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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JOGO SUJO / George R. R. Martin
JOGO SUJO / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Brennan movia-se pela noite de outono como se fosse parte dela, ou ela parte dele. A estação trouxe um frescor que o fez lembrar-se, mesmo que vagamente, das montanhas de Catskills. Ele sentia falta delas mais que qualquer outra coisa, mas, enquanto Kien estivesse livre, elas ficariam inacessíveis, como os fantasmas dos amigos e amantes mortos que vinham assombrá-lo em sonho nos últimos tempos. Amava as montanhas com tanto afã quanto amava todas as pessoas com quem falhara durante anos, mas quem, afinal, podia amar a suja dispersão da cidade? Quem conseguia entendê-la, quanto mais o Bairro dos Curingas? Não ele, certamente, mas a presença de Kien o ligava tão fortemente ao bairro quanto correntes de aço. Ele cruzou a rua, entrando no meio do quarteirão de escombros urbanos que margeavam o Crystal Palace. Graças ao seu sexto sentido de caçador, sentia olhos seguindo-o quando passou pelas ruínas. Ajeitou a bolsa de lona, na qual carregava seu arco desmontável, para uma posição mais cômoda, imaginando, não pela primeira vez, que tipo de criatura escolheria fazer das montanhas de lixo seu lar. Uma ou duas vezes ouviu o farfalho sussurrante que não era do vento, e vislumbrou breves movimentos que não eram da luz da lua, mas ninguém se meteu no caminho enquanto ele escalou a escada de incêndio enferrujada que ficava nos fundos do Crystal Palace. Subiu silenciosamente no telhado, passou pelo sistema de segurança — que teria impedido um pouco seu avanço se Crisálida não lhe tivesse dado a senha — e entrou pelo alçapão que se abria para o terceiro andar, o domínio privado de Crisálida. O corredor estava totalmente escuro, mas ele se desviou, de memória, dos delicados aparadores cheios de bibelôs antigos, e entrou em seus aposentos. Ela estava acordada. Nua, sentada no desbotado sofá de veludo vinho, jogava paciência com um maço de cartas antigas.


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Brennan observou-a por um momento. O esqueleto, a musculatura fantasmagórica, os órgãos internos e o sistema circulatório, que formavam uma renda ao redor de tudo, eram sutilmente iluminados pela luz rosácea do abajur Tiffany pendurado sobre o sofá. Ele observou os ossos articulados da mão tirarem uma carta do maço e virar o ás de espadas. Ela ergueu os olhos para ele e sorriu. O sorriso, como a própria Crisálida, era um enigma. Difícil de ler, pois o rosto, que era apenas lábios e borrões de músculos espectrais nas bochechas e mandíbula, poderia significar qualquer uma das milhares de coisas que um sorriso poderia querer dizer. Brennan escolheu interpretá-lo como um de boasvindas. — Já faz tempo. — Ela o olhou, crítica. — Tanto que sua barba cresceu. Brennan fechou a porta e deixou a bolsa com o arco recostada à parede. — Tive de resolver alguns negócios — ele disse, com voz suave e profunda. — Imagino. — O sorriso continuou até Brennan não mais ignorar que ele mostrava certa irritação. — Alguns deles interferiram nos meus. Não havia dúvidas a que se referia. Várias semanas antes, no Dia do Carta Selvagem, Brennan interrompera uma reunião no Palace, na qual Crisálida intermediava a venda de um conjunto muito valioso de livros, inclusive o diário pessoal de Kien. Esperando que o volume tivesse provas suficientes para que pudesse esfolar a maldita pele de Kien, Brennan conseguira por fim pegá-lo, mas ele se mostrou inútil. Tudo que estava escrito fora destruído. — Desculpe — ele disse. — Precisei daquele diário. — Imagino — ela repetiu. Os músculos fantasmagóricos inflaram, indicando um franzir de testa. — E você o leu? Brennan hesitou por um instante. — Li. — E não se oporia a compartilhar suas informações? Era mais uma exigência do que um pedido. Não seria bom, Brennan pensou, dizer-lhe a verdade? Provavelmente ela pensaria que era uma tentativa de manter tudo para si. — Possivelmente. — Nesse caso, acredito que poderia perdoá-lo — ela disse, numa voz pouco convincente. Juntou as cartas lentamente, com cuidado, por sua história e valor, e colocou-as sobre uma mesa com pés palito que ficava ao lado do sofá. Recostouse, lânguida, seus mamilos balançando nas bolsas invisíveis de carne, cujo calor e textura firme Brennan conhecia bem. — Trouxe algo para você — ele disse, num tom conciliador. — Não são informações, mas algo de que talvez também goste. Sentou-se na beirada do sofá, enfiou a mão no bolso da jaqueta jeans e estendeu a Crisálida um envelope pequeno e claro. Quando ela esticou a mão para pegá-lo, a coxa quente e invisível tocou e, em seguida, descansou na de Brennan. — É um Penny Black — ele disse, enquanto ela erguia o envelope translúcido contra a luz. — O primeiro selo de postagem do mundo. Aparência de recém-impresso, em perfeitas condições. Bem raro nesse estado, bem valioso. O
retrato é uma xilogravura da Rainha Vitória. — Muito bom. — Ela abriu seu sorriso enigmático. — Não perguntarei onde conseguiu. Brennan sorriu, sem dizer nada. Tinha certeza de que ela sabia perfeitamente onde ele havia conseguido o selo. Pediu-o para Ira quando estavam inspecionando os catálogos cheios de selos raros que ela surrupiara do cofre de Kien, o mesmo do qual ela tirou o diário, nas primeiras horas do Dia do Carta Selvagem. Ira sentiu-se mal por Brennan não ter conseguido o que queria do diário inútil, por isso, de boa vontade lhe deu o selo quando ele o pediu. — Bem, espero que você goste. — Brennan se levantou e se espreguiçou enquanto Crisálida deixava o envelope ao lado de sua pilha de cartas. Havia sido um dia longo e ele estava cansado. Foi até o criado-mudo ao lado da cama com dossel abobadado e ergueu o decantador de uísque irlandês que ela mantinha para ele. Olhou para a garrafa, franziu a testa e baixou-a. Voltou a se sentar com Crisálida no sofá. Flexível, ela se estendeu para a frente e cobriu o corpo dele com o seu. Brennan bebeu do aroma almiscarado e sexual do perfume da mulher, e observou o sangue correndo pela sua artéria carótida. — Mudou de ideia? Não vai mais beber? — ela perguntou com suavidade. — O decantador estava vazio. Crisálida afastou-se um pouco, encarando os olhos questionadores de Brennan. — Eu só bebo amaretto. — Foi uma afirmação, não uma pergunta. Ela assentiu com a cabeça. Brennan suspirou. — Quando vim aqui pela primeira vez, só queria informações. Não queria nada de íntimo entre nós. Você começou. Se for para continuar e se tornar algo sério, tenho que ser o único na sua cama. Eu sou assim. É a única maneira de me entregar para outra pessoa. Crisálida o encarou por vários segundos antes de responder. — Não é da sua conta com quem eu durmo — devagar, ela finalmente falou no seu sotaque britânico que Brennan, com o ouvido treinado, sabia que era falso. Ele assentiu. — Então, é melhor eu ir. — Ele se levantou e virou. — Espere. — Ela também se levantou. Os dois se olharam por um bom tempo e, quando ela falou, foi num tom conciliador. — Ao menos beba alguma coisa. Vou lá embaixo encher o decantador. Você bebe seu drinque e nós... Nós podemos conversar. Brennan estava cansado e não havia outro lugar no Bairro dos Curingas onde ele queria estar. — Tudo bem — ele disse suavemente. Crisálida enrolou-se em um quimono de seda salpicado com filetes de fumaça na forma de cavalos galopantes, e deixou-o com um sorriso que era mais tímido que enigmático. Brennan caminhou pelo quarto, observando sua imagem atravessar a infinidade de espelhos antigos que decoravam os aposentos de Crisálida. Devia ir
embora, ele disse a si mesmo, e sair sozinho, mas Crisálida era tão fascinante fora da cama quanto em cima dela. Apesar de suas melhores intenções, sabia que precisava de sua companhia e, admitiu, do seu amor. Fazia mais de dez anos desde que ele se permitira amar uma mulher, mas, como vinha descobrindo desde sua chegada ao Bairro dos Curingas, tais emoções não eram as únicas que sentia. Não podia viver apenas de ódio. Não sabia se conseguiria amar Crisálida como amara sua mulher franco-vietnamita que perdera nas mãos dos assassinos de Kien. Ele não quis amar mulher nenhuma enquanto estava no encalço de Kien, mas, apesar de toda a firmeza, apesar do treinamento zen, o que ele queria e o que realmente acontecia eram duas coisas completamente opostas. Brennan ficou no silêncio do quarto de Crisálida, deliberadamente sem pensar no passado. Longos minutos se seguiram e, de repente, percebeu que ela já deveria ter voltado. Franziu a testa. Era quase inconcebível que algo pudesse acontecer a Crisálida no Crystal Palace, mas o cuidado que salvara a vida de Brennan mais vezes do que ele se preocupava em lembrar o fez montar o arco antes de descer atrás dela. Ele se sentiria um idiota se trombasse com Crisálida no escuro, mas já experimentara essa sensação. Era preferível a sentir-se morto, algo com que tinha mais intimidade do que gostaria. Crisálida não estava nos corredores do terceiro andar, nem na escadaria que levava até o bar, mas ele ouviu vozes murmuradas enquanto se esgueirava escada abaixo. Puxou uma flecha, encaixou-a no cordão do arco e espreitou ao redor na beirada da escadaria, onde ela se abria para os fundos do bar. Brennan cerrou os dentes. Teve razão em ser cauteloso. Crisálida estava em pé diante do balcão longo de madeira polida que corria por quase toda a extensão do local. O decantador de uísque, ainda vazio, estava ao seu lado, esquecido. Seus braços estavam cruzados e a mandíbula travada. Os lábios se comprimiam numa linha fina, raivosa. Dois homens a ladeavam e um terceiro estava sentado a uma mesa diante dela. Brennan conseguia discernir poucos detalhes no lusco-fusco da lâmpada que iluminava o bar, mas percebeu que os homens tinham feições sérias e duras. Aquele que a encarava tamborilava os dedos ao lado de uma pistola cromada sobre o tampo da mesa. — Vamos lá — ele disse numa voz suave, mas que soava perigosa. — Só queremos algumas informações. Não diremos onde conseguimos. — Ele se recostou na cadeira. — Logo haverá uma guerra, mas não sabemos a quem atacar. — E você acha que eu sei? — Brennan reconheceu a ponta de raiva no falar arrastado de Crisálida, mas também reconheceu o medo sob o ódio. O homem sentado sorriu. — Sabemos que você sabe, querida. Você sabe de tudo que rola nesta merda de Bairro dos Curingas. Todos nós sabemos que alguém juntou essas gangues mequetrefes para formar um negócio chamado Punhos Sombrios. Estão entrando no nosso território, pegando nossos clientes e roubando nosso lucro. E
isso tem que parar. — Se eu soubesse um nome — Crisálida disse, enfatizando o “se” —, custaria a você mais do que poderia pagar para saber. — Você não entende — ele disse. — É guerra, querida. E manter a boca fechada vai custar a você mais do que você pode pagar. — Ele deixou as palavras ecoarem enquanto batia os dedos no tampo da mesa. — Sal — disse um momento depois, fazendo um sinal com a cabeça para o homem que estava ao lado direito de Crisálida. — Queria descobrir se a famosa pele invisível fica com cicatrizes. Sal considerou a questão. — Vamos ver — ele respondeu. Ouviu-se um estalido alto, e Brennan viu o brilho de uma lâmina polida. Sal balançou-a no rosto de Crisálida, e ela recuou contra o balcão. Chegou a abrir a boca com a intenção de gritar, mas o homem à sua esquerda a apertou com sua mão enluvada. Sal gargalhou, e Brennan se ergueu e soltou a flecha que estava segurando, atingindo Sal nas costas e catapultando-o sobre o balcão. Ninguém tinha ideia do que havia acontecido, exceto Crisálida, possivelmente. O homem sentado à mesa agarrou a pistola e se ergueu num salto. Brennan alvejou-o com tranquilidade, atravessando sua garganta. O brutamonte que segurava Crisálida soltou um fluxo assustado de obscenidades e procurou a pistola que carregava em um coldre de ombro debaixo da jaqueta. Brennan atravessou seu antebraço com uma flecha. Ele soltou a arma e se afastou de Crisálida, encarando a flecha de caça com ponta de alumínio espetada no braço e murmurou: “Jesus, ai, Jesus”. Depois, se inclinou para pegar a pistola. — Encoste nela — Brennan gritou da escuridão — e a próxima flecha vai acertar seu olho direito. Sabiamente, o homem endireitou o corpo e se recostou no balcão. Agarrou o braço ensanguentado e gemeu. Brennan avançou para a luz difusa lançada pela lâmpada. O homem encarou a flecha com ponta afiada encaixada no fio do arco. — Quem são eles? — Brennan perguntou a Crisálida num grunhido áspero. — Máfia — ela respondeu, sua voz falhando de tensão e medo. Brennan assentiu, sem tirar os olhos do homem, que encarava a flecha apontada para sua garganta. — Sabe quem eu sou? O mafioso assentiu rapidamente. — Claro, você é o tal Yeoman... O assassino do arco e flecha. Vejo você o tempo todo no Post. — As palavras saíram de sua boca numa torrente cheia de pavor. — Isso aí — Brennan disse. Depois, olhou para o homem que estava sentado na mesa e viu que estava curvado no chão, imerso em uma poça de sangue cada vez maior, com trinta centímetros de flecha saindo de sua nuca. Ele nem se preocupou com Sal. Havia mandado também uma flecha diretamente para o seu coração. — Você é um cara de sorte — Brennan continuou na mesma voz monótona.
— Sabe por quê? O mafioso sacudiu a cabeça com vigor, suspirando aliviado quando Brennan relaxou a tensão no fio esticado do arco e afastou-o para o lado. — Alguém precisa entregar uma mensagem por mim. Alguém precisa dizer ao seu chefe que esqueça Crisálida. Alguém deve avisá-lo que tenho uma flecha com o nome dele, uma flecha que não pensarei duas vezes em atirar se ouvir que algo aconteceu a ela. Acha que consegue fazer isso? — Claro. Eu consigo. — Ótimo. — Brennan tirou do bolso de trás da calça uma carta e mostrou-a ao brutamonte: era um ás de espadas. — Isso é para ele saber que você está falando a verdade. Ele agarrou o braço ferido do homem pelo cotovelo e esticou-o. O mafioso gemeu enquanto Brennan encaixava a carta na ponta da flecha. — E isso — Brennan disse com dentes cerrados — é para garantir que você não a perca. Com um empurrão, ele espetou o outro braço do homem com a ponta da flecha. O brutamonte gritou pela dor aguda e inesperada. Seus joelhos cederam quando Brennan entortou o cabo de alumínio da flecha para baixo e ao redor dos braços, prendendo-os como se fossem algemas. Brennan puxou-o para ficar em pé. O homem soluçava de medo e dor, e não conseguia encará-lo. — Se eu vir você de novo — Brennan disse —, você vai morrer. O mafioso saiu cambaleando, soluçando e gaguejando protestos incompreensíveis. Brennan observou-o até ele tropeçar para fora da porta e, em seguida, voltou-se para Crisálida. Ela o olhava com medo, e boa parte desse temor, Brennan tinha certeza, era dele mesmo. — Você está bem? — ele perguntou suavemente. — Estou... Acho que estou... — Você vai ter que responder a um monte de perguntas, a menos que a gente se livre dos corpos. — É. — Ela assentiu com firmeza, parecendo de repente decidida, sob controle novamente. — Vou chamar o Elmo, ele vai cuidar disso. — Ela fitou os olhos de Brennan. — Te devo essa. Ele suspirou. — Sua vida inteira precisa estar baseada em créditos e débitos calculados à risca? Ela o olhou um pouco assustada, mas concordou. — Sim — respondeu, firme. — Sim, precisa. É a única maneira de acompanhar, de garantir que... — A voz desapareceu, e ela se afastou, contornando o bar. Olhou para o corpo de Sal e, quando voltou a falar, expressou um pensamento totalmente diferente. — Sabe, Tachyon me convidou para aquela excursão mundial. Acho que vou aceitar. Sem falar nas informações que vou conseguir de todos aqueles políticos. E se há uma guerra de rua entre a Máfia e os Punhos Sombrios de Kien — ela olhou nos olhos de Brennan pela primeira vez —, vou estar segura longe daqui.
Eles se encararam por um bom tempo, e em seguida Brennan assentiu. — Então, é melhor eu ir. — Seu uísque? Brennan soltou um longo suspiro. — Não. — Ele olhou para o cadáver aos seus pés. — Bebidas trazem lembranças, e não preciso delas hoje à noite. — Ele voltou os olhos para ela. — Vou ficar... indisposto... nas próximas semanas. É provável que eu não a veja antes da viagem. Adeus, Crisálida. Ela observou enquanto ele partia, e uma lágrima cristalina reluzia em seu rosto invisível. Mas Brennan não olhou para trás.
II
O Twisted Dragon ficava em algum lugar dentro das fronteiras nebulosas entre o Bairro dos Curingas e Chinatown, o bairro chinês. Uma das fontes de rua de Brennan lhe dissera que o bar era o ponto de encontro de Danny Mao, um homem que tinha uma posição moderadamente alta na Sociedade dos Punhos Sombrios, e que era responsável pelo recrutamento. Brennan observou a entrada por um tempo. Os flocos de neve rodopiantes que não ficavam na aba do seu chapéu preto de caubói prendiam-se no seu bigode espesso e descaído, e nas longas costeletas. Um número considerável de Lobisomens — que estavam usando máscaras de Richard Nixon este mês — entrava e saía do lugar. Também viu alguns Garças, embora a maior parte das gangues de Chinatown fosse exigente demais para marcar encontros em um bar frequentado por curingas. Ele sorriu, alisando as pontas do bigode num gesto que já havia se tornado habitual. Era hora de se certificar de que seu plano era um golpe de mestre, como às vezes pensava, ou um caminho rápido para uma morte brutal, como imaginava com mais frequência. Estava quente dentro do Dragon, mais, Brennan achou, pelos corpos espremidos do que pelo sistema de aquecimento do bar; e levou um tempo para encontrar Mao, que ficava, conforme sua fonte havia lhe dito, sentado em uma mesa nos fundos do salão. Brennan abriu caminho entre as mesas cheias e garçonetes lentas, bêbados cambaleantes e punks arrogantes que cruzaram seu caminho enquanto avançava até o local. Uma garota loira que aparentava estar levemente drogada estava sentada ao lado de Mao. Três homens enchiam o banco diante da mesa: um era um Lobisomem com máscara de Nixon, outro, um jovem oriental e, o do meio, um
homem magro, pálido e visivelmente nervoso. Antes que Brennan pudesse abrir a boca, um punk de rua se pôs na sua frente, bloqueando seu caminho. Tinha entre 1,95 e 2 m de altura, por isso ultrapassava Brennan em tamanho, apesar das botas de caubói que lhe acrescentavam alguns centímetros. Vestia calças de couro manchadas e uma jaqueta de couro muito grande, decorada com pedaços de corrente. O cabelo espetado o deixava ainda mais alto, e as cicatrizes pretas e escarlates cobrindo o rosto somavam brutalidade à sua aparência, bem como o osso — um osso de dedo humano, Brennan percebeu — que atravessava seu nariz. As cicatrizes que marcavam o rosto, a testa e o queixo eram a marca dos Caçadores de Cabeça Canibais, uma temida gangue de rua do passado que se desintegrou quando Brennan matou seu líder, um ás chamado Cicatriz. Os membros que não foram assassinados na sangrenta luta pelo poder após a morte dele começaram a atuar, em grande parte, em outras associações criminosas, como a Sociedade dos Punhos Sombrios. — O que você quer? — A voz do Caçador de Cabeça era estridente demais para soar ameaçadora, mas ele tentava. — Falar com Danny Mao — Brennan respondeu suavemente, sua voz modulada no lento balbuciar que lembrava tão bem sua infância. O Caçador de Cabeça curvou-se para ouvi-lo no meio da música alta, gargalhadas maníacas e as inúmeras conversas que aconteciam ao mesmo tempo. — Sobre o quê? — Não é da sua conta, rapaz. Brennan observou de canto de olho que a conversa na mesa havia parado e que todos o observavam. — Claro que é. — O Caçador de Cabeça abriu um sorriso que, carinhosamente, ele achou selvagem, mostrando seus dentes da frente lixados. Brennan gargalhou alto, e o caçador franziu a testa. — Qual é a graça, imbecil? Brennan, ainda gargalhando, agarrou o osso no nariz dele e puxou com força. O rapaz berrou e levou a mão ao nariz rasgado, e, logo após ainda levou um chute nas partes baixas. Caiu com um gemido engasgado, e Brennan jogou o osso sobre seu corpo encolhido. — Você — Brennan respondeu, e em seguida sentou-se à mesa ao lado da loira, que o encarava num espanto entorpecido. Dois dos três homens sentados do outro lado começaram a se levantar, mas Danny Mao acenou, negligente, e eles voltaram a se sentar, murmurando algo entre si e fitando Brennan. Brennan tirou o chapéu, deixou-o na mesa e olhou para Danny Mao, que devolveu o olhar com aparente interesse. — Qual é o seu nome? — Caubói — Brennan respondeu despreocupadamente. Mao pegou seu copo da mesa e tomou um pequeno gole. Olhou para Brennan como se ele fosse algum tipo de inseto estranho e franziu a testa. — É mesmo? Nunca vi um caubói chinês antes. Brennan sorriu. As dobras epicânticas feitas em seus olhos pelas habilidades cirúrgicas do Dr. Tachyon combinaram-se, como ele supôs que aconteceria, com seus cabelos pretos e espessos, além da pele bronzeada, para lhe dar uma
aparência oriental. Essa leve alteração de feições, os pelos recém-crescidos no rosto e seu sotaque e modo de vestir interioranos compunham um disfarce simples, mas eficaz. Não enganaria ninguém que o conhecesse, mas, de qualquer modo, provavelmente não trombaria com um conhecido. E a ironia do disfarce, pensou Brennan, era que cada aspecto de sua nova identidade, exceto pelos olhos que Tachyon lhe deu, era verdadeiro. Seu pai gostava de dizer que a família era irlandesa, chinesa, espanhola, várias tribos indígenas e totalmente americana. — Meus ancestrais asiáticos ajudaram a construir as ferrovias. Nasci no Novo México, mas o achava muito limitante. — Isso também era verdade. — Então, veio para a cidade grande procurar aventuras? Brennan concordou. — Um tempo atrás. — E se meteu em tantas que precisou usar um apelido? Ele deu de ombros, sem dizer nada. Mao deu mais um gole no drinque. — O que você quer? — Estão dizendo por aí — Brennan começou, com a empolgação intensa enterrada sob seu falar arrastado do sudoeste — que seu pessoal vai entrar em guerra com a Máfia. Você já bateu neles antes, e don Picchietti foi assassinado há duas semanas por um ás invisível que atravessou um picador de gelo na orelha dele enquanto jantava em seu restaurante. Certamente foi trabalho dos Punhos Sombrios. A Máfia vai retaliar, sem dúvida, e os Punhos Sombrios vão precisar de mais soldados. Mao assentiu. — Por que eu deveria contratar você? — Por que não? Eu posso cuidar de mim mesmo. Mao lançou um olhar para seu guarda-costas caído, que havia conseguido se encolher de joelhos, a cabeça descansando no chão. — Bem justo — ele disse, pensativo. — E você tem estômago para isso, imagino. — Olhou para os três homens sentados bem juntos no banco do outro lado da mesa, e Brennan fez o mesmo, com atenção. O Lobisomem estava sentado na parte de fora e o oriental, provavelmente um Garça Imaculada, na parte de dentro. O homem que espremiam não parecia um valentão de rua. Era pequeno, magro e pálido. Suas mãos eram aparentemente macias e fracas, os olhos eram pretos e brilhantes. Muitos valentões de rua tinham um traço de loucura, mas, mesmo à primeira vista, Brennan podia ver que este era mais que tocado pela insanidade. — Esses homens vão sair em uma missão. Você se importaria em se juntar a eles? — Danny Mao perguntou. — Que tipo de missão? — Brennan quis saber. — Se você precisa perguntar, talvez não seja o tipo de homem que estamos procurando. — Talvez — Brennan respondeu, sorrindo — eu apenas seja cauteloso. — Cautela é um traço admirável — Mao disse com brandura —, mas a fé e
a obediência aos superiores também. Brennan botou o chapéu na cabeça. — Tudo bem. Para onde estamos indo? O homem pálido riu. Não era um som agradável. — Para o necrotério — ele disse, exultante. Brennan olhou para Mao com a sobrancelha arqueada. Mao concordou com a cabeça. — Para o necrotério, como disse o Miolo. — Você tem carro? — o Lobisomem perguntou para Brennan. Sua voz era um grunhido amolecido por trás da máscara de Nixon. Brennan negou com a cabeça. — Vamos ter que roubar um — o Lobisomem disse. — Então poderemos passar em um drive-thru! — o homem chamado Miolo provocou. O asiático sentado ao seu lado lançou um olhar levemente enojado, mas não disse nada. — Vamos! — Miolo empurrou o Lobisomem, fazendo-o sair da mesa. Brennan parou um momento para encarar Mao, que o observava com cuidado. — Bigode — Mao falou, apontando com a cabeça para Lobisomem — está no comando. Ele vai contar o que precisa saber. Você está em período de experiência, Caubói. Cuidado. Brennan seguiu o improvável trio até a rua. O Lobisomem virou-se para ele. — Sou Bigode — ele disse em seu grunhido indistinto. — Esse é o Miolo, como disse o Danny, e esse é o Dragão Preguiçoso. — Brennan voltou a cabeça para o oriental, percebendo que estava equivocado em sua avaliação inicial sobre o homem. Não era um Garça. Não usava as cores deles e não tinha atitude de um membro de gangue. Era jovem, com talvez uns 20 anos, pequeno, mais ou menos 1,70 m de altura, e magro o bastante para que suas calças baggy pendessem soltas nos quadris finos. Seu rosto era oval, o nariz levemente largo, o cabelo meio longo e penteado com indiferença. Não tinha a atitude agressiva do punk de rua. Era reservado, e carregava um ar de preocupação quase melancólica. Bigode deixou-os esperando na esquina. Dragão Preguiçoso ficou em silêncio, mas Miolo tagarelava o tempo todo, em geral, coisas sem sentido. Dragão Preguiçoso não prestava atenção nele, nem Brennan depois de um tempo, mas parecia não fazer diferença para Miolo. Ele continuou balbuciando, e Brennan o ignorou o máximo que pôde. Em uma ocasião, enfiou a mão no bolso da jaqueta suja e puxou um frasco de pílulas de diferentes tamanhos e cores, despejou um punhado e jogou para dentro da boca. Mastigou, engoliu ruidosamente e abriu um sorriso para Brennan. — Toma vitaminas? Brennan não sabia se Miolo estava oferecendo ou perguntando se ele tomava vitaminas. Então concordou, evasivo, e se afastou. Bigode finalmente apareceu com um carro. Era escuro, um Buick antigo. Brennan saltou no banco da frente, deixando os de trás para Miolo e Dragão Preguiçoso.
— Boa suspensão, macio — Bigode comentou quando partiram. Brennan olhou para o retrovisor e viu Dragão Preguiçoso concordar e tirar do bolso um pequeno canivete e um bloco de material branco e macio, que parecia sabão. Abriu o canivete e começou a descascar. Miolo continuava tagarelando sem que ninguém o ouvisse. Bigode dirigia tranquilo, xingando buracos, sinais de trânsito e outros motoristas com sua voz abafada, olhando o tempo todo para acompanhar o avanço de Dragão Preguiçoso enquanto ele esculpia cuidadosamente o pequeno bloco com mãos delicadas e habilidosas. Brennan não sabia onde ficava o necrotério ou como ele era, mas a estrutura escura e sombria diante da qual estacionaram atendia a todas as expectativas. — Chegamos — Bigode fez o anúncio desnecessário. Observaram o prédio por alguns momentos. — Ainda parece cheio. — Algumas luzes iluminavam os recintos espalhados pela estrutura de vários andares, e, enquanto observavam, pessoas entravam e saíam pela entrada principal. — Estão prontos? — Bigode grunhiu, olhando pelo retrovisor. — Quase — Dragão Preguiçoso disse sem erguer os olhos. — Prontos para quê? — Brennan perguntou, e Bigode virou-se para ele. — Vocês vão levar o Miolo para a sala que eles usam para armazenar corpos por mais tempo. Fica no porão. Miolo assume lá. Dragão vai primeiro, para sondar. E você vai ser a força no caso de algo dar errado. — E você? Bigode talvez tenha rido embaixo da máscara, mas Brennan não tinha certeza. — Agora que você está aqui, eu só espero no carro. Brennan não gostava daquilo. Não era o jeito como ele gostava de fazer as coisas, mas, obviamente, estava sendo testado. Igualmente óbvio, ele não tinha escolha. Resolveu fazer mais uma tentativa de obter informações. — O que estamos procurando? — Miolo sabe — Bigode respondeu, e Brennan ouviu um risinho inquietante no banco de trás. — E Dragão conhece a planta. Você só precisa cuidar de qualquer um que tente interferir. — Ele olhou de volta para o retrovisor. — Pronto? Dragão Preguiçoso levantou a cabeça. — Pronto — respondeu calmamente. Fechou o canivete, deixou-o de lado e examinou com olhos críticos o que havia esculpido. Brennan, perplexo e curioso, virou-se para olhar melhor e viu que era um rato pequeno, mas quase real. Dragão Preguiçoso estudou-o com cuidado, assentiu como se estivesse satisfeito, deixou-o no colo, recostou-se confortavelmente no banco e fechou os olhos. Por um momento, nada aconteceu, em seguida, Dragão curvou-se, como se estivesse dormindo ou inconsciente, e a escultura começou a se mexer. O rabo balançou, as orelhas se ergueram e, em seguida, rangendo no início, mas com fluidez cada vez maior, a coisa se estendeu. Parou por um momento para alisar os pelos, depois saltou do colo de Dragão para o encosto do banco do motorista. Brennan olhou para o animal, que devolveu a olhada. Era um rato
vivo, maldição. Brennan então fitou o Dragão Preguiçoso, que parecia estar dormindo, e Bigode, que observava, impassível, por baixo da máscara de Nixon. — Truque ótimo — Brennan falou arrastado. — É — Bigode disse. — Você vai carregá-lo. Dragão Preguiçoso, que parecia estar dando vida e possuindo a esculturinha que acabara de fazer, saltou no ombro de Brennan, correu peito abaixo e entrou no bolso do seu colete. Ergueu a cabeça, segurando a barra do bolso com as patinhas. Aquilo era, Brennan pensou, mais do que estranho, e ele tinha a sensação de que as coisas ficariam ainda mais estranhas antes de a noite acabar. — Tudo bem — ele disse. — Vamos acabar com isso. — Fosse lá o que acontecesse. Entraram no necrotério por uma porta de serviço destrancada em um beco lateral e desceram pela escada até o porão. Dragão Preguiçoso saiu do bolso, desceu do colete, passou pela perna da calça e apressou-se pelo corredor mal iluminado. Miolo correu atrás dele, mas Brennan o deteve. — Vamos esperar até o ra... Até o Dragão Preguiçoso voltar. Os olhos de Miolo eram brilhantes, e ele estava ainda mais agitado que de costume. Suas mãos tremiam quando ele pegou o frasco de pílulas, e derrubou uma dúzia de cápsulas enquanto engolia um punhado. As pílulas espalharam-se, fazendo ruídos altos e repetidos. Ele sorriu como um maníaco, e o canto de sua boca se retorcia em uma careta atormentada. Que diabos estou fazendo em um necrotério com um maluco e um rato vivo esculpido de um pedaço de sabão?, pensou Brennan. Dragão Preguiçoso voltou em disparada — antes que Brennan pudesse pensar em uma resposta para essa pergunta perturbadora —, movendo-se como se estivesse sendo caçado pelo gato mais faminto do mundo. Parou aos pés de Brennan, dançando com entusiasmo. Brennan suspirou, curvou-se e estendeu a mão. O animal saltou, e ele, ainda agachado, o ergueu até a altura do rosto. Dragão Preguiçoso sentou-se, os olhos redondos luzindo de inteligência. Ele raspou a patinha dianteira sobre a garganta várias vezes. Brennan suspirou de novo. Odiava charadas. — O que é? — perguntou. — Perigo? Alguém no corredor? O rato assentiu, empolgado, e ergueu a patinha. — Um homem? — O animal concordou de novo. — Armado? — Ergueu o ombro de um modo bastante humano, parecia incerto. — Tudo bem. — Brennan o deixou no chão e, em seguida, se levantou. — Venha comigo. — E virou-se para Miolo. — Você espera aqui. Miolo fez que sim nervosamente, e Brennan partiu para o corredor, com Dragão Preguiçoso correndo em seu calcanhar. Não confiava no bicho, e imaginou em qual parte da missão poderia agir. É difícil quando o homem de quem mais se depende é um rato, pensou. Na curva do corredor, havia um homem sentado em uma cadeira dobrável de metal, comendo um sanduíche e lendo um livro. Ele ergueu os olhos quando Brennan se aproximou. — Posso ajudar, camarada? — Era de meia-idade, gordo e calvo. O livro que estava lendo era Ás Vingador n. 49, Missão no Irã.
— Entrega. O homem fez uma careta. — Não estou sabendo de nada. Sou o porteiro da noite. Em geral, recebemos entrega durante o dia. Brennan entendeu, compreensivo. — É uma entrega especial — ele disse. Quando chegou perto o bastante, pôs uma das mãos nas costas e puxou o estilete que carregava em um estojo no cinto, embaixo do colete. Encostou a ponta da lâmina levemente na garganta do porteiro. O homem, surpreso, abriu a boca e soltou o livro. — Meu Deus, senhor, o que está fazendo? — perguntou num sussurro abafado, tentando mover a garganta o mínimo possível. — Onde fica a sala de armazenamento permanente? — Lá adiante, naquela direção. — O porteiro fez pequenos movimentos com os olhos, temendo mover-se. — Vá buscar o Miolo. — Eu não conheço ninguém com esse nome — o gordo ganiu, o suor brotando da testa. — Eu não estava falando com você. Estava falando com o rato. — Ai, meu Deus. — O porteiro começou a murmurar uma oração incompreensível, certo de que Brennan era um maníaco que estava prestes a assassiná-lo. Brennan esperou, paciente, até Dragão Preguiçoso retornar com Miolo. — Tem mais alguém neste andar? — ele perguntou, incitando o porteiro a se levantar com um leve girar de punho. O porteiro, respondendo rapidamente, se ergueu de imediato. — Ninguém. Agora não. — Nem guardas? O porteiro parecia querer sacudir a cabeça, mas a proximidade da lâmina na sua garganta o impediu. — Não precisa. Ninguém arromba o necrotério há, sei lá, meses. — Tudo bem. — Brennan afastou o estilete, e o homem relaxou. — Leve a gente até a sala de armazenamento. Fique quieto e não tente nenhuma gracinha. — Para enfatizar, tocou a ponta do nariz do porteiro com o estilete, ao que ele assentiu cuidadosamente. Brennan agachou-se e estendeu a mão, para que Dragão Preguiçoso pudesse alcançá-la. Ele levou o rato até o bolso do colete, segurando o riso pelos olhos esbugalhados do porteiro, que parecia querer fazer uma pergunta, mas pensou melhor e desistiu. — É por aqui — disse, e Miolo e Brennan, com Dragão Preguiçoso espiando do bolso, seguiram-no. O homem abriu a porta. Era uma sala escura, fria e deprimente, com gavetas de corpos nas paredes, estendendo-se do chão ao teto. Era ali que a cidade mantinha os cadáveres que ninguém queria ou conseguia identificar, antes de enterrá-los como indigentes. O sorriso inquieto de Miolo alargou-se quando todos entraram na sala, e ele saltou de um pé para o outro com uma empolgação mal disfarçada.
— Me ajude a encontrar! — ele ordenou. — Me ajude a encontrar! — O quê? — Brennan perguntou, realmente perplexo. — O corpo. O corpo gordo e frio do Gruber. — Ele olhava com frenesi para as gavetas, pulando numa dança macabra enquanto percorria a parede. Brennan franziu a testa, empurrou o porteiro na frente e encarou a parede diante deles. A maioria das etiquetas de nome nos pequenos suportes de metal tinham apenas números de identidade anônimos. Poucos tinham nomes. — Aqui, é isso que estão procurando? O dócil porteiro, que seguia na frente de Brennan, olhou para trás, esperançoso. Brennan foi até ele. A gaveta que apontava era a terceira de baixo para cima, na altura da cintura. Na etiqueta estava escrito Leon Gruber , 16 de setembro. — Aqui está — Brennan falou, e Miolo atravessou a sala correndo. Deve haver, ele pensou, algum tipo de mensagem no cadáver , algo que apenas Miolo pode decifrar. Talvez esse Gruber tivesse contrabandeado algo em uma das cavidades do corpo... Mas, se fosse assim, com certeza, pensou em seguida, os técnicos do necrotério já teriam encontrado. — O corpo está aqui faz muito tempo — Brennan comentou, quando Miolo abriu a porta e puxou a gaveta na qual jazia o cadáver. — É, está mesmo, é verdade — o outro respondeu, olhando para o lençol encardido que cobria o corpo. — Eles armaram. Armaram para mantê-lo aqui até eu... Até eu conseguir sair. — Sair? Miolo arrancou o lençol e expôs o rosto e o peito de Gruber. Era um homem gordo e jovem, frágil e de aparência molenga. A expressão de medo e horror fixada no rosto era a pior que Brennan já havia visto em um cadáver. O peito estava salpicado com buracos de bala — pela aparência, de calibre baixo. — Sim — Miolo disse, mas sem olhar para os olhos arregalados e mortiços de Gruber. — Eu estava na prisão... No hospício, na verdade. — De algum lugar em seu corpo, ele tirou uma pequena serra brilhante. Os lábios retorciam-se em esgares incessantes, espasmódicos, e a linha de baba no canto da boca pingava do queixo. — Por violação de cadáver. — O corpo é para viagem? — Brennan perguntou entre lábios bem apertados. — Não, obrigado — ele respondeu, esfuziante. — Vou comer aqui mesmo. Ele começou a serrar o crânio de Gruber. A lâmina atravessou o osso com facilidade. Brennan e o porteiro observavam, horrorizados, quando o topo da cabeça caiu e Miolo, com uma alegria maníaca, algo furtiva, arrancou pedaços do cérebro de Gruber e enfiou na boca. Mastigou ruidosamente. Brennan sentiu Dragão Preguiçoso afundar no bolso do colete. O porteiro vomitou e Brennan reprimiu uma onda crescente de náusea que ameaçava derrubá-lo, mantendo o autocontrole sombrio, apertando os lábios.
III
Brennan amordaçou o porteiro com um lenço e amarrou seus pulsos e tornozelos com uma fita de embalagem que Dragão Preguiçoso encontrou em um canto da sala de armazenagem. Ele precisava fazer todo o trabalho, porque Miolo, murmurando incoerências, havia se recostado na parede depois de devorar o cérebro de Gruber. Após cuidar do porteiro, guiou o maníaco murmurante para fora da sala. Desejou que Dragão Preguiçoso pudesse decifrar o que estava acontecendo. — Como foi? — Bigode perguntou quando Brennan abriu a porta traseira do Buick e empurrou Miolo para dentro. Ele bateu a porta com força e sentou-se no banco da frente antes de responder. — Ótimo, eu acho. Miolo fez um lanchinho. Bigode assentiu, ligou o carro e partiu. Dragão Preguiçoso subiu no bolso de Brennan, equilibrou-se por precaução no alto do banco e pulou para o colo de seu corpo humano, que, após um momento, acordou, bocejando e se espreguiçando. O rato, sofrendo uma transformação sutilmente análoga àquela da mulher curiosa de Ló, voltou a ser um pedaço de sabão. — Como foi? — Bigode murmurou de novo, olhando para o retrovisor enquanto dirigia. Dragão Preguiçoso colocou a escultura de rato no bolso do casaco e balançou a cabeça. — Conforme planejado. Encontramos o corpo e Miolo... jantou. O Caubói se saiu bem. — Ótimo. Melhor levarmos o Miolo para o chefe enquanto ele ainda está digerindo. — Agora que somos todos camaradas — Brennan falou arrastado —, talvez vocês possam me dizer o que está acontecendo. Bigode ergueu o dedo do meio para um motorista que o fechou. — Bem... Acho que não tem problema. O Miolo ali — ele deu uma risadinha — é mais ou menos ás. Ele consegue absorver as lembranças das pessoas comendo seus cérebros. Brennan fez uma careta. — Nossa. Então Gruber sabia de alguma coisa que Mao quer saber. Bigode concordou com a cabeça e acelerou o Buick , passando um semáforo vermelho. — Achamos que sim. Bom, ao menos esperamos. Olha só, o chefe do Danny Mao é um cara chamado Transluz, que quer encontrar uma ás chamada Ira. Gruber era seu receptador antes de ela matar o cara. Mao acha que Gruber provavelmente sabia muito sobre ela, então podemos usar as lembranças dele para encontrá-la. Brennan apertou os lábios, reprimindo um sorriso. Ele sabia mais sobre isso do que aqueles caras. Transluz era um dos ases de Kien que tentou, e não conseguiu, capturar Ira e ele no Dia do Carta Selvagem, e Ira havia lhe dito que
alguém — não ela — havia matado o receptador naquele dia. — Por que esperaram tanto para pegar o cadáver do Gruber? — Brennan quis saber. Bigode deu de ombros. — Miolo estava em uma espécie de hospital. Os policiais o pegaram fazendo aquilo lá com um corpo que encontrou na rua, no Dia do Carta Selvagem, e levou alguns meses para os advogados conseguirem soltá-lo. Brennan assentiu e, para permanecer em seu papel de recém-chegado perplexo, fez uma pergunta cuja resposta ele já sabia. — Então, por que o Transluz quer encontrar essa tal Ira? Porque ela roubou o diário de Kien nas primeiras horas da manhã do Dia do Carta Selvagem mais insano da história, Brennan pensou, mas o Lobisomem, obviamente, não sabia disso. Ele deu de ombros. — Ei, você acha que sou confidente do Transluz? Brennan balançou a cabeça. Não estava, ou ao menos tentava não estar, introspectivo. Suas lembranças do passado com frequência eram dolorosas, mas Ira — Jennifer Maloy — não saía de sua mente desde seu encontro com ela, em setembro. Foi mais do que a aventura que compartilharam no Dia do Carta Selvagem, mais do que a camaradagem tranquila e a confiança relutante entre eles, mais do que seu corpo alto e atlético. Brennan não poderia admitir por quê, mas sabia que tentaria entrar na força-tarefa dos Punhos Sombrios que tivesse a incumbência de caçá-la. Dessa forma, teria condições de ajudá-la se os Punhos chegassem perto demais. Não que eles pudessem usar as lembranças de Gruber para rastreá-la, ele pensou. Embora Ira nunca tivesse dito seu nome a Brennan, ela mencionou que não confiava no receptador e, de fato, nunca lhe dissera seu nome verdadeiro. Continuaram em silêncio. Bigode finalmente estacionou na frente de um prédio de tijolos de três andares, no coração do Bairro dos Curingas. — Caubói, você e Dragão Preguiçoso ajudam o Miolo. Ele não consegue fazer muita coisa sozinho enquanto está digerindo. Brennan pegou o braço esquerdo, Dragão Preguiçoso o direito, e eles o arrastaram pela calçada e subiram as escadarias até a entrada do prédio, onde Bigode já falava com um dos Garças que estavam na portaria. Passaram por eles para o interior do prédio; outro Garça falou rapidamente ao telefone e, em seguida, informou que podiam subir. Carregar Miolo por dois lances de escada foi como arrastar um saco de cimento, mas Bigode não se ofereceu para ajudar. Outro Garça assentiu para eles no patamar do terceiro andar. Atravessaram um corredor com carpete gasto, e Bigode bateu rapidamente à porta ao final dele. Uma voz masculina gritou “Entre”, e ele abriu a porta e entrou antes de todos. Era uma sala confortavelmente equipada, mais ou menos luxuosa se comparada ao que Brennan vira do resto do apartamneto. Um homem de uns trinta anos, bonito, charmoso e bem-vestido estava em pé diante de um barzinho bem abastecido, acabando de servir uma bebida. — Como foi? — Bem, Transluz, tudo bem. Brennan não o reconheceu. Vira-o pela última vez no Dia do Carta
Selvagem, mas Transluz estava invisível até Ira acertar sua cabeça com uma tampa de lata de lixo, fazendo-o cair inconsciente na rua. Brennan estava ocupado com vários Garças naquela hora e deu apenas uma espiada no ás. Era claro que Transluz também não reconheceu Brennan, que estava mascarado quando se encontraram. — Quem é esse? — o ás perguntou, acenando na direção de Brennan. — É novo na turma, o Caubói. É gente boa. — Melhor ser. — Transluz afastou-se do barzinho, e sentou-se em uma poltrona confortável ao lado. — Sirvam-se — ele falou, apontando para as bebidas. Bigode adiantou-se com avidez. Brennan e Dragão Preguiçoso viraram-se para largar Miolo, quase em coma, que agora murmurava sobre o alto custo de vida e o preço da cocaína em uma poltrona, quando uma explosão repentina, e absurdamente alta, sacudiu as estruturas do prédio. Parecia vir do telhado. O drinque de Transluz derramou-se sobre seu terno, Bigode caiu sobre o barzinho, e Dragão Preguiçoso e Brennan soltaram Miolo. — Caceta! — Transluz xingou, cambaleando e tropeçando até a porta, enquanto o rugido cada vez mais alto de uma pistola automática se aproximava, vindo de algum dos andares inferiores. Brennan o seguiu; então, viu-se diante de três homens armados com metralhadoras Uzi que desciam através de um buraco aberto no teto. Transluz estancou no lugar, como que sob o efeito de uma paralisia induzida pelo medo. Brennan, agindo por instinto, empurrou o ás para o chão quando uma corrente de projéteis das metralhadoras compactas dos agressores rasgou a parede sobre sua cabeça. Ele carregava sua Browning Hipower semiautomática em um coldre de ombro, e sabia que não poderia sacá-la a tempo para reagir, pois seria derrubado pela próxima rajada de balas. Maldizendo o destino que o atraíra para morrer entre inimigos, ele agarrou sua arma. Uma pequena folha de papel complexamente dobrada, que veio da sala atrás deles, flutuou pelo corredor. Antes que Brennan pudesse sacar a automática, e antes que os agressores atirassem novamente, em meio a um brilho rodopiante no ar, o papel mudou, se transformou e cresceu até virar um tigre bufante, vivo, que rugiu e avançou, com olhos vermelhos e arregalados, a boca cheia de dentes longos e afiados. O animal levou uma rajada de tiros, mas não parou. Lançou-se sobre os três homens no fim do corredor, e Brennan ouviu os ossos estalando quando ele aterrissou no meio deles. Ficou então de joelhos, sacou e mirou sua Browning. Dragão Preguiçoso estava segurando um dos homens com suas patas dianteiras, e, em um movimento único e veloz, arrancou sua garganta. O sangue jorrou pelo corredor enquanto o atirador, em pânico, soltava uma longa rajada à queima-roupa sobre Dragão. A mira da pistola de Brennan brilhou na testa do homem, alvejando-o quando o tigre tombou, caindo com todo seu peso sobre o terceiro agressor. Transluz desapareceu. Brennan agachou-se e correu como um caranguejo. Acertou uma bala na cabeça do homem que tentava freneticamente sair de baixo de Dragão Preguiçoso, em seguida caiu de joelhos diante do felino gigante.
Ele estava coberto de sangue e Brennan não conseguia identificar se era dele ou dos homens ao seu redor, mas estava com dezenas de feridas e respirava pesadamente. Brennan já tinha visto criaturas com ferimentos fatais o suficiente para saber que Dragão estava morrendo. Não tinha ideia do que devia fazer, ou o que isso significava para a sua forma humana. Parou para acariciar o tigre, solidário, e avançou com agilidade. O barulho de rajadas de metralhadoras automáticas ainda soava nos andares abaixo, quando Brennan conseguiu chegar até o patamar do segundo piso e espiou pelo corrimão para o térreo. As portas duplas do vestíbulo estavam abertas. Meia dúzia de Garças, feitos em pedaços pelas metralhadoras, jaziam no chão de mármore. Quando Brennan observou, os poucos membros ainda vivos da gangue de assalto afastaram-se, hesitantes, através dos escombros da porta dianteira, trocando tiros com os Garças e seus reforços. Em seguida, foram para a rua, onde o barulho dos tiros ecoou pela noite. Brennan se levantou. — Malditos carcamanos. Ele olhou sobre o ombro direito. Um par de olhos azuis, terminações nervosas e tecido conjuntivo pendendo misteriosamente deles flutuavam a 1,70 m do chão. Transluz piscou até se materializar e parecia levemente desnorteado e muito, muito nervoso. — Máfia? — Brennan perguntou. — Isso aí, Caubói. Homens de Rico Covello. Reconheci o que restou daquelas caras feias de nossos dossiês. — Ele fez uma pausa, seu ódio substituído por uma repentina gratidão. — Te devo uma. Teriam acabado comigo se você não tivesse me derrubado. Brennan deu de ombros. — Se não fosse por Dragão Preguiçoso, nós dois teríamos virado carne moída. Melhor vermos se ele está bem. O tigre levou muitos tiros. — Certo. Subiram as escadas. Brennan ficou aliviado ao ver — em seguida, irritado consigo mesmo pelo sentimento — que Dragão estava sentado calmamente em uma das confortáveis poltronas de Transluz. Ele ergueu os olhos quando os dois entraram na sala. — Tudo bem? — ele perguntou. — Não diria isso — Transluz respondeu, ainda nervoso. — Aqueles desgraçados invadiram e quase me apagaram. — Ele olhou irritado para Bigode, que estava em pé, indeciso, no meio da sala. — O que você estava fazendo, seu curinga de merda? Bigode deu de ombros. — Eu... Eu pensei que alguém devia ficar com Miolo... — Tire essa maldita máscara para falar comigo! — Transluz ordenou com fúria. — Já estou enjoado e cansado de olhar para a fuça de Nixon. Não importa o quanto você seja feio, não pode ser pior que isso. Dragão Preguiçoso observou Bigode com interesse calculado, e a mão de Brennan se aproximou da Browning no coldre. Lobisomens eram conhecidos por
assumirem uma fúria assassina quando estavam sem máscara, mas Bigode, como indicado em sua ação — ou inação — anterior, não era o mais violento dos Lobisomens. Ele tirou a máscara e se pôs no centro da sala, hesitante, pendendo o peso de uma perna para a outra. Cada parte de seu rosto, exceto pelos globos oculares, era coberto por um pelo grosso e áspero; até mesmo a língua, que lambia nervosamente a boca. Não era surpresa, pensou Brennan, que sua voz fosse tão abafada. Transluz grunhiu, falou alguma coisa que Brennan não conseguiu entender além de “curinga desgraçado”, e deu as costas ao Lobisomem. — Precisamos ir embora. A polícia vai chegar a qualquer momento. Dragão, você e o Bigode peguem o maluco — apontou com a cabeça para Miolo, que ainda estava jogado na poltrona, murmurando — e tragam-no para os fundos. Peguem também o carro e me busquem lá na frente. Caubói, venha comigo. Preciso fazer uma rápida avaliação de danos. Dragão se levantou. Brennan parou na frente dele, e os dois se olharam por um bom tempo. Havia algo estranho em Dragão Preguiçoso, Brennan pensou de repente, algo oculto e extremamente insondável que ia além de seu poder incomum de ás. Porém, o homem havia salvado sua vida. — Sorte sua que tenha um tigrão aí dentro. Dragão sorriu. — Gosto de ter um segurança disponível. Algo mais poderoso do que um rato. Brennan concordou. — Estou em dívida com você — ele falou. — Vou me lembrar disso. — Dragão virou-se para ajudar Bigode com Miolo. Lá embaixo, havia cinco Garças e meia dúzia de mafiosos mortos. Os Garças sobreviventes andavam de um lado para outro como abelhas furiosas. Transluz sacudiu a cabeça. — Inferno. Está crescendo. A Mãezinha não vai gostar disso. Brennan segurou a expressão de interesse repentino antes que ela se revelasse. Não disse nada, tinha medo de que a voz o traísse. Mãezinha, Siu Ma, era a líder dos Garças Imaculadas. Se Transluz era um tenente na organização de Kien, ela era, no mínimo, um coronel. Em todos os meses de investigação, ele descobriu que era uma chinesa vinda do Vietnã para os Estados Unidos no final dos anos 1960 para se tornar mulher de Nathan Chow, o líder de uma insignificante gangue de rua chamada Garças Imaculadas. Sua chegada correspondeu à rápida ascensão da fortuna dos Garças, da qual Chow pouco se aproveitou. Morreu em circunstâncias misteriosas em 1971, e Siu Ma assumiu a gangue, que continuou a crescer e prosperar. Kien, na época ainda um general do Exército da República do Vietnã, usou o grupo para trazer heroína para os Estados Unidos. Assim, não havia dúvida de que Siu Ma tinha patente alta na organização de Kien, muito alta. — Precisamos nos dividir antes de os policiais chegarem — Transluz comentou. Ele se virou para um Garça que carregava uma metralhadora Ingram. — Vão embora. Levem todos os arquivos, tudo de valor.
O Garça assentiu, esboçou uma saudação informal e começou a gritar ordens em chinês, muito rapidamente. — Vamos — Transluz repetiu, caminhando cuidadosamente entre os corpos. — Para onde? — Brennan perguntou, o mais casual possível. — Casa da Mãezinha, em Chinatown. Tenho que contar para ela o que aconteceu. Uma limusine brilhante estacionou. Bigode dirigia, e Miolo estava caído no banco traseiro com Dragão Preguiçoso. Transluz entrou, e Brennan o seguiu, a excitação percorrendo seu corpo como um fio bem tensionado. Ele observou cuidadosamente a rota tomada por Bigode, mas não fazia ideia de onde estavam quando a limusine finalmente parou em uma garagem pequena caindo aos pedaços, em um beco sujo e atulhado de lixo. Sua falta de familiaridade com a área o irritou e perturbou seu aguçado senso de controle. Odiava a sensação desesperadora que o assolava nos últimos tempos, mas não havia nada a fazer a não ser engolir seco e seguir em frente. Bigode, novamente com sua máscara, e Dragão Preguiçoso arrastaram Miolo do carro, cumprindo uma ordem de Transluz. O significado daquilo foi importante para Brennan. Sabia que havia escalado um degrau ou dois na estima de Transluz, que era exatamente o que queria. Quanto mais perto chegasse do âmago da organização de Kien, mais fácil seria desmontá-la como um castelo de cartas. A porta da qual se aproximaram não era tão frágil quanto parecia. Também estava trancada e guardada, mas o sentinela os deixou passar depois de espiar pelo olho mágico quando Transluz bateu à porta. — Siu Ma está dormindo — o guarda disse. Era um chinês grande vestindo as tradicionais calças largas, um cinto, também largo, de couro e uma túnica combinando com a calça. A metralhadora no coldre do cinto era um anacronismo gritante com seu estilo ultrapassado de se vestir, mas Brennan refletiu: tratava-se de uma combinação sensível com o que, aparentemente, era a noção bem desenvolvida de tradição de Siu Ma. — Ela vai querer nos ver — Transluz falou, sombrio. — Estaremos na câmara de audiências. O guarda assentiu, acionou um sistema de interfone muito moderno e falou em chinês rápido demais para que Brennan pudesse acompanhar. A câmara de audiências era luxuosa, se comparada com a fachada gasta do prédio. O tema da decoração era a China dinástica. Havia tapetes altos, telas belamente laqueadas, porcelana delicada, dois demônios de templo em bronze esverdeado maciço e valiosos bibelôs de marfim, jade e outras pedras nas mesas de teca, ébano e madeiras raras. Ira, Brennan pensou, amaria este lugar . Embora imponente, a impressão geral que o aposento causava era bastante agradável. Era como uma exposição montada com olho exigente e o máximo de bom gosto. Siu Ma já estava esperando por eles, sentada em uma poltrona dourada que dominava a parede ao fundo da câmara, e esfregava os olhos sonolentos. Era baixa, tinha um rosto redondo e gorducho, olhos escuros com cílios longos e cabelos pretos brilhantes. Aparentava ter pouco mais de 30 anos. Reprimiu um
bocejo com a mão gordinha e franziu o cenho para Transluz. — É melhor que seja importante — ela disse, olhando com nojo para Miolo e seus ajudantes, e com curiosidade para Brennan. Seu inglês era excelente, com apenas um resto de sotaque francês. — E é — Transluz garantiu, e contou que a Máfia havia atacado seu prédio. Enquanto falava, uma jovem carregando uma bandeja entrou na sala e serviu uma pequena xícara de chá. Siu Ma bebericou enquanto ouvia a história de Transluz, e seu franzir de cenho se intensificou. — Isso é intolerável — disse quando ele terminou. — Precisamos ensinar a esses criminosos de histórias em quadrinhos uma lição da qual eles não se esquecerão. — Concordo — Transluz respondeu. — Mas nossos espiões nos disseram que Covello se recolheu em suas propriedades nos Hamptons. É uma das fortalezas mais bem protegidas da Máfia. Há duas muralhas ao seu redor, além de uma muralha externa e blindada que circula a propriedade inteira, e uma cerca eletrificada interna que protege o prédio principal. Covello está entrincheirado lá, na companhia de matadores mafiosos bem armados. Siu Ma olhou com frieza para ele, e Brennan pôde ver a força implacável nos olhos quase pretos. — Os Punhos Sombrios também têm armas — ela disse. Transluz balançou a cabeça. — Concordo, mas não queremos desperdiçar nossos homens em uma tentativa fútil de vingança. E penso que um ataque como esse chamaria a indesejável atenção das autoridades. Um silêncio desconfortável surgiu enquanto Siu Ma bebericava o chá e encarava Transluz friamente. Brennan viu sua chance. — Desculpe a minha interrupção — ele disse em seu falar arrastado e suave —, mas, com frequência, um homem sozinho consegue chegar aonde muitos não são bem-vindos. Transluz virou-se para ele e franziu a testa. — Como assim? Brennan deu de ombros com desdém. — Uma incursão de um homem só talvez consiga o que um ataque de grande escala nunca conseguiria. Brennan sentiu os olhos de Siu Ma perfurarem-no. — Quem é este homem? — perguntou. — O nome dele é Caubói — Transluz disse com voz distraída. — É novo. Siu Ma terminou o chá e deixou a xícara na bandeja. — Fala como se tivesse a cabeça no lugar. Diga — ela disse, falando diretamente com Brennan pela primeira vez —, você está se oferecendo para ser este homem? Ele curvou a cabeça, em uma reverência respeitosa. — Sim, Dama. Ela sorriu, contente, como ele esperava deixá-la com aquela forma de tratamento. — Será perigoso, muito, muito perigoso — afirmou Transluz com cautela.
Siu Ma virou-se para encará-lo. — Nunca pare para pensar no perigo em meio a uma questão de vingança — ela disse. Brennan reprimiu um sorriso. Aparentemente, Siu Ma era uma mulher de opinião parecida com a sua.
IV
Estava um frio de gelar os ossos no heliporto da West Thirtieth Street. O vento era como um chicote que cortava o macacão manchado que Brennan vestia. O aroma da neve iminente estava no ar, embora ele mal conseguisse diferenciá-lo entre o cheiro de graxa e óleo do aeroporto onde, disfarçado de mecânico, esperava pacientemente. Brennan era bom de espera. Passou dois dias e duas noites fazendo apenas isso em um posto de observação oculto do outro lado da estrada diante da propriedade de Covello, em Southampton. Era óbvio que Covello, optando pela discrição e não pela bravura, decidira se esconder durante a guerra entre a Máfia e os Punhos Sombrios. Estava cercado por uma companhia de mafiosos fortemente armados e protegido por muralhas que eram seguras contra tudo, exceto contra um ataque de grande escala. Os únicos veículos que podiam entrar nas propriedades traziam comida para o don e os prepostos que iam consultá-lo, e mesmo esses eram parados e revistados meticulosamente no portão principal. O único caminho alternativo era o heliporto no telhado da mansão. Brennan observou o helicóptero de Covello chegar e partir várias vezes ao dia, em diferentes ocasiões transportando mulheres com roupas caríssimas e homens vestidos de preto. Estes, quando identificados pelas fotos que Brennan tirou com lentes telefotográficas, revelaram-se membros distintos de outras famílias. As mulheres, aparentemente, eram garotas de programa. Quando o reconhecimento do terreno terminou, ele esperou pacientemente no heliporto, que era a base de Covello em Manhattan. Desde que confirmara que não poderia atravessar as muralhas, ele decidira cruzá-las por cima. No próprio helicóptero de Covello. A noite havia caído antes de o piloto aparecer, com um trio de mulheres trêmulas vestidas com casacos de pele. Não havia mais ninguém perto do helicóptero. Quando Brennan se aproximou deles, o homem baixou a escada para a cabine. A primeira prostituta estava tentando entrar a bordo, mas suas botas de salto alto faziam com que a tarefa ficasse bastante complicada. Foi quase fácil demais. Brennan chutou o piloto, ao que este cambaleou para
trás, bateu com força contra o helicóptero e deslizou até o chão. A garota de programa que estava agarrada a ele vacilou, seus braços girando desordenadamente, e Brennan a equilibrou com a mão em seu traseiro. — Ei! — ela reclamou, não se sabe se pelo encaixe da mão ou pelo tratamento ao piloto. — Mudança de planos — Brennan falou para todas. — Vocês vão para casa. Elas o olharam com suspeita, e a que estava na escada disse: — Mas nós nem recebemos ainda. Brennan abriu seu melhor sorriso. — Nem foram mortas ainda. — Ele pegou a carteira e a esvaziou. — Para o táxi — respondeu, entregando as notas. As três se olharam, encararam Brennan e voltaram a se olhar. A que estava na escada desceu, encolheu-se de frio e saiu murmurando. As outras a seguiram. Brennan arrastou o piloto para dentro da cabine. Ele estava apagado e frio, mas, seu pulso, estável e forte. Brennan olhou-o por um momento. O homem, no fim das contas, não era nada, nem mesmo um inimigo. Era apenas alguém que, por acaso, estava no caminho. Brennan pegou um novelo de cordão grosso do bolso do macacão, o amarrou e amordaçou, deixando o homem no chão da cabine. Tirou o macacão sujo, o enrolou e jogou em um canto. Atravessou a cabine até o cockpit e acomodou-se no assento do piloto. — Vou decolar — Brennan disse para o ar, mas aqueles que estavam na frequência escolhida o ouviram, e ele partiu para Southampton. Brennan não pilotava um helicóptero havia mais de dez anos, e esse era um modelo mais comercial que militar, mas as antigas habilidades voltaram rapidamente às suas mãos. Pediu a liberação de decolagem, a recebeu e, seguindo o plano de voo que encontrou em uma prancheta na cabine, logo deixou para trás o milhão de joias brilhantes que iluminavam a Cidade de Nova York. Voar sobre Long Island na noite clara e fria lhe deu uma sensação fresca e nova, na qual ele se perdeu. No entanto, logo viu o iluminado heliporto particular de Covello bem abaixo. Quando pousou, suave como uma pena, um guarda carregando um fuzil acenou para ele. Brennan suspirou. Tirou a sensação clara do céu noturno da mente. Era hora de voltar ao trabalho. O guarda seguiu despreocupadamente na direção do helicóptero. Brennan esperou até ele estar a meia dúzia de passos de distância, em seguida baixou a janela do cockpit e acertou sua cabeça com a Browning com silenciador. Ninguém o viu entrar na mansão através do alçapão no telhado, tampouco o viu percorrer quarto a quarto, tão silencioso e determinado como uma assombração. Ele encontrou Covello em uma biblioteca repleta de livros intocados, que haviam sido comprados pelo decorador da mansão pelas encadernações, porque combinavam. O don, que Brennan reconheceu pela foto no dossiê de Transluz, estava jogando sinuca com seu consulare, enquanto um homem, obviamente um guarda-costas, observava em silêncio. Covello perdeu uma tacada certa, xingou-se, em seguida ergueu a cabeça, franzindo o cenho para Brennan. — Quem diabos é você? Brennan não disse nada, simplesmente ergueu a arma e atirou no guarda
costas. Covello começou a gritar em uma voz curiosamente aguda e feminina, e o consulare tentou acertar Brennan com o taco de sinuca. Ele se desviou e o alvejou três vezes no peito, lançando-o sobre a mesa de sinuca. Em seguida, atirou nas costas do don, enquanto ele corria até a porta. Covello ainda estava respirando quando Brennan se aproximou. O mafioso encarou-o com um olhar suplicante e tentou falar. Brennan queria finalizá-lo com um tiro na cabeça, mas não podia. Tinha ordens a cumprir. Ele puxou um pequeno saco de náilon preto do bolso de trás da calça, e uma faca, não muito mais longa e pesada do que aquela que sempre carregava, do estojo do cinto que ficava na lombar. Seu tempo era curto, já que os gritos de Covello certamente tinham acordado a casa, e os capangas já estariam a caminho. Então, se curvou. O don moribundo fechou os olhos de terror quando viu a faca nas mãos de Brennan. O homem não era seu inimigo, mas sua morte também não seria uma grande perda para a sociedade. Ainda assim, enquanto cortava a garganta de Covello, apertando com força a lâmina para separar a espinha, Brennan só conseguia pensar em um final mais limpo. Ninguém merecia morrer assim. Ele ergueu a cabeça de Covello pelo cabelo oleoso e jogou-a no saco de náilon. Voltou pelos corredores que levavam ao telhado e ao helicóptero.Moviase rápida e silenciosamente, mas, dessa vez, foi visto. Um mafioso disparou uma forte rajada de metralhadora e gritou para os companheiros. Os tiros não chegaram nem perto de atingir Brennan, mas ele sabia que agora estavam no seu encalço. Acelerou o passo, atravessando corredores e subindo às pressas as escadas. Deu de cara com um grupo de homens. Não tinha ideia de quem eram, e eles pareciam surpresos, mas nada perplexos com o encontro. Esvaziou o pente da Browning quando o atacaram, e eles se espalharam sem oferecer resistência quando os sons da perseguição se aproximaram mais. Sem interromper o passo, ele falou alto para ouvintes invisíveis: — Já estou com o pacote e voltando para casa. Preciso de cobertura — enfiou a mão no bolso do colete, soltou algo no carpete, e continuou a correr. Uma folha flutuante de papel delicado, dobrada hermeticamente em um formato pequeno e complicado, caiu de sua mão. Ele não olhou para trás, mas ouviu o rugido desafiador de um grande felino, terrivelmente alto nos estreitos corredores, reverberar e ecoar continuamente quando se misturou aos sons da metralhadora e aos gritos dos homens aterrorizados. A rota que o levou até o pequeno aeroporto de Suffolk não estava no plano de voo autorizado, e a viagem não foi tão empolgante com a bolsa manchada e vazando que ele manteve ao lado no banco do copiloto. Transluz e Bigode o esperavam no aeroporto com a limusine. — Como foi? — Conforme o planejado. — Brennan ergueu a bolsa, e Bigode pegou-a. Transluz assentiu. — Enrole num cobertor ou algo parecido e ponha-o no porta-malas. — Ele percebeu o olhar de nojo de Brennan quando Bigode saía às pressas. — Sim, também sobra para mim às vezes. Mas Miolo é uma ferramenta útil. Pense em
todas as informações úteis que ele vai tirar do cérebro de Covello. — Pensei que Miolo estivesse trabalhando em outro problema — Brennan disse, sem mostrar muito interesse. — Em uma ás chamada Ira. — Ah, isso? — Transluz fez um gesto de indiferença. — Ele já resolveu. Pelo visto, Ira não gostava muito de Gruber. Nunca lhe disse seu nome verdadeiro. Mas ela deixou escapar a data de aniversário uma vez. E Miolo é um desenhista talentoso... Nossa, difícil pensar nele com alguma qualidade humana real... Temos ligações fortes em várias agências governamentais, a DMV, por exemplo. Enfim, a data e o retrato de Miolo serão o suficiente para pegar aquela vadia. Uma onda de medo assolou Brennan, expulsando a fadiga que pesava em seu corpo e espírito. Para escondê-la, esfregou o rosto e deu um grande bocejo. — Bem — ele disse, tentando desesperadamente soar despreocupado —, parece bem importante. Gostaria de participar. Transluz examinou-o com cuidado, mas assentiu. — Claro, Caubói. Você merece. Não vamos mexer com isso por um dia ou dois, mas sua aparência me diz que você conseguiria dormir durante todo esse período. Brennan forçou um sorriso. — Eu bem que poderia. Deixaram-no em um apartamento no Bairro dos Curingas, onde dormiu por quase 24 horas e depois se arrastou por outro dia antes de receber a ligação. Era a voz abafada de Bigode na outra ponta da linha. — Conseguimos o nome dela, Caubói, e o endereço. — Quem está na jogada? — Você, eu e dois dos meus colegas Lobisomens. Estão vigiando o apartamento dela agora. Brennan concordou. Estava feliz por Dragão Preguiçoso não os acompanhar. Tinha muito respeito pelo poder e a capacidade de adaptação do ás. — Mas tem um problema — Bigode disse, hesitando. — Ela se transforma em uma espécie de fantasma e atravessa paredes e essa merda toda, então, não podemos ameaçá-la de verdade. Brennan sorriu. Jennifer era uma moça extraordinariamente difícil de lidar. — Transluz bolou um plano. Invadimos o apartamento dela e tentamos encontrar o livro que ele está procurando. Se não, podemos tentar negociar. Como comprar, por exemplo. Então — ele disse com certa satisfação na voz —, ela pode acabar com uma bala na nuca em algum momento. E aí, vai virar fantasma para sempre. — Bom plano — Brennan se obrigou a dizer. E era. Sabiam seu nome. Sabiam onde encontrá-la. Ele precisava fazer alguma coisa ou ela não chegaria viva ao fim do mês, mesmo se eles encontrassem o diário. Sua mente acelerou. — Encontro vocês em uma hora, no apartamento dela. Passe o endereço. — Certo, Caubói. Sabe, é bem ruim esse poder dela de virar fantasma. É bem gostosa. Poderíamos fazer uma boa festinha. — Sim, uma boa festinha. — Brennan desligou depois de Bigode dar o endereço do apartamento de Ira. Por um momento, ficou encarando o nada,
invocando todo o treinamento zen para acalmar a mente e tranquilizar o pulso acelerado. Precisava de calma, não de um cérebro encharcado de ódio, fúria e medo. Parte dele se surpreendeu com a forte reação às notícias de Bigode. Parte dele sabia o motivo, mas a maior parte lhe disse para esquecer o assunto por ora, enterrá-lo e examiná-lo depois. Havia uma maneira de sair dessa encrenca... Tinha de haver... Ele afundou a consciência no lago do ser, buscando conhecimento através da tranquilidade perfeita, e, quando trouxe sua mente de volta, obteve a resposta. Era Kien, e o que ele sabia do homem, seus medos, forças e fraquezas. Alguns dos detalhes seriam traiçoeiros e dolorosos de se trabalhar. Brennan pegou o telefone e discou um número. Ouviu o primeiro toque, em seguida, o som daquela voz do outro lado da linha: — Alô? — Ele segurou o aparelho com força, percebendo que sentia falta de sua voz e, apesar das circunstâncias, estava feliz em ouvi-la novamente. — Alô? — Alô, Jennifer. Precisamos conversar...

A neve caía em cortinas que cegavam, e o vento rugia como almas perdidas através dos cânions cinzentos da cidade. De alguma forma, o inverno parecia mais frio ali do que nas montanhas. Mais frio, sujo e solitário, Brennan pensou. Os Lobisomens sem máscara, vestidos como funcionários de manutenção, esperavam no saguão do prédio de Jennifer. Um era alto e tinha as bochechas cheias de espinhas. Suas deformidades de curinga estavam escondidas pelo macacão largo que vestia. O outro era baixo e magro, com a malformação evidente em sua espinha curvada, que deslocava o torso dos quadris de modo excêntrico. Bigode e Brennan, também vestindo macacões, batiam a neve das botas. — Frio do inferno — Bigode resmungou. — Ela foi embora? — ele perguntou sussurrando. O alto e magro assentiu. — Saiu não faz dez minutos. Pegou um táxi. — Tudo bem, vamos lá. Ninguém os viu subir. A porta principal cedeu facilmente às ferramentas de arrombamento dos Lobisomens. Brennan disse a si mesmo que precisava falar com ela sobre isso, se, ele corrigiu, ainda estivessem vivos quando o assalto tivesse terminado. — Vamos ver o quarto primeiro — Bigode disse quando entraram no apartamento. Ele parou e franziu a testa para as paredes cheias de estantes de livros. — Merda, encontrar um livro aqui será como uma agulha num maldito palheiro. Ele entrou em um quarto pequeno com uma cama de solteiro, um criadomudo com luminária, um armário antigo... e mais estantes de livros. — Teremos de olhar todos os malditos livros — Bigode disse. — Talvez
algum seja oco, ou algo assim. — Caramba, Bigode — o Lobisomem baixinho disse —, você está vendo filmes de... Ele interrompeu a fala e olhou quando uma loira alta, magra e bonita vestida em um biquíni preto saiu da parede. A imagem tremeu, solidificou-se, apontou uma pistola com silenciador para eles e sorriu. — Parados — ela disse. Eles pararam, mais pela surpresa do que por medo. Bigode engoliu seco. — Ei, nós só queremos conversar. Fomos enviados por gente importante. A mulher fez um sinal positivo. — Eu sei. — Você sabe? — Bigode perguntou, surpreso. — Eu contei para ela. Todos se viraram para encarar Brennan. Ele havia aberto a gaveta do criado-mudo e também estava com uma arma nas mãos. Era uma pistola estranha, de cano longo. Apontou para Bigode. Os olhos do curinga arregalaramse no rosto peludo. — Que porra é essa, Caubói? O que está acontecendo? — Brennan o encarou inexpressivamente. Mexeu o punho, apertando o gatilho duas vezes. Houve duas explosões pequenas, quase inaudíveis, e os Lobisomens olharam com surpresa para os dardos cravados em seu peito. O alto e magro abriu a boca para dizer algo, suspirou, fechou os olhos e despencou no chão. O outro nem tentou falar. — Caubói! Brennan sacudiu com a cabeça. — Meu nome não é Caubói. Também não é Yeoman, mas serve. O rosto de Bigode assumiu uma expressão quase cômica de terror. — Olha, me deixa ir embora. Não vou falar para ninguém. Juro. Confie em mim... — Ajoelhou-se, as mãos crispadas, implorando, as lágrimas encharcando as bochechas peludas. A pistola de ar de Brennan cuspiu outro dardo, e Bigode caiu de cara no carpete. Brennan virou-se para Jennifer. — Oi, Ira. Ela deixou a arma cair na cama. — Você não pode... Não pode deixá-los ir? Brennan negou com a cabeça. — Sabe que não. Eles me conhecem. Acabaria com meu disfarce. E arruinaria nosso plano. — Eles precisam morrer? Ele se aproximou dela, mas os braços ficaram ao lado do corpo. — Você se envolveu num negócio mortal. — Ele apontou para os Lobisomens drogados. — Ninguém pode sair daqui, exceto eu, se você quiser viver. — Ele parou, parecia perturbado. — Mesmo assim, não há garantia... Jennifer suspirou. — A vida deles está nas minhas m...
— Eles fizeram escolhas e levaram uma vida que os trouxe até aqui. Estavam preparados para te estuprar, desfigurar e matar. Ainda assim... — Brennan desviou o olhar de Jennifer, olhando para dentro de si. — Ainda assim... A voz silenciou. Jennifer pôs a mão em seu rosto, e ele o ergueu, os olhos escuros assombrados por memórias de morte e destruição que, apesar do treinamento zen, apesar de sua concentração ferrenha, nunca se afastavam da superfície dos pensamentos. Jennifer abriu um leve sorriso. — Gosto dos seus novos olhos. Brennan sorriu de volta e, quase de forma involuntária, cobriu a mão dela com a sua. — Preciso ir. Logo vai escurecer e preciso cuidar deles. — Apontou com a cabeça para os Lobisomens desacordados. — E de... outros detalhes. Jennifer concordou. — Verei você de novo? Digo, logo. Brennan afastou a mão, virou-se e deu de ombros. — Já não tem problemas demais? — Ei, o senhor do crime da Cidade de Nova York me jurou de morte. O que pode ser pior? Brennan sacudiu a cabeça. — Você não conseguiria nem começar a imaginar. Olha, é melhor você desaparecer. Preciso cuidar de algumas coisas. Jennifer olhou para ele em silêncio. — Eu te ligo. — Promete? — ela perguntou. Brennan fez um sinal positivo com a cabeça. Ela lançou um último olhar perturbado para os Lobisomens, em seguida desapareceu através da parede. Brennan não tinha a intenção de cumprir sua promessa. Nenhuma. De jeito nenhum. Mas, quando ergueu o primeiro curinga inconsciente nos ombros, sua determinação já estava enfraquecendo.
V
Transluz, Siu Ma e Miolo estavam em reunião quando Brennan recebeu autorização para entrar na câmara de audiências. Miolo murmurava listas de nomes, endereços, telefones, contas bancárias e conexões com o governo. Tudo que Covello mantinha armazenado no cérebro era de Miolo. Tudo que o don sabia...
Repentinamente, Brennan teve uma ideia. Apenas os mortos, ele pensou, podiam saber de tudo. Já haviam terminado sua missão, sua vida estava completa. Apenas os mortos podiam conhecer totalmente o Bairro dos Curingas, pois não precisavam de novidades. Como ele, quando estava nas montanhas, onde sua vida era pacífica, imutável e serena — e bem morta. Agora, ele vivia novamente. A sensação de incerteza e perda de controle que o assolava cada vez mais era o preço que pagava por viver. Era um preço alto, mas, até o momento, ele percebeu, estava conseguindo pagá-lo. Transluz e Siu Ma trocaram olhares preocupados quando Brennan entrou sozinho na câmara. — O que aconteceu? — Transluz perguntou. — Emboscada. Aquele desgraçado do Yeoman. Matou Bigode e os outros Lobisomens. Me prenderam na parede pela mão. — Brennan estendeu a mão direita. Estava enrolada num trapo ensanguentado que fora rasgado da camisa. Tinha doído muito atravessar a mão com uma flecha. Era, Brennan refletiu, uma espécie de castigo por aquilo que fizera desde sua chegada à cidade. — Ele deixou você vivo? — Siu Ma perguntou. — Queria que eu entregasse isto, disse que não era bom para ele. — Ergueu o diário de Kien, que havia sido apagado quando Jennifer o desmaterializou para tirá-lo do cofre. Ele odiava muito ter que devolvê-lo e deixar Kien saber que estava a salvo dos segredos que estavam revelados ali, mas precisava oferecer algo de concreto para tirá-lo do caminho de Jennifer. Transluz pegou o diário e, encantado, folheou as páginas. — O... O Yeoman fez isso? Brennan negou com a cabeça. — Disse que aconteceu quando Ira o roubou. Transluz sorriu. — Bem, isso é ótimo. Realmente ótimo. Até Siu Ma parecia feliz. — Tem mais uma coisa. — Brennan forçou-se a falar como um mensageiro indiferente quando queria bradar as palavras na cara de Transluz, para que Kien não tivesse dúvida da ameaça que sofriam. Transluz e Siu Ma olharam para ele com expectativa. — Ele também tinha uma mensagem. Ele disse para Kien... Sim, o nome era Kien... Que sabe onde ele mora, da mesma forma que Kien sabe onde Ira vive. Mandou dizer que a luta deles vai além da vida e da morte, que é de honra e retribuição, mas que ficará satisfeito em tirar a vida dele se algo acontecer a Ira. Falou ainda que tem uma flecha com seu nome esperando... apenas esperando. Brennan havia entregado uma promessa semelhante poucos meses antes em nome de outra pessoa. Mas talvez fosse justificável ela ter recusado aceitar sua proteção e escolher, em vez disso, partir. Porém, Jennifer tinha simplesmente assentido com a cabeça quando ele lhe contou seu plano, havia aceitado como se confiasse real e totalmente nele. — Entendo — Transluz e Siu Ma trocaram olhares de preocupação novamente. — Bem, certo, eu passo o recado. — Transluz concordou com firmeza. — Vou passar mesmo. — Ansioso, mordeu o lábio inferior.
Siu Ma levantou-se: — Você provou ser valioso. Espero que sua associação com os Punhos Sombrios seja longa e próspera. Brennan olhou para ela e se sentiu à vontade para sorrir: — Tenho certeza de que sim. Tenho certeza de que será.
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Todos os cavalos do rei
George R. R. Martin
I
Tom encontrou a última edição da Ases na antessala do escritório, enquanto a analista de crédito lhe dava um chá de cadeira. A capa mostrava o Tartaruga voando sobre o rio Hudson com um espetacular pôr do sol de outono ao fundo. Na primeira vez em que viu aquela foto, na Life, Tom ficou tentado a mandar emoldurá-la. Mas aquilo fora muito tempo atrás. Mesmo o casco já não existia mais, lançado à deriva em algum lugar no espaço pelos alienígenas que o capturaram na primavera anterior. Embaixo da imagem, em letras pretas sobre as nuvens tingidas de escarlate, a manchete perguntava: “Tartaruga – Vivo ou Morto?”. — Caralho — Tom falou alto, incomodado. A secretária lançou um olhar desaprovador em sua direção. Ele a ignorou e folheou a revista para encontrar a história. Inferno... Como podiam supor que ele estava morto? E daí que fora atingido por uma bomba de napalm e despencara dentro do Hudson na frente de metade da cidade? Ele havia voltado, não é? Pegou um casco velho e cruzou o rio, voou sobre o Bairro dos Curingas na madrugada seguinte ao Dia do Carta Selvagem, milhares de pessoas devem tê-lo visto. O que mais precisava fazer? Finalmente, ele encontrou o artigo. O autor fez um grande alarde com o fato de que ninguém via o Tartaruga havia meses. Talvez ele tivesse morrido, no fim das contas, a revista sugeria, e a visão durante a madrugada tivesse sido algum tipo de alucinação coletiva. Um especialista sugeriu que podia ser uma alucinação causada pelo desejo de que ele não tivesse morrido. Um balão meteorológico, disse um segundo. Ou, talvez, o planeta Vênus. — Vênus! — Tom exclamou, um tanto indignado. O velho casco que ele usara naquela manhã era um maldito fusca coberto com uma placa blindada. Como podiam dizer que era Vênus? Virou a página e se deparou com uma fotografia granulada de um fragmento do casco tirado do rio. O metal estava curvado, retorcido por alguma explosão horrível, suas laterais denteadas e afiadas. Nem todos os cavalos, nem todos os cavaleiros do rei conseguiriam trazer
o Tartaruga de volta, dizia a legenda. Tom odiava quando tentavam ser espertinhos. — A senhorita Trent vai recebê-lo agora — a secretária anunciou. A senhorita Trent em nada contribuía para melhorar seu humor. Era uma jovem magra que usava óculos de tartaruga grandes demais e tinha cabelos castanhos com mechas loiras. Bonita e ao menos dez anos mais nova que Tom. — Sr. Tudbury — ela disse de trás de uma impecável mesa de aço cromado quando ele entrou. — O comitê de empréstimo avaliou seu pedido. O senhor tem um excelente registro de crédito. — É mesmo — Tom disse, sentou-se e por um momento ousou ter esperanças. — Isso significa que vou conseguir o dinheiro? A senhorita Trent sorriu com tristeza. — Receio que não. De alguma forma, ele já esperava. Tentou agir como se não importasse; os bancos nunca emprestam dinheiro quando suspeitam que você realmente precisa dele. — E minha avaliação de crédito? — ele questionou. — O senhor tem um registro excelente de pagamentos em dia de seus empréstimos, e aqui levamos isso em consideração. Mas o comitê é da opinião de que seu endividamento total já está muito alto em relação a sua renda atual. Não poderíamos justificar a concessão de mais um crédito sem garantia desta vez. Desculpe. Talvez outra instituição lhe dê um retorno positivo. — Outra instituição de crédito — Tom disse com voz cansada. Chance mínima. Aquele banco já era o quarto onde tentava. Todos disseram a mesma coisa. — Sim, claro. — Ele já estava de saída quando viu o diploma emoldurado na parede do escritório e voltou. — Universidade de Rutgers — voltou-se para ela. — Eu abandonei Rutgers. Tinha coisas melhores a fazer que terminar a faculdade. Coisas mais importantes. Ela o encarou em silêncio, uma expressão confusa em seu rosto belo e jovem. Por um momento, Tom quis voltar, sentar-se e contar tudo para ela. Tinha uma expressão compreensiva, ao menos para uma funcionária de banco. — Deixa pra lá — ele disse. Foi um longo trajeto até o carro.

Era quase meia-noite quando Joey o encontrou recostado em uma grade enferrujada, observando as águas iluminadas pela rua do estreito de Kill Van Kull. O parque ficava do outro lado da rua, em frente à sua casa e aos conjuntos habitacionais do governo onde crescera. Mesmo quando criança, encontrava ali seu consolo, nas águas pretas e oleosas, as luzes de Staten Island no meio do caminho, os grandes petroleiros atravessando a noite. Joey sabia disso; eram amigos desde a escola primária, diferentes como o dia e a noite, mas irmãos em tudo, exceto no nome.
Tom ouviu os passos atrás dele, olhou por sobre o ombro, notou que era apenas Joey e voltou a encarar o Kill. O amigo aproximou-se e ficou ao seu lado, com os braços dobrados sobre a grade. — Não conseguiu o empréstimo — Joey disse. — Não. Sempre a mesma história. — Filhos da puta. — Não. Eles têm razão. Eu já devo demais. — Tudo bem, Tuds? Há quanto tempo você está aqui fora? — Um tempinho — Tom respondeu. — Precisava pensar um pouco. — Odeio quando você pensa. Tom sorriu. — É, eu sei. — Ele virou as costas para a água. — Estou pendurando as chuteiras. — Que merda é essa que você está falando? Tom ignorou a pergunta. — Estou ficando com saudades daquele último casco. Tinha infravermelho, lentes com zoom, quatro grandes monitores e vinte menores, toca-fitas, equalizador gráfico, frigobar, tudo com controle remoto, computadorizado, de ponta. Trabalhei por quatro anos nele, fins de semana, noites, férias, o tempo todo. Cada centavo guardado que eu tinha foi embora com ele. E o que acontece? Estava com o maldito operando havia cinco meses, e os desgraçados dos parentes do Tachyon simplesmente jogaram o casco no espaço. — Grande coisa — Joey falou. — Você ainda tem os cascos antigos no ferro-velho, use um deles. Tom tentou ser paciente. — O casco que os takisianos mandaram embora era o meu quinto — ele disse. — Depois que o perdi, voltei para o número quatro. Aquele que foi bombardeado. Se quiser dar uma olhada como ficou, compre a última Ases. Tem uma foto ampliada lá. Canibalizamos todas as partes úteis do dois e do três, anos atrás. O único que está mais ou menos intacto é o primeiro. — E? — Joey perguntou. — E? Ele tem fios, Joey, não placas de circuito, fios com vinte anos de idade. Câmeras obsoletas com capacidade de rastreamento limitada, tubos de aspirador de pó, um maldito aquecedor a gás, enfim, o pior sistema de ventilação que você já viu. “Como fiz aquela coisa sobrevoar o Bairro dos Curingas em setembro ainda não sei, mas estava em choque com a explosão. Do contrário, nunca teria tentado uma idiotice dessas. Tantos tubos queimaram que acabei voando meio que às cegas antes de voltar para casa.” — Podemos consertar tudo isso. — Esquece — Tom disse, com mais firmeza do que sentia de fato. — Aqueles meus cascos são um tipo de símbolo para a merda da minha vida inteira. Fico enjoado só de pensar nisso. Todo o dinheiro que botei neles, todas as horas, o trabalho. Se me esforçasse tanto na minha verdadeira vida, talvez eu fosse alguém. Olhe para mim, Joey. Estou com 43 anos, moro sozinho, tenho uma casa e um ferro-velho abandonado, os dois hipotecados até o talo. Trabalho quarenta
horas por semana vendendo videocassetes e computadores, e consegui comprar um terço da loja, mas agora os negócios não estão indo muito bem... Hahaha, olha que piada. Aquela mulher que me atendeu no banco hoje é dez anos mais nova do que eu, e provavelmente ganha três vezes mais do que eu tiro do meu negócio. Linda também, sem aliança, e a secretária disse senhorita Trent, ou seja, talvez eu pudesse ter chamado a moça para sair, mas, sabe de uma coisa? Eu olhei nos olhos dela e consegui ver como sentia pena de mim. — Se uma vaca estúpida te olha com dó, isso não é motivo para você ficar chateado — Joey comentou. — Não — Tom retrucou. — Ela tem razão. Eu sou melhor do que parecia para ela, mas não havia maneira de ela saber disso. Empenhei a melhor parte de mim sendo o Tartaruga. O Astrônomo e seus capangas quase me mataram. Caralho, Joey, eles jogaram bomba de napalm no meu casco, e uma delas me deixou tão enjoado que eu apaguei. Poderia ter morrido. — Mas não morreu. — Tive sorte — Tom disse com fervor. — Uma sorte dos diabos. Eu estava preso naquela desgraça, todos os meus instrumentos estavam fora do ar, aquela droga toda, e todas as muitas toneladas despencaram direto para o fundo do rio. Mesmo que estivesse consciente, não haveria como abrir a escotilha manualmente antes de me afogar. E isso se a encontrasse com todas as malditas luzes apagadas e o casco enchendo-se de água! — Pensei que você nem se lembrasse dessa merda — Joey falou. — E não — Tom confirmou, massageando as têmporas. — Consciente, não. Às vezes tenho aqueles sonhos... Foda-se, não importa, a verdade é que eu estava morto. Só fui sortudo, incrivelmente sortudo, porque algo estourou o casco, estourou sem me matar, e eu consegui trazê-lo para a superfície. Do contrário, estaria lá embaixo, dentro de um caixão de aço no fundo do Hudson, com as enguias entrando e saindo dos meus olhos. — E então? — Joey falou. — Você não está morto, certo? — E da próxima vez? — Tom questionou. — Estou quebrando a cabeça tentando pensar em uma maneira de financiar um casco novo. Vender minha parte na empresa, ou talvez vender a casa e mudar para um apartamento. E então eu pensei, bem, ótimo. Vendo a merda da minha casa, construo um novo casco, e os desgraçados takisianos aparecem mais uma vez. Ou descobrimos que o Astrônomo tinha um irmão e ele está puto comigo, ou alguma outra merda acontece, não importa o quê, mas algo acontece e me mata. Ou, talvez eu sobreviva, apenas para ver o novo casco ir para a sucata, como os últimos dois, e lá estarei eu na estaca zero, só que sem casa. Para quê? Joey encarava Tom; Joey, que havia crescido com ele, que o conhecia melhor do que ninguém. — É, talvez — ele respondeu. — Então, por que eu acho que você está me escondendo algo? — Eu era um garoto muito esperto — Tom insistiu, virando-se de uma vez —, mas de alguma forma me tornei um belo idiota quando cresci. Essa coisa de vida dupla é uma besteira. Uma vida já dá trabalho suficiente para a maioria das pessoas, que diabos me fez pensar que poderia dar conta de duas? — Ele sacudiu
a cabeça. — Para o inferno com tudo isso. Acabou. Estou sendo racional, Joey. Eles acham que o Tartaruga está morto? Ótimo. Deixe que descanse em paz. — Você é quem sabe, Tuds — Joey falou, pousando a mão áspera no ombro de Tom. — Mas é uma pena, de verdade. Você vai fazer meu filho chorar. O Tartaruga é o herói dele. — Jetboy foi meu herói — Tom disse. — Ele também morreu. Faz parte do amadurecimento. Mais cedo ou mais tarde, todos os seus heróis vão morrer.
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Concerto para sirene e serotonina
Roger Zelazny
I
Sentado a uma mesa pouco iluminada do Vito’ s Italian, em horário inusitado e silencioso, engolindo um prato de linguini e secando uma garrafa envolta em palha, o único freguês — de cabelos pretos fixados com laquê ou tônico — do lugar chamava a atenção dos garçons. Já era seu sétimo prato, quando um imponente civil, cuja mão se parecia com um bastão, entrou e também se pôs a observá-lo, com olhos injetados. O homem continuava a encarar o jantar e, finalmente, voltou suas lentes espelhadas na direção do outro. — Você é quem estou procurando? — o recém-chegado perguntou. — Talvez — o comensal respondeu, abaixando o garfo —, se envolver dinheiro e algumas habilidades especiais. O homenzarrão sorriu. Em seguida, ergueu a mão direita e deixou-a cair. Atingiu a ponta da mesa, arrancou o canto, rasgou a toalha e sacudiu-a para a frente. O linguini escorreu para trás, caindo no colo do homem sentado. Seus óculos se entortaram, revelando um par de olhos brilhantes e facetados. — Canalha! — ele gritou, as mãos estendidas em paralelo ao apêndice. — Filho da puta! — o gigante respondeu, tirando a mão. — Você me queimou, desgraçado. — Dei um choque — o outro corrigiu. — Teve sorte que não te fritei. O que é isso? Por que quebrou minha mesa? — Você tá contratando ases, não está? Eu quis lhe mostrar a merda que eu faço. — Não, não estou. Pensei que você estaria, pelo jeito que se aproximou. — Que inferno, não! Maldito olho de mosca! O outro se apressou em arrumar os óculos. — É realmente um saco olhar para 216 imagens de um babaca. — Vou te mostrar quem é babaca! — retrucou o gigante, erguendo novamente a mão.
— Você pediu — disse o outro, com uma tempestade elétrica emergindo de repente do meio das mãos. O gigante deu um passo para trás. Em seguida, a tempestade desapareceu, e o homem abaixou as mãos. — Se não fosse pelo linguini no meu colo, teria sido bem engraçado. Sente-se. Podemos esperar juntos. — Engraçado? — Pense nisso enquanto eu vou me limpar — ele respondeu. Em seguida, disse: — Sou Croyd. — Croyd Crenson? — Isso. E você é Pancada, não é? — É. Como assim “engraçado”? — Tipo identidade trocada — Croyd respondeu. — Dois caras pensando que são outras pessoas, sabe? Pancada franziu a testa por vários segundos antes de os lábios se abrirem em um sorriso hesitante. Em seguida, gargalhou, quatro sons semelhantes a uma tosse. — Sim, engraçado pra caralho! — disse e gargalhou de novo. Pancada deslizou para a frente da mesa, rindo ainda, enquanto Croyd saía. Encaminhou-se ao toalete masculino, e Pancada pediu uma jarra de cerveja ao garçom que se aproximou para fazer a limpeza. Momentos depois, um homem de terno preto, vindo da cozinha, entrou no salão e parou, os dedões enganchados no cinto e um palito de dente movendo-se lentamente, com um leve franzir de testa. Em seguida, avançou. — Você me parece familiar — ele disse, chegando ao lado da mesa. — Sou o Pancada — o outro retrucou, erguendo a mão. — Chris Mazzucchelli. É, ouvi falar de você. Soube que pode abrir caminho através de quase qualquer coisa com essa sua luva. Pancada esgarçou os dentes. — É isso mesmo — ele disse. Mazzucchelli sorriu com o palito na boca. Sentou-se na cadeira de Croyd. — Sabe quem eu sou? — ele perguntou. — Claro que sei — Pancada disse, concordando. — Você é o Cara. — Exatamente. Acho que você ouviu que uma confusão está se armando, e preciso de um tipo especial de soldado. — Se precisa de gente que destrói, sou bom nisso — Pancada confirmou. — Falou bonito — Mazzucchelli respondeu, pescando um envelope no bolso do paletó e jogando-o na mesa. — Adiantamento. Pancada o pegou, abriu, contou as notas lentamente, movendo os lábios. Quando terminou, disse: — O valor está certo. E agora? — Tem um endereço aí também. Vá lá às oito da noite e pegue instruções. Tudo bem? Pancada guardou o envelope e se levantou. — Certo — ele concordou, pegou a caneca de cerveja, ergueu-a e bebeu tudo. Depois, soltou um grande arroto. — Quem é o outro cara, o que está lá atrás, no banheiro?
— Ele é um de nós — Pancada respondeu. — Se chama Croyd Crenson. Não dá para mexer com ele, mas tem um grande senso de humor. Mazzucchelli assentiu: — Tenha um bom dia. Pancada arrotou novamente, balançou a cabeça de volta, acenou com sua mão de porrete e partiu.

Croyd hesitou apenas um momento ao voltar para o salão de jantar e ver Mazzucchelli em sua cadeira. Ele avançou, ergueu dois dedos em uma saudação jocosa e disse ao se aproximar: — Meu nome é Croyd. Você é o recrutador? Mazzucchelli mediu-o de cima a baixo, os olhos pairando por um momento na grande mancha úmida na frente das suas calças. — Algo te assustou? — Sim, eu vi a cozinha — Croyd respondeu. — Está procurando um talento? — Que tipo de talento você tem? Croyd pegou uma pequena luminária da mesa ao lado. Desenroscou a lâmpada e ergueu-a na sua frente. Em pouco tempo, ela começou brilhar. Em seguida, o brilho aumentou, piscou e se apagou. — Opa — ele observou. — Botei muita força aqui. — Com um dólar e cinquenta — Mazzucchelli comentou —, posso comprar uma lanterna. — Você não tem ideia — Croyd retrucou. — Eu consigo fazer algumas coisas da pesada com alarmes antirroubo, computadores e telefones, sem falar com qualquer um que eu cumprimente com um aperto de mão. Mas, se não está interessado, não vou morrer de fome. Ele começou a se virar para ir embora. — Sente-se, sente-se! — Mazzucchelli pediu. — Ouvi dizer que você tem senso de humor. Eu gosto disso e acho que talvez possamos usá-lo de alguma forma. Preciso de gente boa. E depressa. — Tem alguma coisa te assustando? — Croyd perguntou, sentando-se na cadeira que Pancada tinha acabado de vagar. Mazzucchelli olhou feio, e Croyd deu uma risadinha: — Humor. O que posso fazer por você? — Crenson — o outro falou —, este é seu sobrenome. Olha só, eu o conheço. Sei muito sobre você. Estava na sua cola. Isso, sim, é senso de humor. Conheço você muito bem, e sei que em geral entrega o que promete. Mas há alguns pontos que precisamos acertar antes de falar sobre outras coisas. Sabe do que estou falando? — Não — Croyd respondeu. — Mas quero muito saber. — Quer alguma coisa enquanto conversamos? — Gostaria de experimentar o linguini novamente — Croyd respondeu — e
outra garrafa de Chianti. Mazzucchelli ergueu a mão e estalou os dedos. Um garçom se aproximou rapidamente. — Linguini e una bottiglia. Chianti. O homem saiu às pressas. Croyd esfregou as mãos, um leve som de estalidos acompanhando. — Aquele que acabou de sair... — Mazzucchelli disse por fim. — Pancada... — Sim? — Croyd falou depois de uma espera adequada. — Vai ser um bom soldado — Mazzucchelli terminou a frase. Croyd concordou. — Acho que sim. — Mas você, você tem algumas habilidades além daquelas que o vírus lhe deu. Pelo que sei, é perito em arrombar andares altos. E conheceu o velho Bentley. Croyd balançou a cabeça confirmando. — Ele foi meu professor. Eu o conheci lá atrás, quando ele era um cão danado. Você parece saber mais de mim do que a maioria das pessoas. Mazzucchelli tirou o palito da boca e deu um gole na cerveja. — Este é o meu negócio — disse depois de um tempo —, saber das coisas. Por isso não quero que você seja um soldado. O garçom voltou com um prato de linguini, uma taça e uma garrafa de vinho. Passou um jogo de talheres da mesa ao lado para Croyd, que começou a comer imediatamente e com certo entusiasmo maníaco, o que deixou Mazzucchelli um pouco perturbado. Croyd fez uma pausa longa e perguntou: — Então, o que tem em mente para mim? — Algo um pouco mais sutil, se você for o homem certo. — Sutil. Sou o cara certo para ser sutil — Croyd comentou. Mazzucchelli ergueu um dedo. — Primeiro — ele disse — um daqueles pontos que vamos acertar antes de falar de outras coisas. Observando a velocidade com a qual o prato de Croyd esvaziava, ele estalou os dedos novamente e o garçom chegou correndo com outro prato de linguini. — Que assunto? — Croyd perguntou, empurrando o primeiro prato para o lado, enquanto o segundo era colocado em sua frente. Mazzucchelli pousou a mão no braço esquerdo de Croyd de forma quase paternal, e inclinou-se para a frente. — Pelo que sei, você teve problemas — ele disse. — Como assim? — Ouvi dizer que você é viciado em anfetaminas — Mazzucchelli observou — e que, de vez em quando, enlouquece, mata gente, destrói propriedades e arrasa com tudo na sua frente até seu gás acabar, ou algum ás que te conhece ficar com pena e te botar para dormir. Croyd baixou o garfo e deu um grande gole na taça de vinho: — É verdade, embora não seja algo sobre o que eu goste de falar.
Mazzucchelli deu de ombros. — Todo mundo tem o direito de se divertir de vez em quando. Só estou perguntando por razões profissionais. Não gostaria que você agisse assim se estiver trabalhando para mim em algo sigiloso. — O comportamento que você ouviu por aí não é diversão — Croyd explicou. — Ele se torna uma espécie de necessidade se eu ficar acordado por um determinado período. — Hum... Você está próximo desse ponto agora? — Nem perto — Croyd respondeu. — Não há com que se preocupar por um bom tempo. — Se eu fosse contratar você, preferiria não ter que me preocupar com isso. Agora, não adianta pedir para que alguém não seja um usuário. Mas, o que quero saber é o seguinte: você fica são o bastante quando começa a tomar bolinha para largar o meu trabalho, e então enlouquecer em outro lugar não relacionado com o que estiver fazendo para mim? Croyd observou-o por um momento, em seguida concordou lentamente. — Entendo o que quer dizer. Se for isso que o trabalho pede, claro. Sem problemas. — Se estamos entendidos, quero contratá-lo. É um pouco mais sutil do que rachar cabeças por aí. E também não é um tipo de roubo simples. — Já fiz muitas coisas estranhas — Croyd retrucou — e muitas coisas sutis. Algumas delas estavam até dentro da lei. Os dois sorriram. — Neste caso, talvez você nem precise usar violência — Mazzucchelli afirmou. — Como eu disse, meu negócio é saber das coisas. Quero que você me traga algumas informações. A melhor maneira de consegui-las é quando ninguém sabe que elas foram conseguidas. Por outro lado, se o único modo que você tiver para fazer isso for causar um mal-estar considerável em alguém, tudo bem. Contanto que limpe bem o caminho depois. — Saquei. O que você quer saber e onde eu encontro essas informações? Mazzucchelli deu uma gargalhada curta e alta. — Parece haver outra empresa fazendo negócios nesta cidade — ele disse em seguida. — Sabe do que estou falando? — Sei — Croyd respondeu —, e, em geral, não há espaço para duas lojinhas no quarteirão. — Exatamente. — Então, você está recrutando ajuda extra para continuar a concorrência com mais peso. — É um bom resumo. Agora, como eu disse, há certas informações que preciso sobre a outra empresa. Pagarei bem se me trouxer o que eu pedir. Croyd concordou com a cabeça. — Estou disposto a tentar. Que informações específicas você quer? Mazzucchelli inclinou-se para a frente e baixou a voz, seus lábios quase não se moviam. — O diretor. Quero saber quem está à frente da concorrência. — O chefe? Quer dizer que ele nem mandou um peixe morto como sinal de
ameaça para você? Pensei que era costume observar certas gentilezas nesses assuntos. Mazzucchelli ergueu os ombros. — Esses caras não têm modos. Talvez seja um bando de estrangeiros. — Já tem alguma pista ou devo começar do zero? — Você será um pioneiro. Darei uma lista de lugares através dos quais às vezes eles parecem operar. Também tenho alguns nomes que talvez prestem serviços para eles. — Por que não pegou um deles e interrogou? — Acho que, como você, são contratados independentes, e não membros da família. — Entendo. — E talvez não seja a única coisa que eles têm em comum com você — Mazzucchelli acrescentou em seguida. — Ases? — Croyd perguntou. Mazzucchelli concordou. — Se eu tiver que me meter com ases, vai custar mais do que se fossem pessoas comuns. — Sem problema — Mazzucchelli disse, puxando outro envelope do bolso do paletó. — Aqui está um adiantamento e a lista. Pode considerá-lo como dez por cento do valor total do trabalho. Croyd abriu o envelope, contou rapidamente e sorriu quando terminou. — Onde você recebe a encomenda? — ele perguntou. — O gerente daqui sempre consegue me encontrar. — Qual o nome dele? — Theotocopolos. Theo basta. — Tudo bem. Você acaba de contratar a sutileza em pessoa. — Quando você dorme, acorda uma pessoa diferente, certo? — Isso. — Bem, se isso acontecer antes de o trabalho ter terminado, esse novo cara ainda vai ter um contrato comigo. — Contanto que receba o pagamento. — Então, estamos entendidos. Eles se cumprimentaram com um aperto de mãos, Croyd levantou-se e atravessou o salão. Flocos de neve do tamanho de traças rodopiavam quando ele partiu. Mazzucchelli pegou um novo palito de dentes. Lá fora, Croyd jogou uma pílula preta na boca.

Vestindo calças cinza, blazer azul e uma gravata cor de sangue coagulado, com o cabelo ondulado, mechas grisalhas e as unhas feitas, Croyd estava sentado sozinho em uma mesa ao lado de uma pequena janela do Aces High. Observava as luzes da cidade através da neve jogada pelo vento além de seu salmão assado,
bebericando um Chateau d’Yquem e revisando os planos para o próximo passo, enquanto flertava com Jane Dow, que havia passado por ele duas vezes e se aproximava novamente. Croyd definiu isso mais como coincidência e um bom presságio, pois a desejou com vários corações (alguns deles múltiplos) em diversas ocasiões — e, esperando poder encaixar oportunidade e sentimentos, ergueu a mão quando ela se aproximou e tocou seu braço. Uma centelha mínima estalou, ela parou e gritou “Ai!”, esfregando o local onde o choque havia ocorrido. — Desculpe... — Croyd começou. — Deve ser a energia estática — ela comentou. — Deve ser — ele concordou. — Tudo que queria dizer é que você me conhece, embora não me reconheça nesta encarnação. Sou Croyd Crenson. Já nos vimos por aí, de passagem, e eu sempre quis me sentar com você e trocar umas palavras, mas de alguma forma nossos caminhos nunca se cruzaram tempo suficiente no momento certo. — Essa é uma cantada interessante — ela falou, correndo o dedo por sua sobrancelha úmida —, apresentar-se como o único ás de quem ninguém conhece a aparência. Aposto que um monte de fãs cai nela. — Verdade — Croyd respondeu, sorrindo, enquanto abria bem os braços. — Mas posso provar se esperar um minutinho. — Por quê? O que está fazendo? — Enchendo o ar com íons negativos para você ter aquela sensação deliciosamente estimulante que vem antes da tempestade. Apenas uma dica dos momentos ótimos que eu poderia... — Pode parar! — ela disse, afastando-se. — Isso às vezes provoca... As mãos de Croyd ficaram úmidas, o rosto molhado, seus cabelos emplastaram-se e escorreram na testa. — Desculpe — ela disse. — Que diabos — ele retrucou —, vamos transformar isso em uma tempestade de trovões. — E os raios dançaram entre seus dedos. Ele começou a gargalhar. Os outros clientes olharam em sua direção. — Pare, por favor — ela pediu. — Sente-se por um minuto e eu paro. — Tudo bem. Ela se sentou na frente de Croyd, que secou o rosto e as mãos no guardanapo. — Perdoe-me, foi minha culpa. Eu devia ter cuidado com os efeitos da tempestade em alguém chamada Nenúfar. Ela sorriu. — Seus óculos estão molhados — ela disse, estendendo a mão de repente e tirando-os do rosto de Croyd. — Eu limpo... — Duzentas e dezesseis visões da doçura úmida — ele declarou quando ela o encarou. — Como de costume, o vírus me dotou em excesso em vários aspectos. — Você realmente me vê em toda essa quantidade?
Ele concordou. — Esses aspectos de curinga às vezes afloram em minhas mudanças. Espero que não te incomodem. — Eles são... magníficos. — Você é muito gentil. Agora, me devolva os óculos. — Um momento. Ela limpou as lentes no canto da toalha de mesa, em seguida devolveu-os. — Obrigado. Deixa eu te pagar uma bebida? Um jantar? Um cão d’água? — Estou trabalhando — ela disse. — Obrigada. Desculpe, talvez numa outra hora. — Bom, eu também estou trabalhando. Mas, se você estiver falando sério, eu dou alguns números de telefone e um endereço. Talvez eu não esteja em nenhum deles, mas pego o recado. — Me passe então — ela disse, e ele anotou rapidamente em uma caderneta, rasgou a página e passou para ela. — Que tipo de trabalho está fazendo? — ela perguntou. — Investigações sutis — ele falou. — Envolve uma guerra de gangues. — Sério? Ouvi as pessoas dizerem que você é meio honesto, mas meio maluco. — Estão meio certas — ele respondeu. — Então, me dá uma ligadinha ou passe lá no apartamento. Eu alugo um equipamento de mergulho e podemos nos divertir. Ela sorriu e começou a se levantar. — Talvez eu vá. Ele puxou um envelope do bolso, abriu, empurrou para o lado um monte de notas e tirou um pedaço de papel com algo escrito. — Hum, antes de ir... O nome James Spector diz alguma coisa para você? Ela congelou e ficou pálida. Croyd se viu molhado novamente. — O que eu disse que te incomodou tanto? — ele perguntou. — Você não está brincando? Não sabe, de verdade? — Não. Não estou brincando. — Conhece a musiquinha dos ases? — Algumas partes. — Golden Boy é triste que dói — ela recitou —, se o Ceifador encontrar , desvie o olhar ... é ele: James Spector é o nome real do Ceifador. — Nunca soube disso — ele falou. — Nunca ouvi nenhum verso sobre mim. — Não me lembro de nenhum também. — Fala sério, eu sempre quis saber. — Dorminhoco acordado, come a mesa e o prato — ela falou, lentamente. — Dorminhoco drogado, todo mundo acabado. — Nossa. — Se eu te ligar e você chegar nisso... — Se eu chegar nisso, eu não retorno ligações. — Vou pegar alguns guardanapos secos — ela disse. — Sinto muito pelas tempestades. — Não precisa. Ninguém disse que você fica adorável quando solta
umidade? Ela o encarou. Em seguida, disse: — Também vou trazer um peixe cru para você. Croyd ergueu a mão e mandou um beijo para ela, o que fez com que ele próprio se desse um choque.
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Colapso
Leanne C. Harper
O par de guarda-costas saiu primeiro do Giovanni’ s. Atrás dos óculos escuros, começaram imediatamente a examinar a rua, procurando algum sinal de problema. Ao aceno do homem à direita, o outro saiu antes de don Tomasso, chefe da Família Anselmi, que precisava de ajuda para caminhar. Era idoso, corcunda e obviamente cheio de dores, mas seu ultrapassado terno preto fora costurado sob medida por um alfaiate e passado à perfeição. Ele também observou a rua, virando a cabeça trêmula entre os ombros curvados, como uma tartaruga anciã. A placa vermelha e verde de neon do restaurante revelava e escondia, alternadamente, seu rosto envelhecido. Sua limusine Mercedes preta estava estacionada em fila dupla na entrada do Giovanni’ s. Cercado por seus homens, o don aproximou-se do carro com a imponência que lhe era possível, desafiando quaisquer observadores ocultos. Uma BMW preta estacionou atrás. Ele balançou a cabeça ao reconhecer o motorista antes de entrar na limusine. Um dos guarda-costas o seguiu. Os outros embarcaram na BMW. Iluminadas pela luz laranja e pálida de um poste, duas crianças brincavam na calçada diante de um prédio de tijolinhos à mostra, meio quarteirão para baixo do restaurante. O garoto havia acabado de lançar a bola de beisebol para a garota mais nova quando a Mercedes explodiu, seguida instantaneamente pela destruição da BMW. As bolas de fogo cresceram e juntaram-se, enquanto peças dos carros e alguns tijolos dos prédios próximos despencavam no chão. Rosemary Muldoon continuou a observar as chamas na imensa tela. Não disse nada até a fita terminar. Ficou imóvel, sentada na cadeira esculpida em nogueira-preta na ponta da longa mesa, mas suas mãos agarraram-se aos braços do móvel, até os nós dos dedos ficarem brancos. Chris Mazzucchelli levantou-se da cadeira ao lado dela e tirou a fita do videocassete. Rosemary olhou ao redor da biblioteca do pai, onde as reuniões estratégicas de sua família, os Gambione, sempre aconteciam. Ela deixou quase tudo igual na cobertura, apenas trouxe alguns equipamentos de alta tecnologia, como o videocassete e seu computador, para ajudar a conduzir o império que herdara. Naquele momento, a sala parecia muito vazia, como se até seu pai a houvesse abandonado.
Chris pousou a fita na mesa e acariciou os cabelos castanho-escuros dela. Quando a mão dele tocou seu rosto, Rosemary levantou-se. — Agora só restamos nós dois. Don Calvino e eu. Três dons mortos em questão de semanas, e nem sabemos quem está nos destruindo, mas somente quem estão usando para isso. — Ela sacudiu a cabeça. — As Cinco Famílias nunca enfrentaram uma ameaça como essa. Não estamos preparados para lutar nessa escala. Perdemos a maioria dos pontos de droga no Bairro dos Curingas. O Harlem parou de pagar nossa parte das vendas. Estamos sendo atingidos por cima e por baixo. Eles assumiram nosso maior laboratório de drogas no Brooklyn. — Precisamos estar preparados. Você é o único don ativo que restou. Falei com os capos de Tomasso: estão todos conosco, como os outros. Só espero que eu possa conduzi-los na direção correta. Nesse momento, estou tentando manter os negócios andando para termos dinheiro e podermos sobreviver e contra-atacar. Calvino está tentando negociar. Até agora, não parece ter funcionado. Tínhamos os dons remanescentes vigiados o tempo todo. Foi assim que conseguimos essa fita. — Chris pegou-a e jogou para o alto. — Explosivos controlados remotamente, explosivo plástico, creio eu. Provavelmente estavam tendo a visão dos carros para ter certeza de que pegariam don Tomasso. — Então eles sabiam sobre as crianças. — Rosemary ergueu os olhos para ele. — Provavelmente. — Chris deu de ombros. — Até agora, não tiveram muito cuidado com baixas de civis. São terroristas. — São bastardos — Chris assentiu, e Rosemary sabia que ele já estava cuidando dos detalhes para rastrear os explosivos. Uma das coisas que havia aprendido nos últimos meses de trabalho era a incrível capacidade do homem para atingir seus objetivos e desejos na posição de líder de confiança das famílias. Ela sabia que nunca seria aceita pelos capos como chefe dos Gambione, que exigiam um homem como cabeça. Por isso, Chris cuidava das coisas em público, e ela, Maria Gambione, atuava nos bastidores. Porém, não funcionava tão bem assim. Ele quase conseguia ler a mente dela. Tinha a experiência prática que lhe faltava. Formavam uma bela equipe. Sem Chris, ela nunca teria conseguido. — Os Punhos Sombrios estão causando problemas, mas eu não achava que tivessem organização para conseguir tudo isso. Por outro lado, sabemos que estão trabalhando com os Garças Imaculadas e os Lobisomens do Bairro dos Curingas. Juntos, estão nos dando muito trabalho. Mas um punhado de gangues... — Com o líder certo... — Rosemary estendeu as mãos. — Com o líder certo, qualquer coisa é possível. Mas teríamos ouvido falar dele. Como poderiam mantê-lo em segredo desse jeito? — Chris ergueu os ombros. — Vou verificar, mas não vou ficar esperando de braços cruzados. Tive outra ideia. Pense no assassinato de Tomasso. Aqueles carros estiveram sob vigilância 24 horas por dia por equipes formadas pelos homens mais confiáveis. Como conseguiram plantar aquelas bombas? Ele puxou uma cadeira e sentou-se, recostando-se para trás. — Como? — Rosemary aprendera, graças à faculdade de Direito, a não ficar impaciente demais com o uso ocasional do método socrático por Chris.
— Ases, novamente. Como com don Picchietti. Quem mais conseguiria aparecer e desaparecer sem ser notado? Ninguém sabe realmente quantos existem, quem são ou o que podem fazer. E se alguns deles decidiram que usar roupas chamativas e ser altruísta era estúpido? Curingas também. Veja os Lobisomens. Pense nos limpos. É um exército bem violento do qual estamos falando aqui. Perceba onde os atos acontecem na maior parte do tempo. No Bairro dos Curingas. Talvez seja porque nós o controlemos e eles estão tentando nos pegar, ou talvez porque os curingas decidiram que querem sua parte na ação. — Chris inclinou-se para a frente para enfatizar sua opinião. — Se esses garotos não são ases, têm alguns trabalhando para eles. E eu acho que esse é o caminho. Se não tivermos nossos próprios ases, seremos destruídos. Não poderemos concorrer. — Gosto disso. Poderia usar a Promotoria para conseguir voluntários. Um pouco de desvio dos esforços deles e vários de nossos problemas poderiam ser resolvidos. Também conseguiremos ases de melhor qualidade dessa forma. Pena que muitos dos grandes nomes ainda estejam na excursão da OMS. — Rosemary concordou, mais entusiasmada com esse plano do que estivera com qualquer outro já havia algum tempo. — Bom. Você consegue contratar alguém? — Para ser honesto, já contratei. Temos um detetive chamado Croyd fazendo algumas verificações e um nome de peso, Pancada, que será muito útil em uma briga. Claro que não serão de “alta qualidade” vindo de um elemento criminoso como eu. — Chris se aprumou e abaixou o olhar para ela, tentando esconder uma risadinha. — Serão. O elemento criminoso não é tão mau assim. — Rosemary estendeu o braço e puxou-o para beijá-lo.

Nômada desceu a rua apinhada de East Village tentando manter a paciência com o caminhar de C.C. Ryder, como se estivesse passeando no shopping. Parecia que a cada três metros a ruiva de cabelos espetados via algo que precisava ter. Nômada estava prestes a sugerir que voltassem ao loft da compositora quando ouviu um sotaque sulista. — Ei, vocês aí, qué pasa? — O hiperativo corpo adolescente dentro de um collant com estampa de tigre e tênis dourados pertencia à sobrinha de Jack, Cordelia. Ela saiu do restaurante no qual acabara de entrar e agarrou Nômada e C.C. Ryder pelos cotovelos, para levá-las até o Riviera antes que pudessem esboçar um protesto. C.C. rapidamente se livrou das mãos dela quando entraram, mas nenhuma das mulheres se opôs quando Cordelia imediatamente conseguiu uma mesa. Nômada aprendera que era inútil resistir, a menos que quisesse ter uma adolescente excessivamente ferida nas mãos. — Então, cês viram o apelo da Rosemary aos ases pela televisão? — Cordelia abriu e fechou o cardápio no mesmo movimento. — Vai entrar nessa, Nômada?
— Não me pediram nada — ela escolheu se demorar com o cardápio. — E você? Olhando sobre o cardápio grande demais, Nômada ficou surpresa ao perceber a expressão de repulsa no rosto de Cordelia. Possivelmente pela primeira vez, ela conseguiu mantê-la em silêncio. — Eu, hum, não faço mais isso. — Cordelia abriu o cardápio mais uma vez e o encarou fixamente. — Posso machucar alguém, sabe? Nunca mais vou fazer isso de novo. Não é correto. — Não sei se é uma boa ideia. Vigilantes ases não é o que precisamos nesta cidade. — C.C. olhou de Cordelia para Nômada antes de pedir licença e se levantar. — Então, você tem visto Jack? — Cordelia acompanhou o avanço de C.C. até o fundo do restaurante com atenção, antes de se virar para Nômada com olhos grandes e inocentes. — Vi. Ele perguntou se eu tenho te visto. Já pensou em ligar para o seu tio de vez em quando? — A irritação de Nômada era evidente em sua voz rouca. — Estou muito ocupada trabalhando para a Global Fun and Games e tudo o mais... — E você não quer mesmo falar com ele, certo? — Não sei o que dizer... — Cordelia enrubesceu. — Digo, é como se eu não o conhecesse mais. Você não entende. Fui criada na Igreja. Aprendi que ser um homo... Que ser como Jack é um dos piores pecados que existem. — Não é contagioso, e ele é seu tio. Arriscou a vida por você, e você nem dá uma ligadinha para ele. Fico feliz que seja tão rígida com o que é certo e errado. — Nômada parecia enojada e inconscientemente fez gesto de desdém com as mãos para a garota. — Michael faz bem para ele. Nunca vi Jack tão feliz. — Ah, é? Michael é um filho da puta, isso sim! Eu o vi numa boate no Village na semana passada. Estava com alguém, e não era o Tio Jack. — Cordelia estava furiosa. — Tudo bem aqui? — C.C. sentou-se e olhou para as duas mulheres. — Tá tudo bem. — Cordelia acenou para chamar a garçonete. — Vai cantar no meu evento beneficente ou não? — Vai ficar pedindo e eu continuarei a dizer não. — C.C. sacudiu a cabeça em exasperação afetuosa. — Só quero escrever minhas músicas, gravar algumas coisas em casa. Não preciso de um público e, com certeza, não quero um público. — C.C., o público precisa de você. É um evento beneficente para as vítimas do Carta Selvagem e da AIDS. Você, mais do que ninguém, deveria simpatizar com a causa. Nômada viu o rosto de C.C. ficar tenso com a menção do vírus Carta Selvagem. Foram anos de drogas, terapias e Deus sabe o que mais para trazê-la de volta à humanidade. O maior pesadelo dela era se transformar novamente em um vagão de metrô vivo formado por nada mais que ódio. Ou algo pior. Ela havia falado muito pouco sobre isso com Nômada. C.C. Ryder controlava rigidamente suas emoções, nunca permitindo que excedessem um determinado nível. Se continuasse a aceitar as dificuldades e
tomar os antidepressivos prescritos, não conseguiria compor. E tornar-se incapaz de escrever músicas era ainda pior do que a perspectiva de voltar a ser vagão. Então, ela evitava qualquer situação com a qual não pudesse lidar. Nem mesmo Tachyon conseguia lhe dizer o que poderia desencadear a série de mudanças internas que resultariam em outra transformação. Nômada não entendia como C.C. conseguia viver naquele estado de medo constante e ainda assim criar canções, mas entendia por que queria ficar longe da maioria dos seres humanos. E aprovava a decisão. — Não. — A voz de C.C. havia ficado tão tensa quanto seus músculos, embora ficasse claro que estava controlando o efeito que a discussão lhe causava. — Poderia ser seu grande retorno... — Cordelia, não tem como retornar se você nunca esteve lá antes. — C.C. forçou um sorriso. — Tenho certeza de que há candidatos muito mais prováveis por aí. — Suas músicas foram gravadas pelos melhores: Peter Gabriel... — Cordelia mal parou seu discurso diante da chegada dos hambúrgueres. — Simple Minds, U2... É hora de você mostrar a eles tudo o que pode fazer. Cansada da discussão e certa de que C.C. estava se controlando, Nômada expandiu sua mente pela cidade, perscrutando o emaranhado de inteligências bestiais. Escuridão, luz forte, fome, satisfação; a tensa ansiedade do caçador, o frio, o medo trêmulo dos perseguidos; morte, nascimento; dor. Tanta dor viva a cada minuto — por que esses tolos humanos insistiam em criar ainda mais dor para si com joguinhos? Ela tocou um esquilo com as costas quebradas que fora atingido por um carro que passava perto do Parque Washington, parando seu coração e cérebro simultaneamente. No Central Park , um filhote cinzento de gato correu para um bosque de carvalhos e escondeu-se nos arbustos, girou e arranhou o nariz do doberman que o perseguia. Nômada sentiu o triunfo do gato por um instante, antes de ele reconhecer seu toque e guinchar de medo. Sem sentir a necessidade de forçar o contato, ela prosseguiu. Permitiu-se outro instante para se certificar de que a ninhada mais recente estava a salvo nos túneis de serviço aquecidos, embaixo da Rua 42. Quando seus olhos voltaram ao normal, Nômada percebeu que as duas haviam parado de conversar. — Suzanne, você está bem? — C.C. olhou para Nômada e, em seguida, assentiu lentamente. — Está sim, Cordelia. — C.C. chamou a atenção da garota de volta para ela, dando tempo para que Nômada se recompusesse. Às vezes, ficava difícil voltar ao mundo lento e incoerente dos seres humanos. Um dia, pensou, olhando para C.C. Ryder, ela não voltaria. Era a única pessoa que ela conhecia que entendia isso. Um dia, ela perguntaria o que C.C. sentiu quando era a Outra. C.C. raramente mencionava o fato, mas, quando o fazia, Nômada ainda via uma necessidade temerosa por trás daqueles olhos. — Hum, tá. Bem, a GF&G, sabe, ia amar ter você no seu retorno. A Funhouse é um lugar intimista. Perfeito para você e sua música. — Cordelia inclinou-se, com mãos estendidas. — E, sabe, Xavier Desmond é um dos seus
maiores fãs. — Meu Deus, garota, você está virando uma agente bizarra. — C.C. recostou-se na cadeira anos 1950, coberta de plástico. — E eu já consegui um agente. Isso já é ruim o bastante. — Bom, olha só, preciso voltar para casa. Já está tarde. Adorei ver vocês, meninas. — Cordelia deixou algumas notas na mesa e se levantou. Logo em seguida, pegou a bolsa de couro de tatu que estava pendurada na cadeira. Percebendo o olhar de Nômada para o animal morto, empurrou a bolsa para trás e caminhou de costas até a porta, ainda insistindo com C.C. — Você tem algumas semanas para tomar sua decisão. O show vai ser no fim de maio. Bono disse que está ansioso para conhecê-la. Little Steven também. — Boa noite, Cordelia. — C.C. Ryder estava obviamente chegando ao fim da paciência. — Estou velha demais para esse tipo de coisa, Suzanne.

Contorcendo-se embaixo das ombreiras do terninho que Rosemary havia comprado para ela, Nômada saiu do elevador no andar da amiga. Prontamente, a recepcionista a reconheceu. — Bom dia, srta. Melotti. Vou avisar à srta. Muldoon que a senhorita chegou. — Obrigada, Donnis. — Nômada sentou-se, desconfortável, em uma das poltronas espalhadas ao redor da sala de espera. — Por pouco a senhorita não encontra o senhor Goldberg. Ele saiu faz poucos minutos para suas audiências de hoje. — A mulher mais velha atrás da máquina processadora de textos sorriu para Nômada, condescendente, enquanto apertava o número do interfone de Rosemary e a anunciava. — Pelo menos desta vez tudo está no horário. Pode entrar direto. Nômada assentiu e levantou-se de novo. De costas para a recepcionista, apertou os olhos pela dor nos pés dentro dos sapatos de salto. Odiava esses dias, quando precisava se emperiquitar toda para falar com Rosemary. Bateu duas vezes à porta e entrou para ver a promotora adjunta com o telefone encaixado entre o ombro e a orelha. Como de costume, Nômada sentou-se à grande mesa de carvalho e ouviu a conversa. — Maravilhoso, tenente. Estou muito feliz que a pista para o laboratório de drogas tenha dado certo. — Rosemary revirou os olhos para Nômada, enquanto assinava papéis e balançava o telefone. — No final das contas, não era uma operação da Máfia. Alguma pista de quem seja o dono? Se pudermos descobrir quem está por trás dessa estúpida guerra do crime, poderíamos dar um bom passo para impedi-la — Rosemary falou para o interlocutor invisível. — Verdade, mas, enquanto estão se exterminando, também machucam gente inocente. E prosseguiu. — Bem, o senhor pode ficar sossegado, pois vou enviar imediatamente quaisquer ases que se voluntariarem. O senhor está certo... Atividade sem
coordenadas é perigosa para todos os envolvidos. Fico feliz em poder ajudar. Certo. Eu o mantenho informado. Tchau. — Desligou o telefone e, em seguida, virou-se para Nômada: — Estouramos um laboratório de drogas na noite passada. — Recostou o queixo na mão e sorriu. — Fiquei feliz. Nômada inclinou a cabeça, olhando através do gabinete para a porta de madeira escura. — E curiosa. — Rosemary levantou-se e verificou se a fechadura estava bem trancada. — Por que você não se voluntariou? Nômada percebeu, pela centésima vez, que ela não tinha problema em andar de salto alto. Ergueu os olhos para ver como a encarava, um músculo saltado em sua mandíbula. — Você nunca pediu. — Nômada ficou desconfortável. Ela odiava aquilo. Culpa era para humanos. Ou animais de estimação. — Eu não pensei que precisasse. Pensei que fôssemos amigas. — Elas se encararam, raivosas, como duas gatas em uma batalha territorial. Rosemary rompeu o impasse. — É claro que somos. A promotora sentou-se e se recostou na poltrona. — Eu devia ter pedido. Mas estou pedindo agora: preciso de sua ajuda. — O sorriso de Rosemary lembrava a Nômada um bocejo de tigresa. Dentes, muitos dentes. Sentiu frio. — O que posso fazer? Eu falo com pombos. — Nômada examinou o rosto da outra em busca de falsidade. — Bem, pombos veem as coisas. E, às vezes, tenho certeza de que veem coisas interessantes. E eu gostaria de saber sobre essas coisas. — Qual de você? A promotora ou o don da Máfia? Rosemary olhou rapidamente para a porta e de volta para Nômada. Depois de um instante de hesitação, sorriu. — Você ficaria surpresa ao descobrir o quanto os interesses da promotora e do don estão interligados. — Sei disso. — Nômada balançou a cabeça. — E, não, não acho que posso ajudar. — Para com isso, Suzanne. Pessoas estão sendo feridas lá fora. Podemos impedir. — Rosemary apontou para a janela. — Pessoas matando outras pessoas. — Nômada concordou. — Ótimo. Quanto menos gente, mais eu gosto. — Vejo que o jogo está duro hoje. — Rosemary relaxou na cadeira. — Já ouvi essa. — Estou falando sério. — Nômada encarou a velha amiga de cima a baixo. — Eu sei, mas preciso de você. Preciso de suas ligações e de suas informações. E não somente seres humanos estão sendo feridos. — Estendeu as mãos sobre os papéis em cima da mesa. As duas observaram os dedos tremerem até se transformarem em punhos fechados. — Don Picchietti e don Covello já estão mortos. Acabaram de derrubar don Tomasso. Ele era meu padrinho. Por favor, Nômada. Me ajude. — Rosemary implorou, erguendo os olhos para a
outra mulher. Ela insistiu, tentando convencer Nômada. — Picchietti foi atingido com picador de gelo na orelha. Ninguém ao redor dele viu nada. — Abriu um sorriso triste. — E, para variar, não estavam mentindo. — Você não sabe o que está fazendo. Mas saiba que minha ajuda não vai machucar nada e ninguém. — Nômada sentiu um gosto amargo por ceder e raiva de si mesma, mas não poderia abandonar a amiga. — Obrigada. — Rosemary relaxou e pegou sua caneta, girando-a entre os dedos. — Tem falado com Jack? — Quase nunca. — Ela deslizou uma parte da consciência até o rato que havia posto para vigiar Jack Robicheaux durante seu trabalho nos túneis do metrô. Primeiro, sorriu para ele. Em seguida, virando a cabeça do animal em direção a Jack, o viu através da visão em preto e branco e turva do rato. — Você poderia avisar que eu gostaria de vê-lo? — Rosemary estava obviamente cansada de duelar com Nômada. — Posso falar com ele. — Nômada respondeu. — Mas sem garantias. Quem é o tenente com quem vou tratar? — Não seja ridícula, Suzanne. Você vai entregar tudo que descobrir diretamente para mim. — Quando Rosemary a encarou, Nômada não encontrou nenhuma amizade em seus olhos.

Com as mãos crispadas sobre uma pilha de casos, Rosemary se demorou na janela do gabinete. Estava temerosa por Chris. Até os inimigos descobrirem quem estava por trás da guerra nas famílias, ele estava em perigo extremo por ser o chefão público dos Gambione. E ainda tinham poucas pistas, embora a cada dia a Máfia sofresse uma nova baixa. Haviam pegado vários tarefeiros, traficantes, bandidinhos e extorsionários para tentar chegar a uma pista até o alto escalão. Nada funcionou. Os criminosos de nível menor não tinham informações sobre as células superiores. Alguém tinha organizado tudo brilhantemente, e estava destruindo seu pessoal. Ela sacudiu a cabeça sem perceber, uma parte preocupada com as famílias, enquanto outra tentava acompanhar os casos do gabinete. Dependia cada vez mais dos assistentes para ajudar nos processos dos casos que, alguns meses antes, teria resolvido pessoalmente. Ela se perguntou se alguém havia percebido e decidiu tomar mais cuidado. Mas era difícil equilibrar tudo, muito mais difícil do que havia imaginado. — Tem alguém aqui para vê-la, srta. Muldoon. — A voz baixa de Donnis interrompeu seus pensamentos tão abruptamente que a fez pular. — Quem é, Donnis? Estou com a mesa cheia de casos para resolver. — Bem, srta. Muldoon, ela diz que se chama Jane Dow. O nome era familiar, embora Rosemary não o ligasse a nenhuma pessoa. Em seguida, lembrou: Nenúfar . O que a garota queria?
— Pode pedir para entrar. A garota de cabelos avermelhados, não, a jovem, Rosemary se corrigiu, fechou a porta cuidadosamente depois de entrar. — Obrigada por me receber, srta. Muldoon. — Sente-se, por favor, srta. Dow. Em que posso ajudá-la? Nenúfar baixou os olhos para as mãos que se retorciam, e Rosemary viu gotículas de líquido formando-se na testa da jovem. Rosemary imaginou se o suor era a extensão de seu poder de “ás”. Simplesmente o que ela precisava. — Bem, acho que talvez eu possa fazer algo pela senhorita. Ouvi dizer que está à procura de ases e... Sei que não sou muito ás, mas achei que poderia trabalhar para a senhorita. Ajudar. — Pela primeira vez, Nenúfar encarou Rosemary diretamente, e deu de ombros. — Se tiver algo que eu possa fazer. — É possível. — Rosemary suspirou. Não conseguia imaginar o quê, mas não estava em condições de recusar qualquer ajuda naquele momento. — Qual é exatamente a extensão de seu poder? — Bem, eu controlo a água. Sou muito boa em enchentes. — Nenúfar ficou corada e a água em seu rosto brilhou. Ela parecia muito jovem. Rosemary ouviu um pingar, mas escolheu ignorar. — Toda a água, em todos os lugares? Digo, você tem um alcance? Consegue gerá-la ou pode usar a água ao seu redor? — Rosemary parou e sorriu, como se pedisse desculpas. — Desculpe a sabatina, estou apenas tentando pensar onde você se encaixa. — Precisa estar bem perto, então posso usar qualquer fonte d’água e controlar sua força. Também posso mudar o equilíbrio eletrolítico em pessoas e fazê-las desmaiar. — Nenúfar parecia menos envergonhada agora que estava sendo levada a sério. Rosemary não ouvia mais o pingar. — Estive pensando que seria boa no controle da população, derrubando as pessoas sem realmente machucá-las com uma pequena enxurrada, ou causando distrações, se necessárias. — E outras formas de água, vapores de alta pressão, por exemplo? — Não sei. Nunca tentei. — Nenúfar parecia interessada na ideia. — Tudo bem, com isso já me parece que poderia ser muito útil. Bem-vinda a bordo, Nenúfar. Ou prefere Jane? — Rosemary pensou sobre as batidas que estava tentando organizar em alguns dos pontos de droga dos Punhos Sombrios. Alguns canos estourados seriam capazes de provocar uma quantidade incrível de danos. Ela abriu um sorriso largo para a jovem, sem de fato vê-la. — Jane, por favor. A senhorita pode me encontrar no Aces High. Trouxe um cartão. Só me avise o que posso fazer. — Jane parecia feliz com a aceitação. Rosemary levou meia hora para se familiarizar com os casos empilhados em sua frente antes de chamar Paul Goldberg. Sua experiência fazia dele uma escolha óbvia para ser seu assistente imediato, e Rosemary tirava vantagem disso. Paul entrou e sentou-se sem ser convidado. Ele carregava um grande maço de relatórios, que derrubou na mesa, fazendo um grande barulho. — As últimas informações sobre nossos casos. Ganhamos contra Malerucci. — Com a menção do nome, Rosemary olhou por cima da papelada. — Sei que
você não ligou muito para ele, mas decidi seguir em frente. E resolvi. Talvez não tenha ciência disso, mas estamos recebendo críticas sobre o número de casos da Máfia que estamos processando, ou melhor, não estamos. Os policiais vieram até mim várias vezes reclamar sobre estar fazendo todo o trabalho sem receber apoio nenhum da Promotoria. — Os policiais estão sempre reclamando. Você sabe disso, Paul. Eles não entendem que temos essa coisa da Constituição, que devemos prestar atenção quando levamos alguém para o tribunal. Bom trabalho no caso de Malerucci, mas você arriscou. O júri poderia ter escolhido qualquer lado com base naquela prova. — Especialmente depois de alguém ter entrado no Laboratório Pericial e destruído a maior parte do pó. — Paul cruzou as pernas sobre a mesa de Rosemary e recostou-se na cadeira. — Ainda não conseguimos rastrear esse vazamento. — No futuro, por favor, siga minhas instruções sobre quais casos levar adiante. Eu agradeceria, falando estritamente como sua chefe. — Ela sorriu para ele. — Chefe, eu percebi uma tendência nos casos em que você deu ok, e não fui o único. Por que não vamos atrás da Máfia? Com essa guerra em curso, poderíamos tirar um monte de gente ruim de circulação. Seus recursos estão sobrecarregados, não conseguem proteger seu pessoal todo. — Ele estendeu a mão e bateu com o dedo indicador esticado numa pilha de papéis. — Está tudo aqui. Eu até achei uma possível evasão fiscal de Chris Mazzucchelli. O que me diz? Vou até ele. — Não. — Rosemary lançou seu melhor olhar inescrutável de madonna. — Quero esperar até a guerra derrubar mais alguns. De qualquer forma, a Máfia parece estar se autodestruindo. Acho que poderemos poupar esforços. — Sabe que, se pusermos algumas dessas pessoas atrás das grades, talvez salvemos sua vida. — Paul a observava com atenção, o que deixou Rosemary desconfortável. — Eu tomo as decisões aqui. — Seu tom de voz era uma tentativa de calar Paul, e funcionou, mas ela ainda não gostou do olhar que recebeu. Depois de trabalharem a estratégia para os vinte casos mais urgentes, os dois relaxaram. De muitas formas, aquilo a lembrava do trabalho com Chris. Ela vinha com o plano e ele o executava. A diferença é que, com Paul, tudo estava de acordo com a lei. Já passava das seis e Rosemary estava levando sua pilha de casos, e Paul, até a porta, quando ele disse: — Você frequentou a Holy Innocents? — perguntou, subitamente, sobre a escola primária católica de Rosemary. — Eu? Você está brincando? É apenas para crianças italianas ricas. Eu fiz a boa e velha escola primária na 92, no Brooklyn. — Rosemary examinou seu rosto. — Um amigo estudou lá. E me contou uma coisa ainda mais louca outro dia: acha que você parecia com Rosa Maria Gambione, mas crescida. Que bobagem, não é? Ela morreu no início dos anos 70. Até amanhã. — Paul balançou a cabeça para se despedir, e Rosemary pensou ter visto um alerta nos
olhos do homem... ou uma acusação.

Nômada moveu-se rapidamente pelos túneis de manutenção do metrô, acompanhada pelo gato preto e uma de suas filhas, uma amarela rajada, maior que ele. Ela havia observado Jack voltar ao seu antigo lar, na estação abandonada do século XIX, através dos olhos de uma sucessão de ratos. Nômada esperou para alcançá-lo quando estivesse no subterrâneo. Sempre parecia mais natural falar com ele ali, porque, quando o encontrava lá em cima, ele ficava diferente. Na verdade, os dois ficavam. Ela segurou o surrado sobretudo azul e apressou-se para interceptá-lo antes que ele pudesse sair. O gato preto a acompanhava, enquanto sua filha saltava adiante para identificar problemas. Nômada chegou à porta e a abriu quando Jack encostou na maçaneta. O homem atarracado e pálido sorriu, surpreso. — Ei, você. — Ele abaixou a caixa que estava carregando e ajoelhou-se para deixar o gato preto farejar as costas de sua mão. O outro manteve distância, ficando na frente de Nômada, para protegê-la. — Há muito tempo que não te via. Fiquei um pouco preocupado. — Jack se levantou para encarar a mulher de roupas surradas. — Entre e sente-se. — Você esteve ocupado. — Nômada jogou o cabelo desgrenhado de volta para o rosto e agachou-se dentro da pilha de vestidos e calças mal ajustados que usava. Sabia que, com a voz rouca e alguns tremores, aparentava ter ao menos 60 anos. — Você também. — Jack olhou-a, hesitante, abrindo caminho nas escadas acarpetadas. Ele sorriu. — Poderia ganhar um Tony por isso, sabia? Conheci aquele produtor da Broadway, ele está procurando uma atriz. — Amigo do Michael? — Nômada esticou-se ao sentar na ponta do sofá vitoriano de pelo de cavalo. A amarela sentou-se, tensa, aos seus pés. O preto recostou-se na perna de Jack e ergueu os olhos para ele. — Sim. Por que não vem para cá e passa um tempo conosco, para conhecê-lo melhor? Vai gostar dele. — E por que você não conhece o Paul? — Nômada dobrou a perna e olhou para Jack, sentado na poltrona, também antiga, diante dela. — Não acho que um almofadinha acharia muita graça em um trabalhador ferroviário. — E eu não acho que Michael aprovaria meu estilo. — Nômada estendeu as camadas de roupas desencontradas sobre o sofá. — Então chegamos a um impasse, não é? Não gosto disso, nem você, mas nos tornamos vítimas em nossa vida dupla como pessoas normais. — Jack parecia triste. — Tem visto Cordelia? — Sim. — Nômada deu de ombros. Outro dar de ombros, outra fuga de responsabilidades. Ela endireitou-se. — Tentei. Não sei. — Se a vir de novo, diga a ela... Diga a ela que eu entendo. Afinal, eu
também cresci lá. — Jack correu a palma das mãos sobre seu amarrotado jeans preto. — Então, você me rastreou. Precisa de alguma coisa? Jack estendeu a mão para coçar atrás da orelha do gato preto, e os dois ficaram ouvindo-o ronronar por alguns instantes. — Rosemary quer vê-lo. — Nômada puxou os joelhos para cima e a armadura de volta ao seu redor. Recusava-se a encarar Jack . — Não vou. — Jack , ela só está tentando manter tudo legal. Ela pode precisar de ajuda. — Pelo amor de Deus, Nômada, ela está do lado dos bandidos. Ela é a cabeça da maldita Máfia. — Ele se levantou e começou a caminhar sobre os tapetes orientais. O gato preto também se ergueu e juntou-se a ele, em seguida olhou para Nômada e se deitou. Ela recebeu um alerta do gato, mas não sabia se para ela mesma ou para Jack. — Para que diabos Rosemary precisa de mim? — Bem, você poderia ajudar com a vigilância. Poderia... manter os ouvidos bem abertos para qualquer coisa estranha que acontecesse. — Ah, claro. Eu poderia ser o infiltrado na comunidade gay. Não, talvez ela pense que os répteis também estejam contra ela. Ou talvez apenas me queira para arrancar um ou dois pés estratégicos com mordidas. — Jack virou-se para encarar Nômada. — De jeito nenhum! — Jack , Rosemary só precisa de alguém ao lado dela... — Alguém do lado dela?! Ela já tem a Máfia inteira! Não consigo acreditar que um homem-crocodilo faria tanta diferença assim. — Caminhou até o sofá e olhou para Nômada, que se recusava a erguer os olhos e encontrar os dele. — Suzanne, fique fora disso. Ela não se importa mais com você. Ela vai usar você. Matar você. E nem vai hesitar. O gato preto se levantou e caminhou até ficar entre os dois. A amarela soltou um grunhido profundo, e os pelos nas costas se ergueram. Jack recuou alguns passos. Nômada deslizou do sofá e ficou em pé, encarando os olhos verdes de Jack . — Ela é minha amiga. Na verdade, acho que a única. Em seguida, saiu às pressas até as escadas. Os gatos a seguiram. A amarela não tirou os olhos de Jack enquanto atravessava a sala estreita. O gato preto andou alguns passos, parou e olhou de volta para Jack antes de saltar pelas escadas e alcançar as duas.

— Bom, não importa quem sejam, você vai mantê-los ocupados. — Chris se serviu de um pedaço do atum grelhado de Rosemary. — Você disse que não estava com fome — Rosemary segurou o garfo dele. — Eu menti. Com certeza, não é a Yakuza. Eles estão sofrendo baixas também. Perderam um dos principais homens aqui na cidade. Parece que nossos amigos não vão atrás de ninguém se não puderem acabar com a Máfia deles. Seu programa de confusão autorizada está cobrando seu preço. Eles podem não
estar fora, mas certamente estão em baixa. Está tendo algum problema com isso? — Não. Agora que os capos estão todos seguindo nossas instruções, sei de tudo que está acontecendo em qualquer lugar entre as famílias. Fica mais fácil. — Odeio dizer isso, mas talvez você precise arrumar uma baixa para nós. Nada muito grave, só para acalmar qualquer suspeita. — Chris olhou ao redor na cozinha brilhante. Era o único lugar alegre naquela cobertura escura e sombria. — Tem biscoitos aí? — Acho que não. Você está sabendo de algo que eu não sei? — Rosemary examinou o rosto de Chris. — Não, só acredito em prevenção. Não quero que ninguém veja um padrão no que os ases estão fazendo. — Vou ficar bem. Quem me ligaria, promotora adjunta, à Família Gambione? Estou mais preocupada com você. — Rosemary empurrou seu prato. Não mencionaria as suspeitas de Paul para Chris. Ela já sabia o que ele diria. — Que tipo de segurança você está carregando? — Beretta, claro. — Chris abriu sua jaqueta de couro preta. — Não é o que estou perguntando. — Eu sei, eu sei. Às vezes, você não tem senso de humor, sabe? Estou com alguns rapazes de confiança. Estão comigo 24 horas por dia. Um deles está ali fora agora. Outros três lá embaixo. Estou coberto, meu amor. Esses caras me devem; as almas deles são minhas. — Fale sobre o que está acontecendo com nossas operações regulares. — Rosemary ficou aborrecida com a possessividade dele em relação ao grupo de homens que era dela, mas concluiu que era apenas sua paranoia habitual. — Não se preocupe com isso. Eu já cuidei de tudo. Cada uma das famílias tem um representante que se reporta a mim diretamente. Se houver qualquer problema, eu resolvo. Precisamos descobrir contra quem estamos lutando e como derrubá-los. — Chris sorriu feliz para o teto. — Sabe, acho que aqueles garotos ainda não gostam do meu rabinho chinês. — Ainda estou trabalhando nisso. Já investigou os vietnamitas? A gangue dos Punhos Sombrios no Bairro dos Curingas está envolvida com eles. Isso já ficou claro. — Rosemary decidiu não pressionar a questão do seu briefing normal. Chris estava certo, havia coisas mais importantes em que pensar. — Bem, estou tentando infiltrar alguém lá. Tem ideia de como é difícil encontrar um oriental na Máfia? — Chris suspirou de forma elaborada. — Estou tentando pegar emprestado alguém da Yakuza. — Boa ideia. Ouça, Chris, preciso de um tempinho sozinha hoje à noite, tá? — Rosemary hesitou. — Para fazer planos. — Vou encontrar alguma coisa para me manter ocupado. — Ele soltou uma risadinha que preocupou Rosemary. — Fique longe de problemas. Não sei o que farei se te perder. — Nem eu. — Chris se levantou e beijou o alto da cabeça dela. — Talvez eu não apareça por alguns dias. Não se preocupe comigo. Só vou cuidar dos negócios. Quando ele se foi, Rosemary entrou na biblioteca. Estava tentando manter
suas duas vidas em ordem, mas ficava cada vez mais difícil. Ela havia prometido a si mesma que tiraria a Máfia dos ramos de drogas e prostituição. Mas, agora que a guerra estava em curso, não havia como fazer isso. Precisava desesperadamente de dinheiro. Proteger as pessoas lhe causaria problemas no gabinete. Paul Goldberg perguntou abertamente se os informantes não conseguiriam encontrar mais sujeira da Máfia. E aquele comentário sobre Maria Gambione? Meu Deus. Devia ter alguma coisa que ela pudesse fazer sobre ele. Matá-lo, antes que ele espalhasse suas suspeitas? Mas era o namorado de Suzanne. O que poderia fazer? Ela pensara que seria fácil conduzir as coisas por trás de Chris. Mas, em vez disso, parecia que ele estava cada vez mais controlando o que acontecia nas ruas, e não do modo como ela havia planejado. Rosemary descansou a cabeça na mesa entre os braços esticados. Sabia que não estava fazendo direito seu trabalho na Promotoria. Mas era apenas uma questão de tempo até a maldita guerra acabar e ela poder voltar a fazer o que deveria. Então, poderia se livrar das drogas, da prostituição e da corrupção. Assim que eles tivessem ganhado a guerra. Ela acordou do pesadelo com um choro baixinho, rapidamente contido pela atmosfera pesada da biblioteca. Sonhou com uma imagem religiosa que vira quando criança, a Crucificação. Porém, era seu corpo alquebrado que estava no centro da cruz, com Chris pendurado à sua direita e seu pai à esquerda. Rosemary envolveu-se com os braços para impedir a tremedeira.

Nômada acordou de repente, quando o alerta de perigo tão insistente quanto as garras de um gato se espalhou por sua pele. Ela separou as correntes de pensamento e encontrou a mensagem que trazia o grito por ajuda. Ainda houve um choque quando reconheceu Jack Robicheaux no fim do beco. A força e a claridade da mensagem lhe disseram que a criatura que observava a cena era o gato preto. Então, foi onde ele esteve nos últimos dias. Quando desapareceu, ela não o seguiu mentalmente, exceto para garantir que estava vivo. E bem. Silenciosamente, ela lhe disse para voltar para casa. Ele rosnou para a sugestão. Jack e o gato se aproximaram desde a primeira vez que se viram. A curiosidade do preto em relação ao homem/grande lagarto havia criado um laço forte entre eles. O animal estava concentrado na cena no fim do beco iluminado pela luz da rua: Jack encurralado por um homem muito maior, que o provocava. Contrariando sua vontade, Nômada permitiu que o preto transmitisse mais e a levasse até a situação. — Ei, bichona! Acho que fugir para esse beco não foi muito inteligente, hein? — O brutamonte que se agigantava sobre Jack era feio, vesgo e tinha uma testa alta. Nômada o reconheceu: Pancada. Ela o vira uma vez, na prisão de Tombs, com Rosemary. Era tão malvado e estúpido quanto parecia. Jack estava em perigo, mas podia se virar sozinho.
— Eu só quero brincar um pouco com você. E sei que vocês, bichonas, amam um jogo bruto. — Não queira se meter comigo, cara. — Jack estava grudado contra uma cerca que dividia o beco. — Sou muito mais problema do que aparento. — Ah, eu quero me meter contigo, bonitão. Vou começar com sua cara e descer, pervertido. Ninguém mais vai te querer quando eu acabar. — Pancada estendeu a mão para Jack , que se desviou. — Por favor, não quero machucar você. Me deixa em paz. — A voz de Jack estava trêmula. Nômada imaginou por que estava com tanto medo. — Não vai gostar do que vai ver. — Acha que sabe aquela lutinha ridícula dos japas, hein? — Pancada gargalhou, e até Nômada se encolheu com o som de engrenagens rangendo. — Tudo bem. Sou parte da família agora. Já tenho seguro. O gato preto ficou mais insistente quando sentiu a relutância de Nômada em ajudar seu outro amigo humano. Transferiu a dor para sua mente. Ela mandou a recusa de Jack em ajudá-la e ajudar Rosemary, mas o gato não se deu por vencido. Cansada de ver os dois homens se enfrentando, Nômada mandou o preto voltar e mostrou para ele a transformação de Jack em crocodilo. Se ele não quis ajudá-la, tudo bem. Ela não forçaria. Ele achava que não precisava dela por perto. A fúria selvagem do preto à sua resistência afastou-se, e ela interrompeu o contato. Não era mais problema seu. Ergueu as mãos para testar a dor nas têmporas. O preto derrubara suas defesas, pois ela não esperava sua reação. Cristo, o que há de errado? Por que todo mundo a odiava agora?

Enrolada numa pilha de trapos em um recuo de túnel cheio de vapores nos subterrâneos, Nômada dormiu por horas. Apesar do seu esforço, a dor de cabeça continuou. Não conseguia encontrar o gato preto, embora soubesse que não estava morto. Buscou nas camadas de roupa até encontrar o relógio de pulso sem pulseira que usava quando precisava saber a hora. Menos de uma até precisar encontrar Paul. Estava atrasada. Levaria trinta minutos para chegar à casa de C.C., onde mantinha vestidos e ternos que precisavam ficar pendurados. Joguinho estúpido. Com um pouco de sorte, C.C. estaria trabalhando no estúdio e nunca saberia que ela estava lá. O único lance de sorte da semana toda aconteceu. A luz vermelha estava ligada sobre a porta do estúdio de C.C., então Nômada entrou e saiu sem que a outra a notasse. Ainda assim, Paul, sempre atrasado, esperava em frente ao bar na West Fourth Street, onde se encontrariam para jantar antes de ir ao cinema. A noite foi agradável, mas Nômada sabia que Paul não estava totalmente lá enquanto ele a regalava com histórias das últimas incursões e defesas que encontrara nos últimos dias. — Então, aquele cara começou a alegar que seu, como é que ele chama,
seu guia persa antigo disse a ele que o outro pobre diabo era realmente um grego antigo e inimigo pessoal. E ele começou a receber o espírito, bem ali, no tribunal. Grunhiu um monte, rolou no chão, falou outras línguas, quem sabe se aquilo era persa? O juiz quebrou dois martelos gritando “ordem!”, enquanto o advogado de defesa do idiota pedia um médico e tentava montar uma defesa com base no ataque. Ele conseguiu um adiamento, ou seja, vou ter que voltar lá com aqueles babacas na próxima semana. Oy vay, como minha santa mãe costumava dizer. — Paul Goldberg sorriu para ela por sobre o cheesecake. — Então, como foi sua semana? — Os animais estão todos bem. Sem grandes problemas. — Que cidade para ser uma veterinária, hein? Entre poodles e rottweilers, não sei como você consegue. — É por isso que tento ficar com os gatos, com um rato exótico ou guaxinim ocasional. — Nômada sorriu, imaginando por que teve que inventar aquela história. O humor de Paul mudou de repente. — Olha só, preciso falar uma coisa. Podemos deixar o filme para outro dia? — Ele olhou para a xícara de café como se o creme rodopiante fosse revelar o futuro. — Parece sério. — E é. Ao menos, acho que é. Você é uma pessoa razoável. Pode me dizer se acha que estou ficando louco. — Só não comece a falar em persa. — Tá. — Ele pegou o cheque. — Essa é minha, não reclame. Logo que saíram, pegaram um táxi até o imenso apartamento duplex de Paul, no Upper East Side. Ele quase não disse nada, apenas observou como ela tinha as unhas curtas e lixadas, e brincou sobre a falta de garras. Quando já estavam no apartamento, ele fez café e pôs um disco de Paul Simon na vitrola. Depois, finalmente se sentou em uma poltrona que havia puxado para ficar de frente para Nômada. — Algumas coisas estão acontecendo na Promotoria. Coisas estranhas. Preciso de uma segunda opinião. Você provavelmente não é a pessoa mais indicada para isso, por várias razões, mas é amiga, e é disso que estou precisando. — Ele rolou a caneca de café entre as mãos. — Conte comigo. — Nômada sabia que não iria gostar do que ele estava prestes a dizer. — Acho que alguém está no mau caminho. Eu tiro pessoas da rua, ladrões, todos nós tiramos. Estão surgindo rumores sobre a Promotoria. Rumores sobre ligações com a Máfia. — Que tipo de ligações? — Nômada levantou-se e caminhou ao redor da sala de estar toda branca. — Nada específico. Mas sei que as últimas três batidas em operações da Máfia não renderam nada, apenas uns poucos subordinados sem importância, e praticamente nenhuma droga ou arma. Estamos recebendo o bastante para ficar felizes, mas não o suficiente para causar dano de verdade. — Paul ergueu os olhos para Nômada. — Estamos sendo usados. As batidas contra os inimigos da Máfia sempre são bem informadas e quase sempre eficazes para prejudicar a
oposição. E acho que sei por quê. — E o que você vai fazer? — Nômada bebericou do café e ponderou suas opções. Já tinha sido vista antes e, se ela o matasse ali, seria uma suspeita. Rosemary poderia ou não protegê-la. — Não posso confiar em ninguém da Promotoria. E não tenho muita certeza se posso confiar na Prefeitura. — Paul abaixou a caneca e foi até a lareira. — Quero ir à imprensa. Ao Times. — Tem certeza absoluta sobre suas informações? — Nômada olhou para as chamas atrás de Paul. Rosemary havia se exposto. Não foi cuidadosa o bastante. — Absoluta. Posso corroborar tudo que disse. — Paul ficou de costas para ela e aqueceu as mãos no calor da lareira. Nômada olhou para sua nuca. — Mas espero que a situação possa ser sanada. Se a pessoa em questão cair em si, talvez tudo isso possa ser evitado. Há outras coisas estranhas acontecendo ali também. Algumas dessas informações que eu tenho parecem ter vindo diretamente da Máfia. É algo que eu não entendo. Nômada lembrou-se de Chris Mazzucchelli. Nunca confiou naquele homem, apesar de sua ligação com Rosemary. Será que ele a estava traindo? — Você precisa fazer o que sua consciência mandar. Mas, se essas pessoas são realmente mafiosas, não é um pouco perigoso? — Nômada lembrou Rosemary dizendo como tudo seria diferente com ela agora mandando. Tinha tomado sua decisão. — Verdade. É um dos motivos pelos quais estou dizendo para você. Falei com outras pessoas, dei provas. Não queria colocá-la em risco com isso. — Paul parecia aliviado por ela não ter reconhecido Rosemary a partir da descrição. Nômada imaginou se a conversa não seria uma armadilha. Ela caíra ou passara ilesa? Paul a abraçou e puxou-a para mais perto. Nômada não resistiu, mas também não o encorajou. Devolveu o abraço, desconcertada. — Você poderia ficar hoje à noite. — Paul beijou sua testa. — Não, Paul. Não estou pronta para me envolver desse jeito. Sou das antigas, eu acho. — Nômada empurrou-o. — Preciso de tempo. — Estamos saindo há meses. Ainda não sei onde você mora. Por que não confia em mim? — Paul ficou na frente dela com os braços caídos ao lado do corpo. — Não é você. Sou eu. — Nômada evitou os olhos dele. — Dê um tempo para mim. Ou não. A escolha é sua. — Minha escolha? — Paul sacudiu a cabeça, resignado. — Seria muito mais fácil se você não fosse tão intrigante. Próxima sexta, jantar e, eu prometo, cinema. Pode passar aqui? — Posso. Boa sorte... No trabalho. — Nômada não sabia se estava pensando nele ou em Rosemary.

Nômada viu o brilho de canos e ouviu o som de pistolas, fuzis e metralhadoras disparando e destruindo a noite enquanto contornava o prédio. Com um pequeno exército de ratos, gatos e alguns cães vadios, ela patrulhava o perímetro, como Rosemary havia proposto na reunião, dois dias antes. Sempre que alguém tentava fugir, ela e os animais levavam-no de volta à polícia, que aguardava. Ela quase tropeçou num corpo cujo rosto fora estourado por uma rajada de metralhadora. Quando recuou, trombou com um policial negro. Ele a segurou com gentileza, impedindo que caísse. — Senhora, seria melhor encontrar outro lugar para dormir hoje à noite. — Suas mãos grandes afastaram-na da batalha que acontecia nas ruas próximas e silenciosas. Aquelas mãos lembraram-na de Pancada tentando pegar Jack . Ela girou para se soltar, deixando um casaco de couro sujo nas mãos do policial, e mancou rapidamente para longe. Quando se viu novamente escondida na escuridão, fez contato com seus animais. A amarela permanecia com ela todo o tempo, mas os outros cercaram o prédio. Com os olhos de um rato agachado numa pilha de lixo, ela acompanhou o lento avanço de um jovem oriental que tentava fugir da luta. Uma trilha de sangue o seguia, pingando da perna direita. Ela sentiu o cheiro, e também o rottweiler fugido, que de repente fechou a entrada do beco. O vietnamita arfou e começou a andar de costas, lentamente. Mantendo o cão para trás, Nômada o fez sentar-se, e ele uivou uma mensagem para o céu. Havia água por todos os lados. Rosemary havia dito que uma nova ás, chamada Nenúfar, estaria lá naquela noite. Nômada estava cansada de pisar em poças. Quinze centímetros dos seus casacos e saias estavam encharcados, bem como suas botas. De onde vinha tanta água? Ela esperava que não houvesse nenhum incêndio no Bairro dos Curingas. Mesmo que revelasse sua presença, Nômada organizou uma barreira com gatos ferozes para impedir qualquer curinga de se aproximar mais que alguns quarteirões da luta. O armazém do bairro, no centro do anel de proteção, era, de acordo com Rosemary, um dos maiores arsenais dos Punhos Sombrios. A concentração de Nômada estava enfraquecendo. Rosemary não pensou muito em quanto tempo sua ás de estimação poderia continuar a rastrear a mente dos animais e controlar centenas deles em ação coordenada. A gata amarela rosnou, despertando Nômada de seus devaneios. Ela se ergueu de uma parede na qual se mantivera encostada para conservar as forças. Segurando uma Uzi em posição de disparo, outro vietnamita percorria a rua escura, movendo-se de uma sombra a outra em silêncio. Nômada fixou-se nele, em seguida convocou os ratos. Dentro de segundos, uma centena deles atacou o homem, fazendo-o se afastar. Eles subiram pelas pernas da calça e correram até os braços, que se sacudiam, mordendo seu rosto e pescoço. O grande número de ratos o fez tropeçar quando eles cobriram o chão. Ele gritou. A Uzi começou a disparar, seu fogo pulsante ecoando entre as paredes em um ritmo sinistro com os gritos do homem. Os dois sons aumentaram em escala até a munição terminar e a garganta do homem estar arranhada demais para emitir qualquer som. Seguiu-se um silêncio, interrompido apenas pelo som dos ratos caminhando. Nômada enviou-os às pressas para uma nova posição. A visão do homem na
poça de sangue a perturbou. Ele não devia ter resistido. Lasers cruzaram o céu sobre o prédio, cortando-o ao meio, cirurgicamente. Quando os raios atingiram as poças de Nenúfar, emergiram nuvens de vapor. A cena iluminada lembrava a Nômada uma representação do inferno à la Ken Russell. Usando o filhote que Nômada deixara com ela, Rosemary a chamou. Nômada virou-se e abandonou o corpo. Ele não fizera nada para ela. Que direito tinha ela de matá-lo? Quando ela chegou, Rosemary a esperava a uma porta profunda e sombria. Nômada andou junto à parede, lembrando-se do vietnamita fazendo o mesmo, minutos antes. Ninguém a viu entrar. — O que você vê? — Rosemary não tinha tempo para prelúdios. — Pegamos todos. Ninguém escapou aos meus olhos. — Ótimo, ótimo. Os desgraçados não se esquecerão disso tão cedo. Rosemary estava satisfeita, mas seus pensamentos estavam em outro lugar. — Viu? Eu sabia que você poderia fazer muito por mim. Rosemary saiu para a rua, e um policial veio cumprimentá-la. — Excelente trabalho! Esses ases da senhora realmente fizeram a diferença, por mais que eu odeie admitir isso. Aquele cara negro, o Martelo? É extraordinário. Tive calafrios só de estar perto do sobretudo dele. — O capitão estendeu a mão para lhe dar os parabéns. — Fico feliz em ter ajudado, capitão. Mas o Martelo do Harlem ainda está fora do país. Certeza de que não era um de seus infiltrados? — Rosemary sorriu e apertou sua mão. — Aliás, poderia pedir para um de seus homens ajudar esta senhora a sair da área? — Apontou com a cabeça para Nômada, que esperava perto da entrada. — Ela está um pouco perdida. Antes que o policial pudesse pegá-la, Nômada caminhou pela calçada e desviou para dentro de um beco. Levou um instante para espalhar os animais reunidos, depois, seguiu a amarela por uma entrada de esgoto que havia deixado aberta. Na noite úmida abaixo das ruas, ela refletiria sobre o que havia feito. Para qual finalidade? Para que a Máfia de Rosemary pudesse continuar? Ao menos vinte ratos, um gato e um dos cães foram perdidos naquela noite. De novo não, Rosemary. Seus jogos não valem para mim. Percebendo o brilho nos olhos da amarela, a seguiu para casa através dos túneis.

Quando Rosemary chegou à cobertura dos Gambione, Chris já a estava esperando. Sentado na cadeira, na ponta da mesa de reunião da biblioteca de seu pai, não disse nada enquanto ela se sentava ao seu lado. — Temos um problema. — Chris estendeu a mão e tomou a dela. — Paul Goldberg sabe quem você é. — Como? — Rosemary sentiu, ao mesmo tempo, medo e um alívio estranho, pequeno, de que a farsa havia acabado.
— Disso não sabemos, mas não importa muito, importa? Estamos vigiando seu gabinete, por precaução, e encontramos essas coisas no apartamento dele. — Chris empurrou um envelope sobre a mesa. Quando ela o abriu, encontrou fotos suas e do pai, registros, tudo que era preciso para espetá-la na parede. — Vamos nos livrar dele. — Chris tamborilou os dedos no tampo de carvalho. — Mas queria que você desse seu ok primeiro. Afinal, ele é um de seus empregados. — Claro, agora mesmo. — Rosemary continuou a encarar as fotografias e espalhou-as. — Ele deu isso a alguém? Quem mais sabe? — Acho que o pegamos a tempo. — Chris pegou uma das fotos e olhou para ela, quase preguiçoso. — Mas sugiro que você confirme com sua grande amiga Suzanne. Eles foram vistos juntos. — Meu Deus, ela e Paul estão saindo. Não sei o que ela vai fazer se ele morrer. Às vezes, Suzanne não é muito estável. — Então, você quer que a gente espere para atacar? Caramba! Você sabe que é ele ou você. — Chris tombou um pouco a cadeira pesada, apoiando-a nas pernas traseiras. — Não, elimine-o. Elimine-o agora. Se ele não teve tempo de falar com ninguém, ainda estarei segura. — Rosemary virou a cabeça de um lado para o outro, como se buscasse uma rota de fuga. — É a única escolha sensata. Vou cuidar disso. A menos que... — Chris voltou a cadeira com um pequeno estalo, que foi abafado rapidamente pelo tapete alto. — Não. Faça isso. — Rosemary ergueu os olhos para ele, agradecida. — Obrigada. Com um sorriso largo, ele se inclinou e a beijou. — Não precisa agradecer. Estou aqui para isso.

Caminhando pela esquina do alto prédio de Paul, Nômada puxou a saia para baixo ao mesmo tempo em que tentava evitar as poças deixadas pela chuva da tarde. O porteiro manteve aberta a pesada porta de vidro com um sorriso mal disfarçado, dizendo-lhe que a vira se arrumar. Ela considerou tornar a vida dele um pouco mais miserável, lançando um pombo sobre sua cabeça, mas ele não valia o esforço. Tinha coisas mais importantes na mente. Dependeria do rumo dos acontecimentos, ela decidiu, mas talvez ficasse com Paul naquela noite. Ainda se sentia um pouco incomodada com a decisão. Ela acenou para Marty, que assentiu com a cabeça e marcou-a no livro de registro de visitantes. Como sempre, os ecos dos saltos estalando no mármore a deixaram desconcertada. O elevador levou uma vida para chegar. Nômada concluiu que todos que a viram entrar sabiam o que ela estava pensando sobre Paul no momento em que o elevador apareceu. Era ridículo. Ela era adulta, pelo amor de Deus. Deu um suspiro profundo e entrou, seguindo para o apartamento
de Paul, no 32o andar. Graças aos céus, não havia ninguém no hall. Lá em cima, o carpete parecia ter sete centímetros de espessura, e ela não fez barulho nenhum quando chegou até a porta e tocou a campainha. Depois de vários minutos, ela tocou novamente e começou a prestar atenção a qualquer ruído vindo de dentro do apartamento. Não ouviu nada. Procurou mentalmente quaisquer criaturas, um camundongo ou rato, mas o prédio de Paul era chique demais para isso. Sem encontrar pistas, ela captou um pombo na janela. Algumas luzes estavam acesas, mas ela não via Paul. Ótimo. Que noite para levar um bolo. Timing excelente, Paul. Nômada começou a voltar para o elevador com uma noção de alívio que ela se esforçava para não deixar transparecer. Na descida, pensou que provavelmente estava sendo esperada, se não, o segurança não a teria deixado subir. Pela primeira vez, ficou preocupada com Paul. Marty, o segurança, o vira entrar muitas horas antes. Tinham conversado sobre ele ter ganhado um caso, para variar, e ter saído mais cedo para descansar, antes que Nômada chegasse. Marty corou quando ele mencionou que o senhor Goldberg lhe dissera para cuidar dela. Paul falou que eles celebrariam juntos. Não havia registro de Paul saindo, e nenhum dos porteiros o vira deixando o prédio. O segurança chamou um colega para cobri-lo e levou a chave-mestra para o apartamento. Assim que a porta se abriu, Nômada sentiu que algo estava errado. Seguindo sua sensação de pavor, levou Marty direto para o banheiro. Paul estava nu dentro da Jacuzzi de mármore preto. O sangue rodopiava ao seu redor, na água borbulhante. Ele havia tomado um tiro à queima-roupa no olho. Ela o encarou profundamente, enquanto Marty ligava freneticamente para a polícia. A polícia a levou para a delegacia e a interrogou por horas. Primeiro, estavam determinados a fazê-la confessar o crime. Quando o relatório inicial do legista finalmente chegou, desistiram e começaram a perguntar sobre seu conhecimento das atividades de Paul. Quem poderia ter desejado sua morte? Ela pensou em Rosemary várias vezes, mas negou saber de qualquer coisa. Rosemary teria coragem de matá-lo? Ela sabia que Nômada gostava de Paul, e até mesmo havia incentivado a relação entre os dois. Seria capaz de assassinar alguém com quem trabalhava e respeitava? Nômada não se permitiu responder a essas perguntas. Eram quase seis da manhã quando C.C. finalmente conseguiu permissão para levar Nômada para casa. No táxi, ela não disse nada até chegarem ao loft de C.C., apenas expandiu a mente em busca dos gatos e mentalmente os trouxe para perto, tremendo. C.C. pegou o jornal na calçada em frente ao prédio e o enfiou debaixo do braço, levando Nômada para o elevador. No loft, ela ficou parada encarando uma parede sem a ver, enquanto C.C. preparava um chá. Nômada percebeu que C.C. chamava seu nome repetidamente. Isso a trouxe de volta a si. Preferia expandir sua consciência através da cidade. E também espalhar sua dor. Apenas a urgência na voz da outra a fez se concentrar no jornal diante dela. A foto de Rosemary Gambione Muldoon tomava um quarto da primeira
página.

Rosemary estava gelidamente tranquila. O alerta viera de um redator de obituário que de repente ficara devendo muito dinheiro em Vegas. Ela assumira a dívida algum tempo atrás, e havia chegado o dia da compensação. Ele ouviu a agitação na redação e foi verificar. Ver a foto dela na primeira página das provas do jornal foi o suficiente, então ligou para seu contato da família. Chris bateu à porta de Rosemary às duas da manhã, e juntos eles jogaram roupas em uma mala de viagem. Chris havia trazido quatro de seus melhores homens para fazer a guarda 24 horas por dia. Os seis estavam sentados na limusine preta que os levara para um dos refúgios dos Gambione. Rosemary ficou em silêncio. O que havia a dizer? Parte de sua vida estava destruída. A única da família que restava. Terminaria como havia começado. Ela ficou sozinha no refúgio. Seus guarda-costas patrulhavam o exterior e mantinham-se de olho em janelas e portas. Chris saíra para organizar um lugar mais seguro de onde ela poderia liderar os Gambione. Rosemary nunca se sentira tão livre e viva desde que assumira a tarefa de ter uma vida dupla. Sua cabeça fervilhava com planos para manter as famílias em pé e viáveis. Agora que podia se concentrar nos problemas mais próximos, tudo seria diferente. Paul fizera um favor para ela. Pena que precisara morrer por isso, mas, no fim das contas, não se podia mostrar fraquezas. Ela se perguntou quando Chris voltaria. Tinha muitas coisas a discutir com ele.
♣   ♦   ♠   ♥
Todos os cavalos do rei
II
A água fez um ruído gorgolejante em algum lugar na quente escuridão a sua volta. O mundo girou e se revolveu, como se afundasse. Ele estava fraco e zonzo demais para se mover. Sentiu dedos gelados nas pernas, subindo cada vez mais, e em seguida um choque repentino quando a água alcançou suas partes baixas, fazendo-o acordar. Arrancou o cinto de segurança com os dedos dormentes, mas era tarde demais. O frio lhe acarinhava o peito. Ele se sacudiu para cima, o chão girou, fazendo-o perder o equilíbrio. A água cobria sua cabeça e ele não conseguia respirar, e tudo estava escuro, muito escuro, como um túmulo, e precisava sair, precisava sair... Tom acordou buscando fôlego, um grito arranhando sua garganta por dentro. Logo depois de despertar, meio grogue, ouviu um tilintar suave de vidro caindo da moldura da janela e se estilhaçando no chão do quarto. Ele fechou os olhos, tentando se acalmar. O coração palpitava, falhando um compasso, sua camiseta regata grudava na pele. Apenas um sonho, Tom disse a si mesmo, mas ainda conseguia se sentir em queda cega e desesperada, preso a um caixão de aço flamejante enquanto o rio se fechava ao redor. Apenas um sonho, ele repetiu. Teve sorte, algo explodiu o casco e ele escapou; havia acabado: vivo e em segurança. Respirou fundo e contou até dez, e, quando chegou ao sete, parou de tremer. Abriu os olhos. Sua cama era somente um colchão em um quarto vazio. Ele se sentou, com as roupas de cama enroladas ao seu redor. Penas de um travesseiro rasgado flutuavam nos feixes de luz solar que atravessavam a janela quebrada, pairando no ar preguiçosamente. O despertador que havia comprado na semana anterior voara metade do quarto e ricocheteara na parede. Uma série de números aleatórios piscou em vermelho no visor digital de LED por um instante, antes de apagar completamente. As paredes eram de um verde pálido, nuas, e suas
rachaduras cada vez maiores formavam uma teia de aranha. Um pedaço de argamassa caiu do teto. Tom encolheu-se, desenrolou-se dos lençóis e se ergueu. Qualquer noite seu maldito subconsciente derrubaria a casa toda. Tom imaginou o que os vizinhos pensariam. Ele já havia reduzido a mobília do quarto a quase nada, e as paredes de gesso não estavam aguentando muito. Pensando bem, ele também não. No banheiro, Tom deixou a camiseta encharcada de suor no cesto e olhouse no espelho sobre a pia. Achou que parecia dez anos mais velho do que era. É o que alguns meses de pesadelos recorrentes farão com você, ele supôs. Foi para o chuveiro e fechou a cortina. Uma barra meio derretida de sabonete jazia numa lâmina de água dentro da saboneteira. Tom concentrou-se. O sabonete ergueu-se e flutuou até sua mão. Estava melecado. Com o cenho franzido, ele deu uma girada firme no registro de água fria com a mente e encolheu-se quando o jorro gelado o atingiu. Rapidamente, agarrou o registro quente — com a mão —, girou-o e estremeceu de alívio quando a água ficou morna. Estava melhorando, Tom refletiu enquanto se ensaboava. Mais de vinte anos como Tartaruga haviam atrofiado suas capacidades telecinéticas a quase nada, exceto quando trancado em seu casco, mas o Dr. Tachyon o ajudou a entender que o bloqueio era psicológico, não físico. Estava trabalhando nisso desde então e havia chegado ao ponto em que sabonetes e torneiras de água fria eram moleza. Tom enfiou a cabeça sob o chuveiro e sorriu quando a água morna escorreu em cascatas sobre o corpo, limpando o último resíduo do pesadelo. Era muito ruim que o subconsciente não tivesse percebido seus limites — ele se sentiria muito mais seguro para dormir, e talvez seu quarto não estivesse aquela bagunça quando acordasse. Mas, quando o pesadelo vinha, ele era o Tartaruga. Fraco, zonzo, em queda e prestes a se afogar, mas ainda o Grande e Poderoso Tartaruga, que podia fazer malabarismos com locomotivas e esmagar tanques de guerra com a mente. O finado grande Tartaruga. Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei, Tom pensou. Ele desligou o chuveiro, tremeu com o frio repentino e saiu da banheira para se secar. Na cozinha, preparou uma xícara de café e uma tigela de cereal. Sempre achou que cereal com farelo tinha gosto de papelão molhado, e esses novos, extrassaudáveis, pareciam serragem, mas seu médico havia dito que precisava incluir mais fibras na dieta. Também deveria reduzir o café, no entanto, esse era um caso perdido, pois já estava viciado. Ligou a pequena TV ao lado do micro-ondas e assistiu à CNN sentado à mesa da cozinha. A prefeitura começava uma investigação completa sobre a corrupção na Promotoria do distrito de Manhattan, que parecia o mínimo que poderiam fazer agora que uma promotora adjunta havia sido acusada de ser uma chefona da Máfia. As acusações eram graves. Rosa Maria Gambione, também conhecida como Rosemary Muldoon, ainda estava sendo procurada para interrogatório, mas desaparecera no ar. Tom não acreditava que ela apareceria tão cedo.
Sentira-se culpado por ignorar a convocação que Rosemary fizera de ases voluntários quando a guerra de gangues havia estourado no Bairro dos Curingas. Não era de sua índole ignorar um apelo por ajuda, e, se ele tivesse um casco funcionando ou dinheiro para montar um, até poderia trazer o Tartaruga de volta dos mortos. Mas isso não aconteceu, e agora ele estava feliz com sua decisão. Pulso, Nenúfar, Mister Magnético e outros ases que atenderam à convocação haviam posto a vida e a reputação em risco, e agora havia políticos canalhas nos jornais da noite pedindo que todos fossem investigados por seus laços com o crime organizado. Em momentos como esse, Tom se sentia feliz por Tartaruga estar morto. A TV agora transmitia o noticiário internacional, que contava novidades sobre a excursão dos ases. A gravidez de Peregrina já era notícia velha, e não havia mais violência como o incidente na Síria, graças a Deus. Tom assistiu, ressentido, à gravação da aeronave Cartas Marcadas pousando no Japão. Sempre quis viajar, conhecer terras distantes e exóticas, visitar todas as cidades fabulosas que conhecia pelas leituras de infância, mas nunca teve dinheiro. Certa vez, a loja o enviara para uma feira em Chicago, mas um fim de semana no Conrad Hilton com três mil vendedores de eletrônicos não havia satisfeito seus sonhos de criança. Deviam ter pedido que o Tartaruga estivesse na excursão. Claro, transportar o casco talvez fosse um problema, e Tom não conseguiria um passaporte sem revelar seu nome verdadeiro, o que ele não estava preparado para fazer; mas esses problemas poderiam ser resolvidos se alguém ligasse. Talvez realmente pensassem que ele estava morto, embora ao menos o Dr. Tachyon devesse saber que não. Então, ali estava ele, ainda em Bayonne, com a boca cheia de cereal com alto teor de fibras, enquanto seus semelhantes, como Mistral, Bolão e Peregrina, estavam sentados sob o telhado de um santuário, tomando seja lá o que os japoneses tomavam no café da manhã. Aquilo o deixou de mau humor. Não tinha nada contra Per ou Mistral, mas nenhuma delas estava pagando o mesmo preço que ele. Meu Deus, convidaram até o calhorda do Jack Braun! Mas ele não, ah, não — teria causado muitas preocupações; precisariam de acordos especiais e, além disso, havia assentos reservados tanto para ases como para curingas, e ninguém sabia muito bem onde se encaixava o Tartaruga. Tom, com voracidade, tomou o último gole de café, levantou-se da mesa e desligou a TV. Que se fodam todos, ele pensou. Como havia decidido que o Tartaruga permaneceria morto, talvez fosse a hora de enterrar seus restos mortais. Tinha uma ideia ou duas sobre como fazê-lo. E, se cuidasse de tudo da maneira correta, talvez no próximo ano ele mesmo conseguisse pagar uma viagem ao redor do mundo.
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Concerto para sirene e serotonina
II
Depois de conferir se não havia ninguém observando, Croyd jogou duas pastilhas de anfetamina no seu espresso. Suavemente, soltou um palavrão, como parte do suspiro que se seguiu. Nada estava funcionando como ele previra. Todas as pistas que tentara durante os últimos dias tinham sido um fiasco, e ele estava se drogando mais do que devia. Em geral, isso não o incomodaria, mas, pela primeira vez, tinha feito duas promessas distintas com relação a drogas e a seus atos: uma profissional e outra pessoal, ele refletiu, que o deixavam sem margem de manobra. Definitivamente teria que ficar de olho, ou ao menos com algumas facetas dos olhos, em si mesmo para não estragar tudo; além disso, não queria decepcionar Nenúfar no primeiro encontro. Em geral, Croyd sentia a paranoia chegando, e, dessa vez, resolveu deixar que esse fosse o indicador de seu grau de irracionalidade. Ele havia corrido a cidade toda tentando rastrear duas pistas que pareciam ter-se evaporado. Verificou cada possível fachada de sua lista, convencendo-se de que tinham sido apenas pontos de encontro escolhidos a esmo. O próximo era James Spector. Embora não tivesse reconhecido o nome, conhecia o Ceifador, o encontrara rapidamente em diversas ocasiões. O homem sempre o impressionou como um dos ases mais nojentos. “Se o Ceifador o encontrar , desvie o olhar”, Croyd murmurou e acenou para o garçom. — Pois não? — Mais um espresso, e me traga uma xícara maior, está bem? — Pois não. — Aliás, me traga uma jarra inteira. — Tudo bem. Ele murmurou um pouco mais alto e começou a bater o pé. “Olhos do Ceifador. Os olhos do Ceifador”, ele entoou. Deu um pulo quando o garçom deixou diante dele uma xícara.
— Não chegue tão silencioso assim! — Desculpe. Não quis assustá-lo. — E começou a encher a xícara. — Não fique atrás de mim enquanto serve. Fique aqui do lado, onde eu possa te ver. — Claro. O garçom moveu-se para a direita de Croyd; e deixou a jarra na mesa antes de sair. Enquanto tomava xícara atrás de xícara de café, Croyd começou a ter pensamentos que não tinha havia tempos com relação a sono, mortalidade e transfiguração. Depois de um tempo, pediu outra jarra — definitivamente, era um problema que exigia duas jarras.

A neve da noite havia cessado, mas os três centímetros que cobriam as calçadas reluziam sob a luz dos postes, e o vento muito frio erguia redemoinhos brilhantes pela Tenth Street. Caminhando com cuidado, o homem alto e magro vestido num pesado sobretudo preto olhou para trás uma vez quando virou a esquina, a respiração visível e esbranquiçada. Desde que saíra da loja de bebidas, teve a sensação de estar sendo vigiado. E havia uma figura, distante a uns cem metros, caminhando do outro lado da rua quase no mesmo ritmo que ele. James Spector sentiu que talvez valesse a pena esperar o homem e matá-lo, apenas para evitar qualquer possível aborrecimento no caminho. No fim das contas, havia duas garrafas de Jack Daniels e uma caixa com seis cervejas Schlitz na sacola, e se alguém fosse abordá-lo de repente nessas calçadas escorregadias... Ele se encolheu ao pensar nas garrafas quebrando, pois teria que voltar até a loja. Por outro lado, esperar o homem e matá-lo ali, enquanto segurava a sacola, também podia fazê-lo escorregar... mesmo se fosse apenas ao se curvar para revistar seus bolsos. Primeiro seria melhor encontrar um lugar para deixar as coisas. Ele olhou ao redor. Havia alguns degraus que levavam a uma porta mais adiante. James caminhou até eles e deixou a sacola no terceiro degrau, contra o corrimão de ferro. Depois, puxou a gola e virou-a para cima, pegou o maço de cigarros do bolso, tirou um e o acendeu. Recostou-se no corrimão e esperou, observando a esquina. Em pouco tempo, surgiu um homem de calças cinza e blazer azul, a gravata chicoteando ao vento, os cabelos pretos desgrenhados. Parou e o olhou, em seguida balançou a cabeça e avançou. Quando se aproximou, Spector percebeu que usava óculos espelhados. Ele sentiu uma pontada repentina de pânico, vendo que o outro possuía um adequado dispositivo de defesa contra ele. E isso certamente não era um acaso no meio da noite. Portanto, era mais do que somente um brutamonte no seu encalço. Ele deu uma tragada longa no cigarro, e subiu vários degraus de costas, lentamente, ganhando altura para dar um belo chute na cabeça do cara e tirar seus malditos óculos.
— Ei, Ceifador! — O homem chamou. — Preciso falar com você! O Ceifador o encarou, tentando se lembrar dele. Mas não havia nada de familiar no homem, nem mesmo a voz. O outro se aproximou e parou diante dele, sorrindo. — Só preciso de um minuto ou dois do seu tempo. É importante. Estou com muita pressa e tentando manter um pouco da sutileza. Não está sendo fácil. — Eu te conheço? — Ceifador perguntou. — Já nos encontramos. Em outras vidas... Quer dizer, em minhas outras vidas. Também acho que você fez a contabilidade da empresa do meu cunhado, em Jersey. Meu nome é Croyd. — O que você quer? — Preciso do nome do chefe da nova gangue que está tentando tomar as operações da velha e boa Máfia, que comanda esta cidade há mais de meio século. — Tá de brincadeira — Ceifador respondeu, dando um trago final no cigarro, soltando-o e movendo a ponta do pé para esmagá-lo. — Não, não estou. Eu preciso mesmo dessa informação para poder dormir em paz. Acredito que você tenha feito mais que contabilidade para esses caras. Então, me diga quem dá as cartas, e eu vou embora. — Não posso. — Como eu já disse, estou tentando ser discreto. Ou seja, não quero fazer isso do jeito mais difícil... O Ceifador chutou o rosto do homem. Os óculos de Croyd voaram sobre o ombro, e o Ceifador encarou as 216 facetas reluzentes de seus olhos. Ele não era capaz de fixar o olhar com os pontos de luz. — Você é um ás — ele disse —, ou um curinga. — Sou o Dorminhoco — Croyd respondeu quando estendeu a mão e pegou o braço direito do Ceifador, para depois quebrá-lo no corrimão. — Você deveria ter me deixado ser sutil. Não machucaria tanto. Ceifador deu de ombros enquanto se encolhia. — Continue, quebre o outro também. Mas não posso dizer o que não sei. Croyd encarou o braço pendurado na lateral do corpo do Ceifador, que, com o outro, pôs o quebrado no lugar e o segurou. — Você se recupera bem rápido, não é? — Croyd disse. — Em minutos. Estou lembrando agora. — Isso aí. — Pode fazer crescer um braço novo se eu arrancar? — Não sei e prefiro não saber. Olha só, ouvi dizer que você é um psicopata, e acredito nisso. Eu diria se soubesse. Não gosto de me regenerar. Mas tudo que fechei foi um acordo ruim de assassinato. Não tenho ideia de quem esteja no comando. Croyd estendeu as duas mãos, agarrando os pulsos do Ceifador. — Quebrar você inteiro não vai adiantar de nada, mas ainda há espaço para a discrição. Já passou por uma terapia de eletrochoque? Experimente essa. Croyd esperou o Ceifador parar de se contorcer, em seguida, soltou seus pulsos. Quando conseguiu voltar a falar, o Ceifador disse:
— Eu não posso dizer nada, pois não sei. — Então, vamos perder mais uns neurônios — Croyd sugeriu. — Dá um tempo — Ceifador retrucou. — Nunca soube o nome dos chefões. Isso nunca significou porra nenhuma pra mim. E não significa. Só conheço aquele cara chamado Olho, um curinga. Tem um olho grande e usa um monóculo. Eu o encontrei uma vez, na Times Square, ele me deu uma missão e me pagou. É tudo que sei. Você sabe como é. Também é autônomo. Croyd suspirou. — Olho? Parece que ouvi falar dele em algum lugar. Onde consigo achar esse cara? — Acho que ele fica no Club Dead Nicholas. Joga cartas lá, já faz um tempo, na sexta à noite. Sempre quis ir lá e matar o desgraçado, mas não tive tempo. Isso me custou um pé. — Club Dead Nicholas? — Croyd perguntou. — Acho que não conheço esse. — Antes era Nicholas King’ s Mortuary, perto do Bairro dos Curingas. Serve comida e bebida, tem música e uma pista de dança, e jogatina numa área dos fundos. Acabou de abrir. Tem uma decoração de Halloween. Mórbido demais pro meu gosto. — Tudo bem. Espero que não esteja me passando para trás, Ceifador — Croyd disse. — É tudo que sei. Croyd balançou a cabeça lentamente. — Vou lá. — Ele soltou o outro e se afastou. — Talvez, depois, eu possa descansar. Sutil. Muito sutil. — Ergueu a sacola do Ceifador e a deixou em seus braços. — Aqui. Não esqueça suas coisas. E é bom olhar por onde anda, está tudo escorregadio. — Continuou a se afastar, de costas, murmurando consigo mesmo até a esquina. Depois, virou-se e desapareceu. Afundando até sentar-se no degrau, Ceifador abriu uma garrafa de uísque e tomou um longo gole.
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Jesus era um ás
Arthur Byron Cover
Nestes tempos de problemas e de jornadas obscuras; nesta terra fértil onde a obra de Satã está prestes a dar frutos; você não precisa pisar em ovos com Marx, ou fuçar em Freud; você não precisa da ajuda de liberais como Tachyon, não precisa abrir-se a ninguém mais além de Jesus — porque ele foi o primeiro e maior ás de todos!
— REVERENDO LEO BARNETT
I
Existem poucos quarteirões entre o Bairro dos Curingas e o Lower East Side que limpos e vítimas do vírus chamam igualmente de Fronteira. Ninguém sabe que grupo começou a usar o termo, mas aplica-se igualmente a qualquer lado. Um curinga talvez pense que o lugar é a fronteira de Nova York, já um limpo, que é a fronteira do Bairro dos Curingas. As pessoas vão à Fronteira pelos mesmos motivos pelos quais algumas assistem a um filme violento, ou a um bom show de speed metal, ou se acabam na droga da moda. São atraídos pela ilusão de perigo; uma ilusão segura, efêmera, que lhes dá algo para comentar em festas frequentadas por pessoas medrosas demais para ir até lá por si mesmas. O jovem pregador pensou sobre aquilo enquanto observava a equipe do noticiário da televisão caminhando na rua de baixo, através da janela do banheiro do quarto de hotel barato que havia alugado para a noite — embora tivesse a intenção de usá-lo apenas por poucas horas. A equipe consistia em um repórter
de casaco e gravata, um operador de minicâmera e um sonoplasta. O repórter estava parando pedestres, limpos e curingas, enfiando o microfone em seus rostos, tentando fazê-los dizer alguma coisa. Por um momento longo e atormentador, o jovem pregador teve medo de que seu encontro amoroso com Belinda May fosse a história que estavam procurando, mas se tranquilizou com a ideia de que a equipe, sem dúvida, estava rotineiramente nessa vizinhança. Afinal, onde eles teriam chance melhor de encontrar uma introdução visual forte para o noticiário das 23 horas? Ele não gostava de ter esses pensamentos pecaminosos, mas, nas circunstâncias, saboreou a esperança de que a equipe se distraísse com um acidente de carro espetacular a poucos quarteirões, com muito do estilo visual que procuravam na forma de fogo e capôs amassados — mas sem mortes, claro. O jovem pregador deixou cair a fina cortina branca. Terminou seus negócios e, enquanto lavava as mãos com movimentos rápidos e eficientes, encarou seu reflexo cadavérico no espelho sobre a pia manchada de ferrugem. Era mesmo tão doente ou sua tez pálida e amarelada era apenas o resultado do brilho das duas lâmpadas sem lustre sobre o espelho? O jovem pregador era loiro, de olhos azuis e acabara de completar 35 anos; tinha feições bonitas, dominadas por maçãs do rosto altas e um queixo quadrado com covinha. Naquele momento, usava apenas uma camiseta branca, uma cueca boxer azulclara e meias. Transpirava com profusão. Estava mesmo quente ali, mas ele esperava deixar o lugar muito mais quente logo. Mesmo assim, não conseguia evitar a sensação de ser um peixe fora d’água naquele quarto de hotel ordinário, justamente com aquela mulher que, por acaso, estava entre os principais membros de sua nova missão no Bairro dos Curingas. Não que ele fosse inexperiente. Tinha feito aquilo várias vezes antes, com muitos tipos de mulheres, em quartos como aquele. A mulher fizera aquilo porque ele era famoso, se sentiu bem ao ouvir seus sermões, ou quis se sentir mais próxima de Deus. Às vezes, quando ele mesmo tinha dificuldade para se sentir assim, elas faziam por dinheiro, e os pagamentos eram feitos por um membro confiável do seu círculo mais íntimo. Poucas mulheres acreditavam estar apaixonadas por ele, uma tolice; ilusão que, em geral, ele destruía sem muitos problemas, mas apenas depois de saciar seus desejos carnais. Mas nada na experiência do jovem pregador o preparara para uma mulher como Belinda May, que aparentemente estava ali pelo simples prazer de estar. Ele se perguntou se a atitude dela era típica das cristãs solteiras da cidade grande. Aonde no mundo Jesus virá, ele pensou, quando chegar a hora de Ele voltar? Abriu a porta do quarto e, antes de dar um único passo para a frente, recebeu o choque da sua vida. Belinda May estava sentada de pernas cruzadas na cama, fumando um cigarro, linda demais, e nua como veio ao mundo. Ele esperava vê-la nua, claro, mas não tão cedo. E, mesmo assim, pensou que ela estaria discretamente sob os lençóis. — Já era hora de aparecer — ela disse. Apagou o cigarro e caiu em seus braços antes que ele pudesse respirar. Agora ele sabia como uma frigideira se sentia em chama quente. Ela se agarrou a ele como se quisesse entrar em seu corpo. O jovem ficou incrivelmente excitado pela sensação dos seios apertados
contra seu peito, e ela havia montado em sua coxa, esfregando-se como se quisesse chegar ao osso. A língua era como uma enguia explorando a boca do rapaz. Uma das mãos estava sob a camiseta, a outra dentro da cueca, acariciando o traseiro dele. — Hummm... Que gosto bom — Belinda May sussurrou em seu ouvido depois do que parecia uma eternidade, em um local que era uma combinação sinistra da estratosfera do céu e os níveis mais baixos do inferno. Sem dúvida, ela era mais agressiva sexualmente do que o tipo de mulher com o qual ele estava acostumado. — Venha, vamos para a cama — ela sussurrou, pegando-o pela mão e puxando-o. Ela subiu na cama, ficou de joelhos e o fez ficar em pé ao lado dela, encaixando gentilmente sua mão sobre sua vagina. Embora o jovem pregador experimentasse uma satisfação profunda e permanente todas as vezes que preliminares levavam a mulher ao orgasmo, se sentia estranhamente deslocado, como se observasse a cena através de um espelho. Muito constrangido, pensou outra vez no que estava fazendo naquela espelunca com a pintura descascando nas paredes mal rebocadas, com aquelas luminárias ordinárias, a cama com molas rangendo e aquele aparelho de televisão encarando-o com seu olho insone. Ele se arrependeu de ter cedido ao pedido de Belinda May para que pegasse um quarto ali, na Fronteira, para o encontro. Perturbava-o pensar que em alguma parte da alma ele se parecia muito com as pessoas que vinham sempre àquele lugar para correr riscos seguros. O jovem pregador queria acreditar que Deus já havia preenchido os vazios importantes de seu coração. No entanto, a beleza acessível da mulher o perturbava em um nível mais profundo do que suas inoportunas dúvidas. Gentilmente, ele a empurrou para baixo e, com uma sensação estranha, em nada diferente daquela que vivenciara quando se ajoelhou sozinho pela primeira vez diante de um altar, percebeu como seus cabelos loiros espalhavam-se sobre o travesseiro como as asas de um anjo. Ela se contorcia, sedutora, enquanto ele a beijava na orelha e descia para lamber o pescoço. Ele continuou o trajeto para beijar os seios e sentiu uma onda renovada de calor no escalpo quando ela sinalizou a medida de sua paixão, correndo as mãos pelos seus cabelos e gemendo suavemente. Então, chegou à barriga, passando a língua nas bordas do umbigo raso, o que ele esperava ser um toque delicado, de mestre. Estava deliciado além de suas forças para entender quando ela, por fim, separou bem as pernas, um convite que ele aceitou quase instantaneamente, enterrando o rosto e lambendo-a com ferocidade pagã. Nunca soube que uma mulher tinha um gosto tão bom. Nunca desejou com tanto fervor servir outra pessoa, em vez de ser servido. Nunca adorou com tanta humildade, com tanto afã o altar do amor. Nunca havia se humilhado com tanto prazer, com tanta imoralidade... — Leo? — Belinda May disse, movendo-se para trás sobre os cotovelos. — Aconteceu alguma coisa? O jovem pregador ergueu-se com os cotovelos e baixou os olhos para entre suas pernas, onde seu membro pendia tão amolecido quanto um homem enforcado. Oh, Senhor , por que me abandonaste?, ele pensou, em desespero, refreando o impulso infantil de entrar em pânico. Sorriu, envergonhado, olhando
além do altar com seu convite ainda bem aberto, além do corpo encharcado de suor da mulher e daqueles seios brilhantes, para seu rosto doce e sorridente. — Não sei. Acho que não estou bem esta noite. Belinda May fez beicinho e esticou-se com tanta inocência e naturalidade como se estivesse sozinha. — Que ruim. Tem algo que eu possa fazer para ajudar? Nos segundos seguintes, ele pesou vários fatores na mente, a maioria relacionados com qual seria o equilíbrio adequado entre franqueza e diplomacia delicada. No final, decidiu que ela reagiria bem à franqueza, mas não tinha certeza de quanto ele poderia sair ileso disso. Acabou sorrindo, de um jeito selvagem. — Você gostaria de comer alguma coisa? A vida dele passou-lhe diante dos olhos enquanto ela girava a perna sobre sua cabeça, saía da cama e exclamava: — Que ideia ótima! Tem um restaurante de sushi do outro lado da rua! Você pode me pagar um jantar! — Seu traseiro balançava de forma tentadora enquanto desaparecia no banheiro, fechando a porta. Girou a torneira e, aparentemente antes de começar a se lavar, abriu a porta e esticou o pescoço o bastante para dizer: — E então poderemos voltar e tentar de novo. O jovem pregador ficou mudo. Rolou de costas e encarou o teto: o padrão aleatório das rachaduras entrecruzadas ali era enigmaticamente simbólico de sua existência inteira naquele momento crítico. Suspirou pesadamente. Afinal, a possibilidade de que a equipe do noticiário descobrisse seu caso não era a pior coisa que poderia acontecer com ele. Agora, a pior coisa seria se descobrissem que ele havia brochado. Nesse caso, o dano a suas ambições políticas seria incalculável. O povo norte-americano estaria disposto a perdoar qualquer quantidade de pecados de um candidato a presidente, mas esperava que os pecadores fossem, ao menos, bons de pecado. — Você tem um par de mãos ótimo, sabe? — Belinda May gritou do banheiro. Sensacional, pensou Leo Barnett, agarrado ao precipício do desespero com as forças se esvaindo. Adeus, Casa Branca; adeus, Paraíso.
II
Naquela noite, ele sentia a cidade dentro de si. Sentia o aço e o cimento, o tijolo e a pedra, o mármore e o vidro; sentia os órgãos tocando vários prédios e lugares
do Bairro dos Curingas, enquanto seus átomos eram ativados (e desativados) no caminho de ida (e volta) através dos planos da realidade. Suas moléculas roçavam as nuvens que se arrastavam em direção à cidade como uma onda de algodão preta que se aproximava; misturavam-se com o ar impregnado de umidade e a promessa de ainda mais umidade por vir, tremendo ao vibrar do trovão distante. Naquela noite, ele se sentiu inexoravelmente ligado ao passado e ao futuro do Bairro dos Curingas: a tempestade vindoura não seria diferente da última, e seria exatamente igual à seguinte. Como o ferro e o cimento eram constantes, o tijolo e a pedra para sempre, e o mármore e o vidro imortais. Enquanto a cidade permanecesse assim, por mais delicada que fosse, ele também permaneceria. Seu nome era Quasim. Já tivera outro, mas tudo que conseguia se lembrar de seu eu pré-vírus era que tinha sido especialista em explosivos. Atualmente, trabalhava como zelador da Igreja de Nossa Senhora das Dores Perpétuas, e o Padre Lula, sempre que podia, gostava de falar sobre ele: “A perda do esquadrão antibombas foi uma vitória para o esquadrão de Deus”. Em geral, tudo de que Quasim conseguia se lembrar era daqueles fatos crus, pois os átomos de seu cérebro, como os do restante do seu corpo, apareciam e desapareciam da realidade o tempo todo, aleatoriamente, elevandose a reinos extradimensionais e voltando de uma só vez. Essa característica tinha o efeito de torná-lo mais que um gênio e menos que um idiota. Na maioria dos dias, Quasim considerava uma vitória ficar sem se despedaçar. Mas, naquela noite, manter aquele modesto objetivo se provaria mais difícil que de costume. O sangue e o trovão estavam no ar. Quasim iria à Fronteira. Quando chegou à porta no topo das escadas que levavam ao telhado do humilde prédio onde vivia, partes do seu cérebro vislumbraram o futuro imediato. Já sentindo o ar frio da noite, enxergou flashes distantes de raios, sentiu o saibro do telhado estalar sob as solas dos tênis e viu uma velha mendiga, uma curinga, dormindo junto a um duto de ar quente, com os pertences ao lado, dentro de um carrinho que havia empurrado até a escada de incêndio. A interseção entre presente e futuro tornou-se mais vívida e forte no instante em que ele tocou a maçaneta, e ainda mais potente quando a girou. Quasim já havia se acostumado a esse tipo de profecia menor. Para ele, diferentes níveis de tempo se chocavam continuamente como címbalos discordantes. Muito tempo atrás, ele aceitara a única conclusão possível para viver nesse mundo mental: a realidade era composta apenas de fragmentos de um sonho estilhaçado antes da aurora da existência. Futuro e presente fundiram-se suavemente quando ele atravessou a porta. O brilho dos raios, o chão de saibro e a velha dormindo estavam lá, porque ele sabia que estariam. O que Quasim não tinha previsto foi o ranger das dobradiças enferrujadas da porta — que rascavam como uma serra cortando os pregos sobre o zumbir do tráfego na rua — acordando a velha de seu sono inquieto. Ela tinha uma pele amarronzada e escamosa, e o rosto de um rato sem pelos. Os lábios retraíram-se e expuseram presas brancas e afiadas. — Quem diabos é você? — perguntou com falsa ousadia. Ele a ignorou. Sendo um homem corcunda com os quadris pensos para o
lado esquerdo, ele arrastou os pés até o peitoril — com a graça eficiente de um bailarino permanentemente concentrado numa piada doentia e satírica. Sem hesitar, Quasim atirou-se. A velha, acreditando erroneamente que ele estava se suicidando, gritou. Mas Quasim ignorou o grito. Estava ocupado demais fazendo o que sempre fazia após pular de um prédio: estar onde desejava estar. O tempo e o espaço dobraram-se ao seu redor. No instante seguinte, seu intelecto rapidamente enfraquecido lutou para manter sua autoimagem. Durante um nanossegundo duradouro, ele quase se perdeu na fluidez do cosmos. Porém, se manteve e, quando aquele momento terminou, já estava em um beco da Fronteira. Agora, Quasim encontrava-se um instante mais próximo do trovão, um passo mais perto do sangue — um evento mais perto da escuridão final.
III
Aquela era a noite da grande prova de fogo de Vito. O Homem nunca teria instruído que ele participasse dessa pequena excursão à Fronteira se Vito já não tivesse demonstrado sua capacidade de lidar com responsabilidades. Claro que isso também significava que Vito era um pouquinho dispensável, mas tudo bem, já era esperado. É preciso assumir riscos quando se deseja crescer na Família Calvino. E, nos últimos tempos, muitas vagas se abriram na hierarquia da família. Vito, um jovenzinho ambicioso, esperava sobreviver o bastante para galgar alguns degraus, o que seria suficiente para fazer outra pessoa assumir os riscos mais óbvios. Infelizmente, uma espécie de trégua parecia provável, se fosse mesmo verdade a fofoca que ouviu de alguns garotos enquanto estava encerando a limusine do Homem. Estava claro que ele planejava discutir alguns negócios importantes com um dos bambambãs dos curingas, para controlar as baixas que haviam dizimado as Cinco Famílias nos últimos tempos. Um curinga chamado Vermis, sim, esse é o nome, pensou Vito, tenso, enquanto caminhava por uma calçada no meio da Fronteira, misturando-se a uma enxurrada de turistas e curingas e, talvez, até mesmo alguns ases. Ele examinou a rua em busca de possíveis problemas. Não era seu trabalho caminhar até a recepção daquela espelunca barata e pegar a chave do quarto onde o Homem e o curinga combinaram de se encontrar, mas não conseguiu evitar a esperança de perceber algo significativo na área de segurança, para que
o Homem e os rapazes pudessem considerá-lo um pouco menos dispensável. No entanto, ao entrar na recepção, Vito sentiu-se como um urso cego caminhando em um acampamento cheio de caçadores. Tentando manter a postura ereta e a mandíbula encaixada, do modo como ele via os rapazes fazerem ao apertar algum devedor, foi até o balcão de reservas e bateu nele com a palma da mão, na esperança de impor-se. — Estou aqui em nome de um dos, hum, seus clientes mais importantes — ele disse com um tremor infeliz na voz. O atendente, um velho fraco de cabelos brancos e usando um tapa-olho preto, provavelmente um curinga se passando por limpo, mal ergueu os olhos da revista feminina que estava lendo. A contracapa anunciava algum artigo de fetiche curinga e, na imagem desfocada, um cara musculoso estava sentado sobre uma criatura de olhar sensual, mas que, na verdade, lembrava uma bola gigante de sorvete de baunilha — com braços e pernas magros e mãos e pés pequenos. Indiferente, ele virou a página. Vito pigarreou. O atendente fez o mesmo. Depois de uma longa pausa, finalmente ergueu os olhos e disse: — Temos muitos clientes importantes, rapaz. Qual deles você representa? — Aquele para o qual o senhor deve muitos favores. As palavras mal tinham saído da boca de Vito quando o velho saltou da cadeira, pegou uma chave do armário, correu até o balcão e estendeu-a para o garoto, dizendo: — Tudo já foi providenciado, senhor. Espero que as acomodações sejam do seu agrado. — Não é a minha opinião que conta — Vito respondeu, pegando a chave. — Preste atenção, do contrário essas páginas vão ficar grudadas — acrescentou, virando-se para a saída. Por um momento, ele se perguntou se deveria verificar o quarto, mas depois se lembrou de que suas instruções foram muito sucintas e diretas. Vá até a recepção e traga a chave para cá. Vito já havia aprendido, observando alguns camaradas aprenderem do modo mais difícil, que os rapazes não gostam muito de iniciativas. Então, ele saiu no ar frio e abaixou a cabeça como se estivesse caminhando contra um vento forte, embora mal soprasse uma brisa, e sua postura fizesse seus cabelos pretos e oleosos caírem nos olhos. Sua confiança de que as coisas sairiam do seu jeito naquela noite, com base em como tinham sido até aquele momento, foi quase imediatamente refutada pela presença, em todos os lugares, de homens que ele conhecia — dos dois lados da rua, em pé, sentados em mesas de restaurantes de junk food ou em carros estacionados. Em geral, o único momento em que os membros da família e os capangas se reuniam na mesma área era durante um funeral. Naquela hora, porém, em vez de se mostrarem em suas roupas de luto, estavam tentando se misturar à multidão. Vito não reconheceu algumas das pessoas que os acompanhavam, mas algo em sua confiança exalava um ar de crueldade represada que fazia até mesmo os rapazes mais durões e grosseirões parecerem um pouco inquietos. A mente de Vito estava acelerada por uma centena de perguntas. Ele
caminhou apressadamente até a esquina, onde Ralphy o esperava. Ralphy era um dos assistentes de maior confiança do Homem. Corriam rumores de que era um matador de aluguel tão talentoso que certa vez acertou um candidato a prefeito a mais de duzentos metros de distância, e desapareceu na multidão bem na frente das câmeras de televisão. Vito não duvidava que fosse possível. Para ele, Ralphy era mais uma força do que um ser humano. Então, quando Vito parou a uma distância respeitosa dele, ergueu seus olhos para aqueles olhos castanhos frios sobre as bochechas marcadas pela varíola e viu um homem que o defenestraria com a tranquilidade com que se pisa em um inseto. Vito estendeu a chave. — Aqui está! — ele proclamou, talvez um pouco alto demais. — Bom — Ralphy disse em sua voz rouca, sem pegar a chave. — Verificou o quarto? — Não. Não foi o ordenado. — Certo. Cheque agora. — O que está havendo? — Vito deixou escapar. — Ouvi dizer que era para ser uma conferência de paz. — Você não ouviu nada. Estamos apenas tomando precauções, e você se ofereceu para o serviço. — O que devo procurar? — Vai saber se encontrar. Agora, vai. Vito foi. Não sabia se devia ficar contente ou preocupado pelo fato de terem confiado a ele essa parte da operação. Seus pensamentos foram interrompidos quando, por acidente, tropeçou num curinga corcunda com a perna defeituosa se arrastando para fora de um beco. — Ei, presta atenção! — ele bronqueou, empurrando o homem para longe. O curinga parou, babando, assentindo com temor para Vito. Algo reluziu em seus olhos estúpidos, apenas por um segundo, enquanto abria e fechava os punhos. Durante aquele instante, o curinga se empertigou, e Vito teve a nítida impressão de que ele poderia esmagar granito com aquele punho gigantesco. Em seguida, o homem desinflou, outro fio de baba pingou de sua boca, e ele se arrastou de costas até voltar ao beco e tropeçar numa lata de lixo. Então, ignorou Vito e fuçou na lata. Encontrou um frango seco e comido pela metade; deu uma bela mordida nele com seus dentes brancos e retos, mastigando furiosamente. Enojado, Vito virou as costas e apressou-se até o hotel. Somente quando empurrou a porta giratória que levava até a recepção se deu conta de que as roupas do curinga — camisa de flanela xadrez e jeans azuis — estavam muito limpas e alinhadas. Não conseguia se lembrar de ter visto um mendigo, reduzido a procurar comida em latas de lixo, com remendos novos nos joelhos das calças. Vito tirou a imagem do homem da mente com um erguer de ombros. Passou pelo balcão, onde o atendente ainda estava com o nariz enterrado na revista, e, pensando que talvez pudesse sofrer uma emboscada no elevador, resolveu subir os seis lances de escada até o terceiro andar. O corredor era escuro e deprimente, e suas lâmpadas fluorescentes lançavam uma espécie de neblina que mal se refletia nas paredes encardidas, derramando sobre elas uma
claridade desagradável. Ele encontrou o quarto. Antes de entrar, olhou o corredor de cima a baixo e constatou que não havia ninguém ali. Conseguia ouvir os sons abafados de alguns televisores atravessando as portas, bem como o que pareciam ser sons de encanamento funcionando no quarto do outro lado do corredor. Tudo aquilo eram atividades bem normais em um hotel, na opinião de Vito, mas, mesmo assim, ele se sentia incomodado por dentro, como sempre se sentia quando acreditava estar sendo observado. Com os dedos trêmulos, inseriu a chave na fechadura e abriu a porta. Vito se deparou com um horrendo filho da mãe. O homem praticamente não tinha queixo, duas fendas nasais em vez de nariz, e uma língua bífida que entrava e saía da boca. O modo como o curinga esgarçou os dentes em um sorriso para Vito, com aqueles olhos amarelos de predador, era definitivamente maléfico. Ele se deliciou, pois sabia que já havia apavorado Vito até o fundo do coração. — Vejo que oss Calvino esstão mandando garotinhosss para fazer ssseu trabalho agora. Diga ao sseu chefe que ele pode entrar. Estou ssozinho aqui.
IV
— Talvez eu devesse tentar tirar suas meias da próxima vez — Belinda May disse, travessa, enquanto o jovem pregador fechava a porta. Ele se encolheu com a pontada brincalhona de suas palavras quando girou a maçaneta para garantir que o quarto estava trancado. Ela deu uma risadinha e passou os braços ao redor dele. — Calma, reverendo. Você se leva a sério demais. — Deu-lhe um apertão que fez seu coração palpitar, e ele arriscou um sorriso. — Lembre-se do que Norman Mailer disse — ela sussurrou, sedutora, nos ouvidos dele: — “Às vezes, o desejo não é suficiente”. Isso não faz de você menor que homem nenhum. — Não leio Mailer — ele retrucou quando caminharam até o elevador. — Os livros dele são muito sórdidos para você? — Foi o que eu ouvi. — Ele escreve apenas sobre a vida. E vida é o que está acontecendo conosco agora. — A Bíblia me diz tudo que preciso saber sobre a vida. — Grande bosta. Chocado com o despreocupado sacrilégio da mulher, ele abriu a boca para retrucar, mas ela continuou antes que ele pudesse soltar qualquer palavra.
— É um pouco tarde para anunciar sua inocência, Leo. O jovem pastor suprimiu a raiva. Em geral, ele ficava irritado apenas perante suas congregações, e não estava acostumado a receber respostas ousadas. Além disso, não estava habituado à companhia de uma mulher, o que significava que sua compreensão dos dilemas morais de amor, vida e busca da felicidade estavam acima de qualquer questionamento. Porém, naquele caso, foi forçado a admitir, embora não em voz alta para Belinda May, que estava errado, porque na verdade lera as obras de Norman Mailer — em especial A canção do carrasco, um exaustivo estudo de caso de um jovem ás atormentado que executara nove pessoas inocentes ao transformá-las em estátuas de sal. O jovem pregador ainda tinha uma cópia da versão em brochura, escondida em uma gaveta no escritório de sua casa a sudoeste da Virgínia, onde era improvável que alguém a encontrasse. Muitos outros livros de conteúdo moral duvidoso estavam escondidos na mesma gaveta, e mais outros tantos, a salvo da curiosidade de seus colegas mais próximos, do mesmo modo que outros pregadores evangélicos talvez escondessem o conteúdo de seus armários de bebida. Então, o que mais ele poderia fazer, a não ser deixar que Belinda May arrancasse o melhor dele? Ele estava satisfeito com a perspectiva de conseguir a melhor parte do corpo dela mais tarde. Além disso, não estava muito interessado em sua opinião. Ela lhe deu outro apertão enquanto esperavam o elevador chegar. A excitação foi duas vezes maior que antes, porque dessa vez foi no traseiro. — Você tem uma bundinha linda para ser candidato a presidente — ela disse. — A maioria hoje parece um bando de cachorros vadios. Seus olhos desconfiados lançaram-se para a frente e para trás. — Não se preocupe — ela completou com um beliscão. — Não tem ninguém aqui. As portas do elevador abriram-se, e eles se depararam com quatro homens de expressão impassível e olhos de aço. O jovem pregador sentiu os joelhos cederem, e o apertão de Belinda May dessa vez transmitiu seu medo e necessidade de proteção, um sinal direto e veemente. Os dois homens do meio eram o foco da atenção do jovem pregador. Um deles era baixo e corpulento, de rosto vermelho e lábios grossos, com uma longa mecha de cabelos brancos penteados no topo da cabeça, em uma tentativa fracassada de esconder a careca que brilhava sob as luzes. Seus olhos grandes indicavam que saltariam se alguém lhe desse um tapa muito forte nas costas. Os dedos eram grossos e rechonchudos. Apesar do terno preto bem cortado, com um cravo vermelho na lapela, uma bela camisa branca e um colete cinza, seu gosto por roupas era no mínimo questionável, graças à gravata de tom vermelho fluorescente. O homem baforava serenamente um grande charuto Havana. O tabaco na ponta havia escurecido com a saliva, fazendo lembrar um cocô seco. Ele soprou a fumaça do charuto no rosto do jovem pregador. O ato foi deliberadamente desrespeitoso, e o pregador talvez tivesse reagido, não fosse pelos olhos castanhos e frios do homem alto e marcado de varíola ao lado do gorducho. Esse tinha lábios finos e pálidos, que pareciam cicatrizes. O cabelo castanho estava tão grudado que o jovem pregador imaginou-o dormindo
com uma meia calça na cabeça. Usava um sobretudo bege, com uma saliência clara no bolso direito. Dois homens musculosos os ladeavam. Usavam as abas dos chapéus viradas para baixo, o que escondia a maior parte do rosto. Um tinha os braços cruzados, enquanto o outro, o jovem pregador demorou a perceber, acenava para o casal abrir passagem. Os dois obedeceram. Os quatro homens saíram e atravessaram o corredor sem olhar para trás. O jovem pregador não conseguia tirar os olhos deles, mesmo quando Belinda May correu para dentro do elevador. — Leo, venha! — ela sussurrou, segurando as portas abertas com o corpo. O jovem pregador apressou-se a entrar. — Quem era aquele? — Agora não! — Apenas quando o elevador começou a descer Belinda May acrescentou: — Era o chefe da Família Calvino. Eu o vi uma vez no noticiário! — O que é a Família Calvino? — A Máfia. — Ah, entendo. Não temos máfia de onde eu venho. — A máfia é o que ela quiser ser. Há cinco famílias na cidade, embora só tenha três cabeças no momento. Ou talvez duas. Têm acontecido muitos assassinatos nas gangues nos últimos tempos. — Se aquele cara é um bambambã, o que está fazendo aqui? — Pode apostar que são negócios. O número uno dos Calvino provavelmente vai mandar incinerar os sapatos quando sair daqui. — As portas do elevador abriram-se na recepção. Sem se dar conta de que várias pessoas, inclusive um curinga grandalhão com cara de rinoceronte, estavam em pé na entrada, Belinda May deu o braço para o jovem pregador e disse: — Por acaso você trouxe uma caixa de preservativos? Ele sentiu o rosto ferver. Mas não viu nenhum indício de que alguma daquelas pessoas o reconheceu. Bom, ao menos não ouviu seu nome sendo pronunciado ou o clique de alguma câmera. Quando passaram pelas portas giratórias, ele percebeu que seu alívio por ter saído sem ser reconhecido podia ser ilusório. Se estivesse sendo seguido por um jornalista da imprensa marrom, ele nunca saberia até ver a prova nos noticiários noturnos, ou ter lido na primeira página dos jornais baratos. — Belinda... Por que você disse aquilo...? — Ele questionou. — O quê? Sobre os preservativos? — Ela perguntou com inocência, pegando um cigarro e um isqueiro da carteira. — Parece uma questão razoável. Acho muito importante que pessoas sexualmente ativas pratiquem sexo seguro, não acha? — Sim, mas não na frente de todas aquelas pessoas! Ela parou na ponta da calçada, virou as costas para ele, protegeu com a mão o cigarro na boca e o acendeu. Quando se voltou, soltando fumaça, ela disse: — Quem se importa? Além disso — acrescentou com um sorriso travesso —, eu achei que você aprovaria meu otimismo inerente.
O jovem pregador cobriu o rosto com uma das mãos e fechou a outra com força. Sentiu como se os olhos de cada pessoa na rua estivessem sobre ele, mesmo que uma avaliação casual da situação demonstrasse que era simplesmente paranoia. — Onde você quer comer? — ele perguntou. Belinda May deu um soquinho brincalhão nas costelas dele. — Calma aí, reverendo! Eu só estava brincando. Você se preocupa demais. Continue assim e vamos ficar naquele quarto por semanas. Não sei se tenho muito crédito no meu cartão. — Ah, não se preocupe com isso. Vou ver se a igreja faz o reembolso de alguma forma. Bem, onde quer comer? — Aquele lugar parece bom — ela disse, apontando para o outro lado da rua. — Rudy’ s Kosher Sushi. — Ótimo. — Ele a tomou pelo cotovelo e caminharam até a esquina. Olhou para os dois lados quando o sinal ficou verde, não apenas para ter certeza de que todos os automóveis estavam parando, algo que nenhum habitante da cidade grande considerava natural, mas para ver se por perto havia alguém cuja presença o preocuparia. A equipe de televisão estava abordando uma jovem no fim do quarteirão seguinte, e só. Por fim, sentiu a certeza razoável de que estaria seguro sentado a uma mesa ao fundo de um restaurante, se a equipe voltasse por aquele caminho. Antes que ele saísse do meio-fio, alguém trombou com ele. Em uma noite comum, o jovem pregador teria dado a outra face, mas, normalmente, não se sentia tão frustrado. Ele gritou: “Ei! Preste atenção por onde anda!”, e em seguida percebeu, horrorizado, que suas palavras grosseiras tinham sido proferidas para um curinga. Um curinga obviamente retardado, corcunda e de olhos turvos. Tinha cabelos ruivos encaracolados e usava uma camisa xadrez recém-passada e jeans azuis. — Desculpe — ele disse, quase enfiando a ponta do indicador no nariz e, em seguida, como se pensasse melhor, apenas passou o punho sobre ele. O jovem pregador, por alguma razão, suspeitou que o gesto não era espontâneo, e teve certeza disso quando o curinga curvou-se, meio endurecido, e falou: — Eu era apenas um menino preocupado... Perdido no meu mundo, eu acho. O senhor me perdoa, não é? Em seguida, saiu da calçada, como se tivesse mudado completamente de ideia sobre a direção para a qual seguia. Um pingo de baba caiu do seu queixo, quase como um reflexo tardio. Com olhos arregalados e confusos, o jovem pregador deu alguns passos atrás do homem. Belinda May, exigente, o deteve: — Leo, onde você acha que está indo? — Hum, atrás dele, claro. — Por quê? Ele pensou sobre a questão durante um momento especialmente desconfortável.
— Pensei que poderia lhe contar sobre a missão. Ver se ele não precisava de ajuda... Parecia precisar. — Belos sentimentos, mas você não pode. Está anônimo aqui, lembra? — Lembro. Certo. — De qualquer forma, não conseguia mais ver a criatura miserável, que já havia desaparecido na multidão. — Vamos encher a barriga de comida — ela disse, novamente pegando-o pelo cotovelo. Eles atravessaram o cruzamento, que estava parado. O jovem pregador ainda estava olhando para trás, buscando um vislumbre do corcunda, quando de repente eles pararam. Ele se virou para ver um microfone apontado para seu rosto. A equipe do noticiário bloqueava seu caminho. — Reverendo Leo Barnett — disse o repórter, um homem alinhado, os cabelos pretos e encaracolados, usando óculos e um terno azul de três peças —, o que o senhor, com sua posição bem conhecida sobre os direitos dos curingas, está fazendo aqui, na Fronteira? O jovem pregador sentiu a vida passando-lhe diante dos olhos. Ele conseguiu abrir um sorriso amarelo. — Ah, minha companheira e eu estamos simplesmente procurando um lugar para comer. — Tem alguma declaração a fazer para as páginas sociais? — perguntou o astuto repórter. Os cantos da boca do jovem pregador inverteram a posição. — Tenho como política nunca responder perguntas de natureza pessoal. Esta jovem está me fazendo companhia esta noite. Ela trabalha na nova missão que minha igreja abriu no Bairro dos Curingas e sugeriu que experimentássemos um pouco da cozinha fina que a Fronteira tem a oferecer. — Alguns comentaristas acham estranho, peculiar até, que um homem que se opôs aos direitos dos curingas de forma tão veemente no púlpito esteja tão preocupado com as provações diárias deles. Por que o senhor abriu essa missão? O jovem pregador não gostou da atitude do repórter. — Tinha uma promessa a cumprir, foi o que fiz — ele disse, seco, tentando insinuar que a entrevista estava terminada. O que era, na verdade, precisamente o oposto de sua verdadeira intenção. — E qual foi essa promessa? Quem fez o senhor prometer? Sua congregação? O repórter mordera a isca. Agora, a maior dificuldade do jovem pregador era manter uma expressão séria. As informações na sua mente não haviam sido declaradas antes, e seus instintos acreditavam que aquelas eram as circunstâncias certas para fazê-lo. — Bem, se você insiste. — Há muita especulação sobre a questão, senhor, e acho que o povo tem o direito de saber. — Bem, conheci um jovem que havia sido infectado pelo vírus carta selvagem, e por isso teve muitos problemas. Ele pediu para me ver, e eu vim. Oramos juntos e ele me disse que eu não poderia fazer nada por ele, mas me fez prometer que eu ajudaria o máximo de curingas que pudesse, então talvez eles
não se envolvessem no mesmo tipo de problemas que ele. Eu fiquei muito tocado, e por isso prometi. Poucas horas depois, ele foi eletrocutado. Eu assisti quando vinte mil volts de força o atingiram, e sabia que precisava manter a promessa, independentemente do que as pessoas pensariam. — Ele foi executado? — O repórter perguntou de um jeito estúpido. — Sim, era um assassino de primeiro grau. Transformou algumas pessoas em pilares de sal. — O senhor fez essa promessa a Gary Gilmore? — O repórter perguntou, incrédulo, o rosto pálido. — Exatamente. Embora seja possível que ele não fosse um curinga, talvez algumas pessoas o chamassem de ás, ou um indivíduo com alguns dos poderes que se esperam de um ás. Não sei, de verdade. Estou descobrindo essas coisas apenas agora. — Entendo. E a abertura de uma missão no Bairro dos Curingas teve algum efeito na sua posição quanto aos direitos deles? — De forma alguma. O homem comum ainda precisa ser protegido, mas eu sempre enfatizei que precisamos de compaixão para lidar com as vítimas do vírus. — Entendo. — O rosto do repórter continuou pálido, enquanto o sonoplasta e o operador da minicâmera sorriam, complacentes. Evidentemente eles perceberam, assim como o jovem pregador, que faltava ao repórter a rapidez de raciocínio necessária para fazer uma pergunta lógica na sequência. Mas, como o jovem pregador estava se sentindo razoavelmente compassivo — bem como confiante de que tinha acabado de conseguir sua “boquinha” de sessenta segundos no noticiário —, resolveu dar uma trégua para o repórter. Mas, uma trégua leve. — Minha companheira e eu precisamos comer alguma coisa, mas acho que temos tempo para mais uma pergunta. — Sim, há mais uma coisa que certamente nossos espectadores gostariam de saber. Afinal, o senhor não fez segredo quanto às suas ambições presidenciais. — É verdade, mas eu não tenho nada mais a acrescentar sobre o assunto agora. — Só responda esta, senhor. O senhor acabou de fazer 35 anos, a idade mínima para o cargo, mas alguns oponentes em potencial declararam que não seria possível um homem com 35 ter a experiência de vida necessária para o posto. Como o senhor responde a essas declarações? — Jesus tinha apenas 33 quando mudou o mundo para todo o sempre. Certamente, um homem que chegou à vasta idade de 35 pode fazer algo de bom. Agora, se me dão licença... — Pegando Belinda May pelo braço, ele passou pelo repórter e pela equipe e entrou no restaurante. — Desculpe, Leo, eu não sabia... — ela disse. — Tudo bem. Acho que cuidei bem deles e, além disso, eu já queria ter contado aquela história há um tempo. — Você encontrou mesmo Gary Gilmore? — Sim. Era um segredo bem guardado. Não havia mesmo necessidade de revelá-lo antes, embora pudesse ter feito bem para a área de relações públicas
da missão. — Então, talvez você tenha encontrado Mailer. Ele disse que não foi capaz de confirmar todas as identidades das pessoas que viram Gilmore no fim. — Por favor, vamos manter alguns segredos. Do contrário, o que teremos para descobrir um do outro amanhã? — Gostariam de uma mesa para dois? — perguntou o maître, um homem de fraque e cara de peixe usando um capacete com água para respirar. As palavras do pequeno alto-falante no capacete eram um gargarejo sinistro. — Sim, no fundo, por favor — disse o jovem pregador. Quando já estavam sozinhos no reservado, Belinda May acendeu outro cigarro e disse: — Se aqueles repórteres descobrirem sobre a gente, ajudaria se garantíssemos para eles que fazemos sexo apenas com a missão de procriar?
V
Quasim não temia a morte, e a morte certamente não o temia. Ele vivia com um pequeno pedaço dela em sua alma todos os dias, um pouco de terror e beleza, de sangue e trovão. Fragmentos desse falecer vindouro chocavam-se perpetuamente com as imagens efêmeras de seu passado pré-viral dentro do cérebro. O quanto esses fragmentos eram distantes? Quasim tinha a sensação de que o futuro talvez estivesse mais perto do que ele esperava. Seguiu arrastando os pés até uma banca de jornal e parou diante de uma fileira de revistas para meninas. Pensou como havia algo perturbadoramente familiar no rosto do homem no qual havia tropeçado, algo que lhe escapava enquanto partes de seu cérebro se voltavam para outra dimensão. Quasim teria largado tudo até se lembrar, mas naquele momento descobriu que era mais importante lembrar primeiro por que tinha vindo à Fronteira naquela noite. De repente, sua mão ficou muito fria. Ele a olhou: tinha ido para outro lugar, e o pulso diminuía aos poucos até ficar um coto, como se a mão tivesse ficado transparente. Sabia que ainda estava presa ao braço, do contrário ele não sentiria a dor intensa como quando uma criatura extradimensional lhe comera um dedão desgarrado. O frio extremo adormeceu seu braço até o ombro, mas não havia nada que ele pudesse fazer, exceto sofrer até a mão voltar. O que aconteceria logo. Provavelmente. Ainda assim, ele não conseguiu deixar de pensar em como Cristo visitou uma sinagoga e curou um homem que tinha a mão atrofiada. Algo em seu coração, parecido com fé, lhe dizia que o Padre Lula o enviara
à Fronteira naquela noite para uma missão. Era discutível se a ideia da missão havia ou não sido originada pela mente fervorosa do padre — muitos estilos de vida exigiam a ajuda da Igreja de Nossa Senhora das Dores Perpétuas, e o sacerdote ficava muito feliz ao fornecê-la quando via que só o bem poderia resultar da ajuda. Quasim subiu e desceu a rua, observando a cena. Sua suspeita aumentou quando viu uns poucos homens sentados em mesas na calçada. As roupas amarrotadas de um homem na banca de jornal, ele lembrou, indicavam que provavelmente não era o tipo que passava muito tempo olhando revistas de economia. Finalmente, um número incomum de homens em alerta e de rosto carrancudo estavam sentados em carros, observando, esperando. Vários pequenos pedaços de morte manifestaram-se no cérebro de Quasim — morte que apontava, graças a Deus, para eles. Por um momento, ele viu as ruas manchadas de sangue. Mas uma inspeção mais próxima do ambiente indicou que fora apenas uma ilusão de ótica causada pelo reflexo do neon vermelho na água parada em alguns buracos grandes e rasos. No entanto, a revelação não podia explicar o cheiro de sangue e o medo que permeava o ar, como uma lembrança do que ainda não aconteceu. Quando partes importantes dos músculos de sua coxa direita desapareceram para outro plano de existência, onde o ar tinha uma leve acidez, Quasim seguiu até uma esquina. Lá, fingindo ser um pedinte, esperaria o sangue e o medo se tornarem reais. A lembrança do trovão ecoou em seus ouvidos.
VI
— A guerra é ruim para os negócios — disse o Homem filosoficamente. Estava sentado com as pernas cruzadas em uma cadeira no canto da sala, ao lado de uma mesa e de outra cadeira. Rolava, distraído, o charuto pela metade nos dedos. — É essspecialmente ruim para oss perdedoresss — disse Vermis com um sorrisinho, sentando-se na outra cadeira. Vito estava em pé, na porta, com os braços cruzados diante do peito, e sentiu seu corpo gelar por dentro. Ele achava, como provavelmente o Homem e os rapazes, que aquele curinga era outro negociante cujos interesses eram ilícitos, como os deles. Mas não conseguia deixar de sentir que esse tal Vermis tinha intenções ocultas. Se o cabeça do clã dos Calvino estava tão perturbado quanto Vito, ele não
dava sinal. Comportava-se com vigor, seguro em sua posição de comando dos outros quatro homens dentro do quarto. Desses, Mike e Frank eram simples executores; Vito não tinha medo deles, mas também não queria estar contra eles. E sempre era prudente ter um pouco de medo de Ralphy, mesmo quando ele estava de bom humor. Mesmo assim, Vito percebeu que o Homem agia com deferência deliberada diante do curinga, que, por sua vez, não conseguia manter a língua bífida dentro da boca. Assim, durante a reunião, sempre que Vermis erguia a voz, o Homem o tranquilizava. Quando fazia exigências, dizia que veria o que ele e os rapazes poderiam fazer para chegar a um acordo. E sempre que Vermis o provocava a ultrapassar um limite, o Homem educadamente declinava. Vito admitiu que precisava nutrir alguma preocupação pelo futuro das Cinco Famílias se tinham que se ajoelhar diante dos curingas para sobreviver. — Além dissso, o homem morre um pouco a cada dia — disse Vermis com um sorriso críptico. — Que diferença fazzz se ele morrer de uma vezzz? O Homem riu, condescendente. Se Vermis notou o insulto implícito, não deu sinal. — No passado, eu pensava como o senhor — disse o Homem. — Eu me deliciava com os momentos de problemas e tinha grande prazer ao ver meus inimigos caírem. Mas isso foi antes de me casar e formar uma família. Comecei a ansiar por uma maneira mais disciplinada de resolver diferenças. Por isso estamos nos reunindo agora, para que possamos resolver nossas diferenças como seres humanos civilizados. — Não sssou particularmente humano. O rosto do Homem enrubesceu. Ele balançou a cabeça. — Perdão. Não quis ofender. Vito olhou para Ralphy, recostando-se na parede ao lado da mesa. O rosto dele estava fisgando, um sinal de que estava começando a ficar desconfiado; os dedos da mão direita também se contraíram. Ralphy e o Homem trocaram olhares, e em seguida o Homem voltou-se para Vermis, enquanto Ralphy lançava um olhar significativo para Mike e Frank , que estavam sentados na cama, observando com cuidado os procedimentos. Os dois assentiram. Vito não estava exatamente seguro do significado daqueles sinais, mas definitivamente não perguntaria. — Houve muitas mortes, muito derramamento de sangue — disse o Homem. — E para quê? Não entendo. Esta cidade é grande. É uma via de acesso para o restante do país. Com certeza, há oportunidades suficientes para todos. Vermis deu de ombros. — O sssenhor não entende. Meusss sóciosss bussscam algo maisss que apenasss forrar osss bolsosss. — É o que estou tentando dizer — retrucou o Homem —, mas, por favor, não me leve a mal. A ambição é uma coisa grandiosa e nobre. Faz o mundo girar. Deixa o mercado aquecido. Vermis deu de ombros novamente. — Aquecido ou em baixa, é tudo igual para o homem que é dono do prédio onde o mercado essstá. Meusss ssssóciosss reivindicam nossa parcela justa de
cada negócio em operação nessste mercado. O que o sssenhor tira dele é assunto ssseu, mas terá de barganhar conosssco primeiro. Ralphy ergueu-se. Mike e Frank pousaram a mão sobre as armas nos coldres embaixo das jaquetas, mas foram impedidos por um sinal que o Homem fez com o indicador. O silêncio preencheu o quarto como um cheiro de pizza, e Vermis correu a língua bífida sobre o rosto, como se antecipasse os petiscos suculentos que viriam. Vito considerou para qual lado deveria se desviar. O Homem encarou Vermis por um bom tempo. Pensativo, coçou o queixo duplo. Encaixou o charuto na boca, tirou um isqueiro do bolso e, em poucos segundos, preencheu o quarto com o odor pungente de tabaco cubano aceso. — Vito, estou com fome. — Ele tirou a carteira, que Ralphy pegou e entregou ao garoto. — Pegue meus cartões de crédito e vá até o sushi do outro lado da rua. Peça uma seleção generosa. Para seis! Quem sabe, quando você voltar, nossos negócios já não estarão fechados e a gente esteja vendo um jogo de hóquei. Não é, sr. Vermis? Vermis chiou em concordância. — É incrível como o jogo fica muito mais empolgante a cada ano — o Homem falou, recostando-se confortavelmente na cadeira. — A partida dos Ranger hoje à noite vai ser boa, não vai, sr. Vermis? Dessa vez, Vermis apenas balançou a cabeça. Correndo em direção ao elevador, Vito percebeu como ficou aliviado ao afastar-se da presença de Vermis. Ele imaginou que o Homem se sentiria da mesma maneira, e admirava como o chefe escondia o desconforto. Vermis parecia não notar. No entanto, era quase impossível saber o que um curinga percebia e o que simplesmente escolhia ignorar.
VII
— O que seu pessoal quer? — o Homem perguntou com raiva a Vermis depois que Vito saiu. — Nós dois somos empresários. O que podemos fazer razoavelmente para que consigamos viver em harmonia? Vermis sibilou. — Sssim, essa é a quessstão. A organização que eu represento, como a organização que você representa, é muito grande. Já tem influência consssiderável. Então, claro, ela quer maisss. O Homem soltou fumaça do charuto.
— Sua ambição não me escapou — ele disse com sarcasmo. Vermis sorriu. — Não achei que essscaparia. Estou apenas enfatizzzando que, como o sssenhor, não posssso fazer promesssas pelos outrosss. — Ah, mas eu posso — respondeu o Homem, fazendo um gesto sutil que impediu Ralphy de dar “o sinal” para Mike e Frank. — E aposto que o senhor também, do contrário não teria se dado ao trabalho de vir a essa reunião conosco, sozinho. Não somos ingênuos, sr. Vermis. O senhor deve ter alguma liberdade para barganhar, ou não haveria motivo para estar tão, tão sozinho... — O senhor está sozinho, não é? — Ralphy perguntou, ignorando completamente o olhar enfurecido que o Homem lhe lançou enquanto passava por Vermis para chegar até a janela e espiar pela cortina, olhando para a rua. — Claro que essstou — Vermis retrucou. De repente, eles ouviram os sons de dois homens brigando no corredor. O tom rapidamente tornou-se violento. Perceberam quando um punho acertou um queixo. Alguém grunhiu e bateu com força contra a parede, tum! O impacto fez o chão tremer. Um dos homens rosnou um xingamento e, em seguida, um novo baque, tum!, contra a outra parede, duas vezes mais alto que o anterior. Ralphy afastou-se da janela e virou-se para Mike e Frank. — Vão olhar. — O barulho continuava com força total. Os dois, obedecendo, saíram do quarto. Ralphy seguiu-os até a porta para garantir que estava trancada. Ouviram Mike dizer algo, em seguida o corredor ficou em silêncio. — O senhor ainda não respondeu à minha pergunta — o Homem disse. — Que pergunta? — Vermis retrucou, erguendo os olhos para Ralphy enquanto o executor voltava à posição na janela. — O que podemos fazer para viver em harmonia? — Ah, eu acho que podemosss chegar a uma resssposta razzzoável. De repente, bateram à porta. — O que foi? — Ralphy gritou. — Melhor você vir até aqui. — Era Frank . — Bom — disse o Homem, respondendo à observação de Vermis. — A Família Calvino quer ser razoável. Vermis chiou, a língua saindo e entrando da boca. Ralphy abriu a porta e gritou: — O que foi, pelo amor de Deus?! A resposta foi um tiro. A bala abriu um buraco do tamanho de uma moeda de um dólar nas costas de Ralphy, espalhando sangue vermelho brilhante pelo quarto. Ele morreu antes de chegar ao chão, se contorcendo, os olhos encarando o teto, sem expressão. Em pé na porta estavam dois brutamontes vestindo parcas. Eles usavam máscaras de plástico que, mesmo em seu estado de surpresa e choque, o Homem achou estranhas, perturbadoramente familiares. Frank estava entre eles, com uma arma apontada para sua cabeça. Outro tiro, e uma erupção de sangue e cérebro espirrou de sua têmpora e se espalhou no chão. Frank caiu encolhido.
— Mike? — disse o Homem, com suavidade. Fazia muitos anos desde que havia testemunhado violência pessoalmente. Ele não parou porque estivesse com medo ou por ter amolecido com a idade, mas porque seus advogados aconselharam que conduzisse seus negócios dessa forma. Então, sua reação foi um pouco lenta — um pouco lenta demais para perceber que agora estava totalmente sozinho. Quando ele se levantou com a intenção de chamar seus homens na rua, Vermis já o havia agarrado. Ele lutou, mas o outro era muito forte. O Homem parecia uma boneca de pano nas mãos dele. A última coisa que viu foi a boca aberta de Vermis chegando mais perto de seu rosto. Em pânico, ele fechou os olhos e os manteve assim quando recebeu um beijo. Tentou gritar, em seguida a inconsciência o arrebatou, quando Vermis arrancou seus lábios e cuspiu-os no chão.
VIII
— Cadê nossa comida? — o jovem pregador perguntou, meio impaciente, meio retoricamente. Então, viu a garçonete chegando com uma série de bandejas em braços estranhamente largos. Ela parou dois reservados adiante e serviu dois pratos de cozido de frutos do mar em barquinhos de alga, um de macarrão picante com molho de missô e amendoins, e outro com uma variedade de tempurá de carnes e vegetais. Em seguida, uma grande tigela de arroz e refil de refrigerantes foram rapidamente adicionados à mesa inteira. O ar-condicionado carregou o aroma fresco do tempurá até o jovem pregador, e sua boca se encheu de água com a expectativa. O verme da inveja roía sua alma quando ele fez uma rápida inspeção dos sortudos para quem a comida já havia chegado. Eram três casais, inclusive um oriental. Pareciam bem normais, mas ele se viu incapaz de tirar os olhos da vítima do vírus de pele escarlate: uma bela mulher com olhos facetados de um rosa suave, como os de uma borboleta, e duas grandes antenas vermelho-sangue saindo da testa. Usava um vestido decotado que revelava suas formas sedutoras, surpreendentemente normais. Deduziu que a capa prateada cintilante pendurada em um cabideiro próximo era dela. O salão do restaurante tinha formato em L, com a porta de entrada e o caixa no canto central. O jovem pregador e Belinda May se sentaram na fileira de reservados na ponta mais distante do corredor mais curto, que não se via da vitrine que corria na lateral do mais longo. Ele deixou de olhar a bela ás e
observou o maître com cara de peixe acomodar um casal que ria e fazia piadas entre si. Na cabine de recepção havia um jovem triste, cujo cabelo preto escorrido o fazia parecer-se com algum delinquente juvenil ou punk de um filme de gângster. — Leo, você está encarando aquela mulher — disse Belinda May, lançando uma luz perversa de seus olhos. — Não. Estava olhando para aquele garoto. — Hum. Aposto que é algum tipo de jovem gângster. Estão todos na rua hoje à noite, por algum motivo. Você notou? — Não, não notei. — De qualquer forma, antes você estava olhando para aquela ás. — Bem, sim. Quem é ela? — Seu nome é Pesticida. Ela está ficando bem conhecida, graças à coluna social que escreve no Grito do Bairro dos Curingas. De qualquer forma, se você vai olhar para alguma mulher esta noite, essa mulher sou eu. O jovem pregador ergueu sua xícara de café como se fizesse um brinde. — Combinado. Em seguida, o verme da inveja finalmente foi vencido quando a garçonete trouxe a comida. Em poucos segundos, todos os pensamentos sobre a conversa anterior foram apagados quando o jovem pregador pegou um pedaço de hirame, o linguado, com seu branco liso como mármore brilhante chamando-o como uma luz branca e fria. O arroz frio era excelente, e o gosto do linguado delicioso. Os dedos de Belinda May se agitavam sobre a seleção de sushis e tempurás em sua bandeja. Rapidamente, ela pegou um pedaço de atum vermelho-escuro. Mordeu o atum pela metade e mastigou com uma expressão de êxtase — da qual se lembrava muito bem. Ele pegou um camarão com cauda em forma de leque e o mordeu inteiro, exceto a ponta. O crustáceo estava abrindo caminho na sua garganta como um seixo num cano de água estreito quando uma rajada de ar repentina e fria passou pelo restaurante. Ele ergueu os olhos para ver os clientes dos outros reservados, inclusive Pesticida, olhando na direção da porta. Uma gangue de jovens entrou, vestidos com parcas masculinas. Era evidente que tinham algum objetivo sinistro em mente. O curinga com cara de peixe gorgolejou algo para eles pelo alto-falante do capacete, provavelmente pedindo que saíssem do estabelecimento. O brutamonte mais baixo, que parecia ser o líder, reagiu ameaçando com um martelo apontado para o capacete cheio d’água do curinga. O rosto deles, Leo pensou, os músculos em seu estômago apertando-se. Ele mal notou que o delinquente juvenil, se fosse mesmo um, fugiu pela porta. Algo no rosto deles... Os membros da gangue tinham o rosto igual, imóvel, estranhamente desprovido de vida. O jovem pregador percebeu num estalo que estavam usando máscaras de plástico. A semelhança sorridente — um nariz exageradamente arrebitado e uma mecha de cabelos loiros caindo sobre a testa ampla — era distorcida com uma expressão que seria satírica, se aqueles rapazes não exalassem uma ameaça obscura.
Com um lampejo de horror, ele reconheceu o próprio rosto. Os bandidos estavam usando máscaras de Leo Barnett! Ele mal sentiu o toque de Belinda May no braço pedindo-lhe calma quando saiu do reservado. — Não vá, não chame atenção! — ela sibilou. — São Lobisomens! Uma gangue de rua curinga. E eles sabem quem você é! Suas palavras lembraram-no de que muitos curingas haviam expressado publicamente seu ódio pelas posições políticas e morais que ele havia assumido no passado. A reação exagerada dos curingas apenas fortaleceu a crença de seus seguidores de que algo precisava ser feito para terminar com o problema do vírus carta selvagem. Por sua vez, a crença das vítimas de que algo precisava ser feito para terminar com a repressão política também se fortaleceu. O jovem pregador tremia. O que faria se os Lobisomens o reconhecessem? Pensamentos insanos de medo que o fizeram corar passaram pelo seu cérebro. Um momento antes, ele era um cliente semianônimo de um restaurante japonês; agora era um farol que qualquer um em perigo poderia apontar para distrair os Lobisomens. — Pelo amor de Deus, sente-se! — sibilou Belinda May, puxando-o para o seu lado. Ele aterrissou com um baque surdo. E um frio profundo o atravessou quando viu a mais próxima das faces mascaradas virar-se para ele. O som que fizera ao se sentar fora alto o suficiente. Instintivamente, ele pôs a mão sobre a boca, como para disfarçar um arroto ou uma observação inoportuna. E nos momentos seguintes ele ousou esperar que seu truque tivesse dado certo, pois o bandido parecia contente ao usar seu tentáculo para lambiscar as dobras de pele que pendiam embaixo da máscara. Enquanto isso, o maître foi imobilizado pela ameaça do martelo sobre o capacete. Um capanga tirou uma arma de baixo da parca. Houve comoção no fundo do restaurante, quando outros clientes reagiram à situação. Outro bandido puxou um facão do casaco e o lançou para o ar. Ele tocou a testa da máscara — um gesto que indicava poder telecinético sobre a arma, que girou para fora da visão no fundo do corredor, como uma versão gigantesca das mortais estrelas ninja que Leo vira em filmes de kungfu. Soou um rangido alto, shiiiiick. As pessoas gritaram. Puxando facas, dois outros brutamontes saíram de cena. O facão voltou à mão do arremessador como um bumerangue. Nesse meio-tempo, o homem do tentáculo balançou a cabeça para dois camaradas, apontou para alguém, em seguida para outra pessoa, e depois para Leo. O trio se espalhou. O jovem pregador mal notou os gritos do outro corredor. Meu bom Jesus, a mim não, não deixe que venham até mim, ele pensou. Naquele momento, com muito medo de que mesmo o menor movimento fizesse os Lobisomens o perceberem, ele parou de limpar as gotas de suor da testa. Independentemente do que aconteceria depois, o holofote da nação seria lançado sobre ele. Ele orou para o Senhor, pedindo orientação. Mas não veio nenhuma. Ele podia apenas aguardar e ter esperança. Os segundos seguintes pareciam éons, extensões infinitas de tempo pontuadas pelos
sons de metralhadoras, ou pneus guinchando e pessoas gritando. A Fronteira havia se tornado uma zona de guerra. Os agressores com as facas, agora ensanguentadas, voltaram. Seu líder gritou para aqueles que se aproximavam do jovem pregador. — Idiotas, o que vocês estão fazendo? Vamos embora daqui! O agressor com tentáculos olhou para trás apenas tempo suficiente para dizer: — Em um minuto. Temos alguns negócios para cuidar aqui. Um desordeiro obeso com pinças de lagosta no lugar das mãos parou ao lado do reservado onde Pesticida estava sentada, encaixou uma garra sob o queixo dela e ergueu-lhe o rosto ao seu nível. Um dos homens que a acompanhavam quase se moveu, mas foi detido por um olhar do terceiro agressor, que sinalizou claramente com sua pistola. — Linda, linda — disse o agressor. — Você não ficaria tão orgulhosa em mostrar seu rosto em público se fosse parecido com o meu. O brutamonte com tentáculos virou-se para o jovem pregador e moveu-se como se dissesse: “Você é o próximo”. O agressor que ameaçava Pesticida se distraiu pelo staccato dos tiros de uma metralhadora do lado de fora, e Pesticida aproveitou a oportunidade para tirar a garra de seu rosto e levantou-se, desafiadora. Comparada ao homem que encarava, parecia pequena, frágil e indefesa. Enquanto isso, a sensação de indignação do jovem pregador crescia, sobrepujando o medo e o bom senso. O alarme do restaurante começou a soar de forma ensurdecedora, sem nenhum sinal de diminuição. O líder dos bandidos disse: — Isso foi uma estupidez, cara de peixe! — E estilhaçou o capacete cheio d’água do maître com o martelo. O curinga imediatamente começou a tossir, incapaz de extrair oxigênio do ar. Ele cortou as mãos nos estilhaços do capacete quando as levou à garganta, como se repelisse um estrangulador invisível. Enquanto todos estavam preocupados com os espasmos de morte do maître, uma estranha luz amarela começou a brilhar dentro de Pesticida. Ficou tão brilhante que as roupas pareciam um véu fino jogado sobre um holofote. Seu esqueleto inteiro ficou visível, coberto pelos contornos da pele e a silhueta turva dos órgãos internos. Uma força obscura que se juntava dentro dela tornou-se evidente. Ela abriu a boca, como se fosse gritar. Mas, em vez disso, uma luz intensa como a de um laser saiu de sua boca e atingiu o agressor com pinça de lagosta. Uma força preta correu garganta acima e saiu pela boca. E seguiu o caminho da luz. Era uma horda de horríveis insetos escarlate com asas nas costas, trinando como o coro incessante de um pesadelo. Cobriram o desordeiro como um enxame de gafanhotos antes que ele pudesse reagir. De imediato começaram a mastigar, triturando o casaco, a máscara, a casca de suas garras — atravessando-o em questão de segundos.
O agressor gritou e caiu para trás sobre a mesa de uma cabine vazia. Ele rolou para o assento e bateu freneticamente o que restava das garras no corpo, tentando em vão impedir que a horda de insetos continuasse sua lúgubre refeição. Durante toda a cena, Pesticida permaneceu imóvel, brilhando, encarando-o com olhos sem vida que no rastro de seu brilho interno lembrava joias escuras como ébano. Ela não percebeu outro agressor com uma arma apontada para sua cabeça. O tiro que soou foi apenas um pouco abafado pelo som do alarme. O cérebro de Pesticida espalhou-se contra a parede e sobre o amigo que estava ao seu lado. Ela caiu morta nos braços dele. O agressor afastou-se, apontando a arma para os outros dois companheiros dela. O líder chamou: — Vamos! Vamos sair daqui logo, porra! Belinda May gritou. — Não, Leo, não! O jovem pregador já havia cedido à raiva e avançara sobre os dois últimos agressores no corredor. Não tinha exatamente ideia do que planejava fazer. Sabia apenas que o único crime de Pesticida fora se defender, por mais estranho que fosse o modo. Seus planos mal definidos foram rapidamente abortados ao ser parado por um brutamonte de tentáculos — o braço do Lobisomem se alongava da manga! Ele se enrolou no pescoço do jovem pregador e ergueu-o do chão como uma boneca sendo enforcada. Ele chutou e sacudiu os braços; tentou gritar, desafiador, mas o tentáculo apertava demais. Tudo que conseguiu realmente fazer foi sufocar. Tinha ar apenas para respirar, nada mais. Ainda assim, continuava a chutar e lutar. Algo duro chocou-se contra a nuca dele. Era o teto. Ele sentiu o mundo girar quando o brutamonte retraiu parcialmente o tentáculo. Depois, puxou-o para perto. O jovem pregador encarou os olhos cinzentos e estranhos por trás da máscara. — Olha o que eu tenho aqui — o bandido disse. — Como é olhar para a própria cara, pastor? Não é bacana viver com medo, é? O jovem pregador meio gritou, meio engasgou-se. O Lobisomem riu de um jeito desagradável. — Preciso agradecer ao senhor por nos dar algo para brincar depois que a diversão de hoje à noite acabar. Não se preocupe. Vamos devolvê-la ilesa. Apenas seu orgulho ficará um pouco danificado. O jovem pregador transformou-se num animal, um animal acuado, enlouquecido. Seus punhos fracos batiam furiosamente, mas em vão, no tentáculo. Ele ouviu Belinda May gritar, mas não entendia exatamente o que estava acontecendo com ela, pois sentiu que era erguido. Sua última visão coerente foi a do agressor morto ainda sendo comido pelos insetos, que diminuíam a velocidade, agora que sua hospedeira havia morrido. Mesmo assim, metade do torso do agressor já havia sido consumido, bem como a maior parte de seus braços e coxas. Insetos trinando sem força saíam dos olhos do curinga e rastejavam no que restava da máscara para dar o último suspiro.
O último pensamento coerente do jovem pregador foi: Ah, bem. Ao menos ninguém pode me acusar de desmaiar , não nessas circunstâncias. Sua cabeça bateu contra uma viga, e as luzes se apagaram.
IX
Mãe de misericórdia, é o fim do Vito?, pensou o jovem capanga enquanto corria do restaurante japonês para a rua. Por um momento, teve a esperança de que tudo não passasse de imaginação, que os Lobisomens estavam apenas numa farra de furtos insignificante, e que ele voltaria ao quarto do hotel para encontrar o Homem incrivelmente irado por ele ter saído do restaurante antes mesmo de fazer o pedido. Então, o tiroteio começou. Vito se jogou na calçada e rolou para baixo de um automóvel. Ralou os joelhos no concreto e raspou a testa contra o metal, mas, exceto pela inconveniência do sangue pingando no olho esquerdo, estava longe de se importar com ferimentos bobos. A julgar pelo jeito que as coisas estavam indo, seria um cara muito sortudo se sobrevivesse àquela noite. Do outro lado da rua, dois dos rapazes estavam sendo atacados por mais membros da gangue de rua dos Lobisomens. Um dos rapazes conseguiu esfaquear um Lobisomem no peito, mas, quando o sangue jorrou no ar, outro Lobisomem atrás dele cortou sua garganta de orelha a orelha. Estava ficando difícil dizer que sangue era de quem. O outro rapaz tirou a arma, mas conseguiu apenas dar um tiro — acertando um Lobisomem bem no meio dos olhos da máscara de plástico — antes de ser fatiado em pedaços por um grupo de agressores. De fato, os Lobisomens, aparentemente sem se importar com o fato de suas vítimas estarem mesmo mortas, continuavam a cortá-las com tal frenesi que Vito temeu que pudessem jogar as partes arrancadas de carne para o restante da gangue. Claro que os outros Lobisomens estavam um pouco ocupados demais para pensar nisso. O caos irrompeu nas ruas da Fronteira. Limpos e curingas corriam em todas as direções, arranjando abrigo onde podiam, o que era muito difícil. Havia simplesmente muita bala voando para qualquer um estar em segurança por muito tempo. Aqueles Lobisomens não envolvidos em combates diretos com membros da Família Calvino disparavam metralhadoras indiscriminadamente em todas as direções, às vezes derrubando um camarada de gangue num esforço de atingir qualquer um que parecesse com um Calvino. Os membros da Família Calvino pagavam na mesma moeda, exceto por aqueles que estavam tentando fugir em seus carros.
Vito cobriu a cabeça com as mãos e observou como um Lobisomem ficou diante de um automóvel em movimento e estilhaçou o para-brisa a balas. Vito não conseguia dizer se o motorista levou as balas ou se simplesmente se desviou. De qualquer forma, o cara no banco do passageiro perdeu grande parte do cérebro. O carro bateu no Lobisomem atirador e, em seguida, carregou vários pedestres até se chocar com um carro estacionado. Alguns sobreviveram tempo suficiente para saber que seus últimos segundos seriam gastos na espera do incêndio do carro. A fumaça do fogo era espetacular. Pedaços de metal incandescente e carne tostada voaram alto e aterrissaram no chão numa espécie de balé violento em câmera lenta que Vito acreditava acontecer apenas nos filmes. Vito arrastou-se até a parte de trás do carro embaixo do qual estava, imaginando que estaria mais seguro se ficasse o mais longe possível de todos aqueles destroços quentes. Viu uma luta acontecer perto dele. Conseguia ver apenas as pernas das pessoas envolvidas, mas entendeu que um turista em pânico estava tentando arrancar a arma de um Lobisomem. A namorada do cara estava tentando impedi-lo. Vito ainda tentava decidir para quem deveria torcer quando o Lobisomem conseguiu derrubar o cara, que caiu de bunda e dobrado, sem fôlego pelo golpe. A moça — uma garota negra com vestido verde justo — ajoelhou-se ao lado dele e disse alguma coisa. Vito não conseguiu ouvir por conta de toda a barulheira, mas fosse lá o que tivesse sido dito, não adiantou de nada, porque dois segundos depois o casal foi perfurado de balas e caiu numa poça de sangue. O estômago de Vito apertou-se até quase desaparecer quando observou o Lobisomem se afastar. O garoto decidiu ficar onde estava até um dos lados ser dizimado ou os policiais chegarem, o que acontecesse primeiro. Ele não seria como um tolo se exibindo para a namorada, e não teria histórias de que se gabar para quem restasse do clã dos Calvino no dia seguinte. Ele sobreviveria, nada mais. Seria o bastante. Do outro lado da rua, um par de Lobisomens estúpidos jogava coquetéis molotov . Vito imaginou que era um inseto, deitado numa pilha de folhas, esperando que, se pensasse com bastante força, então talvez em algum nível ele se tornasse um inseto. Mesmo assim, ele pensou, talvez como inseto ainda ficasse grande demais. Vito virou para o outro lado e viu um par de pernas familiar ajoelhado ao lado do casal morto. A pessoa era baixa o suficiente e Vito conseguiu ver seu rosto. Era o corcunda, fazendo o sinal da cruz. Vito só pôde se perguntar de quanta inteligência dispunha esse lunático. De repente, o corcunda virou a cabeça, e Vito se viu encarando diretamente os olhos do cara. Ele acreditava ter visto muitas coisas acontecendo lá. Os olhos rapidamente se turvaram, como se estivessem espiando de algum lugar afastado na próxima esquina. O medo se manifestou nos olhos do corcunda. Seu rosto perdeu a cor, e ele abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas, fosse lá o que estivesse passando na sua mente, era tarde demais para dizê-lo. Numa fração de segundo, Vito foi engolido pelas chamas do coquetel molotov que estourou embaixo do carro, e ele teve a curiosa consciência de que
o corcunda encolheu-se por algo que ainda não havia acontecido.
X
O jovem pregador acordou no chão do restaurante japonês. O local estava cheio de gente tentando escapar do caos lá fora, que, pelo que ele pôde ouvir, lembrava uma das mais horrendas visões do Livro das revelações. O ponto onde ele jazia, no entanto, estava quase vazio. Tinha apenas alguns cadáveres e muitos insetos mortos. Não se via Belinda May em lugar nenhum. O jovem pregador ergueu-se, limpou os insetos mortos grudados no casaco e nas calças e, em seguida, sentou-se no reservado mais próximo para cuidar de sua cabeça dolorida. Tocou o ponto onde o latejamento era maior. Quando olhou para os dedos, estavam manchados com sangue seco. Lá fora, ele ouviu o som estridente das sirenes que se aproximavam. A polícia estava a caminho. Ele esperava que trouxessem um grupo completo de paramédicos. Claro que ainda havia todo aquele tiroteio e a gritaria rolando lá fora, então a cena do santo livro não havia terminado. De repente, o restaurante foi varrido por ondas de choque de uma explosão próxima. O jovem pregador mergulhou para baixo da mesa e bateu a cabeça contra o pedestal. Nem ligou. Depois do que havia passado, um pouquinho mais de dor excruciante não faria muita diferença. Ele se arrastou no chão através de uma pilha de insetos mortos, por baixo das pernas amolecidas da falecida Pesticida, e se perguntou onde estava Belinda May. Não conseguia pensar direito, mas sabia que não podia deixar que a confusão mental o impedisse de encontrá-la. O que as pessoas diriam? O que o Senhor diria, ou os repórteres? Pior, o que ela diria se ele tentasse conquistá-la de novo e ela descobrisse que o jovem pregador não teve coragem para enfrentar fogo e enxofre pela honra de abrir suas pernas como o mar Vermelho? Teve uma vaga noção das pessoas que tentaram impedi-lo quando ele se levantou e cambaleou para a rua, onde destroços de um carro chamejavam. Não havia tantas pessoas correndo em pânico quantas ele esperava. Corpos, ensanguentados ou torrados, estavam espalhados pelas calçadas. O jovem pregador esperava que a equipe de televisão estivesse gravando tudo isso. Cadê Belinda May?, ele se perguntou. Então, ele viu o brutamonte do tentáculo no meio da rua. Ele segurava Belinda May, desmaiada, bem alto, desafiando os outros a fazerem-na de alvo. O Lobisomem aproximou-se de alguns mafiosos com metralhadoras. Eles
estavam abatidos e baqueados, mas ainda estavam vivos. E estavam erguendo as armas. O brutamonte abaixou Belinda May. Ele a usaria como escudo!
XI
Agora que era tarde demais para fazer diferença, Quasim lembrou que o Padre Lula o enviara à Fronteira para impedir que Vermis assassinasse um don da Máfia. Claro que nem Quasim, Lula ou a pessoa que forneceu informações sobre o assassinato imaginou que Vermis cobriria seus rastros com um mar de sangue. Estava se provando ser uma ideia eficaz, ainda que brutal. E, embora Quasim soubesse que ninguém o culparia por não ter sido capaz de parar o derramamento de sangue daquela noite, ele se odiou por não ter feito nada para impedir todo esse sofrimento. Ele viu tantas pessoas morrerem. Alguns detalhes se perderam quando partes do cérebro surgiram e sumiram da realidade, mas nada podia diminuir a noção profunda de desolamento que o dominava. A pior morte fora a do rapaz escondido embaixo do carro. Ele assistiu às chamas o engolirem rapaz antes de o evento realmente acontecer. Talvez fosse por isso que era tão desalentador. Mas a noite não havia terminado ainda. Quasim vira o sangue, mas o trovão ainda estava por vir. Ele percebeu tarde demais os sons de sirenes se aproximando, quando decidiu que poderia também partir com o resto dos sobreviventes. Alguns mafiosos e Lobisomens ainda se digladiavam na rua, mas Vermis sem dúvida havia se escafedido muito tempo antes. Quasim ainda estava visualizando onde queria estar quando viu o Lobisomem, com uma mulher inconsciente no tentáculo acima da cabeça, caminhando no meio da rua na direção de um grupo de mafiosos. Estes ergueram as armas. Quasim não precisava de sentidos precognitivos para imaginar o que aconteceria em seguida. De alguma forma, porém, sabia que precisava salvar a mulher. Estava prestes a girar através do espaço quando viu o homem de rosto familiar correndo na direção do Lobisomem e da mulher. A explosão que reverberou na cabeça de Quasim não era exatamente a de um trovão.
XII
Se o jovem pregador pensasse a sério na questão, teria ajoelhado e rezado. Em vez disso, ele correu o mais rápido que pôde na direção do Lobisomem e derrubou-o. O tentáculo do Lobisomem estalou como um chicote, lançando Belinda May para longe. Ela aterrissou no capô de um automóvel. Ao mesmo tempo em que o Lobisomem e o jovem pregador caíram no chão, os dois membros do clã dos Calvino puxaram o gatilho das metralhadoras. Surpreendentemente, o jovem pregador não teve a expectativa da vida após a morte. Em vez disso, sentiu uma sensação curiosa de arrependimento, juntamente com uma noção particular, apenas levemente contraditória, de alívio. Ele atraiu sua mente para dentro de si e prendeu-a numa bola psíquica, lançandoa num lugar para onde ele antes não ousava olhar. Os tiros eram como trovoadas ampliadas a um poder infinito, e ele quase visualizou as balas percorrendo velozmente os canos. Se fosse o último nanossegundo de sua vida, bem, ele teria que vivê-lo com alegria. Ainda havia um bom tempo. Envolvido pelo frio, ele se sentiu caindo. Caindo, caindo, caindo em um inferno mais frio que qualquer pesadelo polar. Sentiu a alma se dissipar. A morte era assim? Logo ele se veria deitado na rua, cercado por outros que haviam morrido antes dele? Então, seria inexoravelmente atraído na direção de uma luz branca convidativa, onde a Virgem Maria e Jesus Cristo estariam lado a lado com sua mãe, esperando por ele de braços abertos? Finalmente ele saberia como era o céu? Por que, então, ele sentiu como se sua mente tivesse sido fatiada em mil direções? Centenas de flashes de calor intenso alternados com centenas de flashes de temperatura zero. De repente, acreditou que todos seus conceitos de eternidade eram apenas relógios vislumbrados num sonho, e seus conceitos do infinito eram apenas grãos em uma caixa de areia. O jovem pregador não podia escapar da noção de que havia se fundido, de alguma forma, com todos os momentos e locais concebíveis — um prelúdio da fusão com tempos e locais inconcebíveis que ficavam além dos confins da realidade. A morte estava se revelando uma experiência mais complicada do que ele jamais imaginara. Ele se perguntou se as balas já haviam penetrado seu corpo, se o crânio estava sendo estilhaçado e o coração e pulmões perfurados. Grato por não haver dor. Ainda. Talvez ele fosse poupado daquele aspecto desagradável da morte. Mas era estranho sentir-se tão inteiro e completo quando, de fato, estava-se despedaçando. Ainda era mais estranho que o nada, de primeiro incompreensível e indescritível, de repente se tornou apenas uma extensão do concreto, alinhado em intervalos variados, como uma calçada. O mais estranho de tudo era que, em vez de jazer na rua ao lado do Lobisomem morto, ele se descobriu vivo. A calçada estava encharcada de
sangue, felizmente nenhum dele. Mas o que era aquele peso sobre ele? Como aquilo havia parado ali? O peso deslizou para a calçada ao lado dele. Era o curinga corcunda com quem ele havia sido ríspido. Só que, dessa vez, o corcunda jazia de rosto para cima, sombrio como um cadáver, e afundava alguns centímetros no concreto. O jovem pregador conseguia apenas imaginar como, mas certamente o corcunda estava pagando o preço por salvá-lo. De repente, alguém apontou um microfone para o seu rosto. Ele ergueu os olhos para ver o repórter televisivo, rodeado por sua equipe remota, inclinado. O sonoplasta tinha uma bandagem ensanguentada e improvisada no pulso, e o repórter, um ferimento recente na testa. A câmera estava ligada. O som estava ligado. E o repórter disse: — Ei, Reverendo Barnett, como está se sentindo? Quer falar alguma coisa para seus... Mas, antes que o jovem pregador pudesse responder, um policial deu um tranco no repórter. Outro policial agarrou o jovem pregador e tentou afastá-lo do corcunda. O uivar das sirenes agitava o ar com vibrações estridentes, e uma horda de luzes vermelhas e azuis giratórias acrescentava um nível inteiramente novo de surrealismo à cena. — Fica longe de mim, porra! — o jovem pregador gritou, soltando-se do policial. Ele teve apenas uma vaga noção do homem do noticiário falando suavemente no microfone: — Vocês ouviram primeiro no Canal Quatro, pessoal, um ministro da Igreja usando um palavrão em público. Tenho certeza que muitos seguidores do Reverendo Barnett estão se perguntando o que o mundo está virando... O jovem pregador sentiu um lampejo de raiva do sujeito impertinente, mas decidiu ser paciente e implorar a Deus para amaldiçoá-lo mais tarde. Naquele momento, estava mais preocupado com o ás, ou curinga, ou o que fosse, que o salvara. Ele ajoelhou ao lado do homem, que se afundava cada vez mais na calçada. Um paramédico com expressão confusa ajoelhou-se ao lado da dupla. — Salve-o! — o jovem pregador implorou. — Você precisa salvar este homem. — Como? — perguntou o paramédico, desesperado. — Não sei o que aconteceu e, além disso, não consigo nem tocá-lo! Era verdade. As mãos do paramédico penetraram no corpo do corcunda. O paramédico gritou e tirou-as de uma vez, enfiando-as embaixo das axilas. Ele estremeceu, como se tivesse sido imerso num frio profundo. O jovem pregador se lembrou de ter sentido frio quando pensou que estava morrendo. Uma parte fria e obscura daquele frio ainda residia em sua alma como um amigo indesejado. Ele percebeu que nada que o paramédico ou qualquer um pudesse fazer ajudaria o corcunda. Gradualmente, ele se transformava num contorno do seu antigo corpo. Enquanto o jovem pregador assistia, o corcunda afundou mais alguns centímetros no concreto. Os olhos vidrados do pobre homem encaravam o céu, e sua respiração era dolorosa, como se o ar que ele arfava fosse inadequado
para o momento. — Quem é você? — Leo perguntou. — Como posso ajudá-lo? O homem piscou. Era difícil dizer o quanto estava lúcido. — Meu nome é... Quasim — ele sussurrou. — Nunca havia viajado com tanto peso antes... tão pesado... tão pesado para me manter inteiro... — Ele tossiu. O jovem pregador ergueu os olhos e viu Belinda May ajoelhando-se ao lado dele. — Você está bem? — ele perguntou diretamente, mas não de forma seca. — Sim — ela respondeu. — O que aconteceu com você? — Não sei, mas acho que esse homem foi o responsável. — Meu Deus... eu me lembro dele! Leo, você precisa ajudá-lo. — Como? Nem consigo tocá-lo. Aquela velha luz travessa voltou aos olhos de Belinda May. — Você é um pregador — ela disse num tom que lembrava muito aquele que ela usava quando dizia que queria ir para a cama com ele. — Cure o pobre diabo! Fazia muitos anos desde que o jovem pregador realizara um ato de cura pela fé. Ele se afastara da atividade, depois de ser aconselhado que não ficava bem no videoteipe, especialmente para um homem que planejava concorrer à presidência. Mesmo assim, ele não poderia deixar aquele nobre espírito definhar. Não se estivesse de alguma forma no seu... no alcance de Deus. Ele olhou para o céu. As nuvens, carregadas de chuva, eram ocasionalmente iluminadas pelos relâmpagos; o trovão era apenas um ribombar suave. Ele suspirou profundamente. Ergueu as mãos para as nuvens, para a terra embaixo do concreto da cidade, para as forças sombrias da criação. Reuniu tudo aquilo em seu espírito e num círculo único de energia. Em seguida, estendeu a mão para dentro de Quasim. O espectro de sensações em seus dedos claramente se originava em algum lugar que ele nunca conheceria — ao menos durante a vida. Esforçou-se para ficar calmo, ignorar o frio, desassociar-se da comichão das mãos e da dormência aterradora das pontas dos dedos. E quando acreditou que havia conseguido, disse com toda a paixão que pôde reunir: — Fique curado, filho da puta maldito! Fique curado! Finalmente, começou a chover. O trovão estourou diretamente sobre eles, como se um dispositivo nuclear estivesse partindo o céu ao meio.
XIII
Naquela noite, mais de cinquenta pessoas morreram na Fronteira. Mais de uma centena ficara seriamente ferida. Porém, a carnificina não foi a principal história do noticiário naquela noite, nem foi a maior manchete na maioria das primeiras capas do país. No fim das contas, a guerra de gangues já acontecia havia algum tempo, e o fato de muitas pessoas inocentes terem sido atingidas naquele horrível fogo cruzado era infeliz, mas não tinha realmente muitos reflexos, ao que se sabia, interessantes para o desenvolvimento diário das notícias. Havia um grande espaço entre Nova York e Los Angeles. Era conhecido como zona central norte-americana, e, para as pessoas que viviam lá, a história do momento era aquela sobre o Reverendo Leo Barnett anunciando sua candidatura a presidente dos Estados Unidos. Ele pousou as mãos sobre o contorno de algum pobre curinga e o trouxe de volta de uma viagem involuntária a paragens desconhecidas. Fizera algo que ninguém havia feito antes — usando apenas o poder de sua fé, havia curado um curinga. Tinha provado que o maior poder da Terra era o amor de Deus e de Jesus Cristo, e havia transferido um pouco daquele amor para o corpo de uma criatura que estava sendo poluída por aquele obsceno vírus alienígena. Mesmo a mídia liberal, que capturara aquele evento para que o mundo todo o visse em videoteipe, precisou admitir que o Reverendo Leo Barnett fizera algo incrível. Talvez não o qualificasse para ser presidente, mas certamente erguia sua cabeça para cima da manada. Também foi de grande ajuda que, imediatamente após curar o curinga e assistir aos paramédicos carregando-o numa maca, o Reverendo Leo Barnett não consultou seus assessores ou esperou para ver como o incidente repercutiria nas notícias ou como o público o receberia, e tenha simplemente caminhado até a série de câmeras e microfones e anunciado que Deus dissera que havia chegado o momento de ele declarar sua candidatura. Demonstrou, de forma clara e evidente, que podia tomar uma decisão e colocá-la em prática. Quase de imediato, a posição do Reverendo Leo Barnett nas pesquisas tornou-se muito alta, muito respeitável. Claro que alguns eleitores ficaram um pouco preocupados com a presença dele na Fronteira em primeiro lugar, especialmente com relação àquele quarto de hotel no qual ele e a jovem voluntária da missão haviam entrado, mas não era como se um deles fosse casado ou algo assim. E houve um falatório, que não foi confirmado nem negado, de um anúncio iminente de noivado. As mulheres do Partido Democrata, como se revelou mais tarde, ficaram especialmente impressionadas com o fato de que o Reverendo Leo Barnett talvez tivesse encontrado seu amor verdadeiro e seu destino político na mesma noite. Se fosse verdade, então talvez toda aquela carnificina não tivesse sido em vão.
Se Deus não julgar os Estados Unidos, terá que pedir perdão a Sodoma e Gomorra. — REVERENDO LEO BARNETT Candidato a presidente
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Todos os cavalos do rei
III
O ferro-velho ficava às margens das águas verdes e oleosas da baía de Nova York, no fim da Hook Road. Tom chegou cedo, destravou o cadeado e abriu com tudo os portões do alto alambrado. Estacionou o Honda ao lado da cabana descaída com telhado de latão onde Joey DiAngelis vivera com seu pai, Dom, nos dias em que o ferro-velho era uma empresa próspera, e ficou por um momento dentro do carro, com os braços cruzados sobre o volante, imerso em recordações. Havia passado tardes de sábado inteiras dentro daquela cabana, quando ainda era habitável, lendo as antigas edições de Jetboy para Joey depois de recuperar as coleções de quadrinhos que alimentariam uma fogueira na festa da Associação de Pais e Mestres. Lá adiante, atrás da cabana, era onde Joey costumava trabalhar nos carros, muito antes de se transformar no Joey “Junkyard” DiAngelis, rei das corridas de carros antigos. E, bem lá ao fundo, onde ninguém jamais entrava, atrás de uma montanha de sucata enferrujada, ele e Joey soldaram uma placa blindada sobre a estrutura de um fusca para fazer o primeiro casco. Mais tarde, muito mais tarde, depois de Dom já ter morrido e Tom ter comprado o ferro-velho de Joey e tê-lo fechado, cavaram o bunker embaixo do ferro-velho, mas não era tão sofisticado no início. Um encerado sujo de graxa era tudo o que tinham para se esconder. Tom saiu do carro e parou com as mãos bem enfiadas nos bolsos de seu velho casaco de suede marrom e disforme, respirando o ar salgado da baía. Estava um dia frio. Uma barcaça de lixo passava lentamente pela água, revoadas de gaivotas circundavam-na como moscas com penas. Era possível ver o contorno vago da Estátua da Liberdade, mas Manhattan havia desaparecido sob a névoa matutina. Encoberta ou não, ela estava lá, e, em uma noite clara, era possível ver as
luzes das torres reluzindo. Um inferno de visão. Casas decadentes e condomínios apertados de Hoboken e Jersey City que ofereciam uma vista como aquela passavam dos seis dígitos. Constable Hook era uma zona industrial, e o terreno de Tom estava cercado por um armazém de importação e exportação, um desvio ferroviário, uma usina de tratamento de esgoto e uma refinaria de petróleo abandonada, mas Steve Bruder dizia que nada daquilo importava. Aquele grande pedaço de terra, bem na zona portuária, era simplesmente nobre para incorporação. Bruder dissera isso quando Tom comentou que estava pensando em vender o antigo ferro-velho. Ele deveria saber, tinha ficado milionário com especulação imobiliária em Hoboken e Weehawken, transformando antigos prédios de apartamentos em grandes condomínios para os yuppies de Manhattan. Bayonne era a próxima, Steve falou. Em dez anos, toda essa indústria enferrujada desapareceria, dando lugar a novas incorporações residenciais, mas eles poderiam se adiantar e lucrar muito mais. Tom conhecia Steve Bruder desde a infância e o odiava cordialmente a maior parte do tempo, mas, para variar, as palavras de Bruder eram música para seus ouvidos. Quando Bruder se ofereceu para comprar o ferro-velho sem titubear, o preço fez a cabeça de Tom girar, mas ele resistiu à tentação. Analisou tudo muito rápido. — Não — ele disse. — Não vou vender. Quero ser sócio comanditário da incorporação. Eu forneço o terreno, você o dinheiro e o know-how, e dividimos os lucros meio a meio. Bruder lhe lançou um sorriso lento de tubarão. — Você não é tão tonto quanto parece, Tudbury. Alguém está te orientando ou é tudo ideia sua? — Talvez eu tenha finalmente ficado esperto — Tom respondeu. — Agora, o que me diz, sim ou não? Caga ou sai da moita, babaca. — Não é legal chamar seu sócio de babaca, idiota — Bruder falou, estendendo a mão. Tinha um aperto de mão firme, mas Tom tomou cuidado para não se contorcer. Tom olhou para o relógio. Steve chegaria com os banqueiros em uma hora. Apenas uma formalidade, ele disse. O empréstimo seria fácil; a propriedade brilhava de potencial. Assim que tivessem a linha de crédito, podiam começar a mudar o zoneamento. Por volta da primavera, teriam limpado o ferro-velho e subdividido o terreno em lotes. Ele não sabia por que havia chegado tão cedo... a menos que fosse apenas para recordar. Era engraçado que tantas memórias importantes tivessem suas raízes nesse ferro-velho... mas de alguma forma era adequado, considerando a maneira que sua vida fora até então. Mas tudo estava prestes a mudar. Para sempre. Thomas Tudbury estava a ponto de se tornar um homem rico. Tom caminhou lentamente ao redor da cabana, chutou um pneu careca no caminho e, em seguida, ergueu-o com a mente. Tirou-o um metro e meio do chão, deu um empurrão telecinético brusco que o fez rodar, e contou. No oitavo giro, o pneu começou a bambear, no décimo primeiro, ele caiu. Nada mau. Na
adolescência, antes de ele se espremer dentro de um casco, conseguia segurar aquele pneu no alto o dia todo... mas foi quando o poder era de Tom, antes de ele entregá-lo ao Tartaruga. Como entregou tantas coisas. — Vender o ferro-velho? — Joey disse quando Tom lhe contou seu plano. — Você tem certeza disso, não é? É um negócio sem volta. E se encontrarem o bunker? — Vão encontrar uma bosta de buraco no chão. Talvez fiquem intrigados por cinco, dez minutos. Então, vão jogar terra em cima e acabou. — E os cascos? — Não são cascos — Tom falou. — Só sucata que era usada como casco. “Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei”, lembra? Vou lá uma noite e viro o Tartaruga só o tempo suficiente para jogar tudo na baía. — Que desperdício — Joey lamentou. — Não foi você mesmo que me disse quanto dinheiro e suor investiu naquela porra toda? — Ele deu um grande gole na cerveja e sacudiu a cabeça. A cada ano que passava, Joey ficava mais parecido com seu pai, Dom. Os mesmos braços magros, a mesma barriga de cerveja dura como pedra, os mesmos cabelos grisalhos. Tom lembrou-se de quando eles eram pretinhos, sempre caindo sobre os olhos. Naquele tempo, antes dos anéis de abrir lata, Joey costumava usar um abridor de latas pontudo ao redor do pescoço num cordão de couro, até mesmo quando vestiu uma máscara barata de sapo e foi até o Bairro dos Curingas com o Tartaruga para ajudar a tirar o Dr. Tachyon de uma birra alcoólica. Isso acontecera vinte anos antes. Tachyon não envelhecera, mas Joey sim, e Tom também. Ele envelheceu sem crescer, mas tudo aquilo estava mudando agora. O Tartaruga estava morto, mas a vida de Tom Tudbury tinha acabado de começar. Ele caminhou à beira da baía. Faróis quebrados encaravam-no como muitos olhos cegos nas montanhas de carros mortos, e, uma vez, sentiu olhos vivos e virou-se para ver uma imensa ratazana cinza espreitando fora do interior úmido e apodrecido de um sofá vitoriano sem pernas. Nas profundezas do ferro-velho, ele passou por duas longas fileiras de refrigeradores antigos, todos com as portas cuidadosamente removidas. Na outra ponta, havia um pedaço de terra liso e nu onde uma placa de metal quadrada estava engastada no solo. Era pesada, Tom sabia de experiência própria. Olhou para o grande anel preso no metal, concentrou-se e, na terceira tentativa, conseguiu movê-la o suficiente para revelar a boca escura do túnel embaixo dela. Tom sentou-se na beirada do buraco e desceu cuidadosamente para dentro da escuridão. Lá embaixo, tateou a parede até encontrar a lanterna que havia pendurado ali, em seguida atravessou o túnel frio e úmido até chegar ao bunker. Os velhos cascos esperavam-no em silêncio. Ele precisava se livrar daquilo logo, sabia disso. Mas não naquele dia. Os banqueiros não fuçariam lá embaixo. Queriam apenas dar uma olhada na propriedade, ver a paisagem, talvez assinar alguns papéis. Havia muito tempo para jogar essa sucata na baía, ela não sairia dali. Margaridas e símbolos da paz pintados cobriam o casco dois; a pintura, no passado brilhante, agora estava baça e descascada. Olhar para ele era suficiente
para trazer de volta lembranças de músicas antigas, causas passadas, velhas certezas. A Marcha de Washington, folk rock no último volume em seus altofalantes, FAÇA AMOR, NÃO FAÇA GUERRA riscado nas placas. Gene McCarthy havia subido naquele casco e falado com sua costumeira eloquência irônica por vinte minutos inteiros. Belas garotas de camisetinha de alça e jeans brigavam por uma chance de ficar em cima do casco. Tom recordava-se de uma em particular, com olhos azuis de centáurea embaixo de uma faixa indiana sobre os cabelos loiros e retos que caíam até abaixo da bunda. Ela o amava, sussurrou quando se deitou no casco. Queria que ele abrisse a escotilha, a deixasse entrar; queria ver seu rosto e olhá-lo nos olhos; não importava se ele era um curinga, como costumavam dizer, ela o amava e queria que ele transasse com ela ali, naquele momento. Ela o deixou tão excitado que parecia ter um pé de cabra dentro das calças, mas não abriu o casco. Nem naquele momento, nem nunca. Ela queria o Tartaruga, mas dentro da armadura estava apenas Tom Tudbury. Ele se perguntou onde ela estaria agora, como estaria, do que se lembrava. Naquele momento, talvez tivesse uma filha com a idade que tinha naquela noite em que tentou se esgueirar para dentro do casco. Tom correu a mão sobre o metal frio e riscou outro símbolo da paz na poeira que se acumulava sobre a armadura. Realmente, parecia que ele fazia a diferença naqueles dias. Era parte de um movimento para impedir uma guerra, proteger os fracos. O dia em que Tartaruga entrou na lista de inimigos de Nixon foi um daqueles em que se sentiu mais orgulhoso. Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei... Além do casco pintado havia um outro, maior, mais plano, mais recente. Aquele tinha sido de muita serventia também. Parou ao lado do amassado onde algum lunático havia atirado uma bala de canhão. A cabeça ficara tilintando por semanas depois disso. Por baixo, Tom sabia, se você olhasse no lugar certo, conseguiria encontrar a marca de uma pequena mão humana afundada uns vinte centímetros na placa da armadura, uma lembrancinha deixada por uma ás patife que a imprensa chamava de Escultora. Era uma linda boneca encrenqueira; o metal e a pedra fluíam como água em suas mãos. Era uma queridinha da mídia até começar a usar as mãos para abrir portas de cofres de banco. O Tartaruga entregou-a para a polícia, se perguntando como eles impediriam que ela simplesmente saísse da cadeia, mas ela nunca tentou. Em vez disso, aceitou o perdão e foi trabalhar para o Departamento de Justiça. Às vezes, o mundo era muito estranho. Não restava muito dos cascos dois ou três, exceto pela estrutura e a placa blindada. O interior havia sido desmembrado havia muito para retirar peças. Câmeras, peças eletrônicas, aquecedores, ventiladores, o que quisesse; tudo aquilo custava dinheiro, que Tom nunca teve em abundância. Então, pegava partes de cascos antigos para construir o novo, onde pudesse. Não ajudava muito, ainda custava uma fortuna. Num cálculo por alto, ele havia gastado cinquenta mil no casco que os malditos takisianos tinham jogado despreocupadamente pela eclusa de ar, a maior parte vinda de um empréstimo, do qual ainda estava pagando as parcelas.
Na parte mais escura do bunker, ele encontrou o casco mais antigo de todos. Nem mesmo as camadas da placa blindada mal soldadas conseguiam esconder as linhas familiares do fusca com o qual eles começaram, no inverno de 1963. Lá dentro, ele sabia, era escuro e abafado, quase sem espaço suficiente para virar, e não tinha nenhum dos confortos dos cascos posteriores. Lançando o facho da lanterna sobre o exterior, ele suspirou por sua ingenuidade. Aparelhos de TV em preto e branco, um chassi de fusca, fiação com mais de vinte anos de idade, tubos de aspirador de pó. Estava mais ou menos intacto, mas irremediavelmente obsoleto. A simples ideia de que havia cruzado a baía dentro dele poucos meses antes quase o fazia estremecer. Ainda assim... era o primeiro casco, com as lembranças mais fortes. Ele olhou-o por um longo tempo, lembrando-se de como fora. Construí-lo, testá-lo, voar nele. Recordou a primeira vez que cruzara Nova York. Quase se borrou de tão apavorado. Então, encontrou o incêndio, arrastou aquela mulher com telecinesia até um lugar seguro — mesmo agora, todos aqueles anos depois, ele conseguia se lembrar com nitidez do vestido que ela usava, as chamas lambiscando o tecido enquanto a fazia flutuar até a rua. — Eu tentei — ele disse alto. Sua voz ecoou estranhamente na penumbra do bunker. — Eu fiz coisas boas. — Ele ouviu ruídos de arranhadura atrás dele. Ratazanas, provavelmente. Ele estava tão mal que conversava com ratazanas. Quem ele estava tentando convencer? Olhou para os cascos, três deles em uma fileira torta, tanta sucata destinada para o fundo da baía. Aquilo o deixou triste. Ele se lembrou do que Joey havia dito, sobre o desperdício que era, e aquilo lhe deu o início de uma ideia. Tom puxou um caderninho do bolso traseiro da calça e rabiscou uma anotação rápida para si mesmo, sorrindo. Ele havia brincado de levantar cascos por vinte anos e nunca havia encontrado a moeda embaixo de nenhum deles. Bem, talvez ele pudesse transformar os cascos antigos em um cofre inteiro de moedas. Steve Bruder chegou 45 minutos depois, usando luvas de couro e um casaco da Burberry, com dois banqueiros em seu luxuoso Lincoln Town Car marrom. Tom deixou que ele falasse enquanto caminhavam ao redor da propriedade. Os banqueiros admiraram a vista e educadamente dignaram-se a não notar as ratazanas do ferro-velho. Assinaram a papelada naquela tarde e comemoraram com um jantar no Hendrickson’ s.
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Concerto para sirene e serotonina
III
O vento vinha e ia como uma onda pesada, fazendo vibrar as janelas dos prédios na rua, levando bolotas gélidas contra os leões de pedra que ladeavam a entrada. Aqueles sons intensificaram-se quando a porta da Clínica do Bairro dos Curingas foi aberta. Um homem entrou e começou a bater os pés e tirar a neve de seu blazer azul-escuro. Não fez nenhum esforço para fechar a porta atrás de si. Madeleine Johnson, conhecida também como Chickenfoot Lady, fazendo plantão parcial na recepção para seu amigo Cock Robin, com quem tinha um lance bacana rolando, tirou os olhos de suas palavras cruzadas, bateu na barbela com o lápis e grasnou: — Feche a maldita porta, senhor! O homem baixou o lenço com o qual limpava o rosto e a encarou. Ela percebeu, então, que seus olhos eram facetados. Os músculos da mandíbula inchavam e desinchavam. — Desculpe — ele disse, e empurrou a porta até fechá-la. Depois virou a cabeça lentamente, parecendo examinar tudo na sala, mesmo que, com aqueles olhos, fosse difícil dizer ao certo. Finalmente, ele disse: — Preciso falar com o Dr. Tachyon. — O doutor está fora da cidade — ela afirmou —, e vai ficar fora por algum tempo. O que o senhor deseja? — Quero que alguém me coloque para dormir — ele respondeu. — Aqui não é uma clínica veterinária — ela disse, e se arrependeu um momento depois quando ele avançou, pois criou uma aura estranha e começou a emitir faíscas como um gerador de eletricidade estática. Ela duvidou que aquilo tivesse a ver com uma atitude carinhosa, pois os dentes estavam esgarçados e ele abria e fechava as mãos como se antecipando uma atividade vigorosa. — É... uma... emergência — ele falou. — Meu nome é Croyd Crenson, e provavelmente tenho um prontuário aí. Melhor encontrá-lo. Estou ficando
violento. Ela grasnou de novo, ergueu-se num salto e partiu, deixando duas penas pairando no ar diante dele. Ele estendeu a mão e se encostou na mesa. Em seguida limpou a testa novamente. Seu olhar pairou sobre uma xícara de café meio cheia ao lado do jornal dela. Ele a ergueu e tomou tudo. Momentos depois, veio um som de estalos do corredor que ficava depois da mesa. Um jovem loiro de olhos azuis parou no limiar e o encarou. Vestia uma camisa polo verde e branca, um estetoscópio e um sorriso de surfista. Da cintura para baixo ele era um pônei palomino com a cauda trançada com cuidado. Madeleine apareceu atrás dele e sacudiu as penas. — É ele — ela disse ao centauro. — Ele disse “violento”. Ainda sorrindo, o jovem quadrúpede entrou na sala e estendeu a mão. — Sou o Dr. Finn — ele disse. — Já pedi seu prontuário, senhor Crenson. Venha comigo até o consultório e o senhor poderá me dizer o que o incomoda enquanto esperamos. Croyd cumprimentou-o com um aperto de mão e meneou a cabeça. — Tem café lá atrás? — Acho que sim. Vou mandar buscar uma xícara para o senhor.

Croyd caminhava na sala pequena, bebendo café avidamente, enquanto o Dr. Finn lia seu histórico, bufando em várias ocasiões e, num momento, fazendo um barulho incrivelmente parecido com um relincho. — Não tinha visto que o senhor era o Dorminhoco — ele disse, por fim, fechando a pasta e olhando para o paciente. — Um tanto desse material aqui fazia parte dos livros da faculdade. — Ele bateu na pasta com um dedo bem manicurado. — Fiquei sabendo — Croyd respondeu. — Obviamente, o problema do senhor é que não consegue esperar o próximo ciclo para ficar e se curar — o Dr. Finn observou. — Por quê? Croyd conseguiu dar um sorriso amarelo. — É uma questão de ficar de boa com o risco, de ir dormir de verdade. — Qual o problema? — Não sei o quanto disso tem aí no prontuário — Croyd falou para ele —, mas estou com um medo terrível de dormir... — Sim, tem alguma coisa sobre sua paranoia. Talvez um aconselhamento... Croyd abriu um buraco na parede com um soco. — Não é paranoia — ele disse —, não quando o perigo é real. Eu posso morrer durante minha próxima hibernação. Com um ciclo de sono normal, posso acordar como o curinga mais nojento que você pode imaginar. Então, fico preso. É paranoia apenas se o medo é infundado, não é? — Bem — o Dr. Finn disse —, suponho que chamamos assim se o medo for realmente algo grande, mesmo justificado. Não sei, não sou psiquiatra. Mas vi
também no prontuário que o senhor tende a tomar anfetaminas para impedir o sono o máximo que pode. Deve saber que isso acrescenta um grande impulso químico a qualquer paranoia já existente. Croyd estava correndo o dedo pelo buraco que abrira com um soco na parede, arrancando as partes soltas do gesso. — Mas, claro, parte disso é semântica — o Dr. Finn continuou. — Não importa como chamamos. Basicamente, o senhor está com medo de dormir. Mas desta vez o senhor acha que deve? Croyd começou a estalar os dedos enquanto caminhava. Fascinado, o Dr. Finn contou cada estalo. Quando o décimo sétimo som ocorreu, ele começou a se perguntar o que Croyd fazia quando não tinha juntas nos dedos para estalar. — Oito, nove, dez... — ele subvocalizou. Croyd abriu outro buraco na parede com soco. — Hum, o senhor aceita mais café? — o Dr. Finn perguntou. — Sim, que tal uns três litros? O Dr. Finn saiu, como se tivessem dado a largada numa corrida.

Mais tarde, sem dizer a Croyd que ele tomava litros de café descafeinado, o Dr. Finn continuou a falar: — Estou com medo de dar ao senhor mais drogas além de toda a anfetamina que o senhor tomou. — Fiz duas promessas — Croyd disse —, que eu tentaria dormir desta vez, que eu não resistiria. Mas, se você não me apagar logo, provavelmente eu vou embora em vez de lidar com toda essa ansiedade. Se isso acontecer, com certeza vou me encher de bolinhas. Então, me apague com um narcótico. Estou disposto a arriscar. O Dr. Finn sacudiu a crina. — Prefiro tentar algo mais simples e muito mais seguro primeiro. O que acha de fazermos um pouco de sincronização das ondas cerebrais e sugestionamento? — Não conheço o procedimento — Croyd respondeu. — Não é traumático. Os russos o vêm experimentando há anos. Vou apenas grudar esses pequenos clipes nas suas orelhas — ele disse, esfregando os lóbulos com algo úmido — e enviaremos pulsos de baixa amperagem através da cabeça, digamos, quatro hertz. O senhor nem vai sentir. Ele ajustou um controle na caixa da qual os fios saíam. — E agora? — Croyd perguntou. — Feche os olhos e descanse por um minuto. Talvez tenha uma sensação de estar flutuando. — Tudo bem. — Mas tem peso também. Seus braços e pernas ficam pesados. — Estão pesados — Croyd reconheceu.
— Ficará difícil pensar em algo específico. Sua mente apenas vai flutuar. — Estou flutuando — Croyd concordou. — E deve ser muito gostoso. Provavelmente vá se sentir melhor do que o senhor se sentiu o dia todo, finalmente terá a chance de descansar. Respire lentamente e relaxe. O senhor está quase lá. Que ótimo. Croyd disse algo, mas era um murmúrio indistinguível. — O senhor está indo muito bem. É muito bom nisso. Em geral, conto de trás para a frente a partir do dez. Para o senhor, podemos começar de oito para a frente, pois já está quase dormindo. Oito. O senhor está muito longe e isso é bom. Nove. O senhor já está adormecido, mas agora vai dormir ainda mais fundo. Dez. O senhor vai dormir profundamente, sem medo ou dor. Durma. Croyd começou a roncar. Não havia camas sobressalentes, mas como Croyd assumiu a rigidez de um manequim antes de ficar verde e brilhante, sua respiração e batidas do coração reduzidas a algo entre um urso hibernando e um morto, o Dr. Finn deixou-o ereto no fundo de um armário de vassouras, onde ele não ocupava muito espaço, bateu um prego na porta e pendurou a prancheta com o prontuário de acompanhamento, após ter registrado: “Paciente extremamente sugestionável”.
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Maio de 1987
Todos os cavalos do rei
IV
— Preciso de uma máscara — ele disse. O atendente agigantou-se ao lado dele, grotescamente alto e magro, com uma postura tão imperiosa quanto a do faraó cuja máscara ele usava. — Claro. — Seus olhos eram dourados, como a pele da máscara. — O senhor teria algo em mente? — Algo impressionante — Tom falou. Poderia comprar uma máscara barata de plástico por menos de dois dólares em qualquer doceria do Bairro dos Curingas, boa o bastante para esconder seu rosto, mas, no Bairro dos Curingas, uma máscara barata era igual a um terno barato. Tom queria ser levado a sério naquele dia, e a Holbrook’ s era a loja de máscaras mais exclusiva da cidade, de acordo com a revista New York. — Se o senhor me permitir — disse o funcionário, estendendo uma fita métrica. Tom assentiu e examinou o mostruário de elaboradas máscaras tribais na parede ao fundo enquanto sua cabeça era medida. — Volto num instante — o homem disse e desapareceu no fundo da loja através de uma cortina escura de veludo. Passou de um instante. Tom era o único cliente na loja. Era um lugar pequeno, com iluminação baixa, muito bem equipado. Tom sentiu um desconforto intenso. Quando o atendente voltou, estava carregando meia dúzia de caixas embaixo do braço. Ele as distribuiu no balcão e abriu uma para Tom examiná-la. Uma cabeça de leão descansava num leito de papel de seda preto. O rosto era feito com algum tipo de couro macio, pálido, tão suave ao toque como o mais fino suede. Um halo de longos cabelos dourados cercava as feições. — Obviamente, nada é mais impressionante do que o rei dos animais — o atendente lhe disse. — Os pelos são genuínos, cada mecha tirada de uma juba de leão. Notei que o senhor usa óculos. Se nos fornecer sua receita, será um prazer
para a Holbrook’ s fazer óculos personalizados para sua máscara. — É muito bonita — Tom falou, acariciando os pelos. — Quanto? O atendente olhou para ele com frieza. — Mil e duzentos dólares, senhor. Sem os óculos. Tom puxou a mão abruptamente. Os olhos dourados no rosto do faraó encararam-no com cortesia condescendente e um traço de diversão. Sem dizer nenhuma palavra, Tom virou as costas e saiu da Holbrook’ s. Comprou uma cara de sapo de borracha por US$ 6,97 numa loja da Bowery com banca de jornal na porta e uma máquina de refrigerante ao fundo. A máscara ficou um pouco grande quando a encaixou na cabeça, e precisou usar os óculos equilibrados nas avantajadas orelhas verdes, mas o desenho tinha um certo valor sentimental. Que se dane o impressionante.

O Bairro dos Curingas o deixava muito nervoso. Por mais que ele já tivesse voado sobre suas ruas, caminhar naquelas mesmas vias era totalmente diferente. Felizmente, a Funhouse ficava bem na Bowery. Os policiais evitavam os becos mais escuros do Bairro dos Curingas como qualquer outra pessoa em sã consciência, ainda mais depois do início da guerra de gangues, mas os limpos ainda frequentavam os cabarés de curingas na Bowery, e onde os turistas iam, as viaturas também iam. Dinheiro dos limpos era o sangue da economia do Bairro dos Curingas, e esse sangue já estava bem ralo. Mesmo àquela hora, as calçadas ainda estavam agitadas, e ninguém dava muita atenção a Tom em sua cara de sapo mal encaixada. No segundo quarteirão, ele já estava quase confortável. Nos últimos vinte anos, vira toda a feiura que o Bairro dos Curingas tinha a oferecer pela televisão; este era apenas um ângulo diferente das coisas. Nos velhos tempos, a calçada diante da Funhouse estaria apinhada de táxis despejando passageiros e limusines esperando no meio-fio pelo fim do segundo show. Mas, naquela noite, a calçada estava vazia, nem mesmo um leão de chácara estava lá, e quando Tom entrou, encontrou a chapelaria também sem ninguém. Ele empurrou as portas duplas; uma centena de sapos diferentes encarou-o das profundezas prateadas dos famosos espelhos da Funhouse. O homem no palco tinha a cabeça do tamanho de uma bola de beisebol, e bolsas imensas e ásperas de pele caíam sobre todo seu torso nu, inflando e esvaziando como pulmões ou gaitas de fole, enchendo o salão com uma música estranha e triste quando o ar vazava de uma dúzia de orifícios improváveis. Tom encarou-o com um fascínio doentio até o maître aparecer ao seu lado. — Uma mesa, senhor? — Ele era atarracado e redondo como um pinguim com as feições escondidas por uma máscara de Beethoven. — Gostaria de falar com Xavier Desmond — Tom disse. Sua voz, parcialmente abafada pela máscara de sapo, soava estranha. — O senhor Desmond retornou do exterior poucos dias atrás — o maître
disse. — Foi delegado na excursão mundial do senador Hartmann — ele acrescentou, orgulhoso. — Temo que esteja bem ocupado. — É importante — Tom disse. O maître assentiu. — Quem devo anunciar? Tom hesitou. — Diga a ele que é... um velho amigo.

Quando o maître os deixou sozinhos, Des levantou-se e deu a volta na mesa. Movia-se lentamente, os lábios finos apertados com força atrás de uma longa tromba rosada que cresceu no rosto onde um homem normal teria um nariz. Em pé, na mesma sala com ele, era possível ver o que não se via em um rosto na tela da TV: como ele estava velho e doente. A pele pendia solta como suas roupas, e os olhos estavam revestidos de dor. — Como foi a excursão? — Tom perguntou. — Exaustiva — Des disse. — Vimos toda a miséria do mundo, todo o sofrimento e o ódio, e sentimos a violência na pele. Mas estou certo de que o senhor sabe de tudo. Está nos jornais. — Ele ergueu a tromba, e os dedos que pendiam em sua ponta tocaram a máscara de Tom. — Perdão, velho amigo, mas parece que não consigo ver seu rosto. — Meu rosto está escondido — Tom enfatizou. Des abriu um sorriso cansado. — Uma das primeiras coisas que um curinga aprende é como ver por trás de uma máscara. Sou um curinga velho, e a sua máscara é muito ruim. — Muito tempo atrás, você comprou uma máscara tão barata quanto esta. Des franziu a testa. — Você deve estar enganado. Nunca senti a necessidade de esconder minhas feições. — Comprou para o Dr. Tachyon. Uma máscara de galinha. Os olhos de Desmond encontraram os dele, surpresos e curiosos, mas ainda desconfiados. — Quem é você? — Acho que você sabe — Tom respondeu. O velho curinga ficou em silêncio por um bom tempo. Em seguida, assentiu lentamente e despencou na poltrona mais próxima. — Estão falando por aí que você está morto. Fico feliz que não esteja. Essa simples declaração, e a sinceridade com a qual Desmond falou, fez Tom sentir-se estranho, envergonhado. Por um momento, pensou que deveria ir embora sem falar mais nada. — Sente-se, por favor — Des ofereceu. Tom sentou-se, pigarreou, tentou pensar em como começar. O silêncio estendeu-se de um jeito desconfortável.
— Eu sei — Desmond disse. — É tão estranho para mim quanto deve ser para você, tê-lo aqui sentado na minha sala. Agradável, mas estranho. Mas algo o trouxe aqui, algo mais do que o desejo da minha companhia. O Bairro dos Curingas deve muito a você. Diga no que posso ajudá-lo. Tom lhe disse. Deixou de lado o porquê, mas contou sua decisão, e o que esperava fazer com os cascos. Enquanto falava, não encarou Des, os olhos pairavam em toda parte, menos no rosto do velho curinga. Mas as palavras saíram. Xavier Desmond ouviu educadamente. Quando Tom terminou, Des parecia de alguma forma mais velho e mais cansado. Assentiu lentamente, mas não disse nada. Os dedos de sua tromba se fechavam e abriam. — Tem certeza? — Des finalmente perguntou. Tom assentiu. — Você está bem? Des abriu um sorriso fino e cansado. — Não — ele respondeu. — Estou velho demais e minha saúde já não é das melhores, e o mundo insiste em me decepcionar. Nos dias finais da excursão, eu já ansiava voltar para casa, para o Bairro dos Curingas e para a Funhouse. Bem, agora estou em casa, e o que encontro? Os negócios ruins como sempre, as gangues guerreando nas ruas do Bairro dos Curingas, nosso próximo presidente talvez seja um religioso charlatão que ama meu povo com a mesma intensidade que quer botá-lo em quarentena, e o nosso herói mais antigo decidiu parar de lutar. — Des correu os dedos da tromba pelos cabelos finos e grisalhos, em seguida olhou para Tom, envergonhado. — Perdoe-me. Foi injusto da minha parte. Você se arriscou muito e por vinte anos nos defendeu. Ninguém tem direito de pedir mais. Certamente, se quiser minha ajuda, você terá. — Sabe quem é o proprietário? — Tom perguntou. — Um curinga — Desmond disse. — Ficou surpreso? Os proprietários originais eram limpos, mas ele comprou deles, hum, um tempo atrás. É um homem muito rico, mas prefere se manter nos bastidores. Um curinga rico, bem, é um belo alvo. Ficaria feliz em ajudar a arranjar uma reunião. — Claro — Tom falou. — Muito bom. Depois que terminaram a conversa, Xavier Desmond levou-o até a porta. Tom prometeu telefonar em uma semana para saber detalhes da reunião. Lá fora, na calçada, Des ficou ao lado dele enquanto Tom tentava chamar um táxi. Um passou, reduziu a velocidade, em seguida acelerou de novo quando o motorista avistou os dois. — Eu tinha esperança de que você fosse um curinga — Desmond falou baixo. Tom olhou para ele, sério. — Como sabe que não sou? Des sorriu, como se a pergunta mal merecesse uma resposta. — Suponho que eu quis acreditar, como muitos curingas. Escondido em seu casco, poderia ser qualquer coisa. Com todo o prestígio e fama que os ases têm, por que manteria o rosto escondido e seu nome em sigilo se não fosse um de nós? — Tive meus motivos — Tom lhe disse.
— Bem, não importa. Acho que a lição a ser aprendida é que ases são ases, mesmo você, e nós, curingas, precisamos aprender a nos cuidar. Boa sorte, velho amigo. — Des apertou a mão de Tom, virou-se e se afastou. Outro táxi se aproximou. Tom fez sinal, mas ele passou direto. — Acham que você é um curinga — Des falou da porta da Funhouse. — É a máscara — ele acrescentou, gentil. — Tire, deixe que vejam seu rosto, e não terá problema. — A porta fechou-se suavemente atrás dele. Tom olhou para os dois lados. Não havia ninguém à vista, ninguém para ver seu verdadeiro rosto. Com cuidado, nervoso, ele ergueu as mãos e puxou a máscara de sapo. O táxi seguinte freou com tudo bem diante dele.
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Laços de sangue
Melinda M. Snodgrass
I
— EU DESISTO! DESISTO! ELE NÃO PRECISA DE UM PRECEPTOR, PRECISA DE UM CARCEREIRO! DE UM MALDITO TREINADOR DE ANIMAIS! DE UMA JAULA! O bater da porta sacudiu os papéis das pilhas que ficavam em sua mesa como os bastiões de uma branca fortaleza de celulose. Tachyon, com um contrato de aluguel pendurado nos dedos longos, encarou a porta confuso. Ela abriu um pouco. Um par de olhos, nadando como luas azuis por trás de lentes grossas, espreitou cuidadosamente ao lado da porta. — Desculpe — Dita sussurrou. — Tudo bem. — Quantos já foram? — Ela apoiou uma nádega bem formada no canto da mesa. Os olhos de Tachyon correram para a extensão de coxa branca revelada pela fenda da minissaia. — Três. — Escola, talvez? — Talvez não. — Tach reprimiu um arrepio enquanto pensava na devastação que seu neto causaria no “mundo cão” de um colégio público. Com um suspiro, ele dobrou o contrato de aluguel do apartamento e enfiou-o no bolso. — Preciso ir para casa e ver como ele está. Tentar fazer outro acordo. — E essas cartas? — Terão de esperar. — Mas... — Algumas já esperaram seis meses. O que são mais alguns dias? — Inspeções...? — Volto a tempo. — A doutora Queen... — Não vai ficar feliz comigo. O que não é de se estranhar.
— O senhor parece cansado. — E estou. E como estou, pensou enquanto descia os degraus da Clínica Blythe van Renssaeler sem dar os tapinhas costumeiros na cabeça dos leões de pedra que ladeavam as escadas. Desde que voltara da excursão da Organização Mundial de Saúde, havia uma semana, tivera pouco tempo para descansar. Preocupações pululavam de todos os lados: sua impotência, que o deixava com uma sensação cada vez maior de pressão e frustração; a candidatura de Leo Barnett; as guerras de gangues que ameaçavam a vida pacífica (pacífica, que piada!) do Bairro dos Curingas; James Spector solto por aí e matando gente. Mas tudo isso parecia estranhamente distante, tão desimportante, meras bagatelas se comparadas à chegada de uma nova presença em sua vida. Um garoto agitado de 11 anos bagunçando sua rotina. Fez com que percebesse como um apartamento de um quarto pode ser pequeno e o quanto demorava para encontrar algo maior, e quanto mais isso custava. E, então, havia o problema dos poderes de Blaise. Durante sua infância, Tachyon com frequência criticava o rigor de sua criação takisiana como lorde psíquico. Agora, desejava poder aplicar um pouco das mesmas punições severas ao seu herdeiro excêntrico, que não conseguia enxergar a enormidade do seu pecado quando às vezes exercitava seus poderes psíquicos em humanos sem poderes mentais que o cercavam. No entanto, para ser honesto, não era simplesmente uma questão de poupálo do castigo. Em Takis, uma criança aprendia a sobreviver na atmosfera dominada por conspirações dos aposentos das mulheres. Cercadas como são por outros psíquicos, as crianças rapidamente ficam cautelosas no exercício irrestrito de seus poderes. Não importa o quanto um indivíduo fosse poderoso, sempre havia um primo mais velho, tio ou pai mais experiente e mais poderoso. Assim que saía do harém, a criança recebia um companheiro/servo de castas inferiores. A intenção era instilar nos jovens lordes ou ladies psíquicos uma noção de obrigação diante do povo simples que governavam. Aquela era a teoria — na verdade, em geral criava uma espécie de desprezo indulgente para com a maioria da população takisiana, e uma atitude mais descuidada que não era realmente muito interessante ou correta para compelir os serviçais a fazer as coisas. Mas houve tragédias — servos forçados a se destruírem por um capricho ou ataque de fúria por parte de seus mestres e mestras. Tachyon coçou a testa e considerou suas opções. Tagarelar sobre gentileza, responsabilidade e obrigações. Ou se transformar na coisa mais perigosa da vida de Blaise. Mas eu quero o amor do menino, não seu medo.

O garoto lembrava uma criatura feroz da floresta. Encolhido na grande poltrona, Blaise olhava seu avô com cautela e repuxava nervosamente as longas pontas do
colarinho à Van Dyke rendado que se estendia sobre os ombros do casaco branco de sarja. Meias vermelhas e uma cinta vermelha na cintura refletiam o vermelho sanguíneo dos cabelos. Tach jogou as chaves na mesa de centro e sentou-se no braço do sofá, mantendo uma distância cuidadosa da criança hostil. — Seja lá o que ele disse, eu não fiz. — Deve ter feito alguma coisa. — Eles conversavam em francês. — Não. — Blaise, não minta. — Não gostava dele. Tach caminhou até o piano e tocou algumas notas de uma sonatina de Scarlatti. — Os professores não vêm aqui para serem seus amigos. Eles vêm para... ensinar. — Já sei tudo que preciso saber. — É mesmo? — Tachyon prolongou as palavras em um longo e congelante sotaque. O queixo infantil se projetou, e os escudos de Tach repeliram um poderoso ataque mental. — Isso é tudo que eu preciso saber. Ao menos para as pessoas comuns. — Ele corou sob o olhar equilibrado do avô. — Sou especial. — Ser um grosseirão ignorante infelizmente não é algo tão único neste mundo. Vai encontrar um monte por aí. — Eu te odeio! Quero ir para casa. — A última palavra terminou num soluço, e Blaise enterrou o rosto na poltrona. Tach foi até ele e abraçou o menino, que estava aos prantos. — Meu querido, não chore. Está com saudades de casa, é natural. Mas não tem ninguém na França para te receber, e eu gosto muito, muito de você. — Não tem lugar para mim aqui. Você só está me encaixando na sua vida. Do mesmo jeito que ajeita livros na estante. — Não é verdade. Você deu sentido para a minha vida. — A observação era obscuramente adulta demais para uma criança entender, e Tachyon tentou novamente. — Acho que encontrei um apartamento novo. Vamos lá esta tarde, e você me diz como quer seu quarto. — Sério? — Verdade. — Ele limpou o rosto da criança com um lenço. — Mas, agora, preciso voltar ao trabalho, então vou levar você para a Baby e ela vai contar histórias dos seus ancestrais. — Très bien. Tach sentiu uma explosão momentânea de culpa, pois esse plano foi menos pensado para deixar Blaise feliz do que para garantir seu bom comportamento. Preso dentro das paredes da senciente e inteligente nave takisiana, Blaise estaria seguro, e o mundo de forma geral estaria seguro também. — Mas apenas em inglês — Tachyon acrescentou com seriedade. Blaise abaixou a cabeça. — Tant pis.

De volta à clínica para cinco horas de trabalho frenético. A maior parte dele, infelizmente, burocrático. Com um estalo, lembrou-se de Blaise e esperou que Baby fosse muito divertida. Depois de buscar o menino, Tachyon apressou-se para levá-lo à aula de caratê. Ficou sentado na saleta ao lado, lendo o Times, um ouvido desconfiado atento ao dojo. Mas Blaise estava se comportando. Show beneficente na Funhouse para vítimas de AIDS/Carta Selvagem. Como gosto de Des, Tachyon refletiu. Interessante que esse evento fosse acontecer no Bairro dos Curingas. Provavelmente nenhum outro lugar em Nova York abrigaria o show. Pediriam para colocar protetores plásticos nos assentos. Existiam muitas similaridades emocionais entre os dois flagelos. Como bioquímico, via uma correlação diferente, herpes com Carta Selvagem. Mas um evento beneficente com herpes/Carta Selvagem/AIDS ofereceria muitas oportunidades para insinuações sexuais infelizes. Alerta: o secretário de Saúde Pública adverte que transar pode ser perigoso para sua saúde. — Se for assim, vou viver uns duzentos anos — murmurou Tach e cruzou as pernas. Blaise saiu pulando com seu quimoninho branco. Houve um conflito inicial com o gerente da escola de caratê sobre o uniforme. A cor padrão era preta, mas, apesar dos quarenta anos na Terra, Tach ainda tinha uma birra contra a cor. Operários usam preto. Não aristocratas. O garoto jogou as roupas nos braços de Tach. — Não vai trocar de roupa? — Não. — Ele subiu numa cadeira para olhar um mostruário de shurikens, kusawagamas e naginatas. — O idioma causou algum problema? — perguntou a Tupuola enquanto preenchia o cheque. — Não. Notável como o inglês dele melhorou nos últimos dias. — Ele é brilhante. — Sim, eu sou — Blaise disse, caminhando de cadeira em cadeira para abraçar Tachyon pelo pescoço. Tupuola franziu o cenho e girou uma caneta entre os dedos. — Queria que você me mostrasse essa melhora no inglês. — Com você é mais fácil falar em francês — disse Blaise, passando para o outro idioma. Tach correu a mão nos cabelos lisos do neto. — Acho que vou ter que desenvolver uma surdez seletiva. — De repente, ele deu uma risadinha. — Quê? — Blaise deu uma puxadinha no ombro dele. — Estava lembrando de um incidente da minha infância. Não era muito mais velho que você, tinha 15 anos mais ou menos. Decidi que exercícios físicos eram estúpidos. Apenas treino de luta realmente parecia importar. Então, dei ordens para que meus guarda-costas fizessem os exercícios físicos para mim. —
Tupuola gargalhou, e Tach sacudiu a cabeça, entristecido. — Eu era um principezinho insuportável. — E o que aconteceu? — Meu pai me pegou. — E? — Blaise perguntou, ávido. — Me deu uma surra de arrancar o couro. — Aposto que os guarda-costas gostaram. — Tupuola riu. — Ah, eles eram bem treinados demais para demonstrar emoções, mas eu me lembro de uns reveladores lábios torcidos. Foi muito humilhante. — Ele suspirou. — Eu teria parado ele — Blaise disse, os olhos reluzentes. — Ah, mas eu respeitava meu pai e sabia que ele estava certo ao me castigar. E eu teria violado os princípios dos psíquicos se entrasse numa longa batalha mental com meu mais velho na frente dos serviçais. Além do mais, talvez eu tivesse perdido. — Ele deu um peteleco na ponta do nariz do garoto. — Sempre há algo a pensar quando você é takisiano. — Os princípios dos psíquicos. Parece um livro místico dos anos 60 — Tupuola pensou alto. Tach se levantou. — Talvez eu ainda escreva. — Ele se virou para o neto. — E, por falar em anos 60, tem alguém que eu quero que você conheça. — Alguém divertido? — Sim, e gentil e um bom amigo. Os cantos da boca de Blaise se curvaram para baixo. — Não é alguém com quem eu possa brincar? — Não, mas ele tem uma filha.

— Olhe só! Mark , voltei! — Tach anunciou com um rodopio do seu chapéu com plumas na frente da Cosmic Pumpkin (“Alimento para o Corpo, Mente e Espírito”) Tabacaria e Delicatessen. O Dr. Mark Meadows, conhecido como Capitão Viajante, pendia como uma cegonha no balcão, com um pacote recém-aberto de tofu equilibrado delicadamente na ponta de seus dedos. — Ah, uau, doutor. Que bom vê-lo. — Mark, meu neto, Blaise. — Ele abriu caminho para exibir a criança que se escondia atrás dele e empurrou-o gentilmente para a frente. — Blaise, je vous presente, Monsieur Mark Meadows. — Enchanté, monsieur. Mark fez o sinal da paz para Blaise e um olhar desconfiado para Tach. — Acho que você tem muita coisa para contar. — Tem razão, e um favor a pedir. — O que precisar, cara, só pedir.
Tachyon deu uma olhada para Blaise. — Num momento. Primeiro quero apresentar Blaise para Sprout. — Hum... claro. Subiram as escadas íngremes até o apartamento de Mark, deixaram Blaise brincando com sua filha de 10 anos, uma menina adorável, mas com triste subdesenvolvimento, e acomodaram-se no pequenino e atulhado laboratório do hippie. — Então, bicho, conte tudo. — No geral, foi um pesadelo. Morte, fome, doenças, mas no fim... Blaise, e de repente tudo começou a valer a pena. — Tachyon refreou a caminhada nervosa. — Ele é o centro da minha vida, e eu quero que ele tenha de tudo, Mark. — Crianças não precisam de tudo, homem. Precisam de amor. Tach pousou a mão com afeto no ombro ossudo do humano. — Como você é bom, meu querido... querido amigo. — Mas você não me disse nada. Como você o encontrou, e qual foi a verdadeira merda que aconteceu na Síria? — Por isso eu disse que foi um pesadelo. Eles conversaram, Tachyon mencionou seu medo por Peregrina, todos os eventos que levaram à descoberta de Blaise. Omitiu seu confronto final com Le Miroir, o terrorista francês que estava controlando a criança um quarto takisiana. Sentiu que o gentil e sensível Mark talvez ficasse chocado com a execução do homem a sangue-frio por Tachyon. Era algo que, em retrospecto, não deixava Tachyon muito confortável. Ele refletiu, um pouco triste, que, depois de quase a mesma quantidade de anos em Takis e na Terra, ainda era mais de lá que daqui. Olhou para o relógio no salto da bota e exclamou: — Pelo céu chamejante, olhe a hora. — Hei, que bota maneira. — É mesmo, encontrei na Alemanha. — Hei, sobre a Alemanha... — Outra hora, Mark, preciso ir. Ah, que tolo que sou! Não vim apenas pelo prazer de vê-lo, mas para perguntar se pode ocasionalmente me emprestar o Durg? Ele é praticamente imune aos efeitos do controle da mente, e não consigo levar Blaise para todo lado, nem posso continuar trancando o menino na Baby toda vez que tiver outros compromissos. — Durg como babá. Minha cabeça fica meio confusa com isso. — Sim, eu sei e, acredite, fico muito relutante em deixar o monstro de Zabb cuidando do meu herdeiro, mas Blaise é como a Mãe do Enxame entre planetas se o deixar sem supervisão perto de seres humanos normais. Veja, ele não tem autodisciplina, e não consigo imaginar como instilá-la nele. Viajante pôs a mão no ombro de Tachyon, e eles caminharam até a porta do laboratório. — Tempo, dê tempo ao tempo. E relaxe, cara. Ninguém nasceu pai. — Nem avô. Mark olhou para o rosto jovem e delicado e riu. — Acho que ele vai ter dificuldade em ver você como vovô. Vai ter que se conformar com...
A visão na sala de estar tirou o ar e as palavras de Mark. Sprout estava só com sua calcinha de ursinhos, dançando com delicadeza enquanto cantava uma musiquinha. Rindo, Blaise pulava no sofá e a manipulava como uma marionete. — K’ijdad, ela não é engraçada? A mente dela é tão simple... O poder de Tachyon expandiu-se e Sprout — de repente liberta daquele controle externo aterrorizante — abriu um choro desorientado. Mark agarrou-a num abraço forte. — SIMPLES! VOU TE MOSTRAR UMA MENTE SIMPLES! O garoto se contorceu pela sala como um autômato enferrujado sob o imperativo brutal da mente do avô. — ISSO É GOSTOSO? VOCÊ GOSTA... — NÃO, BICHO, NÃO! PARE COM ISSO! — Tachyon cambaleou com a sacudida forte. — Tudo bem. — Viajante acrescentou num tom mais moderado quando a máscara demoníaca que cobriu as feições normalmente gentis de Tachyon começaram a desaparecer. — Desculpe, Mark — Tach sussurrou. — Sinto muito, mesmo. — Tudo bem, cara. Vamos... vamos nos acalmar, está bem? Tachyon acionou a telepatia. Você me perdoa? Não há nada para perdoar , cara. Meadows ajoelhou-se diante do garoto soluçante, pousando gentilmente as mãos em seus ombros. — Viu? Você está tão assustado quanto Sprout ficou. Não tem graça estar sob controle de outra pessoa. Você tem razão, a mente de Sprout é fraca, mas esse é mais um motivo para alguém forte como você ser gentil e cuidar de pessoas como ela. Consegue entender? Blaise assentiu lentamente, mas Tachyon não confiava na expressão fechada daqueles olhos púrpura e escuros. E, como era de se esperar, assim que saíram para a rua na frente da Cosmic Pumpkin, o garoto disse: — Que debiloide! — ENTRE NO TÁXI, AGORA!

— Pelos ancestrais! — O vidro estalou sob o salto das botas e por um breve momento de suspense o tempo voltou, e o passado grudou em sua garganta como um animal torturante. Vidro estilhaçando e caindo, espelhos quebrando em todos os lados, facas prateadas voando... sangue espirrando nos espelhos quebrados. Tachyon estremeceu e se livrou do pesadelo acordado e encarou a carnificina que preenchia a Funhouse. Um faxineiro com braços o bastante para lidar com três vassouras estava ocupado varrendo o vidro quebrado que cobria o chão. Des, com rosto pálido e franzido, falava com um homem de terno. Tachyon juntou-se a eles.
— Não tenho certeza se a apólice do senhor... — Claro que não! Por que eu deveria acreditar que 24 anos de seguro pago em dia, e sem nenhum sinistro, me daria direito de alguma cobertura agora? — esbravejou Des. — Vou verificar, sr. Desmond, e volto a falar com o senhor. — Pela pureza do Ideal, o que está havendo aqui? — Quer uma bebida? — Por favor. — Tachyon puxou a carteira, e Des encarou as notas, um sorrisinho engraçado repuxando seus lábios, os dedos na ponta da tromba incongruente tremendo levemente. O alienígena corou e disse, na defensiva. — Eu pago minhas bebidas. — Agora. — Já faz tanto tempo, Des. — Verdade. Tachyon chutou um estilhaço de espelho. — Mas Deus sabe o que isso traz de volta. — Noite de Natal, 1963. Mal está morto faz tempo. E logo você também estará. Não, impossível falar essas palavras. Mas Des falaria? Embora Tachyon, claro, respeitasse o desejo de privacidade do velho curinga enquanto se preparava para morrer, ainda assim magoava que ele mantivesse silêncio. Como faço para dizer adeus a você, velho amigo? E logo será tarde demais. O conhaque explodiu como uma nuvem branca e quente no fundo da garganta, banindo os nós que se formaram ali. Tachyon deixou o copo de lado e disse: — Você não respondeu à minha pergunta. — Que pergunta? — Des, sou seu amigo. Bebo neste bar há mais de vinte anos. Quando entro e o encontro totalmente quebrado, quero saber por quê. — Por quê? — Talvez eu possa fazer algo! — Tachyon virou o restante da bebida e franziu as sobrancelhas diante dos olhos esmaecidos de Des. Des pegou o copo e o encheu de novo. — Por vinte anos eu paguei pela proteção dos Gambione. Agora, essa nova gangue está fazendo pressão, e eu tenho que pagar os dois. Está ficando um pouco difícil honrar as despesas extras. — Nova gangue? Que nova gangue? — Eles se denominam Punhos Sombrios. Bandidos de Chinatown. — Quando isso começou? — Semana passada. Acho que esperaram até saberem que eu estava de volta à cidade. — O que significa que estudaram bem o Bairro dos Curingas. Um dar de ombros. — Por que não? São empresários. — São rufiões. Outro dar de ombros.
— Isso também. — Que você vai fazer? — Continuar pagando os dois lados e esperar que eles me deixem viver em
paz.
— Não importa o quanto dure — Tachyon murmurou e secou a nova dose de conhaque. — Quê? — Ah, que diabos, Des, não sou cego. E sou médico. O que é? Câncer? — É. — Por que não me contou? O velho curinga suspirou. — Por várias razões complicadas. Não quero falar delas agora. — Nem nunca? — É possível também. — Eu considero você um amigo. — Considera, Tachy? Mesmo? — Sim. Como pode duvidar. Não! Nem responda. Eu já vi essa cena; nos seus olhos e no coração. — Por que não na minha mente, Tachyon? Por que não lê lá dentro? — Porque eu honro sua privacidade e... — Seu rosto enrugou-se e deu um suspiro agudo. — Porque não conseguiria enfrentar o que poderia ler aí dentro — ele concluiu em voz baixa. Jogou mais notas no balcão e partiu para a porta. — Vou ver o que posso fazer para tornar sua esperança uma realidade. — O quê? — Que você termine seus dias em paz.

Era a mesma história no Ernie’ s, na Delicatessen do Peru e na Lavanderia do Mancha e em tantos outros lugares que ele temia lembrar-se de todos eles. Com o cenho franzido, Tachyon abriu a casca de uma laranja, o sumo ardendo um pouco quando passou num corte feito por papel que ele não havia percebido. Valentões de Chinatown. Valentões da Máfia, e ele com sua boca grande prometendo fazer algo sobre isso. Como o quê? Terminou de descascar a laranja e lançou um gomo na boca. Uma brisa leve afastou seus cachos e trouxe o som da risada alegre de Blaise. Um chamado estrondoso de Jack Braun mandou o garotinho em disparada através do parque, suas pernas em meias vermelhas um borrão em movimento. Braun se inclinou para trás, a bola de futebol encaixada na mão grande, e lançou. Parecia uma estrela de cinema; cabelos queimados de sol caindo sobre a testa, pernas musculosas douradas saindo de uma bermuda cáqui, uma camisa havaiana muito atraente, brilhante e colorida. Tach jogava cascas de pão para algumas pombas interessadas. Que irônico, um domingo no parque com Jack. O inimigo odiado transformado em... bem,
talvez não amigo, mas ao menos em uma presença tolerada. Não ficou chateado por a visita de Jack ter sido inspirada pelo desejo de ver Blaise; na verdade, isso o elevou na estima de Tach. Gostar de Blaise contava pontos. E esse passeio tinha ao menos tirado Tachyon do ensimesmamento que o assolava desde o dia da visita à Funhouse. O gomo da laranja finalmente se assentou, e o estômago de Tach se rebelou. Com um gemido, rolou de costas sobre a toalha e tentou reprimir a náusea. O preço da preocupação. Nos últimos dias, seu estômago se fechara como uma bola apertada e dolorida. Ele começou a pensar na imensa lista de problemas. O medo que já se tornara uma sombra palpável sobre o Bairro dos Curingas. Leo Barnett oferecendo cura aos curingas com o poder de seu Deus, e, se não reagissem à cura, era uma indicação clara do tamanho abissal de seus pecados. E se ele se tornasse presidente? Peregrina. Em um mês, seu filho nasceria. A ultrassonografia que ele fizera dois dias antes indicava um feto normal, viável, mas Tach sabia, com um horror profundo, o que o estresse da experiência do parto poderia fazer com um bebê carta selvagem. Pelos ancestrais e pela linhagem, que esse pequeno seja normal. Se não for, Peregrina ficará destruída. E ele ainda não estivera na delegacia do Bairro dos Curingas para trabalhar com um retratista da polícia na preparação de um desenho de James Spector... Uma garota passou fazendo jogging, um galgo afegão trotando no seu encalço. O suor emprestava um brilho dourado à sua pele, e várias mechas do longo cabelo estavam grudadas nas costas nuas. Tach observou o movimento dos músculos das pernas e das costas, examinou os seios maduros balançando sob o top, e sentiu a boca seca e o impulso urgente do pênis contra o zíper. Era um vislumbre amargo e tentador da totalidade, pois ele sabia, após incontáveis encontros fracassados, que o poder arrefeceria quando o momento chegasse. Furioso, ele rolou de bruços e bateu com os punhos no chão — furioso com sua impotência e com sua mente caprichosa e indisciplinada que se distraía da preocupação com um ás assassino ao vislumbrar carnes femininas. Um dedão cutucou-o nas costelas, e ele ficou em pé num salto. — Ei, ei — Braun ergueu as mãos na defensiva —, calminha aí. — Onde está Blaise? — Tach procurou com ansiedade. — Dei-lhe algum dinheiro para comprar um sorvete. — Não devia ter deixado que fosse sozinho. Pode acontecer alguma coisa... — O garoto sabe se cuidar sozinho. — Braun sentou-se na toalha com as pernas cruzadas e acendeu um cigarro. — Se importa se eu der um conselho? — Sim. — Você não está em Takis. Ele não é um príncipe da realeza. Tachyon deu uma risadinha amarga. — Não, longe disso. É uma abominação. Em Takis, ele seria destruído. — Hein? O alienígena juntou as cascas de laranja espalhadas e carregou-as para uma lata de lixo.
— As maiores punições são reservadas para aqueles que misturam sua semente fora de sua casta. Como poderíamos sobreviver se todos tivessem nossos poderes? — ele falou por sobre os ombros. — Encantadora a cultura da qual você veio. Mas isso confirma meu ponto. — Que seria? — Pare de deixá-lo maluco. Você está botando pressão demais nele. Espera que ele obedeça a regras de comportamento que não têm relação com a Terra, e também está mimando-o demais. Aulas de música, de caratê, de dança, aulas particulares de álgebra, biologia, química... — Bem, você está errado nesse ponto. Seu terceiro professor desistiu dias atrás, e não estou encontrando substituto. E isso porque eu espero demais dele. Seu poder e sua linhagem o tornam especial. Ao menos para mim. — Tachyon, me ouça. Você não pode dar a uma criança todos os brinquedos e bugigangas que ele quiser, dizer que ele é especial, especial, especial, e daí esperar que ele não seja um desgraçadinho arrogante. Deixe ele ser criança. Tire essas roupas dele. — O que há de errado com as roupas dele? — Havia um tom de ameaça na voz rouca. — Tire essas calças até o joelho, as rendas e os chapéus. Compre jeans e um boné dos Dodgers. Ele precisa viver neste mundo. — Eu escolhi não me adaptar. — Sim, mas você é excêntrico. É um jeito imensamente exibicionista. Você também é adulto e um filho da puta incrivelmente arrogante, e não liga a mínima para o que as pessoas dizem sobre você. Não quer que Blaise abuse de seus poderes, mas você está quase garantindo que ele vá abusar. Não há nada mais cruel que crianças, e ele vai ser atormentado até reagir. Então, você vai ficar decepcionado e brigará com ele, e ele ficará ressentido. Veja o círculo vicioso perfeito que você criou. — Devia escrever um livro. É óbvio que sua vasta experiência fez de você uma autoridade em educação infantil. — Ah, qual é, Tachyon? Eu gosto do garoto. Eu às vezes até gosto de você. Ame-o, Tachyon, e relaxe. — Eu o amo. — Não, você ama o que ele representa. Você ficou obcecado por ele por causa da sua imp... — Ele engoliu as palavras e ficou muito vermelho. — Ai, caramba, desculpe. Não quis tocar no assunto. — Como você sabe? — Fantasia me contou. — Vagabunda. — Ei, relaxe nesse ponto também e tudo vai funcionar. Não é nada de mais. — Braun, você não pode conceber que isso não seja nada de mais. Progenitura, continuação... Ah, saco! Está planejando dar consultas psiquiátricas no seu novo cassino? Faça o que sabe de melhor, Jack , siga a maré e faça dinheiro. Mas não me encha! — Com prazer! Agarrando o cesto de piquenique e a toalha, Tachyon saiu em disparada
para procurar Blaise. — Cadê o tio Jack? — Tio Jack teve um compromisso em Atlantic City. — Vocês dois brigaram de novo. Por que brigam tanto? — História antiga. — Então vocês deveriam esquecer. — Não comece você também. — Tach acenou para um táxi. — Aonde estamos indo? — Até a casa do Mark. — Hum. — Por favor, espere por mim — Tachyon instruiu quando eles estacionaram na frente da Cosmic Pumpkin. — Tá bom, mas o taxímetro fica ligado — o homem respondeu num sotaque pesado e irreconhecível. — Tudo bem. — Vou esperar também — Blaise disse baixinho. E Tachyon sentiu uma vergonha momentânea, lembrando seu descontrole da última vez que visitou a Pumpkin. Ele enfiou a cabeça no vão da porta. — Mark. — Ei. — Pergunta rápida. Você foi incomodado por emissários de várias organizações criminosas? — Um punhado de alunos da City University of New York que tinham vindo jantar encarou os olhos arregalados do takisiano. — Hein? Tach deu um suspiro forte de irritação. — Alguém pediu para você pagar por proteção? — Ah, você está falando disso? Ah, sim, cara, meses atrás, mas, tipo... um dos meus... amigos apareceu, e eles não voltaram mais. — Quem dera todos terem amigos como os seus, Mark . — É isso? — É isso. — Posso fazer alguma coisa para ajudar? — Acho que não. Tachyon voltou para o táxi e deu o endereço da clínica para o taxista. — Ahhh, Bairro Curinga. Você médico? — Sim. — Eu já vi você em televisões. Pouso da Pere Gringa. — É Peregrina e, sim, era eu. — Santo Deus! A exclamação do motorista chamou a atenção de Tach para a via adiante. Um amontoado de viaturas de polícia com as luzes girando bloqueava a Hester Street. Com a sirene ligada, uma ambulância passou a toda. — Merda, deve ser um daqueles ataques, como vocês diz. — Pare, pare aqui. Saltando do táxi, Tach passou por baixo da fita de isolamento da polícia. Um
choro de mulher enchia o ar, e uma voz de baixo amplificada por um megafone mandava os grupos de pessoas murmurantes continuarem a marcha. Tachyon encontrou o detetive Maseryk e foi até ele. — Que aconteceu? — Que diabos... ah, oi, doutor. — O detetive encarou com curiosidade o menino que olhava com interesse os corpos espalhados no restaurante destruído. Tachyon se pôs diante de Blaise. — Vá para o táxi e espere lá. — Ahhhh... — Agora! — Parece outra festinha — Maseryk disse quando Blaise se afastou, contrariado. — Mas, dessa vez, um convidado inesperado entrou no caminho. — Ele estendeu a cabeça para a mulher soluçante, que estava agarrada a uma silhueta pequena num saco preto sendo levada para dentro da ambulância. Tachyon correu até a maca, abriu o saco e encarou a criança. Para começar, não era muito bonita, um corpo troncudo e achatado sobre nadadeiras largas, e parecia muito pior com metade da cabeça arrancada por tiros. O takisiano virou-se com tudo e abraçou a mulher com força. — MEU BEBÊ! MEU BEBÊ! NÃO DEIXE QUE LEVEM MEU BEBÊ! Um funcionário do resgate se aproximou com uma injeção pronta. Tachyon acalmou a mãe soluçante com um breve toque de seu poder e entregou-a ao homem. — Seja gentil com ela. — Parece que eram rapazes dos Gambione — Maseryk falou enquanto encarava, pensativo, um corpo espalhado. Muitos fios de espaguete pendiam da boca do cadáver, deixando uma trilha úmida e vermelha no queixo. — Os Punhos passaram de carro e abriram fogo. O carro vai ser encontrado, com certeza foi roubado, e haverá outro beco sem saída. Pobre criança. Isso é estar no lugar errado na hora errada. O detetive percebeu o silêncio contínuo de Tachyon e baixou os olhos. — Não quero becos sem saída, Maseryk, quero esses homens. — Estamos trabalhando nisso. — Talvez seja hora de eu dar uma mãozinha. — Não, pelo amor de Deus, a última coisa que precisamos é de civis no caminho. Fique fora disso. — Ninguém mata meu povo na minha cidade! — Hein? O prefeito vai ficar muito surpreso em ouvir que ele perdeu e você ganhou a última eleição — o detetive gritou depois que Tachyon virou as costas e saiu.

— Conhaque — Tachyon falou ríspido para Sascha, o barman cego do Crystal Palace. Jogou o chapéu de veludo azul, enfeitado com pérolas e lantejoulas, no
balcão e bebeu de uma vez. Estendeu o copo. — Outro. Com um rastro de perfume exótico de jasmim, Crisálida acomodou-se na banqueta ao lado dele. Os olhos azuis flutuando dentro das órbitas ósseas encaravam-no impassíveis. — Você deveria saborear um bom conhaque, e não engolir como um bêbado tomando bebida barata. A menos que queira ficar bêbado. — Está parecendo uma recrutadora do A.A. Estendendo a mão, Crisálida enrolou no dedo uma mecha encaracolada de cabelos vermelhos. — O que foi, Tachy? — Essa guerra de gangues sem sentido. Hoje uma inocente estava na linha de tiro. Uma criança curinga. Acho que mora neste quarteirão. Lembro de tê-la visto no último Dia do Carta Selvagem. — Hum. — Ela continuou a brincar com os cabelos curtos do alienígena. — Pare com isso! É tudo que tem para me dizer? — O que eu deveria dizer? — Que tal um pouco de indignação? — Trabalho com informações, não com indignação. — Meu Deus, como você consegue ser fria?! — São as circunstâncias que me fazem assim, Tachyon. Não peço compaixão e não tenho pena. Faço o que preciso para sobreviver com o que sou. Com o que me tornei. Ele recuou com a amargura da voz da mulher. Pois ela estava entre seus filhos bastardos, nascidos de seu fracasso e de sua dor. — Crisálida, precisamos fazer alguma coisa. — Como o quê? — Impedir que o Bairro dos Curingas vire um campo de batalha. — Já virou. — Então, torná-lo perigoso demais para eles lutarem aqui. Você me ajuda? — Não. Se eu tomar partido, perco minha neutralidade. — Quer vender armas para os dois lados, hein? — Se for preciso. — Você está atrás do quê, Crisálida? — De segurança. Ele desceu da banqueta. — Não há segurança deste lado da sepultura. — Continue com todas essas bravatas, Tachyon. E quando tiver algo mais concreto do que um desejo amorfo de proteger o Bairro dos Curingas, me avise. — Para quê? Para você me vender para quem pagar mais? E agora foi a vez de Crisálida recuar, o sangue correndo como uma onda escura através dos músculos indistintos do rosto.

— Tudo bem, vamos organizar agora — Des vozeou, batendo delicadamente uma colher na lateral de um copo de conhaque. A multidão agitada deu um último estremecimento, como uma fera caindo no sono, e o silêncio preencheu a Funhouse. Mark Meadows, parecendo ainda mais vago e absurdo nos espelhos distorcidos da Funhouse, chamava a atenção por seu estado normal. O restante da sala parecia uma reunião de aberrações carnavalescas. Ernie, o Lagarto, estava com a crista levantada tingida de vermelho pelas emoções do momento. Aracna, com as oito pernas agarradas no fio de seda que era expelido pelo corpo bulboso, tecia um xale placidamente. Engraxado, com o imenso e palerma Doughboy sentado ao seu lado, agitava-se nervosamente na cadeira. Morsa, com sua escandalosa camisa havaiana, pegou um jornal do seu carrinho de feira e entregou para Peru. Troll estava com seus quase três metros recostados à porta, como se estivesse pronto para repelir qualquer intruso. — Doutor. Des despencou numa cadeira como um casaco descartado. Quando Tachyon avançou para enfrentar a multidão, perguntou-se quanto tempo levaria para o velho ser forçado a dar entrada no hospital para a temporada final. — Senhoras e senhores, todos aqui já ouviram falar de Alex Reichmann? — Houve murmúrios de concordância, simpatia e indignação. — Tive a infelicidade de ver essa cena apenas momentos depois de os Punhos Sombrios fazerem seu ataque e conseguirem matar não apenas seus alvos, mas também um dos nossos. Voltei há apenas poucas semanas. Ouvi histórias de intimidação e vandalismo, mas pensei que conseguiria permanecer neutro. Nas palavras de outro médico, talvez ainda mais famoso: “Sou doutor, não policial”. — Essa frase causou algumas risadas. — Mas a polícia não está cumprindo suas obrigações para conosco — Tachyon continuou. — Talvez não apenas por negligência deliberada, mas porque essa guerra excede muito sua capacidade de manter a paz. Então, gostaria de propor hoje que formemos nossas próprias tropas da paz. Uma vigilância de bairro em grande escala, mas com um quê a mais. Muitos de vocês estão naquela categoria desconfortável de curingas/ases. — O alienígena meneou a cabeça para Ernie e Troll, cuja força meta-humana era conhecida. — Proponho que formemos também equipes de reação. Pares de curingas e ases prontos para reagir a uma chamada de qualquer cidadão do Bairro dos Curingas. Des já ofereceu a Funhouse como eixo central, a central telefônica, se quiserem, para as chamadas. Quem concordar fazer parte desse esforço, informará os horários nos quais estará disponível, seu endereço comercial e residencial. Quem estiver a serviço aqui vai formar uma equipe para o problema e despachá-la. — Só um aviso, Tachy — Jube se manifestou. — Esses caras têm armas. — Certo, mas também são apenas limpos. — E alguns dos meus... bem, dos “amigos” do Capitão são à prova de bala — Mark Meadows interveio. — Como o Tartaruga, Jack e o Martelo... — Então, você propõe que usemos ases também? — perguntou Des com um leve franzir de testa.
Tach olhou para ele, surpreso. — Claro. — Aviso que Rosemary Muldoon tentou isso em março, e em seguida descobriram que ela era membro da Máfia. Isso deixou uma impressão bem ruim para o povo com relação aos ases. Tachyon deixou a objeção de lado. — Bem, nenhum de nós será exposto como membro secreto da Máfia. Então, o que acham? Estão dispostos a trabalhar comigo nesse caso? — Onde Crisálida fica nisso tudo? — Peru perguntou. — Alguém notou que ela não está aqui? — Bem — Tach começou, mexendo-se desconfortavelmente. — É — Guelra gritou. — Se Crisálida não está aqui, deve significar alguma coisa. Talvez tenha algo para falar. Tachyon encarou desalentado o mar de rostos diante dele. Estavam fechando como flores noturnas que recuam com o toque do sol. — Crisálida e Des sempre foram as duas principais figuras no Bairro dos Curingas. Se ela não está nisso, não confio — gritou Peru, sua papada vermelha sacudindo embaixo do bico. — E quanto a mim? — Tachyon berrou. — Você não é um de nós. Nunca vai ser — uma voz soou do fundo da sala, e Tachyon não conseguiu identificar quem havia falado. Um peso esmagador parecia ter caído no meio de seu peito com as palavras da mulher. — Olha, não estamos dizendo que é uma má ideia — disse Estranheza. — Estamos dizendo apenas que sem Crisálida parece que estamos sem uma parte importante. — Se eu trouxer Crisálida? — perguntou o takisiano, já um pouco desesperado. — Então, ficaremos do seu lado.

Digger Downs desceu trotando as escadas dos aposentos de Crisálida no terceiro andar. Tachyon fuzilou-o com o olhar e acenou com a cabeça brevemente. Observou que o jornalista carregava a nova edição da Times com a foto de Gregg Hartmann na capa e a manchete: “Ele vai concorrer?”, e uma edição da Who’s Who in America, a famosa lista de personalidades. — Ei, Tachy. Des. Alguma notícia boa? — Cai fora, Digger. — Ei, vocês ainda não estão chateados... — Cai fora. — O público tem direito de saber. Meu artigo sobre a gravidez de Peregrina fez um trabalho valioso. Enfatizou os perigos de uma criança carta selvagem. — Seu artigo foi um lixo sensacionalista. — Você só está nervoso porque Per ficou louca com você. Nunca vai ter
uma chance com ela, doutor. Ouvi dizer que ela e o namorado estão pensando em se... A mente de Tachyon assumiu o controle dele e fez com que descesse as escadas e saísse do Crystal Palace. — Eu consideraria isso uma agressão — Des falou. — Deixe ele tentar provar. — Às vezes lhe falta sensibilidade, Tachyon. O alienígena virou-se, recostou-se no corrimão e franziu a testa para o curinga. — Como assim, Des? — Você não deveria envolver ases no que era um projeto curinga. Ou não acha que somos capazes de nos cuidar sozinhos? — Ai, pelos céus em chamas! Por que você é tão melindroso? Não há nenhuma calúnia implícita em meu convite aos ases. Eu diria que, quanto mais poder de fogo tivermos, melhor. — Por que está fazendo tudo isso? — Porque estão ferindo meu povo, e ninguém fere meu povo. — E? — E o Bairro dos Curingas é meu lar. — E? — E o quê? — Você vem de uma cultura aristocrática, Tachyon. Por acaso, você nos vê como seu feudo particular? — Não é justo, Des — ele gritou, mas sabia que sua mágoa era temperada com uma explosão repentina de culpa. Ele subiu mais alguns degraus, em seguida parou e disse: — Tudo bem, sem ases. Crisálida esperava por eles sentada numa poltrona de veludo vermelho e espaldar alto. Antiguidades vitorianas apinhavam a sala, e as paredes tinham muitos espelhos. Tach suprimiu um arrepio e se perguntou como ela conseguia aguentar aquilo. E, novamente, sentiu uma pontada de culpa. Se Crisálida queria olhar para si mesma, quem era ele para julgá-la? Ele, que em muitos sentidos, era seu criador. Franziu a testa para Des, desejando que o velho curinga não tivesse provocado tantas emoções desconfortáveis. — Então, sem mim não haverá esquadrão valentão — ela falou arrastado em seu afetado sotaque britânico. — Eu deveria saber que o boato já teria chegado aos seus ouvidos. — É meu trabalho, Tachy. — Crisálida, por favor. Precisamos de você. — O que vocês vão me dar em troca? Des estava sentado diante dela, mãos crispadas entre os joelhos, inclinado e atento. — Dê esse presente a si mesma, Crisálida. — Quê? — Ao menos uma vez na vida deixe o lucro de lado. Você é curinga, Crisálida, ajude seus iguais. Passei 23 anos lutando pelos curingas, por esse pequeno pedaço de terra. Vinte e três anos com a LADC, medindo minha vida
por alguns sucessos. Agora estou morrendo e assistindo a tudo ruir. Leo Barnett diz que somos pecadores e nossas deformidades são o julgamento de Deus sobre nós. Para os Punhos e a Máfia somos apenas muitos consumidores. Os mais feios e odiosos que eles têm, mas ainda assim consumidores, e nosso bairro é seu mercado central. Somos apenas coisas para eles, Crisálida. Coisas que espetam as drogas no braço e nossos paus nas mulheres deles. Coisas que eles podem aterrorizar e coisas que eles podem matar. Ajude-nos a impedi-los. Ajude-nos a forçá-los a nos ver como homens. Crisálida olhou-o com seu rosto impassível, transparente. O crânio, sem emoção. — Crisálida, você admira tudo que é inglês. Então, honre um velho costume inglês de conceder a um homem à beira da morte seu último pedido. Ajude Tachyon. Ajude nosso povo. O takisiano estendeu a mão e entrelaçou os dedos com aqueles na ponta da tromba de Des. Puxou-o para perto e o abraçou. Por fim, disse adeus.
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Concerto para sirene e serotonina
IV
Quando Croyd acordou, afastou os cabos dos esfregões, pisou num balde e caiu para a frente. A porta do armário ofereceu pouca resistência ao empurrão enlouquecido de suas mãos. Quando ele a abriu e se espreguiçou, a luz atingiu dolorosamente seus olhos, e ele começou a lembrar as circunstâncias que precederam seu repouso: o doutor centauro — Finn — e aquela máquina de dormir esquisita, sim... E outra pequena morte significaria outra mudança no sono. Deitado no corredor, ele contou os dedos. Eram dez, tudo bem, mas a pele era branca como a de um defunto. Chutou o balde para longe, ficou em pé e tropeçou novamente. O braço esquerdo lançou-se para trás, tocou o chão e empurrou-o. Isso o impulsionou até ficar em pé e para trás. Ele executou um salto mortal de costas, caiu em pé, e tombou de novo. As mãos estenderam-se para o chão para se equilibrar, em seguida as puxou sem fazer contato e simplesmente se deixou cair. Anos de experiência já lhe traziam a suspeita sobre qual novo fator havia entrado em sua vida. As compensações exageradas lhe diziam que tinha algo a ver com os reflexos. Quando se ergueu de novo, os movimentos foram muito lentos, mas ele ficava cada vez mais normal ao passo que se explorava. Quando identificou um lavabo, todos os traços de velocidade ou lentidão excessiva haviam desaparecido. Quando se observou no espelho, descobriu que, além de ter ficado mais alto e magro, agora tinha uns olhos rosa, e teve um choque pelos cabelos brancos sobre a testa alta e glacial. Massageou as têmporas, lambeu os lábios e deu de ombros. Já estava familiarizado com o albinismo. Não era a primeira vez que havia voltado com escassez na pigmentação. Ele procurou os óculos de sol, em seguida lembrou-se que Ceifador os havia chutado. Não importava. Escolheu outros e pegou um protetor solar. Talvez fosse melhor pintar o cabelo também, pensou. Menos chamativo desse jeito.
Seja como for, o estômago sinalizava seu esvaziamento de um jeito frenético. Sem tempo para burocracias, para receber alta apropriadamente — se, de fato, tivesse dado entrada de um jeito adequado. Não tinha tanta certeza de que esse fora o caso. Melhor simplesmente evitar todo mundo se não quisesse ser impedido de sair em busca de comida. Poderia passar outra hora para agradecer a Finn. Caminhando como Bentley o ensinara muito tempo antes, todos os seus sentidos totalmente alertas, ele partiu para a saída.

— Oi, Jube. Um de cada, como de costume. Jube estudou a figura alta e cadavérica diante dele, vendo as imagens diminutas de seu semblante gorducho e com presas nos óculos que cobriam os olhos do homem. — Croyd? É você, camarada? — Sim. Acordado e circulando. Parei na clínica do Tachyon dessa vez. — Deve ser por isso que não ouvi nenhuma história de desastres de Croyd Crenson nos últimos tempos. Você foi mesmo gentil no seu último boa-noite? Croyd assentiu, observando as manchetes. — Acho que dá para dizer isso — ele falou. — Circunstâncias raras. Sensação estranha. Ei! O que é isso? — Ele ergueu um jornal e o examinou. — Banho de sangue no Werewolf Clubhouse. O que está havendo, uma maldita guerra de gangues? — Uma maldita guerra de gangues — Jube confirmou. — Caramba! Preciso entrar na linha e caçar meu rumo. — Que linha? — Linha metafórica — Croyd respondeu. — Se é sexta-feira, deve estar no Dead Nicholas. — Você está bem, rapaz? — Não, mas vinte ou trinta mil calorias serão um passo na direção certa. — Vamos falar de coisa boa — Jube concordou. — Soube quem venceu o Concurso de Miss Bairro dos Curingas na semana passada? — Quem? — Croyd perguntou. — Ninguém.

Croyd entrou no Club Dead Nicholas sob notas de um órgão tocando “Wolverine Blues”. As janelas tinham cortinas pretas, as mesas eram caixões, os garçons usavam mortalhas. A parede para o crematório havia sido removida; agora era uma grelha aberta servida por curingas demoníacos. Enquanto Croyd se movia
no salão, viu que as mesas-caixão estavam abertas embaixo de placas de vidro grosso; figuras mórbidas — presumidamente de cera — estavam deitadas dentro em vários estados de agonia. Um curinga sem lábios, sem nariz nem orelhas, tão pálido quanto ele, aproximou-se de Croyd imediatamente, pousando a mão ossuda sobre seu braço. — Perdão, senhor. Posso ver seu cartão de associado? — ele perguntou. Croyd entregou uma nota de cinquenta dólares. — Claro — disse o macabro garçom. — Levo o cartão para a mesa do senhor. Junto com um drinque de boas-vindas. Creio que o senhor vai jantar, certo? — Sim. E soube de um carteado bacana também. — Na sala dos fundos. É de costume que outro jogador apresente o senhor. — Claro. Na verdade, estou esperando alguém que deve estar chegando para o jogo desta noite. O nome do camarada é Olho. Ele já está aqui? — Não. O senhor Olho foi comido. Parcialmente digo. Em setembro do ano passado, por um crocodilo, nos esgotos. Sinto muito. — Eita — Croyd falou. — Eu não o vejo sempre. Mas, quando via, ele costumava fazer uns servicinhos para mim. O garçom observou-o. — Como é mesmo o nome do senhor? — Corretivo. — Não tenho a intenção de saber dos negócios do senhor — o homem disse. — Mas tem um cara chamado Fusão, com quem Olho sempre estava. Talvez ele possa ajudá-lo, talvez não. Se quiser esperar e falar com ele, posso mandá-lo aqui quando chegar. — Tudo bem. Vou comer enquanto espero. Bebendo sua cerveja de boas-vindas, esperando seus dois bifes, Croyd puxou um maço de cartas Bicycle do bolso lateral, embaralhou, tirou uma carta de face para baixo e outra ao lado com a face para cima. O dez de ouros o encarou no tampo transparente da mesa, sobre a careta agoniada da senhora que tinha presas, uma estaca de madeira cravada no peito e alguns pingos vermelhos na careta. Croyd virou a carta de costas; era um sete de paus. Ele a pôs de costas novamente, olhou ao redor, e virou-a novamente. Agora era um valete de espadas que acompanhava o dez. A troca de frequência de oscilação era um truque que ele praticara por diversão na última vez que seus reflexos foram aguçados. Voltou quase imediatamente quando tentou lembrar-se dele, levando-o a especular quais outras ações se escondiam em seu giro pré-frontal. Reflexos de tremor da pálpebra? Contrações da garganta para gritos ultrassônicos? Padrões de coordenação de membros extras? Deu de ombros e montou suas mãos de pôquer boas o bastante para bater aqueles que havia tirado para a senhora com estaca até a comida chegar. Junto com a terceira sobremesa, o garçom pálido se aproximou, escoltando um indivíduo alto e careca cuja carne parecia escorrer como cera embaixo de uma vela. Suas feições ficavam o tempo todo distorcidas, como se nódulos de tumor passassem embaixo da pele. — O senhor falou que queria conhecer Fusão — o garçom disse.
Croyd ergueu-se e estendeu a mão. — Pode me chamar de Corretivo — ele disse. — Sente-se. Deixe que eu te pague uma bebida. — Se for vendedor, pode esquecer — Fusão disse. Croyd balançou a cabeça assim que o garçom se afastou. — Ouvi dizer que temos um bom carteado aqui, mas não tenho ninguém para me apresentar — Croyd declarou. Fusão estreitou os olhos. — Ah, você joga cartas. Croyd sorriu. — Às vezes dou sorte. — É mesmo? E você conhecia o Olho? — O bastante para jogar cartas com ele. — Só isso? — Pode verificar com o Ceifador — Croyd falou. — Estamos em ramos similares. Somos ex-contadores que partiram para coisas maiores. Meu nome diz tudo. Fusão olhou rapidamente ao redor, em seguida se sentou. — Vamos deixar esse assunto para lá, ok? Está procurando trabalho agora? — Não, agora não. Só quero jogar um pouco de cartas. Fusão lambeu os lábios quando uma saliência correu de cima para baixo pela bochecha esquerda, passou pela linha do queixo, distendendo-se no pescoço. — Você tem um monte de verdinhas para distribuir? — O bastante. — Ok , você vai entrar no jogo — Fusão falou. — Quero tirar umas dessas de você. Croyd sorriu, pagou a comida e seguiu Fusão até a sala dos fundos, onde a mesa-caixão de jogo estava fechada e tinha uma superfície opaca. Havia sete deles no início do jogo, e três estavam quebrados antes da meia-noite. Croyd, Fusão, Moscafeta e Corredor viram pilhas de dinheiro crescerem e diminuírem diante deles até três da manhã. Então Corredor bocejou, alongou-se e tirou um frasquinho de pílulas de um bolso interno. — Alguém precisa ficar acordado? — ele perguntou. — Vou ficar no café — Fusão respondeu. — Me dá — Moscafeta disse. — Nunca toquei nessa coisa — Croyd confirmou. Meia hora depois, Moscafeta desistiu e insinuou que daria uma olhada na fila de mulheres curingas que ele prostituía para certinhos querendo passeios agitados. Às quatro, Corredor estava quebrado e precisou partir. Croyd e Fusão encararam-se. — Estamos ganhando — Fusão comentou. — Verdade. — Deveríamos pegar o dinheiro e correr? Croyd sorriu. — Estou sentindo o mesmo — Fusão disse. — Combinado. Quando a aurora acariciou os vitrais e os morcegos mecânicos empoeirados
seguiram os fantasmas holográficos em seu descanso, Fusão massageou as têmporas, esfregou os olhos e disse: — Vai aceitar minha promissória? — Não — Croyd respondeu. — Então, não devia ter me deixado jogar aquela última mão. — Você não me disse que estava tão quebrado. Pensei que poderia me dar um cheque. — Que merda. Não tenho. O que você quer fazer? — Levar outra coisa, acho. — Como o quê? — Um nome. — Que nome? — Fusão perguntou e encaixou a mão dentro do casaco, coçando o peito. — A pessoa que lhe dá ordens. — Que ordens? — As que você passa para caras como o Ceifador. — Tá brincando. Perco meu pau se falar. — Vai perder se não falar — Croyd falou. Fusão tirou do casaco uma .32 automática, que ele ergueu na altura do peito de Croyd. — Não estou com um pingo de medo. Tem balas dundum aqui. Sabe o que elas fazem? De repente, a mão de Fusão ficou vazia e o sangue começou a vazar ao redor da unha do dedo que estava no gatilho. Croyd lentamente virou a automática antes de arrancar o pente e ejetar um projétil. — Tem razão, são dunduns — ele afirmou. — Viu as balas pequenas de ponta chata? Aliás, meu nome não é Corretivo. É Croyd Crenson, o Dorminhoco, e ninguém me passa pra trás. Talvez você tenha ouvido que sou um pouco maluco. Você me dá o nome e não vai descobrir o quanto isso é verdade. Fusão lambeu os lábios. Os nódulos brilhantes embaixo da pele aumentaram o ritmo de seu trânsito. — Vou morrer se eles souberem. Croyd deu de ombros. — Não vou falar nada para eles, se você não falar. — Empurrou uma pilha de notas na direção dele. — Aqui está sua parte por me trazer para o jogo. Me dá o nome, pegue a grana e caia fora, ou vou te deixar em três dessas caixas. — Croyd chutou o caixão. — Danny Mao — Fusão sussurrou —, no Twisted Dragon, perto de Chinatown. — Ele te dá uma lista de ataques, te paga? — Isso. — Quem tá no comando? — Pode me arrancar o couro, eu só conheço ele. — Quando ele está no Twisted Dragon? — Acho que fica lá direto, porque outras pessoas lá parecem conhecê-lo. Eu ligo, vou lá, deixo o casaco. Jantamos ou tomamos umas. Não falamos sobre
negócios. Mas, quando vou embora, tem sempre um papel no meu bolso com uns nomes nele, e um envelope com o dinheiro. O mesmo acontecia com o Olho. É assim que ele trabalhava. — A primeira vez? — A primeira vez demos uma longa caminhada e ele explicou como funcionava. Depois disso, foi como eu acabei de dizer. — É isso? — É isso. — Tudo bem, você está fora de perigo. Fusão pegou sua pilha de notas e enfiou no bolso. Abriu a boca retorcida como se fosse dizer alguma coisa, pensou melhor, pensou de novo e disse: — Não vamos sair juntos. — Por mim, tudo bem. Tchau. Fusão foi até a porta lateral, ladeada por um par de túmulos. Croyd pegou o que ganhou e começou a pensar no café da manhã.

Croyd subiu de elevador até o Aces High, sentindo falta do poder de voar naquele início de noite perfeito de primavera. Ao chegar, entrou na recepção, parou e olhou ao redor. Seis mesas com doze casais, e uma mulher de cabelos pretos com blusa decotada prateada sentada sozinha numa mesa para dois perto do bar, girando um canudo em alguma bebida exótica. Três homens e uma mulher estavam no balcão. Sons de jazz moderno suave circulavam pelo ar frio, acompanhamento para misturadores e gargalhadas, estalos e salpicos de gelo, líquidos e copos. Croyd avançou. — Hiram está por aqui? — ele perguntou ao barman. O homem olhou-o e sacudiu a cabeça. — Está esperando por ele esta noite? Um dar de ombros. — Ele não tem vindo muito aqui ultimamente. — E Jane Dow? O homem o examinou e disse: — Está fora também. — Então, você não sabe ao certo se algum deles vai vir para cá? — Não. Croyd meneou a cabeça. — Sou Croyd Crenson e estou querendo jantar aqui. Se Jane chegar, me avise. — É melhor deixar um recado na mesa de reservas antes de se sentar. — Tem alguma coisa para escrever? — Croyd perguntou. O barman passou a mão embaixo do balcão, tirou um bloco e um lápis e passou para ele. Croyd rabiscou uma mensagem.
Quando abaixou o bloco, a mão foi coberta por uma mais delicada, mais escura, com unhas de um vermelho brilhante. Seu olhar se voltou para trás sobre o ombro, passou pelo decote prateado, parou um instante, se ergueu. Era a mulher solitária com a bebida exótica. Numa olhada mais demorada, havia algo de familiar... — Croyd? — ela disse, suavemente. — Tomou um bolo também? Quando encontrou os olhos escuros, um nome surgiu do passado. — Veronica — ele disse. — Isso. Boa memória para um maluco — ela observou, sorrindo. — Hoje é minha noite de folga. Estou careta. — Parece maduro e distinto com essas costeletas brancas. — Caramba, sabia que estava sentindo falta de algo — ele disse. — E você também está sentindo falta de um cliente... digo, um encontro? — Exatamente. Parece que nós dois pensamos num encontro, certo? — Verdade. Já jantou? Ela jogou o cabelo para trás e sorriu. — Não, e estava ansiosa por algo especial. Ele tomou seu braço. — Vou pegar uma mesa pra gente — ele falou —, e já tenho algo muito especial em mente. Croyd amassou o bilhete e jogou-o no cinzeiro.

O problema com as mulheres, Croyd refletiu, era que não importava o quanto fossem boas na cama, no fim das contas queriam usar aquela peça da mobília para dormir — uma situação que em geral ele não era capaz nem estava disposto a partilhar. Como consequência, quando Veronica finalmente sucumbiu ao sono da exaustão, Croyd se levantou e começou a caminhar em seu apartamento em Morningside Heights, para onde tinham finalmente ido após a meia-noite. Ele jogou o conteúdo de uma lata de sopa de carne e vegetais numa panela e botou no fogão. Preparou uma jarra de café. Enquanto esperava que fervesse e coasse, ele telefonou para seus outros apartamentos com secretárias eletrônicas e usou um ativador remoto para acionar as fitas com mensagens. Nada de novo. Ao terminar a sopa, foi ver se Veronica ainda estava dormindo, em seguida tirou a chave de seu esconderijo e abriu a porta reforçada da saleta sem janelas. Ligou a única luz, trancou-se e sentou-se ao lado da estátua de vidro reclinada sobre o sofá-cama. Segurou a mão de Melanie e começou a conversar com ela — primeiro devagar, mas, depois de algum tempo, as palavras se atropelaram. Falou para ela do Dr. Finn e da máquina do sono, sobre a Máfia, sobre Ceifador, Olho e Danny Mao — que ele não conseguira caçar ainda — e sobre como as coisas costumavam ser legais. Falou até ficar rouco, e então saiu, trancou a porta e escondeu novamente a chave. Mais tarde, com uma aurora pálida se espalhando como uma infecção a
leste, ele entrou no quarto ao ouvir sons vindo de lá. — Ei, madame, pronta para um cafezinho? — ele gritou. — E um pouco de movimento angular? Um bife... Ele fez uma pausa para observar a parafernália que Veronica havia montado para usar sua droga no criado-mudo. Ela ergueu os olhos, piscou para ele e sorriu. — Café seria ótimo, querido. Tomo light, sem açúcar. — Tudo bem — ele respondeu. — Não achei que era usuária. Ela abaixou os braços nus e assentiu. — Não aparece. Não se pode usar a veia principal ou estraga a mercadoria. — Então o quê... Ela montou a seringa e a encheu. Em seguida, pôs a língua para fora, segurou a ponta com os dedos da mão esquerda, ergueu-a e injetou a droga embaixo dela. — Ai — Croyd comentou. — Onde aprendeu esse truque? — House of D. Quer que prepare uma para você? Croyd sacudiu a cabeça. — Momento errado do mês. — Você parece um caco. — Para mim, só em casos especiais. Quando chega o momento, eu tomo umas bolinhas ou cheiro benzina. — Ah, bombitas, si — ela disse, assentindo. — Speed, STP, essas merdas mais fortes. A mistura do maluco. Já ouvi falar dos seus hábitos. Coisa de louco. Croyd deu de ombros. — Já experimentei de tudo. — Yagé, não? — Já. Não foi tão legal. — Desoxyn? Desbutol? — Uhum. Todas elas. — Khat? — Caramba, sim. Até mesmo hudca. Você já experimentou pituri? Essa é das boas. Mas a rotina bagunça um pouco. Aprendi com um aborígene. E kratom? Vem da Tailândia e... — Tá brincando. — Não estou não. — Cara, eu nunca tive uma conversa assim. Aposto que posso aprender um monte com você. — Veremos. — Certeza que não quer que eu prepare uma? — Agora o café já vai me fazer bem. A manhã entrou no quarto, espalhando-se sobre seus movimentos lentos. — Aqui tem uma chamada Macaco Púrpura Oferece Pêssego e Tira de Volta — Croyd murmurou. — Aprendi... quer dizer, quem me contou foi a mulher que me deu o kratom. — Das boas — Veronica sussurrou.

Quando Croyd entrou no Twisted Dragon pela terceira vez no mesmo número de dias, partiu direto para o bar, sentou-se atrás de uma lanterna de papel vermelho e pediu um tsingtao. Um caucasiano de aparência malvada com cicatrizes ornadas sobre o rosto todo ocupava uma banqueta dois assentos à esquerda, e Croyd olhou para ele, afastou o olhar e voltou a olhá-lo. A luz brilhava através do septo do homem. Havia um buraco de um bom tamanho ali e um pedaço de carne viva na ponta do nariz. Era quase como se tivesse desistido havia pouco de usar brinco no nariz por algum motivo forçoso. Croyd sorriu. — Não parece muito com um carrossel? — Hein? — Ou é só o feng shui aqui? — Croyd continuou. — Que diabos é feng shui ? — o homem quis saber. — Pergunte a qualquer um desses caras — Croyd falou com gestos largos. — Pergunte, em especial, para Danny Mao. É o jeito que a energia circula no mundo, e às vezes leva você para uma relação complicada. Uma tailandesa me disse isso uma vez. Tipo, o chi matador virá estourando por aquela porta, ricocheteará no espelho aqui, será dividido por aquele ba-guá lá e — ele secou a cerveja, desceu do banquinho e avançou — baterá bem aqui no seu nariz. O movimento de Croyd era rápido demais para os olhos do homem seguirem, e ele gritou quando sentiu que o dedo havia passado por seu septo perfurado. — Pare! Meu Deus! Corta essa — ele gritou. Croyd tirou-o da banqueta. — Duas vezes eu fui ignorado neste lugar — ele disse em voz alta. — Prometi a mim mesmo que a primeira pessoa que eu encontrasse aqui hoje falaria comigo. — Eu falo com você, eu falo! O que você quer saber? — Cadê o Danny Mao? — Croyd perguntou. — Não sei. Não conheço ninguém... aai! Croyd dobrou o dedo e depois esticou-o. — Por favor — o homem gemeu —, solte. Ele não está aqui. Ele está... — Eu sou Danny Mao — uma voz bem modulada veio da mesa parcialmente coberta por uma palmeira empoeirada num vaso. Seu dono levantou-se e seguiu ao redor da árvore, um oriental mediano, sem expressão, exceto por uma sobrancelha erguida. — O que você quer aqui, branquelo? — É particular — Croyd falou —, a menos que você queira ir lá fora na rua e gritar. — Não dou entrevistas para estranhos — Danny disse, movendo-se na direção dele. O homem cujo nariz Croyd fazia de anel gemeu quando Croyd se virou, arrastando-o consigo.
— Eu me apresento em particular — Croyd falou. — Não se incomode. O punho do homem avançou. Croyd moveu a mão livre com igual rapidez e o murro parou em sua palma. Outros três socos se seguiram, e Croyd parou-os de forma semelhante. Ele atingiu um chute atrás do calcanhar do oriental, erguendo o pé alto e rápido. Danny Mao executou um salto duplo para trás, aterrissou em pé e recuperou o equilíbrio. — Que merda! — Croyd observou, movendo a outra mão rapidamente. O estranho uivou quando algo estalou no nariz e ele foi arremessado para a frente, chocando-se com Danny Mao. Os dois homens caíram, e o choroso do nariz espirrava sangue sobre eles. — Feng shui ruim. — Croyd acrescentou. — Vocês precisam ver isso. Pega a gente toda vez. — Danny — uma voz veio de trás de um biombo de madeira esculpido além do balcão. — Preciso falar com você. Croyd achou que reconheceu a voz e, quando o pequeno curinga escamoso com rosto amarelo e presas olhou fora do biombo, viu que era Linetap, que tinha capacidades telepáticas erráticas e em geral trabalhava como vigilante. — Pode ser uma boa ideia — Croyd falou para Danny Mao. O homem com nariz sangrando partiu para o banheiro mancando, enquanto Danny ergueu-se graciosamente, limpou as calças e lançou um olhar enfurecido para Croyd antes de partir na direção de Linetap. Depois de muitos minutos de conversa, Danny Mao voltou de trás do biombo e ficou diante de Croyd. — Então, você é o Dorminhoco — Danny disse. — Isso. — St. John Latham, da empresa Latham, Strauss. — Quê? — O nome que você quer. Estou entregando para você: St. John Latham. — Sem mais resistência? Assim, grátis, sem nada em troca? — Não. O senhor vai me pagar. Com essa informação, acredito que logo o senhor vá dormir para sempre. Tenha um bom dia, senhor Crenson. Danny Mao virou-se e saiu. Croyd estava prestes a fazer o mesmo quando o homem com o nariz ferrado surgiu do banheiro, segurando um monte de papel higiênico no nariz. — Espero que saiba que acabou de entrar na lista negra dos Caçadores de Cabeça Canibais. Croyd assentiu lentamente. — Diga para eles lembrarem do chi matador — ele falou —, e vê se limpa esse nariz.
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A segunda vinda de Buddy Holley
Edward Bryant
Quarta-feira
O morto atravessou a porta de pinho com um soco. Sem juntas quebradas, mas sua pele rasgou. O sangue escorreu sobre as lascas de madeira da porta. Doeu, mas não o bastante. Não, não doeu quase nada considerando outras coisas. “Outras coisas”, que código eufemístico para pessoas e relacionamentos, amantes e famílias. A pequena e suja política de rejeições e traições. Meu Deus, ela machuca de verdade. Bem maduro, amigão, Jack Robicheaux pensou. Consumando o processo de luto em mach 10. Passando direto da negação para a autocomiseração. Bem maduro para um cara de quarenta. Merda. Ele tirou a mão hesitante da porta rachada. Claro que lascas longas de madeira estavam voltadas para o lado errado. Era como tentar arrancar sua carne de algum tipo de armadilha dentada. Jack virou e caminhou para as ruínas de sua sala de estar. Ainda parecia a cabine do capitão Nemo no Nautilus — depois de uma lula gigante ter lutado com o submarino no meio da tempestade do século no Atlântico. Ele amava aquela sala. “Amor.” Que palavra engraçada para se usar. Chutando para o lado um antigo sextante quebrado, Jack cruzou a porta exterior — a única abertura numa passagem que levava aos túneis de manutenção do metrô — e passou o ferrolho. Enquanto o fazia, sentiu o último vestígio do forte pós-barba cítrico de Michael. A imagem da volta de Michael, ombros levemente curvados pela rejeição, tremeluziu no espaço que a porta ocupava, desapareceu, sumiu do mundo sem nem mesmo um choramingo. Jack foi até o telefone antigo que era a efígie de Huey Long. De alguma forma, acabou milagrosamente no chão e em pé, com o receptor do telefone ainda pousado na mão direita levantada de Huey. O velho Huey comunicava-se como um filho da puta. Por que Jack não conseguia? Ele não podia ligar para Nômada. Ele não podia ligar para Cordelia.
Não havia ninguém mais com quem quisesse conversar. Além disso, ele pensou que já havia falado o bastante. Conversou com Tachyon. Uma maçã por dia não funcionou. E falou com Michael. Quem mais restava? Um padre? Sem chance. Atelier estava longe demais. Muitos anos. Muita lembrança. Jack foi até o balcão de mogno talhado com detalhes em latão, cheirou o veludo empoeirado do revestimento quando abriu o armário. O conhaque havia custado quase sessenta pratas. Caro para o salário de um operário da manutenção, mas, que diabos, ele sempre lera nos romances marítimos sobre servirem conhaque a sobreviventes de naufrágios e tempestades, e, além disso, o decantador de cristal trabalhado combinava lindamente com aquela sala vitoriana. Ele serviu um triplo, bebeu-o como um duplo e encheu o copo novamente. Em geral, não tomava daquele jeito, mas...

— Tem um fato interessante sobre o senhor Kaposi — Tachyon havia dito. O jaleco de médico era de um branco imaculado, quase como o reflexo de um campo de neve ártico. O cabelo vermelho parecia em chamas sob as luzes do consultório. — Pouco antes de descobrir e dar nome a seu sarcoma, em 1872, Kaposi mudou seu sobrenome, que antes era Kohn. Jack encarou-o, incapaz de concatenar as palavras que desejava dizer. Que merda Tachyon estava falando? — Havia, claro, um pogrom na Tchecoslováquia — Tachyon disse, os dedos magros gesticulando de forma expressiva. — Ele reagiu ao tipo de preconceito mal informado que amaldiçoou curingas, sem mencionar os ases, claro, e pacientes de AIDS. Vírus exóticos talvez fossem mau-olhado também. Jack abaixou a cabeça para o peito nu, tocando com hesitação as marcas pretas azuladas sobre as costelas. — Não preciso de uma maldição dobrada. Uma por cliente, não é? — Desculpe, Jack — Tachyon hesitou. — É difícil dizer quando você foi infectado. Os tumores já estão bem avançados, mas a biópsia e os resultados adicionais anômalos sugerem que há uma sinergia acontecendo entre o vírus carta selvagem e o HIV que ataca seu sistema imunossupressor. Acredito que seja uma espécie de processo acelerado galopante. Jack sacudiu a cabeça como se não tivesse entendido. — Fiz um teste um ano atrás, e deu negativo. — É como eu temia, então — disse o médico. — Não posso prever o avanço. — Eu posso — Jack afirmou. Tachyon moveu os ombros, solidário. — Devo perguntar — ele disse — se você usa nitrato de amila. — Poppers? — Jack perguntou e em seguida sacudiu a cabeça. — De jeito nenhum. Não gosto muito de drogas.
Tachyon marcou algo no prontuário de Jack. — Seu uso está relacionado com frequência ao Kaposi. Jack negou com a cabeça de novo. — Então, há uma outra questão — o doutor falou. Jack o encarou. Era como se tentasse enxergar o centro de um bloco de gelo. Sentia o corpo todo entorpecido. Sabia que o choque psíquico se esvairia logo. E então... — Qual? — Preciso perguntar, saber sobre seus contatos. Jack respirou fundo. — Houve um. Há um. Apenas um. — Devo falar com ele. — Tá brincando? — Jack disse. — Eu falo com Michael. Daí eu trago ele aqui para ver você. Mas eu falo com ele primeiro. — A voz dele falhou. — É, eu falo com ele. Ele prosseguiu para lembrar a Tachyon do sigilo entre médico e paciente. Tachyon pareceu se sentir afrontado. Jack não se desculpou e, em seguida, saiu. Foi naquela manhã.

... era uma ocasião especial. Sentia como se estivesse bebendo depois do próprio funeral. — Os cajuns fazem grandes velórios — ele disse alto, servindo outro conhaque. O decantador estava cheio? Não conseguia lembrar. Agora tinha menos da metade. Olhou para o telefone de novo. Por que diabos ele não queria falar com ninguém? No fim das contas, ninguém queria falar com ele. Naquele momento, pensou que os últimos meses vivendo com Michael haviam passado como se vivesse sozinho. Agora ele poderia muito bem morrer sozinho. Pare com autocomiseração. Mas era tão fácil...

— Então, o que foi? — Michael disse, fechando a porta antes de dar um amasso em Jack . Sem outro cumprimento. Sem preâmbulo. Tão brilhante quanto Jack era obscuro, alto e magro, Michael sempre parecia trazer algo da primavera iluminada pelo sol na superfície para o lar subterrâneo de Jack. Não naquele dia. Jack não conseguia entendê-lo de jeito nenhum. — Hein? — Michael perguntou. Jack virou o rosto e se desvencilhou dos braços do outro. Recuou. — Tem algo de errado? — Jack examinou a face de Michael. As feições do amante eram o modelo puro da saúde vibrante. Da
inocência. — Acho que é melhor você se sentar — Jack aconselhou. — Não. — Michael o encarou. — Diga logo o que quer dizer. A boca de Jack estava seca. — Fui à clínica hoje. — E? — Os exames... — Ele precisou recomeçar. — Os exames deram positivo. Michael olhou para ele, sem expressão. — Exames? — AIDS — ele disse a palavra odiosa. Seu estômago revirou. — Não — Michael disse e balançou a cabeça. — Não, sem chance. — Sim — Jack confirmou. — Mas quem... — Os olhos de Michael arregalaram-se. — Jack, você... — Não. — Jack o encarou de volta. — Não tem ninguém. Não tem outro, mon cher. Michael inclinou a cabeça. — Tem de haver. Digo, eu não... — Não é a imaculada conceição, Michael. Não tem milagre aqui. Tem que ser. — Não — Michael disse. Sacudiu a cabeça com firmeza. — É impossível. — Os olhos piscaram rápido e ele desviou o rosto. Em seguida, virou as costas, abriu a porta e saiu. “Não.” Jack ouviu Michael dizer mais uma vez.

... sentir a lâmina enferrujada girando nas entranhas. O conhaque, foi o que lhe ocorreu, era como uma injeção antitetânica emocional. Só que não funcionava. Tudo que fez foi deixá-lo pior, porque diminuía a capacidade de controlar o que estava sentindo. De repente, sentiu como se inalasse todo o oxigênio que havia para respirar em casa. Queria sair, subir para as ruas. Então, com cuidado, com o que ele percebeu serem movimentos exagerados, ele deixou o decantador de conhaque de lado. Em seguida, Jack saiu pela mesma porta que Michael havia usado. Seguiu os passos fantasmagóricos para os túneis e escadas que o levariam para a superfície. Jack caminhou. Poderia ter pegado o carro da manutenção de vias lá embaixo, mas decidiu que não queria. A noite estava muito fria, mas tudo bem. Queria algo adstringente para limpá-lo, arrancar as marcas das contusões, purgar a carne. Percebeu que estava desejando mesmo era alguma dor clara. Caminhou até a cidade alta, sem perceber muito bem onde estava até ver a placa do Young Man’ s Fancy. Eu poderia estar em qualquer lugar , menos aqui, ele pensou. Conhecera Michael ali. Não devia estar no West Village de jeito nenhum. E não naquele bar. Mas agora era tarde demais. Já estava. Merda. Ele se virou
para ir embora. — Ei, garotão, procurando um rabo de saia? Ou você é o rabo de saia? A voz era muito familiar. Jack ergueu os olhos e viu o memorável rosto musculoso, sem falar no corpo, de Pancada surgir das sombrias escadarias da frente de uma lavanderia fechada embaixo do bar. Jack virou e começou a se afastar. Ouviu o estalo de coturnos número 50 na calçada. Dedos como salsichas alemãs enrolaram-se nos seus ombros e fizeram Jack se voltar. — Minha coisa com os olhos lindos — Pancada disse — é que tudo que preciso fazer é enterrar meus dedões neles e eles pulam para fora como cerejas verdes em biscoitos italianos. Jack ergueu os ombros para afastar os dedos do gigante. Sentiu-se impaciente e sem muito cuidado. Ele simplesmente não dava a mínima. — Vá se foder — ele disse. — Você precisa disso também — Pancada passou os dedos desprezados no próprio rosto e tocou a cicatriz denteada e inflamada que corria do canto do olho direito até seu queixo bulboso. Jack lembrou-se do grito triunfante do gato preto de Nômada. O felino era velho, mas ágil o bastante para se desviar dos punhos descontrolados de Pancada depois que as garras rasgaram as feições feiosas do homem. — Arranhões de gato infeccionam — Jack disse e continuou a se afastar para a rua. — Você deveria olhar essas daí. Conheço um médico muito bom. — Cagões como você precisam de um coveiro — Pancada ameaçou. — O senhor Maz vai ficar muito feliz se eu levar seu pau num saquinho de sanduba. Eles, os Gambione, amam fazer salsicha, especialmente de pintos amarelos como o seu. — Não tenho tempo pra isso — Jack disse. — Calma aí. — A mandíbula de Pancada dividiu-se num tipo de sorriso que podia deformar bebês em gestação. — Você e eu... imagino que posso lidar com um jacarezinho briguento. A porta do Young Man’ s Fancy abriu com tudo e um bando barulhento de uns doze caras saiu para a rua. Pancada parou, hesitante, a meio passo. — Testemunhas — Jack falou. — Calma, garoto. — Vou pegar eles todos — Pancada falou, analisando suas vítimas em potencial. Bateu com a mutação em forma de maça da mão direita na palma da esquerda. Era o som de um bife torrado caindo de uma escada num chão de ladrilho. — Uma festinha gay? — disse o homem, aparentemente o líder dos outros. Fez uma careta para Pancada. — Ainda está por aí, babaca? — A mão dele enterrou-se na jaqueta e voltou com uma arma. — Quer ver minha imitação de Bernie Goetz, o assassino do metrô? — Ele riu. — É matadora. Pancada olhou para o semicírculo de rostos. — Tenho um trabalho a fazer — ele disse para Jack. — Você — ele falou para o homem com a arma. — Vou arrancar suas tripas com o dedão. Espere só. E você... — ele disse novamente para Jack — você eu vou machucar muito. — Mas outra hora — Jack disse.
— Isso aí. — Pancada não conseguiu encontrar uma frase de adeus melhor. Cambaleou para longe da multidão crescente de curiosos e saiu pisando duro. — Que brutamonte — o homem com a arma falou para Jack. Devolveu a pistola para o casaco. — Espero que você saiba o que está fazendo. — Obrigado — Jack agradeceu. — Não conheço o cara. Ele só me parou para pedir um isqueiro. — Ele se virou e caminhou na direção oposta, ignorando os murmúrios. — De nada, cara — disse o homem com a pistola. — Boa sorte, camarada. Jack virou a esquina e entrou num quarteirão mais escuro. Jesus, como estava frio. Ele se abraçou, não estava de casaco. O frio o estava deixando lento. Mau sinal. Hesitante, tocou as costas da mão esquerda com a direita. A pele parecia grosseira, escamosa, começando a se transformar. Não! Ele começou a correr. Não precisava daquilo também. Não naquela noite. Sintomas de estresse. Ele quase riu. Olhou para a entrada do metrô. Não importava qual era. Placa vermelha ou verde. BMT, IRT ou PATH. Cidade alta ou baixa. Contanto que as escadas levassem para baixo. Buscou a fumaça denunciadora de uma tampa de bueiro. Os esgotos bastariam. Seria melhor. Não havia gente nos esgotos. Aqueles túneis, quentes e escorregadios, levariam direto para a baía. Boa caça. Ótima para Jack. Ele pensou sobre seus dentes de crocodilo enterrados no peixe-agulha albino. Era ótimo. Nômada não ligava muito para o peixe mutante. Comida. Sangue. Morte. Exaustão. Vazio. Jack cambaleou na direção da escuridão mais profunda, concentrando-se numa rede morna. Estou perdendo, ele pensou. Viu o rosto de Michael. De Nômada. De Cordelia. Sim, ele perdeu tudo de uma vez. Tudo. Jack mergulhou noite adentro.
Quinta-feira
O volume da fita pirata do novo álbum de George Harrison foi o suficiente para fazer estremecer as fotos emolduradas da parede do escritório. Por outro lado, o tamanho do escritório não era suficiente para enfrentar o amplificador do tocafitas. Não era um escritório grande e não ocupava um canto da torre de escritórios, mas, de qualquer forma, era separado, com paredes permanentes e tinha uma janela.
Cordelia Chaisson estava feliz com ele. Sua mesa era antiga, de madeira, e continha, além de um computador, pilhas de álbuns, fitas e kits de imprensa. As fotos na parede diante dela eram de Peregrina, David Bowie, Fantasia, Tim Curry, Lou Reed e outros famosos, ases ou não. No meio das fotografias havia um bordado de ponto cruz emoldurado no qual se lia “CARA, EU SOU DEMAIS”. Pregado na parede atrás e à direita de Cordelia havia um grande mural retangular com uma lista de nomes copiosamente alterada com riscos, interrogações e anotações rápidas como “checar nova produtora”, “fanático rel.” e “não tocam em feriado brit.”. O telefone tocou e levou algum tempo para Cordelia perceber. Ela girou um botão no toca-fitas para abaixar o volume e pegou o fone. Luz Alcala, uma das suas chefes, disse: — Meu Deus, Cordelia, será que não dava para usar fones de ouvido? — Desculpe — Cordelia disse —, eu me distraí. É um álbum ótimo. Eu já abaixei o volume. — Obrigada — Alcala disse. — Já tem alguma ideia de quem vai gravar os comerciais para nós? — Vou repassar a lista. Jagger, talvez. — A jovem hesitou. — Ele não disse não. — Ligou para ele na semana passada? — Bem... não. A voz de Alcala assumiu um tom levemente reprovador. — Cordelia, eu admiro o que você está conseguindo fazer pelo show beneficente. Mas a GF&G tem outros projetos a considerar também. — Eu sei — Cordelia disse. — Desculpe. Só estou tentando dar conta de um monte de coisas. — Ela tentou soar mais otimista e mudar de assunto. — As liberações chegaram da China esta manhã. Significa que estaremos no ar para mais da metade do mundo. — Sem contar a Austrália. — Alcala deu uma risadinha. — Inclusive na Austrália. — Ligue para o agente do Jagger — disse Alcala. — Está bem? — Beleza. — Cordelia desligou o telefone. Ela pegou a pequena e intrincada escultura de pedra no formato de um lagarto da mesa que estava quase coberta por um monte de fotografias. Era, na verdade, um crocodilo australiano, mas haviam garantido que era seu primo e, portanto, um fetiche apropriado. Preferia pensar na imagem como um jacaré. Cordelia devolveu a escultura para a mesa, deixando-a diante da foto em preto e branco pequena e emoldurada de um jovem aborígene. Ela fez uma careta para o retrato. — Wyungare — ela sussurrou. Seus lábios arredondaram-se num beijo. Em seguida, girou a cadeira para encarar o mural na parede. Pegou um marcador grosso e começou a riscar nomes, terminando com uma lista de U2, Bruce Springsteen, Little Steven, Coward Brothers e Girls with Guns. Nada mau, ela pensou. Caramba, nada mau mes-mo. Mas, ela deu uma risadinha de satisfação, havia mais. Ela pegou o marcador novamente...

As três haviam almoçado mais cedo no Acropolis, na Tenth Street, perto da Sixth Avenue. Cordelia ofereceu-se para levá-las a um lugar mais elegante. Afinal, agora tinha uma verba de representação. O Acropolis era um simples café, indistinguível de milhares de outros na cidade. — O Riviera fica apenas a poucos quarteirões daqui — ela disse. — É um lugar bacana. C.C. Ryder não queria saber. Queria um lugar anônimo para se reunir. Pediu que se encontrassem bem antes da agitação do almoço. E queria que Nômada estivesse junto. Cordelia fez o que a outra queria, pois precisava dela. Então, terminaram numa mesa coberta com vinil imitando couro com C.C. e Nômada lado a lado encarando Cordelia e a porta. Cordelia ergueu os olhos do cardápio e sorriu. — Posso recomendar a salada de frutas. C.C. não sorriu de volta. Sua expressão era séria. Tirou o chapéu pork pie de couro quase disforme e bagunçou os cabelos ruivos espetados. Cordelia percebeu que os brilhantes olhos verdes de C.C. pareciam muito com os do tio Jack. Tenho que ligar para ele, ela pensou. Não queria, mas precisava. — Viu minhas olheiras de panda? — C.C. disse apontando para os olhos. Naquele dia, não parecia muito com um daqueles compositores e intérpretes de rock de primeira linha. O efeito era deliberado. Vestia jeans tão velhos e surrados que pareciam lavados com ácido. Seu moletom largo da John Hiatt parecia ter a mesma quantidade de lavagens que os jeans. — Não — Cordelia disse. A pele de C.C. era branca e macia, quase albina. — Bem, devia ter notado. — Um sorriso fraco pairou sobre os lábios de C.C. — Tenho perdido o sono com toda essa coisa de show beneficente. Cordelia não disse uma palavra, continuou encarando os olhos da cantora. — Sei que esta é a última jogada de Des — C.C. continuou. — E sei que a causa é boa. Um show beneficente para pacientes de AIDS e vítimas do carta selvagem é algo que já deveria ter sido feito. Cordelia assentiu. As coisas estavam se encaminhando bem. C.C. deu de ombros. — Acho que consigo sair do buraco de ansiedade por um tempo e tocar na frente de gente real. — Ela sorriu de verdade agora. — Então, a resposta é sim. — Que máximo! — Cordelia estendeu os braços sobre a mesa e abraçou C.C. com força. Assustada, Nômada quase se levantou da cadeira, e Cordelia viu de soslaio que ela estava pronta para rasgar sua garganta se estivesse realmente atacando C.C. Cordelia ouviu um rosnado baixo, parecido com o dos gatos de Nômada, quando ela se afastou de C.C. e voltou à sua cadeira. — Maravilhoso! — Cordelia afirmou. Parou de balbuciar quando viu o rosto de C.C. — Ai, desculpa — Cordelia falou, mais calma. — É que eu amo sua música, amo você como compositora há tanto tempo que gostaria de vê-la tocando suas músicas mais do que qualquer outra coisa.
— Não vai ser fácil — C.C. confessou. Nômada olhou para ela, preocupada. — Temos quanto tempo, dez dias? Cordelia assentiu. — Por aí. — Vou precisar de cada minuto. — Vai ter. Vou deixar alguém como meu contato que vai conseguir o que você quiser, sempre que precisar. Alguém em quem confio, e você também. — Quem é? — Nômada disse com evidente suspeita. Os músculos do rosto magro ficaram tensos. Os olhos castanhos estreitaram-se. Cordelia respirou fundo. — Tio Jack — ela disse. A expressão no rosto de Nômada não era agradável. — Por quê? — ela perguntou. C.C. olhou para ela. — Por que não eu? — Pode ajudar C.C. o quanto quiser — Cordelia respondeu, apressada. — Mas preciso do tio Jack envolvido com tudo isso. Ele é competente, sensato e confiável. Estou até o pescoço de trabalho — ela disse com franqueza. — Preciso de toda a ajuda que conseguir juntar. — Jack sabe disso? — Nômada quis saber. Cordelia hesitou. — Bem, tava esperando pra contar pra ele. — Ela percebeu que o sotaque cajun se manifestava enquanto ela enrubescia. Puxou um freio mental. — Eu deixei mensagens na secretária, mas ele não responde. Nômada recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Um minuto se passou. Parecia um longo tempo. O garçom grego aproximou-se para pegar os pedidos. C.C. lhe disse para voltar em alguns minutos. Quando voltou a abrir os olhos, Nômada sacudiu a cabeça para desanuviar os pensamentos. — Não sei quando o garoto vai responder às suas chamadas. — Como assim? — Cordelia sentiu uma vertigem, como se seus planos fossem papéis deslizando para fora de uma mesa cuidadosamente nivelada. — Está todo quebrado — Nômada disse. — Jack está bem longe... provavelmente perto da baía de Nova York , acho. Está indo à forra, se acabando com o tipo de criaturas que você não vê no Aquário Castle Clinton. Com toda a carne crua que está comendo — ela sorriu sem humor —, não consigo dizer quando ele volta para jantar em casa. — Quelle damnation — Cordelia murmurou. — De qualquer forma — ela disse para C.C. —, me ligue no escritório pela manhã, que vou arranjar algo. Tio Jack ou outra pessoa. — Arranje outra pessoa — Nômada disse. Cordelia sorriu, tranquilizadora. O garçom voltou, e ela pediu a salada de frutas.

... e marcou C.C. na lista de artistas do show beneficente em letras garrafais e pretas. — Carambolas — Cordelia disse alto para si mesma. — Eu sou demais. Então, hesitou e olhou novamente a edição da Village Voice na mesa. Uma pequena nota de eventos em caracteres microscópicos estava circulada em vermelho. Ela rabiscou um nome adicional no mural.
Sexta-feira
Merde. Não há como fugir. Foi o que sentiu quando se arrastou para a casa no início da manhã. Não havia nada de convidativo em entrar na bagunça que estava sua sala de estar. Jack tropeçou pelos escombros. À frente dele, viu a porta rachada para o quarto. A mão ainda doía. Mas, naquele momento, os dentes também. A cabeça, as mãos — parecia que cada osso de seu corpo doía. — Enfer — ele xingou quando viu a luz vermelha da secretária eletrônica piscando. Quase conseguiu ignorar o demônio ciclópico; em seguida, curvou-se e bateu no botão para ouvir as mensagens. Três mensagens de seu supervisor. Jack sabia que era melhor ligar naquela manhã, ou não teria mais trabalho para voltar. Ele gostava de viver ali embaixo, e gostava do privilégio de um emprego útil embaixo, na escuridão. As outras oito mensagens eram de Cordelia. Não eram muito informativas, mas também não soavam como emergências. Cordelia dizia o tempo todo que era importante Jack retornar suas ligações, mas o tom não indicava um perigo mortal. Jack voltou a fita de mensagens e desligou a secretária, depois foi para a cozinha. Deu uma olhada no refrigerador, mas não fez caso de abri-lo. Sabia o que havia lá dentro. Além disso, simplesmente não tinha fome. Tinha alguma ideia do que havia devorado no dia e na noite passados e não queria pensar naquilo. Peixe-agulha cego, albino, algo que ninguém encontraria no cardápio de qualquer restaurante cajun em Nova York. Ele foi para o quarto e despencou na cama. Não fez questão de se despir. Moveu-se apenas o bastante para enrolar-se na colcha antiga. E apagou. O telefone ao lado da cama o acordou precisamente às oito horas. Sabia disso porque os números no visor de LED vermelho do relógio queimaram-lhe a retina quando ele finalmente abriu os olhos e estendeu o braço para interromper o som estridente que estraçalhava seus ouvidos.
— Hummm. Alô? — Tio Jack? — Sim... ah, Cordie? — Ele despertou um pouco mais. — Sou eu, tio Jack. Desculpe se eu acordei você. Estava tentando te encontrar já faz um tempo. Ele bocejou e ajustou o fone para que o travesseiro o segurasse. — Tudo bem, Cordie. Precisava mesmo ligar pro meu chefe e dizer que estou com alguma coisa, fiquei doente demais nos últimos dias para ligar. Cordelia soou alarmada. — Está doente mesmo? Jack bocejou de novo. Lembrou-se do que poderia ter dito. — Mais saudável impossível. Só saí para a gandaia, foi isso. — Nômada disse... — Nômada? — É. — Cordelia parecia estar escolhendo as palavras com cuidado. — Pedi que ela cuidasse de você. Ela disse que você havia saído para a baía, hum, para matar umas coisas. — Dá para descrever assim — Jack falou. — Tem algo de errado? Ele esperou alguns segundos antes de responder e deu um suspiro. — Estresse, Cordie. Só isso. Preciso relaxar. Ela não soou totalmente convencida, mas finalmente disse. — Está bem, tio Jack. Olha, você se importa se eu passar aí hoje à noite depois do trabalho e levar uma amiga? — Quem? — Jack disse, cauteloso. — C.C. Jack pensou na mulher, lembrou-se de tê-la visitado na clínica de Tachyon. Tinha tudo que ela já havia gravado, álbuns e fitas, em uma estante no quarto ao lado. — Acho que tudo bem — ele disse. — Vai me dar uma desculpa para limpar a casa. — Não precisa — Cordelia disse. Ele riu. — Ah, precisa sim. — Cinco e meia, tá? — Pode ser. Aliás, quer adiantar o assunto? — ele perguntou. Ela foi direta. — Preciso de sua ajuda, tio Jack. — Ela falou tudo sobre como as coisas estavam indo com a logística do show beneficente. — Estou soterrada. Não consigo dar conta de tudo. — Não sei o quanto posso colaborar com esse tipo de evento. — Você conhece rock ’n’ roll — ela disse. — Melhor, você consegue lidar com tudo que acontece. Quase tudo, ele pensou. O rosto de Tachyon flutuou na frente dele. O de Michael. — Puxa-saco — ele disse.
— Vérité. Alguns momentos se passaram. — Preciso perguntar uma coisa — Jack falou. — Não estamos nos falando muito... — Eu sei — ela disse. — Eu sei. Por ora, não estou pensando muito nisso. — Sem decisão, então? — Ainda não. — Obrigado por ser sincera. Mais alguns segundos passaram. Parecia que Cordelia queria dizer algo, mas, por fim, tudo que ela disse foi: — Tudo bem, obrigada, tio Jack . Estarei com C.C. às cinco e meia. Tchau. Jack ouviu o silêncio até o circuito desconectar-se. Em seguida, ele se virou e discou para o supervisor do Departamento de Trânsito. Ele não precisaria se concentrar para convencer que estava doente.

Quando abriu a porta para Cordelia e C.C., no fim da tarde, Jack percebeu que a limpeza da sala de estar provavelmente havia sido a parte mais fácil do dia. Os olhos de Cordelia pareceram se estreitar quando o encararam, como se na verdade estivesse vendo duas imagens e tentando escolher aquela que ela perceberia. — Tio Jack — ela disse. Houve um momento tenso quando ela pareceu ponderar se lhe dava um abraço. A mulher que estava em pé ao lado dela aliviou o momento. — Jack! — disse C.C. — É bom vê-lo de novo. — Ela passou por Cordelia, entrou na sala de estar, deu um abraço firme em Jack e um beijo carinhoso nos lábios. — Sabe de uma coisa? — ela falou. — Embora eu tenha ficado fora do ar por muito tempo, significou muito para mim que você tenha ido me visitar na clínica. Qualquer coisa que aconteça com você, saiba que estarei lá para te visitar, viu? — Ela abriu um sorriso. — Tudo bem — ele disse. — Mon Dieu — disse Cordelia, olhando ao redor da casa de Jack . — O que aconteceu aqui? Os esforços de reparo de Jack não tinham sido totalmente bem-sucedidos. Um pouco da mobília antiga quebrada estava empilhada em um lado da sala. Ele não teve coragem de jogá-la num contêiner de lixo. Ainda havia uma chance de restaurá-la e repará-la com cuidado. — Quando eu estava entrando na noite passada — ele disse —, escorreguei. — Foi alvejado tentando escapar, isso sim — disse Cordelia, irônica. — Seja lá o que tenha acontecido, tio Jack, sinto muito. Era um lugar tão bonito. — Ainda não está decadente — disse C.C., sentando-se numa namoradeira com pés em garra. Ela estendeu os braços quando afundou no estofado macio. — Esta aqui está ótima. — Ela sorriu para Jack. — Tem café?
— Claro — ele disse. — Já está pronto. — Nômada vinha conosco — C.C. começou a falar. — Teve que fazer algumas coisas no outro lado da cidade — Cordelia disse. — Ela me pediu para te mandar um oi — C.C. disse. — Claro. — Sim, sim, ele pensou. Cordelia ofereceu-se para ajudar com o café, mas ele a enxotou de volta para a sala de estar. Quando todos estavam sentados com uma caneca fumegante e um prato de bolinhos com geleia de morango, Jack perguntou: — Então? — Então — C.C. disse —, sua sobrinha é muito persuasiva. Mas meu ego também. Vou sair da reclusão para o show beneficente, Jack. Voltar aos shows ao vivo. Na marra. Nada muito planejado. Um potencial de uns dois bilhões de espectadores. Vai acontecer, na frente de Deus e do mundo. — Ela deu uma risadinha. — Nada como enfrentar a agorafobia aguda de uma vez. — Muito impetuoso — disse Jack. — Estou feliz que vá encarar o público. Coisas novas? — Algumas antigas, outras novas — ela disse. — Algumas emprestadas, alguns blues. Tudo depende da chefa aqui. — C.C. apontou para Cordelia. — Se ela me der mais tempo. — Vinte minutos — Cordelia disse. — É o que todos vão ter. O Boss, Girls With Guns, você. — Igualdade é ótimo — C.C. olhou para Jack. — Então, vai me ajudar com as preparações para a grande noite? — Hum — Jack falou. — A GF&G pode persuadir o pessoal do Departamento de Trânsito a te liberar um tempo — Cordelia emendou rapidamente. — Falei com um dos caras do departamento de relações com a comunidade. Achou excelente ter alguém de lá envolvido em algo assim. — Uhum — Jack disse. — Com pagamento — Cordelia disse. — E a GF&G também vai te dar uma comissão. — Eu tenho minhas economias — Jack falou baixinho. — Tio Jack, eu preciso de você. — Já ouvi isso antes. — Com suavidade dessa vez. — Por isso digo novamente. — Parecia que a voz de Cordelia, sua expressão, os olhos, tudo estava num apelo coordenado. — Seria bom trabalhar com você — C.C. falou e piscou um olho cor de esmeralda. — Passe livre para o backstage. Do ladinho das estrelas. Jack olhou para uma mulher e para a outra. — Tudo bem — ele disse por fim. — Combinado. — Oba — Cordelia disse. — Vou começar a dar os detalhes. Mas tem mais uma coisa que eu quero comentar agora. — Por que eu estou com a sensação de que, nesse momento, eu deveria ser um jacaré olhando para o arpão? — Jack perguntou. — Tem planos para hoje à noite? — Cordelia quis saber. Jack estendeu as mãos.
— Pensei em reformar algumas cadeiras. — Você vem comigo para New Brunswick. — Nova Jersey? Cordelia assentiu. — Vamos ao Holidome. Vamos ver Buddy Holley. Jack disse: — O Buddy Holley? Pensei que ele estivesse morto. — Está fazendo o lounge circuit há anos. Vi uma notinha sobre a participação dele na revista Voice. — Ela quer que ele participe do show beneficente — C.C. comentou. — Um ato de nostalgia? — Jack falou. Cordelia estava mesmo corando. — Cresci com a música dele. Eu adoro o homem. Digo, não tem nada certo com ele sobre o show beneficente. Só quero ir vê-lo e descobrir se ele é o mesmo de antes. — Talvez você tenha um choque desagradável — C.C. disse. — Guitarra de barro e coisas assim. — Vou arriscar. — “Not Fade Away” é minha música favorita de todos os tempos — Jack falou. — Conte comigo. — Diga para ele — C.C. falou para Cordelia. — Nômada vai também — ela disse, relutante. — Não sei — Jack falou. Pensou no primeiro encontro com Pancada, quando o gato preto o salvou de se enroscar com o psicopata agressor de gays. O gato estava agindo sozinho ou por sugestão de Nômada? Ele nunca perguntou para ela. Talvez o fizesse antes do show. — Tio Jack? — Cordelia perguntou. Ele sorriu para ela. — Vam’bora!
Sábado
— Ai, meu Deus — C.C. falou, baixo o bastante para que apenas Jack ouvisse. — Ele está fazendo cover do Prince, do maldito Prince! — E não muito bem — Jack comentou. Cordelia ficou preocupada com o trânsito glacial no Túnel Holland, pois os quatro chegariam atrasados para o primeiro número de Buddy Holley. Ela também estava preocupada, pois os jovens de Jersey podiam roubar o Mercedes
que Luz Alcala havia emprestado. — É um Holiday Inn — Jack disse quando estacionaram na entrada. — E? — O estacionamento é iluminado — Jack respondeu. — Tem uma vaga perto do saguão — Cordelia disse, aliviada. — Quer que eu dê dez dólares para o atendente ficar de olho no carro? — Faria isso? — Cordelia falou num tom sério. Então estacionaram, trancaram o carro e entraram no Holidome de New Brunswick. A viagem pela cidade foi bem tensa. Jack foi no banco da frente com Cordelia no volante, Nômada sentou-se atrás no lado oposto, o mais longe de Jack que conseguiu. C.C. e Cordelia fizeram o melhor para manter uma conversa. Jack decidiu que era um momento inadequado para questionar Nômada sobre se seu salvador daquela vez, o gato preto, estava agindo sozinho ou por ordem de sua dona. — Vai ser o máximo — Cordelia disse. Ela havia posto uma fita dos maiores sucessos de Buddy Holley and the Crickets’ no toca-fitas Blaupunkt. O sistema de alto-falantes era muito, muito bom. — Cordelia — Nômada disse —, gosto muito de Buddy, mas não quando ele fere meus ouvidos. — Ah, desculpa — Cordelia falou. Ela girou o botão para um volume quase suportável. O tráfego da noite de sábado diminuiu até um anda-e-para dentro do túnel, o fedor de escapamento erguia-se em nuvens visíveis, e os quatro no Mercedes ouviram todas as fitas de Buddy Holley de Cordelia antes de chegarem a Nova Jersey. Cordelia ficava cada vez mais nervosa quanto mais tarde ficava. — Talvez tenha alguém para abrir o show — ela murmurou. Não havia, mas descobriram que não importava. Quando os quatro entraram pelas portas do saguão do Holidome, viram que não precisavam se apressar para conseguir lugares. Mais ou menos metade das cabines e mesas estava vazia. Era óbvio que a farra do sábado à noite em New Brunswick não acontecia ali. Pegaram uma mesa a uns nove metros do palco baixo, Jack e Nômada em lados opostos, separados por C.C. e Cordelia. E Buddy Holley fez cover de Prince. Jack reconheceu Holley dos retratos dos discos. Sabia que o músico tinha 49 anos, quase a sua idade. Holley parecia mais velho. Seu rosto estava descaído; a barriga não era totalmente camuflada pelo casaco prateado lamê. Não usava mais os antigos óculos de tartaruga pretos; os olhos estavam mascarados por estilosos óculos escuros de aviador que não escondiam totalmente as bolsas escuras embaixo dos olhos. Mas ainda tocava a Fender Telecaster como um anjo. Não se podia dizer o mesmo dos caras do conjunto. O guitarrista base e o baixista pareciam ter 17 anos, e não estavam inspirados. A indistinta mixagem de som não ajudava. O baterista se debatia nos tambores, o volume vinha no nível certo para mascarar totalmente a voz de Holley. Em ordem rápida, Buddy Holley passou de Prince para um Billy Idol ruim
e um Bon Jovi mais ou menos. — Não acredito nisso — C.C. resmungou, dando uma boa golada no seu Campari com tônica. — Ele está fazendo só covers comerciais, as merdas dos 40 mais. Cordelia assistia em silêncio, sua expressão de entusiasmo inicial desaparecendo visivelmente. Nômada sacudiu a cabeça com desaprovação. — Não devíamos ter vindo. Talvez, Jack pensou, ele esteja esperando uma luz. — Vamos dar uma chance. Quando as desanimadas palmas diminuíram depois de uma tentativa sofrível de evocar Ted Nugent, uma voz do fundo do lounge gritou: — Vamos lá, Buddy... toque algumas das antigas! — Uma ovação entusiasmada se seguiu. A maioria dos aplausos veio da mesa de Cordelia. Buddy Holley pegou a Telecaster pelo braço e se inclinou para o público. — Bem — ele disse, o sotaque do oeste do Texas ainda forte —, não costumo aceitar pedidos, mas como vocês são uma plateia tremenda... — Ele retomou a guitarra e dedilhou uma sequência rápida de acordes abertos que o grupo conseguiu seguir mais ou menos. — Ai, Deus — C.C. disse. Pegou outra bebida quando Buddy Holley entrou com “Hurray for Hazel”, de Tommy Roe, em seguida um verso rápido de “Sheila”, por fim uma versão triste, quase como um blues de “Red Roses for a Blue Lady”, de Bobby Vinton. Holley continuou por essa senda. Tocou um monte de músicas que ficaram famosas na voz de Bobbys e Tommys nos anos 1950 e 1960. — Quero ouvir “Cindy Lou” ou “That’ll Be the Day” ou “It’ s So Easy” ou “T-Town” — disse Cordelia, girando distraidamente seu gim com tônica. — Não essa merda aí. Já fico bem com “Not Fade Away”, Jack pensou. Ele assistiu a Buddy Holley se esfalfar através de uma deplorável retrospectiva pop, e tudo ficou deprimente. Foi o bastante para que ele desejasse que Holley tivesse morrido no auge de sua popularidade inicial e não sobrevivido para cair nessa terrível autogozação. Conversas e gargalhadas de bêbados aumentaram nas mesas ao redor. Parecia que a maior parte do lounge já havia esquecido completamente que Buddy Holley estava se apresentando no palco. Quando o cantor terminou o set, apresentou o número final com muita simplicidade. — Essa aqui é nova — ele disse. O pequeno público nem mesmo ligou, já estava ficando agressivo. — Que se foda! — alguém gritou. — Liga a jukebox! Holley deu de ombros e saiu do palco. Os guitarristas acompanhantes abaixaram os instrumentos em silêncio; o baterista se levantou e deixou as baquetas sobre um amplificador. — Por que não toca os clássicos? — Cordelia questionou. — Aguentem um pouco — ela disse aos companheiros. Em seguida, se levantou e seguiu Buddy Holley quando ele se dirigiu ao bar. Eles a viram séria conversando com o homem. Ela o levou até a mesa, puxou uma cadeira vazia, pareceu fazê-lo sentar
pela pura força de vontade. Holley parecia se divertir com a situação toda. Cordelia apresentou os amigos. O músico repetiu cada nome educadamente e cumprimentou-os com apertos de mão. Jack achou o aperto de mão do homem firme e quente, nada frouxo. Cordelia disse: — Somos quatro grandes fãs do senhor. — Sinto que estejam vendo tudo isso aqui — Holley falou. — Sinto que devo desculpas a todos. Não foi uma noite boa. — Ele ergueu os ombros. — Claro, a maioria das noites em lounges é assim. — Holley abriu um sorriso autodepreciativo. — Por que não toca suas músicas? — Nômada perguntou sem preâmbulos. — Sua música das antigas — Cordelia disse. — As coisas boas. Ele olhou para todos na mesa. — Tenho meus motivos — ele respondeu. — Não é uma questão de não querer. Eu só não posso. — Bem — Cordelia disse, sorrindo —, talvez eu possa ajudá-lo a mudar de ideia. — Ela começou a apresentar o projeto do show beneficente na Funhouse, sobre como Holley poderia tocar cedo no show do próximo sábado, que talvez ele pudesse fazer um medley das músicas que o levaram ao superestrelato nos anos 1950 e início dos 1960, que talvez — apenas talvez — o show e o televisionamento pudessem rejuvenescer sua carreira. — Da mesma forma que o Bruce Springsteen encontrou Gary U.S. Bonds tocando em bares como este — ela terminou. Buddy Holley parecia realmente surpreso com a efusão de entusiasmo de Cordelia. Ele pôs os cotovelos na mesa, examinando de perto o club soda com limão que a garçonete havia trazido para ele, para então erguer os olhos com um sorrisinho. — Olha — ele disse —, obrigado. Obrigado mesmo. Ouvir algo assim me fez ganhar a noite... caramba, o ano inteiro. — Ele afastou o olhar. — Mas não posso. — O senhor pode — Cordelia disse. Ele sacudiu a cabeça. — Pense na minha proposta. — Não vai adiantar — ele falou. — Não vai funcionar. — Ele deu tapinhas na mão dela. — Mas obrigado por se lembrar de mim. — E, com isso, acenou com a cabeça para o restante do grupo, levantou-se e atravessou a fumaça até o palco para a segunda parte do show. — Caramba — Cordelia disse. Jack observou as costas de Holley quando o músico subiu ao palco. Tinha algo de familiar na forma que o homem caminhava. Havia uma sensação de derrota. Jack pensou na última vez que vira aquele leve curvar de ombros e a cabeça baixa quando se olhou no espelho. Hoje de manhã. Ele imaginou quantos muitos anos e quais desastres haviam derrubado Buddy Holley. Eu queria... O primeiro pensamento não se completou. Em seguida, ele disse para si mesmo: Eu queria poder ajudar . — Quer ir embora ou vai ficar? — C.C. perguntou para Cordelia.
— Vamos — Cordelia disse. Quase baixo demais para ser ouvida, ela continuou: — Mas acho que volto. — Como o general MacArthur? — Nômada quis saber. — Mais como o sargento Preston da Polícia Montada — Cordelia respondeu.
Domingo
— Então, quem você está chamando de garotinha? — Cordelia perguntou, a voz mais fria que o oceano além de Jones Beach. — O que eu disse — respondeu o atendente do turno da manhã do Holiday Inn — é que não posso dar o número do apartamento dos nossos hóspedes a qualquer garotinha que aparece aqui. — Ele sorriu para ela. — Regras. — Você sabe o quanto eu tive que acordar cedo para pegar um trem até aqui? — Cordelia questionou. — Sabe quanto tempo esperei por um táxi na estação de New Brunswick? O sorriso fácil do atendente começou a desaparecer dos lábios. — Desculpe. — Não sou uma porcaria duma groupie! — Cordelia bateu um cartão de visitas caro, todo em relevo, no balcão. — Estou tentando tornar Holley uma estrela. — Ele já foi uma. — O atendente pegou o cartão e examinou-o. Embaixo do nome de Cordelia estava “Produtora Associada”. O nome pomposo de um cargo foi dado no lugar de um aumento. — Sério? Você trabalha na GF&G, os caras que fazem o show do Robert Townsend e todas aquelas coisas do Spike Lee? — Ele parecia já meio impressionado. — Sério — disse Cordelia. Ela tentou sorrir. — Sem brincadeira. — E você vai tirar o Buddy Holley dessa lama em que ele está? — Vou tentar. — Então tá — disse o atendente, sorrindo. Ele verificou no registro giratório. — Quarto 8420. — Ele olhou para Cordelia com insistência. — E? Com um tom de voz que sugeria “Você não sabe de nada?”, o atendente disse: — As estradas principais levam para fora de Lubbock . A autoestrada para Nashville. — Ah — Cordelia disse.

Buddy Holley estava dormindo quando Cordelia bateu à porta do quarto 8420 às 9h25. Ficou óbvio quando ele abriu a porta. Os cabelos grisalhos estavam desgrenhados. Os óculos um pouco tortos quando ele espiou o corredor através de um vão da porta. — Sou eu, Cordelia Chaisson. O senhor se lembra? Da noite passada? — Hum, claro. — Holley parecia se recompor. — Posso ajudá-la? — Estou aqui para tomar café da manhã com o senhor. Preciso falar com você. É muito importante. Buddy Holley balançou a cabeça, pensativo. — Você é uma força irresistível? Ou um objeto irremovível? Cordelia deu de ombros. — Me dê dez minutos — Holley disse. — Encontro você lá embaixo, no saguão. — Promete? — Cordelia perguntou. Holley deu um sorrisinho, assentiu e fechou a porta.

Buddy Holley chegou à mesa de café da manhã com jeans bem passados, uma camisa de vaqueiro florida e uma jaqueta de veludo marrom. Parecia o pior para se usar, mas era confortável. Ele se sentou e disse: — Vai tentar me evangelizar de novo? — Se eu puder. Podemos falar disso depois que tomarmos um cafezinho. — Chá para mim — ele falou. — De ervas. Eu trouxe. A seleção de chás daqui é bem mixuruca. A garçonete veio e pegou os pedidos. — Isso ao redor do seu pescoço — Holley disse, apontando com o olhar. — É um amuleto? Vi a noite passada e fiquei interessado. Cordelia abriu o fecho e estendeu o amuleto para o homem. O pequeno jacaré prateado e o dente fossilizado estavam presos ao delicado arenito oval com uma tira rígida de tripa seca. Holley virou o objeto para lá e para cá, examinando-o de perto. — Não parece do sudoeste americano. Polinésio? Australiano, talvez? — Muito bem — Cordelia respondeu. — Aborígene. — De que tribo? Eu conheço os aranda muito bem, até os wikimunkan e os murngin, mas este aqui não é familiar. — Foi feito por um jovem aborígene urbano — Cordelia comentou e hesitou por um instante. Pensar em Wyungare a deixava entusiasmada, mas doía ao mesmo tempo. E como, ela imaginou, estava indo a revolução australiana central, do jeito que as coisas estavam? Ela esteve muito ocupada com o show
beneficente para assistir ao noticiário. — Ele me deu como um presente de despedida. — Deixe-me adivinhar — Holley disse. — O arenito de Uluru? — Cordelia assentiu. Uluru, o nome verdadeiro daquilo que os europeus chamavam de Ayers Rock. — E o réptil é seu totem, claro. — Ele ergueu o objeto contra a luz antes de devolvê-lo. — Tem uma força considerável aqui. Não é apenas um símbolo. Ela apertou novamente o fecho. — Como sabe? Ele deu uma risadinha marota para ela. — Só não dê gargalhadas, ok? Cordelia ficou intrigada. — Tudo bem. — Desde que as coisas viraram um inferno... desde que começaram a desmoronar em 1972 — ele disse, hesitante —, eu comecei a procurar. — Ele tomou o chá de forma contemplativa. — O quê? — Cordelia perguntou, por fim. — Qualquer coisa, qualquer coisa que significasse alguma coisa. Estava apenas... procurando. Cordelia pensou por um momento. — Espiritualmente? Holley assentiu com veemência. — Exato! Tinham acabado as limusines, as casas, o jatinho particular e a vida boa, o... — Ele parou no meio da frase. — Tudo acabado. Devia haver algo além de virar garrafas e ver o fundo do poço. — E o senhor encontrou? — Ainda estou na busca. — Ele encontrou o olhar da moça e sorriu. — Muitos anos e muitos quilômetros. Sabe de uma coisa? Sou mais popular na África e no resto do mundo que aqui. Em 1975, meu agente me deu a última chance e programou essa maluca turnê pan-africana. As coisas degringolaram... bem, eu degringolei. Fiquei realmente mal depois que voltei de um show em Johannesburgo. Sei lá como, roubei uma Land Rover e acabei tomando uma garrafa de uísque Jim Beam no meio da floresta. Sabe como o envenenamento alcoólico funciona? Moça, eu estava nesse caminho. Cordelia o encarou, mantida em transe pelo sotaque simples do oeste do Texas. O homem era um contador de histórias. — Os bosquímanos me encontraram. Nativos de Kalahari. A primeira coisa que reconheci foi um xamã Kung inclinado em cima de mim e soltando os gritos mais profanos que você jamais ouviu. Mais tarde, descobri que ele estava puxando a doença para si para depois soltá-la no ar. — Holley, contemplativo, tocou a ponta do polegar nos dentes incisivos. — E esse foi o começo. — E desde então? — Cordelia disse. — Continuei procurando. Em todos os lugares. Quando toquei numa série de bares nas Dakotas e no Meio Oeste, aprendi sobre o Rolling Thunder e as gerações de Black Elk . Quanto mais aprendia, mais queria saber. — Sua voz adquiriu um tom onírico. — Quando eu estava com os lakota, implorei por uma visão. O xamã me conduziu numa cerimônia inipi e me mandou para o monte
receber os wakan, os seres sagrados. — Holley sorriu com tristeza. — Os Seres do Trovão vieram, mas foi só isso. Eu fiquei molhado e com frio. — Ele deu de ombros. — E assim foi. — O senhor continua na busca — Cordelia disse. — É o que eu faço. Aprendo. Estou sem beber desde a África do Sul. E sem drogas também. Quanto ao que estou aprendendo, não é fácil trabalhar com uma educação batista conservadora, mas é o que venho tentando fazer. Ocorreu a Cordelia que, por tudo que estava dizendo, Buddy Holley ainda parecia muito ancorado no universo físico. Ela não tinha a mesma sensação de dissociação etérea que recebia de estrelas do rock espiritualmente transformadas, como Cat Stevens ou Richie Furay. Ela deu uma mordida no bolinho que já estava esquecido na mesa. — A maioria das coisas que sei sobre isso, aprendi com meu amigo aborígene, mas eu penso sobre isso. Às vezes, no meu trabalho, imagino se as estrelas do rock , os cantores pop, artistas aos olhos da opinião pública dos Estados Unidos não são um equivalente contemporâneo dos xamãs. Holley assentiu com seriedade. — Homens e mulheres de poder. Sem dúvida. — Eles têm a magia. Buddy Holley riu. — Felizmente, aqueles que acreditam que têm, em geral não têm nada. E aqueles que realmente possuem o poder, não têm consciência disso. Cordelia engoliu o bolinho. — Todos os artistas no show beneficente do próximo sábado têm o poder. — Holley olhou desconfiado. — Estou mudando o assunto — Cordelia disse num tom leve. — Não acho que as coisas mudaram desde a noite passada. Você quer que eu toque meus clássicos. Não posso. — Isso é... — Cordelia procurou as palavras. — Isso é uma crise de confiança? — Provavelmente faz parte. — A mesma coisa aconteceu com C.C. Ryder — Cordelia comentou. — Mas ela mudou de ideia. Vai tocar. — Que bom. — Holley hesitou. — A verdade é que não posso tocar as músicas que você quer que eu toque. — Por que não? — Não são mais minhas. Quando as coisas começaram a ruir, uma empresa de Nova York chamada Shrike Music comprou meu catálogo inteiro. São mesmo umas gracinhas. Já viu o logotipo deles? Uma semínima empalada numa estaca. Eles deixaram minhas canções no gelo. Odeio, mas não posso pôr a boca no trombone para consegui-las de volta. — Holley estendeu as mãos, desamparado. — Vamos ver isso — Cordelia disse sem hesitar. — A GF&G vai fazer alguma coisa. Esse é o único impedimento? — Você acha que pode fazer qualquer coisa, não é? — Holley sorriu enquanto balançava a cabeça. Dessa vez era um sorriso genuíno. Os dentes eram
brancos e alinhados. — Tudo bem. Você libera algumas canções e vamos ver se entramos num acordo. Em nome dos velhos tempos. — Não entendo — Cordelia retrucou. — Bem, vou te contar uma coisa — Buddy Holley disse. A animação preencheu suas feições e voz. — Lá atrás, no colegial em Lubbock... Quando Bob Montgomery e eu estávamos juntos pela primeira vez fazendo umas gravações malucas, tinha uma garota. Pensei que era apenas... bem... — Ele respirou fundo e sorriu, envergonhado. — A história já é conhecida. Ela nunca me deu bola. Anos mais tarde, ela ainda estava na minha cabeça quando gravei “Girl on My Mind”, em Nashville. Foi na época em que a Decca quis que eu fosse como todo mundo, com um sucesso de rock ’n’ roll, em 1956. Com essa música, eu não segui a fórmula. — Ele balançou a cabeça. — Bem, você lembra essa garota. Ela também sabia o que queria. — Ele se recostou na cadeira e olhou para ela. — É uma história ótima — Cordelia disse. — É como... — Rock ’n’ roll — Holley terminou a frase. Os dois riram. As coisas voltaram aos trilhos, Cordelia pensou.
Segunda-feira
No início da manhã de segunda-feira, Cordelia estava sentada na sua mesa e pensando em seus pecados enquanto esperava o departamento de direitos e autorizações da Shrike Music ao telefone. A música de fundo do circuito de espera da Shrike era clássica, sombria e fúnebre. Cordelia suspeitou que fosse uma tática deliberada para criar confusão mental. Ocorreu a Cordelia, enquanto examinava as unhas, que ainda não havia tentado contatar Mick Jagger. Luz Alcala não ficaria muito feliz com isso. Ao menos, havia conseguido devolver o Mercedes para Luz sem um arranhão ou um amassado. Bem, havia prioridades. Parecia muito importante garantir Buddy Holley para o show beneficente na Funhouse. Ela repassou as mensagens telefônicas anotadas que estavam empilhadas na mesa. O empresário do U2 queria avisar que The Edge havia prendido os dedos na porta do carro no fim de semana. O U2 talvez se apresentasse sem o guitarrista. Talvez, ela pensou, pudesse convencer o Bono a fazer um número acústico. O pessoal da técnica havia deixado um aviso de que aquele ShowSat III estava dando defeito no oceano Índico. Estavam trabalhando para consertá-lo. Tinha quase certeza de que as transmissões ruins poderiam ser arrumadas. Quase?, ela pensou. Que merda. Era melhor que “quase” se traduzisse em
“total”. Sabia muito bem que não tinha influência para conseguir que a GF&G mandasse um voo de reparo com cinco dias de antecedência. Com qualquer antecedência. Meu Deus, o que ela estava pensando? Cordelia engoliu um café e encarou o telefone. Quanto tempo a Shrike a deixaria pendurada? Outra nota era de Tami, a esquimó mestiça e guitarrista líder da Girls With Guns. A maior banda neopunk do mundo formada por mulheres estava em dificuldades em Billings. Cordelia poderia mandar dinheiro suficiente para que todos os membros da banda pudessem chegar a Nova York no sábado? Provavelmente. Cordelia fez uma nota: falar com Luz. Um bipe duplo no telefone e uma voz disse: — Senhorita Delveccio, direitos e autorizações. Cordelia apresentou-se, soando o mais calma, segura e sob controle que conseguia. Parecia bom para ela. — Gostaria de falar sobre o catálogo de Buddy Holley — Cordelia disse. — Soube que a Shrike detém os direitos. A Global Fun and Games queria muito que o senhor Holley tocasse uma seleção dos seus sucessos do passado no show global beneficente deste fim de semana em prol de vítimas de doenças. Houve um breve silêncio. — Que tipo de doenças? Cordelia não gostou do som da voz da mulher. Sul do Bronx, provavelmente. — Hum, AIDS e vírus carta selvagem. A transmissão ao vivo vai alcançar... A srta. Delveccio a interrompeu. — Ah, sim, esse show beneficente. Desculpe, srta. Chaisson, mas será impossível cooperar com a Global neste projeto. Sinto muito. — Ela não parecia sentir nada. — Mas com certeza há... — A Shrike detém o catálogo do sr. Holley sob licença exclusiva. Não podemos liberar as autorizações de que a senhorita precisa. — O tom de voz dizia “e ponto-final”. — Talvez se eu pudesse falar com o chefe do departamento... — Acredito que o sr. Lazarus não está aqui hoje. — Bem, talvez... — Obrigada por pensar em nós, srta. Chaisson — disse a srta. Delveccio. — Tenha um bom dia. — E desligou. Cordelia olhou para o telefone por um minuto ou dois. Caramba. Ela desejou que a srta. Delveccio encarasse tempos extremamente difíceis. Depois de um minuto, ela ligou o terminal do computador da mesa e acessou a versão eletrônica da Variety. Navegou por algumas páginas eletrônicas ao acaso e em seguida ligou o modem e entrou no índice da Variety. Embora houvesse poucas entradas para a Shrike Music, e não muitas com Buddy Holley, havia uma história que aparecia nas duas entradas. Era datada de quase três meses antes, enquanto ela estava na Austrália. Parecia que a Shrike Music havia assinado um acordo megamilionário com a segunda maior empresa de publicidade dos EUA. A empresa de publicidade tinha como cliente uma grande organização evangélica que buscava comercializar seus parques temáticos e outras subsidiárias comerciais através do que o artigo, citando Leo Barnett, chamou de
“música inocente, nostálgica, mas enérgica de Buddy Holley”. Ai, Cordelia pensou. Ai, não. Não era de se estranhar que a Shrike não tenha ficado ansiosa por ter as músicas de Holley associadas ao show beneficente. Isso seria um problema e tanto. Luz Alcala pôs a cabeça no vão da porta do escritório e disse: — Bom dia, Cordelia, foi bem de fim de semana? Cordelia ergueu os olhos. — Com certeza. Recebeu suas chaves? Obrigada novamente pelo carro. Luz assentiu. — Você está bem? Parece um pouco distraída. — É só segunda de manhã. Luz sorriu, solidária. — Aliás, você conseguiu encontrar nosso amigo licantropo? Cordelia sacudiu a cabeça. Pensamentos rápidos. — Ainda não. — Vou dar uma sugestão. Depois que tentar o empresário, ligue para os presidentes das gravadoras. Se não conseguiu ficar satisfeita, suba um nível. Quase sempre funciona. Ahá!, Cordelia pensou. — Obrigada. Após Luz ter conversado um pouco mais e partido, Cordelia discou novamente para a Shrike e pediu para falar com o gabinete do presidente. Depois de dois níveis de secretárias, finalmente chegou a Anthony Michael Cardwell. Ele era mais simpático que a srta. Delveccio, mas, no fim das contas, não foi mais útil. — Claro, a Shrike Music tem uma responsabilidade perante a comunidade, e participamos em muitos projetos nesse sentido, mas também somos responsáveis perante os acionistas e sócios-proprietários — ele disse. — Acredito que a senhorita possa avaliar a dificuldade de nossa posição. Balela, Cordelia pensou, furiosa. O que ela disse foi quase o mesmo. Definitivamente, direto demais. O presidente da Shrike Music interrompeu logo a conversa. Depois de desligar o telefone, Cordelia tamborilou os dedos no tampo da mesa. “Suba um nível”, Luz disse. Cordelia usou o teclado e acessou a lista de pesquisa de bancos de dados relativa à indústria do entretenimento da GF&G. Quando começou a procurar as raízes da árvore genealógica corporativa da Shrike, se perguntou como Jack estava se saindo.

Claro que Jack acreditou em Cordelia quando ela lhe disse no domingo à noite que seria fácil obter a permissão para Holley tocar suas músicas. Mais ainda, que a GF&G cuidaria da licença de trabalho de Jack na segunda de manhã, o que o liberaria para que ele ajudasse Holley a vir para Manhattan. Cordelia arranjou
um quarto no centro, no Hotel California, o principal hotel para músicos visitantes. — A gerência — Cordelia dissera — não se importa com o que aconteça num quarto, contanto que paguem pelos prejuízos. Cartões Amex Platinum são bem-vindos. Por volta do meio-dia, enquanto Cordelia fazia as vezes de detetive Nancy Drew no computador, Jack levou Buddy Holley ao seu quarto no oitavo andar do Hotel California. — Você tem uma conta aberta aqui — a recepcionista disse, então pediram almoços suntuosos. Jack observou quando Holley desembalou um toca-fitas compacto e uma caixa de fitas cassete. Era uma seleção eclética de música new age — muito dos álbuns de Windham Hill, junto com uma série de fitas de relaxamento com vento, tempestade, mar, chuva — e uma variedade de rock, blues e country das antigas. — Tenho umas coisas raras aqui — Holley disse, pegando um punhado do que pareciam fitas gravadas em casa. — Tiny Bradshaw, Lonnie Johnson, Bill Dogget, King Curtis. Há umas coisas mais conhecidas também: Roy Orbison, Buddy Knox, Doug Sahm. — Ele deu uma risadinha. — Uma verdadeira coleção do Texas, esses garotos perdidos. Também tem um pouco de George Jones, esse garoto também tem lugar no meu coração. Eu e minha primeira banda tocamos para ele em 1955, no show de Hank Cochran. — O que é isso? — Jack apontou para o que parecia ser a única gravação em vinil na caixa de fitas. — Isso me orgulha muito. — Holley levantou o disco de 45 rotações. — “Jole Blon.” A primeira gravação de Waylon Jennings. Fui eu quem produziu para ele, quando ainda tocava com os Crickets. Jack pegou o disco e examinou-o com hesitação, como se estivesse olhando uma relíquia sagrada. — Acho que ouvi isso na rádio WSN. — Sim — disse Holley. — Quase todo mundo que respeito daquela época aprendeu sobre música primeiro ouvindo o Grand Ole Opry. Jack pôs o 45 de “Jole Blon” para tocar. Uma lassidão imensa o tomou. Ele olhou para os restos do almoço. A náusea ia e voltava. Ele se sentou no sofá do hotel e tentou manter a voz firme. — Antes de vir para Nova York, eu escutava o Opry o tempo todo. Quando cheguei aqui, encontrei uma estação da Virgínia que passava o programa. — Veio do mesmo lugar que sua sobrinha? — Holley perguntou, interessado. Jack assentiu. — Tem totem de jacaré também? Jack não disse nada, tentando controlar a nova dor de estômago. — O jacaré é um poderoso espírito animal guardião — Holley comentou. — Eu não abusaria de alguém com esse protetor. Jack se dobrou e tentou não gemer. Holley aproximou-se dele.
— Tem algo errado? — Ele correu as mãos pelo peito e pela barriga de Jack. Os dedos adejaram levemente sobre o estômago dele. Holley assobiou. — Cara, acho que temos algum problema aqui. — Eu sei — Jack falou e grunhiu. Qualquer outro ano ele teria certeza de que poderia evitar uma gastroenterite. Mas Tachyon avisou sobre as infecções oportunistas. Ele via a imagem instantânea de vírus mirando-o de todos os buracos pestilentos do mundo. — Talvez seja apenas uma gripe. Holley sacudiu a cabeça. — Encontrei uma intrusão poderosa e resistente aqui. — É um vírus. — E o vírus te pegou porque sua proteção, seu manto pessoal, está acabado. — Eu não poderia falar melhor — Jack comentou. Holley tirou as mãos do abdômen de Jack . — Desculpe, nada pessoal. Não sei se Cordelia lhe disse, mas eu... bem, sei algumas dessas coisas. — Jack olhou para ele, perplexo. — O que você precisa — Holley disse com seriedade — é de um tratamento tradicional. Precisa ter essa intrusão sugada. Acho que é a única maneira. Jack não conseguiu evitar e começou a rir, em seguida a gargalhar. Não conseguia se lembrar da última vez que havia gargalhado daquela forma. Doía rir, mas ajudava também. Buddy Holley o observou, aparentemente atônito. Por fim, Jack se endireitou um pouco e disse: — Desculpe, não acho que, hum, sugar uma intrusão do meu corpo seja uma boa ideia no momento. — Não me leve a mal — Holley disse. — Estou falando sobre algo psíquico, retirar a causa do desconforto usando o poder da alma e da mente. — Não estou levando a mal. — Jack começou a rir novamente. Mas Dieu, ele se sentia bem melhor.

Por volta das duas da tarde, Cordelia havia acessado a Base de Referência da Biblioteca Pública de Nova York e o Banco de Dados dos Registros Públicos em Albany. Cobriu várias páginas de caderno com números e notas rabiscados. Sua tarefa parecia um daqueles quebra-cabeças de mil peças que ela nunca teve paciência para terminar. A Shrike Music tinha como única proprietária a Monopoly Holdings, sociedade de Nova York. Cordelia discou o número da central da Monopoly em Manhattan e tentou falar com o presidente. No fim das contas, conseguiu falar com o vice-presidente executivo para assuntos corporativos. O homem disse que a questão Buddy Holley não lhe cabia, mas que ela devia mandar uma carta detalhada ao presidente da Monopoly, um tal de Connel McCray. Mas Cordelia não poderia falar diretamente com McCray?, ela perguntou. O presidente não estava disponível. Era difícil dizer quando estaria de volta ao escritório. Cordelia descobriu nos Registros Públicos que a Monopoly Holdings era
uma divisão da Infundibulum Corporation, um consórcio controlado pelo CariBank , em Nassau. A ligação para a Infundibulum resultou em vinte minutos frustrantes à espera de uma conversa igualmente insatisfatória com o assistente executivo do diretor-presidente. A chamada de longa distância para Nassau a levou a uma voz com forte sotaque das Bahamas alegando um completo desconhecimento sobre esse tal Holley. Após desligar, Cordelia considerou a frustração que o telefone representava. — Acho que vou para casa agora — ela disse a si mesma. Tudo bem fazer uma pausa. Poderia voltar ao escritório mais tarde e trabalhar a noite toda.

Veronica e Cordelia dividiam um apartamento popular no centro, na Maiden Lane. Não havia uma paisagem propriamente dita — as janelas da sala de estar davam para um pátio estreito com os vizinhos do décimo primeiro andar apenas a nove metros de distância. Como era igual a assistir a uma grande tela de TV muito desinteressante, Cordelia rapidamente aprendeu a ignorar o restante do prédio. Era agradável simplesmente ter seu pequeno quarto. Veronica podia usar o restante do apartamento como quisesse. Cordelia fez o máximo uso de seu quarto, contratando um carpinteiro do Soho para construir uma estrutura barata com madeira de 5 por 10 para apoiar sua cama. Loft instantâneo para dormir. Ela só precisava se lembrar de não rolar durante a noite. O espaço de 1,80 m embaixo do colchão servia como closet, estante de livros e deixava espaço para guardar os discos, o que ainda liberava o espaço da parede para pôsteres. Uma parede era dominada por um pôster colorido de Ayers Rock na madrugada. A parede oposta tinha um pôster com a famosa expressão DEIXA ESTAR, JACARÉ..., mas com a resposta à máxima desgastada feita com caneta marca-texto preta: AQUI VOCÊ ESTÁ EM CASA. Cordelia estava encaixando a fita de Suzanne Vega no toca-fitas quando sua colega entrou no quarto. Veronica usava um vestido branco colado, com uma peruca platinada e lentes de contato violeta. — Baile de máscaras? — Cordelia perguntou. — Só um encontro. — Veronica revirou os olhos. — É um cara de Malta com uma tara por Marilyn Monroe e Liz Taylor. — Ela mudou de assunto. — Tem alguns ingressos bons ainda para sábado? — A 25 dólares um popular, não posso te dar cortesia — Cordelia comentou. — Sem problemas. São para a gerência. Miranda e Ichiko podem pagar. Só gostariam de um pouco de consideração na escolha da mesa. Perto do palco, ok? — Vou ver o que posso fazer. — Cordelia fez uma nota e colocou o caderno de “Coisas a Fazer” na bolsa. — E como vai o trabalho? — Veronica perguntou, inocente. Cordelia contou o acontecido. — Parece que você precisa de um detetive de verdade. — Se eu conhecesse um, eu chamaria. Estou desesperada.
— Bem — Veronica disse. — Acho que talvez eu possa te dar uma mãozinha. — O que você está planejando, pode me dizer? — Seria tão bom, pensou Cordelia, repassar isso para outra pessoa. — Ainda não — Veronica respondeu. — Vamos trabalhar nisso. E veja se consegue bons lugares. — Me ajude a botar Buddy Holley na frente das câmeras — Cordelia disse —, e eu ponho Miranda e Ichiko sentadas no palco atrás dos monitores. Elas podem segurar os microfones. Qualquer coisa que quiserem. — Fechado. Agora — continuou Veronica —, antes de eu ir pra área nobre, de quem é a vez de comprar a comida do gato?

Os homens estavam sentados ouvindo música e bebendo. Buddy Holley tomava refrigerante. Jack cerveja escura. O serviço de quarto era uma gentileza. Eles conversavam. Às vezes, Holley se levantava para mudar as fitas. Passaram por Jimmie Rodgers e Carl Perkins, Hank Williams e Jerry Lee Lewis, Elvis Presley e Conway Twitty. Jack ficou surpreso que o cantor também tivesse fitas de artistas mais novos: Lyle Lovett, Dwight Yoakum e Steve Earle. — Como o macaco falava — Holley simplesmente disse —, é preciso continuar evoluindo. Conversaram sobre os anos 1950 — sobre o interior pantanoso de Louisiana e a vastidão árida do oeste do Texas. — Olha só — Holley comentou —, não há muito o que dizer de Lubbock quando o único lugar para ir no sábado à noite é o Amarillo. Voltei lá depois do boom do petróleo e também depois da quebra, e nada mudou muito em nenhum dos períodos. — Não tem um Dia do Buddy Holley? — Jack perguntou. — Acho que vou ter que morrer para isso acontecer. Tinham muito em comum, Jack observou. Exceto que nunca haveria um Dia do Jack Robicheaux em Atelier. Nem mesmo depois que morresse. Ele puxou uma caixa de fitas cassete e ergueu uma sem rótulo, a não ser a palavra “novo”. — O que é isso? — Hum, nada — disse Holley. — Nada que você queira ouvir. Havia algo na maneira que ele havia respondido, pensou Jack . Quando Buddy Holley foi ao banheiro, Jack colocou o cassete misterioso no deck e apertou “play”. A música era simples e sem enfeites. Não havia banda, nem double-tracking ou camadas de áudio. O canto era reflexivo na primeira música, exuberante na segunda. As letras eram maduras. O soluço característico no vocal estava lá. Era Buddy Holley. Jack nunca tinha ouvido nenhuma daquelas canções antes. Ele ouviu a porta do banheiro se abrir atrás dele. Buddy Holley disse:
— Depois que o avião caiu com a minha família e a Shrike comprou todas as minhas músicas, as pessoas acharam que eu não ia mais escrever. E por alguns anos eu também achei. A terceira música começou. — Tudo isso é novo — Jack disse, admirado. — Não é? A voz de Buddy Holley era suave e poderosa. — Tão novo quanto a ressurreição.
Terça-feira
A Funhouse não era o Carnegie Hall, e como praticamente em qualquer outro clube de Manhattan, a luz do dia não a favorecia. Naquela manhã, os espelhos estavam manchados e empoeirados. Precisavam ser polidos à perfeição até sábado. Quando Jack olhou o palco, o que ele mais viu foram cadeiras empilhadas sobre as mesas. As poucas janelas e claraboias deixavam entrar raios da luz do sol primaveril que continham uma miríade de partículas dançantes de poeira. O lugar tinha um cheiro rançoso. O outro odor predominante era o de um lubrificante de equipamentos. Jack estava ao lado de Buddy Holley. Holley estava ao lado de C.C. Ryder. Do outro lado de C.C. estava Nômada. Era um protocolo inquebrantável. Nômada acabou sendo a companhia constante e protetora de C.C. Jack percebeu que assumira conscientemente um papel semelhante com Buddy Holley. Ele gostava mesmo do cantor e não era uma simples questão de nostalgia dos anos 1950 e 1960. Sentia que estava se tornando amigo de verdade do texano, mas que pena, sussurrou a voz sacana em sua cabeça, vocês não serão camaradas por muito tempo. Jack visitara o Dr. Tachyon pela manhã. Tachyon propôs hospitalizálo. “Sem chance”, ele disse. Tachyon apelou para a razão. “Você consegue realmente prever o que minha versão do vírus vai fazer?”, ele questionou. Tachyon admitiu que não sabia ao certo. Mas havia precauções a tomar... Jack deu de ombros com tristeza e partiu. Xavier Desmond, com sua tromba elefantina, que parecia murcha sobre o peito, observava os preparativos do palco. Ele caminhava devagar, como um homem que conhecia a proximidade real da morte, ainda assim parecia orgulhoso além da conta. Por uma noite, os olhos de grande parte do mundo estariam sobre sua amada Funhouse. O espaço limitado do clube estava sendo ainda mais reduzido pelos trilhos das câmeras postos na frente e na lateral do palco. O pessoal da técnica havia montado um microfone boom da Louma bem fino no teto.
— Não deixe encostar no candelabro! — Des falou quando o operador remoto encaixou o suporte de câmera, parecido com um louva-deus, nos espaços. Mesmo com os feixes de luz reluzindo nas bolas de espelhos, o clube parecia sombrio. Buddy Holley coçou a cabeça. — Rapaz, eu já vi palcos piores. C.C. riu e disse: — E eu toquei neles. — Acho que não vai ter tela de arame ao redor do palco, não é? C.C. deu de ombros e imitou um sotaque do fundão do Texas: — Joe Ely costumava me contar sobre lugares difíceis assim, onde se precisava vomitar três vezes e mostrar a faca antes de deixarem você entrar. E isso quando você estava lá para cantar. — Des dirige uma espelunca mais classuda — Jack comentou. — Acho que pessoas dando 25 dólares para entrar não vão erguer garrafas de Corona contra a banda. — Seria mais autêntico se erguessem — Holley olhou para C.C. — Tenho que dizer, estou muito ansioso para ouvi-la cantar. — Eu também — C.C. comentou —, embora eu ainda esteja nervosa como um gato. O senhor decidiu ir em frente mesmo? Holley virou-se para Jack. — Soube de algo de sua sobrinha? Jack balançou a cabeça. — Falei com ela pela manhã. Acho que as coisas estão indo devagar com a Shrike, mas ela disse para não se preocupar. Só baboseiras burocráticas. C.C. cutucou Holley com o cotovelo. — Olha, cara, eu vou se você for. — Um desafio? — Holley sorriu devagar. — Acho que vai ser mais divertido que apostar um racha. Que diabos. Tudo bem. Vou antes, como o Fantasma dos Sucessos Passados, e, se precisar, faço um cover de... ah, Billy Idol. — Não! — Nômada se intrometeu. — Não vai não.

As coisas não estavam indo terrivelmente bem para Cordelia. Chegou ao escritório por volta das sete. Estava tão distraída que esqueceu a sequência de fuso horário para o Ocidente. O empresário das turnês de Little Steven não ficou muito feliz ao ser acordado em seu quarto do hotel pouco depois das quatro da manhã. Por outro lado, notícias melhores chegaram por volta das dez. Raios-X acusaram que os dedos de The Edge estavam levemente torcidos, e não fraturados. Embora a apresentação do U2 naquela noite em Seattle tivesse sido
cancelada, o guitarrista achava que estaria bem até sábado. Então, havia a questão da Shrike Music. Cordelia tinha um diagrama terrível com linhas e flechas indicando o emaranhado que era dono da empresa de música. Tinha listas de diretores-presidentes, presidentes, vice-presidentes e chefes dos departamentos de promoção. E advogados — Deus, hordas de advogados. Mas ninguém falava com ela. Como assim?, ela se perguntou. É o meu hálito? Ela riu. Fadiga, ela pensou. Exaustão precoce. Cedo demais. Haveria tempo para despencar depois da noite de sábado. Ela se serviu de outra xícara de café colombiano forte e começou a pensar seriamente sobre a Shrike e seus chefes, e por que todos fugiam dela, como se ela fosse um investigador do Congresso atrás de acusações de propina nas rádios. O telefone tocou. Ótimo. Talvez fosse um das dúzias dos executivos relacionados à Shrike ou seus proprietários bizantinos retornando suas chamadas. — Oi — disse sua colega de quarto. — Conseguiu os ingressos para mim? — Conseguiu Spenser, ou talvez Sam Spade para mim? — Melhor ainda — Veronica falou. — Estou com uma pessoa aqui com quem você precisa falar. — Veronica... — ela começou a falar. Por que todo mundo estava fazendo o jogo do mistério? — É o Croyd — disse uma voz masculina estranha. — Você já me viu. Tivemos um encontrinho, você, eu e Veronica. — Eu me lembro — Cordelia falou —, mas... — Estou fazendo investigações — ele disse, sem rodeios. — Acho que sei disso, mas não acho que... — Só escute — Croyd interrompeu. — Foi ideia da Veronica, não minha. Talvez eu possa ajudar. Talvez não. Você quer saber alguma coisa sobre a Shrike Music. — Isso. Buddy Holley e eu precisamos descobrir quem é a dona de suas músicas para que eu possa conseguir uma permissão para ele cantá-las, assim eu vou convencê-lo a aparecer no sábado... — Mas a Shrike não está no catálogo telefônico? — Croyd quis saber. — Estão me afastando como se fossem da Máfia ou algo assim. Ela ouviu uma risadinha seca. — Talvez sejam. — Se tiver algo que possa fazer — Cordelia disse —, eu serei muito... Croyd interrompeu de novo. — Vou ver o que consigo descobrir. Eu te ligo. — A ligação caiu em seguida. Cordelia desligou o telefone e se permitiu sorrir. Cruzou os dedos. Das duas mãos. Em seguida, pegou a anotação seguinte que implorava sua atenção na mesa. Essa era mais simples. Talvez ela pudesse descobrir em menos de uma hora exatamente por que a Girls With Guns parecia estar presa em Cleveland.
Quarta-feira
A GF&G havia decidido que a banda da Funhouse serviria C.C. Ryder e Buddy Holley. Na verdade, foi C.C. quem os aprovara; a GF&G apenas assinou os cheques. — Todos eles são músicos competentes — C.C. disse para Holley. — Por mim, está bem — ele observou e ouviu enquanto dois guitarristas, o baterista, a tecladista e o saxofonista afinavam. Jack observava também. Ensaios eram longos e tediosos. Mas, como observador, aquilo era o show business em movimento. Era divertido. Glamoroso. Era o céu. C.C. levou Holley para o palco. Nômada sentou-se numa mesa à frente, embora a ação parecesse meio forçada. Jack sabia que ela queria mesmo era seguir C.C. lá em cima, em cena. — Se importa se eu sentar aqui? — ele lhe perguntou, pousando a mão no encosto da cadeira ao lado. Os olhos escuros de Nômada fixaram-se nele com intensidade por apenas uma fração de segundo. Em seguida, ela deu de ombros, e Jack sentou-se. — Tudo bem — C.C. estava dizendo para os músicos no palco. — Vou começar com essa aqui. Ou talvez terminar. Ah, eu ainda não sei. Tudo que sei de verdade é que é nova e faz parte dos meus vinte minutos. — Ela plugou seu violão de doze cordas cor de ébano e dedilhou uma progressão de acordes. — Temos três dias inteiros para ensaiar. Então se lembrem da vantagem que temos sobre outros caras, como o Bruce ou U2. — Todos deram um sorrisinho. — Tudo bem, vamos lá. Essa se chama “As melhores cartas do jogo”. Um, dois, três e... No momento em que C.C. começou a tocar, ela parecia incapacitada. “Nervosa”, Jack pensou, era uma palavra leve demais. Não havia multidão. Não havia público além dos músicos, dos técnicos trabalhando no som e nas luzes e alguns poucos observadores, como Jack e Nômada. A levada de C.C. estava extremamente sem graça. Ela parou, abaixou a cabeça enquanto todos no salão seguravam a respiração. Em seguida, C.C. ergueu os olhos, e para Jack parecia que aquele movimento havia exigido um esforço enorme. Os dedos acariciaram as cordas do violão. — Desculpem — ela disse. E só. E, depois, tocou.
Amor , as cartas estão na mesa Amor , agora é só certeza E quando o jogo se abrir Suas cartas serão as melhores
O baterista acompanhou o toque. O baixista dedilhou. O guitarrista preencheu os espaços com suavidade. Jack viu os dedos de Buddy Holley dedilharem levemente as cordas da Telecaster, mesmo sem estar plugada.
Meu amor joga desde criança Jogando viu todo esse tempo partir Meu amor nunca entrou na dança Pois tudo que fez foi parar , desistir
A tecladista mandou um som tremulado, choroso e sombrio do Yamaha. Jack piscou. Holley sorriu. Soava como o tilintar de Farfisas dos bons e velhos tempos, antes dos sintetizadores.
Meu amor , não diga “passo” Quando você tiver As melhores cartas do jogo.
Quando acabou, houve um longo momento de silêncio absoluto na Funhouse. Então, o pessoal da técnica começou a aplaudir, depois os músicos da banda de C.C. Eles comemoraram. Nômada ficou em pé. Jack viu Xavier Desmond no fundo do salão; parecia que tinha lágrimas escorrendo sobre o rosto. Buddy Holley coçou a cabeça e sorriu. Um pouco como Will Rogers, Jack pensou. — Sabe de uma coisa, minha cara? Acho que todos nós aqui tivemos o privilégio, nesta manhã, de ver o ponto alto do show. C.C. parecia pálida, mas sorriu e disse: — Que nada, está crua ainda. Vai ficar muito melhor. Holley sacudiu a cabeça. C.C. Ryder foi até ele e inclinou o rosto diante do homem. — Sua vez de subir no barril, rapaz. O homem sacudiu a cabeça, mas os dedos acariciavam a guitarra. C.C. deu um tapinha na lateral da cabeça. — Eu mostrei a minha. Holley ergueu os ombros de leve. — Que inferno. Acho que vou ter que ir. — Sem Billy Idol — Nômada disse. Holley riu.
— Sem Billy Idol. — Ele dedilhou o violão, pensativo, por um momento. Em seguida, disse: — Essa é nova. — Ele olhou para Jack. — Essa nem estava na fita que você ouviu. — O dedilhar se aprofundou, tomando força. — Eu chamo de “Fera rude”. Então, Buddy Holley tocou.

— Foi incrível, Cordie. É o velho Buddy Holley com toda a maturidade incorporada. — A voz de Jack era exuberante e nada crítica. — Tudo que ele tocou era novo, e foi fantástico. — Novo? — Cordelia deu batidinhas com o indicador direito no fone. — Tão bom quanto “That’ll Be the Day” e “Oh, Boy”? — “Maxwell’ s Silver Hammer” é melhor que “I Want to Hold Your Hand”? — A empolgação fazia a voz de Jack estalar. — Não dá para comparar. As músicas novas são tão poderosas como as canções antigas, são só mais... — Jack parecia buscar a palavra precisa — ... sofisticadas. Cordelia encarou as fotografias de sua sala, mas não as enxergava. Clique. Acho que uma lâmpada se acendeu sobre a minha cabeça, ela pensou. Tenho que desacelerar . Estou começando a perder muita coisa. — Acredito — ela disse — que essa Shrike não tem nenhum direito sobre as novas músicas. O que posso fazer é colocá-lo num espaço no meio do espetáculo. Talvez cortar uns dez minutos dele. — Vinte — Jack disse com firmeza. — Precisa ser igual a todo mundo. — Talvez — Cordelia comentou. — De qualquer forma, ele vai ficar no meio para que o público se aqueça antes de precisar decidir se vai xingar quando Buddy Holley não cantar “Cindy Lou”. A ligação ficou silenciosa. Então, Jack falou: — Não acho que ele vá se importar. — Tudo bem, ótimo. Isso vai facilitar muito as coisas. Posso mandar os cabeças-ocas da Shrike pro inferno. — Cordelia sentiu o peso esmagador começar a sair da cabeça. — Tem certeza de que ele vai fazer o show com o material novo? As palavras de Jack eram um dar de ombros verbal. — O gelo parece ter sido quebrado. Ele e C.C. estão se apoiando. Acho que tudo vai dar certo. — Fantástico. Obrigada, tio Jack. Me mantenha informada. Cordelia se animou depois de desligar o telefone. Então, Buddy Holley havia topado. E agora ela poderia tirar Croyd dessa busca inútil. Mas, quando ela telefonou para o apartamento, ninguém atendeu. Tudo que conseguiu foi falar com a secretária eletrônica. Talvez, ela pensou, feliz, tudo fique moleza a partir daqui.
Quinta-feira
Cordelia percebeu que estava cantarolando “Real Wild Child”. O rock agitado combinava perfeitamente com a animação daquela tarde. Ela se perguntou por um momento onde tinha ouvido a música quando identificou a melodia. Sabia que não estava em nenhum dos álbuns de Buddy Holley. A música devia estar rolando por aí. Ela dedilhou os toques de guitarra mentalmente enquanto fazia suas ligações pós-almoço. Cordelia telefonou para a Funhouse bem na hora em que sua sopa vietnamita chegou. Jack parecia contente. — Os ensaios estão ótimos — ele disse. — C.C. e Buddy estão se dando muito bem. E Nômada até balançou a cabeça para mim quando eu disse bom dia. — Como está a parte musical? — Os dois estão tocando em grande parte música nova... bem, a de Buddy é toda nova. — Ele vai conseguir encher os vinte minutos? — Cordelia quis saber. — Tudo está como antes... eu disse que não teria problema nenhum com ele. Está tudo bem. Você deveria dar uma hora para ele. — Não sei se U2 ou o Bruce Springsteen gostariam disso — Cordelia falou, seca. — Aposto que eles amariam. — Não vamos arriscar. — Cordelia sentiu o aroma de caranguejo e aspargos subindo da sopa no baldinho de isopor. — Tenho que desligar, tio Jack. Minha comida chegou. — Tudo bem. — A voz de Jack hesitou. — Cordie? — Hum? — Ela já havia enfiado a primeira colherada na boca. — Obrigado por me pedir para fazer isso. É fantástico. Fico muito grato. Está... mantendo minha mente fora de tudo o mais no mundo. Cordelia engoliu a sopa quente. — É só manter C.C. e Buddy Holley felizes. E Nômada também, se for possível. — Vou tentar. Por volta das duas da tarde, Cordelia ligou para a empresa contratada que estava tentando exorcizar os demônios do ShowSat III, quando, de soslaio, ela avistou a silhueta de uma figura estranha na porta da sala. Desligando o telefone, viu um homem distinto de meia-idade vestido com um terno creme de seda que ela sabia valer dois ou três meses de seu salário. O corte tinha uma precisão impecável. O nó do foulard estava precisamente posicionado. Com cabeça inclinada, ele a observava com um olhar penetrante. — Está bem-vestido demais para ser Tom Wolfe — ela disse. — Na verdade, não sou. Tom Wolfe, digo. — Ele não sorria. — Se importa se eu entrar para conversar com você? — Marcamos horário? — Cordelia perguntou, perplexa. Ela olhou para o
calendário. — Temo que não... — Eu estava passando por aqui — o homem disse. — Temos um horário. Só acho que você não foi informada. — Ele estendeu a mão. — Desculpe por não me apresentar formalmente. Sou St. John Latham, ao seu dispor. Represento a Latham, Strauss. Espero que já tenha ouvido falar da nossa empresa. Cordelia avistou um brilho de unhas manicuradas com esmero quando apertou a mão do homem. Seu aperto de mão era seco e superficial. — Os advogados — ela disse. — Hum, sim. Por favor, sente-se. Ele se sentou. Como pano de fundo do terno de Latham, a cadeira Breuer parecia um pouco pobre. — Vou direto ao ponto, srta. Chaisson... ou posso chamá-la de Cordelia? — Como quiser. — Cordelia tentou organizar os pensamentos, pois ter o sócio sênior de uma das empresas mais caras e maldosas de Manhattan sentado no seu escritório não pode ser um bom presságio. — Bem — Latham disse, as mãos juntas e espalmadas, os dedos indicadores apenas resvalando no queixo fino —, fui informado que a senhorita tem causado comoção considerável em várias empresas clientes da Latham. Como a senhorita deve ter descoberto, somos contratados do CariBank Group, e por isso temos interesse em suas holdings subsidiárias. — Não sei se entendo... — A senhorita obviamente foi bem inventiva com seu computador e modem, Cordelia. E não foi muito discreta em suas ligações para vários dos diretores. De repente, as coisas começaram a ficar claras. — Ah — Cordelia disse —, é sobre a Shrike Music e Buddy Holley, certo? O tom de Latham era calmo e funcionava com a mesma temperatura de um supercondutor. — A senhorita parece ter um grande interesse na família corporativa do CariBank. Cordelia sorriu e ergueu as mãos. — Ei, sem problema, sr. Latham. Não é mais incômodo para mim. Holley tem uma coleção inteira de novas músicas que a Shrike não pode tocar. — Srta. Chaisson... Cordelia... a Shrike Music Corporation é a menos importante de suas pesquisas. Nós, na Latham, Strauss, estamos preocupados com sua aparente necessidade de informações sobre o restante da família CariBank. Essas informações talvez sejam... um pouco problemáticas... — Não mesmo — Cordelia disse com firmeza. — É um problema que não existe. Honestamente, sr. Latham. Sem problemas. — Ela sorriu para ele. — Agora, se o senhor não se importar, tenho um monte de trabalho para... Latham a encarou. — A senhora vai desistir, srta. Chaisson. Vai cuidar dos seus negócios ou, eu garanto, vai se arrepender muito, muito mesmo. — Mas... — Muito mesmo. — Latham olhou diretamente para ela até que Cordelia finalmente piscasse. — Espero que tenha me entendido. — Ele se levantou, virou as costas e saiu com um farfalhar de seu terno caro.
Aquilo a atingiu. Que me enforquem com corde à boyau, ela pensou. Acabei de ser ameaçada por um dos advogados mais poderosos e predadores de Manhattan. Então, que me processe. Cordelia tinha muito a fazer e aquilo a ajudou manter sua cabeça longe da visita de Latham. Ela ligou para o pessoal técnico responsável pelas transmissões via satélite e ficou feliz em saber que o ShowSat III estava operando novamente. No fim das contas, um bom pedaço do outro lado do mundo teria a oportunidade de assistir ao show beneficente da Funhouse. — Acho que os gremlins estão em férias — disse o engenheiro consultor. Então, a telefonista da GF&G transferiu uma chamada a cobrar de Tami, em Pittsburg. — Que diabos você está fazendo aí? — Cordelia questionou. — Mandei dinheiro o bastante para que todas a Girls With Guns inteira pudesse voar para Newark hoje. — Você não vai acreditar — Tami falou. — Provavelmente não. — Compramos um monte de penas. — Não compraram cocaína? — Claro que não! — Tami parecia escandalizada. — Encontramos uma garota que tinha uma seleção incrível. Precisamos delas para nosso figurino de sábado. — Penas não custam seiscentos paus. — Essas custam. São raras. — Essas penas vão ajudar vocês a voar? — Cordelia perguntou, perigosamente. — Bem... não — Tami respondeu. — Vou transferir mais dinheiro. Só me passa um endereço. — Cordelia suspirou. — Então, vocês gostam de viajar de ônibus?
Sexta-feira
Jack e Buddy Holley foram para o camarim de Buddy depois que assistiram ao Boss fazer seu ensaio. O ensaio final de Holley foi agendado para as dez da noite. Little Steven, U2 e os Coward Brothers fizeram seus testes no início da tarde. The Edge tocou, mas fez muitas caretas de dor. Em seguida veio Bruce e os outros caras lá do outro lado do rio. — Nem foi ruim — Holley disse. — O Boss? — Jack perguntou. — Muito bom. Então, como foi quando ele te
tratou como se você fosse um dos rostos esculpidos no Monte Rushmore em vida? — Bacana. — Holley não disse mais nada. — Fiquei bem impressionado quando ele perguntou se você tocaria “Cindy Lou”. Holley deu uma risadinha. — Uma coisa engraçada sobre essa música. Sabe que quase ela não foi “Cindy Lou”? Jack olhou para ele com cara de interrogação. Entraram no corredor atrás do palco. A luz não era lá das mais adequadas. — Cuidado com os fios no chão — Holley avisou. — A boa e velha “Cindy Lou”. Bem, esse era o título original desde o início, mas, quando os Crickets e eu fomos gravá-la, nosso baterista, Jerry Allison, pediu que eu mudasse. — A música? — Jack perguntou. — O título. Acho que Jerry ia se casar com uma garota chamada Peggy Sue e pensou que seria o máximo ter uma música com o nome dela. — Mas não mudou? Holley riu. — Ela deu um pé na bunda dele, rompeu o noivado antes que a gente batesse o martelo sobre a música. Então ficou “Cindy Lou”. — Eu prefiro — Jack falou. Percorreram a última curva e chegaram à saleta onde Holley mantinha seu violão e outras coisas que havia trazido do hotel. Ele entrou primeiro. Quando apertou o interruptor, nada aconteceu. — A maldita lâmpada deve ter queimado. — Acho que não — disse uma voz lá de dentro. Jack e Holley tiveram um sobressalto. — Quem tá aí? — Jack perguntou. Holley começou a se afastar da porta. — Espere — a voz disse. — Está tudo bem se vocês forem Buddy Holley e Jack Robicheaux. — Somos nós — Holley confirmou. — Meu nome é Croyd. Holley disse: — Não conheço nenhum Croyd. — Eu conheço — Jack falou. — Digo, sei quem é você. A voz soltou uma risadinha. — Estou com um pouco de pressa e tentando ser sutil, então, por que vocês dois não entram para fecharmos a porta? Os dois homens obedeceram. Croyd acendeu uma lanterna e deixou o facho de luz passar rapidamente pelo rosto dos homens. — Tudo bem, vocês são quem dizem que são. — Ele deixou a lanterna na mesa de maquiagem, mas não a desligou. — Tenho algumas informações para sua sobrinha — ele disse para Jack —, mas lá na empresa não sabem onde ela está, e eu não tenho tempo para esperar. — Tudo bem — Jack disse. — Pode falar, eu repasso para ela. Ela está pulando como uma rã num caldeirão quente, fazendo dez mil coisas para tudo correr bem amanhã à noite.
— Ela me pediu para dar uma olhada na Shrike Music — Croyd falou. — Ah, sim? — Holley soou interessado. — Pensei que pudesse ser uma das frentes dos Gambione. Sabe, lavagem de dinheiro da Máfia. — E? — Jack perguntou. — As mãos sujas de Rosemary Muldoon também estão aí? — Não — Croyd respondeu. — Não acho. Seja lá o que for a Shrike, e acho que é suja pra dedéu, realmente não acho que tenha relação com os Gambione ou com outras famílias. Diga isso a Cordelia Chaisson. — Mais alguma coisa? — Jack quis saber. — Sim. Pelos rastros que pude seguir, consegui algumas pistas. O cérebro por trás da Shrike é o Brecha. Sabe, o advogado, St. John Latham. Se estiver certo, é melhor sua sobrinha ter muito cuidado. Brecha é um filho da puta perigoso. — Tudo bem — Jack falou. — Eu digo para ela. — Se descobrir mais coisas... — Holley disse. — Não vou. Tenho meus próprios assuntos para cuidar. — A risada de Croyd foi muito seca. — Ah. Bem, obrigado de qualquer forma. Ao menos sei que minhas músicas não estão enroladas em fios de espaguete — Holley comentou. — Olha só — Croyd falou com certa animação na voz. — “Shake, Rattle and Roll” é um dos melhores rocks já gravados. Não deixe que ninguém diga o contrário. Só queria dizer isso antes de partir. — Bem — Holley falou —, muito obrigado. — Ele caminhou na escuridão, na direção da mesa de maquiagem. — Quero cumprimentar o homem que me disse essas coisas. — O que posso dizer? Já faz tempo que eu gosto do seu trabalho. Fico feliz que tenha voltado. Jack teve a impressão de um rosto pálido e albino na escuridão. Olhos róseos piscaram quando a luz da lanterna se apagou. — Boa sorte no show. — Em seguida, a forma indistinta de Croyd saiu pela porta e foi embora. — Tudo bem — Jack falou —, vamos ver se conseguimos uma lâmpada nova. — Ele se encolheu. A dor estava de volta, a dor e algo mais. Na escuridão, ele tocou o próprio rosto. A pele parecia escamosa. O vírus estava saindo de controle. Estava ficando difícil permanecer... Ele não completou a frase. Humano era a palavra que estava procurando.
Sábado
As cristas do oceano musical do U2 os cobriu. Os dedos de The Edge haviam se curado bem para aquela noite. Bono começou com “With or Without You” com sua voz exuberante de quem não canta a mesma música do mesmo jeito duas vezes da mesma forma. C.C. de repente olhou para Buddy Holley com preocupação. Ela esticou o braço para equilibrá-lo. Jack foi para o outro lado. — O que foi, querido? — Ela tocou a testa do homem com as costas da mão. — Você está queimando. Nômada parecia preocupada. — Quer que chame um médico? Os quatro recuaram quando o câmera passou às pressas com a SteadiCam, seguindo para o palco. Holley endireitou o corpo. — Tudo bem, estou bem. Um pouco de suor de nervoso. — Tem certeza? — C.C. perguntou, cética. — Acho que sim — Holley respondeu —, talvez eu esteja me sentindo um pouco melancólico. — Os três ao seu lado mostraram a mesma incompreensão. — Esperar para subir no palco está me deixando estranho. Estou olhando para tudo isso e pensando sobre Ritchie e o Bopper e como eles caíram com Bobby Fuller naquele Beechcraft em 68, quando Bobby estava testando sua turnê de retorno. Meu Deus, como tenho saudades deles. — Você está vivo — Nômada disse. — Eles não. Holley a encarou. Em seguida, abriu lentamente um sorriso. — Isso é ser direta. — Ele olhou através das cortinas para a casa cheia. — Sim, eu estou vivo. — Você vai se sentar um pouco — Jack falou. — Descansar um instante. — Lembre-me de uma coisa — Holley pediu. — Quando eu entro? — Os Coward Brothers são os próximos. Em seguida, Little Steven e eu — C.C. comentou. — Vou aquecê-los para você. Seu show é antes das Girls With Guns e do Bruce. — Confortável estar no meio, hein? Na companhia de pesos-pesados. — Holley sacudiu a cabeça. — Sabe quanto o mundo mudaria se alguém explodisse este clube hoje à noite? Nem um pouco. — Ele cambaleou. — Bem, talvez só um pouquinho. — Vá se sentar — C.C. disse com firmeza. Jack olhou para o palco. Era provavelmente o único show de rock a que ele assistira que não estava cheio de fumo. Mas, no espaço confinado da Funhouse, a administração, a Secretaria de Saúde e alguns dos artistas haviam implorado por abstinência. A equipe técnica estava usando uma máquina de fumaça para conseguir a luz correta. Com as luzes no rosto, Jack não conseguia ver nada. Mas sabia quem estava lá fora.

Cordelia estava sentada perto do pequeno espaço separado por cordas onde a diretora de palco estava isolada com seu monitor de vídeo. Tudo parecia ótimo. Os sinais de satélite teciam uma rede satisfatória, embora só Deus soubesse se alguém estava realmente assistindo. Todos os lugares estavam ocupados. Pessoas chegaram a pagar dois mil por lugares em pé. Cordelia verificou ao redor de sua cadeira antes de o U2 ser anunciado. A mesa imediatamente atrás dela estava ocupada por um senador novinho de Nova Jersey, a mulher do senador — chefe de desenvolvimento cultural de Hoboken —, um ator adolescente, lindo, de fazer o coração palpitar, e o agente do ator, representando a empresa ICM. Na mesa seguinte à esquerda estavam o senador Hartmann e seu grupo. Tachyon estava lá atrás também. Xavier Desmond, sorrindo de orelha a orelha, estava bem na frente. Bem à direita, Miranda e Ichiko viram-na olhando, acenaram e sorriram. Cordelia devolveu o sorriso. Luz Alcala e Polly Retty, diretoras da GF&G, também estavam na mesa com Cordelia. Às vezes, faziam elogios adequados a ela. Obviamente estavam gostando de como o show beneficente estava avançando. Que demais, pensou Cordelia. Assim, a Variety vai descrever esse evento. São bons pra caramba. O U2 terminou seu set, e o quarteto irlandês saiu do palco. Os aplausos foram ensurdecedores, e eles voltaram para um bis rápido. Aquilo já estava calculado no cronograma. Já era de se esperar. Depois do bis, a tela desceu do teto da Funhouse, quase acertando a grua Louma, e a propaganda eficiente e doada para o Projeto New York AIDS foi projetada. Era a parte comercial. Ninguém se importou. Cordelia se perguntou se deveria ir aos bastidores checar se tudo estava em ordem. Não, ela decidiu. Precisava estar no lugar onde estava — esperando crises horrendas. Não precisava procurá-las. Os Coward Brothers saíram para uma avalanche de aplausos. T-Bone e Elvis botaram fogo no público com “People’ s Limousine” e outros dezesseis minutos que passaram voando. Entre os sets, quando a transmissão passava para uma mensagem gravada, o diretor de iluminação ligava os holofotes sobre as bolas espelhadas e o candelabro da Funhouse. O interior do clube explodia numa fantasmagoria de luzes fragmentadas. Little Steven e sua banda entraram. Os assistentes de palco eram rápidos e precisos. Os músicos ligavam os instrumentos no sistema da casa e começavam a tocar. Little Steven puxava um cachecol diferente para cada música. A multidão adorou.

Era a vez de C.C. Ryder. Ela segurava o braço do violão de doze cordas preto e lustroso com as duas mãos. — Não estrangule o violão — disse Holley. Suavemente, ele envolveu as
mãos dela com as suas. — Merda. — Jack lhe deu um abraço. Nômada não pareceu se importar. Ela abraçou C.C. por alguns segundos e disse: — Você vai arrasar. — Se não — C.C. falou —, espero que desta vez eu vire um trem expresso. Jack sabia que ela se referia a sua transformação do vírus carta selvagem de muitos anos atrás, quando o trauma a catalisou e a transformou numa cópia mais que razoável de um vagão de metrô. C.C. chegou ao palco a toda e não parou. Era como se tivesse lançado uma rede de poder sobre o público. Houve um momento, no início, em que ela titubeou, mas em seguida pareceu reunir forças. Era como se a energia fluísse para dentro das pessoas em suas mesas para depois ser amplificada e devolvida para a cantora. A mágica, Jack pensou, da empatia genuína. Ela começou com um dos antigos sucessos e rapidamente seguiu para suas novas baladas. Seus vinte minutos passaram num instante para Jack . C.C. terminou com a canção que havia estreado em público no primeiro ensaio.
Meu amor , nunca precisa passar a vez Pois o que você tem São as melhores cartas
... As melhores cartas, veio o refrão. Nunca se esqueça. C.C. curvou-se para agradecer. Os aplausos vieram em megatoneladas. Quando ela saiu do palco, esperou até passar as cortinas antes de despencar.
Jack e Nômada a seguraram. — O que foi? — Nômada perguntou. — Ah, C.C.... — Nada — C.C. disse. Ela sorriu para os dois, a exaustão estampada no rosto. — Absolutamente nada. — Tudo bem — Cordelia murmurou quando a propaganda da Clínica do Bairro dos Curingas passou acima dela. — Buddy Holley é o próximo. — Apesar do que tio Jack dissera, ela se perguntou se deveria cruzar os dedos. Talvez até os dos pés. — Espere um segundo — disse a diretora de palco. Ela se inclinou para Cordelia. — Mudança nos planos. Merda, Cordelia pensou. — Quê? — Parece que há uma pequena rebelião entre os músicos. Ainda estão resolvendo. — Melhor serem rápidos. — Cordelia olhou o contador de LED no console da diretora. — Tipo, em vinte e dois segundos.

— Mas eu teria que entrar agora — Buddy Holley disse com teimosia. — O acordo é o seguinte — Jack falou —, Bruce e a Girls With Guns decidiram que querem entrar agora e deixar você para o número final. Nômada olhou para além deles. — O Boss e aquela garota, Tami, estão saindo no braço. Parece que ela está ganhando. — Mas é meu número — Holley disse. — Cala a sua boca — disse a líder da Girls With Guns, Tami, enquanto se reerguia, esfregando o ombro direito. Ela soltava as palavras com afetação considerável. — Ele e eu — ela apontou para Bruce Springsteen, que sorria de forma lastimável —, nós dois achamos que aprendemos tudo que sabemos com o senhor. Então, o senhor será o ponto alto. É isso, Bud. — Ela ficou na ponta dos pés e beijou-o nos lábios. Holley olhou perplexo. A diretora de palco estava sinalizando com frenesi. Os olhos de vidro das SteadiCams davam zooms implacáveis. As Girls With Guns aumentaram a energia ao virar do avesso a música melosa de Tommy Boyce e Bobby Hart, “I Wonder What She’ s Doing Tonight”, pisoteando-a até virar geleia e esfregando o resto nos lábios zombeteiros, e fazendo uma apresentação infernal. Terminaram com “Proud Flesh”, um hino cortante de romance e niilismo. — Então — Tami disse para Bruce quando levou suas irmãs para fora do palco —, tenta superar. Bruce Springsteen fez o seu melhor.

Ai, Deus, Cordelia pensou quando os ecos finalmente terminaram. Ela assistiu ao Boss erguendo a guitarra com uma das mãos e elevando o punho da outra. Que Buddy consiga arrasar . Por favor. O Boss fez mais uma reverência ao público, em seguida conduziu a banda para os bastidores. Cordelia piscou. Pensou ter visto St. John Latham numa mesa ao fundo do clube. O dinheiro da Latham, Strauss é tão bom quanto o de qualquer pessoa, ela pensou. O problema era que Latham parecia estar olhando diretamente para ela. Ela suspirou quando a penúltima propaganda terminou e a diretora preparou o microfone. O monitor mostrou uma tomada ampla que correu o palco do fundo para a frente. — E... vai! — disse a diretora no microfone. Por favor, Cordelia voltou a implorar mentalmente.

— Alô, Lubbock! — Buddy Holley disse para o público próximo e para os quinhentos milhões de sombras eletrônicas. A plateia sorriu. Jack sorriu também de seu lugar privilegiado na beirada do palco. Ele agachou-se para evitar ficar no caminho da plataforma da câmera que passava nos trilhos. A dor corroía regularmente suas entranhas, e ele não sabia quanto tempo aguentaria naquela posição. Percebeu que o que queria naquele momento, mais do que qualquer coisa, era simplesmente se deitar. Queria descansar. Logo, logo, ele pensou, mórbido. Descansarei tudo que quiser . Para sempre. Holley bateu sua primeira nota, em seguida passou os dedos pelas cordas. O toque mágico de Buddy Holley. Agora talvez fosse uma técnica padrão, mas três décadas antes havia sinalizado uma revolução.
Fe-e-e-e-era rude
O soluço característico ainda estava lá, embora ninguém no público pagante tivesse ouvido essa canção de Buddy Holley antes.
Quando a lua desce devagar E o amor te faz falta Bato assim, na sua porta Pedindo para entrar Para Jack, parecia um pouco como um Dylan vintage. Talvez uma pitada de Lou Reed. Mas a maioria dela era puro Holley. Fe-e-e-e-era rude — quase um choro. Jack percebeu que estava prestes a chorar.
Quando meus amigos Como minha alma Não se aguentam E todos meus sentimentos     Foram postos à venda
Ele estava chorando.
Sou a presa da fera rude No caminho da fera rude
A Telecaster de Buddy Holley soluçou. Não de autocomiseração, mas de uma dor honesta.
Sem amigos Sem amor     Para sempre
Jack amou a música, mas a dor era horrenda. Quando não pôde mais suportar, ele se levantou e saiu em silêncio. Perderia o bis.

Cordelia já esperava os extravagantes cumprimentos finais, quando cada artista viria ao palco e todos ficariam lá de mãos e braços dados. Ela piscou e precisou olhar duas vezes quando percebeu que Buddy Holley parecia estar prestes a cair de cara no chão durante os aplausos para sua última canção. Ela estava tão perto que conseguia ver seu rosto afogueado. Holley cambaleou. Ai, Jesus, ela pensou, ele está passando mal. Ele vai despencar . Mas não despencou. Era como se a vermelhidão na pele se metamorfoseasse numa onda de calor que corria pelo seu corpo, dos pés à cabeça. Como assim?, pensou Cordelia. Então, a própria pele de Buddy Holley ondulou. Uma nuvem de energia em transformação parecia brilhar ao lado do seu corpo. Ele afastou a Fender Telecaster diante de si e algo surpreendente aconteceu. As cordas de aço amoleceram, derretendo como melaço; saindo das frestas do braço como linhas de fagulhas prateadas. Elas voaram ao redor dos suportes de câmera e luzes, pendurando-se como serpentes da selva. Ilusão?, Cordelia pensou. Talvez fosse telecinesia. As cordas do violão formaram uma espécie de cama de gato enorme. Buddy Holley olhou ao redor, em seguida para as mãos. Lentamente ergueu a cabeça e olhou para cima. Holley parecia estar vendo algo que ninguém mais conseguia compreender. Sorriu e o sorriso se transformou numa expressão alegre. E, então, ele dançou. De forma lenta e prudente no início, o ritmo cresceu até que Holley começou a girar no palco. O público ficou perplexo.
Ela vira aquela dança antes, ou algo parecido. Cordelia puxou na memória. Wyungare. Ela vira o jovem aborígene dançar daquela maneira dentro do Templo do Sonho, no meio do deserto australiano. Era uma dança xamânica. O sorriso de Holley se alargou. Ele saltava e girava. Screamin’ Jay Hawkins e James Brown não teriam feito melhor. Então, Holley saltou para dentro de uma trama quase invisível de reluzentes fagulhas prateadas. Ele girou e a mão direita se separou, arrancada do pulso com um jorro de fumaça rubra. Alguém na plateia arfou. Holley continuou a dança. A outra mão se foi. O braço direito, até o cotovelo. A perna esquerda até o joelho. Fumaça escarlate espalhava-se como os traços curvados de fogo de uma roda de fogos de artifício. Cordelia percebeu que a diretora estava falando com ela. — Devemos ir para os comerciais? — A voz da diretora era firme. Tudo estava ficando claro para Cordelia. — Não — ela disse. — Não. Continue. Filme tudo. Buddy Holley girava dentro de um círculo de raios cintilantes. Ele se desmontou enquanto o público murmurava e gritava. Da cadeira ao lado dela, Cordelia ouviu Polly Rettig dizer: — Meu Deus, é como aconteceu com o Kid Dinossauro. — Não — Cordelia disse em voz alta. — Não é. É um show de morte e ressurreição. É apenas... uma brincadeira. É entretenimento. — Entretenimento? — Rettig perguntou. — Ele... está se matando. — Não acho — Cordelia retrucou. — Ele está se transformando, mas não morrendo. É um truque xamânico. O resto de Buddy Holley, um torso quase sem membros, flutuou e caiu no palco. As partes do corpo jaziam empilhadas de um jeito irregular. Cortinas de fumaça brilhante erguiam-se. Fagulhas subiam em jorros como nascentes. O público assistia, indeciso sobre como reagir. Cordelia sentia-se calma e segura. Confiava em Wyungare. Ela se perguntou se a transformação de Holley era um resultado direto do vírus carta selvagem. Isso explicaria seu aparente mal-estar. A pilha de braços e pernas se moveu. Os ossos começaram a se reconectar, junta após junta. Os músculos e ligamentos giravam ao redor deles. A pele deslizava sobre os membros, e estes se reuniam ao corpo. Buddy Holley estava em pé diante deles, completo. Não era o físico totalmente original. Aquele Buddy Holley estava mais em forma, os pneus ao redor da cintura e as bolsas sob os olhos haviam desaparecido. O cabelo estava preto e brilhante de novo, sem fios grisalhos. A pele era suave e sem rugas. A multidão começou a aplaudir. A vibração aumentou quando a tensão coletiva do público foi aliviada. Alguém atrás de Cordelia disse: “Porra, esse foi o show da minha vida”. A guitarra também se reconstituiu. Holley pegou a Telecaster e segurou-a com tranquilidade. Ele conseguiu o que queria, Cordelia pensou. — Ele se transformou num xamã — ela disse em voz alta.
— Buddy Holley e os Xamãs — uma voz comentou atrás dela. — Que nome demais. Depois dessa, ele venderia como as calcinhas de Fawn Hall. Cara, esse Holley poderia ser candidato à presidência. Cordelia virou-se e viu que era o cara da ICM que havia falado. Ela lhe lançou um olhar gélido e voltou a atenção ao palco. O novo ser que era Buddy Holley sorriu tranquilizador. Em seguida, levou a mão até as cordas da guitarra. O toque pulsou como se ressoasse com o coração de cada um da plateia. O som, Cordelia pensou. É o gatilho para os estados de consciência elevada. Esse é o poder do rock ‘n’ roll. Depois disso, Buddy Holley, o homem renascido do poder, ficou diante da plateia boquiaberta e tocou a melhor versão de “Not Fade Away” que já havia sido interpretada. Cordelia suspeitou que fosse um sinal.

Quando Jack escapou pela porta da Funhouse que dava para um beco, sentiu-se mal no corpo e no coração. Eu devia ter ficado para o bis de Buddy, ele pensou. Mas Buddy se sairia bem. Algo gigantesco, de tamanho sobre-humano, raspava no asfalto ao deslocar seu peso. Jack parou de uma vez quando uma sombra mais profunda que a escuridão no restante do beco foi para cima dele. — Imaginei que uma festa de maricas de luxo como esta atrairia todos os meus amiguinhos — Pancada disse. — Mas não esperava que o primeiro desgraçado fosse você. — Sem alerta, a mão direita deformada zuniu, acertando Jack na cabeça e lançando-o de costas na lateral de tijolos de um prédio. Jack sentiu algo ceder, se era osso ou cartilagem, não conseguiu dizer. Tudo que sabia era que se afastava do que era a luz. Queria a escuridão, mas não ainda, não daquela forma. Tentou lutar. Tinha ciência de que Pancada o havia prendido com força e o erguera do chão. O brutamonte arrancou o cinto de Jack e abaixou-lhe as calças. — Tenho um presentinho de despedida para você, Jack . Acho que você vai gostar. Aposto que sua sobrinha Cordelia vai se lambuzar quando eu der o dela também. Jack tentou se forçar a recuperar a consciência. Em seguida, sentiu o que Pancada estava enfiando entre suas nádegas. Dentro dele. Esticando e rasgando. Nada havia doído tanto. Nada! — Vou guardar a menininha para mais tarde — Pancada disse. Jesus, Jack pensou em meio à agonia. Cordelia. — Deixe-a em paz, seu cochon desgraçado! — Paus e pedras — Pancada falou, emitindo uma risadinha aguda —, mas apenas o Bolão pode me ferir... — Ele forçou para a frente, e Jack berrou. Onde estava o outro?, Jack pensou desesperadamente. Seu cérebro parecia
afundar numa névoa destruidora e dolorosa. Preciso de você. Agora. Preciso me transformar . Apenas desta vez. Apenas para matar esse filho de uma puta. E, então, sentiu a mudança chegar. Também sabia que estava morrendo. Ótimo, ele pensou. Bom para ambos. E uma surpresa para Pancada. Jack sentiu os dentes brotando na mandíbula alongada. Por pestilência ou pelas garras, seu filho de uma puta, você vai morrer . O ódio feroz o levou um pouco mais distante. Nômada!, seu pensamento gritou noite adentro. Me ouça. Salve Cordelia. Vou guardar a menininha para mais tarde, a ameaça de Pancada ecoou, ondulando num vazio. E morreu. O morto mergulhou na escuridão.
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Laços de sangue
II
O turno das sete à meia-noite estava prestes a terminar. O pessoal do turno da meia-noite às cinco da manhã estava se preparando para partir do Crystal Palace para as ruas do Bairro dos Curingas. Tosses, pigarros, algumas risadas abafadas soaram quando eles se alinharam nas longas mesas armadas para serem servidos. Hiram Worchester, o dono imensamente grande e elegante do Aces High, supervisionava a força-tarefa de alimentação. Era sua maneira de mostrar apoio e oferecer uma recepção agradável às patrulhas sempre cansadas do Bairro dos Curingas. Tachyon, sentado em uma mesa com a bota apoiada na cadeira, farejava com apreço. Coq au vin. Ele percebeu que Sascha havia parado para falar com Hiram. O grande ás virou a cabeça na direção de uma das alcovas separadas, e eles se afastaram. Algum tipo de negócio, refletiu Tachyon. Todos faziam negócios no Crystal Palace. A porta do Palace abriu com tudo, e o Sr. Covafunda supervisionou o lugar. Trouxe com ele um cheiro indescritível, e o frio dos túmulos parecia emanar de sua figura alta e magra. Embaixo de seu absurdo chapéu pork pie, uma máscara de caveira decorada com penas brancas e pretas olhou ao redor da sala. Alguns curingas reunidos murmuraram xingamentos. Seria bem difícil engolir até mesmo a comida deliciosa de Hiram com o Sr. Covafunda empesteando o lugar. Tachyon, com um lenço aromatizado preso ao nariz, estava prestes a deslizar até o salão e juntar-se à fila quando a voz arrogante de Digger Downs o fez parar. — Ah, não, você não, doutor, é hora da entrevista. — Por que eu, Digger? — Porque você me deve por ter controlado a minha mente na semana passada. Não foi legal, Tachy, não mesmo. — Digger, se você não fosse tão irritante e inescrupuloso...
— A capitã Ellis não aprova esse movimento de proteção — o repórter disparou. — Ela diz que alguém vai se machucar, e não vão ser os bandidos. — Eu comentaria com a boa capitã que os movimentos de proteção têm sido todos unilaterais. E ela está sendo indevidamente pessimista. Acho que podemos nos cuidar. O Ideal sabe que temos prática o bastante — ele acrescentou, seco, lembrando-se de todos os anos em que a polícia curiosamente não se interessava quando um curinga era espancado ou morto, mas corriam até o local do delito quando um turista berrava. As coisas estavam melhores agora, mas ainda era uma relação complicada. Digger lambeu a ponta de sua caneta esferográfica, um gesto tolo, afetado. — Sei que meus leitores vão querer saber por que essas patrulhas são compostas apenas por curingas. Com você liderando esse esforço, por que não botar alguns ases? O Martelo, por exemplo, ou Mistral, J.J. Flash ou Estelar. — Este é um bairro curinga. Podemos nos cuidar sozinhos. — Ou seja, existe hostilidade entre curingas e ases? — Digger, não seja estúpido. É tão surpreendente assim que essas pessoas escolham cuidar de si mesmas? São vistas como aberrações, tratadas como crianças retardadas e ignoradas em favor dos irmãos mais afortunados e exuberantes. Posso enfatizar que sua revista se chama Ases, e ninguém se esforça para fundar uma revista chamada Curingas? Olhe ao redor. É uma atividade nascida do amor e do orgulho. Como eu poderia dizer a essas pessoas que não são duronas ou espertas, ou fortes o bastante para se defender? Convocar os ases? Que era, claro, o que ele faria, se Des não tivesse aberto seus olhos. Mas Digger não precisava saber disso. Ainda assim, Tach teve a decência de corar quando se apropriou desavergonhadamente do sermão de Des e repassou-o ao jornalista. — Comentários sobre Leo Barnett? — Ele é um lunático fomentador de ódio. — Posso citar essa frase sua? — Vá em frente. — Então, quem será o cavaleiro branco? Hartmann? — Talvez. Não sei. — Pensei que vocês eram bem unidos. — Somos amigos, mas não íntimos. — Por que acha que Hartmann é tão amigo dos curingas? Interesses pessoais? Sua mulher seria portadora do vírus, ou talvez tivesse um filho curinga ilegítimo em algum lugar? — Acho que ele é amigo dos cartas selvagens porque é um bom homem — Tachyon retrucou com uma leve frieza. — Ei, falando em bebês curingas monstruosos, quais as últimas sobre a gravidez de Peregrina? Tachyon ficou paralisado com a fúria, em seguida abriu os punhos com cuidado e relaxou. — Não, Digger, você não vai me pegar de novo. Eu nunca vou me perdoar por ter deixado escapar que o pai do filho da Peregrina é um ás.
— Te pago um drinque, Tachy? — o jornalista perguntou, esperançoso, olhando o copo quase vazio. — NÃO! — Só uma dica para tranquilizar todos os fãs ansiosos que estão preocupados com Per? — Ah, se manda, Digger. Você me persegue mais que mosca de cavalo. — Ele acenou a mão para os curingas. — Entreviste-os e me deixe em paz. Sou muito menos importante que todos eles nisso aqui. — Meu Deus, Tachy! Modéstia, vinda de você? O takisiano olhou fixamente, e Digger ergueu o copo da mesa e virou o restante do conhaque sobre a própria cabeça. — Não estou... de muito bom humor... agora. O jornalista secou o pescoço molhado. — Não fode, Tachyon! Com essa são duas. Vou cobrar logo, na próxima entrevista. — Estou contando os minutos. — Idiota. Tachyon encarou morosamente seu copo vazio, em seguida vasculhou a sala procurando um garçom. Durg at’Morahk bo-Isis Vayawand-sa mastigava impassível um enorme prato de comida, mas Tachyon percebeu que seus olhos pálidos não paravam de olhar a escadaria. Crisálida apareceu, e o assassino Morahk, lépido apesar de seu imenso tamanho, moveu-se rapidamente para o lado dela. Ele ergueu a mão da mulher com graça cortês e beijou-a com fervor. Crisálida puxou a mão com tudo e encarou-o com frieza. Mesmo sem querer, Tach ficou atraído pela cena e foi até eles, tentando ouvir. De repente, a mão de Crisálida voou, e o estalido do tapa ecoou no bar lotado. — Tachyon! — ela falou entredentes. Obediente, ele a seguiu até sua mesa particular. Erguendo o maço de cartas antigas, ela embaralhou várias vezes e abriu uma mesa de paciência. — Mantenha sua aberração de estimação longe de mim! — Ele não é meu, é do Mark, e qual é o problema? — Ele me quer. — Meus deuses! Um emaranhado de emoções conflitantes invadiu-o. Nojo e surpresa que Durg pudesse estar atraído pela curinga. Por mais que fosse um monstro, ainda era um takisiano. Envergonhado por sua reação e envergonhado por Crisálida ser assediada por essa monstruosidade apaixonada. — Você vai tirá-lo do meu pé? — Farei o que puder, mas lembre-se de que ele foi criado desde a infância para me odiar e desprezar; primeiro pelo Vayawand e, então, por meu primo Zabb. Ele me tolera agora apenas por conta de Mark. — Por favor. — Tudo bem, mas seja um pouco mais indulgente, eu imploro. Os Morahk podem ser uma perversão, mas são takisianos, e, como tal, usados para conseguir o que querem dos outros. Nunca se esqueça de que ele é uma máquina de matar. — Muito obrigada, Tachy, eu me sinto muito melhor agora.
— Desculpe. — Bem, talvez a Máfia ou os Punhos acertem minha cabeça antes que ele o faça. E pensar que eu deixei que você me metesse nisso. Saiba que tudo isso é sua culpa. Ah, pare de olhar com essa cara de coitado. Foi uma piada. — Não para mim.

Dita veio com passinhos incertos pelo corredor, seus saltos incrivelmente altos estalando no piso de cores esmaecidas. — Doutor, o sr. Marion foi embora! Tachyon ergueu os olhos do prontuário que estava estudando. — Quem? — O sr. Marion, o tutor. — Ah, que merda. — Não era um expletivo comum vindo dele, e Dita o encarou. — Dita, estou ocupado demais para lidar com isso agora, e como esse é um caso perdido, peço que contrate um novo tutor por mim. — Mas eu não saberia o que procurar. — Alguém com conhecimentos sólidos de matemática e ciências. Um pouco de história e literatura, e um conhecimento ou ao menos apreço pela música seria ótimo. O estalo e o chiado do pager, e a voz suave dos alto-falantes o interrompeu. — Dr. Tachyon, emergência. Dr. Tachyon, emergência. — Mas... — Use seu bom senso. — Pendurando o estetoscópio no pescoço, Tachyon ergueu o telefone da enfermaria do terceiro andar. — O que foi? — Carta selvagem — veio a resposta concisa do Dr. Finn. Ele não perdeu mais tempo e partiu para o elevador. A criança estava se contorcendo na mesa de exame. Os cascos de Finn estalavam nervosamente no piso enquanto procurava prendê-la. Era o primeiro médico curinga na Clínica Memorial Blythe Van Renssaeler, e houve uma resistência inicial da comunidade curinga por medo de que ele tivesse conseguido entrar na faculdade por conta de cotas e não por mérito. Depois de duas semanas trabalhando com o jovem, Tach pôde garantir que seus medos eram infundados. A mãe da criança encarou Tachyon com pânico nos olhos. Superficialmente, parecia uma limpa; o que seu código genético continha, claro, era outra questão. Manifestação ou infecção nova? Apenas exames mostrariam. — O exame inicial não indica transformação. Conseguimos estabilizar a pressão e os batimentos cardíacos, e eu solicitei um trunfo, mas... — Obrigado, doutor. Senhora...? — Wilson — informou a enfermeira. — Wilson. — Tachyon tomou-a pelo braço, afastando-a da criança convulsiva. — Sua filha contraiu o carta selvagem, e é bem evidente que ela tirou uma Rainha Negra. — A mulher ofegou, deu um gritinho e cobriu a boca com a
mão. — Precisamos tomar uma decisão muito rápida. Podemos dar um antivírus que desenvolvi... — Pode dar! — Mas preciso alertá-la que esse tratamento tem uma taxa de sucesso de apenas 20%. O resultado costumeiro é que não haja melhoria. O vírus segue seu curso. Também há uma chance muito pequena de morte como reação ao trunfo. — Ela está morrendo mesmo. Não importa se acelerar o processo. Uma enfermeira apareceu ao lado dela com os documentos para assinar. Tachyon já estava preparando a seringa. Finn e três enfermeiras precisaram se juntar para manter a garota quieta. O êmbolo foi pressionado. Tach segurou o pulso da menina, o tremular das veias sob os dedos. Cada vez mais fraco. O monitor parou de registrar. O grito do luto ecoava no choro da mãe. O que vinha depois sempre era horrendo. As inadequadas palavras de conforto, a obtenção de consentimento para uma autópsia, os exames de sangue nos pais — neste caso, infelizmente, incompleto, pois Beth Wilson tinha auxíliofamília, e o homem que infectara a pequena Sara havia desaparecido de sua vida muito tempo antes. Ela gastara os últimos trinta dólares do auxílio com táxis, pulando de hospital para hospital, sendo rejeitada quando o vírus era descoberto, até por fim chegar à clínica do Bairro dos Curingas. Tach lhe deu dinheiro e a enviou para casa com Riggs na limusine. Esparramado na cadeira, Tach puxou uma garrafa da gaveta da mesa e deu um grande gole. — Importa-se se eu tomar um trago? — Finn perguntou. Ele estava no chão, com as quatro pernas impecavelmente curvadas embaixo dele. Sua pele dourada tremia levemente sobre uma das pernas, e ele se torceu para se coçar. Tach, virado em sua cadeira, observou o jovem e concluiu que Finn parecia um personagem da Disney. O rosto pequeno e pontudo, os olhos azuis puxados para cima, uma confusão de cachos brancos que caíam sobre a testa e corriam pela coluna para formar uma crina. Sua cauda espalhava-se atrás dele como um manto branco. Quando estava em cirurgia, eles faziam uma trança e passavam fita cirúrgica ao redor. Tach sugeriu que ele cortasse o cabelo curtinho e recebeu um olhar horrorizado como resposta. Em seguida, Tach percebeu que a cascata de cabelos que raspavam o chão eram o orgulho e a alegria de Finn. Encarando aqueles quatro cascos do tamanho de xícaras de chá, Tach quis perguntar se Finn havia nascido daquele jeito ou se metamorfoseado após o nascimento. Se tivesse sido uma transformação intrauterina, Tachyon podia apostar que fora uma cesariana. Mas seria estranho perguntar. Embora Finn parecesse incrivelmente bem ajustado, Tachyon seria o primeiro a admitir que não conhecia o homem tão bem. Finn girava a garrafa devagar entre os dedos e com o cenho franzido para o nada. — O que foi? — Tachy perguntou. — Nunca tinha trabalhado entre curingas até agora. — É?
— Sim, meu pai teve influência e dinheiro o bastante para me enviar para as melhores escolas de medicina e me incluir num programa de residência em Cedars, Los Angeles. — Então, por que está aqui? — Pensei que já era hora de conhecer alguns curingas. Ter uma visão da experiência curinga. — Isso é muito nobre. — Não, é culpa mesmo. Cresci num palácio colonial espanhol em Bel Air. Se papai não pudesse comprar a aceitação das pessoas, ele as intimidava até me aceitarem. — O que seu pai fazia? — Faz. Ele é produtor de cinema. Muito bem-sucedido. — E você se tornou médico. — Bem, dificilmente poderia virar ator. — Verdade — Tachyon se levantou. — Se você quiser ter mais um pouco de experiência com curingas, estou indo para o Crystal Palace fazer um relatório diário. Se quiser me acompanhar. — Claro. Melhor que ficar aqui esperando outra Rainha Negra chegar. Queria que vocês tivessem trabalhado um pouco mais antes de mandar o xenovírus Takis-A para teste em campo. — Mas, Finn, segundo os padrões de qualquer um, foi um sucesso estrondoso. — É mesmo? Diga isso para a senhora Wilson.

Até as luzes haviam sido apagadas num esforço de deixar confortável a adolescente magrinha que se encolhia na cadeira ao lado de Crisálida. Vídeo era uma garota pequena de 16 anos que nunca dançaria em sua festa de formatura ou iria ao cinema ou, em suma, viveria qualquer das conveniências modernas que tornavam a vida confortável. Pois a presença de qualquer equipamento elétrico ao seu redor lhe causava fibrilação ventricular, e sem ajuda imediata ela morreria. Até alguém perceber seus olhos, Vídeo parecia normal. Cabelos castanhos longos, partidos ao meio, caíam retos sobre os ombros. Um rosto fino, preocupado, espreitava detrás dessa cortina de cabelos. E os olhos, brancos e perfeitamente redondos, pareciam ondular e mudar como cristas de ondas, ou nuvens partidas pelo vento. — Oi, Dr. Tachyon — ela murmurou com a boca cheia de chicletes. — Oi, Vídeo, como está se sentindo hoje? — Muito bem. — Este é o Dr. Finn. — Oi. — Então, o que você nos trouxe hoje?
— Pude andar por aí muito bem, então consegui algumas coisas. — Excelente. — Hum... doutor? — Diga. — Hummm... o senhor é amigo do senador Hartmann, certo? — Sou. — Ele vai concorrer? — À presidência, você diz? — Isso. — Não sei, Vídeo. — Bem, eu gostaria que ele concorresse. Um dos meus amigos foi espancado perto daquela missão de Barnett. — O pessoal de Barnett esteve por trás disso? — Não sei. Ele acha que sim. Os policiais pensam que provavelmente foram os Lobisomens. — Em outras palavras, sem provas. — Paul tem certeza — ela disse com uma expressão de teimosia. — Mas isso não é prova. — Bem, não acho que esse cara tenha que se tornar presidente. — Duvido que vá, Vídeo — Tachyon disse e desejou estar tão certo quanto suas palavras queriam mostrar. — O senador Hartmann devia concorrer. — Da próxima vez que eu falar com ele, peço para ele concorrer. — Eu votaria nele se já tivesse dezoito. — Vou dizer a ele. Agora, o replay. — Ah, tudo bem. A garota encarou concentrada o espaço vazio diante da mesa de Crisálida. Figuras tomaram vida. ... um oriental em cores de gangue enfiava uma lâmina de canivete retrátil na narina de Peru. Um giro, e o sangue escorreu sobre o bico do velho. Com um grito, ele despencou no chão. Um punk alto, magro e desengonçado, vestido com calças de couro manchadas e correntes, deixando as cicatrizes pretas e escarlates do rosto em horrendo relevo. O cabelo espetado o deixava com mais de dois metros quando ele agarrou o curinga pelo tufo de penas que brotava do crânio careca e puxou-o. As penas vieram entre os dedos. — Bote num chapéu — gritou o oriental, divertindo-se. De repente, Elmo surgiu na porta da delicatessen. Ele se lançou sobre o ocidental alto e cheio de cicatrizes. Brigaram. O anão inclinou-se para a frente, suas mandíbulas poderosas fecharam-se no nariz com curativos do oponente. Elmo afastou-se, e o homem gritava e batia sobre a ferida em carne viva aberta onde havia um nariz. Elmo cuspiu o nariz na palma da mão... — Nojento — Finn comentou. ... as Irmãs Retorcidas estremeceram e agarraram com mais força a cintura uma da outra. Cabelos cinzentos giravam como fumaça ao redor dos corpos esqueléticos. Eles serpenteavam tão suaves e insubstanciais como teias de aranha, insinuantes como um suspiro. Subiram pelas narinas e passaram pelos
lábios. Engrossaram até ficar como chumaços de algodão na traqueia e nos pulmões. Os valentões caíram no chão da delicatessen como balões murchos. ... um par de homens em jaquetas esportivas de poliéster e uma boa quantidade de correntes enfiou a cabeça de Mancha em uma das máquinas de lavar da lavanderia dele. Eles o arrastaram arfando e pingando, o sabão grudado em seus cabelos e pele manchados. O Sr. Covafunda passou pela porta, dobrou os dedos e pousou a mão no ombro de um dos brutamontes. O homem recuou, berrou e despencou. O outro logo se juntou ao primeiro... — O que ele está usando? — Tachyon perguntou com uma olhada para Crisálida. — Hipotermia. — Ah. — Ele acenou para Vídeo prosseguir. ... A porta dos fundos da padaria lançava luz no beco. Gritos da cozinha. Punhos Sombrios pararam como cães de guarda no beco apinhado. Correndo para se juntar a uma briga com seus concorrentes da Máfia. Curingas aterrorizados recostados à parede, a fumaça subindo dos bolinhos fritando até queimar no óleo quente. A distância, um assobio claro flutuou sobre o balir das buzinas, e o estrondo do metrô. O tema de Matar ou morrer... Tachyon baixou a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos. — Eu não sabia que você estava lá. — Posso ser bem sorrateira — Vídeo disse, orgulhosa. Crisálida lançou um olhar irônico para o takisiano. — Muito interessante. Então, nosso doutorzinho está andando com a cavalaria. Vá em frente, Vídeo, quero ver. — A padaria do Doug fica a um quarteirão da clínica. Eu compro rosquinhas lá pela manhã. Quando o chamado veio, Troll e eu estávamos disponíveis. — Certo — ela falou arrastado. ... Tachyon, a Magnum .357 como um canhão em sua mão pequena, entrando pelo beco. Troll irrompeu pela frente da padaria. Troll fechou o punho do tamanho de um pernil e bateu nas cabeças como um homem tocando bongôs. Um dos brutamontes da Máfia puxou um .22 e atirou à queima-roupa no peito imenso de Troll. A bala ricocheteou na grossa pele esverdeada do curinga com um zunido. O homem empalideceu. Troll ergueu-o pelo colarinho da camisa. — Você não deveria ter feito isso, senhor, pois agora estou realmente irritado. Troll, friamente, quebrou os dois braços do homem, em seguida as pernas e, depois, jogou-o num canto como um saco descartado. Um saco que berrava. Tachyon encarou os dois homens, que caíram roncando assim que os estranhos olhos lilases fixaram-se sobre eles. Um dos Punhos conseguiu puxar uma .45 automática. Tachyon deu um tiro e arrancou a arma de sua mão. Ergueu a pistola até os lábios e soprou levemente o cano... — Exibido — Crisálida disse. O alienígena deu de ombros. — Sou bom de tiro.
— Não acredito nem um pouco que você não sabia que Vídeo estava lá. Certamente aquela foi uma apresentação para conseguir o aplauso das massas. — Crisálida, assim você me ofende. — Tachyon, você é um filho da puta arrogante e não tente me convencer do contrário. — Eu não sabia que você estava participando de tudo isso — Finn disse. — Eu organizei... ajudei a organizar. Eu deveria compartilhar os riscos. — O alienígena secou a bebida e fez uma mesura para Vídeo e Crisálida. — Senhoritas, muito obrigado. — Ele parou na porta. — Aliás, Crisálida, o que você acha de nossa atuação? — Acho que fizemos eles fugirem. Só espero que eles não decidam nos atacar. — Está com medo? — Pode apostar seu rabinho alienígena que estou. Sei mais sobre essa situação, e quem está por trás dela, do que você. — E você não vai me dizer. — Nisso você tem razão.
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Junho de 1987
Todos os cavalos do rei
V
ENTRADA APENAS $2,50 era o que constava na placa sobre a bilheteria escura na frente do Museu Popular Carta Selvagem. A bilheteria estava vazia, as portas do museu trancadas. Tom tocou a campainha ao lado do guichê. Depois de um minuto, tocou novamente. Ruídos de pés se arrastando vieram lá de dentro, e uma porta atrás da cabine se abriu. Um olho apareceu, viscoso, azul pálido, em um talo longo e carnoso que se enroscou no batente da porta. Ele se fixou em Tom e piscou duas vezes. Um curinga entrou na cabine. Tinha uma dúzia de olhos em longos talos preênseis que brotavam da testa e moviam-se sem parar, como serpentes. Tirando isso, era uma pessoa comum. — Sabe ler não? — ele falou numa voz fina, anasalada. — Estamos fechados. — Em uma das mãos, ele segurava uma placa pequena, que deslizou na frente da janela do guichê. Nela estava a palavra FECHADO. A maneira que os olhos do curinga se mantinham em movimento deixou Tom com uma sensação de enjoo na boca do estômago. — Você é Dutton? Um a um os olhos viraram-se, e foram parando até todos estarem fixados nele, observando-o. — Dutton está te esperando? — o curinga perguntou. Tom assentiu. — Tudo bem, dê a volta. — Ele deu as costas e saiu da cabine, mas dois ou três olhos continuaram encarando Tom, curiosos e sem piscar, até que a porta se fechasse. A entrada lateral tinha uma pesada porta de metal corta-fogo que dava para um beco. Tom esperou com nervosismo enquanto trancas eram abertas e trincos erguidos lá dentro. Sempre se ouviam histórias sobre os becos do Bairro dos Curingas, e aquele parecia especialmente escuro e sombrio. — Por aqui — o cheio de olhos disse quando a porta finalmente se abriu. O museu não tinha janelas, suas saletas eram ainda mais sinistras que o
beco. Tom olhou ao redor com curiosidade quando passaram por vários corredores longos com corrimões de latão empoeirados e dioramas com figuras em cera de cada lado. Ele havia flutuado sobre o museu milhares de vezes como Tartaruga, mas nunca havia posto um pé lá dentro. Com as luzes apagadas, as figuras nas sombras pareciam extremamente reais. O Dr. Tachyon estava em pé num monte de areia branca, a espaçonave pintada ao fundo, enquanto soldados nervosos desciam de um jipe. Jetboy tinha as mãos ao peito enquanto o Dr. Tod, com seu rosto de aço, o enchia de balas. Uma loira em um collant rasgado lutava na mão do Grande Gorila, enquanto ele escalava um modelo do Empire State Building. Dúzias de curingas, cada qual mais deformado que o outro, retorciam-se sugestivamente em algum porão úmido, as roupas espalhadas ao redor. O guia desapareceu numa virada de corredor. Tom seguiu-o e se viu frente a frente com uma sala cheia de monstros. Mergulhadas nas sombras, as criaturas pareciam tão reais que o obrigaram a parar. Aranhas do tamanho de minivans, coisas voadoras que pingavam ácido, vermes gigantes com anéis de dentes serrilhados, monstruosidades humanoides cuja pele tremia como gelatina; eles enchiam a sala por trás do vidro curvado, cercando-o por três lados, amontoados uns nos outros, tentando fugir. — Nosso mais novo diorama — uma voz baixinha soou atrás dele. — Terra versus Enxame. Aperte os botões. Tom olhou para baixo. Meia dúzia de grandes botões vermelhos haviam sido instalados no corrimão. Ele apertou um. Dentro do diorama, um holofote iluminou um simulacro de cera do Modular suspenso no teto, enquanto raios idênticos de luz escarlate saíam das armas montadas em seus ombros. Os lasers atingiam um dos brotos do Enxame, e finos tentáculos de fumaça subiam, e um longo chiado de dor saía de alto-falantes escondidos. Tom apertou um segundo botão. Modular desapareceu nas sombras, e as luzes se acenderam sobre o Uivador, com seus trajes amarelos de batalha, delineado contra uma nuvem de fumaça de um tanque em chamas. O simulacro abria a boca, os alto-falantes berravam. Um broto do Enxame tremia em agonia. — As crianças amam este — a voz disse. — É uma geração criada com efeitos especiais. Tenho medo que logo exijam mais do que simples bonecos de cera. É preciso se adaptar aos tempos modernos. Um homem alto com um terno escuro de corte fora de moda estava de pé em uma porta de um lado do diorama, e o curinga com os olhos em talos encolheu-se ao lado dele. — Sou Charles Dutton — ele disse, oferecendo a mão enluvada. Uma capa preta e pesada estava jogada sobre os ombros. Parecia que havia saído de uma carruagem de aluguel na Londres vitoriana, exceto pelo capuz puxado sobre a cabeça, que escondia o rosto na sombra. — Ficaremos mais confortáveis no escritório — Dutton disse. — Venha por aqui. De repente, Tom ficou inquieto. Ele se pegou perguntando, mais uma vez, que diabos estava fazendo ali. Uma coisa era voar sobre o Bairro dos Curingas como Tartaruga, seguro num casco de aço, e outra bem diferente era se aventurar em suas ruas com sua carne totalmente vulnerável. Porém, ele já
havia chegado até ali. Agora, não havia como voltar. Seguiu seu anfitrião através de uma porta marcada com APENAS FUNCIONÁRIOS e desceu um lance estreito de escadas. Passaram por uma segunda porta, através de uma oficina cavernosa no porão, até entrarem num escritório pequeno, mas mobiliado com conforto. — Aceita uma bebida? — o homem encapuzado perguntou. Foi até o bar no canto do escritório e serviu um conhaque. — Não — Tom disse. Era afetado pela bebida e ficava bêbado rápido, e precisava de todos seus instintos alertas naquele momento. Além disso, beber com aquela maldita máscara de sapo seria um inferno. — Avise se mudar de ideia. — Agitando o copo, Dutton cruzou a sala e sentou-se atrás de uma mesa com pés de leão. — Por favor, sente-se. O senhor parece terrivelmente desconfortável assim, em pé. Tom não estava ouvindo. Algo havia chamado sua atenção. Havia uma cabeça na mesa. Dutton notou o interesse e virou a cabeça. O rosto era extremamente bonito, mas as feições perfeitas estavam congeladas em uma expressão de surpresa. Em vez de cabelos, o topo do crânio era um domo de plástico com um disco de radar embaixo dele. O plástico estava rachado. Cabos partidos, escuros e meio derretidos sacudiam do toco serrilhado do pescoço. — É o Modular — Tom disse, chocado. Em meio ao atordoamento, ele se sentou na ponta de uma cadeira com encosto de couro. — Apenas a cabeça — Dutton comentou. Tinha de ser uma réplica de cera, Tom disse a si mesmo. Ele estendeu a mão e tocou-a. — Não é de cera. — Claro que não — Dutton afirmou. — É autêntica. Compramos de um dos cumins do Aces High. Não me importo em dizer que nos custou uma soma bastante considerável. Nosso novo diorama dramatizará o ataque do Astrônomo ao Aces High. Vai mostrar como Modular foi destruído durante aquela confusão. A cabeça dará uma certa verossimilhança à exposição, não acha? Aquela ideia toda deixou Tom enjoado. — O senhor não planeja colocar o corpo do Kid Dinossauro na exposição também, não é? — ele perguntou, irritado. — O garoto foi cremado — Dutton respondeu num tom direto. — Temos informações seguras de que o necrotério substituiu-o por um indigente, limpou os ossos com besouros do tapete e vendeu o esqueleto a Michael Jackson. Tom perdeu a fala. — Você está chocado — Dutton disse. — Não estaria se fosse um curinga embaixo da máscara. Este é o Bairro dos Curingas. — Ele puxou para trás o capuz que cobria seu rosto. Uma cabeça de defunto sorriu para Tom do outro lado da mesa; olhos escuros e fundos embaixo do osso pronunciado onde ficariam as sobrancelhas, pele amarela como couro curtido estendida no rosto sem nariz, lábios ou cabelos, os dentes expostos num ricto de sorriso. — Quando se vive aqui o suficiente, nada o choca — Dutton falou.


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Compassivo, puxou novamente o capuz para esconder o rosto de caveira viva, mas Tom ainda conseguia sentir o peso de seus olhos. — Bom — ele falou —, Xavier Desmond me deu a entender que o senhor tem uma proposta para mim. Uma nova exposição principal. Tom já vira milhares de curingas em seus longos anos como Tartaruga, mas sempre a distância, nas telas das TVs, com camadas de armadura entre eles. Sentado sozinho em um porão sombrio com um homem encapuzado cujo rosto era um crânio amarelado era um pouco diferente. — Sim — ele disse, hesitante. — Sempre estamos abertos a novas exposições, quanto mais espetaculares, melhores. Des não é dado às hipérboles, então quando ele me disse que o senhor nos oferecerá algo realmente único, fiquei interessado. Qual é exatamente a natureza dessa exposição? — Os cascos do Tartaruga — Tom disse. Dutton ficou em silêncio por um momento. — Não são réplicas? — São os verdadeiros — Tom lhe disse. — O casco do Tartaruga foi destruído no último Dia do Carta Selvagem — Dutton disse. — Eles tiraram peças dele do fundo do rio Hudson. — Aquele era um dos cascos. Havia modelos anteriores. Eu consegui três deles, inclusive o primeiro. Placas blindadas sobre um chassi de fusca. Está com alguns tubos queimados, mas tirando isso está quase intacto. O senhor poderia limpá-lo, ligar as TVs num circuito fechado, fazer uma simulação real de voo. Cobrar extra para as pessoas entrarem nele. Os outros dois cascos estão vazios, mas ainda dão um belo panorama. Se tiver espaço suficiente, poderia pendurálos no teto, como os aviões no Smithsonian. — Tom inclinou-se para a frente. — Se quiser transformar este lugar num museu de verdade, e não apenas num show de horrores para turistas limpos, precisa de exposições reais.


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Dutton assentiu. — Intrigante. Admito que fico tentado. Mas qualquer um poderia construir um casco. Precisaríamos de algum tipo de autenticação. Se não se importar que eu pergunte, como eles vieram parar nas suas mãos? Tom hesitou. Xavier Desmond disse que Dutton era de confiança, mas não era fácil deixar de lado 24 anos de precaução. — São meus — ele disse. — Eu sou o Tartaruga. Dessa vez, o silêncio de Dutton foi ainda mais longo. — Reza a lenda que o Tartaruga está morto. — A lenda está errada. — Entendo. Não creio que o senhor se importe em me dar uma prova. Tom deu um suspiro profundo. Suas mãos apertaram os braços da cadeira. Ele olhou para além da mesa, concentrado. A cabeça de Modular ergueu-se trinta centímetros no ar e virou lentamente até os olhos estarem fixos em Dutton. — Telecinesia é um poder relativamente comum — Dutton falou, sem ênfase. — O Tartaruga distingue-se não pela mera telecinesia, mas por sua força. Erga a mesa e me convença. Tom hesitou. Ele não queria estragar um negócio admitindo que não poderia levantar a mesa, não se estivesse fora do casco. De repente, sem pensar, ele se ouviu dizendo: — Compre os cascos, e eu voarei neles até aqui. Em todos os três. As palavras escaparam com a maior facilidade; apenas depois que elas estavam lá, penduradas no ar, é que Tom percebeu o que havia dito. Dutton fez uma pausa pensativa. — Poderíamos filmar a chegada, rodar em loop como parte da exposição. Sim, eu acho que seria a autenticação de que precisaríamos. Quanto o senhor está pedindo? Tom sentiu um momento de pânico cego. A cabeça de Modular caiu com um baque seco na mesa de Dutton. — Cem mil dólares — ele soltou. Duas vezes o que pretendia pedir. — Demais. Ofereço quarenta mil. — Nem ferrando — Tom rebateu. — É uma exposição única. — Uma trinca, na verdade — Dutton enfatizou. — Talvez eu possa chegar a cinquenta mil. — O valor histórico já vale mais que isso. Eles vão dar a essa porra de lugar respeitabilidade. O senhor vai ter filas rodando o quarteirão. — Sessenta e cinco mil — Dutton disse. — E temo que seja minha oferta final. Tom ergueu-se, aliviado, mas um tanto decepcionado também. — Tudo bem. Obrigado por me receber. Por acaso o senhor não teria o número do Michael Jackson? — Como Dutton não respondeu, ele começou a caminhar até a porta. — Oitenta mil — Dutton disse atrás dele. Tom virou-se. Dutton pigarreou, como se pedisse desculpas. — É isso. De verdade. Não poderia subir mais, nem se quisesse. Não sem liquidar alguns dos meus investimentos, o que não estou preparado para fazer. Tom parou na porta. Ele quase escapou. Agora, estava travado novamente. Não viu maneira de sair daquela situação sem parecer um idiota. — Vou precisar em dinheiro vivo. Dutton deu uma risadinha. — Não imagino que um cheque feito à ordem do Grande e Poderoso Tartaruga seria fácil de descontar. Precisarei de algumas semanas para levantar essa quantia, mas imagino que posso consegui-la. — O homem encapuzado ergueu-se de sua cadeira e deu a volta na mesa. — Acordo fechado, então? — Fechado — Tom falou. — Se incluir a cabeça. — A cabeça? — Dutton soou surpreso e até divertido. — Sentimental, não? — Ele pegou a cabeça de Modular e encarou os olhos cegos, sem foco. — É apenas uma máquina, o senhor sabe? Uma máquina quebrada. — Ele era um de nós — Tom falou com uma paixão que surpreendeu até a ele. — Não parece certo deixá-lo aqui. — Ases — Dutton suspirou. — Bem, suponho que podemos fazer uma réplica em cera para o diorama do Aces High. É sua, assim que recebermos os cascos. — Vocês terão os cascos quando eu tiver meu dinheiro — Tom falou. — Bem justo — Dutton retrucou.
Jesus, Tom pensou, em que merda eu me meti e que merda eu fiz? Em seguida, controlou-se. Oitenta mil dólares eram uma dinheirama. Dinheiro suficiente para fazer valer a pena se transformar em Tartaruga uma última vez...

 

 

                                                                  

 

 

                                                   

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