diferença que não tenham conseguido encontrá-la - adiantou Armedgian. - O mais provável seria não ter sido admissível como prova em tribunal. O Shapiro poderia alegar que essa prova fora deixada propositadamente para incriminar o seu cliente.

 

- Por essa ordem de ideias, o Van Zandt também poderia mudar-se para Miami. Ele e o U. J.Simpson podem ser parceiros de golfe - sugeriu Weiss ironicamente. Todos se riram à socapa perante a brincadeira de mau gosto, com a excepção de Landry.

 

- Também temos a alternativa de prender esse cabrão, indiciando-o pelo crime de homicídio e fechando-o na cadeia enquanto recolhemos as provas necessárias para sustentar o caso - alvitrou Landry -, em vez de o termos à solta por onde bem lhe apetece, com liberdade para apanhar um avião que o leve para fora do país quando lhe aprouver.

 

- Você acha que o Van Zandt e o Jade são cúmplices no rapto da rapariga? - perguntou Armedgian.

 

- É muito possível que sim. O Van Zandt é o pervertido, enquanto o Jade é o cérebro do esquema. Ou então é o Jade e outra pessoa qualquer.

 

- Motivo?

 

- Dinheiro e sexo.

 

- E o que é que você tem que fundamente essa acusação?

 

- O Jade foi a última pessoa a ver a Erin Seabright. Ele afirma que ela se despediu e que abandonou a cidade, mas a verdade é que não disse a mais ninguém que tencionava despedir-se do seu emprego - explicou Landry.

 

Dwyer decidiu pegar na conversa.

 

- Os raptores fizeram alguns telefonemas para o número de casa da família Seabright de um telemóvel de cartão Pré-pago. De posse desse número de telefone, conseguimos o nome da empresa que produz esse tipo de aparelhos, e, depois de os termos contactado, obtivemos um número de série que corresponde ao telemóvel de onde essas chamadas foram efectuadas. O aparelho foi comprado numa loja da Radio Shack, em Okeechobee, Royal Palm Beach.

 

”Essa loja mantém um registo de vendas, mas não tomam nota dos números de série de cada telefone que vendem individualmente. Venderam dezassete telemóveis durante a semana que antecedeu o sequestro da Erin Seabright. Conseguimos descobrir três desses compradores através dos cartões de crédito. O resto foram vendas a dinheiro.

 

- Mostrámos fotografias do Jade aos vendedores das lojas - acrescentou Michaels. - Mas ninguém conseguiu identificá-lo, embora um dos empregados tenha dito que o nome lhe era vagamente familiar.

 

- E por que motivo é que o Jade utilizaria o seu próprio nome? - perguntou Armedgian.

 

- Podíamos detê-lo para ser interrogado - sugeriu Landry. - Mas a verdade é que ele já ameaçou telefonar ao advogado, e, se ele apresentar o mesmo tipo de advogado que o Van Zandt tem, ao fim de três minutos está fora das nossas instalações, para não mencionar que teremos deitado a perder a entrega do resgate sem nada que possamos mostrar que compense esse fracasso. Tão perto da hora da entrega do dinheiro como estamos, não é inverosímil supor que eles possam entrar em pânico, matando a rapariga... ou que optem por aniquilá-la só porque nós os chateámos.

 

- Por outro lado, nada nos impede de deter o Jade, tentando fazer com que ele se vire contra o parceiro - sugeriu Armedgian.

 

Landry brindou-o com um olhar que dizia: ”Mas quem é que te perguntou?”

 

- Por acaso, você conhece estas pessoas? Teve oportunidade de falar com o Don Jade?

 

- Bem... não, mas...

 

- O gelo nem sequer se derreteria no olho do cu dele. O homem não está para aturar o que quer que seja. Se nos chegarmos perto dele, chama logo os cães. É uma perda de tempo. A nossa melhor hipótese é manter o Van Zandt e o Jade sob vigilância, mas com muito cuidado, para vermos se um deles vai ter com a rapariga, ou, quem sabe, talvez consigamos apanhar um deles, ou mesmo os dois, aquando da entrega do resgate. Nesse caso, a vantagem estará do nosso lado, pelo que os advogados vão querer chegar a um acordo extrajudicial.

 

Numa manifestação de mal-estar, Armedgian começou a mexer no nó da gravata.

 

- Acredita realmente que eles estarão presentes aquando da entrega do resgate? - perguntou o agente especial. - Temos alguma alternativa? - ripostou Landry. O que é que quer fazer, Armagedian Deitar tudo por água abaixo e ir ao Chuck and Harold’s comer umas amêijoas? -Landry... - advertiu Dugan numa voz rosnada. - O quê? O que é que eu disse de mais? - A sua atitude... O agente especial Armedgian está aqui para nos dar assistência. -Eu sei para que é que ele está aqui. Armedgian franziu o sobrolho. Dava a impressão de ter apenas uma sobrancelha, uma lagarta negra e espessa que se arrastava de um lado ao outro da sua cabeça, parecida com uma bola.

 

- Concretamente, o que é que quer dizer com isso? perguntou.

 

- Você está aqui única e exclusivamente por causa do belga - respondeu Landry inclinando-se para ele -, não por sua iniciativa. E se você tivesse deitado cá para fora tudo o que sabe a respeito dele da primeira vez que lhe perguntaram, talvez a Jill Morone ainda estivesse viva.

 

As pálpebras de Armedgian ficaram içadas a meia haste.

 

- Não sei de que é que está para aí a falar - retrucou o homem.

 

- Nem eu - interveio Dugan. - O que é que pretende dizer com isso, James?

 

- Estou a falar de os agentes federais quererem uma pequena medalha internacional para juntar à colecção. Se o Van Zandt vier a revelar-se um assassino em série, eles querem os louros da detenção.

 

- Com respeito ao Van Zandt, a única coisa por que lhe podemos pegar - começou Armedgian a replicar traduz-se em meras especulações de uma organização policial da Europa. Mais nada. Ele foi acusado de duas infracções menores, mas acabou por ser ilibado. Se tivesse contactado a Interpol, detective Landry, teria ficado ciente da mesma coisa.

 

A Landry só apetecia ir-lhe à cara, fazendo-lhe notar que tinha havido alguém que perguntara, mas o fílho-da-mãe não hesitaria em trazer o nome de Elena Estes à baila, e depois seria o fim do mundo. Mesmo assim, já era alvo dos olhares de esguelha de Weiss.

 

- Não entrou em contacto com a Interpol? - perguntou Dugan. - Pensei que você o tinha feito.

 

- Sim, de facto contactei-os - retrucou Landry concentrando a sua atenção no agente especial. - Muito bem, vou entrar no jogo. O que estão vocês a fazer aqui? Eu não vos quero por perto para lixarem a entrega do resgate.

 

- O espectáculo é todo seu - ripostou Armedgian, erguendo as mãos. - Eu estou aqui, simplesmente, para dar a minha assistência e aconselhar.

 

”Uma merda é que estás!”, pensou Landry.

 

- Tenho experiência em casos de rapto - continuou o agente especial do FBI. - Já inspeccionou o local da entrega do resgate?

 

- Com a breca, devia fazer isso? - perguntou Landry de olhos arregalados e expressão de gozo.

 

- Landry... - interveio Dugan.

 

- Tanto quanto sei, é um local bastante descampado acrescentou Armedgian.

 

- Já destaquei um homem que se mantém de vigia no local - informou Dugan. - É um local difícil de manter sob vigilância. O meu homem está escondido num atrelado para cavalos do outro lado da estrada, à beira do hipódromo.

 

- Há uma estrada com um traçado circular que atravessa a Urbanização Equestre - adiantou Michaels. - E uma estrada secundária de terra batida a que se tem acesso através do portão mais próximo do local indicado para a entrega do resgate. Não podemos ter os carros-patrulha a circularem por lá - acrescentou o agente de polícia retribuindo o olhar duro ao agente federal.

 

- O meu pessoal pode seguir o Van Zandt, tenente ofereceu-se Armedgian. - Desta maneira, a sua gente ficaria livre de vir a ser acusada posteriormente por assédio policial.

 

- Um cabrão muito magnânimo - resmungou Landry.

 

- Já chega, não o quero ouvir mais, ou serei eu próprio quem o porá em contacto com o Bert Shapiro - atalhou Dugan com uma expressão de censura.

 

- Sejam advogados ou agentes federais, em qualquer dos casos, os fodidos somos sempre nós! - ripostou Landry fixando o olhar em Armedgian.

 

Só esperava que Erin Seabright não acabasse, em última análise, por pagar por todos eles.

 

Leve o dinheiro ao local indicado. No domingo. Às dezoito horas.

 

Uma vez que não foram dadas instruções adicionais, eu tinha de deduzir que o local da entrega do resgate seria aquele por que os raptores haviam optado inicialmente.

 

As instalações do hipódromo da Urbanização Equestre haviam sido construídas apenas em 2000, aquando da temporada hípica. Foi aí que se procedeu à selecção da equipa olímpica de hipismo dos Estados Unidos. Ao contrário do hipódromo em Wellington, era um recinto compacto e simples, com quatro picadeiros de areia onde decorriam as competições, utilizados, especificamente, para os percursos de obstáculos, assim como três picadeiros para exercícios de aquecimento, dispostos em ferradura em redor do perímetro de um vasto terreno arrelvado. Tal como na maior parte dos centros equestres, os estábulos estavam instalados em tendas muito amplas com cocheiras portáteis, todas situadas na parte da frente do recinto. Estas cocheiras só eram ocupadas durante as competições. Durante o resto do tempo, o local ficava absolutamente deserto, no meio de nenhures.

 

Nas traseiras do centro da propriedade situava-se a única estrutura permanente: um edifício de dois pisos, com um aspecto imponente, cuja fachada tinha umas colunas brancas altíssimas. Era nesse edifício que estavam instalados os escritórios da organização hípica, com a secretaria no piso térreo, enquanto o sistema electrónico de som fora instalado no primeiro andar.

 

Do primeiro andar, era possível observar todo o recinto. Era um ponto de observação magnífico, com condições excelentes para qualquer atirador furtivo, caso este pudesse ter-se instalado sem que ninguém desse pela sua presença.

 

Esta construção encontrava-se precisamente no extremo das traseiras da propriedade. Por detrás, havia um canal que se estendia em paralelo e cuja margem, no lado mais afastado, tinha um arvoredo cerrado. No outro lado das árvores, existia um caminho que era utilizado pelos amantes das motas e veículos todo-o-terreno, o que muito desagradava às pessoas que exibiam os seus cavalos de alta-escola. Se uma pessoa tomasse por esse caminho, atravessando o canal, teria acesso a uma escada nas traseiras do edifício.

 

Era mais que certo que os raptores tinham conhecimento de todos estes pormenores. Por alguma razão haviam escolhido aquele lugar. No entanto, pensei que era um local um tanto estranho. Não dispunha de muitos caminhos, quer para se chegar, quer para se sair. Os raptores podiam ver qualquer elemento ameaçador chegar quando este ainda estivesse a alguma distância e vice-versa. Encurralá-los e apanhá-los resumia-se a uma questão de quem tinha mais força. Porque não teriam eles optado por um local movimentado e com muitas pessoas, onde houvesse confusão e inúmeras maneiras de se porem em fuga?

 

Nada de Polícia. Nada de detective. Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

Não havia maneira de aquele assunto poder correr bem.

 

Nessa altura, os raptores já tinham conhecimento do envolvimento do Gabinete do Xerife. Jamais poderiam arriscar-se a aparecer com Erin num local tão descampado como aquele. Eu não imaginava por que razão haveriam de correr o risco de se mostrarem. Concluí que não o fariam.

 

As dezoito horas de domingo. Uma semana depois de Erin Seabright ter sido levada à força. Perguntei-me se o período de tempo decorrido teria algum significado. Também gostaria de saber se a Polícia estaria em força na Urbanização Equestre, na zona rural de Loxahatchee, enquanto o sequestrador largaria o corpo de Erin junto do portão das traseiras do centro equestre, em Wellington... no mesmo sítio onde ela havia sido sequestrada.

 

Comecei a ver a cassete do rapto, na esperança de descortinar alguma coisa que me tivesse passado despercebida da primeira vez, na esperança de ter como que uma revelação repentina.

 

Erin de pé do lado de fora do portão. À espera. Mas de quem? Um amigo? Um amante? Um traficante de droga? Don Jade? Tomas Van Zandt? Ela não parece nervosa quando a carrinha branca se aproxima. Reconheceria o veículo? Pensará que é a pessoa com quem combinou encontrar-se? Será a pessoa com quem combinou encontrar-se?

 

Landry dissera-me que tinha contactado a Brigada de Narcóticos para se inteirar de qualquer possível ligação de Erin Seabright ao mundo dos estupefacientes, para saber se a ocasião em que ela fora apanhada com ecstasy, aquando de uma rusga, fora apenas um caso isolado. Muito gostaria eu de saber o que é que haviam descoberto. Há dois anos atrás, quando eu ainda trabalhava na Brigada de Narcóticos, teria sabido exactamente quem deveria contactar para obter essas informações. Mas no mundo da droga, dois anos é muito tempo. As coisas mudam com muita rapidez. Os traficantes vão parar à prisão, outros mudam-se para Miami e alguns são assassinados. A substituição de pessoal é especialmente célere quando se trata de vender estupefacientes a estudantes liceais. Os traficantes têm de ter uma idade o mais aproximada possível dos seus jovens clientes, caso contrário, estes não confiarão neles.

 

Todavia, fosse como fosse, eu sentia alguma dificuldade em dar muita credibilidade a uma hipótese que se relacionasse com estupefacientes. Se ela fosse uma traficante de cocaína, ou de heroína, o que faria a troco de muito dinheiro, talvez. Mas seria preciso uma grande quantidade de ecstasy para chegar aos trezentos mil dólares, montante que teria originado a encenação desesperada de um rapto com vista à obtenção de um resgate desse valor. O castigo que Erin recebera pelo seu pequeno crime limitara-se a uma repreensão por parte do tribunal para a delinquência juvenilNunca fora acusada de tráfico, mas apenas de posse.

 

Interroguei-me sobre o que Chad Seabright, um estudante de quadro de honra, saberia a respeito do consumo de drogas por parte de Erin. Até que ponto é que a rapariga o teria corrompido. Ele não possuía nenhum álibi credível para a noite do sequestro.

 

Não obstante, Landry não me perguntara nada em relação a Chad.

 

Parece-lhe que o Don Jade possa ser o cúmplice do Van Zandt neste assunto? No rapto!

 

Landry não me fizera esta pergunta por mero acaso. Teria Erin estado no portão para se encontrar com Jade? Seria este o homem mais velho na sua vida? Uma resposta pela afirmativa seria uma boa aposta. Mas, caso isso fosse verdade, então Jade teria dominado Erin, pelo que ela nunca seria uma ameaça, ainda que soubesse o que acontecera na realidade com Stellar.

 

Uma vez mais, pensei no cavalo e na forma como tinha morrido, e no facto de a autópsia ter revelado a existência de um sedativo no seu organismo. Paris não tinha especificado o tipo de substância. Enumerara várias possibilidades: Rompun, Acepromazine, Banamine.

 

O consenso geral indicava que não seria a primeira vez que Jade matava cavalos, tendo conseguido sair-se airosamente dessas situações delicadas. Porém, se isso fosse verdade, decerto não faria a burrice de dar um sedativo ao cavalo antes de o matar. Nunca teria corrido o risco de a necropsia vir a mostrar algo de anormal.

 

E se o que eu atirara a Michael Berne, com o objectivo de o abanar, fosse verdade? Muito gostaria eu de ter resposta a esta pergunta. E se o ódio que Berne nutria por Jade fosse suficiente para querer arruiná-lo? Se o detestasse assim tanto, seria capaz de sacrificar um animal que ele próprio tanto amara, a fim de armar uma cilada a Jade?

 

Berne sabia, tão bem como qualquer outra pessoa, que um sedativo no organismo do cavalo seria um sinal de alarme na óptica da companhia de seguros. A morte do animal Poderia ser atribuída a um acto criminoso. A companhia de seguros jamais pagaria a indemnização. Trey Hughes perderia o quarto de um milhão de dólares. Jade ficaria com a carreira destruída e, muito possivelmente, iria parar à cadeia.

 

Se o que Erin sabia a respeito da morte de Stellar a levara a pensar que Michael Berne é que orquestrara a morte do cavalo, então, este teria tido um motivo para querer ver-se livre da rapariga. Mas porque haveria ele de arriscar um esquema de rapto? Andaria assim tão desesperado por dinheiro? As probabilidades de vir a ser apanhado eram muitas - salvo se tivesse maneira de assacar o rapto a Jade, tal como fizera em relação à morte do cavalo; todavia, eu não estava a ver como é que ele teria conseguido pôr esse plano em prática. E na hipótese de Van Zandt ter participado no sequestro, eu não descobrira nada que estabelecesse uma ligação entre Van Zandt e Berne.

 

Levantei-me da poltrona começando a andar pela casa, tentando destrinçar aquela trama enredada de verdade e especulação.

 

Eu sabia no mais fundo do meu íntimo que Van Zandt era um psicopata, além de ser um vigarista e um assassino. Se ele fosse responsável pela morte de uma rapariga, não seria descabido considerar-se que também fosse responsável pelo desaparecimento de outra jovem. O homem tinha arrogância suficiente para se convencer de que podia raptar alguém e receber o resgate, sem ser apanhado. Mas em quem é que ele confiaria para seu cúmplice? E quem é que depositaria confiança nele?

 

Tudo isto me parecia ser demasiado arriscado para Jade. Também era muito possível que ele próprio fosse um psicopata; contudo, existia todo um mundo de diferenças entre Van Zandt e Don Jade. Van Zandt era absolutamente imprevisível. Por seu lado, Jade era um homem com método e autodomínio. Por que razão maquinaria ele uma tramóia que levaria os outros a ficarem com a impressão de que era um vigarista e um assassino? O que o teria levado a matar Stellar de uma maneira tão atabalhoada que, inevitavelmente, toda a gente concluiria de imediato que era culpado desse crime? Porque se arriscaria a raptar Erin para receber um resgate?

 

Caso tivesse tido necessidade de se livrar dela, porque não arranjar as coisas de modo a que ela, muito simplesmente, desaparecesse? Se tencionasse afirmar que ela saíra da cidade, porque razão não dera sumiço ao automóvel da rapariga? Porquê deixá-lo estacionado nos terrenos do hipódromo, contando com a possibilidade, pouco provável, de ninguém o procurar?

 

Para mim, aquilo não fazia sentido nenhum. Apesar disso, Landry estava convencido de que Jade se encontrava envolvido no assunto. Porquê?

 

Devido à ligação entre Erin e Stellar.

 

Alegadamente, Erin comunicara a Jade que tencionava despedir-se. O que só lhe dissera a ele e a mais ninguém.

 

Jade fora a última pessoa a vê-la. Posteriormente, afirmara que ela se havia mudado para Ocala. Mas isso não era verdade.

 

No entanto, o que é que levaria Jade a inventar uma história como aquela... uma história que podia ser facilmente verificada e, consequentemente, desacreditada por ser mentira?

 

Na minha maneira de ver, nada daquilo fazia sentido. Mas, fosse como fosse, na perspectiva de Landry tinha toda a razão de ser. Que outras informações é que ele teria que eu desconhecia? Que pequeno fio era esse que ligava Don Jade ao crime?

 

Os números de telefone das chamadas efectuadas para casa de Seabright.

 

Era-me detestável conceber que Landry estaria de posse de pormenores que não partilhava comigo. Eu é que lhe tinha facultado aqueles números, mas era ele quem possuía meios para os verificar. Também fora eu quem lhe dera a cassete do rapto, mas era ele que tinha acesso aos técnicos que podiam trabalhar o filme, fazendo grandes planos das imagens mais relevantes. Eu é que sugerira que se contactasse a Interpol, a fim de conhecermos quaisquer antecedentes criminais de Van Zandt. Todavia, sabia que se Landry tivesse iniciado o primeiro contacto com a Interpol, ninguém lhe teria ocultado qualquer informação em relação ao mínimo indício que indicasse Van Zandt como um possível criminoso de natureza sexual.

 

A frustração fervilhava dentro de mim, qual trovoada Prestes a desencadear-se. Estava a ser posta à margem. Mas o caso era meu. Fora a única pessoa a mostrar interesse em tentar ajudar aquela rapariga. Todo o trabalho de sapa fora feito por mim. E, todavia, eu é que era excluída, era a mim quinterditavam o acesso às informações mais relevantes.

 

Estas só me seriam facultadas a conta-gotas, e apenas quando absolutamente necessário; e haviam decidido que não era necessário.

 

E de quem era a culpa disto?

 

Minha.

 

Era minha a culpa por ter deixado de pertencer às forças policiais. O facto de Landry se ter envolvido no assunto também era inteiramente minha culpa. Eu fizera o que era mais acertado, excluindo-me do caso durante o processo.

 

O meu caso. O meu caso. Estas palavras ressoavam-me na cabeça, como as batidas de um tambor, enquanto andava pela casa de um lado para o outro. O meu caso. O meu caso. O caso que eu nunca quisera. O meu caso. O meu caso. Aquilo que servira para reatar a minha vida com o mundo verdadeiro. O mundo de onde eu decidira retirar-me. A vida de que eu tinha desistido.

 

Todas estas emoções em conflito se entrechocavam provocando centelhas, qual faísca de pederneira que inflamasse a minha têmpera. Incapaz de conter aquela tensão, peguei num dos objectos de arte escolhido pelo decorador e arremessei-o com toda a minha força contra a parede.

 

Aquela reacção fez com que me sentisse bem. O impacto satisfez-me. Peguei noutro objecto - uma espécie de bola de madeira pesada que tirei de uma colecção numa taça e lancei-o como se fosse uma bola de basebol. A minha garganta foi rasgada pelo som de um animal selvagem, explodindo para fora da boca. Um barulho tão ensurdecedor, e que se prolongou por tanto tempo, que fiquei com a cabeça a latejar devido ao intenso esforço. Quando terminou, senti-me exausta, como se houvesse um demónio na minha alma que tivesse acabado de ser exorcizado.

 

Encostei-me às costas do sofá, com a respiração arquejante, e olhei para a parede. O painel de madeira ficara com duas mossas mais ou menos à altura da cabeça. Pareceu-me um bom lugar para pendurar um quadro.

 

Deixei-me cair numa poltrona, levando as mãos à cabeça; durante uns bons dez minutos não pensei em absolutamente nada. Pouco depois, levantei-me, fui buscar as chaves e a arma, e saí de casa.

 

Uma porra é que eu permitiria que James Landry me pusesse à margem! Este caso pertencia-me. Estava metida nele até ao fim.

 

O fim do caso ou o meu próprio fim - o que chegasse primeiro.

 

Não existe maneira mais segura de dizer qual a direcção do vento do que cuspir para o ar.

 

Os domingos são dias especiais no hipódromo de Wellington. Durante o Festival Equestre de Inverno, as competições do grande prémio de saltos decorrem nas tardes de domingo. Muito dinheiro, grandes multidões.

 

Um pouco mais abaixo, na mesma estrada do campo de pólo, onde à mesma hora decorria uma competição, as bancadas e a área em redor do campo denominado Internationale estavam pejadas de centenas de entusiastas da modalidade, proprietários de cavalos, cavaleiros e tratadores todos presentes para admirar os melhores de entre os melhores a exibirem-se num percurso cheio de obstáculos, por um prémio superior a cem mil dólares.

 

As equipas de filmagem do Canal Fox Sports pontilhavam a paisagem. As muitas tendas de comidas e bebidas estendiam-se pela passagem superior entre o Internationale e as pistas para cavalos de caça, mais adiante, fervilhando de gente desejosa de se separar do seu dinheiro para a troca de tudo o que lhe aparecesse pela frente, desde sorvetes a jóias com diamantes, ou mesmo um cachorrinho jack-russel Ao mesmo tempo que o grande prémio tinha lugar, realizavam-se outros eventos de menor importância em meia dúzia de recintos mais pequenos em redor do hipódromo.

 

Conduzi em direcção ao portão reservado aos que exibiam os seus animais, passando pela correnteza de tendas arrumando o automóvel de marcha atrás num espaço três tendas antes da de Jade. Eu não tinha maneira de saber se Van Zandt me teria denunciado aos associados de Jade. pensei que, quanto a mim, isso não teria grande importância. A minha paciência para continuar a alinhar em mais jogadas estava a esgotar-se.

 

Decidira vestir-me como uma diletante. Calças de ganga e sapatos de ténis. Uma T-shirt de algodão preto e boné de basebol. Coldre de cintura e Glock aninhada na região lombar por baixo da camisola solta por fora das calças.

 

Contornando a tenda de Jade pelas traseiras, entrei pelo mesmo sítio que já utilizara na primeira noite em que ali fora. Percorri o corredor que dividia as cocheiras de Jade das de um outro treinador de cavalos, onde vi pessoas que conversavam, riam e gritavam umas às outras, pessoas que eu não conhecia, enquanto se preparavam para as suas lições. Os tratadores, com botas bem engraxadas, colocavam os arreios impecavelmente limpos nos cavalos, entrançando-lhes as crinas.

 

Mais abaixo, nessa fileira, directamente por trás das cocheiras de Jade, os cavalos de um outro treinador permaneciam, irrequietos, nas respectivas cocheiras. Dois destes já haviam cumprido a sua missão do dia, com as crinas ainda onduladas depois de as tranças terem sido desfeitas. Os demais ainda não tinham visto qualquer escova nesse dia. Não avistei sinais de nenhum moço de estrebaria que andasse pelas redondezas.

 

Com a pala do boné puxada para baixo, peguei numa forquilha e num carrinho de mão, que servia para acarretar esterco, e dirigi-me para uma dessas cocheiras, abri a portinhola e entrei. O ocupante da cocheira mal me lançou um olhar de esguelha. De cabeça baixa, comecei a revolver a Palha da cama com a forquilha, seguindo até à parte de trás da cocheira, onde comecei a espreitar por entre a estrutura de ferro e a lona da parede da tenda.

 

Na cocheira mais atrás, avistei uma rapariga com uns cabelos avermelhados, todos espetados, em cima de um banquinho, enquanto entrançava as crinas de Park Lane. Os seus dedos trabalhavam rapidamente e com muita habilidade. Colocou as tranças no seu lugar, prendendo as pontas das crinas com um fio preto e grosso, cada trança perfeita e achatada contra o pescoço do cavalo. Enquanto trabalhava, a cabeça oscilava ligeiramente de um lado para o outro acompanhando o ritmo de uma música que só ela podia ouvir através de um par de auscultadores.

 

Uma das actividades mais requisitadas durante a temporada equestre de Inverno é o entrançamento de crinas e caudas. Com quatro mil cavalos no recinto, precisando a maior parte de trabalhos de entrançamento para as exibições, e dada a escassez de pessoal de estrebaria, era possível a um bom entrançador, homem ou mulher, ganhar uma maquia bastante jeitosa durante os dias em que os cavalos competiam. Havia raparigas que não faziam mais nada além de andarem de cavalariça em cavalariça, começando a trabalhar antes do amanhecer, entrançando crinas e caudas até que os dedos não conseguiam fazer mais nada. Dependendo da habilidade profissional, podiam dar-se ao luxo de cobrar trinta e cinco a cinquenta dólares por cavalo. Uma boa entrançadora pode arrecadar várias centenas de dólares por dia em dinheiro, caso os clientes queiram fazer negócio dessa forma.

 

A rapariga que entrançava o cavalo de Jade mantinha o olhar fixo na sua tarefa, com dedos que davam a impressão de voar. Nem sequer reparou na minha presença.

 

Paris andava pelo corredor de um lado para o outro, percorrendo a distância defronte da cocheira desse cavalo, enquanto falava pelo telemóvel. Estava vestida para montar em competição, com uma blusa elegante de um verde cor de salva. Não vi sinais de Jade nem de Van Zandt na área mais próxima.

 

Duvidava que Landry tivesse levado qualquer deles para a esquadra. Não tomaria qualquer iniciativa antes da entrega do resgate. Se ainda existisse alguma possibilidade de obterem o dinheiro, os raptores teriam um incentivo para manter Erin com vida - desde que ainda não a tivessem aniquilado. A menos que o que Landry possuía para acusar Jade fosse inabalável, levá-lo sob prisão seria uma medida demasiado arriscada. Ele continuava sem ter nada de substancial contra Van Zandt. Se detivesse um suspeito, o outro sequestrador continuaria a ter total liberdade de movimentos para fazer o que lhe aprouvesse com Erin. Caso soubesse que o parceiro fora detido pela Polícia, era possível que entrasse em pânico, matando a rapariga e pondo-se em fuga.

 

Landry tinha de jogar com todas as probabilidades aquando da entrega do resgate, esperando que os raptores aparecessem, trazendo Erin consigo, ainda que soubesse que as probabilidades estavam contra ele.

 

Não conseguia ouvir com clareza suficiente a conversa que Paris mantinha através do telemóvel. Mas ela não me parecia perturbada. A entoação da sua voz elevava-se e descia como uma música. Riu-se umas duas vezes, exibindo um sorriso rasgado e radiante.

 

Com a forquilha, atirei com dois montes de excrementos para dentro do carrinho de mão, passando à cocheira seguinte, onde repeti o processo. Olhando através da lona e do poste, avistei Javier, que saía da sala dos arreios de Jade, trazendo os de Park Lane nos braços.

 

- Desculpe? Desculpe?

 

Sobressaltei-me ao ouvir aquela voz que soou nas minhas costas, virei-me e deparei com uma mulher de idade que espreitava, olhando-me fixamente. Exibia um cabelo cor de damasco com um penteado tão teso, devido ao excesso de laca, que mais parecia um capacete; tinha o rosto demasiado maquilhado e usava uma quantidade excessiva de jóias em ouro, e tudo isto era completado com uma expressão de matrona da sociedade.

 

Tentei mostrar-me confusa.

 

- Pode dizer-me onde é que ficam as cavalariças de Mister Jade? - perguntou-me ela.

 

- As cavalariças de Jade? - repeti, expressando-me com um sotaque francês muito carregado.

 

- Os estábulos de Mister Don Jade - repetiu ela em voz alta, falando com uma dicção perfeita.

 

Apontei para a parede de lona atrás de mim e retomei a tarefa de apanhar esterco com a forquilha.

 

A mulher agradeceu-me e saiu pelo fundo da tenda. Momentos depois, ouvi a voz de Paris Montgomery.

 

- Jane! Estou tão contente por te ver!

 

Era Jane Lennox. A proprietária da Park Lane. A que telefonara após a morte de Stellar, falando na possibilidade de contratar outro treinador para o seu cavalo.

 

Através da abertura por onde eu continuava a espiar, observei as duas mulheres que se abraçavam: Paris dobrada para a frente a fim de colocar os braços à volta da outra mulher. Incapaz de se aproximar muito devido aos seios amplos de Jane Lennox.

 

- Lamento imenso que o Don não esteja cá, Jane. Foi retido por causa de qualquer coisa relacionada com o assassínio daquela pobre rapariga. Telefonou para me dizer que não poderá chegar a horas de montar a Park Lane durante a exibição. Eu vou substituí-lo. Só espero que este contratempo não a deixe muito decepcionada. Eu sei que, para estar aqui, fez uma longa viagem de avião de Nova Jérsia a fim de ver o Don a montar a sua égua...

 

- Paris, não tem nada de que se desculpar. Você monta maravilhosamente. Não ficarei desiludida quando a montar durante a exibição.

 

Ambas entraram na sala dos arreios, pelo que as suas vozes só se ouviam em surdina. Desloquei-me para a cocheira que ficava directamente atrás delas, de onde podia ouvir através da parede de lona. As vozes das duas iam de um sussurro a um murmúrio e vice-versa, com o volume do tom a aumentar na mesma proporção da emoção.

 

-... Sabe bem que eu adoro a maneira como lida com a Parkie, mas sou obrigado a dizer-lhe, Paris, que me sinto bastante mal com o que se está a passar. Pensei que ele tinha posto o seu passado para trás das costas quando foi para França...

 

- Compreendo o que está a dizer, mas ainda tenho esperanças em que reconsidere, Jane. Ela é uma égua tão boa. Tem um futuro tão brilhante pela frente.

 

- Também você, minha querida. No meio disto tudo, tem de pensar no seu próprio futuro. Eu sei que é muito leal ao Don, mas...

 

- Peço desculpa! - bradou uma voz por trás de mim com brusquidão. - Quem é você? O que está a fazer aí -

 

Virei-me para trás, deparando com uma mulher com um cabelo grisalho bastante espesso e uma fisionomia semelhante a uma passa amarela muito mirrada.

 

- O que é que pensa que está a fazer aqui?! - repetiu num tom autoritário, abrindo a portinhola da cocheira. Vou chamar os serviços de segurança.

 

Uma vez mais, afivelei uma expressão confusa, encolhi os ombros e perguntei-lhe em francês se aquelas eram as cocheiras de Michael Berne. Aleguei que me tinham dito que devia limpar as cocheiras de Michael Berne. Aquela não era a cavalariça dele?

 

O nome de Berne foi a única coisa da minha explicação que ela compreendeu.

 

- Michael Berne? - perguntou ela com uma expressão muito tensa. - O que é que ele tem a ver com isto?

 

- Eu vir trabalhar para o Michael Berne - respondi num inglês atamancado.

 

- Mas estes cavalos não são dele! - ripostou ela. O que é que se passa consigo? Não sabe ler? Enganou-se na cavalariça.

 

- Enganei-me? - perguntei.

 

- Está na cavalariça errada - insistiu a mulher em voz alta. - Michael Berne. Por ali! - acrescentou aos gritos, acenando vagamente numa direcção pouco definida.

 

- Peço muita desculpa - disse eu saindo da cocheira e fechando a portinhola. - Peço desculpa. - Pus a forquilha de lado, encolhi os ombros novamente, abri as mãos e tentei mostrar-me envergonhada.

 

- Michael Berne - repetiu a mulher uma vez mais, acenando como se fosse uma participante demente num concurso de charadas.

 

- Merci, merci - agradeci retrocedendo. De cabeça baixa e ombros descaídos, com a pala do boné puxada para baixo, saí pelo fundo da tenda. Vi Paris que se afastava montada na Park Lane, o tipo de mulher jovem cuja fotografia costuma ser publicada na capa da Town and Country. O carrinho eléctrico de Jade ia atrás dela, levando Jane Lennox, com o seu cabelo cor de damasco, penteado em forma de bola de algodão-doce, sentada ao volante.

 

Sorrateira, voltei à tenda pela correnteza de cocheiras de Jade. Javier, que aparentemente fora promovido, levava pelas rédeas o cavalo de pelagem cinzenta de Trey Hughes para a cocheira onde os animais eram aperaltados. Esperei que ele começasse a trabalhar no cavalo e só depois é que, sub-repticiamente, me esgueirei para a sala dos arreios. A equipa de perícia criminal já passara tudo a pente fino no dia anterior. Os resíduos do pó fuliginoso que servia para a recolha de impressões digitais haviam ficado agarrados à superfície dos armários. Os restos da fita amarela usada para delimitar o local do crime ainda estavam pendurados nos tubos da estrutura da tenda.

 

Não me agradava que Jade estivesse ausente, uma vez que a entrega do resgate seria efectuada dentro de apenas duas horas. De que pormenor relativo à morte de Jill Morone é que ele teria tratado pessoalmente? Jade não quisera perder o seu precioso tempo a responder às perguntas sobre ela, quando os agentes de polícia desenterraram o seu cadáver oculto pelo monte de esterco. A função dele era montar cavalos, e não incomodar-se com pormenores. Os pormenores faziam parte das tarefas que cabiam a Paris Montgomery na qualidade de sua assistente. Os pormenores, o trabalho de sapa, as relações públicas, as coisas do dia-a-dia. Todas as pequenas chatices e nenhuma quota-parte da glória. O fado da assistente de um treinador de cavalos.

 

Mas não naquele dia. Paris Montgomery montaria a estrela dos estábulos de Jade durante uma exibição, sendo observada pela muito abastada proprietária do animal. Paris estava sempre pronta para a conversa fiada, mas os elogios que tecia a Don Jade, assim como quando o defendia, davam a impressão de ostentarem sempre o reverso da medalha. Paris passara três anos a trabalhar à sombra de Don Jade, gerindo a sua actividade, tratando com os clientes, ensinando os cavalos do homem. Se por acaso ele saísse de cena, era muito possível que Paris Montgomery tivesse a sua grande oportunidade. Por outro lado, ela não era conhecida no meio do hipismo de competição internacional. O seu talento nos hipódromos ainda estava por ser reconhecido. Iria necessitar do apoio de dois patronos abastados para que isso viesse a concretizar-se.

 

Porém, dentro em pouco, ela montaria a Park Lane no hipódromo, com Jane Lennox a assistir, a qual se encontrava à beira de abandonar o navio de Jade.

 

Olhei em redor, observando a cocheira, mantendo um olho na porta, sempre à espera de ser apanhada. Paris deixara o guarda-fatos aberto. As camisas impecavelmente engomadas e os casacos estavam pendurados no varão. As calças de ganga e a camisola de algodão haviam sido atiradas para o chão. No fundo do guarda-fatos, reparei num saco em pele semioculto por uma blusa descuidadamente atirada.

 

Voltando a olhar para a porta, agachei-me e passei revista ao conteúdo do saco, sem encontrar nada de interesse ou de valor. Uma escova de cabelo, o horário de uma exibição hípica e uma caixa que continha produtos de beleza. Não encontrei nenhuma carteira nem telemóvel.

 

No lado direito do guarda-fatos, por baixo de um conjunto de gavetas, vi uma pequena caixa de plástico com uma fechadura de segredo, fixa com porcas ao fundo do guarda-fatos. Tentei a porta. A engrenagem do segredo estava no seu lugar; todavia, a caixa era feita de um material fraco com dobradiças do mesmo material, muito pouco resistentes, que cederam quando puxei a pequena porta. Um ladrão casual teria desistido, optando por um dos muitos armários abertos onde as malas de mão haviam sido deixadas descuidadamente para quem as quisesse ver.

 

Mas eu não era um gatuno casual.

 

Voltei a olhar de fugida para a porta da cocheira, após o que comecei a trabalhar no cofre de plástico, tentando forçar o lado das dobradiças. Oscilava e cedia, atormentando-me com a possibilidade de poder vir a partir-se. Mas então comecei a ouvir o toque de um telemóvel, a abertura da ópera Guilherme Tell. O telemóvel de Paris Montgomery. Mas o som não vinha do interior do cofre que tinha à minha frente, mas sim de uma gaveta acima da minha cabeça.

 

Com a fralda da camisola de algodão, limpei as minhas impressões digitais da porta do cofre e endireitei-me, começando a abrir as gavetas por cima da caixa de plástico.

O mostrador do telemóvel identificou a pessoa que estava a ligar: o Dr. Ritter. Desliguei o telefone e prendi-o no cós das calças de ganga, ajeitando a T-shirt de modo a cobri-lo. Fechei a gaveta e apressei-me a sair da cocheira.

 

Javier encontrava-se na área onde os cavalos eram cuidados, tratando do cinzento, muito concentrado no que estava a fazer, passando uma almofada de borracha pela garupa do animal. Este dormitava, aparentemente, desfrutando do tratamento como alguém desfrutaria de uma boa massagem.

 

Aproximei-me da soleira da cocheira, apresentando-me educadamente em espanhol, e perguntei a Javier com boas maneiras se sabia onde é que eu poderia encontrar Mr. Jade.

 

Ele olhou para mim pelo canto do olho, dizendo-me que não sabia.

 

Meti conversa, contando-lhe que ultimamente tinham acontecido muitas coisas más por ali.

 

Sim, muito más, concordou ele.

 

O que tinha sucedido à Jill era horrível, continuei.

 

Terrível, secundou ele.

 

Os detectives tinham-lhe feito perguntas sobre o que ele poderia saber?

 

Ele não queria nada com a Polícia. Não tinha nada a dizer. Nessa noite, Javier estivera em casa da família de um primo. Não sabia nada.

 

Era uma pena que Mr. Jade não tivesse passado pelas cavalariças nessa noite para a inspecção nocturna habitual; talvez tivesse conseguido impedir que aquele homicídio fosse cometido.

 

Ou a senhora Montgomery, acrescentou Javier enquanto continuava a escovar a pelagem do animal.

 

É claro que havia pessoas que pensavam que o senhor Jade era o culpado.

 

As pessoas gostavam sempre de pensar o pior.

 

Confiei-lhe que também sabia que os detectives tinham conversado com Van Zandt. O que é que ele achava disso?

 

Javier alegou que só pensava no seu trabalho, que não era pouco desde que as duas raparigas tinham desaparecido.

 

Sim, a outra rapariga também desaparecera. Ele conhecia bem Erin Seabright?

 

Não, disse que não a conhecia. Para aquelas raparigas era como se Javier não existisse porque não sabia falar inglês.

 

O que dificultaria muito a situação dele, dissera eu. As pessoas não mostravam o devido respeito. Nunca passava pela cabeça dessa gente que uma pessoa pudesse sentir a mesma coisa em relação a eles, uma vez que não sabiam falar espanhol.

 

As raparigas mais novas só pensavam nelas próprias e nos homens que queriam.

 

Perguntei-lhe se ele achava que Erin tinha andado a atirar-se a Mr. Jade.

 

Sim, confirmou Javier.

 

E o senhor Jade? Tinha retribuído?

 

Javier não me deu resposta.

 

Ou, quem sabe, talvez Van Zandt fosse o homem em questão, não?

 

Javier respondeu-me que se limitava a fazer o seu trabalho. Não se metia nos assuntos dos outros.

 

Concordei que aquela era a melhor maneira de agir. Porquê arranjar problemas por causa de terceiros? Bastava olhar para o que acontecera a Jill. Ela dissera que sabia qualquer coisa a respeito da morte de Stellar, e sabia-se o que lhe acontecera.

 

Os mortos não falam.

 

O seu olhar desviou-se de mim. Voltei-me para trás, deparando com Trey Hughes, que se aproximava.

 

- Com a breca, Ellie, você é uma mulher de muitos talentos - disse ele, parecendo-me esmorecido, sem mostrar nada da jovialidade motivada pela embriaguez costumeira. A falar línguas estrangeiras.

 

- Uma língua aqui, uma língua ali - repliquei com um encolher de ombros. - Não é nada que qualquer moça educada num colégio interno não tenha aprendido.

 

- Tudo o que eu sei falar é inglês.

 

- Não veio montar? - perguntei-lhe, olhando para o seu vestuário. Calças de caqui, um pólo e sapatos de sola de borracha.

 

- A Paris é que ficou de o montar hoje - retrucou ele, passando por mim para afagar o focinho do cavalo pardo. Só ela é que pode desfazer toda a confusão em que o meti durante a última volta que dei nele na sexta-feira. - Hughes pôs-se a olhar para o meu vestuário, soerguendo um sobrolho que denotava estranheza. - Você mesma, hoje não se parece exactamente com a rapariga do costume.

 

- O meu disfarce é um traje muito comum entre o cidadão comum - repliquei estendendo as mãos.

 

Trey brindou-me com um sorriso indolente. Perguntei a mim mesma se ele teria apanhado o elevador do estado de espírito na direcção descendente, com uma pequena ajuda de alguma substância química.

 

- Ouvi um pequeno rumor a seu respeito, minha menina - adiantou ele observando-me de soslaio enquanto tirava feno de um fardo para dar ao seu cavalo.

 

- A sério? Espero que seja picante. Estarei eu a viver um romance escaldante com alguém? Será consigo?

 

- E está? Isso é o pior de se envelhecer - replicou. Eu ainda sou capaz de me divertir, mas depois não me lembro de nada do que aconteceu.

 

- A vantagem é que assim, para si, as coisas são eternas novidades.

 

- Sempre a ver o aspecto positivo da situação.

 

- Vamos lá a saber, o que é que ouviu dizer de mim? perguntei, mais interessada na pessoa que teria dado voz ao boato. Seria Van Zandt? Bruce Seabright? O primeiro não hesitaria em espalhar o que quer que fosse para pôr as pessoas contra mim, desde que pudesse aproveitar-se disso. Quando a Seabright, este teria falado com Hughes porque dava mais importância aos clientes do que à enteada.

 

- Disseram-me que você não é quem aparenta ser explicou Hughes.

 

- Conhece alguém que o seja? - perguntei.

 

- Bom argumento, minha querida - retrucou ele saindo da cocheira; ambos nos encaminhámos para a saída da tenda, onde nos detivemos a olhar para fora. O céu tinha ficado pardacento, ameaçando chuva. No outro lado da rua, a água de um pequeno lago artificial ondulou, prateada, sob o efeito de uma brisa que soprou rente à superfície.

 

- Portanto, o que é que, em princípio, eu devia ser... uma vez que não sou o que aparento? - perguntei.

 

- Uma espia - replicou Trey. Não me pareceu estar aborrecido, mas sim estranhamente calmo. Talvez ele também já estivesse farto daquele jogo. Muito gostaria eu de saber até que ponto era ele um jogador central em toda aquela situação ou se, muito simplesmente, se deixara arrastar ao sabor da corrente de outra pessoa.

 

- Uma espia? Mas isso é deveras empolgante! - exclamei. - Espio em prol de um país estrangeiro? Para uma célula terrorista?

 

Hughes respondeu-me com um encolher de ombros muito enfático, inclinando a cabeça de lado.

 

- Eu sabia que já a conhecia de qualquer lado - disse l por fim, muito calmo. - Mas não fui capaz de dizer de onde. O velho cérebro deixou de funcionar com a celeridade de antigamente.

 

- A mente é uma coisa terrível de se perder.

 

- Por mim, faria um transplante cerebral, mas esqueço-me constantemente de telefonar - redarguiu Hughes na brincadeira.

 

De facto, era uma coisa terrível, pensei enquanto estávamos ali, lado a lado. Trey Hughes tinha tudo a seu favor: era um homem bem-parecido e com uma argúcia rápida, com dinheiro para fazer tudo o que lhe apetecesse. Não obstante, ali estava o que decidira fazer com a sua vida: era l um indivíduo esbanjador, um alcoólico que envelhecia. Engraçado, reflecti, as pessoas que me conheceram ao longo da minha vida poderiam dizer algo muito similar: Ela tinha todas as vantagens, veio de uma família muito boa e, no entanto, atirou-lhes com isso tudo à cara. Porquê?

 

Olhem para ela agora. Que pena.

 

Nunca sabemos o que se passa no coração das pessoas,

 

o que é que lhes dá força, o que é que as faz desistir da vida, como definem a coragem, a rebeldia ou o êxito.

 

- De onde é que acha que me conhece? - perguntei-lhe, interrompendo os meus pensamentos.

 

- Conheço o seu pai. Tive oportunidade de solicitar os seus serviços em várias ocasiões. O nome fez um clique na minha cabeça. Estes. ele. Elena Estes. Você costumava ter uma cabeleira magnífica - recordou ele. Tinha uma expressão saudosa enquanto revisitava as brumas da sua memória. - Houve uma pessoa amiga que me disse que você agora trabalha como detective particular. Imagine-se uma coisa dessas!

 

- Isso não é verdade. Telefone para a associação profissional e pergunte. Não me conhecem seja sob que nome for.

 

- É um bom negócio - continuou ele, ignorando o meu desmentido. - Deus sabe que por aqui nunca há escassez de segredos. As pessoas estão dispostas a fazer tudo e mais alguma coisa por dinheiro. -Como matar um cavalo? - perguntei.


- Matar um cavalo. Matar uma carreira. Matar um casamento.

 

- Matar uma pessoa? - sugeri.

 

- A história mais antiga do mundo: ganância

 

respondeu ele sem se mostrar chocado perante a minha sugestão.

 

- Sim. E acaba sempre da mesma maneira. Mal.

 

- Para alguém - retorquiu ele. - O truque está em fazer com que não se seja esse alguém.

 

- Que personagem é que o senhor representa nesta história, Trey?

 

- O palhaço triste - respondeu ele, tentando esboçar um sorriso esmorecido. - Não há ninguém no mundo que não goste de um palhaço triste.

 

- Eu só estou interessada no vilão - retorqui. - Pode dar-me alguma pista que me indique a direcção certa?

 

- Claro que sim. Vá até à sala dos espelhos e vire à esquerda - replicou Hughes tentando rir-se, mas faltou-lhe a energia para isso.

 

- Temos uma rapariga morta, Trey. A Erin Seabright foi raptada. Isto não é nenhum jogo.

 

- Não. Tem mais semelhanças com um filme.

 

- Se o senhor souber alguma coisa, agora é a altura de falar - acrescentei.

 

- Minha doçura, se eu soubesse alguma coisa, não estaria onde hoje me encontro - replicou Trey fixando o olhar na água do pequeno lago. Dito isto, começou a afastar-se de mim, entrando no automóvel descapotável e arrancando com lentidão. Fiquei a vê-lo seguir em frente, concluindo que me enganara no princípio de toda aquela situação, quando afirmara que tudo nos apontava para Jade. Na verdade, tudo nos levava de volta a Trey Hughes: o negócio dos terrenos com Seabright, Erin ter ido trabalhar para Jade e, finalmente, Stellar. Tudo isto nos conduzia a Trey.

 

Consequentemente, a pergunta em que se poderia apostar bom dinheiro era: estaria ele no centro da tempestade porque era a tempestade, ou ter-se-ia a tempestade desencadeado em seu redor?

 

Trey estava sempre atento às raparigas bonitas. O que não era segredo para ninguém. Só Deus saberia quantos casos amorosos tivera ao longo da sua vida. Mantivera um romance com Stella Berne enquanto Michael era treinador dos seus cavalos. Trey estivera com ela na noite em que a mãe falecera. Face a isto, não era muito difícil deduzir que se interessara por Erin. Mas rapto? E que dizer quanto a Jill Morone?

 

Não era capaz de conceber que ele houvesse chegado a tais extremos. Não queria imaginar uma coisa dessas. Monte Hughes III, a minha primeira grande paixoneta.

 

Conheço o seu pai. Tive oportunidade de solicitar os seus serviços em várias ocasiões.

 

O que diabo é que ele quisera dizer com aquilo? Por que razão teria necessitado dos serviços de um advogado especializado em direito criminal do calibre do meu pai? E como é que eu poderia encontrar resposta a esta pergunta? Telefonando ao meu pai, decorridos tantos anos de um silêncio feito de azedume, para lhe perguntar?

 

Então, paizinho, esqueça-se de que o provoquei sempre que tive oportunidade para isso, além de ter virado costas às minhas qualificações académicas para ser polícia. E esqueçamos também que sempre foi um pai desinteressado e incompetente, que sempre se esteve nas tintas para mim, tendo ficado decepcionado comigo pelo simples facto de eu não ser sua filha biológica. Isso são águas passadas. Agora diga-me por que motivo é que o Trey Hughes precisou de recorrer às suas estimadas capacidades profissionais.

 

Havia dez anos que eu e o meu pai não trocávamos palavra. E não era agora que isso iria acontecer.

 

Perguntei-me se Landry teria interrogado Trey. Ter-lhe-ia ocorrido introduzir o nome dele na base de dados por uma questão de simples rotina? Todavia, Landry nunca me fizera nenhuma pergunta sobre Trey Hughes, apenas sobre Jade.

 

Fui para o meu carro, sentei-me e esperei. Não tardaria muito para que Paris Montgomery montasse o cavalo cinzento de Hughes. Em princípio, regressariam ao estábulo para analisar os exercícios equestres efectuados. E mais tarde, quando ele abandonasse o hipódromo, eu tencionava não lhe largar os calcanhares.

 

Para mim, Trey Hughes tinha acabado de se transformar no centro do universo. Tudo o que acontecia girava em torno dele. E eu tencionava descobrir porquê.

 

         O HIPÓDROMO DA URBANIZAÇÃO EQUESTRE - PÔR DO SOL

 

Espaços amplos, abertos em três lados. Arvoredo e um canal ao fundo da propriedade. Uma estrada asfaltada de traçado sinuoso que passa pela parte da frente. Não se vê ninguém, mas os polícias encontram-se presentes, embora ocultos.

 

Um automóvel preto que se aproxima e estaciona defronte do portão. Bruce Seabright sai do carro e olha em redor. Tem uma expressão irritada e está nervoso. Pensa que aquilo é uma armadilha.

 

E tem razão.

 

Abre o porta-bagagens, donde retira dois grandes sacos maleáveis de um material azul. Passa os sacos por cima do portão e depois ele próprio salta para o outro lado, pega nos sacos e, uma vez mais, olha à sua volta. Procura um sinal qualquer, uma pessoa. Talvez esteja mesmo à espera de ver Erin, ainda que se sentisse muito satisfeito se nunca mais voltasse a pôr-lhe a vista em cima. Começa a percorrer o caminho particular que dá acesso ao edifício, caminha com relutância. Mostra a expressão de um homem que se urinará pelas calças abaixo ao primeiro barulho inesperado.

 

A meio caminho do edifício detém-se, imobiliza-se e fica à espera. Em movimentos lentos, descreve um círculo girando sobre si próprio. Interroga-se quanto ao que acontecerá a seguir. Pousa os sacos no chão e vê as horas no relógio de pulso.

 

Dezoito horas e cinco minutos.

 

A escuridão fecha-se sobre o dia. As luzes dos candeeiros de rua são ligadas, emitindo um zunido característico. A voz, a mesma que é electronicamente distorcida e que já escutou aquando dos telefonemas, começa a ouvir-se através do sistema de altifalantes.

 

A VOZ

 

- Deixe os sacos no chão.

 

BRUCE

 

- Onde é que está a rapariga?

 

A VOZ

 

- Deixe os sacos no chão.

 

BRUCE

 

- Quero ver a Erin!

 

A VOZ

 

- Na caixa. Pista um. Na caixa. Pista um.

 

BRUCE

 

- Que caixa. Que pista?

 

Ele está agitado, não sabe para que lado se virar. Desagrada-lhe sobremaneira não se sentir senhor da situação. Não quer deixar o dinheiro. Olha para as duas pistas mais próximas do edifício, optando pela que fica à sua direita. Leva os sacos consigo e dirige-se para lá, posicionando-se a um canto.

 

BRUCE

 

- Que caixa? Não estou a ver nenhuma caixa!

 

Deixa-se ficar onde está, obviamente impaciente. Cada vez está a ficar mais escuro. Por uns momentos, o seu olhar fixa-se no lugar do juiz de provas - um pequeno abrigo de madeira - num dos extremos da pista, decidindo encaminhar-se para aí.

 

BRUCE

 

- Erin? Erin!

 

Cautelosamente, contorna o pequeno abrigo, correndo o risco de alguém saltar de lá de dentro para o alvejar ou para o esfaquear. O corpo de Erin até poderá ser atirado cá por fora, caindo no chão.

 

Mas não acontece nada disso.

 

Muito devagar, Bruce Seabright começa a aproximar-se da portinhola, abre-a e dá um salto para trás.

 

Não acontece nada.

 

BRUCE

 

- Erin...? Estás aí dentro?

 

Não obtém resposta.

 

Lentamente, pousa os sacos no chão e, muito devagar, encaminha-se uma vez mais para o abrigo; acaba por entrar. No interior, Bruce não encontra ninguém. Alguém deixara uma cassete de vídeo no chão. Numa etiqueta branca, e escrito a negro em letras de imprensa, lê: PUNIÇÃO.

 

A VOZ

 

- Você quebrou as regras.

 

A rapariga é que pagará o preço.

 

Os agentes de polícia começam a aparecer. Vários deles dirigem-se para as escadas do edifício, que sobem a correr.

 

Arrombam a fechadura da porta, abrindo-a com um pontapé e entrando de rompante aos gritos e de armas em punho. Os feixes de luz projectados pelas lanternas percorrem aquele espaço. A sala está deserta.

 

Quando se aproximam da consola do equipamento de som, instalada por baixo de um conjunto de janelas que permitem que se veja toda a extensão do recinto sem qualquer obstáculo, avistam um temporizador muito simples para ligar os mecanismos precisamente às dezoito horas e cinco minutos.

 

A cassete continua a ouvir-se.

 

A VOZ

 

- Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

A voz ecoa através do vazio da noite.

 

Trey Hughes não voltou às cavalariças de Don Jade.

 

Esperei no meu carro, vendo as horas, ao que me parecia, de três em três minutos, enquanto os ponteiros avançavam inexoravelmente a caminho das dezoito horas. Javier levou o cavalo cinzento, tapado por uma manta Lucky Dog, para fora da cocheira, tendo regressado com Park Lane pelas rédeas. Paris e Jane Lennox voltaram no carrinho eléctrico; Lennox entrou num Cadillac dourado, saindo do hipódromo.

 

Voltei a ver as horas no meu relógio: dezassete horas e cinquenta e três minutos.

 

A alguns quilómetros dali, num outro recinto reservado a actividades equestres, Landry e os seus agentes da Brigada de Furto e Homicídio já teriam ocupado as suas posições, esperando que os raptores chegassem ao local.

 

Eu queria ter estado presente para ver como é que a entrega do resgate se efectuaria, mas sabia de antemão que não permitiriam sequer que me aproximasse do local. Também queria saber do paradeiro de Van Zandt e de Don Jade, inteirar-me do que estariam a fazer, quem é que os manteria sob vigilância. Desejava igualmente saber onde Trey Hughes teria ido. Queria que houvesse alguém que me mantivesse ao corrente destes acontecimentos. Queria ser eu a chefiar a investigação daquele caso.

 

O fluxo de adrenalina que costumava sentir noutros tempos encontrava-se presente, acelerando o meu metabolismo, fazendo com que sentisse um zunido de electricidade que me atravessava por baixo da pele. Dando-me a sensação de que estava viva.

 

Entretanto, Paris saiu da cavalariça, já vestida com as suas roupas do dia-a-dia, entrou num Infiniti verde e dirigiu-se para o acesso reservado aos veículos pesados. Liguei o motor do meu automóvel e fui no seu encalço, deixando espaço para que uma pequena camioneta de caixa aberta se metesse de permeio entre nós duas. Chegada ao cruzamento de Pierson, ela virou à esquerda e começámos a percorrer a estrada sinuosa que circunda Wellington, atravessando Binks Forest.

 

Àquela hora, Molly estaria em casa dos Seabright, encolhida a um canto como um ratinho assustado, com os olhos arregalados e ouvidos muito atentos, contendo a respiração enquanto aguardava ansiosamente por qualquer notícia sobre a situação de Erin, desesperada por saber como é que a entrega do resgate havia corrido.

 

Quem me dera poder ter estado com ela para a confortar, tanto por ela como por mim própria.

 

Deixei-me ficar para trás quando Paris parou o carro ao chegar a Southern - um entroncamento com uma muito movimentada estrada que segue de oriente para ocidente, com Palm Beach numa ponta e a zona rural na outra. Continuou em direcção a Loxahatchee, prosseguindo pela estrada secundária e entrando pelas sombras de um denso arvoredo.

 

Mantive os olhos presos nas luzes traseiras do Infiniti, compreendendo imediatamente que nos dirigíamos para a Urbanização Equestre.

 

Senti a espinha atravessada por uma sensação arrepiante de déjà vu. A última vez que percorrera aqueles caminhos secundários à noite, ainda trabalhava como detective da Brigada de Narcóticos. A caravana dos irmãos Golam não se encontrara muito longe dali.

 

As luzes de travagem do Infiniti foram accionadas sem aviso prévio do pisca-pisca.

 

Abrandei e olhei pelo meu espelho retrovisor quando os faróis de um veículo atrás de mim iluminaram o interior do meu. O coração acelerou uma batida.

 

Não gostava de ter ninguém atrás de mim. Aquela não era uma estrada com muito movimento. Ninguém seguiria por aquela via a menos que tivesse algum objectivo definido, vivesse nas proximidades, ou trabalhasse num viveiro de plantas.

 

Fui revisitada pela sensação mórbida que senti na boca do estômago naquela manhã em que Van Zandt havia aparecido inesperadamente na quinta, tendo eu pensado que estava sozinha com ele.

 

Até mais ver, dissera ele quando se despedira de mim, beijando-me nas faces.

 

À minha frente, Paris entrou num caminho particular. Passei sem parar, olhando de relance. À semelhança da maior parte das propriedades naquela zona, a casa era ao estilo mexicano, o melhor que se construía nos anos setenta, com um jardim que mais parecia uma selva. A porta da garagem subiu para deixar passar o Infiniti.

 

O que é que a levaria a viver ali, num sítio tão isolado? O negócio de Jade era próspero, pelo que Paris devia ter um ordenado minimamente decente. O suficiente para poder viver em Wellington, próximo do centro equestre, o suficiente para poder pagar um apartamento num dos muitos complexos habitacionais tão em voga entre as pessoas ligadas ao hipismo.

 

Recambiar os moços de estrebaria para os confins do mundo era uma coisa. As rendas eram baratas - isto é, relativamente. Mas Paris, com o seu Infiniti, de um verde brilhante, e o seu anel de diamantes e esmeraldas, que devia ser uma herança de família?

 

As luzes atrás de mim, que se reflectiam no espelho retrovisor, aumentaram de intensidade quando o veículo encurtou a distância que nos separava.

 

Travei de repente e guinei bruscamente para a direita, entrando numa outra estrada secundária. Mas descobri que não era estrada nenhuma. Tratava-se de um caminho sem saída circundado por vários lotes de terreno recentemente desbravados. A luz dos meus faróis revelou o esqueleto de uma vivenda por acabar.

 

Os faróis do automóvel que vinha atrás de mim também viraram para o caminho sem saída.

 

Acelerei a fundo e inverti a marcha, dirigindo-me de regresso à estrada principal, mas antes de chegar aí travei bruscamente, derrapando de lado e bloqueando a saída.

 

Uma porra é que eu deixaria que aquele filho-da-puta me encurralasse como se eu fosse um animal assustado!

 

Saquei da Glock que guardara na caixa fixa à porta

 

Com um gesto brusco, abri a porta quando o outro carro se posicionou ao lado do meu e o vidro da janela do condutor desceu.

 

Preparei-me para disparar, fazendo pontaria directamente para o rosto do homem: tinha os olhos muito abertos, assim como a boca.

 

Não era Van Zandt.

 

- Quem é você? - gritei.

 

- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Não me mate!

 

- Cale a merda dessa boca! - vociferei. - Quero a sua identificação. Agora!

 

- Eu só... eu só... - tartamudeou ele. O homem devia ter uns quarenta anos, era magro e tinha uma espessa cabeleira.

 

- Fora do carro! Mãos onde eu as possa ver!

 

- Oh, meu Deus! - gemeu ele. - Por favor, não me mate. Eu dou-lhe todo o dinheiro que trago comigo...

 

- Cale essa boca! Eu sou da Polícia.

 

- Oh, Jesus me valha!

 

Aparentemente, aquela revelação era pior do que se eu estivesse disposta a roubá-lo e a matá-lo.

 

O indivíduo saiu do carro, erguendo os braços diante do rosto.

 

- Você é canhoto ou destro?

 

- Sou canhoto.

 

- Com a mão direita, tire a carteira do bolso e coloque-a em cima da capota do carro.

 

O homem fez o que eu lhe dizia, colocando a carteira em cima do carro e fazendo-a deslizar na minha direcção.

 

- Como é que se chama? - perguntei.

 

- Jimmy Manetti.

 

Abri a carteira, fingindo que conseguia ver alguma coisa, apesar da luminosidade bastante fraca dos faróis.

 

- Porque vinha a perseguir-me?

 

- Pensei que você também andasse à procura - respondeu ele, encolhendo os ombros de uma maneira hesitante.

 

- À procura de quê?

 

- Da festa. Da Kay e da Lisa - explicou.

 

- Quem são a Kay e a Lisa?

 

- Não sei, só as conheço por esses nomes. Empregadas de mesa? Do Steamer’s?

 

- Por amor de Deus! - resmunguei, atirando a carteira para cima da capota. - Você é algum idiota?

 

- Sim, suponho que sou.

 

Abanei a cabeça e baixei a arma. Toda eu tremia. O rescaldo de um fluxo de adrenalina, associado à percepção de ter estado prestes a alvejar um mentecapto inocente em cheio na cara.

 

- De futuro, mantenha uma distância segura entre si e as outras viaturas - aconselhei-o, recuando até ao meu automóvel. - A próxima pessoa a quem você pisar os calos pode não ser tão simpática como eu.

 

Deixei Jimmy Manetti especado ali, ainda com as mãos ao alto, e saí do beco sem saída, retomando a mesma direcção por onde viera. A uma velocidade muito moderada, tentando regularizar a pulsação cardíaca. Esforçando-me por organizar as ideias.

 

Havia luzes no interior da casa onde Paris Montgomery entrara. O cão dela corria atrás da própria cauda no jardim da frente. Reparei num carro estacionado no caminho particular.

 

Era um Porsche clássico descapotável, com o tejadilho para baixo. Tinha uma chapa de matrícula personalizada:

 

LKY DOG.

 

t, Lucky Dog. l Trey Hughes.

 

- É por de mais evidente que eles estiveram lá e programaram a hora a que a cassete devia começar a passar, antes mesmo de terem feito o telefonema com instruções para a entrega do resgate - observou Landry.

 

Tinham-se instalado numa sala de reuniões: ele próprio e Weiss; Dugan e Armedgian. O major Owen Cathcart, chefe da Divisão de Investigação, juntara-se a eles, servindo de elo de ligação com o xerife Sacks. O grupo era completado por Bruce e Krystal Seabright, assim como uma senhora dos Serviços de Apoio à Vítima cujo nome Landry não retivera.

 

Esta e Krystal Seabright sentavam-se à esquerda do resto do grupo, um pouco afastadas. Krystal tremia como um chihuahua; tinha os olhos muito encovados e uma peruca horrenda de um louro muito oxigenado. Bruce não se mostrara nada satisfeito com a sua presença naquela reunião, insistindo para que fosse para casa, deixando-o a ele a tratar da situação. Mas Krystal fingiu que não o ouvira.

 

- Durante as últimas três semanas, não se realizou nenhum evento hípico naquelas instalações - dizia Weiss. - O recinto tem estado fechado à chave, mas estamos a falar de cadeados. Devido à localização do hipódromo, a segurança nunca foi uma questão muito importante. Mas a verdade é que não seria muito difícil forçar a entrada.

 

- Encontraram alguma impressão digital? - perguntou Cathcart.

 

- Umas centenas - respondeu Landry. - Mas nenhuma na fita magnética da cassete, nem na cassete de vídeo e no temporizador, assim como no reprodutor de cassetes

 

- Já trataram de arranjar algum técnico que consiga fazer com que a voz se assemelhe à de um ser humano normal?

 

- Já estão a trabalhar nisso - adiantou Dugan.

 

- E quanto à cassete de vídeo? Vejamos o que é que tem para nos mostrar.

 

Landry hesitou, abrangendo num olhar de soslaio Krystal e a senhora dos Serviços de Apoio à Vítima.

 

- É bastante macabra, meu major. Não sei se a família...

 

- Eu quero ver - atalhou Krystal, falando pela primeira vez desde que chegara.

 

- Krystal, por amor de Deus! - explodiu Bruce, andando de um lado para o outro atrás dela. - Por que haverias de querer ver isso? O detective acabou de te dizer que...

 

- Quero vê-la - insistiu a mulher com mais veemência. - Ela é minha filha.

 

- E queres vê-la a ser agredida por uma besta? A ser violada? Era a isso que estava a referir-se, não é verdade, Landry? - perguntou Bruce.

 

Landry contraiu o maxilar. Seabright rangeu os dentes. Se o detective conseguisse chegar ao fim daquele caso sem dar um murro em cheio nas fuças daquele fulano, seria um autêntico milagre.

 

- Eu já disse que era bastante macabra. Não há nenhuma violação, mas a Erin é espancada. Não recomendo que a veja, Mistress Seabright.

 

- Não existe qualquer razão, Krystal... - começou Bruce a argumentar. Mas a mulher interrompeu-o.

 

- Ela é minha filha!

 

Krystal Seabright levantou-se da sua cadeira, com as mãos trementes enclavinhadas diante de si.

 

- Eu quero ver esse filme, detective Landry. Quero ver o que o meu marido fez à minha filha.

 

- Eu?! - Bruce ficou extremamente corado, emitindo um estertor que lhe saiu do fundo da garganta, como se estivesse a sofrer um ataque cardíaco. Olhou para os polícias que se encontravam na sala. - Eu sou apenas uma vítima em tudo isto!

 

- És tão culpado como as pessoas que a levaram à força! - ripostou Krystal virando-se para ele.

 

- Não fui eu que envolvi a Polícia no assunto! Eles disseram que não devíamos contactar a Polícia.

 

- Se dependesse de ti, não terias feito absolutamente nada - retrucou Krystal com amargura. - Nem sequer me terias dito que ela desapareceu!

 

Seabright mostrou uma expressão de constrangimento. A fúria que sentia era tanta que os lábios lhe tremiam. Aproximou-se mais da mulher e baixou o timbre de voz.

 

- Krystal, este não é o lugar nem a melhor altura para termos esta discussão.

 

- Eu quero ver a cassete - insistiu Krystal obstinadamente, ignorando o marido e dirigindo-se a Landry. - Ela é minha filha.

 

- Como se alguma vez te tivesses interessado por ela resmungou Bruce. - As gatas são melhores mães do que tu.

 

- Na minha opinião, acho que é importante que Mistress Seabright veja pelo menos parte desta cassete - interveio a mulher dos Serviços de Apoio à Vítima, metendo a sua colherada. - Pode pedir a qualquer altura que interrompam a projecção, Krystal.

 

- Quero vê-la - continuou Krystal a insistir, avançando num andar desequilibrado com os seus sapatos de salto de agulha a imitar pele de leopardo. Dava a impressão de ser tão frágil como uma figurinha de cristal, como se uma simples pancada a quebrasse num milhão de fragmentos de vidro de cores berrantes. Landry abeirou-se dela para lhe pegar pelo braço. Finalmente, a mulher dos Serviços de Apoio à Vítima levantou o traseiro gordo da cadeira para ajudar, aproximando-se e ficando ao lado de Krystal Seabright para lhe oferecer o apoio que fazia parte das suas funções.

 

- Isto vai contra a minha opinião, Mistress Seabright interveio Dugan.

 

Krystal fitou-o através de uns olhos esbugalhados.

 

- Eu quero ver a cassete! - disse ela quase aos gritos. - Quantas vezes preciso de lhe dizer a mesma coisa. Tenho de me pôr mesmo aos gritos? Tenho de arranjar uma ordem judicial? Quero ver essa cassete!

 

- Vamos passar a cassete - decidiu Dugan erguendo as mãos num gesto de rendição. - Só lhe peço que nos diga quando quiser que a paremos, Mistress Seabright. - Acenou a Weiss, que inseriu a cassete no aparelho de vídeo colocado sobre o televisor que se via ao fundo da sala.

 

Todos se mantiveram em silêncio a olhar para a cena que decorria num quarto do que dava a impressão de ser uma caravana. Era a janela que a denunciava: uma caixilharia de má qualidade, em alumínio, que emoldurava um vidro sujíssimo. Alguém escrevera com um dedo por cima da porcaria: ”SOCORRO”, da direita para a esquerda, para que pudesse ser lido do lado de fora da caravana.

 

A cena fora filmada à noite. Era iluminada pela lâmpada sem quebra-luz de um único candeeiro.

 

Erin Seabright estava sentada completamente nua em cima de um colchão imundo, cheio de nódoas e sem lençóis, acorrentada por um pulso a uma cama de ferro ferrugenta. Landry mal conseguia reconhecer a jovem que vira apenas em fotografia. Havia um corte no lábio inferior onde o sangue já tinha secado, formando crosta. O rímel esborratara-se à volta dos olhos. Nos braços e nas pernas viam-se vários vergões avermelhados e nódoas negras. Encontrava-se com os joelhos flectidos, tentando cobrir tanto da sua nudez quanto lhe fosse possível. Olhava directamente para a câmara, com as lágrimas a correrem-lhe livremente pelas faces, os olhos vidrados com uma expressão de terror.

 

- Porque é que não me ajuda? Pedi-lhe que me ajudasse! Porque não pode limitar-se a fazer o que eles dizem? perguntava ela com uns tremores na voz que raiavam a histeria. - Odeia-me assim tanto? Não sabe o que é que ele me vai fazer? Porque se recusa a ajudar-me?!

 

- Oh, meu Deus - murmurou Krystal. Levou uma mão à boca, tapando-a. As lágrimas marejaram-lhe os olhos, começando a correr-lhe pelas faces. - Oh, meu Deus, Erin!

 

- Nós avisámo-lo - proferiu a voz metálica, as palavras arrastadas pronunciadas em voz baixa e com muita lentidão, ligeiramente tartamudeadas. - Você quebrou as regras. A rapariga será punida.

 

Entretanto, surgiu em cena uma figura vestida de negro da cabeça aos pés, vinda de detrás da câmara de filmar - máscara negra, roupa preta e luvas pretas - e dirigindo-se para a cama. Erin começou a gemer. Retraiu-se toda, encolhendo-se contra a cabeceira da cama, numa tentativa desesperada para se esconder, tentando cobrir a cabeça com o braço que tinha livre.

 

- Não! Não! - gritava. - A culpa não é minha!

 

A figura açoitou-a com um pingalim. Landry sentiu que se retraía instintivamente ao som das chicotadas contra o corpo desnudado. A rapariga foi chicoteada um sem-número de vezes, com uma força e perversidade inimagináveis, nos braços, pernas, costas e nádegas. Gritava sem cessar, gritos horríveis e penetrantes que trespassavam Landry como um picador de gelo.

 

Sem que ninguém lho pedisse, Dugan interrompeu a projecção do filme.

 

- Meu Deus - murmurou Bruce Seabright entre dentes, desviando o olhar e passando a mão pelo rosto.

 

Krystal encostou-se desamparada à mulher dos Serviços de Apoio à Vítima, tentando dar largas à dor, mas sem que da sua boca saísse um único som. Landry pegou-lhe por um dos braços enquanto Weiss lhe pegava pelo outro, evitando que ela caísse e instalando-a numa cadeira.

 

Bruce Seabright deixou-se ficar onde estava, o filho-da-mãe, olhando fixamente para aquela mulher com quem se casara, com o aspecto de quem se perguntaria se poderia dar aquele negócio por acabado naquele preciso momento, ali mesmo.

 

- Eu bem te avisei de que irias sentir-te perturbada comentou ele em tom de censura.

 

Krystal sentou-se na cadeira, dobrada sobre si mesma, com o rosto oculto nas mãos, a saia cor-de-rosa a meio das coxas.

 

Landry virou-se, ficando de costas para ela e abeirando-se de Bruce, e falou-lhe em voz baixa:

 

- Se você conseguisse rastejar para fora do seu próprio olho do cu durante três segundos que fosse, um pouco de compaixão fingida seria apropriada neste momento.

 

Seabright teve a suprema arrogância de se mostrar ofendido.

 

- Eu não sou o vilão nesta situação! Não fui eu quem vos chamou a intervir, indo contra as instruções dos raptores.

 

-Não - interveio Krystal, erguendo a cabeça. - Tu não contactaste ninguém! Tu não fizeste absolutamente nada!

 

- A Erin nesta altura já teria voltado para casa, se não fosse essa detective a meter o nariz onde não era chamada! -- ripostou Bruce, encolerizado. - Eu estava a tratar do assunto. Eles acabariam por a libertar. Mais cedo ou mais tarde, eles acabariam por perceber que eu não estava disposto a ceder perante os seus actos de terrorismo, por isso, só lhes restaria deixá-la em liberdade.

 

- Tu odeia-la! - gritou Krystal à beira do histerismo. Queres que ela morra! Não queres voltar a vê-la!

 

- Ora, por amor de Deus, Krystal, deixa-te disso. Nem tu! - gritou Seabright. - Ela não passa de uma excrescência da humanidade, o mesmo que tu eras quando te conheci! Mas isso não significa que eu queira que ela morra!

 

- O que é de mais cheira mal! - atalhou Landry, irritado, aproximando-se de Seabright. - Você! Ponha-se lá fora!

 

- Eu proporcionei-te um estilo de vida que sem mim jamais poderias vir a ter - continuou Seabright dirigindo-se à mulher. - E tu não querias que a Erin fizesse ondas nessa tua bela vida. Foste tu própria que a puseste fora de casa!

 

- Eu tinha receio! - gritou Krystal. - Eu tinha receio! - Recomeçou a chorar convulsivamente, caindo da cadeira e estatelando-se no chão enrolada sobre si mesma como se fosse uma bola.

 

- Rua! - ordenou Landry, empurrando Seabright porta fora.

 

Este tentou sacudi-lo, embora tivesse saído para o corredor. Landry seguiu atrás dele, com Dugan na sua peugada.

 

- Vou participar de si! - gritou Seabright.

 

- O quê?! - perguntou Landry, olhando-o como se o homem tivesse perdido o juízo.

 

- Eu quero que essa mulher responda perante a justiça!

 

- A sua mulher?

 

- A Elena Estes! Nada disto teria acontecido se não fosse ela!

 

- De que raio é que ele está a falar? - perguntou Dugan olhando para Landry.

 

- A sua enteada foi sequestrada - ripostou Landry ignorando Dugan e avançando para Seabright. - Isso não teve nada a ver com a Elena Estes.

 

- Quero que ela fique privada da licença profissional insistiu Seabright espetando um dedo defronte da cara do detective. - E vou telefonar ao meu advogado. Nunca quis que vocês se metessem no assunto, e agora veja-se o que aconteceu. Vou processar-vos. Tenciono processá-los, bem como à Elena Estes!

 

Landry deu-lhe um safanão, afastando-lhe a mão para o lado e encostando o homem à parede.

 

- Pense duas vezes antes de começar a atirar ameaças da boca para fora, seu bandalho!

 

- Landry! - gritou Dugan, chocado.

 

- Se eu encontrar alguma coisa que o relacione com este rapto, pode acreditar que esse seu cu gordo vai parar à cadeia!

 

- Landry! - Dugan puxou-o violentamente por um braço. Landry deu-lhe um safanão, libertando-se e dando uns passos para o lado; o seu olhar furioso continuava fixo em Seabright.

 

- Vá até lá fora para se acalmar, detective Landry ordenou Dugan.

 

- Pergunte-lhe o que é que ela queria dizer - acrescentou Landry. - Pergunte-lhe o que a Erin quis dizer quando afirmou que lhe tinha pedido que a ajudasse. Quando é que ela lhe pediu isso? Por que razão não fomos informados a esse respeito? Quero um mandado de busca para passar a casa desse sacana a pente fino, e o escritório também! Se ele estiver a sonegar provas, cá por mim, pode apodrecer na cadeia.

 

- Saia! - ordenou Dugan, irado. - Imediatamente! Landry saiu para o corredor e foi para o seu gabinete, dirigindo-se à secretária e abrindo a gaveta de cima à procura de um maço de Marlkom Lights que costumava guardar ali. Tinha deixado de fumar, o que, regra geral cumpria, mas existiam determinadas circunstâncias que eram excepções à regra, e aquele era um desses momentos. Sacudiu o maço até soltar um cigarro, pegou no isqueiro e abandonou o edifício, começando a andar pelo passeio de um lado para o outro.

 

Todo ele tremia. Só lhe apetecia voltar para dentro e esmurrar Bruce Seabright até este perder a consciência., O grande filho-da-puta! A filha da mulher raptada e a solução que encontrou tinha sido não fazer nada. No que lhe dizia respeito, ela que apodrecesse no inferno. Eles que a violassem, que a matassem e que a atirassem para o canal, a ver se ele se importava. Era de mais! ”Pedi-lhe que me ajudasse! Por que razão se recusa a ajudar-me? Odeia-me assim tanto!

 

Seabright não dissera nada quanto ao facto de ter falado directamente com Erin. Landry estava disposto a apostar a sua reforma em como Bruce Seabright teria outra cassete de vídeo escondida algures. Uma onde Erin lhe implorava que a ajudasse. No entanto, Bruce Seabright não fizera porra ninhuma.

 

Mas não era por essa razão que Erin estava a ser punida, pois não? Ela encontrava-se num lugar imundo, acorrentada a uma cama enquanto era açoitada com um chicote porque as regras haviam sido quebradas, e o Gabinete do Cerife fora chamado a intervir.

 

Era muito possível que Elena Estes tivesse pisado os caminhos errados. Falara com toda a gente que se relacionava com Erin Seabright. Talvez Van Zandt tivesse deduzido que ela não era o que aparentava ser.

 

Todos os que gravitavam à volta de Jade haviam sido interrogados no sábado anterior, em consequência da morte de Jill Morone. O nome de Erin fora mencionado ao longo Bdessas conversas. Era possível que Jade tivesse sido alertado por alguma dessas pessoas.

 

Também não era descabido pensar que alguém nas proximidades se tivesse mantido de vigilância, mas Landry não acreditava nisso. Lera com atenção todos os relatórios referentes aos vizinhos: as famílias, as profissões e o tipo de relação que mantinham com os Seabright. Nada. Talvez os raptores mantivessem a casa sob escuta, mas isso parecia muito pouco plausível. Não se podia dizer que o homem fosse algum multimilionário que eles tentassem esmifrar.

 

Havia também que considerar a hipótese de os sequestradores terem alguém da família que lhes passasse informações

 

O filho de Bruce Seabright. Ou mesmo o próprio Seabright.

 

Não haveria melhor maneira de se distanciar de qualquer suspeita do que cooperar com a Polícia, para depois lhes assacar as culpas quando as coisas começassem a correr mal. O homem jamais teria levantado um dedo para ajudar Erin se Elena Estes não tivesse metido o nariz no assunto.

 

Ele faria precisamente o que Landry dissera logo de princípio: guardar todas as informações para si próprio até que a rapariga aparecesse morta - se o corpo viesse a aparecer. Depois, diria à mulher que fizera tudo o que estava ao seu alcance, tudo o que lhe parecera ser pelo melhor. Era uma pena que isso não tivesse dado resultados positivos, mas que diabo, ao fim e ao cabo, Erin não passava de uma galdéria que manchava o bom nome da família.

 

O cigarro tinha-se apagado. Landry deixou cair a beata no passeio, pisando-a com a biqueira do sapato antes de a apanhar do chão, atirando-a para o caixote do lixo.

 

Porém, como é que Don Jade se enquadrava em tudo aquilo?

 

Elena Estes dissera-lhe que Seabright havia vendido uns terrenos a Trey Hughes, acrescentando que Don Jade trabalhava para Trey Hughes. Bruce arranjara emprego a Erin nas cavalariças de Jade através de Hughes. A rapariga teria ficado em melhor situação se saísse de casa para passar a viver nas ruas de Miami.

 

Tudo apontava para Jade, dissera Elena Estes logo no início. Mas isso não era exactamente verdade. Tudo girava em torno de Trey Hughes.

 

Landry retirou o telemóvel de uma das algibeiras, ligando o número de Dwyer, o agente que mantinha Jade sob vigilância.

 

- Onde é que ele está? - perguntou o detective.

 

- Está a jantar no Michael’s Pasta. Os pratos do dia são penne putanesca e arroz de marisco.

 

- Com quem é que ele está?

 

- Com uma gaja muito baixinha e já entradota que tem tetas falsas e cabelo cor de laranja. Podemos detê-lo?

 

- Não - respondeu Landry.

 

- O que é que aconteceu com a entrega do resgate.

 

- Foi uma armadilha. Eles sabiam que estaríamos presentes.

 

- Como é que sabiam?

 

- Tenho um palpite.

 

- Já há remédio para isso.

 

- Sim, é fazer uma detenção. Sabes por onde é que andam os agentes federais?

 

- Andam por aí sem fazer nada, a coçar os tomates. Dizem que o Van Zandt ainda não saiu de casa. O Mercedes continua estacionado diante da vivenda.

 

- E o carro da mulher, da Lorinda Carlton?

 

- Não me perguntes. Estou a fazer o meu trabalho.

 

- Magnífico!

 

Landry sentia vontade de fumar um segundo cigarro quando avistou Dugan, que transpunha a porta atrás de Bruce Seabright. Este atravessou o parque de estacionamento, encaminhando-se para o seu Jaguar, entrou, ligou a ignição e começou a afastar-se. A ausência da mulher no lugar do passageiro da frente não passava despercebida a ninguém. Dugan deu meia volta e começou a percorrer o passeio.

 

- Tenho de desligar - disse Landry a Dwyer, fechando a tampa do telefone.

 

- O que é que você sabe sobre a Elena Estes? - perguntou-lhe Dugan.

 

- Ela costumava trabalhar na Brigada de Narcóticos.

E que sabe sobre o facto de ela agora ser detective particular?

 

- Sei que isso não é verdade.

 

-Então, por que motivo é que o Seabright pensa o contrário? - continuou Dugan.

 

- Por que razão ele pensa o que quer que seja? - retorquiu Landry com um encolher de ombros. - O homem é um sacana de alto coturno. Pensa que é boa ideia deixar uma garota de dezoito anos nas mãos de uns pervertidos, para poderem flagelá-la à vontade com um chicote.

 

- E o que me sabe você dizer-me com respeito à Elena Estes e ao seu envolvimento neste caso? - perguntou Dugan, insistente. Estava tão irritado que tinha as feições contraídas.

 

- Só sei que não estaríamos a investigar nada se ela não tivesse vindo ter comigo, dando-me conta do que se estava a passar - respondeu Landry.

 

- Ela está envolvida neste assunto.

 

- Vivemos num país livre.

 

- Não é tão livre como isso - ripostou Dugan. Quero que ela venha falar comigo.

 

De repente, viver na zona rural de Loxahatchee passava a fazer sentido. Um local isolado, fora do olhar da gente do meio equestre, o sítio ideal para se manter um romance clandestino em segredo. A julgar pelas aparências, Don Jade não era o único das suas cavalariças a resolver problemas profissionais na cama. Se Trey Hughes estivesse naquela casa para algo mais que uma troca de impressões sobre a forma como o seu cavalo se comportara naquele dia no hipódromo, então, isso queria dizer que Paris Montgomery conseguira atrair o patrono mais influente de Jade. Com uma malícia premeditada.

 

Ou talvez Jade estivesse ao corrente daquela relação. Possivelmente, até teria a sua bênção. Talvez fosse a apólice de seguro de Jade para manter a atenção de Hughes.

 

Porém, os meus instintos diziam-me que não. Eu não testemunhara nenhuma manifestação clara de afecto entre Paris e Trey. A conduta de ambos nos estábulos parecera-me não ultrapassar uma simples relação entre cliente e treinadora de cavalos.

 

Paris era uma rapariga inteligente e ambiciosa. Fazia com que Trey se sentisse satisfeito. Decerto que Trey podia fazer com que ela se sentisse também satisfeita.

 

Enquanto regressava a Wellington no meu automóvel, perguntava-me se Paris saberia que Hughes tivera anteriormente um caso amoroso com a mulher de Michael Berne. Sem dúvida que esse aspecto não tinha garantido a Michael um lugar nas luxuosas cavalariças que o ricaço andava a construir - ou, já agora, também não lhe garantia o afecto de Stella Berne.

 

Muito gostaria eu de saber há quanto tempo é que eles mantinham aquela relação amorosa. Hughes colocara os seus cavalos sob os cuidados de Jade havia mais ou menos nove meses, o que significava que teriam passado o Verão nas cavalariças que Jade possuía nos Hamptons. Era muito provável que Hughes tivesse permanecido aí durante os meses de Verão, aproveitando para desfrutar da agitada vida social. Talvez nessa ocasião a centelha do romance houvesse feito faísca.

 

Analisando tudo isto na minha mente sob vários ângulos, fiz o trajecto até Wellington, passando por Sag Harbor Court.

 

O Mercedes que Trey Hughes emprestara a Van Zandt mantinha-se estacionado no caminho particular. Na rua, no lugar destinado aos automóveis das visitas, avistei dois homens de fato e gravata sentados num Ford Taurus.

 

Agentes do FBI.

 

Estacionei dois lugares mais abaixo, aproximando-me da viatura a pé pela parte da frente. O fulano que se sentava no lugar do condutor baixou o vidro da janela do seu lado.

 

- Para vossa informação, rapazes - comecei a dizer-lhes -, vi-o esta manhã ao volante de um Chevy Malibu azul-escuro.

 

O condutor ficou a olhar para mim com uma expressão característica dos polícias.

 

- Desculpe, mas não estou a entender?

 

- Estou a falar do Tomas Van Zandt. É ele que, em princípio, vocês deviam vigiar, não é verdade?

 

Olharam um para o outro e depois voltaram a concentrar-se em mim.

 

- Minha senhora...? Quem é você? - perguntou o condutor.

 

- Eu costumava ser amiga desse ordinário, o Armedgian. Digam-lhe que eu disse isto.

 

Deixei-os tão aparvalhados como um par de caras-de-cu que vigiassem um automóvel que não saíra do mesmo sítio durante todo o dia.

 

Tomas Van Zandt era um homem livre.

 

”Até mais ver...”

 

Já no meu automóvel, pousei a arma em cima do assento à minha direita e fui para casa, onde fiquei à espera.

 

Não detectei nenhum indício óbvio da presença de intrusos nas proximidades da quinta de Sean. Sabia que este não teria facultado a Van Zandt o número de código para abrir o portão automaticamente. Apesar disso, os meus instintos encontravam-se em estado de alerta.

 

Estacionei junto da cavalariça e fui ver se os cavalos estavam bem, caminhando pelo corredor de arma em riste. Parei junto de cada cavalo para os afagar, sentindo que à medida que me detinha em cada cocheira a tensão dentro de ”mim ia diminuindo gradualmente. Oliver quis comer a arma. Feliki espetou-me as orelhas, como que para me recordar quem era a égua de primeira categoria, e depois ficou à espera de um mimo. Quanto a D D’Artagnon, só queria que eu lhe coçasse o pescoço.

 

Enquanto lhe fazia a vontade, pensava em Erin Seabright, na maneira como ela se rira para Stellar no filme de vídeo que encontrara no quarto de Van Zandt. Perguntei-me se ela deixaria que recordações como essa lhe dessem

algum conforto ou se, pelo contrário, só serviriam para a atormentar onde quer que se encontrasse, fosse o que fosse que lhe estivesse a acontecer.

 

Queria telefonar a Landry para saber o que acontecera aquando da entrega do resgate, mas não cedi à tentação. Ele não era meu amigo nem meu confidente. Não daria o devido valor à necessidade que eu sentia em saber. Esperava que Molly telefonasse, muito embora soubesse que ela não seria a primeira a inteirar-se de qualquer notícia que pudesse transpirar. Bruce teria sido enviado para o local da entrega do resgate. A despeito do que pudesse ter acontecido, tudo seria escalpelizado posteriormente aquando da reunião de análise no Gabinete do Xerife. E durante esse processo ninguém pensaria ou tão-pouco teria a cortesia de informar Molly sobre o que se estava a passar em relação à irmã. Só me restava aguardar, pensei, mas foi então que me lembrei de que ainda tinha o telemóvel de Paris Montgomery no meu carro. Fui buscá-lo quando já ia a caminho de casa, sentando-me com ele à minha secretária.

 

O telemóvel era um Nokia 3390. O ícone que indicava que existiam mensagens apareceu no mostrador. Mas eu não tinha maneira de me inteirar delas, uma vez que desconhecia o seu código. Todavia, sabia por experiência que aquele modelo de telemóvel registava automaticamente os últimos dez números que haviam sido marcados.

 

Marquei o último número que fora ligado. O mostrador indicou-me: Voice mailbox. Chamei o número seguinte: Jane L-Telem. O seguinte: Don-Telem.

 

Naquele momento, o caminho de acesso foi iluminado pela luz de faróis.

 

Não era o automóvel de Sean. Eu nunca o vira entrar por ali, porque ele costumava ir sempre directamente para a garagem que se situava no extremo mais distanciado da casa principal.

 

Talvez fosse Irina.

 

Por outro lado, talvez não.

 

Pousei o telemóvel de lado, peguei na Glock, desliguei a única luz que acendera dentro de casa e depois postei-me à janela.

 

A luz de presença ao fundo das cavalariças não iluminava num raio que chegasse para ver o carro. Mas quando o condutor saiu e começou a dirigir-se para a minha casa, pude ver que a sua postura era muito semelhante à de Landry.

 

Senti que o meu coração pulsava mais depressa. Decerto ele traria novidades. Boas ou más, seria portador de notícias. Abri a porta antes de ele ter chegado ao terraço. Landry parou e levantou as mãos, os olhos fixos na arma que eu ainda empunhava.

 

- Não mate o mensageiro - disse ele.

 

- Traz más notícias?

 

- Sim - confirmou o detective.

 

- Ela morreu? - perguntei.

 

- Que eu saiba, não.

 

Encostei-me à ombreira da porta, soltando um suspiro e sentindo-me simultaneamente aliviada e perplexa.

 

- O que é que aconteceu?

 

Ele contou-me o que se tinha passado no local da entrega do resgate, a mensagem na cassete que fora programada para uma determinada hora através de um temporizador, a cassete de vídeo em que se via Erin a ser violentamente chicoteada.

 

- Meu Deus - proferi eu num gemido, passando as mãos pelo rosto e sentindo o gesto apenas numa das faces. Naquele momento, desejei que todo o meu corpo estivesse tão entorpecido como aquela face. - Oh, meu Deus. Coitada da pobre garota.

 

Você quebrou as regras. A rapariga é que pagará o preço.

 

Quebrar as regras fora ideia minha. Eu havia passado toda a minha vida a quebrar as regras, sem nunca pensar duas vezes nas consequências até ser tarde de mais. Mas [parecia que jamais viria a aprender essa lição. Agora era iErin Seabright quem estava a pagar o preço. Eu devia ter feito qualquer coisa de maneira diferente. Se não tivesse sido tão brusca com Bruce Seabright, se não insistisse em envolver a Brigada de Homicídios no assunto... Se não fosse por mim... Se Molly tivesse procurado ajuda junto de outra pessoa...

 

- Não esteja a recriminar-se dessa maneira, Elena Estes - observou Landry em voz baixa.

 

- Mas olhe que essa é uma das poucas coisas que sei fazer realmente bem - retorqui, rindo-me.

 

- Não é, não. - murmurou ele.

 

Encontrava-se muito próximo de mim. As nossas sombras sobrepunham-se nas lajes do pavimento, projectadas pela luz que saía através da porta da frente. Se eu fosse uma mulher diferente, naquele momento, teria procurado algum conforto nele. Mas não era capaz de me recordar da última vez em que expusera a minha vulnerabilidade a alguém. Não sabia como fazê-lo. Além do mais, receava que Landry viesse a fazer uso disso contra mim. - Nem tudo tem a ver consigo - continuou ele. - Há ocasiões em que as coisas se desenrolam por acção do destino, sem intervenção de qualquer de nós.

 

Havia apenas vinte e quatro horas que eu lhe dissera a mesma coisa por outras palavras.

 

- Seja o que for que eu diga pode... e será utilizado contra mim.

 

- O que quer que resulte - replicou Landry.

 

- Resultou quando eu lhe impingi isso?

 

- Não - respondeu ele abanando a cabeça. - Mas gostei do som da coisa.

 

- Obrigada.

 

- Não tem de quê.

 

Ficámos a olhar um para o outro durante um espaço de tempo um tudo-nada demorado de mais, mas depois Landry esfregou a nuca e o seu olhar desviou-se para um ponto atrás de mim, dentro de casa.

 

- Posso servir-me do seu uísque escocês? Tive um dia verdadeiramente desgraçado!

 

- Claro que sim.

 

Encaminhou-se para o armário, servindo-se de dois dedos de um uísque tão velho quanto eu, e começou a bebê-lo em pequenos goles.

 

Sentei-me no braço de uma poltrona, pondo-me a observá-lo.

 

- Onde é que o Jade esteve durante a entrega do resgate?

 

- Em West Palm, onde foi encontrar-se com os pais de Jill Morone. Eles vieram de avião de Buttcrack, na Virgínia, esta tarde, tendo exigido encontrar-se pessoalmente com ele.

 

- E o Van Zandt?

 

Landry abanou a cabeça, contraindo os músculos do maxilar.

 

- Esta manhã tive uma boa conversa com o seu amigo do FBI.

 

- O Armedgian? Ele não é meu amigo... nem seu, imagino.

 

- De repente, ele surgiu por aqui para ”aconselhar e consultar”. A gente dele anda a vigiar o Van Zandt.

 

- A gente dele limita-se a vigiar um automóvel que está parado defronte de uma vivenda. Esta manhã, quando o Van Zandt saiu ia ao volante de um Chevy.

 

- O que é que ele veio fazer aqui? - perguntou Landry fitando-me com o seu olhar arguto.

 

- Acho que advertir-me quanto às minhas acções.

 

- Saberá que foi você quem esteve em casa dele ontem à noite?

 

- Sim, parece-me que sim - respondi.

 

- Isso não me agrada nada.

 

- Imagine como é que eu me sinto.

 

Landry tomou um gole do seu uísque, mostrando-se pensativo.

 

- Bem... ele não esteve presente no local da entrega do resgate. Sabemos isso.

 

- Mas tal não o iliba de estar envolvido no rapto. Nem ao Jade. Tenho a certeza de que esse foi um dos aspectos que levou à programação da cassete para uma determinada hora: permitir que os maus da fita tivessem álibis inatacáveis quanto ao seu paradeiro à hora da entrega do resgate.

 

- Isso destinou-se a punir o Seabright - acrescentou Landry.

 

- Era forçoso que eles soubessem de antemão que você estaria presente. Nunca tiveram a intenção de comparecer ao encontro, com ou sem a Erin.

 

- Mesmo partindo desse princípio, tínhamos de aparecer.

 

- Claro que sim - concordei. - Mas não me agrada o que isso possa significar para a Erin. Eles agora já sabem que não hão-de receber o dinheiro do resgate. O que é que ganham por mantê-la viva? Absolutamente nada.

 

- Farra e brincadeiras com o chicote - replicou Landry. Olhou fixamente para o soalho, abanando a cabeça. Meu Deus, você devia tê-lo visto a chicoteá-la. Se ele chicoteasse os seus cavalos com aquela violência, a Associação Protectora dos Animais não descansaria enquanto não o pusesse na cadeia.

 

- O Jade? - perguntei. - Tenho a certeza de que você sabe qualquer coisa acerca dele que eu desconheço, mas começo a ter sérias dúvidas de que seja o homem que procuramos.

 

- Foi você que me disse que tudo apontava para ele.

 

- De certo modo, isso é verdade. Mas, por outro lado, na minha perspectiva, há qualquer coisa que não bate certo. Profissionalmente, ele não podia ter caído mais nas boas graças do Trey Hughes, que vai instalá-lo nas novas cavalariças, além de lhe comprar cavalos de preço elevado. Por que razão haveria ele de arriscar tudo isso, fazendo qualquer coisa tão grave como raptar a Erin? - perguntei.

 

- A Erin sabia qualquer coisa em relação a esse cavalo que ele matou.

 

- Sendo assim, porque não livrar-se dela, muito simplesmente?

 

- perguntei. - Estamos no Sul da Florida. A coisa mais fácil do mundo é alguém livrar-se de um corpo. Por que motivo é que alguém iria enredar-se na complicação que é uma conspiração de rapto?

 

- Portanto, podemos deduzir que ele não regula bem retorquiu Landry, encolhendo os ombros. - Acredita que é omnipotente.

 

- Eu até poderia concordar com essa explicação, mas com referência ao Van Zandt. Contudo, a verdade é que não estou a ver o Jade a arriscar tudo num esquema desses, tal como não concebo que ele se dispusesse a associar-se a um tarado como o Van Zandt.

 

Landry bebeu outro gole de uísque. Pensei que estaria a tentar decidir se devia ou não partilhar comigo o que me ocultava.

 

- Um dos números de telefone que você me deu, dos que recolheu em casa do Bruce Seabright, pertence a um telemóvel com cartão pré-pago, o qual descobrimos ter sido vendido numa Radio Shack em Royal Palm Beach. Os empregados da loja não conseguiram identificar o Jade com base numa fotografia que lhes mostrámos, mas um deles acha que recebeu um telefonema de um homem que disse chamar-se Jade, que lhe fez várias perguntas acerca de diversos tipos de telemóveis, pedindo-lhe que lhe reservasse aquele por que optou.

 

- Mas o que levaria o Jade a fazer uma coisa tão estúpida? - perguntei, pouco convencida. - Tenho a certeza de que ele não faria uma coisa dessas.

 

- Talvez ele tenha raciocinado que um telemóvel pré-pago não poderia vir a ser identificado - alvitrou Landry com um encolher de ombros. - Portanto, não interessava com quem falasse através desse aparelho.

 

Abanei a cabeça, levantando-me para começar a andar de um lado para o outro.

 

- O Don Jade não chegou onde está hoje por ser idiota. Se ele quisesse que lhe reservassem um telefone, porque não teria dado um nome falso? Porque não apenas o primeiro nome? Não. Nada disto faz o mínimo sentido.

 

- Mas é a única pista que temos - retrucou Landry na defensiva. - Não tenciono ignorá-la. Você sabe tão bem como eu que às vezes os criminosos lixam tudo. Descuidam-se e cometem erros.

 

- Sim, mas talvez tenha havido alguém que cometeu este erro por ele - aventei.

 

- O quê?! Você acha que alguém lhe armou uma cilada?

 

- Na minha opinião, é o que parece. O Jade tem mais a perder com tudo isto do que a ganhar - justifiquei.

 

-Mas ele já fez a mesma coisa antes... esquemas para enganar as companhias de seguros com cavalos que apareceram mortos.

 

- Pois sim, mas as coisas eram diferentes nessa altura.

 

- Quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita - retorquiu Landry filosoficamente.

 

- Veja uma coisa... Não estou a tentar defendê-lo. Mas acontece que penso que há mais ovelhas ranhosas neste rebanho, além do Don Jade - contrapus. - O que é que o

Michael Berne alegou como álibi para a noite em que a Jill foi assassinada?

 

- Ele esteve no Players, onde combinara encontrar-se para tomar umas bebidas com um cliente, mas este não apareceu. Entretanto, o Berne saiu para o corredor a fim de telefonar ao dito cliente, altura em que assistiu à cena entre o Jade e a rapariga.

 

- E depois disso? - perguntei.

 

-Foi para casa e passou a noite com a mulher.

 

- Sim, sim - disse eu revirando os olhos - a muito

prestável Mistress ”Álibi”.

 

- O quê?! - exclamou Landry sem ocultar a irritação que sentia. - Você acredita que foi o Berne quem engendrou todo este plano? E porquê?

 

- Eu não estou a dizer isso. Continuo sem compreender por que motivo haveria alguém disposto a arriscar-se a ser apanhado num esquema de rapto. Também é verdade que o Michael Berne odeia o Don Jade com paixão... e quero dizer literalmente. O Berne ficou a perder, e muito, quando o Trey Hughes deixou de ser seu cliente. O homem é a definição da palavra ”azedume”. É possível que tenha sido ele a matar o cavalo. Quem sabe se não terá pensado que, se o Jade fosse afastado, poderia voltar a cair nas boas graças do Hughes. Ainda que isso não viesse a acontecer, pelo menos, teria a satisfação de ter arruinado a vida do Jade.

 

- E onde é que o Van Zandt se enquadra em relação ao Berne? Você continua a acreditar que ele matou a Jill, não é verdade? - perguntei.

 

- Sim, mas admito que talvez ele não se enquadre no assunto. Não ponho de parte a hipótese de ele ter assassinado a Jill, embora isso não tivesse nada a ver com este problema, sendo apenas uma questão de sexo - sugeri. - Ou talvez seja parceiro do Berne ou, quem sabe, parceiro da Paris Montgomery... a qual, a propósito, anda a foder com o Trey Hughes... mas não acredito que seja parceiro do Don Jade. E depois ainda temos o Trey Hughes. Todo este pesadelo gira à volta dele.

 

- Deus nos acuda, mas que grande trapalhada - resmungou Landry. Acabou de beber o uísque, pousando o copo no tampo de vidro da mesinha de café. - Se eu fosse a si, não mencionava nada disto ao tenente Dugan.

 

- E por que razão eu haveria de fazer isso? - perguntei sem perceber.

 

O pager de Landry deu sinais de vida. Fitou o mostrador e depois olhou para mim.

 

- Porque ele quer falar consigo no gabinete dele o mais depressa possível.

 

Landry segurou a porta, dando-me passagem, quando entrámos no edifício. Eu não tive as boas maneiras necessárias para lhe agradecer. Os meus pensamentos giravam à volta da conversa que estava prestes a ter com o tenente. Precisava de uma estratégia bem planeada antes de entrar no gabinete dele, caso contrário, Dugan e Armedgian pôr-me-iam à margem do caso num abrir e fechar de olhos.

 

Estavam todos à minha espera no gabinete do tenente: Dugan, Armedgian e Weiss. Este mimoseou-me com um olhar pouco amistoso quando entrei, os olhos do polícia com uma montanha de cólera reprimida por detrás deles. Ignorei-o, encaminhando-me directamente para Dugan, olhei-o bem de frente enquanto lhe estendia a mão.

 

- Tenente, Elena Estes. Podia dizer que é um prazer” mas sei que não é esse o caso. - Voltei-me para Armedgian.

 

- Wayne, obrigada pela informação sobre o Van Zandt. É claro que a verdade teria sido bastante mais proveitosa, mas para que havemos de estar com isso? Ao fim e ao cabo, ninguém gostava da Jill Morone. -Não posso dar informações confidenciais a civis Respondeu Armedgian com a cara redonda muito corada. - Com certeza. Estou a compreender. E foi por isso que você telefonou de imediato aqui ao tenente Dugan, não é verdade? Para o avisar, de modo a que ele pudesse destacar alguém que se mantivesse de olho no fulano, não é? -Não tínhamos razão nenhuma para acreditar que o Van Zandt constituísse uma ameaça iminente para alguém ripostou Armedgian, defendendo-se. - Nessa altura, ainda não tinha conhecimento do rapto dessa rapariga, a Erin Seabright.

 

- Tenho a certeza de que isso servirá de muito conforto para a família da Jill Morone - repliquei, sarcástica, - A sua preocupação para com as famílias das vítimas é deveras comovedora, Miss Estes - atalhou Dugan. - É surpreendente, levando em consideração o modo como tratou os Seabright.

 

- Tenho consciência de que tratei os Seabright com a cortesia que lhes era devida.

 

- Não é o que Mister Bruce Seabright diz – replicou o tenente.

 

-Ele não merece a mínima cortesia, tal como o senhor, muito provavelmente, já terá descoberto. Francamente, não estou convencida de que ele não esteja envolvido no sequestro da enteada.

 

- Não estou interessado nas suas teorias, Miss Estes - redarguiu Dugan.

 

- Sendo assim, o que é que estou a fazer aqui?

 

- Os Seabright pretendem apresentar oficialmente queixa de si. Ao que tudo indica, a senhora fez-se passar pelo que não é junto deles.

 

- Isso não é verdade - refutei.

 

- Você não é detective particular - declarou Dugan. - E nunca disse a ninguém que o era. Os Seabright partiram de um pressuposto errado.

 

- Não tente impingir-me merdas com questões semânticas.

 

Se quiser dedicar-se aos jogos de palavras, tire um curso de Direito.

 

- Obrigada pelo conselho quanto a uma possível mudança de carreira.

 

- É uma pena que não tenha enveredado por essa carreira antes de ter sido a causa da morte de um dos nossos resmungou Weiss nas minhas costas.

 

Não liguei, mantendo-me concentrada em Dugan.

 

- Meti-me neste assunto para tentar ajudar uma garotinha, a qual acreditava que a irmã estava com problemas, quando ninguém... incluindo vocês... acreditou nela. Esse sempre foi o meu único objectivo neste assunto, senhor tenente. Se Mister Bruce Seabright se sente, não sei bem como, ameaçado por isso, talvez o senhor queira averiguar a fundo o porquê dessa atitude.

 

- Tenho tudo sob controlo - retorquiu Dugan. Quero que você se afaste do caso. Imediatamente!

 

- Com a breca! Há alguma coisa que me tenha passado despercebida? - perguntei, olhando à minha volta. - Terei eu sido contratada de novo pela Polícia? Porque, a não ser esse o caso, estou bem segura de que não tem autoridade para me dizer o que fazer, onde ir, ou com quem posso manter uma conversa. Sou uma civil.

 

- Você está a obstruir uma investigação oficial.

 

- Se não fosse eu, não havia investigação - ripostei.

 

- Não posso deixar uma civil andar por aí à solta a forçar a entrada em casa das pessoas, a contaminar provas cruciais...

 

- Arrombamento e entrada forçada são crimes - admiti. - Se tiver alguma prova de que eu cometi um crime dessa natureza, então, a sua obrigação é prender-me.

 

- É só pedir, tenente - ofereceu-se Weiss. - Não me importo de fazer as honras.

 

- A partir de agora, o Van Zandt é um assunto que só a nós diz respeito, Elena - interveio Armedgian. - Estou a referir-me ao Gabinete do Xerife e ao FBI.

 

- Estou a ver - observei eu olhando-o com uma expressão de tédio. - Um trabalho magnífico. Acontece que esta mesma manhã, ele foi a minha casa para me ameaçar. Onde é que vocês estavam nessa altura, Wayne? E quer saber que mais? Estou disposta a apostar cem dólares em como não sabem onde é que ele se encontra neste momento. Não será verdade?

 

A expressão que se estampou no rosto dele foi resposta suficiente.

 

- Os Seabright têm a intenção de pedir uma medida cautelar contra si, Miss Estes - informou-me Dugan. - Se a senhora se aproximar deles, da sua casa ou do escritório de Mister Seabright, seremos forçados a levá-la para a cadeia.

 

- Podiam ter mandado um agente para me dizer isso retorqui, encolhendo os ombros. - A menos que queira realmente trocar impressões sobre este caso, tenente, está a fazer com que eu perca o meu tempo.

 

- Tem algum assunto urgente que exija a sua presença noutro lado? - perguntou-me Dugan, arqueando o sobrolho.

 

Tirei o telemóvel de uma algibeira do casaco, procurei um número pré-registado e premi o botão de chamada. Mantive o olhar no tenente enquanto o telefone chamava.

 

- Van Zandt? Fala a ele. Peço desculpa por ter tido de me apressar esta manhã. Muito em especial, depois de você ter despendido tanto do seu tempo a gritar comigo, fazendo com que eu me sentisse incapaz de andar de bicicleta, quanto mais montar um cavalo.

 

Ouvi o silêncio do outro lado. Só discernia alguns barulhos de fundo. Ele estava num automóvel. Decidi que continuaria com a conversa, mesmo que Van Zandt desligasse na minha cara. Queria que Dugan soubesse que não mandava em mim, reconhecendo ao mesmo tempo de que eu poderia ser uma mais-valia, quer a ideia lhe agradasse quer não.

 

- Acha que eu fui demasiado duro consigo? - perguntou-me Van Zandt.

 

- Não. Eu gosto das coisas duras - respondi sugestivamente.

 

Fez-se outra pausa, mas, depois, ele começou a rir-se à socapa.

 

- Não conheço ninguém como você, ele.

 

- E isso é bom ou mau? - perguntei.

 

- Estou em crer que isso é coisa que ainda está para se ver. Mas tenho de lhe dizer que estou surpreendido com o seu telefonema.

 

- Os insectos são atraídos pela luz - comentei eu.

 

Você é um exercício para o meu cérebro, Z. O Sean e eu combinámos ir cear ao Players, e tomarmos um copo ou três. Está livre?

 

- De momento, não - respondeu Van Zandt.

 

- E mais tarde? - sugeri.

 

- Não me parece que possa confiar em si, ele.

 

- E porque não? Eu não tenho poder nenhum.

 

- Você também não confia em mim - retorquiu ele. Formou a meu respeito uma má opinião que não corresponde à verdade.

 

- Portanto, você só tem de me convencer de que é um bom fulano. Nunca é tarde de mais para fazermos amigos. Além do mais, só estou a sugerir-lhe que tomemos uns copos, por amor de Deus! Traga a sua amiga Lorinda. Talvez possa vender-lhe o cavalo do Sean enquanto estivermos a comer a sobremesa. Até mais tarde. Ciao.

 

Desliguei e guardei o telefone na algibeira.

 

- Sim - disse a Dugan -, tenho assuntos urgentes a tratar. Como vê, marquei um encontro com Tomas Van Zandt. - Virei-me para Wayne Armedgian. - Acha que é capaz de manter sob vigilância alguém que esteja imobilizado num parque de estacionamento?

 

Não esperei pela resposta dele.

 

- Rapazes, foi um verdadeiro prazer - acrescentei com um acenar de mão, saindo da sala.

 

Sentia-me entontecida. Tinha a sensação de que me havia abeirado de um gigante para lhe cuspir na cara. Conseguira a proeza de chatear o comandante da Brigada de Furto e Homicídio, assim como um agente especial do FBI, com poderes de chefia a nível regional, e tudo isto de uma só penada.

 

Mas, que diabo, eu é que fora a estranha que entrara sem ser convidada. Eles tinham-me excluído, e não eu a eles. Seria com grande satisfação que lhes teria dito tudo o que sabia a respeito do caso, mas a verdade é que eles não queriam a minha cooperação. Eu acabara de lhes dar a saber que não estava disposta a permitir que fizessem de mim gato-sapato. Conhecia bem os meus direitos, conhecia a lei. E sabia que a razão estava do meu lado: eles nunca teriam tido um caso para investigar se eu não tivesse importunado Landry, forçando-o a investigar, se eu não tivesse telefonado a Armedgian à procura de informações. Recusava-me terminantemente a permitir que eles me fizessem festas na cabeça, pondo-me à margem do assunto.

 

Comecei a caminhar de uma ponta à outra do passeio diante do edifício, respirando o ar pesado e quente da noite, perguntando-me se teria feito a minha jogada acertadamente, sem saber bem se isso teria alguma importância ou se já seria demasiado tarde.

 

- Você está com um traje muito suii generis, Elena Estes - disse Landry aproximando-se de mim; numa mão trazia um cigarro e na outra um isqueiro.

 

- Sim, é para admirar que as calças me sirvam.

 

- Acha que o Van Zandt tenciona aparecer no Players? perguntou-me, acendendo o cigarro.

 

- Estou em crer que sim. Ele gosta demasiado do jogo para lhe resistir. Além do mais, não se pode dizer que esteja na iminência de vir a ser preso. Sabe que você não tem nada de que possa acusá-lo, caso contrário, a esta hora já estaria na cadeia. Acredito que ele aparecerá para me atirar com isso à cara... e a si, se estivesse presente.

 

Num impulso repentino, tirei-lhe o cigarro da mão e dei uma passa. Landry ficou a olhar para mim com uma expressão imperscrutável.

 

- Você fuma? - perguntou-me.

 

- Não - respondi por entre uma baforada de fumo. Há muitos anos que deixei de fumar.

 

- Eu também - confessou ele.

 

- Isto é do maço que guarda na gaveta da secretária? perguntei.

 

- É isto ou a garrafa - respondeu ele, tirando-me o cigarro da mão. - Mas isto não me garante uma suspensão. Por enquanto.

 

- Não há dúvida de que o Weiss tem qualquer coisa que anda a roê-lo por dentro.

 

- Ele é baixote - adiantou Landry à laia de explicação.

 

- Sei que não sou bem-vinda neste assunto - acrescentei. - Mas a verdade é que sem mim não haveria qualquer investigação, e estou certa de que poderei vir a ser muito útil.

 

- Sim, eu sei. Você acabou de esfregar isso mesmo na cara do meu tenente. - A sombra de um sorriso que lhe arrepanhou os lábios deu-me a conhecer uma aprovação que para mim tinha muito significado.

 

- A subtileza está excessivamente cotada, além de levar muito tempo a actuar - afirmei eu. - Não temos tempo para estar com paninhos quentes.

 

Tirei-lhe o cigarro para uma última passa, os meus lábios a tocarem onde os dele haviam estado. Não quis permitir-me pensar que poderia existir qualquer coisa de erótico naquilo, mas é claro que havia, e Landry também estava bem ciente disso. Os nossos olhares interligaram-se, ficando presos; entre nós dois passava uma corrente.

 

- Tenho de ir - proferi eu, retrocedendo e saindo do passeio.

 

- E se o Dugan quiser que você volte lá dentro? perguntou Landry, permanecendo onde tinha parado.

 

- Ele sabe onde vou. Pode ir até lá para me pagar um copo.

 

- Você não é deste mundo, Elena Estes - retorquiu Landry com um abanar de cabeça que reflectia incredulidade.

 

- Limito-me a tentar sobreviver - repliquei, virando-lhe as costas e dirigindo-me para o meu carro.

 

Ao conduzir junto ao passeio, a caminho da saída do parque de estacionamento, os meus faróis permitiram-me ver Weiss de relance na soleira da porta do edifício. O idiota insignificante. Deduzi que arranjaria problemas a Landry por este ter partilhado um cigarro comigo, mas isso era assunto com que o detective teria de se haver. Eu já tinha problemas que me chegassem. Marcara um encontro com um assassino.

 

Cabras. Vacas ingratas e estúpidas. Van Zandt passara grande parte da sua vida a cortejá-las, a lisonjeá-las - qualquer que fosse o seu aspecto físico -, levando-as para toda a parte a fim de lhes mostrar cavalos, proporcionando-lhes os seus conselhos e ensinamentos. Elas precisavam que ele lhes dissesse o que deviam fazer, o que pensar, o que comprar. E mostravam-se agradecidas? Não. A maioria

 

era egoísta, mulheres idiotas cujas cabeças primavam pela ausência de cérebro. Mereciam ser enganadas. Mereciam o que quer que fosse que lhes acontecesse.

 

Lembrou-se de Ele. Continuava a pensar nela sob esse nome, muito embora soubesse que era um nome falso. Não era como ”a maior parte das mulheres”. Era inteligente,

 

destemida e tinha uma personalidade tortuosa. Pensava com a lógica dura de um homem, mas a que associava a manha e a sensualidade características de uma mulher. O que ele achava excitante e desafiador. Um jogo a que valia a pena entregar-se.

 

E ela tinha razão: não havia nada que pudesse fazer [para o prejudicar. Não existia nenhuma prova contra ele, consequentemente, era um homem inocente até prova em contrário.

 

Sorriu perante aquela constatação, sentindo-se feliz, inteligente e superior.

 

Pegou no telemóvel e ligou o número da casa da Lorinda, ficando a ouvir o toque de chamada sem que ninguém atendesse. O seu estado de espírito desceu em espiral. Outro toque e ouviria o atendedor de chamadas. Mas ele não queria falar com a puta de uma máquina. Onde raio estaria Lorínda? O mais certo era ter ido a qualquer lado com aquele cão detestável de que tanto gostava. Uma besta horrível que era um autêntico saco de pulgas.

 

A máquina atendeu-o e ele deixou uma mensagem para que ela fosse ao Players mais tarde.

 

Agora, num estado de irritação, desligou e arremessou o telemóvel para cima do assento da frente daquele monte de merda ordinário que era o carro que Lorinda lhe emprestara para se poder deslocar. Van Zandt não estivera disposto a tolerar que a Polícia o seguisse para onde quer que fosse. ”A perseguirem-me sem qualquer justificação para tal”, dissera ele a Lorinda. Ele era a vítima inocente de assédio policial. É evidente que ela acreditara nele, não obstante ter visto a camisa cheia de sangue. Dera-lhe uma desculpa qualquer em que ela, como seria de esperar, também acreditara.

 

A cabra estúpida. Por que razão aquela mulher não alugava um automóvel de melhor qualidade era coisa que se encontrava para lá da compreensão de Van Zandt. Lorinda possuía dinheiro que herdara da família da Virgínia. Tomas dera-se ao cuidado de investigar o passado dela. Mas desperdiçava o dinheiro em obras de caridade em prol dos cães abandonados e cavalos doentes, ao invés de o usar em seu próprio proveito. Vivia como uma cigana na quinta que pertencera à avó, tendo arrendado a mansão de plantação ao estilo colonial, enquanto ela própria vivia - com uma matilha de cães e gatos - numa casa de quinta de madeira que nunca se dava ao trabalho de limpar.

 

Tomas já lhe dissera que precisava de fazer uma plástica ao rosto e melhorar as mamas, além de ter de se arranjar; caso contrário, nunca haveria de encontrar um marido rico. Ela rira-se, perguntando-lhe por que diabo havia de querer outro marido quando tinha Tomas para olhar pelos seus interesses.

 

Criatura mais estúpida.

 

Mulheres. A ruína da sua existência.

 

Conduziu para oriente por Southern Boulevard, pensando na mulher com quem se encontraria dentro em pouco.

 

Convencida de que podia fazer chantagem com ele. Dissera-lhe que estava a par de tudo em relação à rapariga que aparecera morta, o que, é claro, não correspondia à verdade. Mas ela já provara ser um problema em ocasiões anteriores, devido às mentiras que dissera aos americanos a respeito dele. Uma puta azeda e vingativa. O que se aplicava a todos os russos. A raça de gente mais perversa que alguma vez existira à face da Terra.

 

A morte desta seria, evidentemente, culpa de Sasha KuIlak. Tomas recebera-a de braços abertos, proporcionando-lhe um tecto, um emprego e a oportunidade de aprender com ele, beneficiando dos seus vastos conhecimentos tanto na cavalariça como na cama.

 

Ela devia ter beijado o chão que ele pisava. Devia ter ansiado por lhe agradar e servi-lo. Tinha obrigação de se [mostrar agradecida. Em vez disso, roubara-o, esfaqueara-o nas costas e começara a espalhar boatos acerca dele. I E Van Zandt decidira contactar, o que o obrigara a incorrer em grandes despesas, quaisquer clientes que ela, possivelmente, tivesse conhecido e com quem houvesse falado depois de o deixar, com o intuito de os avisar de que a rapariga era uma fonte de problemas, advertindo-os de que se [tratava de uma ladra e talvez consumisse estupefacientes; para lhes dizer, como é óbvio, que ele próprio não lhe fizera nada de mal.

 

Agora, porém, via-se a braços com a amiga dela, a rapariga russa que trabalhava para Avadon. Este devia tê-la despedido imediatamente, sem apelo nem agravo, na sexta-feira, quando a rapariga tentara matá-lo nas cavalariças do próprio Avadon. O que aqueles americanos toleravam era absolutamente inacreditável.

 

A verdade é que ele começava a sentir-se farto da Florida. Estava pronto para regressar à Bélgica. Já tratara de arranjar passagem num voo com destino ao seu país. Num avião de carga, que transportaria vários cavalos para Bruxelas. Viajando como moço de estrebaria, nunca tinha de pagar passagem. Tencionava continuar ali com a sua actividade por mais um dia, mostrando a toda a gente que não tinha nada a esconder, nem razões para temer a Polícia. Em seguida, retornaria à Europa por algum tempo, tencionando regressar aos Estados Unidos quando as pessoas tivessem mais que fazer do que de falar mal dele.

 

Abrandou a velocidade a que seguia enquanto procurava uma placa toponímica. Sugerira que se encontrassem nas traseiras do centro equestre, mas a rapariga recusara, insistindo para que o encontro tivesse lugar num local público. Aquele era o local por que ele optara: o Madga’s - um bar reles numa zona industrial de West Palm Beach. Uma construção de madeira que até mesmo na escuridão tinha o aspecto de estar a precisar de ser pintada, e provavelmente carcomida pelas térmites.

 

Van Zandt entrou no caminho de acesso ao bar, contornando-o à procura de um lugar nas traseiras onde estacionar.

 

Encontrar-se-ia com a rapariga no interior do bar, oferecendo-lhe uma bebida. Numa altura em que ela estivesse distraída, poria uma droga no copo. Era uma coisa muito simples. Começariam a conversar, ele tentaria sossegá-la, afirmando-lhe que teria havido um mal-entendido com relação a Sasha. Entretanto, a droga começaria a produzir efeito. Quando lhe parecesse que era o momento mais oportuno, com ela incapaz de protestar, fingiria que a ajudava a caminhar quando ambos saíssem do bar.

 

Ela daria a impressão de estar embriagada. Colocá-la-ia dentro do automóvel, seguindo para um local onde pudesse despachar a rapariga sem ser visto, após o que trataria de ocultar o cadáver.

 

Van Zandt encontrou um lugar para estacionar, recuando ao longo de uma vedação de malha de ferro que separava os terrenos do bar de um depósito de sucata. O lugar ideal. Fora da vista de quem passasse. Tencionava resolver aquele problema com toda a rapidez e limpeza e, depois, seguiria para o Players, onde tomaria uns copos na companhia de Elena Estes.

 

Entrei no Players sozinha. Se Van Zandt viesse acompanhado de Lorinda Carlton, apresentaria uma desculpa qualquer pela ausência de Sean, uma vez que não queria arrastá-lo para aquele drama, mais ainda do que já tinha feito.

 

O clube estava muito movimentado. Uns celebravam as suas vitórias no hipódromo, enquanto os vencidos afogavam as mágoas. A maior parte das cavalariças encerrava às segundas-feiras, de modo a permitir que todos pudessem recuperar forças depois das competições do fím-de-semana. Portanto, não havia nada que justificasse que se fosse para a cama cedo na noite de domingo.

 

Aquele clube constituía um palco para uma centena de actores. As mulheres exibiam as últimas modas de Palm Beach, assim como as cirurgias plásticas mais recentes. Havia praticantes de pólo, de tez trigueira, oriundos da América do Sul, que se atiravam a tudo o que usasse saias, desde que fossem ricas. Celebridades de menor importância que se encontravam na cidade para um fim-de-semana mais comprido. Membros da realeza da Arábia Saudita. Todos os pares de olhos no salão procuravam o parceiro com que tivessem mais possibilidades de manter uma conversa prometedora.

 

Encontrei uma pequena mesa a um canto do bar, sentando-me de costas para a parede, de onde podia ver toda a sala. Mandei vir um sumo de lima com água tónica, tentando correr com uma antiga estrela de basebol que queria saber se me conhecia.

 

- Não - disse-lhe eu, intrigada por ter sido alvo das suas atenções. - E garanto-lhe que não quer vir a conhecer-me.

 

- E porquê?

 

- Porque eu só sei arranjar problemas - respondi-lhe.

 

Mesmo assim, ele sentou-se na cadeira em frente da minha, debruçando-se sobre a mesa. O seu sorriso iluminara muitos anúncios publicitários para serviços de comunicações de longa distância que ofereciam tarifas reduzidas, assim como roupa interior muito colorida.

 

- Não podia ter dito nada mais errado. Agora sinto-me intrigado.

 

- Mas acontece que estou à espera de uma pessoa.

 

- Um tipo cheio de sorte. O que tem ele que eu não tenha?

 

- Não sei - respondi com um meio sorriso. - Ainda não tive oportunidade de o ver só com roupa interior.

 

- Eu não tenho segredos - replicou ele abrindo as mãos e mostrando-me um sorriso rasgado.

 

- Você não tem é vergonha.

 

- Não. Mas no fím fico sempre com a rapariga.

 

- Não desta vez, campeão - repliquei com um abanar de cabeça.

 

- Este indivíduo está a importuná-la, ele?

 

Ergui o olhar, deparando com Don Jade, que se aproximara de mim com um martini na mão.

 

- Não, receio dizer que quem está a dificultar-lhe a vida sou eu - redargui.

 

- Qualquer coisa assim - disse o homem do basebol, soerguendo as sobrancelhas repetidamente. - Não está à espera deste sujeito, pois não?

 

- Por acaso, até estou.

 

- Até depois de me ter visto de roupa interior?

 

- Gosto de surpresas. O que é que lhe hei-de dizer?

 

- Diga-me que tenciona mandá-lo dar uma volta mais tarde - sugeriu ele levantando-se da mesa. - Estarei ao fundo do balcão.

 

Fiquei a vê-lo afastar-se, sentindo-me surpreendida comigo própria por ter gostado que alguém se tivesse atirado a mim daquela maneira descarada.

 

- Não se mostre tão impressionada - comentou Jade, ocupando a cadeira acabada de vagar. - Ele é todo muita parra e pouca uva, como costumamos dizer no Texas.

 

- E como é que você sabe isso? - perguntei. Olhou-me com uma firmeza que desmentia a bebida que tinha na mão. Estava sóbrio que nem um juiz.

 

- Ficaria surpreendida se soubesse tudo o que eu sei, ele.

 

Bebi um pequeno gole da minha bebida com água tónica, interrogando-me sobre se ele conheceria a minha verdadeira identidade; perguntando-me se Van Zandt o teria posto ao corrente, ou mesmo Trey, ou se, por outro lado, teria sido deixado fora desse segredo com um objectivo predeterminado.

 

- Não, não me parece que ficasse surpreendida - repliquei. - Tenho a certeza de que não haverá muita coisa que lhe passe despercebida.

 

- É verdade - confirmou Jade.

 

- Foi por isso que ontem esteve com os detectives durante tanto tempo? - perguntei. - Porque tinha muito para lhes contar?

 

- Não, receio ter de lhe confessar que o assassínio de Jill Morone é um assunto sobre o qual não sei absolutamente nada. E quanto a si?

 

- Eu?! Também não sei nada. Acha que devíamos perguntar a outra pessoa? O Van Zandt ficou de vir mais tarde. Que tal se lhe perguntássemos? Tenho um pressentimento de que ele poderia contar-nos algumas histórias que fariam com que ficássemos com os cabelos em pé.

 

-Não é muito difícil levar qualquer pessoa a contar-nos uma história, ele - retrucou Jade.

 

- Não. O mais difícil é fazer com que nos contem a verdade.

 

- E é disso que você anda à procura? Da verdade?

 

- Sabe bem o que se costuma dizer: a verdade libertar-nos-á.

 

Jade bebeu um pouco do seu martini, com o olhar perdido no vazio.

 

- Tudo isso depende da pessoa que cada um é, não lhe parece?

 

A rapariga esperava por baixo da luz da porta das traseiras. Tinha o cabelo tufado como se fosse a juba de um leão. Usava umas calças pretas coladas às pernas compridas e vestia um blusão de ganga; pintara a boca com um batom escuro. Fumava um cigarro.

 

Van Zandt não ficou bem certo de ela ser a rapariga que trabalhava para Sean Avadon. Aquele tipo de raparigas nunca tinha o mesmo aspecto quando se encontravam fora dos estábulos.

 

Van Zandt abriu a porta do automóvel e saiu, perguntando a si mesmo se não seria preferível atraí-la de modo a nem sequer terem de entrar no bar, para a empurrar para dentro do carro quando estivesse desprevenida, pondo-se a andar dali para fora sem mais perdas de tempo. Porém, correria o risco de haver uma testemunha, alguém que na altura saísse pela porta das traseiras do bar. No preciso momento em que este pensamento lhe passou pela cabeça, a porta abriu-se e do interior surgiu um indivíduo corpulento.

 

Deixou-se ficar mesmo por baixo da luz, com os pés afastados e as mãos entrelaçadas diante do corpo. A rapariga ergueu o olhar, fitando o homem enquanto esboçava um sorriso sedutor, dizendo qualquer coisa em russo.

 

A meio caminho entre o carro e o bar, Van Zandt sentiu-se percorrer por uma sensação de apreensão. Retardou a passada. O russo corpulento tinha algo na mão. Talvez fosse uma arma.

 

Atrás de si, Van Zandt ouvia o barulho de portas de automóveis que eram abertas e fechadas, seguido do som de passos sobre o pavimento de cimento.

 

Pensou que tinha cometido um erro terrível. A rapariga estava suficientemente perto para ele poder ver que ela o olhava, sorrindo-lhe com uma expressão matreira. Virou-se, tentando voltar para o carro. Deparou com três homens à sua frente; dois tinham a constituição de cavalos de trabalho e ladeavam um homem mais baixo que usava um bom fato completo azul-escuro.

 

- Está a pensar que não devia ter vindo, Mister Van Zandt? - perguntou-lhe o mais baixo.

 

- Conheço-o de algum lado? - inquiriu o interpelado, olhando o outro com uma expressão de sobranceria.

 

- Não - respondeu o homem quando os seus parceiros avançaram, agarrando Van Zandt, cada um por um braço. - Mas talvez reconheça o meu nome: Kulak. Alexi Kulak.

 

- Acredita no carma, ele? - perguntou Jade.

 

- Meu Deus, nem pensar!

 

Jade continuava a beberricar o mesmo martini. Eu já ia na minha segunda água tónica com lima. Um par de forretas. Já ali estávamos há quinze minutos e nem sinais de Van Zandt.

 

- Por que razão é que eu haveria de acreditar nisso? perguntei.

 

- Tudo o que vai, mais cedo ou mais tarde, acabará por voltar.

 

- Para toda a gente? Para mim? Não, muito obrigada.

 

- E o que terá você feito, tendo agora de pagar por isso? - perguntou Jade.

 

- Houve uma ocasião em que matei um homem confessei com serenidade, apenas para ver a expressão no rosto dele. Muito provavelmente, aquela seria a primeira vez que ele se sentiria surpreendido em dez anos. - Preferia que isso não voltasse para me atormentar.

 

- Você matou um homem? - perguntou ele, esforçando-se por não se mostrar atónito. - E ele estava a pedi-las?

 

- Não. Foi um acidente... caso acredite em acidentes. E quanto a si? Está à espera que as suas acções do passado voltem para lhe armar uma cilada? Ou estará à espera que outra pessoa cobre as suas dívidas?

 

Jade acabava a sua bebida quando Susannah Atwood entrou no bar.

 

- Vou dizer-lhe em que é que acredito, ele - respondeu. - Acredito em mim, acredito no agora, acredito em planos cuidadosamente arquitectados.

 

Apeteceu-me perguntar-lhe se nos seus planos estava previsto que alguém assassinasse Jill Morone e raptasse Erin Seabright. Queria perguntar-lhe se dos seus planos constava que Paris Montgomery tivesse um caso amoroso com Trey Hughes, mas eu já tinha perdido a sua atenção. - A minha convidada para jantar já chegou - anunciou Jade, levantando-se da minha mesa. Olhou-me e sorriu com um misto de assombro e galhofa. - Obrigado pela conversa, ele. Você é uma pessoa fascinante.

 

- Boa sorte com o seu carma - desejei-lhe.

 

- E para si com o seu.

 

Fiquei a observá-lo enquanto atravessava a sala, interrogando-me sobre o que teria motivado aquela manifestação repentina da sua faceta filosófica. Se ele fosse um homem inocente, pensaria que aquela viragem súbita de pouca sorte seria o preço a pagar por acções de que se saíra impunemente no seu passado? Ou estaria a pensar nos mesmos moldes em que eu pensava? Que a má sorte era coisa que não existia, tal como não havia nada que fosse acidental nem tão-pouco coincidências. Se acreditasse que havia alguém que estava a pôr-lhe a corda ao pescoço, de quem é que gostaria como candidato?

 

Pelo canto do olho, podia ver o jogador de basebol a preparar-se para ocupar a cadeira de onde Jade acabara de sair. Levantei-me da mesa e saí do bar; a minha paciência para ser namoriscada tinha-se esgotado. Queria que Van Zandt aparecesse, quanto mais não fosse para poder atirar à cara de Dugan e de Armedgian o facto, comprovado, de poder ser útil às investigações.

 

Acreditava que Van Zandt compareceria ao encontro, convencida de que ele seria incapaz de resistir à oportunidade de estar num local público, relaxado e satisfeito consigo próprio, a conversar com alguém que achava que ele era um assassino, mas que não podia fazer nada quanto a isso. A sensação de poder que isso lhe daria seria demasiado inebriante para se privar desse prazer.

 

Interroguei-me sobre quais seriam os afazeres que poderiam prendê-lo nessa noite, se isso teria alguma coisa a ver com o rapto de Erin Seabright. Também gostaria de saber se ele seria o homem de preto que Landry descrevera a chicotear perversamente a rapariga com um pingalim. Sacana cheio de sadismo. Não me era difícil imaginá-lo a vir-se devido a esse tipo de coisa. Controlo era o nome do seu jogo.

 

Enquanto me deixava ficar do lado de fora das portas do Players, imaginei-o na cadeia, sofrendo da suprema falta de controlo em que cada minuto da sua vida seria ditado por outrem.

 

Carma. Talvez, ao fim e ao cabo, eu quisesse acreditar nessa filosofia.

 

O espancamento não foi o pior aspecto da situação. O pior era saber antecipadamente que, quando a sova terminasse, também a sua vida teria chegado ao fim. Ou talvez o pior fosse saber que não tinha o mínimo controlo sobre a situação. Todo o poder se encontrava na posse de Alexi Kulak, o primo dessa puta russa que arruinara a sua vida.

 

Enquanto o russo postado à porta das traseiras do bar impedia a saída de qualquer pessoa que pudesse testemunhar a agressão, havia sido Kulak quem, pessoalmente, tapara a boca de Van Zandt com uma tira de fita adesiva, servindo-se da mesma fita para lhe manietar as mãos atrás das costas. Empurraram-no para o assento traseiro do automóvel de aluguer de Lorinda Carlton, que conduziram saindo por um portão aberto que dava acesso ao depósito de sucata por detrás do bar. Chegados aí, estacionaram dentro de uma garagem cavernosa e imunda, arrastando-o para fora do carro. Como seria de esperar, Van Zandt ainda tentou fugir. A cambalear desajeitadamente, porque tinha os braços atados atrás das costas e o pânico a correr-lhe como água pelas pernas, pareceu-lhe que a porta estava cada vez mais longe enquanto tentava correr. Os rufias apanharam-no com mãos brutas, arrastando-o para cima de um vasto oleado negro que fora estendido no chão de cimento. Num dos extremos do oleado, alguém tinha alinhado várias ferramentas, como se fossem instrumentos cirúrgicos: um martelo, um pé-de-cabra e alicates. As lágrimas assomaram aos olhos de Van Zandt ao mesmo tempo que a bexiga não aguentou, dando saída à urina morna.

 

- Parte-lhe as pernas - instruiu Kulak com toda a calma. - Para que ele não possa fugir como o cobarde que é.

 

O mais corpulento dos rufias mantinha-o imobilizado no oleado, enquanto o outro pegava num martelo. Van Zandt começou a espernear e a contorcer-se, desesperado. O russo desferiu um golpe com o martelo, mas não lhe acertou, praguejando em voz alta quando a cabeça do martelo bateu no chão. Quando o desferiu pela segunda vez, acertou em cheio no alvo, atingindo o extremo interior da rótula e esmagando o osso, como se fosse uma casca de ovo.

 

Os gritos de Van Zandt eram sufocados pela fita aderente. As dores explodiram-lhe no cérebro, qual supernova de um branco muito intenso. O corpo foi percorrido por estertores, como se formassem um tornado. Os intestinos também não aguentaram e o fedor fétido dos excrementos deu-lhe vontade de vomitar. O terceiro golpe acertou-lhe em cheio na canela abaixo do outro joelho, com tanta violência que lhe fragmentou o osso; a cabeça do martelo chegou aos tecidos macios por baixo da tíbia.

 

Houve alguém que, de repelão, lhe retirou a fita da boca, e Van Zandt virou-se de lado para vomitar convulsivamente.

 

- Seu profanador de jovens! - vociferou Kulak. Assassino! Violador! A justiça norte-americana é demasiado boa para ti. Este é um grande país, mas generoso de mais. Os Americanos passam a vida a dizer ”por favor” e ”obrigado”, mas permitem que os assassinos andem à solta devido a manobras legais. A Sasha está morta por tua causa. E agora, assassinaste uma rapariga e a Polícia nem sequer tem maneira de te mandar para a prisão.

 

Van Zandt sacudiu a cabeça, arrastando a cara pela porcaria que sujava o oleado. Estava com vómitos e a sua respiração era ofegante.

 

- Não. Não. Não! Eu não fiz... acidente... não foi por minha culpa. - As palavras saíam-lhe da boca por entre arrancos. As dores pulsavam através dele como choques eléctricos que lhe rasgassem os tecidos.

 

- Tu és um monte de merda que só abre a boca para dizer mentiras! - ripostou Kulak. - Sei tudo a respeito da camisa manchada de sangue. Sei que também tentaste violar esta rapariga, como violaste a Sasha! - acrescentou Kulak, começando a invectivá-lo em russo, enquanto fazia um gesto com a cabeça aos rufiões. Deu alguns passos atrás, ficando a observar calmamente enquanto eles espancavam Van Zandt sem piedade com finas varas de ferro. Batiam-lhe à vez e cada um escolhia metodicamente a região do corpo que queria atingir. De quando em vez, Kulak dava instruções em inglês, de modo a que Van Zandt fosse capaz de compreender o que dizia.

 

Em princípio, eles não deviam agredi-lo na cabeça. Kulak queria que ele permanecesse consciente, capaz de ouvir e poder sentir as dores atrozes que lhe eram infligidas. Tinham instruções para não o matarem - ele não merecia uma morte rápida.

 

Assim, as pancadas eram dadas estrategicamente.

 

Van Zandt esforçava-se por falar, tentava implorar, tentava explicar-se, assacar culpas a outro que não ele. Não fora por sua culpa que Sasha se havia suicidado. Também não fora por sua culpa que Jill Morone tinha morrido sufocada. Jamais forçara uma mulher a ter relações sexuais consigo.

 

Kulak, cheio de raiva, caminhou pelo oleado para o pontapear na boca. Van Zandt engasgou-se devido ao sangue e dentes partidos, o que lhe provocou vómitos e ataques de tosse.

 

- Estou farto de ouvir as tuas desculpas - rosnou Kulak. - No teu mundo, não és responsável por nada do que fazes. Mas no meu mundo, um homem tem de pagar pelos seus pecados.

 

Kulak fumou um cigarro enquanto esperava que a boca de Van Zandt deixasse de sangrar, após o que lhe enfaixou a parte inferior da cabeça com várias voltas de fita adesiva, tapando-lhe a boca. Também lhe enfaixaram as pernas partidas, atirando-o para dentro do porta-bagagens do carro que Lorinda Carlton alugara.

 

A última coisa que Van Zandt viu foi Alexi Kulak inclinado para baixo para lhe escarrar na cara, após o que o porta-bagagens foi fechado. O mundo de Tomas Van Zandt ficou envolto em negrume, e a espera excruciante começou.

 

Nessa noite, no Players, observei o mundo que chegava e saía, mas Tomas Van Zandt não apareceu. Ouvi uma mulher que perguntou por ele junto do balcão do bar, deduzindo que talvez fosse Lorinda Carlton: os efeitos cruéis dos cinquenta anos, com um aspecto de Cher, versão ordinária. Se fosse ela, isso significava que Van Zandt lhe teria telefonado, combinando um encontro para tomarem uns copos. No entanto, não havia sinais de Van Zandt.

 

Avistei Irina, que entrou acompanhada de algumas amigas por volta das onze da noite. As ”gatas borralheiras” tinham ido à cidade, mesmo a tempo de poderem gastar cinco dólares numa bebida, aproveitando para namoriscar alguns praticantes de pólo antes que os coches se transformassem em abóboras, sendo obrigadas a regressar aos quartos alugados e aos apartamentos por cima das cavalariças.

 

Mais ou menos à meia-noite, o homem do basebol voltou a tentar a sua sorte.

 

- Última chamada para um romance - disse-me ele com um sorriso conquistador, sobrancelhas arqueadas.

 

- O quê? - perguntei, fingindo-me surpreendida. Esteve aqui toda a noite e ainda não tem uma coisinha doce pelo braço?

 

- Estive a guardar-me para si - respondeu-me ele.

 

- Você conhece as deixas todas.

 

- Acha que preciso de outra? - perguntou, sorridente.

 

- Vais precisar de dar uma volta ao bilhar grande, meu mentecapto - exclamou Landry aproximando-se do homem e exibindo o seu crachá.

 

O homem do basebol ficou a olhar para mim.

 

- Eu já lhe tinha dito que só arranjava problemas recordei-lhe eu com um encolher de ombros.

 

Mostrando-se resignado, o homem despediu-se com um pequeno gesto da mão e bateu em retirada.

 

- Que diabo é que foi tudo isso? - perguntou-me Landry, mostrando-se perturbado e sentando-se à minha mesa.

 

- Uma rapariga precisa de arranjar maneira de passar o tempo.

 

- Já desistiu do Van Zandt?

 

- Eu diria que, para todos os efeitos, me deixaram pendurada. E, para todos os efeitos, fiz figura de parva. O Dugan já chamou os cães?

 

- Há cinco minutos. Mas ele apostava em si. O que já é alguma coisa.

 

- Nunca se deve apostar num cavalo desconhecido comentei eu. - Nove em dez vezes, acaba-se por rasgar o bilhete da aposta.

 

- Mas podemos recuperar das perdas quando um sai vencedor - apontou ele.

 

- Não me parece que o Dugan seja homem que jogue.

 

- Mas por que razão você há-de importar-se com o que o Dugan possa pensar? Não tem de responder-lhe por nada.

 

Não quis admitir perante ele que me importava, e muito, conseguir recuperar parte do respeito que eu própria tinha destruído quando a minha carreira terminara. Não quis dizer-lhe que desejara causar boa impressão aos olhos de Armedgian. Tinha a sensação desconfortável de que não precisava de o dizer. Landry observava-me mais atentamente do que me agradava que o fizesse.

 

- Foi preciso muito arrojo para telefonar ao Van Zandt como você fez - recordou-me ele. - E é possível que isso tenha dado os seus frutos. O que é que ele lhe respondeu quando lhe perguntou se estava livre?

 

- Disse que ainda tinha de tratar de uns assuntos. Provavelmente, largar o corpo da Erin num ermo qualquer.

 

- Vi a Lorinda Carlton - acrescentou Landry. - Parei para falar com ela quando já ia a sair.

 

- Trança comprida com uma pena? - perguntei. Empanada na berma da auto-estrada da moda?

 

- Miau - replicou ele, mostrando-se divertido com aquela descrição.

 

- Bem vê, qualquer mulher suficientemente estúpida para se deixar apanhar pela lábia do Van Zandt não me merece o mínimo respeito.

 

- Nisso estou inteiramente de acordo consigo - retorquiu Landry. - Esta serviu-se de uma dose suplementar de estupidez. Aposto cem dólares em como ela viu a camisa ensanguentada, e se calhar até ajudou o Van Zandt a livrar-se dela, mas, apesar disso, continua a acreditar que ele é um príncipe.

 

- O que é que ela tinha a dizer esta noite?

 

- Ainda que eu estivesse envolto em chamas, ela recusar-se-ia a chamar o cento e doze - respondeu Landry, fingindo bufar de fúria. - Considera que eu sou o demónio. Não me disse nada de novo. Mas não me parece que ela tenha vindo aqui para engatar homens. Não sei porquê, mas imagino que a noção que ela tem de uns momentos bem passados se traduz em queimar incenso, enquanto lê poesia rasca em voz alta.

 

- Ela perguntou ao empregado do bar se esta noite já tinha visto o Van Zandt - informei.

 

- Isso significa que ela veio cá na expectativa de o encontrar. Está a ver? Afinal, você não andou muito longe de acertar.

 

O bar estava prestes a fechar; os empregados de mesa punham as cadeiras em cima dos tampos, levando os copos para o balcão. Com lentidão, levantei-me da cadeira, sentindo o corpo dorido e perro, o que se devia às minhas aventuras ao longo dos últimos dias. Deixei uma nota de dez dólares em cima da mesa como gratificação para a empregada.

 

- Muito generosa - comentou Landry arqueando o sobrolho.

 

- Ela tem um emprego de merda e eu vivo dos meus rendimentos - repliquei, encolhendo os ombros.

 

Saímos juntos. Os porteiros que arrumavam os automóveis dos clientes já tinham dado o dia por terminado. Vi o carro de Landry de frente para o meu no parque de estacionamento no nível inferior.

 

- Não conheço nenhum polícia que tenha esse tipo de rendimento - disse ele.

 

- Não faça um bicho-de-sete-cabeças disso, Landry. Além do mais, tal como você não perde oportunidade de me recordar, eu já não sou polícia.

 

- Não tem um crachá - corrigiu ele.

 

- Ah, terei eu motivo para me sentir lisonjeada ou será isso um sarcasmo indirecto? - perguntei quando já estávamos junto dos automóveis.

 

- Não comece para aí a tirar grandes ilações, Elena Estes - replicou ele com um sorriso indecifrável.

 

- Pois bem, comportar-me-ei como uma senhora, agradecendo em qualquer dos casos.

 

- O que a levou a enveredar por uma carreira de polícia? - perguntou Landry. - Você podia ter sido qualquer

 

coisa, ou feito o que bem lhe apetecesse.

 

Olhei em redor enquanto pensava em como lhe responder àquela pergunta. A noite estava quase abafada, a luz do luar brilhava, branca, através da humidade. A fragrância das plantas verdejantes e da terra húmida, que se juntava à das flores tropicais, perfumava o ar.

 

- Qualquer seguidor das teorias freudianas bocejaria de tédio, dizendo que a minha escolha tinha sido uma rebelião evidente contra o meu pai.

 

- E foi?

 

- Sim, mas não apenas por isso - admiti. - Durante a minha meninice, tive oportunidade de observar o meu pai a dobrar a justiça como se fosse uma boneca de borracha, vendendo-a a quem fizesse a melhor oferta. Cheguei à conclusão de que teria de haver alguém que servisse de fiel da balança, equilibrando o outro prato, que fizesse um esforço para que as duas forças se igualassem.

 

- Sendo assim, porque não trabalhar como advogada do Gabinete do Procurador Público?

 

- Burocracia a mais. Excesso de politiquices. Talvez ainda não se tenha apercebido disso, mas a diplomacia e o lamber botas não se encontram na minha lista de talentos. Além do mais, os advogados do procurador público não têm a oportunidade de fazer coisas giras, como ser alvejado ou espancado.

 

Landry não se riu. Olhou-me daquela maneira intensa que fazia com que eu me sentisse despida e vulnerável.

 

- Você é uma mulher e tanto, Elena Estes - murmurou ele.

 

- Sim, sou uma mulher e tanto.

 

Claro que o sentido que eu imprimia à frase não era o mesmo que ele lhe dera. No espaço de uma semana, eu tinha perdido de vista a pessoa que era. Sentia-me como uma criatura estranha, saída de um casulo, sem saber bem em que é que o processo de metamorfose me transformara.

 

Landry tocou-me na face, na esquerda - onde a sensação táctil era mais uma vaga recordação do que real. De uma maneira estranha, aquilo parecia-me apropriado, o facto de ele não conseguir tocar-me realmente, de eu não poder permitir a mim mesma sentir aquele afago de maneira intensa, capaz de abalar os nervos, que em tempos poderia ter sentido. Havia tanto tempo que eu não deixava que ninguém me tocasse, que não sabia se teria conseguido aceitá-lo de outro modo.

 

Ergui o queixo e olhei-o bem de frente, perguntando-me o que é que ele veria nos meus olhos. Que eu me sentia vulnerável, o que não lhe agradaria? Que eu estava na expectativa, o que me enervara? Que eu não confiava inteiramente nele, mas que, não obstante, sentia a atracção que ele exercia sobre mim?

 

Landry aproximou-se mais, colocando os seus lábios nos meus. Não tentei impedir o beijo, participando, ainda que com uma timidez que talvez tivesse parecido despropositada. Mas a verdade naquela situação era que a Elena que ali se encontrava, naquele momento, nunca tinha sido beijada. As experiências do período pré-exílio pareciam-me tão distantes como algo que em tempos lera num livro.

 

A boca dele sabia a café e a vestígios de tabaco. Era cálida e firme. Também pensei que ele beijava com premeditação. Agradável. Estimulante.

 

Gostaria de saber o que é que ele sentira, se achara que eu tinha sido indiferente, se se perguntaria como é que a minha boca funcionava... - ou não funcionava. Senti-me extremamente consciente de mim mesma.

 

A palma da minha mão estava apoiada no peito dele. Sentia o bater do seu coração, perguntando-me se sentiria as pulsações aceleradas do meu.

 

Landry ergueu a cabeça e olhou para mim. Esperando, esperando. Esperando...

 

Não preenchi o silêncio com um convite, se bem que parte de mim, sem a menor dúvida, desejasse fazer isso. Contra o que era meu costume, pensei antes de agir. Pensei que, possivelmente, viria a arrepender-me da minha atitude, mas, embora eu fosse suficientemente destemida para brincar com um assassino e para desafiar a autoridade do FBI, não tinha coragem suficiente para aquele aspecto de vida.

 

Os cantos da boca de Landry elevaram-se à medida que ele dava a impressão de conseguir ler todos os pensamentos que eu era incapaz de destrinçar na minha própria mente.

 

- Eu sigo atrás de si até casa - disse ele. - Para me certificar de que o Van Zandt não está à sua espera.

 

- Obrigada - agradeci-lhe com um menear de cabeça, desviando os olhos. Receava olhar para ele, receava que pudesse abrir a boca para lhe pedir que passasse a noite comigo.

 

Virei-lhe costas e entrei no meu carro, sentindo-me mais receosa agora do que naquela manhã, quando pensei que talvez tivesse de apunhalar um homem para salvar a minha própria vida.

 

O percurso até à quinta de Sean fez-se sem nada de assinalável. A casa principal estava às escuras. Vi uma única luz que se filtrava pela janela do apartamento de Irina por cima das cavalariças. Van Zandt não se encontrava ali, escondido, à minha espera.

 

Landry entrou comigo, passando uma vista de olhos por todas as divisões. Em seguida, encaminhou-se para a porta como um cavalheiro, esperando, uma vez mais, que eu tomasse a iniciativa.

 

Agitei-me, inquieta, roendo a unha do polegar e cruzando os braços.

 

- Eu... bem... convidá-lo-ia a ficar, mas acontece que estou a meio deste assunto do rapto e...

- Eu compreendo - retorquiu ele, observando-me atentamente com uma expressão intensa nos olhos escuros. Fica para a próxima.

 

Se eu tinha resposta para aquilo, ficou presa na minha garganta. E depois ele foi-se embora.

 

Fechei a porta à chave e desliguei as luzes antes de ir para o quarto, onde me despi. Tomei um duche, lavando o cheiro a fumo de tabaco que se me entranhara no cabelo Depois de me ter secado, deixei-me ficar durante muito tempo diante do espelho, a olhar para o meu corpo, a examinar o meu rosto; tentando chegar a uma conclusão quanto à pessoa que estava a ver, a pessoa em que eu me tornara.

 

Pela primeira vez em dois anos vi uma mulher, em vez de uma aparição, em vez de uma máscara, em vez da carapaça do meu próprio ser que eu tanto detestava.

 

Olhei para as cicatrizes, nos sítios em que o asfalto arrancara a minha pele, que fora substituída por enxertos. Perguntei a mim mesma qual seria a reacção de Landry se eu permitisse que ele visse de perto, e com uma boa luz, toda a extensão daquelas lesões. Desagradava-me bastante sentir-me vulnerável na sua presença. Queria acreditar que ele olharia para o meu corpo sem se sentir chocado, sem dizer nada.

 

O facto de eu estar sequer a reflectir naqueles pensamentos, para mim, era assombroso. Refrescante. Encorajador. Ainda havia esperança.

 

Esperança. O que eu não quisera. Mas de que precisava. Precisava de ter esperança por Erin, por Molly... e por mim.

 

Talvez, pensei, talvez eu já tivesse sido suficientemente punida, era muito possível que o castigo fosse contraproducente se eu continuasse a arrastá-lo, deixando de ter objectivo para passar a ser autodestrutivo, servindo uma satisfação mórbida. Eu nem sempre tinha agido do modo mais acertado naquele caso; contudo, tentara dar o meu melhor por Erin Seabright, sentindo que era meu dever considerar que isso contava para alguma coisa.

 

Fui ao quarto e abri a gaveta da mesa-de-cabeceira, de onde tirei o frasco dos sedativos. Sentindo uma estranha amálgama de receio e leviandade, levei os comprimidos para a casa de banho, espalhando-os em cima da bancada do lavatório. Contei-os um a um, tal como havia feito quase todas as noites dos dois últimos anos. Um a um, deixei-os cair na sanita, puxando a descarga do autoclismo.

 

     EXTREMO DO PARQUE

     ESTACIONAMENTO DE UM CENTRO COMERCIAL

 

O parque de estacionamento está quase vazio. Há apenas umas quantas correntezas de automóveis na zona mais próxima do supermercado, o qual se mantém aberto durante as vinte e quatro horas do dia. O resto dos estabelecimentos comerciais encontra-se às escuras.

 

A rapariga corre para o supermercado. Sente as pernas fracas e está cansada. Chora. O cabelo está muito despenteado e emaranhado. Tem hematomas no rosto. Os braços estão cobertos de vergões avermelhados.

 

Avista dois carros-patrulha com o símbolo do condado de Palm Beach parados no parque lado a lado, e encaminha-se para aí. Tenta gritar por socorro, mas tem a garganta seca, semelhante a pergaminho, pelo que mal consegue emitir um único som.

 

A escassos metros da primeira viatura, tropeça e cai desamparada sobre as mãos e os joelhos.

 

RAPARIGA

 

- Socorro! Ajudem-me! Por favor.

 

Ela sabe que o agente de polícia não consegue ouvir as suas súplicas murmuradas. Encontra-se apenas a uns quantos metros do carro, contudo, não tem forças para se levantar do chão. Deita-se no pavimento de cimento e começa a chorar convulsivamente. O agente dá por ela e sai do seu carro-patrulha.

 

POLÍCIA

 

- Menina? Menina? Está a sentir-se bem?

 

A rapariga levanta a cabeça e olha para ele, recomeçando a chorar, mas, desta feita, de alívio.

 

O polícia ajoelha-se no chão ao seu lado. Chama o colega.

 

POLÍCIA

 

- Reeger! Manda vir uma ambulância! (Depois, falando

 

para a rapariga) Menina? Consegue falar comigo?

 

É capaz de me dizer o seu nome?

 

RAPARIGA

 

- Erin. Erin Seabright.

 

- Em que estado é que ela se encontra? - perguntou Landry quando entrou no Serviço de Urgência do Hospital de Palms West. O agente de polícia que tinha levado Erin directamente para as urgências caminhava ao seu lado.

 

- Foi espancada com muita violência, mas, mesmo assim, está consciente e a falar.

 

- Foi vítima de abuso sexual?

 

- A médica está a examiná-la neste preciso momento para determinar isso.

 

- Onde é que a encontrou?

 

- Eu e o Reeger estávamos no parque de estacionamento do Publix. De repente, ela apareceu a correr vinda não sei de onde. - Enquanto dava estas explicações, o homem apontou, indicando a Landry a sala de observações.

 

- Ela disse como é que foi parar onde a encontraram? perguntou Landry.

 

- Não. Parecia bastante histérica, a chorar e não sei que mais.

 

-Viu alguém nas proximidades? Algum veículo?

 

- Não. Já destacámos duas viaturas que andam a patrulhar as redondezas, à procura de qualquer coisa fora do normal.

 

Landry bateu à porta ao de leve, mostrando o seu crachá

 

à enfermeira que espreitou pela abertura.

 

- Estamos quase a acabar - informou ela.

 

- Como é que ela está? Encontraram alguma coisa?

 

- Eu diria que nada de conclusivo.

 

Landry assentiu com um gesto de cabeça e afastou-se da sala, tirando o telemóvel da algibeira. Dugan, em pessoa fora informar os Seabright dos últimos acontecimentos Weiss ainda não aparecera.

 

Marcou o número de Elena e ficou a ouvir o toque de chamada. Tentou não a imaginar deitada na cama. O sabor da boca dela continuava a pairar na sua memória.

 

- Estou? - atendeu ela numa voz que parecia mais cautelosa do que cansada.

 

- Elena? Fala o Landry. Está acordada?

 

- Estou - respondeu numa voz onde continuava a adivinhar-se uma nota de cautela.

 

- A Erin Seabright foi levada para o Serviço de Urgência do Hospital de Palms West. Ou ela conseguiu fugir ou os raptores puseram-na em liberdade. Ainda não sei como é que as coisas se passaram.

 

- Oh, meu Deus! Já a viu? Já falou com ela?

 

- Não. Neste momento estão a examiná-la para se saber se foi violada.

 

- Graças a Deus que está viva. A família já foi informada?

 

- O tenente Dugan foi falar com eles. Estou à espera que venham ao hospital dentro em pouco. Mas agora tenho de desligar - atalhou Landry quando avistou Weiss, que dava a impressão de estar perdido no balcão da recepção.

 

- De acordo. Landry?

 

- Sim...?

 

- Obrigada por me ter informado de imediato - agradeceu ela.

 

- Bem... vendo as coisas, o caso começou por ser seu retorquiu Landry. Deu o telefonema por terminado e prendeu o telemóvel no cinto das calças, sem desviar o olhar de Weiss.

 

- Estavas a falar com o Dugan? - perguntou este.

 

- Ele foi informar a família da rapariga.

 

- Já conseguiste falar com ela?

 

Antes de Landry ter tido tempo para lhe responder, a médica saiu da sala de observações, parecendo procurar alguém. Landry mostrou-lhe o crachá.

 

- Somos os detectives Landry e Weiss - indicou. Como é que ela está?

 

- Bastante abalada, como pode imaginar - respondeu a médica. Era uma paquistanesa franzina; usava uns óculos com umas lentes que lhe ampliavam os olhos, triplicando o tamanho real. - Tem inúmeros cortes de somenos importância, abrasões e várias contusões, mas, aparentemente, não tem nenhum osso fracturado. Na minha opinião, foi vergastada com qualquer coisa como um arame ou qualquer tipo de chicote.

 

- Encontrou indícios de que ela tenha sido violada? perguntou Landry.

 

- Encontrámos algumas equimoses na região vaginal e nódoas negras nas coxas. Mas não detectámos a presença de sémen - elucidou a médica.

 

À semelhança do que acontecera a Jill Morone, concluiu Landry para consigo. Teriam de manter a esperança em vir a encontrar outra fonte do ADN do agressor, como um pêlo púbico.

 

- Ela já disse alguma coisa? - perguntou o detective.

 

- Apenas que foi espancada. Que se sentiu muito assustada. Ela não pára de dizer que não é capaz de acreditar que ele tenha feito uma coisa daquelas.

 

- Mencionou algum nome? - perguntou Weiss. A médica respondeu com um abanar de cabeça.

 

- Podemos falar com ela?

 

- Demos-lhe um sedativo, mas deve estar capaz de responder às vossas perguntas.

 

- Obrigado, doutora.

 

Erin Seabright possuía o aspecto de alguém que tivesse escapado dos cenários de um filme de terror. O cabelo era uma massa loura toda emaranhada, que lhe emoldurava a cabeça. Tinha a cara bastante pisada e um corte no lábio inferior. Quando Landry e Weiss entraram no quarto, Erin fitou-os com uns olhos muito abertos que expressavam pavor.

 

Landry não teve dificuldade em reconhecer aquela expressão. Trabalhara durante dois anos na Brigada de Atentados ao Pudor. Não tardara muito a concluir que não tinha estômago para aquilo. Sempre que era obrigado a lidar com suspeitos de crimes de estupro, não era capaz de refrear a cólera que sentia.

 

- Erin? Sou o detective Landry. Este é o detective Weiss -- afirmou Landry em voz baixa, puxando uma cadeira e sentando-se à beira da cama. - Não imagina o prazer que sinto em vê-la. Há muita gente que se empenhou ao máximo para descobrir o seu paradeiro.

 

- Por que razão ele não se limitou a pagar-lhes o resgate? - perguntou ela com uma expressão de perplexidade. Nas mãos segurava uma garrafa de plástico de água mineral, não parando de a fazer girar, numa tentativa para encontrar algum conforto naquele gesto repetitivo e maquinal. - Era tudo o que ele tinha de fazer. Eles não paravam de lhe telefonar, além de lhe terem enviado as cassetes. Por que razão não fez ele apenas o que eles lhe diziam?

 

- Está a referir-se ao seu padrasto?

 

- Ele odeia-me tanto! - replicou ela com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.

 

- Erin, precisamos de lhe fazer algumas perguntas sobre o que lhe aconteceu. Acha que está em condições de nos responder agora? Precisamos de informações para podermos prender os criminosos que lhe fizeram isto. Quanto mais cedo nos contar o que se passou, mais cedo poderemos fazer isso. Está a compreender?

 

Erin não lhe respondeu. Tão-pouco estabeleceu contacto visual com ele. O que não era invulgar naquelas circunstâncias. Landry sabia que ela não queria ser uma vítima. Desejava que nada daquilo fosse real. Detestava ser obrigada a responder a perguntas que exigiriam que revivesse tudo o que lhe acontecera. Sentia-se irada, constrangida e envergonhada. Mas Landry teria de forçá-la a reviver tudo aquilo, fosse de que maneira fosse.

 

- Consegue dizer-nos quem é que lhe fez isto, Erin? perguntou Landry.

 

A jovem fixou o olhar num ponto diante de si; os lábios tremiam-lhe. A porta da sala de observações abriu-se e o seu choro redobrou de intensidade.

 

- Foi você! - exclamou ela, olhando encolerizada para Bruce Seabright. - Foi você que me fez isto! Grande filho-da-puta! - Sentou-se na cama, atirando-lhe com a garrafa e fazendo com que a água se espalhasse por toda a parte, enquanto Bruce Seabright erguia os braços num gesto de defesa para impedir que o objecto lhe atingisse a cabeça - Erin! Ó meu Deus! Minha menina! - gritou Krystal correndo para a cama.

 

Landry levantou-se da cadeira quando a mulher tentou atirar-se para cima da cama. Erin enroscou-se numa bola, toda encostada à cabeceira, retraindo-se para se afastar do alcance da mãe, olhando-a com uma expressão que era um misto de cólera e algo que se assemelhava a um sentimento de desprezo.

 

- Afaste-se de mim! - gritou a rapariga. - Tudo o que sempre fez foi tomar o partido dele. Nunca se interessou por mim!

 

- Minha querida, isso não é verdade! - berrou Krystal.

 

- É verdade! Por que razão não o obrigou a ajudar-me? Deu-se ao trabalho de fazer alguma coisa!

 

Krystal estava mergulhada num pranto desabalado, estendendo os braços para a filha, mas sem lhe tocar, como se uma ou outra estivessem envoltas num campo magnético.

 

- Lamento muito! Peço desculpa!

 

- Ponha-se lá fora! - vociferou Erin. - Saia daqui! Os dois, ponham-se na rua!

 

Entretanto surgiu um dos seguranças do hospital. Landry pegou em Krystal pelos braços, levando-a em direcção à porta.

 

-Não há nada como uma reunião de família - comentou Weiss num resmungo, revirando os olhos.

 

O telefonema de Molly veio logo a seguir ao de Landry. Eu já começara a vestir-me. Disse-lhe que estava de saída para o hospital, apesar de saber que nem sequer conseguiria chegar perto do quarto de Erin. Se Bruce Seabright me visse, acabaria por ser levada sob escolta para fora do edifício. Tendo em vista que ele conhecia o tipo de gente influente que conseguiria que um juiz emitisse uma medida cautelar numa noite de domingo, não era impossível que eu acabasse por ter uma boleia que me levasse directamente para as acomodações prisionais. Ao fim e ao cabo, eu já havia sido advertida.

 

Mas não obstante todas estas reflexões, não pensei duas vezes quanto a ir ao hospital.

 

Quando entrei na sala de espera, Molly correu para mim. Estava pálida e tinha uma expressão assustada, embora exibisse uns olhos brilhantes de entusiasmo. Aquela contradição de sentimentos devia-se à diferença entre o alívio, por saber que a irmã estava sã e salva, e a apreensão quanto ao que lhe poderia ter acontecido para a terem levado para o hospital.

 

- Não consigo acreditar que o Bruce tenha permitido que viesses - disse-lhe eu.

 

- Não autorizou. Vim no automóvel da minha mãe. Eles estão zangados um com o outro.

 

- Ainda bem para a tua mãe - retorqui entre dentes, levando-a para os sofás na sala de espera. - Porque é que discutiram?

 

- A minha mãe culpa o Bruce por terem feito mal a Erin. Mas o Bruce não pára de dizer que fez o que lhe pareceu ser o melhor.

 

O melhor para o próprio Bruce, pensei para comigo.

 

- Acha que consegue falar com ela? - perguntou-me Molly.

 

- Para já, não me parece que seja possível.

 

- E eu... acha que me deixam vê-la?

 

Pobre garota. Parecia tão esperançada e, contudo, tão receosa de vir a sentir-se decepcionada. No meio de toda aquela trapalhada, além de mim, não tinha ninguém com quem pudesse contar. Na sua mente, a irmã mais velha, que ela tanto amava, era a sua única família digna desse nome. E quem é que poderia saber quais as semelhanças que restariam entre a Erin actual e a que Molly idolatrara apenas uma semana antes? Consciente daquilo de que me inteirara sobre Erin ao longo dos últimos dias, era forçada a concluir que a percepção de Molly constituíra um sonho até mesmo antes de Erin ter sido raptada.

 

Recordei-me de haver pensado, no primeiro dia em que veio falar comigo, que Molly Seabright se encontrava prestes a aprender que a vida é cheia de desilusões. Lembrava-me de ter pensado que teria de aprender essa lição como toda a gente: ser defraudada por alguém que amasse e em quem confiasse.

 

Desejei ter sido dotada do poder que me permitisse resguardá-la dessas decepções. Mas a única coisa que estava na minha mão fazer era não ser outra pessoa que lhe faltasse quando ela mais precisava. A garota tinha vindo ter comigo quando ninguém o devia fazer, tendo apostado no cavalo em que ninguém acreditava, para utilizar uma analogia que expusera a Landry há pouco tempo.

 

- Não sei, Molly - respondi-lhe por fim, afagando-lhe a cabeça. - O mais certo é não permitirem que a vejas esta noite. Talvez possas vê-la dentro de um ou dois dias.

 

- Acha que ela foi violada? - perguntou-me.

 

- É uma possibilidade. Mas o médico já a deve ter examinado e feito colheitas para proceder a determinadas análises...

 

- Já sei o que é; serve para ver se foi violada - atalhou ela. - Eu costumo ver a série The New Detectives. Se ela foi violada, terão de ter amostras do ADN que possam comparar com o do suspeito. A menos que ele tenha sido particularmente meticuloso, usando um preservativo e obrigando-a a tomar duche depois. Nesse caso, não encontrarão nada que aponte para ele.

 

- Mas temos a Erin - afirmei eu. - E, neste momento, isso é o mais importante. Talvez ela possa identificar os sequestradores. Mesmo que não seja capaz, podes crer que vamos apanhar esses sujeitos, Molly. Tu contrataste-me para desempenhar uma tarefa. Não tenciono desistir até que esteja terminada. E não estará terminada até eu dizer que acabei.

 

Na altura, pareceu-me a coisa mais indicada que podia dizer. Mas, no fim, acabaria por desejar não ter tido a intenção de o cumprir.

 

- Elena? - chamou Molly, erguendo o olhar com uma expressão de ansiedade. - Ainda me sinto assustada. Mesmo apesar de a Erin ter voltado para junto de nós, continuo a ter medo.

 

- Eu sei que sim. - Com o braço, rodeei-lhe os ombros e ela encostou a cabeça a mim. Era um daqueles momentos que eu sabia que permaneceria para sempre gravado na minha memória. Alguém que procurava conforto junto de mim, estando eu em condições de o poder proporcionar.

 

De uma área no Serviço de Urgência que não consegui identificar, ouvi um estrondo, um berro e muitos gritos. Olhei para o corredor que se estendia atrás do sítio onde Molly e eu estávamos sentadas, vendo Bruce Seabright que saía de uma porta às arrecuas, mostrando-se aparvalhado. Logo a seguir, Landry saiu do mesmo quarto, empurrando Krystal, muito chorosa e num estado de grande histeria, à sua frente.

 

- Vou tentar descobrir o que estiver ao meu alcance prometi eu a Molly, sabendo que estava na altura de desaparecer. - Telefona-me amanhã de manhã.

 

Ela assentiu com a cabeça.

 

Passei pelo balcão da recepção, a caminho da casa de banho das senhoras, para onde me esgueirei, apostando que Krystal não tardaria muito. Meio minuto mais tarde, ela entrou, a chorar e com as faces todas esborratadas de rímel e a boca manchada de batom à volta dos lábios.

 

Senti pena da mulher. Sob certos aspectos, Krystal era mais criança do que a filha Molly. Toda a sua vida sonhara em vir a ter um marido respeitável e uma boa casa com todos os acessórios inerentes. Nunca lhe passara pela cabeça que levar a existência de uma boneca Barbie teria os mesmos escolhos do que uma vida de pobre. Tenho a certeza de que nunca lhe ocorrera que as escolhas feitas com pouco siso, no tocante aos homens, atravessavam todas as fronteiras sócio económicas.

 

Ela encostou-se à bancada, debruçando-se de modo a ficar com a cabeça por cima do lavatório, com o semblante distorcido, tal a angústia emocional que a invadia. -Krystal? Posso ajudá-la em alguma coisa? - perguntei, sabendo à partida que não podia. Ela ficou a olhar para mim, limpando o ranho e as lágrimas que lhe sujavam as faces com as mãos. - O que está a fazer aqui? - perguntou-me.

 

- A Molly telefonou-me. Já sei que a Erin voltou.

 

- Ela odeia-me. Ela odeia-me e eu não a censuro por isso - confessou ela. Olhou-se ao espelho, falando com a sua própria imagem. - Está tudo arruinado. Está tudo arruinado.

 

- Não se esqueça de que recuperou a sua filha - recordei.

 

- Não. Está tudo arruinado - repetiu Krystal. E, agora, o que é que vou fazer?

 

No lugar dela, eu começaria por levar Bruce Seabright a tribunal, movendo-lhe um processo de divórcio que o deixaria depenado, mas era preciso não esquecer que eu sou o tipo de mulher amarga e vingativa. Optei por não lhe oferecer este conselho. Quaisquer que fossem as decisões que aquela mulher viesse a tomar, teriam de ser exclusivamente suas.

 

- Ela culpa o Bruce - adiantou Krystal.

 

- E você... não o culpa? - perguntei.

 

- Sim, culpo - admitiu numa voz que mal se ouvia. Mas, na verdade, a culpa é toda minha. Foi tudo por minha culpa.

 

- Krystal, a sua vida não é coisa que me diga respeito retorqui. - E Deus sabe que muito possivelmente nem sequer me dará ouvidos, mas, seja como for, vou dizer-lhe o que tenho a dizer. Talvez a culpa seja toda sua. Talvez você ao longo de toda a sua vida, só tenha feito as escolhas mais erradas. Mas a sua vida não acabou, e a vida da Erin também não acabou, e a vida da Molly não acabou. Ainda lhe resta tempo para fazer alguma coisa acertada.

 

”Você não me conhece - continuei -, portanto, não sabe que eu sou perita em lixar a minha própria vida. Mas acontece que, recentemente, descobri que todos os dias tenho uma nova oportunidade. Tal como você tem.

 

Aquilo era psicologia de casa de banho das senhoras. Senti-me como se lhe devesse ter dado uma toalha para ela limpar as mãos, na esperança de que não se esquecesse de me deixar uma gorjeta num cestinho que tinha em cima da bancada.

 

Naquele momento, a porta foi transposta por uma mulher rotunda, que usava um mumu havaiano de um tom púrpura, e que nos envolveu num olhar pouco amistoso, como se pensasse que tínhamos ido ali à procura da privacidade que nos permitisse dar largas a uma relação sexual lésbica. Retribuí-lhe com um olhar furibundo; virou-se de lado e entrou num dos compartimentos das sanitas.

 

Saí para o corredor. Deparei com Bruce Seabright na sala de espera próxima da saída, a discutir com o detective Weiss e com o tenente Dugan. Não vi Landry em lado nenhum, nem sinais de Armedgian. Perguntei-me se alguém se teria dado ao trabalho de informar o último do aparecimento de Erin. Decerto que quereria estar presente quando interrogassem Erin, na esperança de que ela apontasse Van Zandt como sendo um dos raptores.

 

Pareceu-me que não havia nada que eu pudesse fazer, além de esperar até que as forças hostis se fossem embora. Decidi fazê-lo no parque de estacionamento, mantendo-me de vigia ao automóvel de Landry. Se conseguisse falar-lhe por uns momentos, a sós, não perderia a oportunidade.

 

Segui para o corredor à procura de uma máquina donde pudesse tirar um café de má qualidade.

 

A médica deu a Erin um sedativo mais forte. Mas esta foi brusca para com ela, dizendo-lhe que a deixasse em paz

 

A flor frágil a mostrar os espinhos, pensou Landry. Deixou-se ficar a um canto, sem dizer nada, enquanto observava a rapariga a dizer à médica num tom autoritário que saísse do seu quarto. Em seguida, voltou-se e olhou para ele.

 

- Só quero que tudo isto chegue ao fim - afirmou. Só quero adormecer, acordar e ver que tudo isto ficou para trás.

 

- Não vai ser assim tão fácil, Erin - retorquiu o detective, avançando e retomando o seu lugar na cadeira. Vou ser muito franco consigo. Você ainda só está a meio desta odisseia. Eu sei que quer que esta situação acabe de uma vez por todas. Que diabo, queria era que nunca tivesse acontecido. Pode crer que também eu. Mas agora cabe-lhe ajudar-nos a encontrar as pessoas que lhe fizeram isto, para podermos impedir que voltem a fazer o mesmo a mais alguém.

 

”Sei que tem uma irmã mais nova, a Molly - continuou Landry. - Também sei que nem sequer desejaria imaginar que pudesse suceder-lhe a mesma coisa.

 

- Molly - disse ela repetindo o nome da irmã e fechando os olhos por uns instantes.

 

- A Molly é uma garota como deve ser - acrescentou Landry. - Tudo o que ela quis desde o princípio disto tudo foi tê-la de volta, Erin.

 

A rapariga limpou as pálpebras inchadas com um lenço de papel, soltando um suspiro entrecortado, preparando-se, recompondo-se para lhe contar a sua história.

 

- Sabe quem é que lhe fez isto, Erin? - perguntou Landry, indo direito ao assunto.

 

- Eles usavam máscaras - respondeu ela. - Nunca me deixaram ver a cara.

 

- Mas falaram consigo, não é verdade? Ouviu as suas vozes. E talvez tenha reconhecido uma delas, um certo maneirismo ou qualquer coisa assim.

 

Erin não confirmou, mas também não respondeu com uma negativa. Deixou-se ficar sentada muito calada, com os olhos presos nas mãos entrelaçadas no colo, numa postura muito plácida.

 

Landry aguardava.

 

- Acho que sei quem era um deles - disse ela por fim em voz baixa. Lágrimas recentes enchiam-lhe os olhos, uma manifestação das emoções que fervilhavam dentro de si. Desilusão, tristeza, sofrimento.

 

Erin levou uma mão à fronte, velando os olhos parcialmente. Como se tentasse furtar-se à verdade.

 

- O Don - proferiu numa voz sussurrada que mal se ouvia. - O Don Jade, Weiss foi o primeiro a sair do hospital, correndo para o seu carro. Quando passou por mim, já ao volante, vi que falava pelo telemóvel. Passava-se qualquer coisa.

 

Dez minutos mais tarde, finalmente, Armedgian chegou, entrando de imediato no hospital, de onde saiu um minuto depois, acompanhado de Dugan. Ambos se detiveram no passeio; Armedgian mostrava-se irritado e muito nervoso. As vozes dos dois elevavam-se e baixavam, mas a essência da conversa chegava ao automóvel, soprada pelo vento, onde eu continuava sentada com os vidros das janelas abertos. Armedgian sentia que fora deixado de lado, alegando que devia ter sido informado de imediato, blá-blá-blá. Dugan falava-lhe sem estar com meias-palavras. Não era secretário do FBI, ele que se deixasse disso, agora estavam todos na mesma sintonia, et cetera, et cetera, et cetera.

 

Pouco depois, ambos se encaminharam para os respectivos automóveis, saindo do parque de estacionamento com as luzes do tejadilho a piscarem, intermitentes.

 

Saí do meu carro e regressei ao Serviço de Urgência, percorrendo o corredor até à sala de observações onde Erin estivera. Naquele momento, Landry saiu do quarto trazendo um saco de papel castanho de grandes dimensões, dos que eram utilizados para guardar provas. Eram as roupas de Erin, que iriam para o laboratório para ser examinadas e para a eventual recolha de ADN.

 

- O que é que se passa? - perguntei, mudando de direcção e apressando o passo para conseguir manter-me a par dele.

 

- A Erin diz que um dos raptores era o Jade.

 

- Mas identificou-o sem margem para dúvidas? perguntei, sem querer acreditar no que ouvia. - Ela viu-o?

 

- Ela diz que eles tinham a cara coberta, mas acredita que um deles era ele.

 

- Como? Por que motivo é que ela pensa que era ele? Pela voz? Qualquer tatuagem? O quê?

 

- Agora não tenho tempo para isto, Elena - respondeu ele sem ocultar a impaciência. - O Weiss e mais alguns agentes de uniforme já vão a caminho para o deterem. Temos de regressar à esquadra.

 

- Ela disse alguma coisa acerca do Van Zandt? - insisti.

 

- Não.

 

- Então, quem são os outros?

 

- Ela não disse. Ainda não conhecemos a história completa. Mas, pelo sim, pelo não, vamos buscar o Jade antes que ele se ponha a andar. Se ele souber que ela fugiu, fica ciente de que tem de se pôr ao fresco. Mas se o apanharmos agora, temos hipóteses de ele tentar assacar as culpas todas ao parceiro.

 

As portas abriram-se automaticamente, dando-nos passagem para a rua; seguimos para o carro de Landry. Eu queria que tudo parasse, que o tempo parasse naquele preciso momento, de modo a permitir-me pensar antes que acontecesse mais alguma coisa. Todo aquele enredo sofrera uma viragem brusca para a esquerda e eu estava a sentir alguma dificuldade em descrever a curva. No entanto, Landry não tinha a mínima intenção de abrandar.

 

- Onde é que eles a tinham sequestrada? - perguntei. - Como conseguiu ela fugir?

 

- Mais tarde - respondeu Landry, entrando no seu automóvel.

 

- Mas...

 

Ignorando-me, ligou a ignição, acelerou e obrigou-me a dar um salto para trás quando saiu do estacionamento, afastando-se velozmente.

 

Fiquei ali como uma idiota, observando-o a afastar-se, ainda a digerir os últimos acontecimentos. Na minha perspectiva, não fazia sentido nenhum que Jade se arriscasse a raptar alguém - ou que tivesse feitio para aquele tipo de acção. Era incapaz de o imaginar como parte de um grupo num esquema daquela natureza.

 

Porém, Landry tinha desenvolvido a sua linha de raciocínio de modo a ter Jade como suspeito, reunindo provas circunstanciais que apontavam para o homem. Era como se tivesse direitos adquiridos no investimento que era ter Jade; na qualidade de responsável por aquele crime.

 

Eu queria saber o que Erin dissera. Queria ouvir a narração dos factos da sua própria boca. Queria ser eu a fazer-lhe as perguntas, interpretando as suas respostas com base na minha própria perspectiva, com base no conhecimento que eu tinha do caso e das pessoas nele envolvidas.

 

Ouvi a sirene de uma ambulância que se aproximava velozmente do hospital, parando com um chiar de pneus na área das chegadas enquanto o pessoal médico acorria ao encontro da viatura. Do interior da ambulância saiu uma maca que transportava uma mulher enorme que gritava como se a estivessem a matar, invocando o nome de Jesus no momento em que sangue arterial esguichava, como se fosse um

géiser, do que parecia ser uma fractura exposta na perna esquerda. Houve alguém que gritou qualquer coisa a respeito de uma segunda vítima que vinha no outro veículo prestes a chegar.

 

Voltei a entrar no hospital atrás daquela pequena multidão enquanto se apressavam a levar a mulher para a unidade de traumatizados. O pessoal médico corria em todas as direcções sob o frenesim daquele caos momentâneo. Segui a direito para a sala onde Erin estivera sob observação, entrando sorrateiramente.

 

A cama estava vazia. Erin já havia sido levada para um dos quartos do hospital. Mas a sala de observações ainda não fora arrumada. Vi uma bandeja de aço inoxidável que ainda continha os instrumentos de sutura e compressas de algodão ensanguentadas. Alguém deixara um espéculo descartável, que devia ter servido para o exame ginecológico, dentro de um pequeno lavatório.

 

Fiquei com a sensação de que a festa acabara sem que ninguém se tivesse lembrado de me convidar. Landry levara as roupas de Erin e as colheitas que se destinavam a determinar se houvera violação ou não. Ali não havia nada que eu pudesse descobrir.

 

Suspirei e afastei-me da mesa com um olhar abstracto que se demorou em algo que estava no chão. Uma pequena pulseira prateada, semioculta debaixo da mesa. Dobrei-me para a apanhar. Era de prata e os elos tinham a forma de pequenos estribos, todos interligados. Havia dois pequenos berloques - um era uma cabeça de cavalo e o outro a letra ”E” de Erin.

 

Precisamente o tipo de jóia que se ajustava a uma adolescente louca por cavalos. Gostaria de saber se fora uma oferta. Perguntei-me se teria sido um homem quem lha oferecera, e se esse mesmo homem a teria atraiçoado da maneira mais terrível.

 

Entretanto, a porta foi aberta; virei-me, deparando com um agente de uniforme.

 

- Para onde é que levaram a minha sobrinha? - perguntei. - A Erin Seabright.

 

- Para o quarto andar, minha senhora.

 

- E ela terá alguém de guarda à porta? - continuei. Bem vê... e se algum dos homens que a raptou vier ao hospital e...

 

- Já destacámos um agente que ficará à porta do quarto dela. Não precisa de se preocupar com isso, minha senhora. Ela agora está em segurança.

 

- Que grande alívio - retorqui sem entusiasmo. Obrigada.

 

O agente manteve a porta aberta enquanto eu saía do quarto. Sentindo-me muito decepcionada, continuei a caminhar. Não havia maneira de conseguir chegar perto de Erin. Também não podia chegar a Jade. Não sabia por onde é que Van Zandt andaria. Eram três horas da madrugada e, uma vez mais, fora posta à margem do caso.

 

Guardei a pulseira no bolso e decidi ir para casa dormir.

 

A calma que antecede a tempestade.

 

- O que é que tem a dizer quanto a isto, Mister Jade? Landry colocou as fotografias em cima da mesa diante de Don Jade, lado a lado. Jade montado num cavalo a sorrir para a câmara fotográfica. Jade ao lado de uma barreira muito colorida num picadeiro, com calças e botas de montar, de perfil para a câmara, enquanto apontava para qualquer coisa. Jade montado num outro cavalo, na altura em que transpunha um obstáculo. Jade com o braço à volta de Erin, o rosto dela riscado com tinta por uma Jill Morone ciumenta.

 

-Não tenho nada a dizer a este respeito. Landry estendeu a mão virando a última fotografia, como se fosse um jogador apresentando um ás. - Até alguém a ter riscado com um traço, a inscrição nesta fotografia dizia ”Para a Erin. Com amor, Don.” E agora, já tem alguma coisa a dizer-me?

 

- Não fui eu quem escreveu isso.

 

- Podemos pedir a um especialista em grafologia que compare a sua escrita com a da fotografia.

 

- Não pense sequer em começar uma batalha de peritos comigo, detective - interveio Bert Shapiro com uma entoação de voz que parecia prestes a morrer de tédio. Landry desejou que fosse esse o caso. - Tenho nas mãos cartas mais altas do que você.

 

Bert Shapiro: um mentecapto vestido com fatos de marca que caminhava e falava.

 

Landry fitou o advogado mostrando uma expressão velada nos olhos.

 

- Qual é a sua ligação a esta gente, senhor doutor?

 

- Devia ser por de mais evidente, mas é preciso não esquecer que estamos a lidar com o pessoal do Gabinete do Xerife - replicou Shapiro ironicamente, dirigindo-se a todos os presentes, muito satisfeito consigo próprio. O grande cabrão! - Sou o advogado de Mister Jade.

 

- Sim, sim. Já tinha percebido isso. E também é advogado do Van Zandt.

 

- Exactamente.

 

- E quem é que temos mais nessa pequena ninhada de ratos? O Trey Hughes?

 

- A minha lista de clientes é confidencial.

 

- Só estou a tentar poupar-lhe algum tempo - retorquiu Landry. - O Hughes vai ser o próximo a vir aqui, para falar connosco a respeito de Mister Jade. Portanto, se por acaso ele também for um dos seus clientes, pode ficar por aqui connosco, os lorpas, no Gabinete do Xerife, durante todo o dia. Poderá desfrutar da nossa hospitalidade e do nosso péssimo café.

 

- Tem alguma razão legítima para que estejamos aqui a fazer perder tempo a Mister Jade, detective? - perguntou Shapiro franzindo o cenho.

 

Landry olhou em seu redor, a exemplo do que Shapiro já fizera.

 

- Isso devia ter sido por de mais evidente quando lemos ao Mister Jade os direitos que lhe assistem ao abrigo da lei. Ele é acusado do rapto de Erin Seabright.

 

Jade arrastou a cadeira para trás, levantando-se da mesa e começando a andar de um lado para o outro numa manifestação de nervosismo.

 

- Mas isso é absurdo. Eu não raptei ninguém.

 

- E que provas é que o senhor tem que corroborem essa acusação, detective? - perguntou Shapiro. - Antes de me responder, permita-me que lhe saliente que não é contra a lei que nos tirem a fotografia junto de uma admiradora ou de uma rapariga que seja nossa empregada.

 

Landry olhou para Jade, permitindo que a antecipação se intensificasse.

 

- Não, mas é contra a lei manter uma jovem acorrentada a uma cama, contra a sua vontade, e açoitá-la com um pingalim.

 

- Isso é absolutamente ridículo! - explodiu Jade.

 

Landry estava a adorar aquela situação. Naquele momento, o finório encontrava-se encostado à parede. Agora é que o mau génio começava a vir à superfície.

 

- Mas a verdade é que a Erin não achou a situação nada divertida. Ela afirma que você é que engendrou tudo.

 

- Por que razão haveria ela de dizer uma coisa dessas? - perguntou Jade num tom autoritário. - Sempre me comportei com toda a simpatia para com essa rapariga.

 

Landry encolheu os ombros só para o irritar ainda mais.

 

- Talvez porque você a aterrorizou, abusou dela, violou-a e...

 

- Nunca fiz nada disso!

 

- Sente-se, Don - interveio Shapiro, pondo uma mão no braço do seu cliente, tentando acalmá-lo. - É óbvio que a rapariga está enganada - disse o advogado, dirigindo-se a Landry. - Se ela foi torturada, tal como você diz, quem sabe que mais é que esses raptores lhe meteram na cabeça. É muito possível que a convencessem de tudo e mais alguma coisa. Para não mencionar que talvez a tenham drogado...

 

- E o que é que o leva a dizer isso? - perguntou Landry.

 

- É evidente que essa rapariga não está no seu perfeito juízo se pensa que o Don tem alguma coisa a ver com este assunto.

 

- Pois bem, há alguém que interpretou erroneamente qualquer coisa - ripostou Landry. - Da última vez em que falámos, Mister Jade negou ter mantido qualquer relação, que não fosse de trabalho, com a Erin Seabright. Talvez ele não tenha entendido o significado do termo ”relação de trabalho”. Algo que, regra geral, não envolve a prática de relações sexuais entre o empregador e o empregado.; - Já lhe disse antes: nunca tive relações sexuais com a Erin - ripostou Jade, bufando.

 

Landry fingiu que não tinha ouvido. Apontou para as fotografias na mesa.

 

- Devo dizer-lhe que encontrámos estas fotografias no apartamento que a Jill Morone, a vítima dos crimes de assassínio e estupro, partilhava com Erin Seabright, a vítima de rapto e atentado contra o pudor. A última vez em que a Jill Morone foi vista estava a discutir consigo, e você próprio admite que foi a última pessoa que viu a Erin antes de esta ter desaparecido.

 

- Ela veio falar comigo para me dizer que tencionava despedir-se - adiantou Jade. - Não fazia a mais pequena ideia de que desaparecera, até você ter abordado o assunto.

 

- O relacionamento com os seus empregados não é exactamente o seu ponto mais forte, pois não, Don? - perguntou Landry. - A Erin quer deixar de trabalhar para si, portanto, você acorrenta-a a uma cama. A Jill decepciona-o, portanto, você esfrega-lhe a cara num monte de merda, sufocando-a...

 

- Meu Deus! - exclamou Jade, que continuava a andar de um lado para o outro. - Quem é que pode acreditar que eu fosse capaz de fazer isso tudo que acabou de dizer?

 

- As mesmas pessoas que acreditam que você electrocutou um cavalo para receber o dinheiro do seguro.

 

- Não fiz nada disso.

 

- A Erin sabia, tal como a Jill. Uma morreu, enquanto a outra teve mais sorte.

 

- Isso são meras especulações - atalhou Shapiro. Você não tem a mínima prova contra o meu cliente.

 

- Onde é que esteve no domingo, Don? - perguntou Landry ignorando o advogado. - Domingo ao fim do dia, digamos, por volta das seis da tarde?

 

- Não responda a isso - aconselhou Shapiro, lançando a Don um olhar de advertência.

 

- Permita-me que especule - continuou Landry. Esteve com a sua amiga, Miss Atwood, a qual possui o espantoso dom de conseguir estar em dois locais diferentes ao mesmo tempo, não?

 

- Não percebo o que pretende dizer com isso - ripostou Jade baixando o olhar.

 

- O senhor disse-me que a Miss Atwood esteve consigo na quinta-feira à noite, altura em que alguém soltava os cavalos do Michael Berne, ao mesmo tempo que uma mulher era agredida a não mais de cinquenta metros das suas cavalariças.

 

- Não diga nada, Don - advertiu Shapiro, erguendo um dedo.

 

-Precisamente na noite em que a Miss Atwood também foi vista num baile de caridade em Palm Beach continuou Landry como se o advogado não tivesse falado. - Pensou que nós acreditaríamos no que nos disse, sem verificarmos, Don? Ou que acreditaríamos na palavra da dita senhora?

 

-Encontrámo-nos depois do evento social - alegou Jade.

 

-Don, não...

 

- Oh, está a dizer que isso foi à mesma hora em que ela estava a divertir-se com uns amigos no Bar? - perguntou Landry com um acenar de cabeça. Jade deixou-se cair na cadeira, esfregando as têmporas. -Não me recordo com exactidão da hora... - Face a tudo isto, teria sido mais esperto se tivesse optado pela Jill para corroborar o seu álibi para a noite de quinta-feira - disse Landry. - Ela estava disposta a mentír por si e, além do mais, é muito possível que a essa hora ela tenha estado em casa sozinha.

 

Naquela altura, já Shapiro se pusera de pé, mantendo-se atrás do seu cliente. Inclinou-se para a frente declarando: - Mister Jade não tem mais nada a dizer-lhe com relação a este assunto ou a qualquer outro. Já não temos nada a fazer aqui.

 

- O seu cliente ainda pode sair daqui se decidir cooperar, doutor Shapiro - ripostou Landry, olhando-o com uma expressão de poucos amigos. - Mas não me interprete mal. Ele está atolado na merda, mas talvez consiga sair dela e possa tomar um duche. O parceiro dele continua por aí à solta. Talvez não tenha sido aqui o Don a brandir o chicote. Se calhar, o esquema foi engendrado pelo parceiro. Portanto, talvez seja possível que o Don queira ajudar-se a si próprio, fornecendo-nos um nome.

 

Jade fechou os olhos por uns instantes, inspirou e expirou para se recompor.

 

- Estou a tentar cooperar, detective Landry - afirmou ele, esforçando-se por recuperar a calma. - Não sei nada a respeito de nenhum rapto. Por que motivo arriscaria eu fazer uma coisa tão sem pés nem cabeça?

 

- Por dinheiro.

 

- O meu negócio está a correr muito bem. Tenho uma situação excelente nas novas cavalariças do Trey Hughes Não se pode dizer que ande desesperado por causa de problemas de dinheiro.

 

- Quem sabe... talvez você seja apenas um psicopata. Em tempos, conheci um tipo que matou uma mulher e cortou-lhe a língua, só para ver a que profundidade é que se encontrava na garganta.

 

- Isso mete nojo.

 

- Sim, é verdade, mas eu deparo constantemente com esse tipo de perversidades. Agora, vejo-me perante esta situação: uma rapariga morta, uma rapariga que desaparece e um cavalo que alguém matou para receber a indemnização do seguro; e tudo isto se desenrola à sua volta, Mister Jade.

 

- Mas isso não faz sentido nenhum - insistiu Jade. Eu teria podido ganhar bom dinheiro se vendesse o Stellar num leilão de cavalos...

 

- Desde que conseguisse vendê-lo. Tanto quanto sei, ele estava com alguns problemas.

 

- Mais cedo ou mais tarde, esse cavalo seria vendido. E enquanto isso não acontecia, eu continuava a receber os meus honorários de treinador todos os meses.

 

- E também continuará a receber os seus honorários mensais pelo cavalo que o substituir, não é verdade?

 

- O Trey Hughes não precisa de esperar pela venda de um cavalo para poder comprar outro - argumentou Jade.

 

- Isso é verdade. Mas ao longo dos anos tenho vindo a aprender que existe pouca gente mais gananciosa e menos paciente do que os ricos. Além disso, você receberá uma generosa comissão pelo cavalo que substituir o que morreu. Não será assim?

 

Jade suspirou e cerrou as pálpebras por uns momentos, tentando organizar as ideias.

 

- A minha intenção é manter um relacionamento muito duradouro e feliz com o Trey Hughes. Ele há-de comprar e vender um grande número de cavalos durante esse período. Lucrarei em todas essas transacções. É dessa maneira que o negócio funciona. Portanto, o que poderia levar-me a arriscar tudo isso, raptando alguém? O risco superaria qualquer vantagem possível.

 

”Mas se, por outro lado, eu levar uma vida de acordo com o que a lei determina - continuou Jade -, estarei prestes a mudar para umas belíssimas cavalariças, construídas recentemente, onde treinarei os cavalos de pessoas que estão dispostas a pagar-me quantias avultadas. Face a isto, detective Landry, e resumindo e concluindo, o senhor não tem nada de que possa acusar-me.

 

- Isso não corresponde exactamente à verdade, Don retrucou Landry, fingindo tristeza.

 

Jade olhou para Shapiro.

 

- O que é que pensa que tem na manga, Landry? perguntou Shapiro.

 

- Tenho telefonemas com pedidos de resgate feitos para casa do Seabright de um telemóvel pré-pago que foi comprado por Don Jade há duas semanas.

 

- Não sei de que está a falar - ripostou Don Jade, olhando o detective com fixidez.

 

- E tem alguma testemunha que possa identificar Mister Jade positivamente, como tendo sido a pessoa que comprou esse tal telemóvel? - perguntou Shapiro. - Eu nunca comprei nenhum telefone - adiantou Jade, irritado com o advogado por, implicitamente, estar a admitir a possibilidade de ele ter feito essa compra. Landry não despregava o olhar de Jade. - Tenho a Erin Seabright, espancada, cheia de sangue atemorizada de morte, a dizer-me que o responsável é você. Não me parece que as provas possam ser mais concludentes do que isto, Don.

 

- Repito que não tive nada a ver com isso - redarguiu Jade, desviando o olhar e abanando a cabeça, - Você começou a ficar ganancioso - continuou Landry. - Se queria que a Erin fosse afastada do seu caminho, porque ela sabia alguma coisa com referência à morte do Stellar, devia tê-la aniquilado sem estar com meias-medidas, largando o cadáver no canal. Mas você decidiu raptá-la, e as coisas começaram a correr mal. As pessoas são imprevisíveis. Talvez tenha sido você a escrever o argumento, mas nem todos acatam as ordens do realizador de tão bom grado como uma rapariga acorrentada a uma cama. Jade não lhe deu resposta.

 

- Possui alguma propriedade na área de Wellington, Mister Jade?

 

- A ser o caso, constaria dos registos públicos - interveio Shapiro.

 

- A menos que o seu cliente a tenha posto em nome de uma sociedade ou de qualquer consórcio empresarial - salientou Landry. - Está na disposição de partilhar essa informação connosco ou vais obrigar-nos a ir à Conservatória do Registo Predial? Ou talvez eu deva perguntar a Miss Montgomery, a pessoa que trata de todos os pormenores?

 

- Não estou a descortinar o que tem isto a ver com o que quer que seja - interveio Shapiro.

 

Uma vez mais, Landry ignorou o homem, concentrando-se em Jade, para não perder qualquer pequena alteração na sua fisionomia.

 

- Alguma vez teve negócios com Bruce Seabright ou com os Empreendimentos Gryphon? - perguntou o detective.

 

- Sei que os Empreendimentos Gryphon se ocupam da urbanização de Fairfíelds, local onde se situam as futuras cavalariças do Trey Hughes.

 

- Teve algum negócio, pessoalmente, com eles?

 

- É possível que tenha falado com alguém dessa empresa numa ou duas ocasiões - respondeu Jade.

 

- Com o Bruce Seabright?

 

- Não me recordo.

 

- Como é que a Erin Seabright foi trabalhar para si? - perguntou Landry.

 

- O Trey sabia que eu precisava de alguém para trabalhar nos estábulos, tendo-me falado da Erin.

 

- Há quanto tempo é que se relaciona profissionalmente com Mister Hughes?

 

- Há já vários anos que conheço o Trey. No ano passado, ele contratou-me para treinar os seus cavalos.

 

- Pouco depois da morte da mãe? - precisou Landry.

 

- Já chega - interveio Shapiro. - Se quiser continuar a pescar, detective Landry, sugiro-lhe que alugue um barco. Vamos embora, Don.

 

Landry deixou que ambos se encaminhassem para a porta da sala de interrogatório, falando apenas quando Shapiro pousou a mão na maçaneta.

 

- Já sou dono de um barco, senhor doutor - disse o detective. - E sempre que tenho um trofeu preso no anzol, puxo a linha, corto-o em filetes e frito-o. Não me interessa quem possa ser, nem que tipo de amigos possa ter; o tempo que leva a pescá-lo também me é indiferente.

 

- Ainda bem para si - ripostou Shapiro abrindo a porta.

 

Dugan encontrava-se do outro lado, acompanhado de Armedgian e de um assistente do procurador público do distrito.

 

- Tem toda a liberdade para sair daqui, doutor Shapiro - proferiu Dugan. - No entanto, o seu cliente irá desfrutar da hospitalidade das autoridades deste município durante o resto da noite. A audiência que vai decidir se haverá lugar a fiança, ou não, está marcada para amanhã.

 

- Ele disse-me que fosse ter com ele ao portão das traseiras - proferiu ela num tom de voz que mal se ouvia, baixando os olhos.

 

Landry dormira num divã na esquadra, tendo regressado ao hospital aos primeiros alvores da manhã, esperando impacientemente que Erin Seabright despertasse. Jade compareceria em juízo mais tarde, ainda nessa manhã. Landry queria que o procurador público possuísse todas as munições possíveis para poderem deter Jade sem direito a fiança.

 

- As pessoas falam... especialmente sobre o Don prosseguiu Erin. - Ele disse-me que não queria que falassem de nós. O que eu compreendi inteiramente. Pensei que, realmente, isso até era excitante. O nosso caso secreto. Patético.

 

- Teve relações sexuais com ele antes disso? - perguntou Landry. Tentava imprimir indiferença ao seu timbre de voz. Nada de tons acusatórios, nem entusiasmos desnecessários.

 

- Namoriscávamos - respondeu ela com um abanar de cabeça. - Pensei que éramos amigos. Quer dizer... ele era o meu patrão, mas... Mas eu queria que fosse algo mais, o que ele também desejava. Pelo menos, foi o que me afirmou.

 

- Portanto, ele pediu-lhe que se encontrassem no portão das traseiras. Você sabia que aí não seria vista por ninguém?

 

- Nesse fim-de-semana não havia nenhum cavalo nas duas últimas cavalariças. É aí que os cavalos que participam em exibições hípicas em Wellington ficam instalados, mas nesse fim-de-semana não havia nada programado. Além do mais, foi numa noite de domingo. Não havia ninguém por perto.

 

- Mas a Erin não disse a Mister Jade que tencionava despedir-se e mudar-se para Ocala?

 

- Não, porque haveria eu de fazer uma coisa dessas? Eu queria continuar a trabalhar para ele. Estava apaixonada por ele.

 

- E depois, o que é que aconteceu, Erin? Você foi para o portão das traseiras a fim de se encontrar com ele e...

 

- Ele estava atrasado. Tive receio de que tivesse mudado de ideias. Mas então vi a carrinha dele que se aproximava, e de lá de dentro saiu um fulano com a cara tapada... e... ele agarrou-me. - A voz dela esvaneceu-se, dando lugar a outra torrente de lágrimas. Landry estendeu-lhe uma caixa com lenços de papel, esperando que a crise lhe passasse.

 

- Reconheceu esse homem, Erin? - perguntou Landry pouco depois.

 

A rapariga acenou negativamente com a cabeça. - Reconheceu-lhe a voz? -Eu fiquei com tanto medo!

 

- Sei que sim. É difícil recordarmo-nos de pormenores quando temos medo de qualquer coisa tão terrível como o que lhe aconteceu. Mas tem de tentar pensar racionalmente e devagar sobre esse acontecimento. Em vez de rever tudo isso de uma assentada, deve fazer um esforço para rever cada momento isoladamente, como se fossem instantâneos.

 

- Estou a tentar - replicou Erin.

 

- Sei que está - retorquiu Landry em voz baixa. Leve o tempo que for preciso, Erin. Se acha que está a precisar de fazer uma pausa, podemos interromper esta conversa. De acordo?

 

- De acordo - retorquiu Erin olhando para ele e tentando esboçar um sorriso.

 

- Se nunca chegou a ver a cara desses homens, porque pensa que o Jade era um dos raptores?

 

- Porque foi ele que combinou encontrar-se comigo no portão das traseiras.

 

- Eu sei que sim, mas reparou nalguma coisa em especial em qualquer dos raptores que a levasse a pensar que era ele? - perguntou Landry.

 

- Eu conheço-o bem - respondeu ela sem ocultar a frustração que sentia. - Estou familiarizada com a constituição do seu corpo. Estou acostumada aos seus movimentos. Tenho a certeza de que ouvi a voz dele em várias ocasiões.

 

- E quanto à voz do outro sujeito? Pareceu-lhe familiar? Falava com algum sotaque?

 

A rapariga abanou a cabeça passando uma mão pelos olhos, dando a impressão de estar exausta.

 

- Ele não falava muito. E quando dizia alguma coisa, era num murmúrio e resmungava. Nunca me dirigiu a palavra.

 

- Sabe onde é que eles a mantiveram presa? - prosseguiu Landry. - Seria capaz de nos levar até lá?

 

- Levaram-me para uma caravana - respondeu Erin com um abanar de cabeça. - Não sei mais nada. Foi horrível. Era muito velha e estava imunda.

 

- É capaz de me dizer se se situava perto de uma estrada com movimento? Reparou nalgum som em especial que ouvisse com regularidade?

 

- Não sei dizer. Calculo que ouvia o barulho de carros, à distância. Não sei bem. Durante grande parte do tempo, eles mantinham-me drogada. Com Ketamine.

 

- Como é que sabe que a droga era essa?

 

- Porque já a tinha consumido - respondeu ela desviando o olhar e mostrando-se embaraçada. - Durante uma festa.

 

- E ontem à noite, o que é que aconteceu? Como é que conseguiu fugir?

 

- Um deles... o outro arrastou-me para fora da caravana e levou-me para uma carrinha. Pensei que ele ia matar-me e que depois largasse o meu corpo num lugar onde nunca mais seria encontrado! - Erin fez uma pausa para recuperar o fôlego e tentar recompor-se.

 

Landry aguardava pacientemente.

 

- Mas ele limitou-se a conduzir ao acaso. Não sei dizer durante quanto tempo. Tinha-me dado uma injecção de Ketamine. Por isso fiquei bastante pedrada. Eu estava à espera que a carrinha parasse a qualquer momento, sabendo que quando isso acontecesse, seria para ele me matar.

 

- Não conseguia ver nada pelas janelas?

 

- Eu estava deitada no chão - respondeu ela com um abanar de cabeça. - Mas pouco depois parámos e fiquei tão assustada! Ele abriu a porta e arrastou-me para fora. Senti-me tonta. Não conseguia manter-me de pé. Caí no chão, na... na... terra. Mas ele não fez nada, entrou para a carrinha e foi-se embora.

 

Atirada para a berma da estrada como se fosse um saco cheio de lixo. Algo que eles haviam utilizado e de que já não precisavam. Apesar disso, a verdade é que ela tivera uma sorte dos diabos, pensou Landry.

 

- Não sei durante quanto tempo é que fiquei ali caída continuou Erin. - Mas então, finalmente, consegui pôr-me de pé e comecei a andar. Conseguia ver umas luzes. A cidade. Não parei de caminhar.

 

Durante alguns momentos, Landry não disse nada. Deixou que a narração de Erin fosse absorvida pela sua mente. Analisou os acontecimentos sob vários ângulos, o que deu origem a mais perguntas.

 

Por conseguinte, Jade e companhia tinham chegado à conclusão de que nunca iriam receber o resgate. Preferiram largar a rapariga, em vez de virem a ser acusados de assassínio. Mas acontecia que, da maneira como Landry via a situação, Van Zandt fora o cúmplice de Jade e agora sobre este pairava a suspeita de um assassínio. Porque haveriam eles de se arriscar a serem identificados por Erin Seabright? Porque sabiam que ela não seria capaz de os identificar com uma certeza absoluta? Porque tinham feito os possíveis e os impossíveis para se assegurar de que não restaria qualquer prova física que os ligasse a ela?

 

É claro que isso ainda estava para se ver. As roupas que Erin vestia na altura já haviam sido enviadas para o laboratório, onde seriam examinadas ao microscópio sob luzes fluorescentes por técnicos que lhes aplicariam todo o tipo de reagentes, soltando fios que seriam cuidadosamente retirados com pinças.

 

Quem sabe se, para os criminosos, pôr Erin em liberdade não teria sido uma estratégia que fazia parte do jogo. Permitir que a vítima continuasse com vida e deixar que a Polícia vivesse com o conhecimento de que eram culpados, mas sem prova nenhuma que corroborasse o crime. O jogo do poder.

 

O problema com essa teoria era o facto de Landry não ter a mínima intenção de permitir que alguém saísse impunemente dos seus crimes.

 

- Erin, eles disseram-lhe alguma vez qual a razão que os levou a escolhê-la como vítima desse rapto?

 

Ela respondeu com um abanar de cabeça, mantendo os olhos fixos no pequeno gravador portátil, que Landry pousara agora, e onde a fita se desenrolava sem interrupção.

 

- Durante a maior parte do tempo, eles mantiveram-me muito drogada. Sei que queriam dinheiro. Sabiam que o Bruce tem dinheiro.

 

- Eles tratavam-no por Bruce?

 

- Eles telefonaram-lhe não sei quantas vezes...

 

- Quando falavam a respeito dele - esclareceu Landry, certo de que ela não ouvira bem a sua pergunta -, referiam-se a ele pelo primeiro nome? Tratavam-no por Bruce?

 

Erin anuiu com a cabeça, apesar de Landry não ter ficado muito convencido de que ela lhe tivesse prestado a devida atenção.

 

- Foi a Erin que lhes disse o nome do seu padrasto?

 

- Não. Eles já sabiam.

 

A Landry parecia bastante estranho que os criminosos tratassem Seabright pelo seu primeiro nome. Familiaridade. Como se fosse um amigo.

 

- Eu podia ter morrido por causa dele - afirmou Erin numa voz cheia de azedume. - Não sou capaz de acreditar que a minha mãe continue com ele. Ela é uma pessoa muito fraca.

 

- As pessoas são muito complicadas - comentou Landry, manifestamente fora do seu elemento.

 

Erin limitou-se a olhar para o colo enquanto abanava a cabeça.

 

- Erin, quantas cassetes de vídeo é que eles filmaram de si enquanto esteve na caravana?

 

- Não sei. Umas três ou quatro. Foi tão humilhante. Obrigaram-me a suplicar. Fizeram-me coisas horríveis. Espancaram-me. - A rapariga recomeçou a chorar. - Foi terrível!

 

O grande filho-da-puta!, pensou Landry. Três ou quatro cassetes de vídeo. Mas Seabright só lhe entregara uma, perdida que tinham trazido do local combinado para a entrega do resgate.

 

- Erin, algum dos homens teve relações sexuais consigo? - perguntou Landry.

 

- Eles m... mantiveram-me drogada - replicou ela recomeçando a chorar, mais do que antes. - Eu não podia fazer nada. Não c... consegui impedi-los... Absolutamente nada...

 

- Pode acreditar que vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para remediar isso, Erin. Vamos coordenar esforços... você e eu, tentando consolidar quaisquer provas que, eventualmente, consigamos arranjar contra eles. Está combinado?

 

Ela olhou para ele, com os olhos cheios de lágrimas, assentindo com a cabeça.

 

- E agora veja se descansa - aconselhou Landry quando já se dirigia para a porta do quarto. -Detective Landry? - Sim...? -Obrigada.

 

Landry saiu para o corredor esperançado em conseguir proporcionar-lhe realmente alguma coisa que merecesse os agradecimentos dela, de preferência, mais cedo do que mais tarde.

 

Eu estava à espera ao fundo do corredor quando Landry saiu do quarto de hospital onde Erin se encontrava. Não me

pareceu surpreendido por me ver ali. Parou do lado de fora da porta, tirou o telemóvel do bolso, fazendo um telefonema que durou mais ou menos três minutos. Quando acabou,

 

olhou para o outro extremo do corredor, em direcção à sala das enfermeiras, e só depois é que se aproximou de mim.

 

- O que é que ela lhe disse? - perguntei enquanto nos encaminhávamos para a saída do Serviço de Urgência.

 

- Ela afirma que foi o Jade, mas que os raptores usaram máscaras durante todo o tempo, além de a terem mantido sempre drogada com Ketamine. Nunca chegou a vê-lo. Quanto ao outro sujeito, não faz a mínima ideia de quem possa ser. Diz que ele só muito raramente falava.

 

- Isso não me parece nada do Van Zandt - observei eu. - Nunca conheci ninguém que gostasse tanto de ouvir a sua própria voz como o Tomas Van Zandt.

 

- Mas ela reconheceria a voz dele por causa do sotaque - adiantou Landry. - Talvez ele seja mais esperto do que aparenta. - Suspirou e abanou a cabeça. - Ela nunca será uma boa testemunha - acrescentou Landry franzindo a testa.

 

Não me foi difícil ver que eu lhe merecia apenas uma fracção da sua atenção. Mentalmente, revia tudo o que Erin lhe dissera, tentando encontrar maneira de estruturar essas informações de modo a conduzi-lo a uma pista, ou a encontrar uma pista que o levasse a uma prova do crime.

 

- Ela não precisa de ser uma boa testemunha, pelo menos para já - recordei-lhe. - Você já tem elementos suficientes para que o Jade seja levado a tribunal. Talvez consiga descobrir alguma prova incriminatória.

 

- Sim. Veja lá, não vá rebentar de entusiasmo! - retorquiu ele, sarcástico.

 

- O que é que sabe sobre ele que eu desconheço? perguntei, encolhendo os ombros. - Conseguiu descobrir alguma coisa no apartamento dele? - perguntei, mas ele não me respondeu.

 

- E no apartamento que as duas raparigas partilhavam?

 

- Encontrei umas quantas fotografias do Jade. Uma em que ele está com a Erin. Alguém escreveu na parte de trás: ”Para a Erin. Com amor, Don.” A Jill já se tinha apoderado delas. Riscou o rosto e o nome da Erin com uma esferográfica.

 

- As raparigas apaixonam-se todas pelo ”Donnie”.

 

- Não vejo porquê - resmungou Landry.

 

- Conseguiu descobrir se ele tem alguma propriedade, ou se possui mais alguma casa arrendada, além do andar?

 

- Com certeza que ele não seria estúpido ao ponto de sequestrar a Erin numa propriedade facilmente identificável como sendo dele. Além disso, eu nunca teria essa sorte.

 

- Como é que ela conseguiu fugir?

 

- Diz que eles a soltaram. Devem ter concluído que não receberiam o dinheiro do resgate, por isso, decidiram atirá-la para dentro de uma carrinha, dando umas voltas para a despistarem antes de a largarem como se fosse um pedaço de lixo.

 

- Por conseguinte, ela não é capaz de dizer onde é que a mantiveram sequestrada - adiantei.

 

- Não. Diz que foi numa caravana. É tudo o que sabe dizer.

 

- Conseguiu concluir alguma coisa com base na última cassete? Identificou algum barulho de fundo?

 

- De facto havia alguns barulhos de fundo. Os coca-bichinhos das novas tecnologias estão a tentar descobrir o que são. A mim pareceu-me que é o som de maquinaria pesada.

 

- O que é que a Erin disse a esse respeito? - continuei.

 

- Que não tem a certeza - respondeu Landry olhando por uma janela. - Alega que a mantiveram drogada. Diz que era Ketamine. É uma droga fácil de arranjar - prosseguiu Landry. - Muito em especial, para quem trabalha com veterinários.

 

- Mas não é um sedativo que costumemos usar em cavalos - disse-lhe eu. - Regra geral, é utilizado em animais de pequeno porte.

 

- Mesmo assim, não seria muito difícil de arranjar.

 

- O Chad também conseguiria arranjá-la com facilidade.

 

- Ontem à noite ele nem sequer saiu da casa dos Seabright - retorquiu Landry, voltando a utilizar-se do telemóvel. - Além disso, a Erin e o Chad mantinham uma relação muito íntima. Parece-lhe que ela não o reconheceria enquanto ele estivesse a violá-la?

 

- Talvez fosse o que não falava. É possível que se limitasse a observar o parceiro a comê-la. Talvez a mantivessem tão drogada que nem sequer seria capaz de reconhecer o Pai Natal ainda que estivesse debruçado sobre ela.

 

Landry mostrou-me uma expressão reprovadora enquanto ouvia as mensagens que tinha no telemóvel.

 

- Quer saber uma coisa, Elena Estes? Você é uma chata do caraças!

 

- Sim, sim. Como se isso fosse alguma novidade - respondi-lhe saindo do parapeito da janela onde me sentara. Ora que diabo, Landry. Mate-os a todos e deixe que seja Deus a deslindar a meada.

 

- Não me tente. Metade das pessoas que estão envolvidas na vida desta rapariga deviam estar na cadeia, se quer saber a minha opinião - resmungou ele enquanto ouvia as mensagens no telemóvel. - Dentro de duas horas vamos passar busca à casa do Seabright, já temos o mandado. Tenho a certeza de que, ao abrigo deste mandado, o Dugan há-de procurar estupefacientes.

 

- E que mais é que procuram?

 

- A Erin não se cansa de dizer que os raptores telefonaram inúmeras vezes ao Seabright, além de terem filmado mais de uma cassete na caravana. De acordo com o que ela diz, umas três ou quatro.

 

- Deus nos valha! O que é que ele anda a fazer com elas? - perguntei. - A vendê-las através da Internet?

 

- Sim, e alegará que estava apenas a tentar recuperar parte do dinheiro do resgate - resmungou Landry. Grande filho-da-mãe!

 

Voltei a sentar-me no parapeito da janela, toda encostada ao vidro, sentindo os raios solares matinais que me aqueciam as costas, pensando no possível envolvimento de Bruce Seabright naquele assunto.

 

- Portanto, digamos que o Seabright queria que a Erin desaparecesse. Com esse fito em mente, arquitecta o rapto sem ter qualquer intenção de envolver a Polícia, tal como não queria que a Erin voltasse para sua casa. Por que motivo é que ela não foi assassinada de imediato? Podiam ter filmado as cassetes no espaço de uma hora, assassinado a rapariga e largado o corpo num lugar qualquer que fosse ermo.

 

”Mas, nesse momento, eu envolvo-me no assunto, arrastando-o a si - continuei. - E agora, o Bruce tem de se reger pela nossa batuta. Uma vez mais, por que razão não ordenou ao cúmplice que se livrasse da rapariga?

 

- Porque, agora, nós mantemo-nos de olho nele, fazendo-lhe perguntas. Os cúmplices vêem os polícias a meterem o nariz e sentem-se acagaçados.

 

- Por isso, põem a Erin em liberdade, para que ela possa ajudá-lo a reunir provas que os incriminarão? - Perguntei com um abanar de cabeça de descrença. - Isso não faz sentido absolutamente nenhum.

 

- Eu limito-me a jogar com as cartas que tenho na mão, Elena Estes - replicou Landry com impaciência. A Erin diz que foi o Jade. Estou disposto a acreditar nela. Seria estúpido se não acreditasse. Se tudo isto nos levar ao Bruce Seabright, também estou disposto a alinhar nisso. O crime dá origem a estranhos companheiros de cama.

 

Não fiz qualquer comentário. De quando em vez, sou capaz de me aperceber do valor da discrição. Landry possuía o seu suspeito, a par das provas circunstanciais. Também tinha uma vítima com meias certezas e as suas próprias dúvidas.

 

- Tenho de me ir embora - disse ele, guardando o telemóvel. - O assistente do procurador quer uma reunião antes de o Jade ser presente a tribunal.

 

Pensei que talvez conseguisse entrar no quarto de Erin, sem que ninguém desse por mim, depois de ele ter saído do hospital, mas entretanto vi que o agente policial destacado para ficar de guarda à porta do quarto já tinha voltado do intervalo para o café.

 

- Landry? Já sabe alguma coisa quando ao paradeiro do Van Zandt? - perguntei quando ele já se encaminhava pelo corredor, virando-se para trás.

 

- Não. Ele não chegou a voltar à casa da Lorinda. Recomeçou a afastar-se, mas eu chamei-o uma segunda vez.

 

- Landry? - Tirei a pulseira de Erin da algibeira onde a guardara, estendendo-lha. - Encontrei isto na sala de observações em que a Erin esteve a noite passada. Faça-lhe perguntas sobre isto. Talvez tenha sido uma prenda que o Jade lhe ofereceu.

 

Ele tirou a pulseira da minha mão e os seus dedos roçaram pelos meus. Assentiu com um acenar de cabeça.

 

- Obrigada - agradeci. - Por me ter posto a par da evolução dos acontecimentos.

 

- O caso começou por ser seu - replicou ele com um meneio da cabeça.

 

- Pensei que não era seu hábito partilhar.

 

- Há uma primeira vez para tudo - replicou olhando para a pulseira que tinha na mão, após o que se afastou.

 

Saí do hospital, meti-me no automóvel e contornei o parque de estacionamento, na esperança de avistar um Chevy azul-marinho, mas Van Zandt não se encontrava ali. Tal como não vi o Lexus branco de Krystal Seabright ou o Jaguar de Bruce. Os pais amantíssimos. Erin ordenara-lhes que se fossem embora, e eles haviam acatado o que ela dissera. Livres daquele frete.

 

Nunca fui capaz de compreender as pessoas que têm filhos, mas que não se interessam pelo seu crescimento, não os acarinham, nem os ajudam a tornar-se seres humanos. Que outras razões é que poderão ter? Dar continuidade à linhagem familiar? Receber os benefícios da Segurança Social? Comprovar a existência de uma relação entre duas pessoas? Porque era o que se esperava deles numa determinada altura das suas vidas? Casar e ter filhos. Nunca ninguém me explicou o motivo por que gente como esta quer ter filhos.

 

Eu não conhecia muito sobre o desenvolvimento de Erin Seabright; contudo, sabia que ela não tinha chegado onde se encontrava por ter sido amada pelos seus pais. Ela era, de acordo com as palavras da própria irmã, uma jovem encolerizada e azeda.

 

Não gostava da história dela, que achava bastante mal-amanhada. Sabia por experiência própria que as jovens iradas e azedas queriam que as pessoas que mais as magoavam pagassem pelos seus pecados. Perguntei a mim mesma se ela seria capaz de culpabilizar aqueles que mais desejaria responsabilizar pela sua amargura. Talvez Jade não a tivesse amado. Talvez ele a tivesse deixado de coração destroçado e, sob o efeito do sofrimento e do terror, sob a influência de drogas, quem sabe se não teria projectado a identidade de Jade para o seu agressor.

 

Ou talvez este tivesse lançado aquela hipótese para que ela viesse a acreditar.

 

Uma vez mais, pensei em Michael Berne. Ter-lhe-ia sido simples telefonar para a Rádio Shack, pedindo que lhe reservassem um determinado telemóvel. Não lhe teria sido difícil mandar um dos seus lacaios à loja para levantar o aparelho. Se tivesse tido conhecimento da atracção que Erin sentia por Jade, podia ter-se servido desse pormenor durante o período de cativeiro de Erin.

 

Porém, nesse caso, quem seria o cúmplice de Michael? Ele não tinha qualquer ligação com os Seabright, pelo menos que eu soubesse. Encontrava-se do lado errado do relacionamento com Trey Hughes.

 

Trey Hughes, que trazia o número de telefone do meu pai na sua carteira. Trey, sempre de olho nas raparigas, ao que se juntava a sua ligação a todos os aspectos desta saga de contornos tão sórdidos.

 

Eu não queria acreditar que ele pudesse fazer parte de algo tão perverso como o que Erin Seabright sentira na pele. Continuava a apostar o meu dinheiro em Van Zandt.

 

Todavia, parecia-me que tinha peças de três quebra-cabeças diferentes. O truque seria conseguir uma imagem final que não fosse abstracta.

 

A assistente do procurador não parecia nada perturbada pelo facto de Erin Seabright não ter visto o rosto dos seus sequestradores. Tal como Elena dissera, tinham matéria mais do que suficiente para poderem indiciá-lo, apresentando uma acusação sólida de modo a que a fiança fosse bastante elevada ou mesmo recusada. Terminado esse processo, de acordo com o que a lei do estado da Florida estipulava, disporia de cento e setenta e cinco dias para apresentar matéria que levasse Jade perante um júri. Teriam muito tempo para estruturar a acusação, desde que as provas adicionais existissem e fossem encontradas.

 

O tipo do sangue encontrado na cocheira onde Jill Morone fora assassinada já tinha sido identificado. Se conseguissem provar que era do mesmo tipo do de Jade, estariam no bom caminho para o acusar de um homicídio que seria acrescido à acusação de sequestro. Já tinham conseguido abalar a credibilidade do álibi que Jade apresentara para a noite da morte de Jill. Também não tinha álibi para a noite em que o cavalo morrera em circunstâncias estranhas, o acontecimento que Elena Estes acreditava ter sido a roda da engrenagem que pusera todo aquele caso em movimento.

 

Landry pensava em Elena quando saiu do gabinete do procurador. Não lhe agradava que ela tivesse dúvidas quanto ao envolvimento de Jade no caso, tal como não lhe agradava que as opiniões dela fossem tão importantes para si. Fora ela quem o arrastara para aquela trapalhada, e ele pretendia apresentar o caso de um modo tão linear quanto a primeira teoria dela havia sido. A maior parte dos crimes era assim: sem grandes complicações. O homicídio comum era motivado por sexo ou dinheiro, não sendo necessário nenhum Sherlock Holmes para o resolver. O mesmo se passava com o rapto para obtenção de um resgate. Um bom trabalho básico por parte da Polícia, regra geral, conduzia a detenções e a condenações. Landry não queria que aquele caso diferisse desses princípios elementares.

 

E talvez as razões por que as dúvidas de Elena Estes o incomodavam tanto se devessem ao facto de algumas dessas mesmas dúvidas estarem a mordê-lo no subconsciente. Tentou expulsá-las da mente enquanto caminhava pelo corredor. Weiss saiu da sala da brigada, indo ao seu encontro.

 

- A Paris Montgomery está cá. Perguntou por ti - informou revirando os olhos.

 

- Encontraram alguma coisa em casa do Seabright?

 

- Acertámos em cheio - disse Weiss. - Descobrimos uma cassete escondida numa prateleira do escritório do Bruce. Não vais acreditar quando a vires. Chega ao extremo de mostrar a rapariga a ser violada. Temos o Seabright na sala de reuniões. Vou agora mesmo para lá.

 

- Espera por mim - pediu Landry, sentindo uma fúria que lhe dava engulhos no estômago. - Quero apertar esse filho-da-puta!

 

- Vais ter de te pôr na fila - garantiu-lhe Weiss. Paris Montgomery andava de um lado para o outro à volta da mesa quando Landry entrou na sala de interrogatório. O seu semblante era um misto de perturbação e nervosismo, mas esse estado emocional não a tinha impedido de se maquilhar e pentear primorosamente.

 

- Miss Montgomery! Quero agradecer-lhe por ter vindo - saudou Landry. - Queira fazer o favor de se sentar. Posso oferecer-lhe alguma coisa? um café?

 

- Meu Deus, não posso aceitar - recusou ela sentando-se. - Se eu ingerir mais cafeína, vou entrar em parafuso, começando a girar pela sala. Ainda me custa a acreditar que isto esteja a acontecer. O Don na cadeia. A Erin raptada. Meu Deus! Ela está bem? Acabo de tentar telefonar para o hospital, mas eles recusaram-se a dar-me qualquer informação.

 

- A Erin ficou em muito mau estado - adiantou Landry. - Mas há-de recuperar.

 

- Acha que eles permitem visitas?

 

- Para já, apenas os familiares mais próximos. Talvez ainda hoje, mas mais tarde.

 

- Sinto-me muito mal pelo que aconteceu. Não posso esquecer-me de que ela trabalhou para mim. Eu devia ter tentado inteirar-me do que se passava com ela. - As lágrimas encheram-lhe os grandes olhos castanhos. - Devia ter feito qualquer coisa. Quando o Don me disse que ela se tinha despedido e mudado de cidade... Tinha a obrigação de ter feito um esforço maior para a contactar. Devia saber que havia alguma coisa que não estava bem.

 

- E por que razão devia ter agido dessa maneira? Havia algum motivo para ter desconfiado de alguma coisa?

 

Paris desviou o olhar; os seus olhos pareciam ter aquela espécie de expressão vazia com que as pessoas ficam quando revêem recordações que lhes desfilam pela mente.

 

- A Erin parecia-me sentir-se satisfeita com o emprego. Bem vê, eu sabia que ela tinha problemas com os namorados, mas que jovem da sua idade é que não os tem? Mas a verdade é que... devia ter-lhe perguntado por que razão decidira despedir-se, assim, tão repentinamente. Mas é preciso compreender que o pessoal que trabalha nas estrebarias está sempre a chegar e a partir durante a temporada hípica. As oportunidades de trabalho são tantas. Aparece alguém que lhes oferece mais dinheiro, um seguro de saúde mais vantajoso, ou um dia de folga suplementar, e eles mudam logo de emprego.

 

Landry não lhe ofereceu os lugares-comuns de simpatia do costume, nem absolvição pela atitude dela. Era inquestionável que devia ter havido alguém a prestar mais atenção ao que se estava a passar com Erin Seabright. Landry não se sentia muito inclinado a ilibar fosse quem fosse.

 

- Apercebeu-se da existência de alguma relação íntima entre a Erin e o Don? - perguntou.

 

- A Erin tinha uma paixoneta por ele.

 

- Tanto quanto sabe, ele tomou alguma iniciativa nesse sentido?

 

- Eu... bem... o Don é um homem muito carismático.

 

- Isso é um sim ou um não? - perguntou Landry, indo direito ao assunto.

 

- Ele é o tipo de pessoa que possui um magnetismo pessoal. As mulheres sentem-se atraídas por ele, o que lhe agrada bastante. Ele gosta de namoriscar.

 

- Com a Erin?

 

- Bem... claro que sim... mas nunca me passou pela cabeça que ele se aproveitasse da situação. Não quero acreditar que o tenha feito.

 

- Mas é muito possível que sim.

 

Paris mostrava-se insegura, o que era uma resposta mais que suficiente.

 

- A Erin disse-lhe alguma coisa a respeito da morte do cavalo?

 

- Ela ficou perturbada. Todos ficámos muito abalados.

 

- Deu-lhe a entender que sabia alguma coisa quanto ao sucedido? - continuou Landry.

 

Paris desviou o olhar, premindo dois dedos sobre o pequeno vinco entre as sobrancelhas.

 

- A Erin não acreditava que a morte desse cavalo tivesse sido acidental.

 

- Era ela que tratava dele, não é verdade?

 

- Sim. E era muito competente... com ele e com todos os cavalos. Dedicava-lhes mais tempo do que era obrigada. Por vezes, ia aos estábulos fora das suas horas de trabalho para ver se estavam bem.

 

- Ela tinha ido vê-los nessa noite?

 

- Por volta das onze da noite. E estava tudo bem.

 

- O que é que a levou a pensar que não se tratava de um acidente?

 

Paris Montgomery começou a chorar. Olhou em redor como se procurasse um buraco onde pudesse enfiar-se.

 

- Miss Montgomery, se o Don Jade fez aquilo que acreditamos ter feito, a senhora não é obrigada a mostrar lealdade para com ele.

 

- Eu nunca acreditei que ele pudesse fazer alguma coisa de mal - acrescentou ela numa voz a medo, apresentando aquela desculpa mais para si própria do que para ilibar Jade.

 

- O que é que aconteceu? - prosseguiu Landry.

 

- A Erin disse-me que o Don já se encontrava no estábulo quando ela chegou nessa manhã. Bastante cedo. Tínhamos alguns cavalos que participavam numa exibição nesse dia, pelo que ela tinha de chegar mais cedo para entrançar as crinas e preparar os animais. Contou-me que viu o Don na cocheira do Stellar a fazer qualquer coisa com o fio eléctrico da ventoinha. Foi ter com ele para lhe perguntar a razão da sua presença a uma hora tão matinal.

 

Paris Montgomery interrompeu-se fazendo uma pausa para se recompor, para ganhar fôlego. Landry aguardava pacientemente.

 

- Ela viu o Stellar caído no chão. O Jade disse-lhe que o cavalo mordera o fio da ventoinha até conseguir descarná-lo, tendo-lhe mostrado o fio todo roído. Mas a Erin também me disse que ele tinha qualquer coisa na outra mão. Pareceu-lhe uma ferramenta.

 

- E você pensa que ele cortou o fio eléctrico de modo a fazer com que parecesse um acidente.

 

- Não sei! - respondeu ela a chorar, cobrindo o rosto com as mãos. - Não quero acreditar que ele tenha morto o pobre animal!

 

- E agora, ao que tudo indica, esse pode ter sido o menor dos seus crimes - retorquiu Landry, bebendo pequenos goles do seu café com uma expressão impassível, enquanto Paris Montgomery chorava, arrependida pelo seu pecado de omissão. Mentalmente, começou a analisar aqueles factos mais recentes. Erin poderia ter denunciado Jade, acusando-o de ter encenado a morte acidental do cavalo. O que, logicamente, poderia conduzir à sua própria morte, pensou Landry, tal como podia ter sido o motivo por trás do assassínio de Jill Morone. Todavia, as provas relativas à compra do telemóvel indicavam que o sequestro havia sido planeado antes da morte deliberada do animal. Consequentemente, uma coisa não teria nada a ver com a outra.

 

- O que é que fez quando a Erin a pôs a par dessa informação? - perguntou Landry.

 

- Fiquei irritada - respondeu Paris limpando as lágrimas com um lenço de papel. - Disse-lhe que, como era evidente, fora decerto um acidente. O Jade jamais...

 

- Isso a despeito do facto de ele ter agido dessa maneira em várias ocasiões no passado.

 

- Eu nunca acreditei que isso fosse verdade - ripostou ela veementemente. - Nunca houve ninguém capaz de provar o contrário.

 

- E isso só porque ele é muito esperto e manhoso, conseguindo furtar-se às consequências das suas acções.

 

Até mesmo face aos factos, ela não hesitava em sair em defesa de Jade.

 

- Em três anos, nunca tive conhecimento de nenhum incidente em que ele tenha tratado com crueldade qualquer dos animais que lhe são confiados.

 

- Qual foi a reacção da Erin ao verificar que a senhora não acreditava nela?

 

- Inicialmente, mostrou-se furiosa. Falámos durante mais algum tempo. Referi-lhe o mesmo que acabei de lhe dizer quanto à minha experiência de trabalho com o Jade. Perguntei-lhe se ela conseguia acreditar que ele fosse capaz de fazer mal a alguém. Fiz com que ela se sentisse envergonhada por ter sequer pensado numa coisa daquelas.

 

- Portanto, quando o Jade lhe disse mais tarde, nesse mesmo dia, que ela se tinha despedido...

 

- Não fiquei muito surpreendida - atalhou Paris.

 

- Mas não tentou telefonar-lhe?

 

- Tentei ligar-lhe, mas ela não atendeu o telefone. Deixei uma mensagem no voice mail. Uns dois dias depois, decidi ir até ao apartamento onde ela morava, mas o que vi indicou-me que ela se teria mudado - acrescentou Paris com um suspiro muito dramático, olhando para Landry com aqueles olhos imensos, como se lhe implorasse perdão. Eu daria tudo para poder retornar a esse dia a fim de mudar o rumo dos acontecimentos.

 

- Sim, sim - disse Landry. - Aposto que a Erin Seabright faria o mesmo se pudesse.

 

Rememorei o dia em que tudo começou. O dia em que Stellar foi encontrado morto na sua cocheira. Regressei ao dia em que Erin Seabright fora raptada dos portões das traseiras do Centro de Pólo Equestre de Palm Beach. Pus tudo preto no branco num papel de carta, por sinal bastante caro, que encontrei numa gaveta da escrivaninha. Uma sequência de eventos. Quando Jade, alegadamente, comprou o telemóvel. Quando Erin e Chad discutiram. Quando Stellar foi encontrado sem vida. Quando Erin foi sequestrada. Passei a papel tudo o que eu sabia sobre o caso, tendo disposto as folhas por ordem cronológica no soalho do meu quarto.

 

Eu concentrara-me na suposição de que todos aqueles acontecimentos tinham tido origem na morte de Stellar, mas ao examinar aquela sequência de acontecimentos, reflectindo no que era do meu conhecimento, compreendi que isso não correspondia à realidade. O plano do rapto já havia sido accionado quando Stellar morreu. Alguém já comprara o telemóvel pré-pago. Alguém tratara de arranjar a caravana onde Erin estivera enclausurada, assim como o equipamento de vídeo e áudio, a Ketamine para drogá-la e, por fim, a carrinha em que Erin fora levada depois de ter sido sequestrada. Um plano bastante elaborado em que estavam envolvidas, no mínimo, duas pessoas.

 

Eu queria saber tudo o que pudesse ter transpirado nesse domingo, o dia da morte de Stellar e do rapto de Erin. Queria saber o que se havia passado entre Erin e Jade nesse dia, assim como antes dessa data. Queria saber onde Trey Hughes e Van Zandt se encontravam nesse dia.

 

Olhei para a minha sequência de acontecimentos, pensando em tudo o que ainda desconhecia. Por muito que analisasse tudo aquilo, concluía sempre que a explicação mais simples não era necessariamente a melhor. Mas sabia que existia muita gente que se teria sentido muito satisfeita se eu decidisse ficar-me por ali. Entre essas pessoas contava-se o próprio Landry.

 

Acontece, porém, que eu nunca me senti satisfeita em fazer as coisas da maneira mais simples.

 

Regressei à sala de estar, fui buscar a videocassete onde a fase inicial do rapto fora gravada e inseri-a no aparelho de vídeo.

 

Erin de pé junto do portão das traseiras, à espera. Viu a carrinha que se aproximava. Deixou-se ficar quando o homem mascarado saiu do seu interior. Depois disse: ”Não!” Começou a correr. O homem agarrou-a.

 

Rebobinei a cassete, voltando a passá-la.

 

Pensei em tudo o que ela dissera a Landry, assim como nas coisas que não lhe havia dito.

 

Pensei em quem se encontrava sob suspeita e também sobre quem nada pendia.

 

Don Jade encontrava-se na cadeia. Bruce Seabright estava como que sob um microscópio. Quanto a Tomas Van Zandt, o conhecido predador, sobre quem pendia a suspeita de assassínio, ninguém sabia do seu paradeiro.

 

Voltei a sentar-me à escrivaninha, começando a procurar um papel, o que tirei do lixo de Van Zandt, no meio daquela confusão. O horário do voo em que os cavalos seriam transportados para Bruxelas. Em princípio, o avião tinha partida marcada para essa noite às vinte e três horas. Precisava de dar essa informação a Landry, que, por seu lado, a passaria a Armedgian.

 

Que se lixasse! Eu não estava disposta a dar nada a Armedgian. Se eu pudesse encontrar uma maneira de agir com que ele fizesse figura de idiota, não hesitaria. Deus sabia que, em qualquer dos casos, depois do fiasco no Players, nem Armedgian nem Dugan quereriam ter o que quer que fosse a ver comigo.

 

Decidi que, quando estivesse na hora, eu própria iria ao aeroporto, onde esperaria por Van Zandt, e só depois é que tencionava telefonar a Landry. Se Tomas Van Zandt pensava que poderia fazer tudo e mais alguma coisa no meu país, seria obrigado a pensar duas vezes.

 

Ele não tinha a mínima noção do tempo, não sabendo há quanto tempo é que estaria no porta-bagagens do carro. A noite dera lugar ao dia. Tinha percepção disso devido ao calor que se intensificara. A merda do sol da Florida batia impiedosamente no automóvel, pelo que a temperatura dentro do porta-bagagens estava a tornar-se insuportável.

 

Estava destinado a morrer naquele lugar horrível por causa duma puta russa. Ou antes, duas. As feições de ambas misturavam-se no seu cérebro. As dores e o calor eram tão fortes que estava a entrar e a sair intercaladamente de um estado de delírio.

 

Teria tentado pôr-se em fuga, mas a verdade é que não conseguia mexer-se. Não sabia quantos dos seus ossos estariam fracturados. Também teria tentado gritar, mas a metade inferior do seu rosto havia sido coberta com fita adesiva. Em muitas ocasiões durante as últimas horas pensara que vomitaria, sufocando no seu próprio vómito e acabando por morrer.

 

Como a moça de estrebaria gorda. A putéfia estúpida! Ela estivera pronta para ter relações sexuais com Jade. Mas devia ter estado disposta a copular com ele e não com outro. Parte da sova que ele levara era por culpa dela. Kulak estava ao corrente da morte da rapariga.

 

Fora um acidente. Nunca um assassínio. Se ele se tivesse visto livre do corpo da rapariga tal como havia planeado, nunca ninguém saberia de nada. Ninguém teria começado a fazer perguntas sobre o paradeiro de Jill. Quem é que neste mundo estaria interessado em saber daquele monte de merda?

 

Se não o tivessem convencido a largar o cadáver naquele fosso para os excrementos, muito do que entretanto se passara nunca teria acontecido. E, quem sabe, ele agora não estaria à espera de morrer.

 

Começou a ouvir sons do lado de fora do automóvel. O barulho dos motores de maquinaria pesada e o som de vozes de homens. Russos que falavam em russo. Sempre os cabrões dos russos.

 

Sentiu qualquer coisa que bateu no carro, balouçando-o, e depois apercebeu-se de que era impelido para a frente. O barulho da maquinaria acentuou-se, qual besta vinda do inferno que devorasse tudo o que encontrava pelo caminho. O ruído tornou-se ensurdecedor: o rugir da besta, o esmagar de metal quando a dianteira do automóvel cedeu.

 

Van Zandt teve noção do que estava para vir. Sabia, e começou a berrar, apesar de os seus gritos não poderem sair do interior da sua cabeça. Gritou o nome de todas as mulheres que se tinham virado contra ele.

 

Mulheres! Cabras estúpidas e ingratas! A maldição da sua existência. Muitas vezes dissera que as mulheres seriam a sua perdição. Como de costume, tinha razão.

 

A cena era demasiado macabra, mais do que tudo a que Landry assistira em toda a sua vida. Erin Seabright atada a uma cama com os braços e pernas afastadas, a gritar e a chorar enquanto um dos seus sequestradores a violava.

 

Dugan, Weiss, Dwyer e ele próprio estavam instalados em semicírculo, com os braços cruzados, enquanto viam as imagens que a cassete lhes mostrava; os quatro exibiam semblantes que não deixavam adivinhar qualquer emoção. Sentado à cabeceira oposta da mesa, Bruce Seabright estava branco como a cal da parede.

 

Landry desligou o aparelho de vídeo, batendo com o punho cerrado na face lateral do televisor. Assestou toda a sua atenção em Seabright.

 

- Você é um filho-da-puta do mais pervertido que existe!

 

- Eu nunca tinha visto essa cassete! - gritou Seabright levantando-se da cadeira.

 

- Landry... - interveio Dugan num tom de advertência. Landry nem sequer o ouviu, tal como não ouviu o toque do telefone de Weiss. Mal se apercebia da presença de outras pessoas na sala. Só tinha olhos para Bruce Seabright, e o seu grande desejo era espancá-lo e matá-lo com as suas próprias mãos.

 

- O quê? Estava a guardar esta cassete para mais tarde? - perguntou Landry. - Estava a planear realizar um pequeno festival cinematográfico?

 

- Não sei como é que essa coisa foi parar ao meu escritório! - afirmou Seabright com veemência.

 

- Foi você que a pôs lá - ripostou Landry.

 

- Isso não é verdade! Juro!

 

- Os raptores enviaram-lha, tal como lhe enviaram a primeira - adiantou o detective.

 

- Não!

 

- E se dependesse de si, ninguém teria visto nenhuma das duas.

 

- Isso... isso não é verdade...

 

Dugan tentou interpor-se entre os dois homens, dando um empurrão no peito de Landry.

 

- Detective Landry, afaste-se do homem!

 

- Não achou que era suficientemente mau querer ver-se livre dela? - vociferou Landry, contornando o tenente. Também queria vê-la a ser torturada?

 

- Não! Eu... - começou Seabright.

 

- Cale-se! - gritou Landry cortando-lhe a palavra. Feche a merda dessa boca, seu cabrão!

 

Seabright recuou; os seus olhos porcinos pareciam querer saltar das órbitas, tanto era o medo que sentia. A parte de trás das pernas bateu contra a cadeira articulada onde estivera sentado, cambaleando antes de cair desajeitadamente no assento.

 

- Landry! - gritou Dugan.

 

- James... - interveio Dwyer colocando-se diante do colega e erguendo uma mão.

 

- Eu quero um advogado! - gritou Seabright. O homem está completamente descontrolado!

 

Landry fez um esforço, acalmando-se um pouco e retardando a respiração; ficou a olhar fixamente para Bruce Seabright

 

- É melhor telefonar a Deus, Seabright - disse o detective numa voz tensa. - Vai precisar de mais do que um simples advogado para conseguir salvar o coirão do que está à sua espera.

 

A audiência judicial em que Jade foi ouvido para efeitos de concessão, ou não, de fiança durou vinte minutos. Cinco minutos para tratar do assunto em apreciação, e quinze minutos para que Shapiro pudesse ouvir-se a si próprio a falar. Levando em linha de conta os honorários que um fulano como ele cobrava por hora, tinha obrigação, no mínimo, de aparentar ser merecedor de muito mais do que um mero advogado comum.

 

Landry manteve-se ao fundo da sala do tribunal, observando os presentes. Ainda tremia devido à adrenalina e ao sentimento de raiva que pareciam queimá-lo por dentro, na sala de reuniões. Como se estivesse a contar carneiros, contava cabeças. A comitiva de Shapiro, os seus ”advogados de honor?, a assistente do procurador, um pequeno grupo de repórteres e Trey Hughes.

 

A assistente do procurador, a advogada Angela Roca, manifestou a sua intenção de levar o caso perante um júri de acusação, tendo pedido uma fiança no valor de um milhão de dólares.

 

- Meritíssima - interpôs Shapiro numa voz de queixume -, um milhão de dólares! Mister Jade não é tão abastado como os seus clientes. Para todos os efeitos, isso seria o mesmo que negar qualquer fiança ao meu cliente.

 

- Por nós, não vemos nenhum problema, Meritíssima ironizou Roca. - Mister Jade foi identificado pela vítima como sendo o seu sequestrador e violador. Adicionalmente, o Gabinete do Xerife considera-o como suspeito do assassínio brutal de uma das suas empregadas.

 

- Com todo o respeito que é devido a Vossa Excelência, Meritíssima, Mister Jade não pode ser penalizado por um crime sem que tenha sido previamente indiciado.

 

- Sim, sim, essa apareceu-me durante os meus estudos para juiz - redarguiu a juíza Ida Green com sarcasmo. Ida, uma mulher baixinha e de cabelos ruivos, oriunda de Nova Iorque, era um dos juizes preferidos de Landry. Não havia nada que pudesse impressionar Ida, incluindo Bert Shapiro.

 

- Meritíssima, o processo da acusação...

 

- Isso não é assunto que agora me diga respeito. Esta audiência é somente para efeitos de fiança, doutor Shapiro. Terei eu de o esclarecer quanto aos trâmites básicos que a lei estipula?

 

- Não, Meritíssima. Ainda me recordo vagamente do que aprendi na faculdade de Direito.

 

- Óptimo. Estou a ver que não desperdiçou o dinheiro dos seus pais. A fiança fica estabelecida em quinhentos mil dólares, em dinheiro.

 

- Meritíssima... - começou Shapiro a dizer.

 

- Doutor Shapiro, os clientes do seu cliente gastam esse montante num único cavalo sem sequer pestanejarem atalhou a juíza, ignorando o protesto dele com um gesto da mão. - Tenho a certeza de que se forem tão dedicados a Mister Jade como o senhor mostra ser, não deixarão de o ajudar.

 

Shapiro pareceu ter ficado extremamente irritado. Roca saboreou aquela pequena vitória, esboçando um sorriso.

 

- Meritíssima, como Mister Jade já viveu na Europa, continuando a manter contacto com várias pessoas que aí conheceu, consideramos que corremos o risco de ele abandonar o país - alegou a advogada de acusação.

 

- Mister Jade entregará o seu passaporte a este tribunal. Mais alguma coisa, doutora Roca?

 

- Solicitamos que Mister Jade seja obrigado a submeter uma colheita de sangue, assim como uma amostra de cabelo, para efeitos de comparação com a prova que está em nossa posse, Meritíssima.

 

- Trate de arranjar o que a acusação solicitou, doutor Shapiro.

 

- Meritíssima - começou Shapiro a argumentar -, essa medida é uma violação grosseira do direito de privacidade que assiste ao meu cliente...

 

- Uma colonoscopia é uma violação grosseira, doutor Shapiro. Portanto, manda-se que a recolha de sangue e cabelo seja efectuada.

 

A sessão foi encerrada com um bater do martelo da juíza. Trey Hughes levantou-se, dirigindo-se para o extremo oposto da sala de tribunal, preenchendo um cheque que entregou ao oficial de diligências; Don Jade era um homem livre.

 

Voltei a rebobinar a cassete.

 

Perguntei a mim mesma se o pessoal de Landry teria encontrado mais alguma das cassetes de que Erin falara em poder de Bruce Seabright. A ser esse o caso, esperava que ele fosse detido e acusado por qualquer coisa - obstrução à justiça, sonegação de provas, conspiração, qualquer crime. Independentemente do desfecho da odisseia por que Erin passara, não obstante a origem, ou o motivo, do que tinha acontecido, Bruce Seabright havia dado mostras de uma indiferença perversa face à vida humana.

 

Pensei na cassete que mostrava o espancamento a que Erin fora sujeita, que eu ainda não tinha visto, mas que Landry me descrevera como sendo brutal. Olho por olho, Bruce, pensei.

 

Premi o botão para ver, uma vez mais, a cassete que tinha no aparelho.

 

Quantas vezes já tinha visto aquilo? Não sabia. Devia ser suficiente para poder ter esmiuçado todos os pormenores, e, contudo, sentia-me compelida a ver aquelas imagens uma vez mais, procurando detalhes que me houvessem escapado, que não podia, que não quereria ver. Vezes sem conta, mas mesmo assim, havia qualquer coisa que continuava a incomodar-me, uma sensação que me apoquentava, bem arreigada no meu subconsciente, e que me dizia existir algo que eu não era capaz de identificar concretamente.

 

A carrinha aproxima-se. Erin encontra-se do lado de fora do portão.

 

A carrinha pára. Erin continua no mesmo sítio.

 

Um homem mascarado sai do interior. Erin diz: ”Não!?

 

Ela tenta correr.

 

Parei o filme, imobilizando a imagem. Os rostos de Erin e do seu perseguidor ficam parcialmente ocultos por uma espessa banda granulada enquanto ambos correm em direcção ao portão. Sem se poder ver a expressão dela ou o que cobre o rosto dele, aquela imagem podia prestar-se a um grande número de conjecturas. Fora de contexto, as duas personagens podiam ter sido dois apaixonados que corressem um atrás do outro, dando largas à felicidade que sentiam. Também se podia interpretar como sendo duas pessoas que fugissem de uma tragédia, ou que acorressem em socorro de terceiros. Sem expressão fisionómica, eram apenas dois corpos que vestiam calças de ganga desbotadas.

 

A morosidade na reacção de Erin era um aspecto que me deixava incomodada. Seria descrença? Seria temor? Ou dever-se-ia a outro motivo totalmente diverso?

 

Deixei que a cassete avançasse, observando o homem que a agarrava com brusquidão pelas costas, obrigando-a a rodopiar sobre si mesma. Ela dava-lhe um violento pontapé. Ele retribuía-lhe com uma bofetada dada com as costas da mão, e com tanta força que por um triz ela não caía redonda no chão.

 

Uma cena horrível. Absolutamente horrível. De uma violência que era inteiramente genuína. Coisa que era impossível de negar.

 

Observei-o a empurrá-la pelas costas, impelindo-lhe o rosto contra o solo. Vi-o a espetar-lhe uma agulha hipodérmica no braço. Ketamine. A droga de eleição dos fanáticos das raves, dos violadores em primeiros encontros e dos veterinários que tratam de animais de pequeno porte.

 

No passado, Erin consumira o tipo de drogas tão em voga nas festas dos jovens. Fora ela própria que dissera a Landry que havia sido essa substância que os raptores usavam para a drogar. Mas como é que ela poderia saber, a menos que os sequestradores, muito amavelmente, a tivessem informado com antecedência, ou salvo se ela própria soubesse por experiência quais os efeitos dessa droga?

 

Reflecti em tudo o que Erin dissera a Landry, nas coisas que ela lhe teria ocultado, as peças da sua história que não se ajustavam no mesmo quebra-cabeças.

 

Ela afirmara que um dos sequestradores era Jade, mas a verdade é que nunca vira o seu rosto durante o cativeiro. Tinha a certeza de que era ele - o homem por quem tinha uma paixoneta, o homem que, segundo parecia, a levara a largar Chad. E todavia, sem nunca ter visto o seu rosto, não lhe era difícil acreditar que ele a brutalizara? E porquê? O que a levaria a acreditar nisso? E por que motivo teria ele agido assim?

 

E embora ela tivesse a certeza absoluta de que Jade era um dos seus raptores, não fazia a mais pequena ideia de quem era o cúmplice deste.

 

Mais ainda, depois de a terem sequestrado e espancado, sem que o resgate, que fora a razão para terem chegado a extremos tão requintados, tivesse sido pago, os seus captores, muito simplesmente, haviam-se limitado a dar umas voltas com ela dentro da carrinha, deixando-a em seguida em liberdade. Assim, sem mais nem menos. E não só tinham permitido que ela fosse em liberdade, como também lhe haviam devolvido a roupa, e fornecido até mesmo a pulseira.

 

Eu não acreditava em Erin. Tal como não acreditava na história que ela contava, apesar de ter dado qualquer coisa importante para alterar o que os meus instintos me diziam. Queria ser capaz de duvidar deles, tal como duvidava todos os dias desde que Hector Ramirez tinha sido assassinado. Era uma ironia que através deste caso eu tivesse recomeçado a acreditar em mim própria; apesar disso, não havia nada que eu quisesse mais do que estar enganada.

 

Mas não estava.

 

Pensei em Molly e desejei ter sido capaz de chorar.

 

De boa vontade, teria rezado para estar enganada, mas a verdade é que nunca acreditei num poder superior que me desse ouvidos.

 

Sentindo-me nauseada, rebobinei o filme, forçando-me a vê-lo uma vez mais, desta feita passando a totalidade das imagens ao retardador, de modo a poder analisar cada uma com mais minúcia, procurando qualquer coisa que receava poder passar-me despercebida.

 

A qualidade do meu equipamento era média. Landry disporia de meios que lhe permitiriam uma visualização do filme muito mais precisa, com toda a aparelhagem de alta tecnologia de que dispunha no laboratório. Apesar disso, enquanto examinava as imagens, segundo a segundo, concluí que a qualidade da imagem não era assim tão má. Ao longo do filme, a câmara mantivera-se bastante focada em Erin, dando a impressão de não ter estado a mais de cerca de dois metros e meio, três metros, de distância. Vi que usava o cabelo penteado para trás e preso por uma mola, vestia uma camisola de algodão vermelho muito justa e curta que deixava ver a barriga plana. As calças de ganga que usava tinham uma mancha branca numa das coxas.

 

Quando um dos raptores a agarrou por um braço, consegui ver que usava um relógio de pulso. Contudo, não vi o que queria ver mais do que tudo.

 

Andando de uma ponta à outra da casa de visitas de Sean, qual gata enjaulada, pensava nas pessoas que faziam parte da vida de Erin: Bruce, Van Zandt, Michael Berne, Jill Morone, Trey Hughes e Paris Montgomery. Eu queria que Bruce fosse culpado. Sabia que Van Zandt era um assassino. Michael Berne possuía motivos para querer arruinar a vida de Don Jade, mas o rapto não tinha a mínima razão de ser. Jill Morone estava morta. Mas Trey Hughes era o centro dos universos de todos eles. E, depois, ainda tínhamos Paris Montgomery.

 

Paris e a lealdade dúbia que dedicava a Don Jade. Ela tinha tanto a ganhar com a destruição da vida profissional de Jade quanto Michael Berne, mesmo mais. Havia três anos que trabalhava ofuscada pela sombra de Jade, sempre com o seu sorriso de menina de capa de revista, a par do seu amor pelas coisas boas da vida e a grande vontade de vir a ser o centro das atenções. Ela gerira a vida dele, tal como o fizera em relação às suas cavalariças e interferências de terceiros.

 

Pensei nas pequenas ”verdades” destrutivas que Paris me havia confessado sobre a morte de Stellar, muito embora não tivesse deixado de defender Don Jade. Se ela era capaz de me confiar essas coisas, que sombras de dúvidas não andaria a semear na mente de Trey Hughes de cada vez que ia para a cama com ele?

 

Na manhã em que o corpo de Jill Morone fora encontrado, Paris tinha orientado a limpeza que Javier fizera no local do crime. Até mesmo quando telefonou ao agente de seguros com respeito aos estragos que o vestuário e bens pessoais de Jade haviam sofrido, isso não impedira que Javier continuasse com a limpeza da cocheira, que ficara uma lástima. Agora perguntava-me se a notícia do assassínio de Jill teria sido uma surpresa para ela.

 

Também reflecti no alegado sequestro e no pressentimento de Landry que apontava para uma possível encenação. Pensei no corpo de Jill enterrado no fosso dos excrementos junto do estábulo número quarenta, onde era impossível não ter sido encontrado. E quando o cadáver foi descoberto, quem é que havia sido o primeiro suspeito? Don Jade.

 

Era muito possível que os clientes dele estivessem dispostos a tolerar um ou outro escândalo, mas o assassínio de uma rapariga? Não me parecia. Rapto? Tão-pouco. E com Jade fora do jogo, e a existência de uns quantos patronos abastados que acreditavam nela, quem é que teria mais a ganhar? Paris Montgomery.

 

Telefonei a Landry, deixando uma mensagem no seu serviço de atendimento. Em seguida, desliguei o televisor e saí de casa.

 

Num dos extremos das cavalariças, Irina estava estendida numa espreguiçadeira, vestida apenas com a parte de cima de um biquini e um par de calções muito curtos, exibindo uns óculos de sol bastante espampanantes que lhe ocultavam os olhos.

 

- Irina - chamei quando já me dirigia para o automóvel. - Se o Tomas Van Zandt aparecer por aqui, telefona para o cento e doze. Ele é procurado por assassínio.

 

Ela ergueu uma mão num gesto indolente, dando-me a entender que me ouvira e deitando-se de barriga para baixo a fim de bronzear a parte de trás do corpo.

 

Conduzi até ao centro equestre, dirigindo-me para os estábulos de Jade, a fim de ter uma segunda conversa com Javier. Havia muito menos hipóteses de ele ser apanhado a falar comigo numa segunda-feira. As cavalariças estavam encerradas, portanto, não havia razão para que Trey Hughes ou Paris Montgomery aparecessem por ali. Talvez ele se sentisse mais à vontade para me confidenciar o que sabia.

 

Não havia ninguém nos estábulos de Don Jade. As cocheiras não haviam sido limpas e os cavalos protestavam pela falta de almoço. Parecia que tinham sido abandonados. O corredor era como um percurso de obstáculos com forquilhas, ancinhos, vassouras e baldes de esterco virados ao contrário. Como se alguém tivesse passado por ali levando fogo no rabo.

 

Fui à área onde as rações eram guardadas e atirei um molho de feno a cada cavalo.

 

- Não me diga! Agora está a fingir que é moça de estrebaria?

 

Olhei para o fundo da tenda, deparando com Michael Berne vestido com umas calças de ganga e um pólo. Tinha o aspecto mais feliz que eu lhe vira desde o princípio de toda aquela trapalhada. Relaxado. O seu rival encontrava-se na cadeia, pelo que, no seu mundo, tudo corria às mil maravilhas.

 

- Sou uma pessoa de muitos talentos - repliquei. Qual é a sua justificação para estar aqui?

 

Ele encolheu os ombros. Só então é que reparei que tinha uma pequena caixa na mão. Qualquer coisa oriunda do consultório de um veterinário.

 

- Não há descanso para os exaustos - respondeu-me.

 

- Ou para os mal-intencionados.

 

Rompun. Um dos sedativos vulgarmente usados nos cavalos. De acordo com o que Paris me dissera durante a conversa sobre a substância encontrada na corrente sanguínea de Stellar, mantinham sempre aquilo à mão.

 

- Vai a alguma festa? - perguntei numa alusão à caixa de onde não despregava o olhar.

 

- Tenho um cavalo difícil de se ferrar - respondeu Berne. - Precisa de uma coisinha qualquer para ficar mais tranquilo.

 

- O Stellar também era difícil de ferrar?

 

- Não. Por que razão me pergunta?

 

- Nenhuma razão em especial. Ainda não viu a Paris hoje, pois não?

 

- Ela esteve aqui mais cedo. Mesmo a tempo de assistir à detenção do último moço de estrebaria que lhe restava. Foi levado pelos Serviços de Estrangeiros e Imigração.

 

- O quê?

 

- Esta manhã houve uma rusga - explicou ele. O sujeito da Guatemala que trabalhava para ela foi o primeiro a ser detido.

 

- Quem é que o denunciou? Foi você? - perguntei sem estar com rodeios.

 

- Não tive nada a ver com isso - replicou Berne. Um dos meus empregados também foi levado. Portanto, os Serviços de Estrangeiros e Imigração haviam decidido proceder a uma rusga surpresa, e o homem que trabalhava no estábulo número dezanove havia sido um dos primeiros a ser apanhado. A única pessoa do campo de Jade que talvez pudesse ser persuadida a dizer a verdade caso a soubesse - fora levada precisamente na altura em que o caso parecia estar prestes a deslindar-se.

 

Trey tinha-me visto a falar com Javier. Era possível que tivesse dado conta disso a Paris. Ou talvez Bert Shapiro quisesse ver o guatemalteco fora do país, não fosse ele saber algo de mais acerca de Jade.

 

- Ouvi dizer que foi levado para a cadeia - acrescentou Michael Berne.

 

- Está a referir-se ao Jade? Sim, foi. A menos que o juiz lhe tenha concedido liberdade sob fiança. Foi acusado de sequestro. Sabe alguma coisa a esse respeito?

 

- Porque haveria de saber? - ripostou ele.

 

- Talvez tenha estado aqui na noite em que esse crime foi cometido. Há uma semana, no domingo, já ao fim da tarde, junto dos portões das traseiras - adiantei.

 

Berne respondeu com um abanar de cabeça e começou a afastar-se.

 

- Não, não estive aqui. A essa hora encontrava-me em casa com a minha mulher.

 

- Michael, você é um marido muito extremoso e que sabe perdoar - retruquei com ironia.

 

- De facto, assim é - disse ele exibindo uma expressão presunçosa. - Não sou o criminoso que procuram, Miss Estes.

 

- Não - concordei.

 

- O criminoso é o Don Jade.

 

Não, respondi em pensamento enquanto ele saía dos estábulos, também não acredito nisso.

 

O meu telemóvel começou a tocar quando já ia a caminho do carro.

 

- Venha almoçar comigo - disse-me Landry.

 

- As suas maneiras ao telefone precisam atrozmente de ser apuradas - fiz-lhe ver.

 

Ele indicou um restaurante de comida rápida que ficava a uma distância de mais ou menos dez minutos e desligou de imediato.

 

- A Erin Seabright apanhou o Jade de surpresa junto do cavalo que morreu - explicou-me Landry. Estávamos sentados no automóvel dele. Entre nós dois tínhamos um saco de papel com várias embalagens de comida que enchia o interior com aromas a carne grelhada na chapa e batatas fritas. Nenhum de nós tinha tocado na comida. - Ela apanhou-o a fazer uma marosca no fio eléctrico da ventoinha.

 

- Foi a Erin que lhe disse isso?

 

- O que tenciono fazer a seguir é precisamente perguntar-lhe o que sabe acerca disso. Esta manhã não houve oportunidade para abordar todos os aspectos da saga do cavalo morto. Limitei-me a perguntar-lhe pormenores respeitantes ao rapto. Foi a Paris Montgomery que me pôs a par desse assunto. Durante as notícias da manhã, a fuga da Erin aos captores foi assunto de reportagem. Aparentemente, isso instilou em Miss Montgomery o temor a Deus.

 

- Parece-me mais um abutre que descreve voos circulares por cima do animal moribundo - disse eu. - Cheira-lhe a oportunidade.

 

- Segundo ela, a Erin apanhou o Jade, e este, ao fim do dia, decidiu raptá-la? Landry, há qualquer coisa aqui que não bate certo.

 

- Eu sei. O plano do sequestro já começara a ser posto em prática.

 

- Se é que, de facto, se tratou de um rapto - adiantei. - Os coca-bichinhos das novas tecnologias já conseguiram esmiuçar a primeira cassete?

 

- Sim, mas ainda não tive tempo para ver o resultado. Porquê?

 

- Tente encontrar nas imagens a pulseira que lhe entreguei esta manhã.

 

- O que é que isso tem de especial? - perguntou Landry.

 

- Parece-lhe que os sequestradores a ofereceram a Erin como prenda de despedida? - perguntei. - Já vi essa cassete umas cinquenta vezes. Não consegui ver a pulseira em nenhuma imagem, mas a verdade é que ela, ontem à noite, tinha-a no pulso.

 

- Está a tentar dizer-me que a rapariga está de conluio com eles? - perguntou Landry, mostrando-se incrédulo. Você não está boa da cabeça. Elena, devia ter visto o estado em que ela ficou. Levou um enxerto de criar bicho. Nem sequer era preciso ver a cassete em que o agressor a chicoteia impiedosamente. E esta manhã, o Weiss e o Dwyer encontraram outra cassete no escritório de casa do Seabright. É um filme em que se mostra a maneira brutal como ela foi violada.

 

Aquilo apanhou-me completamente de surpresa.

 

- Ele tinha-a em casa? No escritório?

 

- Escondida atrás não sei de quê, numa prateleira respondeu Landry.

 

Fiquei sem saber o que dizer perante aquilo. Era o que eu desejava que viesse a acontecer - uma prova que levasse Seabright a pagar pelas suas acções. Mas aquela revelação sobre a cassete que mostrava a violação era algo inteiramente diferente.

 

- E pareceu-lhe que é genuína? - perguntei.

 

- O suficiente para fazer com que eu ficasse com os cabelos da nuca em pé - replicou Landry. - Só me apeteceu agarrar o Seabright e apertar-lhe o gasganete até os olhos lhe saltarem das órbitas.

 

- Onde é que ele está agora?

 

- Está numa cela de detenção temporária. O procurador está a tentar decidir quais as acusações que devem constar da indiciação.

 

- O que aconteceu durante a audiência do processo-crime de Jade?

 

- O Trey Hughes pagou-lhe a fiança.

 

- Pergunto-me se a Paris Montgomery estará a par disso.

 

- Aposto que também é ele que está a pagar os honorários do Bert Shapiro - adiantou Landry.

 

- Já o interrogou? Estou a referir-me ao Trey.

 

- Já lhe pedimos que comparecesse na esquadra, mas o Shapiro não quer.

 

- Veja se o nome dele consta da base de dados - sugeri. - O Trey tem um passado pouco ortodoxo. Ontem mesmo, ele confessou-me que manteve contactos profissionais com o meu pai em várias ocasiões. As pessoas não costumam contratar os serviços do Edward Estes por causa de infracções ao Código da Estrada.

 

- Isto é como o raio de uma cesta cheia de serpentes, todo este bando - replicou Landry com um abanar de cabeça que denotava o desprezo que os visados lhe inspiravam.

 

- Sim - concordei -, e agora vamos ter ocasião de saber quantas é que são venenosas.

 

Não existe nada que dê origem a ressentimentos mais profundos do que uma dedicação que não é correspondida. Ao volante do meu automóvel, segui para Loxahatchee, pensando em Paris Montgomery a entrar nas instalações do Gabinete do Xerife para denunciar o patrão, informando das suas desconfianças com relação à morte suspeita do cavalo e consequente fraude de que a companhia de seguros seria vítima. Paris era o tipo de mulher habituada a brilhar, tendo, durante três anos, sido relegada para um segundo plano, sempre a trabalhar à sombra de Don Jade. Ela ajudara-o a cimentar o seu leque de clientes.

 

Defendera-o com uma mão, enquanto com a outra lhe tirava traiçoeiramente o tapete de debaixo dos pés.

 

Perguntei-me se teria sido Paris quem dera a dica aos Serviços de Estrangeiros e Imigração a respeito de Javier. Ela estivera com Trey Hughes na noite anterior. Era muito possível que ele lhe tivesse dito que acreditava que eu fosse detective particular, tendo dado comigo a falar em espanhol fluente com o único empregado que restava a Jade, o qual poderia ter conhecimento de qualquer informação de grande importância.

 

Também era plausível que tivesse sido o próprio Trey a entrar em contacto com eles. Por razões que apenas ele conheceria. Tentei imaginá-lo na pele de um dos sequestradores. Teriam os muitos anos de deboche feito com que ele ficasse tão depravado, ao ponto de poder considerar que o rapto de uma rapariga não passava de um simples jogo?

 

Metade da tarde já se esfumara quando virei na estrada que me levaria a casa de Paris Montgomery. No arvoredo cerrado da zona rural de Loxahatchee, grande parte da luz do dia já desaparecera devido às sombras alongadas que eram projectadas pelos pinheiros altos e esguios.

 

Passei pela vivenda onde Paris vivia, dirigindo-me para o caminho sem saída onde só por um triz é que não tinha alvejado Jimmy Manetti na noite anterior. As vivendas semiconstruídas já haviam sido abandonadas, àquela hora, pelos trabalhadores da construção civil. Estacionei o carro, tirei a Glock do lugar onde a mantinha oculta e comecei a percorrer o mesmo caminho no sentido inverso, tentando esconder-me a coberto das árvores, sempre que possível.

 

A vivenda era muito ao estilo da de Eva Rosen: uma casa dos anos setenta, estilo pseudo-espanhol, sem traça definida, em estuque branco com algum bolor e com um telhado de telhas de cedro cobertas de musgo. Entrei na garagem por uma porta lateral, deparando com vários utensílios de jardinagem e decorações natalícias. O Infiniti verde não se encontrava na garagem.

 

A porta que comunicava com o interior da casa estava fechada à chave, e as pequenas luzes no painel do sistema de segurança indicavam que este fora accionado. Contornei a vivenda pelo exterior, procurando uma porta que não estivesse trancada ou uma janela parcialmente aberta. Não tive essa sorte.

 

Através da janela da sala de estar, podia, ver uma alcatifa muito encardida que em tempos havia sido branca, assim como todo um sortido de mobiliário de estilo mediterrânico de muito mau gosto que, decerto, ninguém dos países mediterrânicos alguma vez quereria ter em sua casa. O televisor dava a impressão de ser tão alto quanto eu e estava ligado a todo o tipo de equipamento - vídeo, DVD e sistema de som Dolby de um conjunto de aparelhagem estereofónica; aquilo assemelhava-se a algo que tivesse vindo da NASA.

 

Contornei uma das paredes laterais até às traseiras, onde deparei com uma gigantesca banheira de hidromassagem em pau-brasil num anexo de rede que mais parecia uma jaula, como seria de esperar, juntamente com toda uma variedade de mobílias de jardim, também de extremo mau gosto, e umas plantas que definhavam por falta de sol. A porta de rede não estava fechada à chave, mas as portas corrediças de vidro que davam acesso à sala de jantar estavam trancadas. Espreitei, vendo alguma correspondência em cima da mesa de refeições: revistas e contas.

 

No extremo esquerdo do anexo havia uma segunda porta de vidro que dava para um quarto, cujo chão tinha uma alcatifa de peluche cor de laranja. Os cortinados estavam corridos para os lados, deixando ver uma cama de grandes dimensões com uma coberta de veludo vermelho. Pendurado por acima da cabeceira da cama, muito elaborada, de um material que imitava madeira, havia um quadro que representava uma mulher nua com três seios e duas cabeças. No extremo oposto do quarto vi um televisor em cima de um móvel com prateleiras. Reparei nos títulos das cassetes de vídeo empilhadas na prateleira do fundo; perguntei a mim própria se eu seria a única pessoa do Sul da Florida que não possuía uma colecção de filmes pornográficos.

 

Algures para lá do jardim das traseiras, comecei a ouvir o barulho roufenho do motor de uma máquina pesada. Sorte a minha, pensei, imaginando que um dos trabalhadores de alguma daquelas obras teria voltado, estando prestes a levar o meu carro à frente da sua escavadora.

 

As traseiras da casa de Paris estavam mergulhadas na sombra, mas o firmamento acima da copa das árvores continuava de um azul intenso. Apercebi-me de que a barulheira não vinha das vivendas que estavam a ser construídas ao fundo do caminho, mas sim de um local por trás daquelas árvores, para ocidente, para lá do jardim das traseiras de Paris Montgomery.

 

Continuei a ouvir o ruído constante de um motor, a par do barulho intermitente de algo que era amassado dentro de uma máquina de grande porte. Deduzi que talvez fosse uma trituradora de palha húmida e restolho, decidindo ignorar o assunto. Mas foi então que me ocorreu uma coisa que me fez parar.

 

Landry tinha afirmado que numa das cassetes que mostrava Erin a ser espancada pelos seus captores havia um barulho de fundo de maquinaria pesada. Um som que, aparentemente, Erin não fora capaz de recordar quando ele lhe perguntara se tinha alguma ideia quanto ao lugar onde a haviam mantido em cativeiro.

 

Encaminhei-me para as traseiras da propriedade. A área que delimitava o terreno era uma autêntica selva de árvores ainda em crescimento, bambu-silvestre e todo o tipo de plantas trepadeiras emaranhadas umas nas outras, vegetação que, se lhe fosse permitido, eventualmente acabaria por tragar o jardim, assim como a própria casa.

 

O barulho surdo da maquinaria de trituração era cada vez mais intenso. A este juntou-se o som do acelerar de rotações do motor de um veículo pesado que fazia marcha atrás, fazendo soar o sinal sonoro intermitente que alertava para a sua presença.

 

Tentando descortinar a propriedade no outro lado através daquele matagal cerrado, quase me passou despercebida. A coisa encontrava-se no meio do mato denso, qual ruína da Antiguidade. Era cinzenta e estava toda enferrujada, em tempos uma coisa estranha à paisagem, da qual, com o passar dos anos, quase se tornara parte orgânica integrante. Uma caravana. O que em tempos idos poderia ter servido de escritório a um encarregado de obras, com uma janela num dos extremos; o vidro estava sujíssimo do lado de dentro. Alguém rabiscara com a ponta de um dedo sobre a porcaria uma única palavra: ”SOCORRO”.

 

A vida pode mudar de um momento para o outro.

 

Foi por pouco que aquilo não me passou despercebido. Foi por uma fracção de segundos que não virei costas, saindo dali. Mas, depois, ali estava: a verdadeira razão por que Paris Montgomery tinha arrendado aquela casa tão deteriorada e de mau gosto, ainda por cima demasiado distante do hipódromo. Eu deduzira que ela fora viver para ali com o objectivo de se furtar aos olhares indiscretos, e tinha razão. Mas o caso amoroso que mantinha com Trey Hughes não era o único motivo que a levara a querer esconder-se ali.

 

A caravana encontrava-se semioculta no meio do matagal, como algo que fazia parte de um pesadelo horrível. Aquela visão evocava recordações que eu preferia não ter guardado.

 

A adrenalina fluiu pela minha corrente sanguínea como o combustível de um foguetão prestes a deixar o solo. O meu coração bate mais depressa. Estou pronta para o lançamento.

 

Saquei da arma e aproximei-me vagarosamente do lado da caravana. Só quando cheguei junto dela é que vi o trilho de alguém que havia contornado um dos extremos laterais para conseguir chegar às escadas de metal retorcido e enferrujado presas à traseira da caravana.

 

Não obstante o facto de o sol não ter banhado aquela parte do terreno durante mais ou menos a última hora, e de a temperatura ter descido bastante, eu estava a transpirar. Pareceu-me ouvir a minha própria respiração.

 

Disseram-me que me deixasse ficar quieta, que esperasse, mas sei que não é essa a decisão mais acertada... perder um tempo precioso... O caso é meu. Sei o que estou a fazer...

 

Naquele momento, senti o mesmo tipo de impulso. O caso era meu. A última vez que eu tomara essa decisão, provou-se que estava enganada. Muitíssimo enganada.

 

Encostei-me à superfície lateral da caravana, esforçando-me para que o meu ritmo cardíaco abrandasse, tentando reduzir a velocidade do meu processo de raciocínio e expulsar uma amálgama de emoções que tinham mais a ver com uma tensão pós-traumática do que com o momento presente.

 

Com certeza que havia vários meses que Paris arrendara aquela propriedade, raciocinei. Se o local tivesse sido escolhido devido à privacidade que proporcionava, por causa da caravana, isso significava que o período de premeditação era anterior ao início da temporada equestre. Gostaria de saber se Erin havia sido escolhida para aquele emprego devido ao seu potencial como ajudante de estrebaria ou pelo seu potencial como vítima.

 

Quando tirei o telefone da algibeira com a mão esquerda, toda eu tremia. Liguei o número do pager de Landry, deixando o meu número de telefone e o cento e doze. No seu serviço de atendimento, referi o endereço de Paris Montgomery, pedindo-lhe que fosse ter comigo a essa morada o mais depressa possível.

 

E agora, o que é que devia fazer?, pensei enquanto fechava a tampa do aparelho, voltando a guardá-lo na algibeira. Esperar? Esperar que Paris voltasse para casa, dando comigo nas traseiras do seu jardim? Permitir que a oportunidade e a luz do dia desaparecessem, aguardando que Landry me retribuísse o telefonema?

 

O caso é meu. Sei o que estou a fazer...

 

Sabia antecipadamente o que Landry diria. Dir-me-ia que esperasse por ele. Que me fosse sentar no automóvel como uma menina bonita.

 

O caso é meu. Sei o que estou a fazer...

 

A última vez em que pensara nos mesmos moldes, veio a provar-se que estava redondamente enganada.

 

Mas eu queria ter razão.

 

Lentamente, comecei a subir as escadas de metal que com o passar do tempo haviam cedido, descaindo para o solo arenoso e desprendendo-se da caravana. Posicionando-me ao lado da porta, bati duas vezes, gritando:

 

- Polícia!

 

Não aconteceu nada. Não ouvi o som de qualquer movimento que viesse do interior. Também não ouvi nenhum estampido de disparos feitos através da porta. Foi então que me ocorreu que Van Zandt talvez estivesse dentro da caravana, escondido até à hora da partida do voo para Bruxelas. Quem sabe se ele não teria agido de parceria com Paris Montgomery em todo aquele caso, ajudando-a a livrar-se de Jade, assegurando o seu próprio lugar na vida de Trey Hughes, ao mesmo tempo que se satisfazia com o seu passatempo predilecto, que era dominar jovens raparigas. Talvez o valor do resgate tivesse sido o pagamento que ele viria a receber por ter ajudado a arruinar a carreira profissional de Don Jade.

 

E qual seria o papel de Erin nesse jogo? Quanto a isso, eu não tinha a certeza, levando em consideração tudo o que Landry me dissera com respeito às cassetes onde o espancamento e violação a que ela fora sujeita haviam ficado gravados. A cassete que mostrava o rapto, que eu já vira uma dúzia de vezes, fazia com que duvidasse de que ela fosse, de facto, uma vítima naquele imbróglio. Talvez Paris a tivesse atraído a participar numa tramóia daquelas com a promessa da oportunidade que teria de castigar os pais, mas depois de o plano ter começado a ser posto em prática, deixara-a à mercê de Van Zandt. Aquela hipótese causava-me náuseas.

 

Mantendo-me ao lado da porta, sustive a respiração enquanto abria a porta, apenas um pouco, com a mão esquerda.

 

Billy Colam abre a porta aos sacões, de olhos arregalados. De certeza que está pedrada com a sua mistura caseira favorita: cristais de metadona. A respiração é ofegante. Tem um revólver na mão.

 

Senti uma gota de suor que me escorreu por entre as sobrancelhas, deslizando pela cana do nariz.

 

De Glock em riste, posicionada diante do tronco, esgueirei-me para dentro da caravana. Descrevi um movimento horizontal da esquerda para a direita com o cano da arma. No primeiro compartimento não avistei ninguém. Com um olhar de fugida abrangi tudo o que ali se encontrava: uma secretária de metal já muito velha, um candeeiro de pé e uma cadeira. Estava tudo coberto de pó e cheio de teias de aranha. Vi pilhas e pilhas de jornais já muito antigos. Também avistei várias latas de tinta vazias prontas para irem para o lixo. A mistura de cheiros enjoativos e cediços a bafio, cigarros e bolor evolava-se do linóleo muito estragado, assaltando-me as narinas. Os barulhos da maquinaria pesada, que continuavam a ouvir-se no lado de fora, pareciam ressoar e amplificar-se dentro da caravana de alumínio.

 

Cautelosamente, encaminhei-me para o segundo compartimento, continuando a empunhar a arma diante de mim.

 

Eu ainda não tinha visto o vídeo em que Erin era chicoteada, mas sabia, com base na descrição que Landry me fizera, que fora ali que a gravação tivera lugar. Havia uma cama de ferro com a cabeceira encostada ao fundo. O colchão estava imundo e cheio de nódoas, sem lençóis. Também vi manchas de sangue.

 

Imaginei Erin ali como Landry me tinha descrito: toda nua, cheia de nódoas negras e acorrentada por um braço à cabeceira da cama, a gritar ao seu agressor que a açoitava com um chicote. Tentei vê-la no papel de vítima.

 

A escassos metros dos pés da cama, deparei com um tripé em cima do qual se encontrava uma câmara de vídeo. Atrás do tripé havia uma mesa com muito lixo, latas vazias de vários refrigerantes, garrafas de água meio cheias, sacos de batatas fritas abertos e um cinzeiro cheio de pontas de cigarro. Também vi um par de cadeiras de jardim; em cima de uma delas, um número da revista In Style, enquanto ao braço e nas costas da outra havia várias peças de vestuário que para ali haviam sido descuidadamente arremessadas; algumas tinham caído no chão.

 

O cenário de um filme. O que servira de cenário a um drama de contornos muito perversos, cujo acto final ainda não fora representado.

 

Entretanto, o rugir da maquinaria pesada tinha cessado. Senti o silêncio como se fosse uma presença que tivesse acabado de entrar pela porta dentro. Os pêlos dos meus braços e da nuca ficaram arrepiados perante aquela percepção.

 

Encaminhei-me para a parede junto à porta do primeiro compartimento, posicionando-me aí e erguendo a Glock, pronta a disparar.

 

Conseguia ouvir, mas não via o que se passava no lado de fora da porta aberta. Fiquei à espera.

 

Apercebi-me de movimentos no compartimento da frente, o som de solas de sapatos que pisavam o chão de linóleo. O barulho do entrechocar de latas de tinta vazias. O cheiro de diluente para tintas.

 

Imaginei com quem é que teria de me confrontar se transpusesse aquela passagem: Paris? Van Zandt? Trey Hughes?

 

Aproximei-me da ombreira da porta e apontei a arma a Chad Seabright.

 

- Por causa disto, vai perder o seu lugar na associação de estudantes.

 

O rapaz ficou a olhar para mim enquanto o diluente começava a formar uma poça no chão à volta dos seus sapatos.

 

- Estava capaz de lhe perguntar o que é que veio fazer aqui, Chad, mas parece-me que é mais do que óbvio.

 

- Não - negou ele com um abanar de cabeça e olhos arregalados. - Você não está a perceber. Não é o que está a pensar.

 

- A sério? Não estarei eu a ver que se preparava para destruir as provas de um crime?

 

- Eu não tive nada a ver com isto! - protestou ele com veemência. - A Erin telefonou-me do hospital. Implorou-me que a ajudasse.

 

- E você... um inocente sem nada que se lhe aponte, deixou tudo o que estava a fazer, apressando-se para cometer um acto criminoso a pedido dela, não é verdade?

 

- Eu amo-a - replicou ele num tom de sinceridade. Ela fez uma grande asneira. Não quero que vá parar à prisão.

 

- E por que motivo é que ela iria parar à prisão, Chad? - perguntei ao rapaz. - Em princípio, ela é uma vítima no meio desta trapalhada.

 

- E é - confirmou ele numa voz insistente.

 

- Mas, apesar disso, ela pediu-lhe que viesse aqui para deitar fogo a esta caravana, não é? No entanto, disse aos detectives que não sabia onde é que os raptores a tinham mantido sequestrada. Face a isto, como é que soube que era aqui que devia vir?

 

Eu quase conseguia observar as rodas da engrenagem a rodarem na sua mente, enquanto se esforçava por encontrar uma explicação que justificasse aquela incongruência.

 

- Por que razão é que a Erin estaria metida em problemas, Chad? - voltei a perguntar. - O detective Landry até tem as cassetes que mostram que ela foi espancada e violada.

 

- Isso foi ideia dela.

 

- Ser espancada? Ser violada? Foi ideia da Erin?

 

- Não, da Paris. Em princípio, devia ser tudo a fingir. Pelo menos, foi o que a Paris lhe disse. Para arruinar a reputação do Jade, para ela poder apoderar-se do negócio dele. Mas a verdade é que não houve nada que não tivesse começado a dar para o torto. A Paris virou-se contra ela. Foi por pouco que eles não mataram a Erin.

 

- Quem são ”eles”? - perguntei, intrigada.

 

Chad desviou o olhar, soltando um suspiro e mostrando-se agitado. O suor perlava-lhe a testa.

 

- Não sei. Ela só falava da Paris. E agora está com medo que a Paris tente arrastá-la com ela quando se souber tudo.

 

- Portanto, você decidiu incendiar o local do crime e toda a gente ficava contente. É assim?

 

- Eu sei qual é o aspecto que isto pode ter - respondeu ele com a maçã-de-adão a subir e a descer sempre que engolia em seco.

 

- Cá para mim, isto dá a impressão de que você está atolado até às orelhas, meu jovem amigo - repliquei. Encostado à parede, braços ao alto e pernas afastadas.

 

- Por favor, não me faça isso - suplicou ele, pestanejando numa tentativa para conter as lágrimas. - Eu não quero problemas nenhuns com os chuis. O meu pai está a contar que eu vá para a Universidade de Brown no próximo ano lectivo.

 

- Devia ter pensado nisso antes de ter concordado em cometer um crime de fogo posto.

 

- Eu só queria ajudar a Erin - argumentou ele. - Ela não é má pessoa. De verdade que não é. Ela só... Acontece que... Coitada, sai sempre a perder em tudo. Além do mais, queria vingar-se do meu pai.

 

- E você não?

 

- Já me falta pouco para acabar o curso secundário. A partir dessa altura, o que ele pensa deixa de me interessar. Nessa altura, a Erin e eu podemos ficar juntos.

 

- De pé contra a parede - disse eu outra vez.

 

- Não é capaz de se condoer um pouco? - perguntou ele, agora chorando abertamente, dando um passo em direcção à parede.

 

- Não sou o género de pessoa que tem pena dos outros. Avancei alguns passos para o interior do compartimento

 

enquanto Chad se aproximava da parede que dividia os dois espaços. Uma dança lenta entre parceiros que a contragosto trocavam de lugar. Mantive a arma apontada. Olhei rapidamente para o lado quando transpus a porta aberta.

 

Paris Montgomery subia os degraus da entrada.

 

Quando virei a cabeça, Chad voltou-se e investiu contra mim; a sua fisionomia estava contorcida numa expressão de raiva.

 

Da minha arma saiu um disparo quando ele me bateu nos antebraços, fazendo com que errasse a pontaria. Cambaleei para trás, desequilibrando-me devido ao peso do corpo dele, e tropecei nas latas de tinta e nos jornais amontoados. Fiquei sem fôlego quando ambos caímos no chão; a parte de trás da minha cabeça bateu com tal violência que fiquei entontecida.

 

Continuava a empunhar a Glock na mão direita, com o dedo bem firme no dispositivo de segurança do gatilho. A arma não estava em posição de disparar, além de ter dobrado o dedo do gatilho num ângulo pouco natural. Podia ter disparado, mas preferi erguer a arma, dando com a parte mais contundente, e com quanta força tinha, na cabeça de Chad Seabright. Ele gemeu quando o sangue começou a jorrar de um corte na face, o que não o impediu de tentar esganar-me colocando uma mão à volta da minha garganta.

 

Uma vez mais, desferi um golpe com a pistola, voltando a bater-lhe com ela; desta feita, foi o cano que lhe rasgou o olho direito. A órbita como que explodiu e dos tecidos dilacerados começou a escorrer um fluido esbranquiçado misturado com sangue. Chad berrava, atirando-se para longe de mim, com as mãos a tapar a cara.

 

Rebolei para me afastar dele, tentando colocar as pernas de modo a poder pôr-me de pé, mas escorregando no diluente enquanto tentava agarrar-me a qualquer coisa firme.

 

- Grande cabra! Sua puta, cabra de merda! - vociferava Chad atrás de mim.

 

Agarrando-me a uma das pernas da secretária metálica, lá consegui pôr-me de pé. Virei-me para trás, olhando para Chad, que fazia pressão com uma mão sobre a vista dilacerada, enquanto com a outra me atirava com uma lata de tinta. A lata acertou-me no maxilar esquerdo, impelindo-me a cabeça para o lado.

 

Caí ao comprido sobre o tampo da secretária, agarrando-me com uma mão a uma das extremidades e arrastando-me por cima do tampo quando Chad voltou a agredir-me com a lata vazia várias vezes.

 

Quando caí no chão do outro lado da mesa, tentei desembaraçar o dedo que pensei ter partido do gatilho da pistola. A adrenalina bloqueava as dores. Mais tarde - se tivesse sorte - teria tempo para as sentir.

 

Estava à espera que Chad se atirasse por cima da mesa metálica, mas, quando soergui a cabeça, em vez disso, vi clarões translúcidos cor de laranja e azuis que iluminavam todo o compartimento depois de o diluente ter entrado em combustão, dando origem a uma explosão dos gases com labaredas altas.

 

Empunhando a Glock, com o dedo indicador esquerdo no gatilho, obriguei-me a levantar-me do chão, disparando quando Chad saía porta fora, fechando-a com um estrondo enorme.

 

O extremo mais afastado do compartimento era pasto das chamas, as quais lambiam raivosamente os painéis de material de má qualidade que revestiam o interior da caravana, estendendo-se às pilhas de jornais no chão. As labaredas propagavam-se na minha direcção. O fogo começava a invadir o segundo compartimento. Numa questão de escassos minutos, tudo aquilo ficaria envolto em chamas. E, tanto quanto me era possível ver, eu não tinha maneira de poder escapar dali para fora.

 

A cerca de quilómetro e meio de distância, Landry começou a avistar o clarão do incêndio, apesar de acalentar a esperança vã - seguindo a grande velocidade e já tendo accionado a sirene e as luzes intermitentes no tejadilho do carro-patrulha - de que a origem daquele fogo fosse outra, que tivesse deflagrado num outro local que não aquele para o qual se dirigia. Porém, quando já se encontrava próximo do endereço que Elena lhe deixara, sabia que não era assim. O operador de serviço na central já emitira via rádio o alerta relativo ao fogo.

 

Landry estacionou defronte da vivenda, saltou do carro e correu para as traseiras da propriedade.

 

As paredes e as janelas de uma pequena caravana recortavam-se contra um fundo em tons de laranja.

 

- Elena! - gritou, para que o nome dela pudesse ser ouvido acima do rugido das labaredas. - Elena!

 

Jesus Cristo, se ela estivesse no interior da...

 

Correu para a caravana, mas a intensidade do calor empurrava-o para trás.

 

Se ela estivesse lá dentro, o mais certo seria estar já morta.

 

A tossir, corri para o segundo compartimento, perseguida pelas chamas que já se haviam propagado à parede dos dois lados da ombreira. Cheirava o diluente de tinta que me encharcava a blusa. Uma pequena labareda e eu seria tragada pelas chamas.

 

Havia outra porta de saída ao fundo do segundo compartimento. O fumo era tão espesso que eu mal conseguia ver à minha frente. Tropeçando nas cadeiras, comecei a correr para essa porta, batendo em tudo o que me aparecia pelo caminho, mas sem parar de correr; girei a maçaneta e empurrei. A fechadura estava fechada à chave. Destravei o dispositivo de segurança da maçaneta e tentei abrir a porta uma vez mais. Concluí que fora fechada à chave pelo lado de fora. A porta recusava-se a ceder.

 

Entretanto, as chamas já haviam chegado àquele compartimento, qual maré que se abatesse sobre um tecto de material pouco sólido.

 

Prendi a arma na parte de trás do cós das calças, tirei a câmara de vídeo do tripé, lancei-a para cima da cama e arremessei o tripé, como se fosse um bastão de basebol, contra o vidro da janela onde Erin Seabright escrevera a palavra ”SOCORRO” por cima da sujidade. Uma vez. Duas vezes. O vidro ficou rachado, mas continuou fixo ao caixilho.

 

Voltei a bater com a parte superior do tripé no vidro, tentando quebrá-lo, ao mesmo tempo que receava que, quando conseguisse os meus intentos, as chamas se propagassem ainda com maior celeridade, ateadas pelo renovado fornecimento de oxigénio. O fogo carbonizaria a minha pele, liquefazendo-me os pulmões. Se não morresse de imediato, decerto desejaria que isso tivesse acontecido.

 

Vi as labaredas a aproximarem-se, imaginando o inferno.

 

E agora que eu pensava que talvez conseguisse redimir-me...

 

Pela última vez, investi contra o vidro da janela armada com o tripé.

 

- Elena! - gritava Landry.

 

Uma vez mais, o detective tentou aproximar-se da caravana, para logo ser empurrado para o chão devido ao impacte de uma explosão no interior da caravana. As chamas saíam pelos vidros partidos das janelas formando vagas em tons de laranja. À distância, Landry começou a ouvir o soar de sirenes. Mas era tarde de mais.

 

Abalado e sentindo-se mal, a muito custo, Landry conseguiu pôr-se de pé, deixando-se ficar imóvel, incapaz de raciocinar e de fazer o que quer que fosse.

 

O meu primeiro pensamento disse-me que era Chad quem se encontrava no jardim das traseiras, a observar a sua obra, excitado com a noção de que me matara. Depois, porém, a figura começou a dirigir-se a mim, chamando-me pelo meu nome, e foi então que eu soube que estava a olhar para Landry.

 

Agarrando com força a câmara de vídeo junto ao peito, tentei correr para ele, sentindo as pernas como se fossem de borracha, enfraquecida por causa do esforço e da sensação de alívio.

 

- Elena! - gritou ele, agarrando-me pelos ombros e puxando-me para junto de si, arrastando-me para longe da caravana em chamas e levando-me para o terraço da casa de Paris Montgomery.

 

- Deus nos valha - desabafou num murmúrio enquanto me ajudava a sentar numa cadeira, examinando-me com os olhos e as mãos. Landry tinha as mãos a tremer. Pensei que você estava ali dentro.

 

- E estive - repliquei por entre a tosse. - O fogo foi posto pelo Chad Seabright. Ele está metido nisto de conluio com a Paris e a Erin. Conseguiu detê-lo? Conseguiu apanhá-los?

 

- Não encontrei ninguém dentro de casa além do cão dela - respondeu Landry, abanando a cabeça. Qjack-russel instalara-se às portas do terraço, balouçando-se para cima e para baixo como uma bola, e sem parar de ladrar.

 

As sirenes emitiam o seu soar estridente diante da vivenda. Landry foi ao encontro de um agente de uniforme que entretanto apareceu pelo lado da garagem, estendendo-lhe o crachá para se identificar. Continuei sentada a tossir para expulsar o fumo que me enchia os pulmões, enquanto o observava a aproximar-se da casa. O agente fez um aceno de assentimento, empunhando o revólver.

 

- Está ferida? - perguntou-me Landry quando voltou para junto de mim, agachando-se de novo à minha frente. Tocou-me na face onde eu fora atingida pela lata de tinta. Eu não tinha qualquer sensação nessa região do rosto, pelo que não podia avaliar a gravidade da lesão. Imaginei que o dano não seria muito grave, uma vez que Landry continuou a examinar outras partes do meu corpo.

 

- Parti um dedo - disse eu, estendendo a mão direita. Com suavidade, ele pegou-me na mão, observando o dedo em questão. - Já me aconteceu pior - acrescentei.

 

- Você é teimosa que nem uma mula - resmungou Landry. - Porque não esperou por mim?

 

- Se eu tivesse esperado por si, o Chad teria tido tempo para incendiar a caravana, deixando apenas cinzas e...

 

- E você não teria estado lá dentro! - ripostou ele, pondo-se de pé. Descreveu um pequeno círculo defronte de mim. - Você nunca devia ter entrado naquela caravana, Elena! Correu o risco de comprometer quaisquer provas...

 

- Nós teríamos acabado sem nada! - contrapus, gritando-lhe e levantando-me da cadeira.

 

- Nós?! - replicou Landry, entrando no meu espaço numa tentativa para me intimidar.

 

- O caso é meu - afirmei, fazendo-lhe frente. - Fui eu que o envolvi no assunto. O que faz com que seja ”nós”. Que nem sequer lhe passe pela cabeça voltar a pôr-me de lado, Landry! Estou metida neste caso devido à Molly, e, se vier a provar-se que a irmã participou nesta coisa de sua livre e espontânea vontade, tenciono estrangular a Erin Seabright com as minhas próprias mãos. E depois, pode levar-me para a cadeia se lhe apetecer, ficando com a certeza de que não me meterei no seu caminho durante os próximos vinte e cinco anos.

 

- Foi por um triz que você não ficou fora do meu caminho a título permanente! - vociferou ele, fazendo um gesto arqueado com o braço em direcção ao incêndio. - Pensa que é isso que eu quero?

 

- É o que toda a gente na Polícia quer!

 

- Não! - gritou Landry a plenos pulmões. - Não! Eu não quero. Olhe para mim. Não quero que isso aconteça.

 

Estávamos quase colados um ao outro. Fitei-o com uma expressão furibunda. Ele olhou-me fixamente; a pouco e pouco, os seus traços fisionómicos começaram a suavizar-se.

 

- Não - repetiu numa voz sussurrada. - Não, Elena. Eu não pretendo que você saia da minha vida.

 

Num momento muito raro para mim, fiquei sem saber o que dizer.

 

- Pregou-me um susto de morte - acrescentou ele numa voz que mal se ouvia.

 

Eu sentia o mesmo, mas naquele momento. Decidi mudar de assunto, retomando o outro tópico.

 

- Você disse que partilharia tudo comigo. Fui eu que iniciei o caso.

 

- Sim... - retrucou Landry acenando com a cabeça Sim, disse que sim.

 

Os carros dos bombeiros de Loxahatchee começaram a chegar; o que vinha à frente entrou no jardim das traseiras. Olhei para os bombeiros, que se puseram imediatamente em acção, tão impassivelmente como num ecrã de cinema, após o que olhei para as minhas mãos. Ainda não largara a câmara de vídeo. Entreguei-a a Landry.

 

- No meio de toda a atrapalhação, consegui salvar isto do fogo. Poderá recolher algumas impressões digitais.

 

- Foi ali que eles a mantiveram? - perguntou-me, olhando para trás, em direcção à caravana.

 

- O Chad disse que de início a Erin estava metida no assunto. Mas que, depois, a Paris se virou contra ela. Mas se isso for realmente verdade, por que razão ela não foi assassinada?

 

- Imagino que teremos de fazer essa pergunta à Paris retorquiu Landry. - Também temos de fazer a mesma pergunta à Erin. Sabe que automóvel é que a Paris tem?

 

- É um Infmiti verde-escuro. O Chad tem uma carrinha preta de caixa aberta, uma Toyota. Eu atingi-o num olho. Acho que ficou sem ele. É muito possível que dê entrada num hospital.

 

- Um olho?! - perguntou Landry arqueando um sobrolho. - Você arrancou-lhe um olho?

 

Encolhi os ombros, desviando o olhar; aquela imagem horrenda continuava gravada com tanta nitidez no meu pensamento que me dava voltas ao estômago.

 

- Uma pessoa tem de fazer aquilo que é obrigada a fazer quando se vê em apuros.

 

- Você é uma mulher muito decidida, Elena - declarou ele, passando uma mão pela boca ao mesmo tempo que abanava a cabeça.

 

Tinha a certeza de que naquele momento não devia parecer nada decidida. O peso da verdade prestes a revelar-se naquele caso era como um fardo que eu tivesse de carregar. O fluxo de adrenalina motivado pela experiência quase mortal já se havia esfumado.

 

- Venha cá - chamou Landry.

 

Ergui o olhar, fítando-o quando me tocou na face com a mão - no lado direito, o único onde tinha sensações tácteis. Senti aquele afago no mais fundo do meu coração.

 

- Sinto-me satisfeito por você não ter morrido - murmurou ele. Fiquei com a sensação de que não se estava apenas a referir ao perigo por que eu passara na caravana.

 

- Também eu - redargui, encostando a cabeça ao ombro de Landry. - Também eu.

 

Landry emitiu uma ordem via rádio para a detenção de Paris Montgomery e Chad Seabright. Todas as forças policiais do distrito e do estado procurariam o Infiniti verde-escuro, assim como o Toyota de Chad. A Guarda Costeira também tinha recebido alertas semelhantes, o mesmo acontecendo em relação às forças policiais de serviço nos aeroportos de West Palm Beach e Fort Lauderdale, assim como os aeródromos mais pequenos das redondezas.

 

Uma das razões por que o Sul da Florida sempre havia sido um ponto de passagem para o tráfico de estupefacientes era o facto de existirem tantos meios para se entrar e sair da região, além de ser um bom sítio para abandonar o país com rapidez. Paris Montgomery convivia com muita gente relacionada com o negócio dos cavalos, pessoas endinheiradas que possuíam os seus próprios aviões e barcos.

 

Havia ainda a acrescentar que conhecia alguém que se preparava para embarcar cavalos rumo à Europa nessa mesma noite: Tomas Van Zandt.

 

- Já conseguiram localizá-lo? - perguntei a Landry. Estávamos sentados no automóvel dele, no jardim da frente da vivenda onde Paris Montgomery residia.

 

- Ainda não. Os homens do Armedgian fizeram mais merda do que conseguiriam se fizessem de propósito.

 

Informei-o acerca dos cavalos prestes a seguirem de avião para Bruxelas.

 

- Aposto que os dois vão tentar sair do país ainda esta noite.

 

- Já alertámos todas as companhias aéreas - informou Landry.

 

- Acho que não está a compreender. Os voos que se destinam exclusivamente ao transporte de carga são muito diferentes dos voos de passageiros. Se alguma vez lhe apetecer assustar-se com as possibilidades de se levar a cabo uma acção terrorista experimente um voo transatlântico com um bando de cavalos.

 

- Magnífico. O Weiss e os agentes federais podem instalar-se no terminal de carga.

 

O comandante dos bombeiros de Loxahatchee aproximou-se do carro enquanto Landry tirava o telemóvel do bolso. Era um homem alto, com um bigode muito farfalhudo. Por baixo do equipamento de bombeiro que vestia, imaginei que seria um pau de virar tripas.

 

- Deve tratar o caso como se fosse o local de um crime, comandante - instruiu Landry falando pela janela do carro.

 

- Certo. Fogo posto - anuiu o bombeiro.

 

- Isso também. Já conseguiu localizar o proprietário da casa?

 

- Não, senhor. O proprietário encontra-se fora do país. Já contactei a empresa que trata da manutenção da propriedade. Ficaram de entrar em contacto com a pessoa.

 

- Que empresa é? - perguntei.

 

- A Gryphon, uma empresa de gestão - respondeu o comandante, baixando-se para poder olhar para mim. - Está sedeada em Wellington.

 

Olhei para Landry quando o telemóvel dele começou a tocar.

 

- Está na altura de termos uma pequena conversa com o Bruce Seabright. Ele continua sob detenção?

 

- Não. Deixaram-no sair em liberdade. Fala Landry disse para o telemóvel. Vi que os músculos da face se contraíam ao mesmo tempo que franzia o sobrolho. - O que raio é que queres dizer com isso de ter desaparecido? Onde é que o cabrão do guarda estava?

 

Erin, deduzi.

 

- Quando? - perguntou Landry num tom autoritário. Pois bem, isso é fantástico vindo desse cabrão! Diz a esse agente que quando ele tiver tirado a cabeça do olho do cu, eu próprio tenciono tratar de lha arrancar dos ombros para poder gritar pelo buraco!

 

Com brusquidão, fechou a tampa do telemóvel e olhou para mim.

 

- A Erin desapareceu. Houve alguém que pegou fogo a um caixote do lixo no outro lado, no balcão das enfermeiras, o que levou o guarda de serviço à porta do quarto dela a abandonar o seu posto. Quando voltou para lá, verificou que ela tinha desaparecido.

 

- Ela foi ter com o Chad - adiantei,

 

- E a esta hora já se puseram os dois em fuga - retorquiu Landry, ligando o motor do carro. - Vou deixá-la nas Urgências. Tenho de me pôr a andar.

 

- Deixe-me no meu automóvel - pedi-lhe. - Posso ir sozinho ao hospital.

 

- Elena...

 

- É só um dedo partido, Landry. Não vou morrer por causa disso.

 

Ele soltou um suspiro, fechando a boca.

 

O movimento nas Urgências era muito reduzido, uma noite bastante calma. Radiografaram-me o dedo, tendo-se chegado à conclusão de que o tinha deslocado e não quebrado. O médico deu-me uma injecção de lidocaína que me anestesiou a mão, voltando a encaixar o dedo de forma a ficar direito. Recusei as talas incomodativas que ele me queria colocar. Deu-me uma receita para poder comprar um analgésico. Devolvi-lha.

 

A caminho da saída do hospital, parei na recepção e perguntei se tinham recebido algum doente com um olho gravemente ferido. A recepcionista respondeu-me que não.

 

Consultei o meu relógio quando saí do hospital. Faltavam cinco horas para a partida do avião em que Van Zandt seguiria com destino a Bruxelas, depois de o voo ter feito escala no Aeroporto Kennedy.

 

Todos os agentes de uniforme do distrito de Palm Beach andavam à procura dele, assim como de Paris, Erin e Chad. Entretanto, Don Jade saíra em liberdade sob fiança, graças ao cheque que Trey Hughes passara.

 

Todos aqueles aspectos gravitavam à volta de Trey Hughes - o negócio dos terrenos, Stellar, Erin - e, tanto quanto me era dado saber, ninguém andava à procura dele.

 

Chamei a mim essa tarefa. Uma vez que ele se encontrava no centro de tudo aquilo, talvez fosse o detentor da chave que tudo revelaria.

 

De acordo com as últimas informações de que tinha conhecimento, ele possuía uma casa na propriedade denominada Clube de Pólo, uma urbanização em condomínio fechado próxima do hipódromo, destinada a gente rica do mundo equestre. Segui nessa direcção, optando por ruas secundárias que me evitariam passar por Fairfields.

 

O portão da Quinta Lucky Dog estava aberto. Com alguma dificuldade, descortinei um automóvel perto da caravana que servia de escritório ao encarregado das obras. Entrei e as luzes dos meus faróis permitiram-me ver a traseira do Porsche, um modelo clássico, de Trey. Desliguei o motor e saí do carro; empunhava a Glock com a mão esquerda.

 

A única luz que consegui ver era a de um candeeiro de rua, mas, algures por perto, alguém ouvia Jimmy Buffett a entoar uma canção que versava as alegrias da irresponsabilidade.

 

Segui esse som, passando ao lado de uma cavalariça de grandes dimensões mergulhada na escuridão, contornando-a quando cheguei ao fundo. No primeiro andar desta construção, existia uma varanda a todo o comprimento, sobranceira ao picadeiro onde as provas de obstáculos tinham lugar. A cena era iluminada pela luz de velas e de lanternas. Vi Trey a dançar, com o seu omnipresente cigarro, cuja ponta incandescente, num tom de laranja, era como um foco luminoso no negrume da noite.

 

- Aproxime-se, minha querida - chamou ele. - Pensei que nunca mais chegava! Dei início à festa sem si.

 

Subi as escadas até ao primeiro andar, mantendo os olhos nele. Estava pedrado. Com o quê, era coisa de que eu não fazia a mínima ideia. Na década de oitenta, a sua droga de eleição havia sido a cocaína. Da última vez que tive informações a este respeito junto da Divisão de Narcóticos, era uma substância que voltara a ser muito consumida. A nostalgia entre os tragicamente viciados.

 

- O que é que está a celebrar, Trey? - perguntei quando cheguei à varanda.

 

- Brindo à minha vida ilustre e estelar - respondeu-me sem parar de dançar. Segurava uma garrafa de tequila. A camisa havaiana, desabotoada, caía para fora de um par de calças de caqui. Estava descalço. - Estelar] - acrescentou, começando a rir-se. - Que piada de gosto tão duvidoso! Chocante!

 

A canção chegou ao fim e ele encostou-se ao gradeamento da varanda, bebendo um gole generoso directamente da garrafa.

 

- Estava à minha espera? - perguntei-lhe.

 

- Não, a verdade é que esperava outra pessoa. Mas... sabe uma coisa? Realmente, isso não interessa, pois não?

 

- Não sei, Trey. Acho que pode interessar... tudo depende das suas razões. Estava à espera da Paris?

 

Trey esfregou o rosto com um movimento da mão que fez com que pequeníssimas fagulhas da ponta incandescente do cigarro ficassem a flutuar à volta da cabeça, semelhantes a pirilampos.

 

- É isso mesmo. Agora, é a detective particular. A ”Olho Vivo”. A ”picha particular”... mas será esta expressão politicamente incorrecta? Em boa verdade, devia dizer a ”rata particular”, não lhe parece?

 

- Não estou em crer que a Paris venha ter consigo esta noite, Trey. Houve algo que a deteve impreterivelmente.

 

- Ah, sim? O que é que ela anda a fazer?

 

- A fugir da lei - respondi. - Ela e o Chad Seabright tentaram matar-me hoje mesmo.

 

Ele olhou-me por entre as pálpebras semicerradas, à espera da deixa final.

 

- Minha doçura, o que é que tem andado a fumar?

 

- Deixe-se disso, Trey. O senhor esteve em casa dela, pelo menos, uma centena de vezes. Tenho conhecimento da relação amorosa que vocês dois mantêm. Não tente dizer-me que não sabe nada sobre a caravana, ou acerca da Erin.

 

- A Erin? Foi raptada por alguém. Este mundo está completamente fodido e vai de carrinho a caminho do inferno!

 

1 Trocadilho com o nome do cavalo Stellar. (N. da T.)

 

- Tudo isto não passou de uma tragicomédia. Não sabia? Para si é uma tragicomédia - retorqui com um abanar de cabeça.

 

Via a fisionomia dele à luz das velas. Trey esforçava-se por encontrar o seu caminho através das brumas que lhe toldavam o cérebro. Das duas, uma: ou não tinha conhecimento do que eu estava a falar, ou então estaria a convencer-se a si próprio de que de facto não sabia de nada.

 

- Uma tragicomédia em três actos - disse eu. - Engano, traição, sexo e assassínio. O Shakespeare ter-se-ia sentido orgulhoso se fosse o autor. Ainda não conheço o enredo na sua totalidade - acrescentei. - Todavia, sei que começa em demanda da ”terra santa”... a Quinta Lucky Dog... e do seu rei... você.

 

O que ainda restava do seu sorriso intrigado desvaneceu-se.

 

- Aqui está o que sei até agora: o enredo começa com uma jovem de nome Paris que quer muito vir a ser a rainha. Deseja-o com tanto ardor, que decide conspirar com a finalidade de arruinar a única pessoa que se interpõe entre ela e a realização dos seus sonhos: Don Jade.

 

”O que não devia ser assim tão difícil de concretizar, pensa ela, uma vez que ele já goza de uma reputação muito duvidosa. As pessoas estão dispostas a imaginar o pior em relação a ele. Não lhes seria difícil acreditar que ele matasse um cavalo com fama de ser bom saltador de obstáculos, mas que não conseguia ganhar prémios. Uma fraude para enganar a companhia de seguros? Não é nada que ele já não tivesse feito, saindo impune do assunto.

 

”A sua moça de estrebaria desaparece. Ele é a última pessoa a vê-la com vida. Veio a descobrir-se que foi sequestrada. E quando ela consegue fugir, quem é que acusa de ser um dos seus raptores? Don Jade.

 

”Com certeza que a Paris fica convencida de que é agora que o Trey Hughes deixará de ter negócios com ele. Seja como for, dentro em pouco, Jade estará na prisão. Portanto, ela terá a sua grande oportunidade: tornar-se rainha da Quinta Lucky Dog.

 

- Essa história não é muito engraçada - comentou Trey. Extinguiu a ponta de cigarro no ferro forjado do gradeamento, atirando a beata para a escuridão da noite.

 

- Não. De facto, não é. E também não vai ter um fim muito feliz - repliquei. - Pensou que teria um fim feliz?

 

- Você conhece-me bem, Ellie. Por norma, tento não pensar. Eu sou apenas um palhaço de dixieland neste palco da vida - respondeu ele, voltando a passar a mão pela face e fungando. Reparei numa mesa redonda de jardim, que mais parecia um cogumelo, defronte de um conjunto de duas portas corrediças de vidro que davam acesso a uma sala às escuras. Sobre o tampo da mesa ardia uma dúzia de velas, iluminando uma pequena placa de vidro com uma porção de cocaína que fora repartida em várias linhas. Perto desta, vi uma pistola Beretta de trinta e dois milímetros.

 

- Para que é esta arma, Trey? - perguntei, sentindo-me mais em segurança devido ao peso da minha própria arma... ainda que estivesse na mão menos adequada.

 

- Para as ratazanas - respondeu ele, tirando outro cigarro da algibeira. Chegou-lhe a chama de um isqueiro, tragando o fumo que depois expirou em direcção ao céu nocturno. - Talvez mais tarde eu me entretenha com um pouco de roleta russa.

 

- Com certeza que esse jogo terá uma duração muito curta - repliquei. - Isso é uma automática.

 

- É a história da minha vida - retorquiu ele com um encolher de ombros. - Estou metido num jogo que foi viciado à partida.

 

- Sim, sim... Na verdade tem uma vida muito difícil. Quanto é que herdou quando a Sallie morreu? Oitenta milhões? Cem?

 

- Com um cordelinho atado a toda a gente - respondeu Trey.

 

- Tanto quanto sei, ninguém tenta impedi-lo de gastar esse dinheiro como bem lhe apetece.

 

- Não - concordou. Virou-se, pondo-se a olhar para lá dos limites da propriedade, apesar de não conseguir ver nada além de uma manta de retalhos de variadas matizes de preto.

 

- O que o motivou a pagar a fiança do Jade, Trey? Por que razão é que contratou os serviços do Shapiro para o defender em tribunal? - perguntei, caminhando ao longo do gradeamento para me afastar dele.

 

- Porque o seu pai estava muito ocupado para poder defendê-lo - respondeu-me ele com um sorriso rasgado.

 

- Em toda a sua vida, o senhor nunca se mostrou mais leal do que um gato vadio. Porque se manteve ao lado do Don Jade?

 

- Porque foi ele que fez de mim o que sou hoje - retorquiu com um sorriso um pouco de esguelha.

 

- Foi ele quem matou a Sallie, não é verdade? adiantei. - À hora da morte, o senhor estava a foder a mulher do Berne, para arranjar um álibi, enquanto o Jade se encontrava na casa da sua mãe, oculto nas sombras... E agora você não consegue afastar-se...

 

- E por que motivo haveria eu de querer afastar-me de tudo isto? - perguntou-me ele, abrindo os braços para o lado num gesto abrangente. O cigarro balouçou-lhe entre os lábios. - Sou o rei do mundo!

 

- Não, Trey - contrapus. - Teve razão na primeira vez. É um palhaço triste. Tinha tudo. Mas vai acabar sem nada.

 

- Você sabe alguma coisa a esse respeito, não sabe, Ellie? - retorquiu.

 

- Sei tudo o que há a saber a esse respeito. Mas eu vou conseguir sair desse buraco, Trey, enquanto o senhor vai acabar soterrado nele.

 

Tirei o telemóvel da algibeira das calças de ganga, tentando ligar o número de Landry. Senti dificuldade devido à semi-imobilidade da mão direita, que continuava parcialmente entorpecida, e apercebi-me da dor latejante que aguardava a sua vez para despertar por completo. Landry precisava de saber que Trey tinha estado à espera de Paris. Muito plausivelmente, ela teria pensado em pedir-lhe emprestado um automóvel que não fosse procurado pela Polícia. Talvez também tivesse pensado nele como o seu meio de subsistência enquanto permanecesse na Europa. Ou, quem sabe, tencionasse convencer Trey a acompanhá-la. Ricaços em fuga. Vivendo no esplendor das capitais europeias.

 

Dei dois passos, afastando-me mais de Trey, e troquei de mãos para pegar na arma e no telemóvel, sem nunca desviar o olhar dele, o estróina patético. Um Peter Pan corrompido até à medula pelo tempo e pelos prazeres que se permitia.

 

Estabeleci ligação com o telefone de Landry quando Paris Montgomery surgiu da escuridão em que o interior da casa estava mergulhado para lá das portas corrediças de vidro. Sem a mínima hesitação, pegou na Beretta que continuava em cima da mesa de jardim e apontou-a directamente ao meu rosto.

 

- Nós temos a nosso cargo a gestão de um grande número de propriedades, detective - afirmou Bruce Seabright. Mas não tenho nada a ver, directamente, com a maior parte delas.

 

- Só estou interessado na sua relação com esta - retrucou Landry.

 

Os dois homens estavam no escritório da casa de Seabright. Este virou-se, descrevendo um círculo e soltando um profundo suspiro enquanto olhava para o tecto.

 

- Não tenho nada a ver com isso!

 

- Ambos sabemos que isso não é verdade.

 

- Não sei de onde é que essa cassete surgiu - declarou ele. - Houve alguém que a pôs em minha casa com o intuito de me incriminar.

 

- Sim, foi isso mesmo. Se assim quiser, fique-se por essa história da carochinha. Mas o que eu quero saber tem a ver com a propriedade em Loxahatchee.

 

- Eu tenho um advogado - informou Seabright. Vai ter de falar com ele.

 

- As minhas perguntas não têm nada a ver com o seu advogado.

 

- E eu já lhe disse que não tenho nada a ver com o arrendamento dessa propriedade.

 

- Está à espera que eu acredite que uma pessoa que se encontra envolvida no rapto da Erin alugou, por mero acaso, essa propriedade através da sua empresa? Da mesma maneira que essa gente, junto de quem você arranjou emprego à Erin, veio a revelar-se por um mero acaso como um bando de assassinos e violadores e só Deus sabe que mais? ripostou Landry.

 

- Aquilo em que você acredita não me interessa absolutamente nada - replicou Seabright estendendo a mão para o telefone. - Não tenho nada a ver com este assunto, tal como o meu filho também não tem. E, agora, saia do meu escritório antes que eu participe de si por intromissão na minha vida privada.

 

- Pode fazê-lo até as participações já não lhe caberem no cu, Seabright - ripostou Landry. - Você e o asqueroso do seu filho vão parar à cadeia. Eu próprio garantirei que isso aconteça.

 

Landry saiu do escritório do homem, pensando que tinha uma tremenda vontade de enviar toda aquela gente para a jaula dos leões de qualquer jardim zoológico, colocando-os juntamente com os vorazes felinos.

 

Krystal Seabright estava no corredor, a pouca distância da porta do escritório. Para variar, não tinha o aspecto de quem tomara um sedativo, embora se mostrasse muito abalada. Ergueu uma mão, como que para o deter, antes que Landry passasse por ela; a sua boca formava palavras que se recusavam a sair-lhe da garganta.

 

- Deseja dizer-me alguma coisa, Mistress Seabright?

 

- Fui eu - proferiu ela por fim.

 

- Desculpe, mas não estou a entender.

 

- Essa mulher veio falar comigo, ao meu escritório. Fui eu que lhe arrendei essa propriedade. Não me esqueci do nome dela: Paris. Bem vê, eu sempre quis ir a Paris.

 

Era óbvio que ela não sabia muito bem como reagir perante as notícias mais recentes, pensou Landry. Com um sentimento de culpa? Chocada? Indignada?

 

- Como é que ela foi ter consigo? - perguntou Landry.

 

- Disse-me que uma amiga me recomendara - respondeu com lágrimas nos olhos. Abanou a cabeça, olhando para a porta do escritório do marido. - Foi ele? Pensa que foi ele?

 

- Não sei, Mistress Seabright - admitiu Landry. Imagino que terá de ser a senhora a fazer-lhe essa pergunta.

 

- Suponho que sim - murmurou ela, olhando fixamente para a porta do escritório. - Tenho de fazer alguma coisa.

 

Landry deixou-a no corredor, sentindo-se satisfeito por ser um mero polícia. Podia afastar-se de toda aquela embrulhada quando estivesse resolvida. Mas Krystal Seabright não teria tanta sorte.

 

Fiquei a olhar como que hipnotizada para o cano da pistola que Paris Montgomery empunhava com as duas mãos. Jimmy Buffett continuava a cantar como música de fundo.

 

- Ponha o telemóvel e a arma em cima da mesa - ordenou-me ela.

 

Naquele momento, eu tinha a minha Glock na mão direita, bastante lesionada. Podia ter tentado erguê-la, desafiando-a, mas não me encontrava em condições de o fazer de maneira convincente. Ainda que a minha vida dependesse disso, nunca teria conseguido accionar o gatilho. Sopesei as minhas opções enquanto entrava em linha com o serviço de atendimento do telefone de Landry.

 

Paris aproximou-se de mim. Estava encolerizada e receosa. A sua pequena maquinação estava a romper-se pelas costuras, qual pano de má qualidade.

 

- Parecia que era um plano simples, não é verdade, Paris? - perguntei. - Você conseguiu fazer com que a Erin a ajudasse a armar uma cilada ao Jade. E durante o processo, ela e o Chad aproveitariam para arruinar o Bruce Seabright. Teria resultado às mil maravilhas se a Molly não tivesse decidido vir ter comigo para a ajudar.

 

- Largue o telemóvel e a arma - ordenou-me ela uma vez mais.

 

Prendi o telemóvel no cós das calças de ganga, olhando de fugida para Trey, o qual permanecia imobilizado e com uma expressão vazia.

 

- Por que razão deixou que o Van Zandt tivesse conhecimento das suas maquinações? - perguntei. - Ou será que ele a obrigou a isso?

 

- Não sei nada do que está para aí a falar.

 

- Sendo assim, por que razão é que me aponta uma arma à cara, Paris?

 

- Isto é tudo por culpa do Jade - respondeu-me ela olhando de relance para Trey. - Ele matou o Stellar. Foi ele quem raptou a Erin. Matou a Jill. É tudo por culpa do Don, Trey. Tens de acreditar em mim.

 

- Porquê? - perguntou ele. - Porque faz parte do teu plano?

 

- Porque te amo! - replicou Paris enfaticamente, apesar de manter os olhos fixos em mim, continuando a apontar-me a arma. - A Erin viu o Jade quando ele matou o Stellar. Ele fez-lhe coisas horríveis para a castigar. E também matou a Jill.

 

- Não, não matou, minha doçura - replicou Trey, mostrando-se entediado. - Sei que não foi ele quem a matou.

 

- O que estás para aí a dizer?

 

- Na noite em que a Jill foi morta, era a ti que cabia passar pela cavalariça para ver se estava tudo bem. Saíste da minha cama para fazeres isso. Tal como tinhas feito na noite anterior, quando alguém soltou os cavalos do Berne.

 

- Estás confundido, Trey - proferiu Paris com uma certa irritação no tom de voz.

 

- De uma maneira geral, sim. A vida é mais fácil se estivermos confusos. Mas não a respeito disto.

 

Ela deu outro passo em direcção a mim, sendo manifesto que a sua paciência estava a esgotar-se.

 

- Já lhe disse que pousasse a merda da arma! Suspirei e em movimentos vagarosos agachei-me, como se tencionasse pousar a arma no chão, mas, então, esquivei-me e rebolei de lado.

 

Paris disparou dois tiros, e uma das balas atingiu o chão perto de mim, arrancando lascas de mármore.

 

Passei a minha arma para a mão esquerda e, tentando mantê-la firme com a direita, levantei-me do chão e enfrentei-a antes que pudesse colocar-se numa posição favorável para poder disparar contra mim uma terceira vez.

 

- Largue a arma, Paris! Largue-a! Largue-a!

 

Ela deu meia volta e correu para as escadas ao fundo da varanda. Corri atrás dela, parando abruptamente quando Paris dobrou a esquina, voltando-se para trás e disparando.

 

Com prudência, aproximei-me da esquina e espreitei, olhando para as escadas vazias e mal iluminadas por uma luz de presença. Ela podia ter ficado ao fundo do patamar, encostada à parede, à espera que eu fosse em sua perseguição. Imaginei-me a dobrar o canto do patamar para ser alvejada em cheio no peito, sendo o meu sangue a única nota de cor num cenário a preto e branco.

 

Em vez de seguir por aí, fui até ao lado oposto da varanda, olhando para baixo. Paris tinha desaparecido. Corri pelas escadas abaixo. Comecei a ouvir o barulho do motor do Porsche de Trey quando cheguei ao piso térreo. A luz intensa dos faróis cegou-me momentaneamente quando o carro avançou direito a mim.

 

Ergui a arma e disparei um tiro que acertou no pára-brisas, e só então é que me atirei para o lado.

 

Paris tentou inverter a direcção do Porsche, fazendo com que os pneus perdessem aderência, projectando terra e saibro na sua esteira. O automóvel derrapou de lado, embatendo violentamente na parede lateral de cimento armado; o impacto fez com que o sistema de alarme disparasse, simultaneamente com a buzina.

 

De repelão, Paris abriu a porta do seu lado, tombou no chão, levantou-se quase de imediato e começou a correr pelo caminho particular, premindo o ombro esquerdo com uma mão. Tropeçou e caiu desamparada, pôs-se de pé e deu mais uns passos a correr, mas acabou por se desequilibrar, voltando a cair redonda no chão. Ficou a chorar convulsivamente próximo da placa que anunciava com ar orgulhoso a construção da Quinta Lucky Dog.

 

- Não, não, não, não, não... - repetia numa voz lamuriada enquanto eu me abeirava dela. O sangue escorria-lhe por entre os dedos da mão, saindo do ferimento de bala no ombro.

 

- O jogo acabou, Paris - disse-lhe eu, baixando o olhar até ela. - A tua sorte acabou, grande cabra!

 

Molly estava sentada como se fosse um pequeno nó, dobrada sobre si mesma, as pernas flectidas, com os joelhos por baixo do queixo. Toda ela tremia, fazendo um grande esforço para não chorar.

 

Escutava as vozes alteradas de quem discutia no andar de baixo, vozes que se filtravam pelo soalho. Bruce a gritar. Objectos que se partiam enquanto ele dava largas ao ódio e à cólera que o assolavam, e a mãe guinchava como algo saído de um pesadelo, como nada que Molly tivesse ouvido durante toda a sua vida. Gritava num tom de voz penetrante, qual assombração, que se elevava e baixava como uma sirene. Ela parecia ter enlouquecido. Bruce chamou-lhe louca mais de uma vez.

 

Molly receava que ele talvez tivesse razão. Talvez o elástico apertado que até então impedira Krystal de se desconjuntar tivesse acabado por se romper, e tudo o que ela havia reprimido dentro de si acabara por extravasar.

 

Quando os gritos voltaram a subir de tom, Molly saltou da cama, fechou à chave a porta do quarto e depois, com grande dificuldade, começou a arrastar a mesa-de-cabeceira para a encostar à porta. Pegou no telemóvel que Elena lhe dera, apressando-se a voltar ao lugar onde se refugiara, toda encostada à cabeceira da cama, e só então é que ligou o número de Elena.

 

Ficou a ouvir o toque de chamada no outro lado da linha sem que ninguém atendesse. As lágrimas corriam-lhe livremente pelas faces.

 

No andar de baixo, o barulho cessou abruptamente, dando lugar a um silêncio estranho e temível. Molly tentou escutar qualquer som, mas o silêncio como que se fechou em seu redor até ela perguntar a si própria se teria ensurdecido.

 

Pouco depois começou a ouvir uma voz que falava a medo, num tom muito baixo, chegando-lhe através da grelha de uma conduta de ar, como se viesse de uma outra dimensão.

 

- Eu só queria ter uma vida confortável e bonita... Eu só queria ter uma vida confortável e bonita...

 

Landry chegou logo depois da ambulância que chamara para Paris. O tiro que eu disparara através do pára-brisas roçara-lhe o ombro. Tinha perdido algum sangue, mas sobreviveria para ver outro dia, e mais outro - todos do interior de uma cela da cadeia, esperava eu.

 

Landry saiu do automóvel, encaminhando-se directamente para onde eu me encontrava, apontando para o agente de polícia que já interditara o local, afastando-o de mim, pelo menos de momento. O agente Saunders, o mesmo que me acompanhara na noite em que alguém soltara os cavalos de Michael Berne no centro equestre, não me perdia de vista, não se mostrando muito inclinado a aceitar a minha palavra em como estava inocente.

 

Com toda a sua atenção em mim, Landry dispensou o homem.

 

- Está bem? - perguntou-me.

 

- Já deve estar farto de me perguntar sempre a mesma coisa - respondi-lhe, esboçando um sorriso. - Estou óptima.

 

- Você tem mais vidas do que um gato - resmungou ele.

 

Pu-lo ao corrente dos últimos acontecimentos, informando-o de tudo o que havia sido dito e dando-lhe a saber qual era a minha opinião.

 

- Para começar, o que a fez vir aqui? - perguntou-me Landry.

 

- Não sei. Pensei que talvez a Paris tentasse vir ter com o Trey. Todo este assunto gravitava à volta dele... à volta do Trey, à volta do dinheiro, à volta desta propriedade.

 

Virei-me para trás, olhando para as cavalariças, para as paredes maciças banhadas... pelas cores das luzes intermitentes da ambulância e dos carros-patrulha das autoridades do distrito. Naquele momento, Trey era levado algemado para um desses carros.

 

- Estou em crer que o Trey e o Jade maquinaram um esquema qualquer para matar a Sallie Hughes, de modo a permitir que o Trey herdasse a fortuna da mãe, o que lhe permitiria construir esta propriedade. Confrontei o Trey em relação a este assunto. Ele nem sequer se deu ao incómodo de negar. Foi por essa razão que ele se mostrou tão leal para com o Jade. Não lhe restava qualquer alternativa. A Paris queria que o Jade fosse afastado, de forma a poder apoderar-se de tudo. E no fim, nenhum deles acabará por ficar com o que quer que seja - disse eu. - Tanta falsidade, tantas maquinações, tanto sofrimento que causaram aos outros... e tudo para nada. Todos saem a perder.

 

- É verdade - concordou Landry no momento em que a ambulância se punha em movimento, sendo seguida por um carro-patrulha. - São casos como este que me fazem pensar que seria melhor ter dado ouvidos ao meu velho. Ele queria que eu fosse engenheiro civil.

 

- Em que trabalhava o seu pai? - perguntei.

 

- Era polícia - respondeu-me com um trejeito sarcástico nos lábios. - Que mais é que poderia ter sido? Durante trinta anos fez parte das forças policiais de Baton Rouge.

 

- Ainda não sabe nada do Van Zandt? - perguntei quando já nos encaminhávamos para os nossos automóveis.

 

- Ainda não. O agente que destacámos para o terminal de carga disse-nos que os cavalos dele chegaram há pouco num transporte comercial; no entanto, durante todo o dia, ninguém teve notícias do Van Zandt. Acha que ele estava metido nisto com a Paris?

 

- Continuo a achar que ele é que matou a Jill. Mas o Trey disse que a Paris saiu da sua cama, nessa noite, para ir ver se os cavalos estavam bem. Alguém deixou o cadáver da Jill para que fosse encontrado, e quem quer que o tenha deixado ali sabia de antemão que toda a gente relacionaria essa morte com o Jade. O que se encaixa nos planos da Paris.

 

- Sabemos que o Van Zandt esteve no Players nessa mesma noite - adiantou Landry. - Acho que só lhe faltou saltar para cima da rapariga. Digamos que ele a seguiu quando ela saiu do restaurante, com o intuito de se aproveitar do facto de o Jade a ter deixado com o coração destroçado. Talvez ela não tenha estado pelos ajustes, o que ele se recusou a aceitar. E ela acabou por ser assassinada.

 

- Entretanto, a Paris entra em cena, convencendo o Van Zandt a largar o corpo no fosso do esterco - especulei. - Mas estaria ele envolvido no resto do plano? Não sei. O Chad tentou dizer-me que alguém tinha, de facto, violado a Erin, acrescentando que fora a Paris quem tinha permitido que as coisas descambassem. Talvez o Van Zandt decidisse intervir, passando a gerir a situação.

 

- Se efectivamente foi isso que aconteceu, tenho a certeza de que ela acabará por dar à língua - interveio Landry. - Ela está sob prisão, mas ele não. Não há nada que ponha cobro a uma parceria mais depressa do que a ameaça de uma pena de prisão. Bom trabalho, Elena Estes.

 

- Limitei-me a cumprir o meu dever cívico.

 

- Devia ter continuado na Polícia.

 

- Ora bem, não há dúvida de que você sabe dizer coisas doces - repliquei, desviando o olhar. - Mas, no seu lugar, eu não expressaria essas opiniões no Gabinete do Xerife.

 

- Quero que eles se vão lixar! É a verdade. Senti-me embaraçada por aquele elogio ter tanto significado para mim.

 

- Há alguma novidade quanto ao Chad e à Erin? perguntei quando o meu telemóvel começou a tocar.

 

Landry acenou negativamente com a cabeça.

 

- Fala Elena Estes - disse eu quando atendi.

 

- Elena?

 

O tom trémulo da voz dela fez com que o meu corpo fosse percorrido por um calafrio de medo, como lascas de vidro.

 

- Molly? Molly, o que é que se passa? - Apressei-me em direcção ao automóvel de Landry. Vi a preocupação no semblante dele enquanto acompanhava a minha passada.

 

- Elena, tem de vir para cá. Por favor, venha depressa!

 

- Já estou a caminho! O que sucedeu?

 

Através do telefone, ouvi o que me pareceu ser alguém a bater com força a uma porta.

 

- Molly?

 

Nesse momento, escutei um lamento penetrante, horrível, que terminou com o nome da garota.

 

- Despache-se! - gritou Molly ao telefone.

 

A última coisa que ouvi antes de a comunicação ter sido cortada foi uma voz, absolutamente arrepiante, de uma mulher.

 

- Eu só queria ter uma vida confortável e bonita... Eu só queria ter uma vida confortável e bonita...

 

- Muito bem - disse Landry. - Vamos fazer as coisas desta maneira: vou à frente com os agentes fardados.

 

Deixei-o falar, sem me importar com o que ele dizia, sem me interessar pelo seu plano. Só conseguia pensar em Molly.

 

Se alguém fizesse mal àquela criança...

 

Pensei em Chad e Erin criados sem rei nem roque. Se eles tivessem voltado para casa...

 

- Elena, ouviu o que tenho estado a dizer? Não lhe dei resposta.

 

Landry virou no caminho particular, entrando pelo relvado adentro. Um dos carros-patrulha vinha atrás de nós. Saí do automóvel antes de este ter parado por completo.

 

- Que diabo, Elena!

 

A porta da frente estava aberta. Entrei sem me preocupar com possíveis perigos que pudessem aguardar-me no interior da casa.

 

- Molly! - gritei.

 

- Seabright...? - chamou Landry, que vinha logo atrás de mim. - É o Landry.

 

- Molly!

 

Subi as escadas, dois degraus de cada vez. Se alguém tivesse feito mal àquela criança...

 

Landry encaminhou-se imediatamente para o escritório de Seabright. Abatera-se sobre a casa um silêncio que não augurava nada de bom; a excepção era um pequeno som, quase imperceptível, que vinha de detrás das portas do escritório.

 

- Seabright?

 

Landry caminhava junto à parede do corredor, com a arma em punho. Pelo canto do olho, viu que Elena subia as escadas com toda a rapidez que lhe era possível.

 

- Seabright? - chamou o detective uma vez mais. O som parecia ecoar de uma distância cada vez maior.

 

Landry pensou que seria alguém a cantar. Andando de lado, Landry encostou-se à parede, estendendo o braço tanto quanto podia para conseguir chegar à maçaneta.

 

Alguém a cantar. Não, era mais uma espécie de cântico. A voz de uma mulher.

 

- Eu só queria ter uma vida confortável e bonita.

 

- Molly!

 

Eu não fazia a mais pequena ideia de qual das portas fechadas é que seria a do quarto dela. Encostei-me à ombreira e abri a primeira que encontrei. Era o quarto de Chad.

 

Se alguém fez mal àquela criança...

 

Empurrei outra porta, abrindo-a toda para trás. Outro quarto onde não deparei com ninguém.

 

- Molly!

 

Se alguém fez mal àquela criança...

 

A terceira porta só abriu uns centímetros porque estava bloqueada com qualquer coisa pelo lado de dentro. Comecei a empurrá-la.

 

- Molly!

 

Se alguém fez mal àquela criança...

 

As portas do escritório abriram-se, revelando uma cena absolutamente macabra. Krystal Seabright encontrava-se por trás da secretária do marido, toda coberta de sangue. Tinha sangue nos cabelos platinados e no rosto, no bonito vestido cor-de-rosa, o mesmo que usava quando Landry falara com ela havia apenas algumas horas. Bruce Seabright estava caído em cima do tampo da mesa que, não fosse a sua presença, teria estado impecavelmente arrumada. Landry viu a faca de talhante que saía de uma das cerca de cinquenta facadas nas costas, pescoço e cabeça.

 

- Deus nos valha! - murmurou o detective, abismado. Krystal olhou para ele com uns olhos muito abertos onde se reflectia uma expressão vidrada.

 

- Eu só queria ter uma vida boa. Mas ele destruiu esse sonho. Ele destruiu tudo.

 

Se alguém fez mal àquela criança... Recuei alguns passos, respirei fundo, e com o ombro investi contra a porta com quantas forças consegui reunir.

 

- Molly!

 

O que quer que estivesse a obstruir a porta pelo lado de dentro cedeu um pouco, o suficiente para eu me meter pela pequena abertura, firmando-me e empurrando-a mais alguns centímetros.

 

Alguém havia empilhado metade do mobiliário do quarto, improvisando uma barreira.

 

- Elena!

 

Molly correu, embatendo em mim com todo o impacto do peso do seu corpo. Cambaleei, caindo de joelhos, mas consegui ampará-la nos braços, abraçando-a tão apertadamente como nunca abraçara ninguém em toda a minha vida. Continuei a abraçar Molly Seabright enquanto ela dava vazão às lágrimas, durante muito, muito tempo.

 

Por ela... e por mim própria.

 

Tudo o que eu podia dizer a Molly enquanto a abraçava fortemente era que a tragédia tinha chegado ao fim. Acabou. Acabou. Acabou. Mas isso era uma falsidade de tais proporções, que todas as mentiras ditas antes dessa, por comparação, eram insignificantes. Nada estava acabado para Molly, excepto o facto de ter deixado de ter família.

 

Krystal, uma mulher frágil até nos seus melhores momentos, tinha-se desmoronado quando sujeita a tanta pressão. Culpava o marido por aquilo que acreditava ter acontecido a Erin. O rapto e a violação de que a filha fora vítima. Landry contou-me que ela desconfiava que fora Bruce quem lhe enviara Paris Montgomery para que lhe alugasse a vivenda em Loxahatchee, a casa que servira de cenário a todo aquele drama.

 

Krystal atingira o seu limite. No fim, poder-se-ia ter tentado imprimir um aspecto mais nobre ao assunto, alegando que Krystal agira em defesa da filha, tendo-se vingado pelo que lhe haviam feito. Mas, infelizmente, eu não acreditava, de maneira nenhuma, nessa versão. Estava convencida de que o facto de ela ter morto Bruce fora um castigo não por ele ter arruinado a vida da filha, mas por ter destruído o seu conto de fadas.

 

Eu só queria ter uma vida confortável e bonita...

 

Perguntei a mim mesma se Krystal reagiria da mesma maneira se tivesse descoberto que tudo aquilo por que haviam passado fora orquestrado, pelo menos em parte, pela própria filha. Desconfiava que teria assacado a culpa inteiramente a Erin e a mais ninguém. Decerto que teria encontrado maneira de desculpar os pecados de Bruce, mantendo a sua vida, que tão bonita era, intacta.

 

A mente humana tem uma capacidade espantosa de racionalização.

 

Landry enviou Krystal para o Gabinete do Xerife num carro-patrulha, após o que ele próprio se encarregou de nos levar, a mim e a Molly, até à quinta de Sean. Não se falou de contactar os Serviços de Protecção à Criança, o que era o procedimento num caso com aquelas características.

 

Durante grande parte do trajecto, todos nos mantivemos em silêncio, de emoções e energias esgotadas, sentindo o peso da enormidade de tudo o que se tinha passado. Os únicos ruídos que se ouviam no interior do veículo eram os da electricidade estática que vinha do radiotransmissor. Para mim, um barulho muito familiar de tempos passados. Durante alguns momentos, senti tanta nostalgia ao escutá-lo como teria sentido ao ouvir uma canção especial que me trouxesse à recordação determinados momentos da minha adolescência. Quando já estávamos próximo dos portões da Quinta Avadonis, Landry telefonou a Weiss, que se mantinha no aeroporto, usando o telemóvel. Este continuava sem notícias de Van Zandt e o avião para Bruxelas estava pronto a fazer-se à pista de descolagem.

 

Exausta, Molly acabara por adormecer encostada a mim no assento traseiro. Quando chegámos, Landry pegou-lhe ao colo, levando-a para a casa de visitas. Indiquei-lhe o caminho até um segundo quarto mais pequeno, pensando no estranho núcleo familiar que constituíamos.

 

- Pobre criança - comentou ele quando saímos para o pequeno terraço. - Está destinada a crescer mais depressa do que a sua idade exigiria.

 

- O que ela já foi forçada a fazer... - retorqui, sentando-me de lado num banco de ferro forjado, um trabalho muito delicado e com almofadões confortáveis. - A Molly foi criança talvez durante um minuto e meio. Você tem filhos?

 

- Eu? Não - respondeu Landry sentando-se ao meu lado. - E você?

 

- Sempre me pareceu muito má ideia. Já tive oportunidade de ver muita gente que lixou a vida dos filhos. Sei bem até que ponto é que isso pode doer.

 

Apercebi-me de que ele me observava atentamente, tentando ler o que ia dentro de mim, tentando discernir o verdadeiro significado das minhas palavras. Ergui o olhar para as estrelas, abismada pelo facto de lhe ter revelado aquela vulnerabilidade.

 

- No entanto, a Molly é uma garota magnífica - afirmei eu. - O que não é de admirar. Criou-se a si mesma a ver o Canal Discovery e programas de acção e entretenimento.

 

- Em tempos, fui casado - confessou ele. - E durante algum tempo vivi com outra mulher. Mas as coisas não resultaram. Sabe como é: o trabalho, as horas tardias e eu sou um homem difícil. Blá-blá-blá.

 

- Nunca experimentei. Portanto, é melhor irmos direitos ao ”Sou difícil. Blá-blá-blá.”

 

Apesar do cansaço, Landry esboçou um sorriso, tirando um cigarro e o isqueiro de uma algibeira.

 

- É do maço que guarda no automóvel? - perguntei.

 

- Preciso de expulsar o sabor de cadáver que me ficou na boca.

 

- Eu costumava beber - confessei. - Para limpar o palato.

 

- Mas deixou de beber?

 

- Desisti de tudo o que pudesse entorpecer a dor.

 

- Porquê?

 

- Porque acreditava que merecia o sofrimento por que estava a passar. Castigo. Expiação. Purgatório. Chame-lhe o que bem lhe aprouver.

 

- Isso é uma estupidez - declarou Landry. - Você não é Deus, Elena.

 

- Um alívio das penas bem-vindo para todos os crentes verdadeiros, sem dúvida. Talvez eu tenha pensado que devia batê-Lo, antecipando-me.

 

- Você cometeu um erro - retorquiu Landry. - Eu também não acredito na infalibilidade do papa.

 

- Herético.

 

- Só estou a dizer que você tem demasiadas coisas boas em si para permitir que um erro grave anule tudo o mais.

 

- Sei que sim - redargui, uma vez mais com um meio sorriso que era um trejeito num canto da boca. - Agora dou-me conta disso. Graças à Molly.

 

- O que é que tenciona dizer-lhe a respeito da Erin? perguntou-me Landry olhando por cima do ombro para a casa.

 

- A verdade - respondi numa voz entrecortada. Ela jamais aceitará menos do que isso.

 

Aquela perspectiva obrigou-me a pôr-me de pé. Apesar de muito exausta, a verdade é que me sentia inquieta, frustrada perante as injustiças da vida de Molly Seabright, ao que se associava a minha inépcia para lidar harmoniosamente com os meus semelhantes. Cruzando os braços, como que para me proteger da humidade da noite, caminhei até ao fundo do terraço.

 

- No primeiro dia em que todo este assunto começou, recordo-me de ter pensado que a Molly estava prestes a receber a sua primeira lição sobre a matéria que é a vida. Que ela teria de aprender da mesma maneira que toda a gente aprende, concluindo que não poderia contar com ninguém neste mundo além de si própria: sendo defraudada por alguém que amasse e em quem confiasse. Quem me dera agora poder alterar isso, para bem dela.

 

- E pode - retorquiu Landry, pondo-se ao meu lado. E já fez isso mesmo. A Molly confia em si, Elena. Você não a defraudou. Jamais o fará.

 

Desejei estar tão segura de mim mesma como ele parecia estar.

 

Naquele momento, o pager de Landry começou a dar sinais de vida. Viu o número e tirou o telemóvel do cinto das calças, retribuindo o telefonema.

 

- Fala Landry.

 

Observei o semblante dele, apercebendo-me da tensão. Quando acabou de falar ao telefone, virou-se para mim, dizendo:

 

- A Erin e o Chad foram apanhados no Beco do Crocodilo, a meio caminho de Venice. Ela afirma que foi sequestrada pelo Chad.

 

- Você tem dezoito anos - afirmou Landry. - Aos olhos da lei, é um adulto. Fez escolhas erradas que tiveram consequências muito graves e agora terá de pagar por esses erros. A questão é esta: estará você disposto a ir até ao fundo, ou tentará facilitar-nos a vida a todos?

 

Chad Seabright pôs-se a olhar para a parede. Tinha uma espessa compressa de gaze no sítio onde tivera o olho esquerdo.

 

- Não sou capaz de acreditar que tudo isto esteja a acontecer - disse ele entre dentes.

 

Um dos agentes federais reparara na camioneta de caixa aberta de Chad, porque ele tinha excedido o limite de velocidade na auto-estrada conhecida pelo nome de ”Beco do Crocodilo”, a via que ligava a costa leste da Florida à costa do golfo do México. Essa infracção dera origem a uma perseguição policial. Uma barreira na estrada acabara por impedi-los de prosseguir. O casal havia sido devolvido às acomodações gratuitas do sistema judicial do distrito de Palm Beach, onde tanto um como o outro foram examinados e tratados na enfermaria.

 

Agora, cada um deles encontrava-se em salas de interrogatório contíguas, e cada um perguntava a si próprio que história é que o outro estaria a contar.

 

Se Bruce Seabright tivesse sobrevivido àquela saga, Landry não duvidava que Chad teria um advogado do mesmo calibre de Bert Shapiro sentado ao seu lado. Mas a verdade é que Bruce Seabright estava morto e a Chad coubera apenas o advogado de defesa oficioso, cortesia do estado, que se encontrava de escala na altura.

 

- É melhor para si começar a falar, Chad - aconselhou Roca, a assistente do procurador, batendo impacientemente com a ponta da caneta na mesa. - A sua namorada tem estado a contar-nos uma história muito interessante na outra sala. Disse-nos que você a raptou com o objectivo de extorquir dinheiro ao seu próprio pai. Além do mais, temos a cassete que nos mostra você a espancá-la.

 

- Está a parecer-me que eu devia ver essa cassete interveio o advogado oficioso.

 

- É bastante convincente - ripostou Roca olhando para ele. - Ela será uma testemunha que inspirará muita simpatia.

 

- Isso é mentira! - interveio Chad, amuado, petulante e assustado. - A Erin nunca me faria uma coisa dessas!

 

- Não faria o quê? - perguntou Landry. - Conte-nos como a tirou do hospital enquanto o agente de guarda ao quarto dela tentava apagar um fogo que você próprio ateou.

 

Chad abanou de cabeça de um modo muito teatral.

 

- Não pensou que a Erin nos diria que você a violou depois de a ter mantido drogada com Ketaminel - perguntou Roca.

 

O advogado mantinha-se inerte, como um sapo, com a boca a abrir e a fechar sem que dela saísse qualquer palavra.

 

- Sabe uma coisa - começou Landry a dizer, suspirando, levantando-se e dirigindo-se a Roca -, estou farto disto. Este merdas insignificante quer ir pelo cano abaixo. Óptimo. Ele que apodreça. O pai era um autêntico filho-da-mãe. Ele é outro filho-da-mãe. Vamos acabar com esta estirpe de genes. Vá ver se consegue chegar a um acordo extrajudicial com a rapariga. Sabe bem que qualquer júri a condenará.

 

Roca fingiu reflectir no que ele lhe disse antes de olhar para o advogado oficioso.

 

- Fale com o seu cliente. Ele vai ser acusado de toda uma miscelânea de crimes: sequestro, estupro, tentativa de assassínio, fogo posto...

 

- Eu nunca violei ninguém - interpôs Chad. - A primeira vez que estive nessa caravana foi ontem, e só para ajudar a Erin.

 

- Para destruir provas incriminatórias a pedido dela, porque foi ela quem arquitectou toda esta maquinação? perguntou Roca.

 

Chad fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás antes de responder.

 

- Eu já lhe disse: a Erin contou-me que ao princípio estava metida na tramóia, mas, depois, a Paris virou-se contra ela. Eu não tive nada a ver com isso! Nada do que sucedeu foi por minha culpa. Eu só estava a tentar ajudar a Erin. Por que razão hei-de vir a ser punido por isso?

 

Landry inclinou-se por cima da mesa, crescendo sobre ele.

 

- Há pessoas mortas por causa disso, meu jovem. Você tentou matar uma mulher que é minha amiga. Acredite que vai ficar preso durante muito tempo.

 

- A culpa não foi minha! - retrucou Chad, baixando a cabeça para as mãos e começando a chorar.

 

- E com respeito à cassete de vídeo que encontrámos no escritório da casa do seu pai, Chad? A cassete que mostra a alegada violação. A cassete que tão convenientemente foi deixada numa prateleira da estante. Como é que foi parar a essa prateleira?

 

- Não sei!

 

- Mas sei eu - ripostou Landry. - Foi você que a pôs lá.

 

- Isso não é verdade! Não tive nada a ver com isso!

 

- Pois bem, quer saber uma coisa, Chad? - perguntou Landry, suspirando com uma expressão enojada. - Tenho a certeza de que foi você. Das duas uma: ou assume a responsabilidade, fazendo um favor a si próprio, ou pode cavar um buraco ainda mais fundo com cada mentira que lhe sair da boca. - Com estas palavras, Landry aproximou-se do espelho que só deixava ver do outro lado, subiu a persiana e accionou um interruptor do intercomunicador.

 

- Pensem sobre o assunto, meus senhores - disse Roca levantando-se da cadeira. - O melhor acordo é sempre o primeiro. Aquele que hesita fica a perder.

 

- Por que razão é que o Chad a levou do hospital, Erin? - perguntou Landry.

 

- O segundo homem devia ser ele - respondeu a rapariga numa vozinha tão fraca como o miar de um gatinho. Mantinha os olhos baixos, como se estivesse receosa ou envergonhada. As lágrimas caíam-lhe dos olhos como gotículas de cristal, correndo-lhe pelas faces. - O outro raptor. Se calhar era por causa disso que nunca falava. Sabia que eu ficaria logo a saber que era ele.

 

- Portanto, ele entrou no hospital, como se nada fosse, em plena luz do dia, e sequestrou-a uma segunda vez, de forma a impedi-la de dizer a alguém que não era capaz de o identificar, não é verdade? - sugeriu Landry.

 

Erin tapou a boca com uma mão trémula, continuando a chorar. A advogada oficiosa designada para a defender, uma mulher anafada e com uma aparência maternal, de nome Maria Onjo, deu-lhe uma palmadinha afável no ombro.

 

- O Chad disse-me que você e ele estavam apaixonados - adiantou Landry, olhando para as duas com um semblante impassível. - Afirma que você saiu com ele do hospital de sua livre vontade.

 

- Não! - respondeu Erin, boquiaberta. - Isso não é verdade! Eu... Nós... mantivemos uma relação amorosa durante algum tempo. Antes de eu ter saído de casa - acrescentou, abanando a cabeça perante a sua própria estupidez. - Só fizemos isso para enraivecer o Bruce. Ele não conseguia suportar a ideia de o seu menino tão perfeito andar envolvido comigo - disse ela com amargura. - O Chad ficou furioso quando acabei tudo com ele. O que me disse foi que não permitiria que eu pusesse fim à nossa relação.

 

Maria Onjo passou-lhe uma caixa de lenços de papel.

 

- Erin - começou Roca -, o Chad afirma que foi você que participou de boa vontade no seu próprio rapto, e não ele. Diz ainda que a tramóia tinha por objectivo desacreditar o Don Jade, e também embaraçar o seu padrasto, além de aproveitarem para lhe extorquir dinheiro, mas, a dada altura, as coisas começaram a dar para o torto.

 

- A dar para o torto? - repetiu Erin, mostrando incredulidade e cólera. - Eles violaram-me!

 

- E você não se apercebeu de que um dos violadores era o Chad? - perguntou Landry. - O fulano com quem mantinha uma relação, o homem com quem ia para a cama?

 

- Eles mantiveram-me sempre drogada! Eu já lhe tinha dito isso! Porque não acredita em mim?

 

- Talvez isso se deva ao facto de a médica que a examinou, na noite em que deu entrada no hospital, não ter podido dizer conclusivamente se você foi violada ou não.

 

- O quê?! Mas... mas... você viu a cassete!

 

- Pois vi - reconheceu Landry. - É horrível, brutal e perversa. E se as cenas fossem genuínas, a sua vagina apresentaria equimoses e feridas graves. O que não foi o caso.

 

A expressão de Erin era a de alguém que se via encurralada num pesadelo.

 

- Não posso acreditar que isto esteja a acontecer comigo - murmurou para si própria. - Eles espancaram-me. Eles violaram-me. Olhe bem para mim! - Começou a arregaçar as mangas para mostrar os vergões avermelhados deixados pelo chicote.

 

- Sim, sim - anuiu Landry, sem se mostrar impressionado. - Isso é deveras convincente. Mas, resumindo, você está a dizer-nos que o Don Jade e o Chad foram cúmplices no seu sequestro, com a ajuda da Paris Montgomery. E como é que o Chad conheceu o Jade?

 

- Não sei - respondeu a rapariga.

 

- E por que motivo é que ele se teria associado ao homem que o privou de si? - perguntou Landry. - Não consigo compreender - acrescentou o detective, apercebendo-se da frustração crescente que Erin sentia. A respiração dela era mais cava e acelerada.

 

- Com certeza que não está à espera que a Erin lhe forneça todas as peças deste caso, detective - atalhou a advogada oficiosa, lançando-lhe um olhar de poucos amigos. - É impossível que ela saiba o que é que vai na mente das pessoas envolvidas neste assunto.

 

- Quanto a isso, não sei bem, doutora Onjo. Ao fim e ao cabo, a Erin mantinha uma relação íntima com o Chad e trabalhava para Mister Jade, tendo afirmado que estava apaixonada por este. Na minha perspectiva, se há alguém que possa responder a estas perguntas, essa pessoa é a Erin.

 

- Erin, você não é obrigada a passar por isto... - disse a advogada, dando-lhe umas palmadinhas amigáveis nas costas.

 

- Eu não fiz nada de mal! - ripostou Erin fitando a mulher. - Não tenho nada a esconder. Não tive culpa de nada!

 

Landry olhou para Roca, revirando os olhos.

 

- Vejamos, Erin, como é que o Chad se associou ao Jade? Tanto quando me é dado saber, a única coisa que o Don Jade e o Chad Seabright têm em comum é conhecê-la. Não sou capaz de os imaginar como amigos.

 

- Pergunte-lhes! - ripostou a rapariga. - Talvez se tenham apaixonado um pelo outro. Como é que eu havia de saber??

 

- E ambos estavam metidos no assunto de conluio com a Paris Montgomery, não é? Eles mantiveram-na sequestrada numa caravana nas traseiras da casa dela.

 

- Não sei! - gritou Erin, tapando a cara com as mãos.

 

- No meio de tudo isto, a Erin é uma vítima - interveio a doutora Onjo. - Ela é a última pessoa que devia ir parar à cadeia.

 

- Não é essa a opinião do Chad - adiantou Roca. Também não é o que a Paris diz. Ambos afirmam que o rapto foi ideia da Erin. O plano para matar o cavalo, fazendo com que a culpa recaísse sobre o Jade, foi congeminado pela Paris. Diz que a Erin é que a forçou a encenar o rapto com o objectivo de extorquir dinheiro ao padrasto, além de criar um mau relacionamento entre a mãe e o Seabright, ao que se associava implicar o Jade num crime que destruiria a sua vida profissional.

 

- E quer saber que mais? - replicou Landry. - Essa história faz muito mais sentido, na minha óptica, do que considerar o Jade e o Chad como psicopatas que eram amantes bissexuais encapotados.

 

- Isto é um verdadeiro pesadelo! - exclamou Erin, que chorava convulsivamente. - Eles violaram-me.

 

Landry suspirou, levantou-se da cadeira, distendeu os ombros e esfregou o rosto.

 

- Tenho de lhe dizer, Erin, que me custa muito acreditar nisso.

 

Onjo afastou a cadeira da mesa, levantando-se. Não era muito mais alta de pé do que sentada.

 

- Isto é bárbaro e por mim acabou - interveio a advogada, chamando o guarda de serviço do lado de fora da porta.

 

- Não vai ficar para ver o filme? - perguntou Landry, fazendo um gesto na direcção do televisor e do aparelho de vídeo colocados num carrinho de metal a um canto da sala.

 

- De que está a falar? - perguntou Onjo, fitando-o com uma expressão de reprovação. - Que filme?

 

- Eles fizeram alguns filmes em vídeo - explicou Erin. - Obrigaram-me a fazer certas coisas. Foi horrível!

 

- Não estou em crer que eles tenham feito este para consumo público - adiantou Roca. - Talvez você queira repensar a sua estratégia, Erin. Tenho tendência a fazer os melhores acordos extrajudiciais com as pessoas que me dizem menos mentiras.

 

Landry ligou o aparelho de vídeo.

 

- Você é uma actriz muito talentosa, Miss Seabright afirmou Landry. - Se não tivesse enveredado por uma vida de crime, é muito possível que conseguisse fazer carreira na indústria de filmes pornográficos.

 

A cassete era uma cópia da que estivera dentro da câmara de filmar que Elena conseguira salvar do incêndio na caravana. Imagens captadas nos bastidores do alegado rapto. Cenas de exteriores. Os actores a ensaiarem.

 

A imagem que encheu o ecrã do televisor mostrava Erin numa pose muito sugestiva em cima da cama, sorrindo sedutoramente para a câmara de filmar. Era a mesma cama a que estivera acorrentada nas cassetes enviadas a Bruce Seabright. A mesma cama onde se encolhera toda no vídeo que a mostrava a ser chicoteada de maneira tão violenta que até mesmo os polícias mais empedernidos se tinham sentido chocados ao ver essas imagens.

 

Maria Onjo olhava com atenção para as cenas; a cor da sua cara desvanecia-se juntamente com os argumentos em que basearia a sua defesa.

 

O olhar de Erin ia da advogada para Landry.

 

- Eles obrigaram-me a fazer tudo aquilo. Fui obrigada a fazer exactamente o que eles me mandavam, se não eles espancavam-me! - gritou ela. - Pensam que eu queria fazer aquilo? - A sua própria imagem olhava-a fixamente do ecrã do televisor enquanto mexia em si própria entre as pernas, após o que lambia os dedos.

 

- Sim - respondeu Landry -, acredito que sim.

 

Naquele momento, ouvia-se uma voz masculina que vinha da cassete a resmungar qualquer coisa; depois, o homem e Erin desatavam a rir-se.

 

Erin Seabright arrastou a cadeira para trás, levantando-se da mesa para começar a passear, com manifesta inquietação. Como um pequeno animal irritado, enjaulado e encurralado a um canto.

 

- Eu fui obrigada a concordar com tudo - alegou. Tinha medo que eles me matassem! O que é que se passa com todos vocês? Porque não acreditam em mim? O culpado é o Chad. Agora compreendo isso. Ele queria castigar-me.

 

Naquele momento, houve qualquer coisa que bateu no vidro pelo outro lado. Erin e a advogada sobressaltaram-se. Landry ficou a olhar para Roca.

 

Entretanto, no ecrã, Chad Seabright caminhava diante da câmara de filmar, dirigindo-se para a cama onde Erin já se encontrava. Ambos se ajoelharam de frente um para o outro sobre o colchão cheio de manchas.

 

- Como é que gostas mais, minha linda? - perguntava ele.

 

Erin olhou-o, esboçando um sorriso de megera.

 

- Sabes bem como é que eu gosto. Gosto das coisas à bruta.

 

Ambos desataram a rir. Dois garotos que se divertiam. Actores que ensaiavam.

 

Landry olhou de fugida para o vidro espelhado que só permitia a visão de um dos lados, acenando para alguém que se encontrava do outro lado, após o que se dirigiu para a porta, que abriu, alegando que tinha de dizer qualquer coisa ao guarda que se encontrava do lado de fora.

 

- Minha grande puta! - berrava Chad Seabright numa voz que ecoou pela sala quando passou, algemado, sendo empurrado por um agente policial. Seabright tentou libertar-se do polícia, lançando-se para a sala de interrogatório. Eu amava-te! Eu amava-te! - Tentou cuspir em Erin a cerca de três metros de distância. Landry afastou-se para o lado, franzindo a testa numa expressão de repugnância.

 

- Há pessoas que não têm a mínima educação - comentou quando já fechava a porta.

 

- Isto é ultrajante! - desabafou a Dra. Onjo, bufando de indignação. - Aterrorizar a minha cliente com o homem que a brutalizou...

 

- Desista, senhora advogada - interveio Roca com uma expressão de enfado. - Se um júri passar uma vista de olhos por esta cassete... a sua cliente pode despedir-se da sua futura carreira de actriz.

 

- Quero fazer um acordo! - gritou Chad. - Quero fazer um acordo!

 

- Cala a boca! - vociferou Erin, levantando-se da cadeira. - Cala a boca!

 

- Foi por ti que fiz isto tudo! Amo-te!

 

- Grande cabrão, és um idiota chapado! - ripostou Erin, lançando-lhe um olhar de raiva, cheio de desprezo e ódio.

 

Landry saiu para o passeio, deixando-se ficar sob o sol quente da tarde enquanto fumava um cigarro. Precisava de tirar da boca aquele sabor às mentiras que os outros lhe diziam, queimar o fedor do que tinham feito.

 

Chad Seabright acabara por ceder a tudo, desistindo de clamar a sua inocência a fim de poder prejudicar Erin. Afirmava que ela o abordara com um plano. Propusera-lhe que fingissem o rapto, extorquindo o dinheiro do resgate a Bruce Seabright. Se ele não quisesse pagar de uma maneira, acabaria por pagar de outra: com a sua reputação, assim como daria cabo do casamento. Ao mesmo tempo, Don Jade seria implicado, pelo que ficaria arruinado, enquanto Paris Montgomery teria o que queria: o negócio de Jade e os estábulos de Trey Hughes.

 

Um plano bastante simples.

 

Os três tinham-se reunido a fim de preparar os argumentos para as cassetes de vídeo, como se estivessem a realizar um autêntico filme. De acordo com o que Chad dizia, as sevícias corporais haviam sido ideia de Erin. Tinha sido ela quem insistira com ele para que a chicoteasse, com o intuito de imprimirem mais realismo às cenas.

 

Fora tudo ideia de Erin. Fora tudo ideia de Paris Montgomery. Nada havia sido por culpa de Chad.

 

Nada tinha acontecido por culpa de quem quer que fosse.

 

Chad fora enganado por Erin, que se havia aproveitado dele. Era um inocente. Quanto à mãe de Erin, não a tinha educado como devia ser. Bruce Seabright nunca tivera afecto pela rapariga. Paris Montgomery fizera-lhe uma lavagem ao cérebro.

 

Paris Montgomery ainda teria de ser interrogada, sabendo Landry que, mais cedo ou mais tarde, seria obrigado a ouvir as suas lamentações enquanto ela lhe contaria como é que o pai a obrigara a aprender a tocar flauta quando tinha três anos de idade, e como não conseguira ser eleita a rainha do baile anual da escola secundária em que estudara, tendo ficado traumatizada para o resto da vida devido a essa desilusão.

 

Chad afirmava não saber nada a respeito de Tomas Van Zandt, bem como em relação à morte de Jill Morone. Landry previa que nenhum dos envolvidos em todo aquele assunto viesse a dizer fosse o que fosse sobre aquele assassínio.

 

No entanto, o que Landry queria saber era o seguinte: se nada acontecera por culpa de ninguém, então, por que motivo é que havia pessoas que tinham acabado assassinadas, órfãs ou com as vidas destruídas? Paris Montgomery e Erin Seabright, assim como Chad Seabright, tinham tomado decisões que arruinaram a vida de outros, que puseram fim à vida de outros. Como seria possível que esses acontecimentos não fossem culpa de ninguém em especial?

 

Na hora incerta antes de amanhecer Quase ao fim da noite interminável...

 

Recordei-me outra vez destes versos quando me encontrava sentada e toda recostada numa espreguiçadeira do meu terraço, a admirar o nascer do Sol no dia a seguir àquele em que Chad Seabright chegara a um acordo extrajudicial com a Procuradoria.

 

Chad virara-se contra Erin. Por seu lado, esta virara-se contra Paris Montgomery, que, por seu turno, apontara Van Zandt como sendo o assassino de Jill Morone, o que fez numa tentativa para cair nas boas graças do procurador. Todos, sem excepção, mereciam apodrecer no inferno.

 

Comecei a pensar em Molly, tentando aplicar as palavras de T. S. Eliot como legenda àquilo por que ela estava a passar, assim como à jornada da sua vida. Esforcei-me por não me demorar a pensar na ironia de ter sido Molly quem se batera para manter a família intacta, para o que contratara os meus serviços, pedindo-me que descobrisse o paradeiro da irmã; no fim de tudo o que acontecera, Molly era a única que restava daquela família.

 

Bruce Seabright tinha morrido. A mente de Krystal não conseguira aguentar a pressão. Mesmo que ela alguma vez houvesse sido um amparo na vida de Molly, era bastante duvidoso que o voltasse a ser. E Erin, a irmã que Molly tanto amara, estava perdida para sempre. Se não por uma pena de prisão, pela sua traição.

 

A vida pode mudar de um momento para o outro, num único instante, durante o espaço de tempo que levamos a tomar uma decisão pouco assisada... ou a mais assisada.

 

Na noite anterior, encarreguei-me de dar a Molly a notícia sobre o envolvimento da irmã naquela trama, tendo ficado com ela nos meus braços enquanto chorava, até que acabou por adormecer.

 

Nessa altura, ela tinha ido ter comigo ao terraço, envolta num enorme cobertor verde, subindo para a minha cadeira e aninhando-se junto de mim sem proferir uma única palavra. Afaguei-lhe o cabelo, desejando ter na minha mão o poder de fazer com que esse momento se prolongasse por muito, muito tempo.

 

- Vamos lá a saber uma coisa: o que é que tu sabes com respeito a essa tua tia Maxine? - perguntei-lhe, finalmente, algum tempo depois.

 

Os serviços do Gabinete do Xerife haviam conseguido localizar a única parente viva de Krystal Seabright que residia naquela área, uma viúva de sessenta e tal anos que morava em West Palm Beach. Eu ficara de levar Molly, essa mesma tarde, a casa dessa senhora.

 

- Ela não é má pessoa - disse Molly sem mostrar grande entusiasmo. - É... normal.

 

- Pois bem, essa é uma característica excessivamente sobrestimada.

 

Fizemos uma pausa em que nos mantivemos em silêncio, olhando para os campos à distância banhados pelo nascer do Sol. Tentei encontrar palavras que se recusavam a ocorrer-me.

 

- Tu sabes o quanto eu lamento tudo o que aconteceu no fim, Molly. Mas nunca lamentei que naquele dia tivesses vindo falar comigo, pedindo-me que te ajudasse. Sou uma pessoa melhor por te ter conhecido. E se eu não gostar da tal fulana, a Maxine - acrescentei no meu tom de voz mais rabugento -, voltas direitinha para casa comigo.

 

Molly soergueu o olhar, fitando-me através dos seus pequenos óculos que lhe davam um aspecto de corujinha, sorrindo-me pela primeira vez desde que a conhecia.

 

A tia-avó Maxine vivia num acolhedor complexo de apartamentos, dando a impressão de ser o que Molly dissera normal. Ajudei a garota a levar as suas coisas, tendo ficado para tomar uma chávena de café e um biscoito de aveia acabado de sair do forno. Normal.

 

Molly acompanhou-me à porta e foi com alguma tristeza que nos despedimos.

 

- Sabes que podes telefonar-me sempre que quiseres, seja por que motivo for, Molly - disse-lhe eu. - Até mesmo que não tenhas razão nenhuma em especial.

 

A garota esboçou um sorriso que era um misto de suavidade e sensatez, ao mesmo tempo que acenava num gesto de assentimento. Por detrás das lentes dos óculos, os olhos azuis de expressão intensa tinham o brilho das lágrimas. Entregou-me um pequeno papel que recortara de uma folha de papel de carta. Em letras de imprensa, escrevera o seu nome, o novo endereço e o número de telefone, junto de um pequeníssimo amor-perfeito de cor púrpura.

 

- Vai ter de me enviar a conta dos seus honorários disse-me ela. - Tenho a certeza de que lhe devo bastante dinheiro. Mas vou ter de lhe pagar em prestações. Apesar disso, estou certa de que conseguiremos chegar a acordo.

 

- Não - murmurei -, não me deves absolutamente nada. - Durante muito tempo, abracei-a com força. Se tivesse estado na minha mão, teria chorado.

 

Quando regressei à quinta, o dia estava a chegar ao fim, com o Sol a banhar tudo em tons mesclados de laranja, que se estendiam na linha plana do horizonte. Estacionei o automóvel e num passo vagaroso encaminhei-me para as cavalariças.

 

Irina colocara Feliki no estrado de travessas, friccionando-lhe as patas com uma mistura de extracto de hamamélis e álcool, enfaixando-as para a noite que se avizinhava.

 

- Como vão as coisas? - perguntei.

 

- Lindamente - respondeu ela concentrada em enfaixar a pata direita do cavalo com a mesma precisão da esquerda.

 

- Lamento, mas ultimamente não tenho dado grande ajuda - acrescentei.

 

Irina ergueu os olhos para mim, sorrindo-me com uma expressão afável.

 

- Não se preocupe com isso, Elena. Isso não tem importância. Estou ciente das coisas que de facto têm importância.

 

Senti-me tentada a perguntar-lhe qual era o sentido da vida de acordo com a sua opinião.

 

Irina deslocou-se para junto dos quartos traseiros da égua, esfregando-lhe a solução nas patas.

 

- A polícia já conseguiu encontrar o belga? - perguntou ela.

 

- Não. Ao que tudo indica, o homem levou sumiço com o automóvel de aluguer de Lorinda Carlton. Mais cedo ou mais tarde, hão-de acabar por lhe descobrir o paradeiro.

 

- Estou em crer que ele há-de pagar pelos crimes que cometeu - acrescentou Irina. - Acredito no carma. E você, acredita?

 

- Não sei. Talvez.

 

- Acho que acredita.

 

Irina cantava quando saí da cavalariça.

 

Landry instalara-se numa cadeira junto da piscina. Observava o Sol através das lentes escuras dos óculos. Sentei-me ao lado das suas pernas, bloqueando-lhe o campo de visão.

 

- O que é que você sabe, Landry?

 

- Que as pessoas são uns bandalhos - respondeu-me.

 

- Nem todas.

 

- Não. Gosto de si, Elena - retorquiu. - Você é um ser humano bom e decente.

 

- Fico satisfeita por ter essa opinião a meu respeito. Também me sinto feliz por estar de acordo consigo quanto a isso - confessei, ainda que pensasse que ele talvez não compreendesse toda a extensão do significado que aquilo tinha para mim.

 

Ou talvez compreendesse.

 

- Hoje, o Trey Hughes descoseu-se em relação ao Jade - continuou Landry, mudando de assunto. - Diz que foi ideia do Jade limpar o sebo à velhota, de maneira a ele poder herdar a fortuna da mãe. Afirma que não teve culpa se o fulano decidiu concretizar a ideia.

 

- Claro que não. E o que é que o Jade tem a dizer quanto a isso?

 

Landry respondeu-me a essa pergunta com um abanar de cabeça.

 

- A Molly já está instalada na sua nova casa?

 

- Já. Vai ficar bem. Mas tenho saudades dela - confessei.

 

- Vai ver que você também ficará bem - afirmou ele estendendo o braço e tocando-me na mão.

 

- Sei que sim. Ficarei bem. Sei que ficarei bem. Já estou bem.

 

- É verdade - concordou ele, apertando-me a mão. O que é que lhe parece se decidíssemos conhecermo-nos melhor?

 

Esbocei um sorriso a medo, assentindo com a cabeça e, de mãos dadas, encaminhámo-nos para a casa de visitas. A vida pode mudar de um momento para o outro. Se lhe permitirmos. 

 

                                                                  Tami Hoag

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades