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JOGOS DE SEDUÇÃO
JOGOS DE SEDUÇÃO

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

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CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle para fora da igreja. Os mineiros tinham decidido que o seu engenheiro ia decididamente entrar naquele poço hoje, e Deus ajudasse o capataz que tentasse impedi-lo. As crianças afastaram-se a correr, mas muitas das mulheres ficaram na igreja. As atenções voltaram-se para Rose enquanto dobrava o casaco de Kyle. Por fim, uma mulher de meia-idade, com um vestido simples e um lenço de algodão branco, aproximou-se dela.
- Estarão fora até à noite, provavelmente. Vamos mandar um dos miúdos chamar a sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para o Kyle e regressar a pé. Agradecia que alguém o dissesse ao cocheiro, para ele poder tratar dos cavalos da melhor maneira.
A mulher chamou um rapazinho de cerca de seis anos e mandou o recado por ele. Depois deu uma boa olhadela ao conjunto de Rose.
- Deve estar quentinha com esse fato, portanto ele não ralhará connosco por a termos deixado ir a pé. Está toda forrada a pêlo, a capa?
Rose levantou a ponta da capa e mostrou o forro.
- Tirei-o de uma capa mais velha e mandei aplicar aqui. Algumas das outras mulheres aproximaram-se um pouco para
ouvir a conversa e olhar para a capa. Uma delas estendeu a mão para acariciar o pêlo.
- Não sabia que as senhoras também faziam isso. Aproveitar saias e coisas do género.
- Há muitas senhoras que o fazem. Só que não dizem a ninguém.
As mulheres riram-se disso. O conjunto estava agora a ser observado por um número maior.
Rose deixou-se ficar um pouco na conversa. As mulheres de Teeslow eram muito parecidas com as mulheres de Londres, ou com as mulheres em qualquer lado. Queriam estar a par das últimas modas, apesar de não as poderem comprar, e saber os mexericos sobre a alta sociedade.
Quando saiu e começou a caminhar em direcção a casa de Harold, a primeira mulher, que se chamava Ellie, aproximou-se e caminhou ao lado dela.
- Acompanho-a, se não se importar. Estava a pensar em ir visitar a Prudence, de qualquer maneira. Há alguns dias que não a vejo na aldeia. Somos velhas amigas. Morávamos ao lado uma da outra quando éramos pequenas.
Rose ficou contente com a companhia. Quando saíam de Teeslow, Ellie falou de novo:
- Ela ficou surpreendida com o casamento do Kyle, a Prudence. E preocupada, também. Disse-mo, mas não fez comentários com mais ninguém.
- Espero que não continue preocupada, agora que me conheceu.
- Não era consigo que ela estava preocupada. - O lenço branco de Ellie baloiçava ao ritmo dos seus passos. - Ela quer o melhor para o Kyle, claro. Compreendeu que casar consigo podia ser bom para o futuro dele.
- Então qual era a preocupação?
Ellie franziu a testa, como se estivesse a tentar decidir como responder.
- Ao princípio, eu não sabia. Depois os rumores chegaram à aldeia. Sobre si e o Norbury.
Rose sentiu o coração apertado. Toda a aldeia sabia. Podiam estar interessados nela como a senhora que casara com Kyle, mas estavam também curiosos em ver a prostituta de Norbury.
Será que alguém diria alguma coisa a Kyle, mesmo enquanto ele tentava ajudar? Haveria algum homem, que não estivesse satisfeito
com o compromisso, que lhe atiraria um comentário alusivo ao passado dela?
Nesse momento, Rose lamentou mais do que nunca a sua loucura com Norbury, enquanto caminhava ao lado da simples e honesta Ellie por aquela rua tantas vezes percorrida por pessoas que Kyle conhecia desde que nascera.
- Não pensei que essa história tivesse chegado a Teeslow disse. - Não pensei que a minha presença hoje ao lado dele o embaraçaria. Estou arrependida por não lhe ter dado ouvidos quando me pediu que voltasse para casa da tia Prudence.
- Ele casou consigo, não casou? Não deve sentir-se assim tão embaraçado. Quanto ao facto de a história ter chegado aqui, bom, começou a correr depois de o filho do conde o ter vindo visitar, há algumas semanas. Toda a gente achou que era uma coincidência curiosa. Não somos estúpidos e sabemos que há uma inimizade antiga entre os dois, e alguns de nós sabem porquê.
- Refere-se à sova que ele deu ao Norbury quando eram novos? Sim, percebo que isso possa ter deixado algum azedume entre ambos. - E Norbury parecia ainda ser um rapaz, a espalhar histórias para se vingar daquele que lhe batera.
Ellie olhou para ela com expressão estranha.
- Não foi a sova, propriamente dita. Mesmo que o Kyle tivesse perdido essa luta, teria ganhado. Provou que há coisas que ninguém deve fazer, seja qual for a sua posição. Que há certo e errado para todos e isso não muda lá por se ter nascido num solar. Imagino que deve ter sido humilhante alguém que lhe era inferior ter de o recordar de tal coisa. Duas vezes, pelo que ouvi.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher? Estavam no cruzamento do caminho que levava a casa do tio
Harold. Ellie olhou nessa direcção, como se conseguisse ver as pessoas que lá viviam.
- Ele não lhe contou por que razão atacou o filho de um conde e os outros rapazes? De certa forma, não estou surpreendida. Foi há tanto tempo. - Ergueu o queixo na direcção da casa. - A Pru nunca fala disso, como se o silêncio pudesse apagar a realidade. Mas falou, em tempos, comigo e com algumas pessoas. Para que soubéssemos o que teremos por perto quando o conde morrer e o seu filho
ficar com Kirtonlow Hall. Digamos apenas que o filho não é o pai e não é muito bom para as mulheres. Nunca foi.
Subiram o caminho juntas. Prudence ficou encantada por ver a sua velha amiga. Rose deixou-as a conversar na cozinha e subiu para pendurar o casaco de Kyle.
Ellie não fora muito clara na sua condenação de Norbury, mas dissera o suficiente para deixar Rose perturbada. Parecia que Kyle tinha tendência para desafiar aquilo que Norbury entendia serem os seus direitos e prerrogativas. De certa forma, estava a fazê-lo de novo hoje, ao investigar aquele túnel.
Mas isso era o menos. Segundo Ellie, apenas algumas pessoas conheciam a verdadeira razão por que Kyle batera a Norbury, tantos anos antes. E fora a tia Prudence que lhes contara.
O que significava que a tia Prudence era o motivo.
Kyle arrastou-se para fora da carruagem. Estendeu os braços para o céu da noite e esticou o corpo.
Tinha-se esquecido de como o túnel era baixo. Até homens mais baixos do que ele tinham de se curvar para andar lá dentro. Passara as últimas cinco horas a torcer o corpo em posições pouco naturais para examinar aquelas rochas.
Estava grato por Rose ter deixado a carruagem, mas mal se atrevera a mexer-se dentro dela. Tinha a camisa, o cabelo, tudo coberto de terra. Terra e pó preto. Mesmo ao luar, conseguia ver as grandes manchas nos braços.
A casa parecia estar às escuras. Toda a gente tinha ido dormir. E era melhor. Não queria que Rose o visse assim. Mandá-lo para fazer uma boa acção era uma coisa. Recebê-lo de volta a parecer o mineiro que nascera era outra.
Havia luz na cozinha, delineando algumas formas nas divisões da frente. As brasas na lareira iluminavam debilmente a sala. Estava uma figura enrolada na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose estava a dormir, de camisa de noite e enrolada num grande xaile, com as pernas dobradas debaixo do corpo e os pés descalços rosados do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado o cabelo até parecer um rio dourado
e brilhante. Os seus lábios e pestanas pareciam muito escuros sob a luz fraca.
Ele precisava de comida e água quente e estava tão cansado que mal se tinha de pé, mas ficou a olhar para ela, deslumbrado e espantado. Como ela o deixava sempre. Como o deixaria sempre. Não é para os da tua laia, rapaz.
O efeito que Rose tinha sobre ele era agora ainda mais forte. Já não era apenas um rosto deslumbrante visto num teatro ou vislumbrado sob o luar. Nem sequer era apenas a mulher apaixonada que ele possuíra com uma satisfação devastadora. Estava a começar a conhecê-la tão bem, tão profundamente, que esse conhecimento dela alterava o conhecimento que tinha de si próprio.
O xaile escorregara do ombro que estava voltado para o fogo. Cuidadosamente, voltou a puxá-lo para cima, para ela não ter frio. Deixou-a a dormir e entrou na cozinha.
O banho que Rose lhe prometera aguardava-o, com a banheira de metal meio cheia de água. Na braseira, havia mais baldes de água a aquecer. Em cima da mesa estava uma tigela de barro virada ao contrário em cima de um prato.
Levantou-a e viu carne fria, queijo e pão. Tirou um copo da despensa e serviu-se do pequeno barril de cerveja que o tio Harold ali guardava. Levou-o para a mesa e sentou-se para comer.
A comida ajudou, mas estar ali sentado só o tornava mais consciente das dores no corpo. Levantou-se e despejou um dos baldes na banheira. Quando pegava noutro, viu uma manga branca ao seu lado e uma mão feminina pegou no terceiro.
Rose despejou o balde e virou-se para ele. Kyle viu o seu olhar percorrer as roupas sujas de terra e pó. Ela era demasiado bem-educada para mostrar desagrado, mas não tão experiente que conseguisse esconder completamente a sua surpresa.
- Eu tinha razão. Precisas mesmo deste banho. - Pegou noutro balde.
Ele tirou-lho das mãos.
- Eu trato disso.
- Já preparei muitos banhos na vida, Kyle.
- Agora que és casada comigo não devias ter de executar esse tipo de tarefas.
- Não me lembro dessa parte do acordo. Se a tia Prudence permitisse uma criada na casa dela, não me importaria de abdicar deste dever, mas, assim sendo, o melhor que tens a fazer é despir essas roupas e entrar para a banheira.
Não esperou que ele concordasse e tratou de pegar no resto dos baldes e de os despejar. Ele despiu-se, entrou na banheira e sentou-se na água fumegante.
Rose pegou na camisa e nas calças.
- Achas que é possível limpá-las?
- Nunca mais ficarão imaculadas, se é isso que queres dizer. Põe-as lá fora, ao pé da porta das traseiras. A tia Pru saberá o que fazer.
Rose assim fez, depois ajoelhou-se ao lado dele e começou a esfregar-lhe as costas. A naturalidade com que o fez encantou-o, pela calma e familiaridade do acto. Provavelmente fizera-o quando era mais nova, antes de os irmãos se tornarem banqueiros. Tinham passado alguns anos maus, nessa altura. Provavelmente Rose tinha muita experiência a limpar homens.
Não havia qualquer insinuação de sedução na forma como o banho progrediu. Sem dúvida que ela olhara para ele, coberto de pó de carvão, com os olhos vermelhos da luz fraca e do ar abafado, e perdera todo o interesse nisso. Ou percebera que ele, pelo menos, o tinha perdido.
- Conseguiste fazer muita coisa hoje? Achas que poderás ajudá-los? - perguntou.
- Não fizemos muito hoje, mas foi suficiente para saber o que tenho de fazer amanhã. E no dia seguinte. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao capataz que, se não mas emprestasse, iria falar com o conde e voltaria com uma autorização escrita.
Mencionara o nome do conde tantas vezes que o homem teria dado voltas na campa se não estivesse ainda vivo. Estava a aproveitar ao máximo a relação entre ambos, agora que ela entrava nos seus últimos dias. Esperava e confiava que Cottington compreenderia, se alguma vez isso lhe chegasse aos ouvidos.
Rose enxaguou o pano, ensaboou-o de novo e estendeu-lho para ele o usar. Sentou-se ao lado da banheira de pernas cruzadas.
- Hoje, depois de saíres, conheci algumas das mulheres da aldeia. Conversámos durante algum tempo.
- Sobre o quê?
Ela encolheu os ombros.
- Coisas de mulheres.
Molhou o dedo do pé numa pequena poça de água nas tábuas gastas do chão e traçou um desenho de água no chão.
- Todos sabem. Sobre mim. O Norbury fez questão de que todos soubessem que tinhas casado com a puta dele.
- Quem te disse isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância da tia Pru. Acompanhou-me até casa e elas estiveram cerca de uma hora a conversar.
- Não foi simpático da parte dela dizer-te isso. No entanto, não és a primeira mulher a cometer um erro com um homem, Rose. Se bem me lembro, a Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses depois de casar. E era um grande bebé.
Ela sorriu enquanto elaborava o seu desenho de água.
- És muito querido por tentar fazer com que eu me sinta menos embaraçada a esse respeito. A Ellie disse-me outra coisa interessante. Disse-me que, quando eras rapaz e deste uma sova ao Norbury, foi por causa da forma como ele tratou uma mulher. E acho que essa mulher era a tua tia, por aquilo que a Ellie disse.
- É verdade. Ele e alguns dos seus amigos estavam a meter-se com ela, a troçar dela, como os rapazes maus fazem, às vezes. Continuou a lavar-se. - Que mais te disse a Ellie?
- Muitas coisas boas a teu respeito. Foi um pouco misteriosa em relação a esse episódio. Disse que poucas pessoas sabiam a verdade, e apenas porque a tia Prudence lhes contara. Que a tia Prudence disse que era para que soubessem como o Norbury era e o que teriam de esperar dele no futuro, quando herdasse.
Kyle continuou concentrado no pano e no sabão. Tentou ouvir sons provenientes do piso de cima, do quarto onde a tia Pru e o tio Harold dormiam. Calculava que a tia Pru tinha mantido o silêncio sobre esse dia durante muito tempo. Anos, talvez. E julgava saber aquilo que ela finalmente confidenciara a Ellie e a outras pessoas, e porquê.
Sentia-se agora menos cansado. A comida e o banho tinham-Ihe devolvido alguma energia. O calor da água servira como um longo sono.
A raiva também o revitalizou. Raiva pela sua própria ignorância durante todos estes anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, duvidava que tivesse visto as dádivas do conde como qualquer outra coisa que não um suborno pelo seu silêncio.
Rose levantou-se.
- É muito tarde. Amanhã terás outro dia duro. Devias dormir
um pouco.
Aproximou-se da lareira. A luz das chamas brilhou através da sua camisa de dormir, revelando a silhueta sedutora do seu corpo. Kyle viu as curvas das suas nádegas e seios a moverem-se enquanto pegava numa grande toalha que estava a aquecer na pedra da lareira.
Trouxe-lhe a toalha e ele levantou-se e limpou-se. Ela observou-o, tal como o observara na noite anterior, sentada na cama e determinada a ter uma conversa que poderia ter sido evitada uma vida inteira.
Os olhos dela percorreram-lhe o corpo.
- Parece que recuperaste dos esforços do dia. Decididamente.
- Estendeu a mão e acariciou levemente a evidência daquilo que dizia. - É espantoso o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Suponho que consegues subir as escadas?
- Para o diabo com isso. - Atirou a toalha para o lado e agarrou-a. O desejo crepitou através dele numa fúria e cobriu-lhe a boca com um beijo violento. Era a raiva a levar a melhor, embora não fosse dirigida contra ela.
Precisava de a possuir. Já. Precisava de mergulhar no seu calor e na sua suavidade. Virou-a para a parede e levantou-lhe a camisa, expondo-lhe as pernas e traseiro.
Beijou-lhe o pescoço e a nuca e aproximou-se, encostando-se a ela. Enfiou o membro entre as suas pernas, até estar aninhado nas pregas húmidas. Senti-la apenas o deixou mais duro, mais impaciente. Pressionou, acariciando-a com a pressão, e abraçou-a, tocando-lhe nos seios. Ela começou a acariciá-lo também, com um baloiçar subtil das ancas.
A loucura invadiu-o. Fogo e desejo apoderaram-se do seu ser. Virou-a, levantou-a e penetrou-a profundamente. Ela enrolou as pernas à volta das ancas de Kyle, agarrou-se a ele e absorveu aquela fome insaciável.
Kyle estava a escrever a terceira cópia do seu relatório. Eram quatro no total, longas, detalhadas e completas, com desenhos para mostrar como o túnel podia ser tornado seguro. Tencionava dar uma cópia ao capataz e outra aos trabalhadores, mas enviaria também uma a Cottington e aos proprietários. O original voltaria para Londres com ele, para poder ser copiado novamente se achasse que era necessário.
Rose estava a dormir no quarto. Olhou para o relógio de bolso. O dia nasceria em breve. Entregaria aqueles documentos e ele e Rose partiriam para Londres ao meio-dia.
Ao longo de cinco dias descera àquela mina, passando lá tempo suficiente para que o local se tornasse de novo familiar. Hoje, nem sequer precisaria de candeeiros para encontrar o caminho lá dentro. E, enquanto estudava as rachas e os apoios perto do túnel, o som de picaretas a desbastarem terra e vidas ecoava-lhe nos ouvidos.
- Estiveste acordado a noite toda, Kyle? Isso não é saudável. Olhou para a porta e viu a tia Prudence, que estava a colocar
um avental.
- Estou quase a acabar. Posso dormir na carruagem.
Ela aproximou-se e parou junto dele, olhando para as pilhas de papéis.
- Obrigada por fazeres isto. Todos te estão gratos. E eu também.
Pegou num balde e saiu para tirar água do poço que ele mandara abrir no quintal. Kyle acabou a última página e pousou a caneta.
A tia Pru regressou e começou a mexer nas panelas perto da braseira. Já não precisava de se levantar tão cedo, mas os hábitos de uma vida inteira não eram fáceis de pôr de lado.
- Tia Pru, antes de partir quero falar consigo sobre uma coisa. Uma vez que estamos sozinhos, esta seria uma boa altura.
Ela parou com a mão na asa de uma panela. Talvez tivesse sido o tom de voz de Kyle. Talvez simplesmente soubesse, como algumas pessoas conseguem sentir a aproximação de uma tempestade de Verão.
Depois retomou o trabalho.
- Claro, Kyle.
- A Ellie disse à Rose que explicou a algumas das mulheres a verdade sobre o Norbury. Gostaria de saber também essa verdade.
- Eu diria que sabes a verdade sobre ele melhor do que a maioria das pessoas.
- Mas não melhor do que a tia Pru. Tenho quase a certeza disso.
Ela ajoelhou-se e acendeu o fogo. Estava tão impassível que era como se não o tivesse ouvido.
- O que contou à Ellie e a essas outras mulheres, tia Pru?
- Se fosse coisa para os teus ouvidos, ter-te-ia contado também - retorquiu ela, corada. - A Ellie é uma velha mexeriqueira e vai ter de me ouvir quando a encontrar. Dizer à tua mulher.
- Ela disse muito pouco à Rose, e apenas para a tranquilizar sobre o que a aldeia pensava da história dela com o Norbury. Outra mulher teria aceitado essa amabilidade sem pensar mais nisso, mas a Rose é. curiosa. - Estranhamente curiosa. Andara a meter o nariz nos detalhes da vida dele aqui.
- Disse que ele é um canalha e que as mulheres não podem confiar nele. Nada que tu ou a Rose não saibam já - disse Prudence em tom definitivo.
Kyle não a censurava por não querer falar no assunto. Pensou em acabar a conversa por ali. Deixá-la em paz.
Aproximou-se da lareira. Encostou-se à parede e observou-a enquanto trabalhava. Ela lançou-lhe um olhar rápido mas depressa virou o rosto para a água que colocara a aquecer.
- Tenho andado a pensar naquele dia, tia Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos dele, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho andado a pensar nos gritos e risos que me conduziram até lá e naquilo que vi. Eu era uma criança e hoje penso se não terei compreendido mal. Talvez quisesse compreender mal.
Ela fitou-o com olhos tristes. Olhos zangados. Olhou para cima, na direcção do quarto onde Harold dormia. Depois, de repente, levantou-se e saiu para o quintal.
Kyle seguiu-a. Ela caminhou por entre as árvores de fruto despidas, até ao outro lado do pomar. Depois virou-se para ele de braços cruzados.
- Porque estás a falar nisto agora, ao fim de tantos anos?
- Não sei. Talvez o que aconteceu com a Rose me tenha feito pensar.
- Era melhor se não pensasses, Kyle. Foi há muito tempo. O pai estará morto em breve e terás de lidar com o filho.
- Deixe-me ser eu a preocupar-me com isso. Estou certo? Cheguei demasiado tarde, tia Pru?
- De que adianta saber? Não há nada a fazer agora.
- Saberei com quem estou a lidar no futuro. Se quebrou o silêncio para que as mulheres o soubessem, pode compreender por que razão eu também preciso de saber.
Ela olhou para as árvores de fruto que começavam a ganhar forma sob a luz cinzenta da madrugada. Acenou com a cabeça de forma quase imperceptível.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu-lhe, mas os amigos tiveram medo de mentir também. Por isso o conde sabia. Ofereceu-me bom dinheiro, mas eu recusei. Disse-lhe que veria o filho dele no banco dos réus e que, mesmo que ele ficasse livre, todo o mundo saberia que era apenas um porco nascido em berço de ouro.
- Quando é que ele fez essa oferta?
- No dia antes de te mandar chamar. Naquele dia, enquanto te lavava, eu sabia como as coisas iam ser. Sabia que ele pensara noutra maneira de me convencer a manter o silêncio. Nunca disse uma palavra a esse respeito. Nunca ameaçou mandar-te de novo para a mina se eu falasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde vira aquela mulher furiosa, reconhecera a inteligência dela e percebera que nunca teria de mencionar os seus motivos para que ela percebesse a generosidade das suas condições.
Então havia provavelmente mais uma razão, para além daquelas que o conde lhe dera. Por outro lado, Cottington não era estúpido. Sabia que, por alguns crimes, não havia recompensa possível, não havia restituição possível.
- Não me importo - disse ela. - Ele nunca teria sido condenado, claro. Foi melhor assim, que tu te tenhas tornado o homem que és. Imagino que o Norbury te vê em Londres e sabe que só lá estás por causa desse dia. Vê que o pai fez de um rapaz de Teeslow um homem melhor do que ele próprio alguma vez será. Sinto alguma
satisfação nisso. Muito mais do que se lhe tivesse apontado o dedo em tribunal, é o que digo a mim própria.
- Lamento que nunca tenha tido a satisfação de lhe apontar o dedo em tribunal, tia Pru.
- Não é uma coisa fácil para uma mulher. Há sempre quem diga que ela estava a pedi-las, não há? Era o que ele diria e muitos teriam acreditado. As mulheres sabem como é quando acusam um homem de uma coisa dessas. - Ergueu a mão e deu-lhe uma palmadinha no rosto, como se fosse ainda um rapaz. - Portanto agora já sabes, embora não te vá servir de nada. Parece-me a mim que era melhor que tivesses ficado na dúvida.
- O tio Harold sabe?
- Nunca me perguntou directamente e eu nunca lho disse. Mas ele calculou; percebi-o logo. Demorámos alguns anos a pôr o assunto para trás das costas. Se eu lhe tivesse dito ele teria de matar o Norbury, não era? E teria sido enforcado por isso. Portanto, decidi calar-me. Mas agora, com o conde a morrer. o Norbury vai estar mais vezes por estes lados. E ele não mudou, como sabes. Portanto contei a algumas das mulheres mais velhas da aldeia, para que possam estar atentas e avisar as mais novas.
Começou a caminhar em direcção à casa e ele acompanhou-a.
- Como eu sei? Se se refere à Rose, não foi a mesma coisa.
- Por aquilo que ouvi, foi suficientemente parecido, só que tu intervieste a tempo. - A tia Pru abanou a cabeça. - Pobrezinha, acreditar que ele a amava para depois descobrir que ele só queria uma coisa. E quando recusa, o que acontece? Ele tenta vendê-la a outro, que apenas a teria possuído contra a sua vontade. São todos iguais, a maioria destes homens nascidos em berço de ouro.
Kyle quase a corrigiu. Contra todas as expectativas, por espantoso que parecesse, a encenação de Easterbrook e o novo desfecho daquele leilão tinham chegado a Teeslow e circulado na aldeia depois da versão de Norbury.
Kyle seguiu a tia para a cozinha. Tivera dúvidas e agora sabia. Se tudo corresse bem, o impulso de encontrar Norbury e matá-lo passaria dentro de um dia ou dois.
CAPÍTULO 17
Aceitaram todos. O jantar promete ser um sucesso. - Alexia partilhou a boa notícia com Rose ao saírem da casa dela em Hill Street. - Ficarás perfeita naquele vestido de gerânios que mandaste fazer. Estamos a caminho de mais uma vitória, pequena mas importante.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. De mão na mão, caminharam em direcção a Hyde Park.
A perspectiva de mais um avanço social não era suficiente para elevar o ânimo de Rose. Já estava em Londres há três dias. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O receio de que a nova paixão no seu casamento pudesse terminar com o regresso à cidade não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as explorações que ambos tinham ido ter com o outro e tinham chocado na escuridão do quarto de vestir.
Ela nunca mais conseguiria abrir o roupeiro sem se lembrar de como ele a fizera apoiar-se nele, nua e de pernas abertas, enquanto ele cobria o seu corpo com o dele e a possuía por trás.
Infelizmente, essa manhã uma nuvem ensombrara o seu estado de espírito alegre e saciado. Chegara uma carta do advogado da família, pedindo-lhe uma reunião por causa da propriedade de Oxfordshire.
Ela não pensara nem por uma vez em Timothy enquanto estivera no Norte. Havia uma certa liberdade na ausência de preocupação
com o irmão. Agora as exigências dele pesavam de novo na sua consciência.
A iminência da reunião com o advogado estava a deixá-la perturbada. Convencera Alexia a ir dar aquele passeio, em parte, para a adiar pelo menos durante algumas horas.
- Estiveram no Norte mais tempo do que eu esperava - disse Alexia. - Tive medo de que Mrs. Vaughn achasse que eu decidira não ir adiante com o jantar ou que decidira não a convidar. Um mal-entendido desses teria sido inconveniente. Está tudo bem com a família do teu marido ?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São ambos pessoas boas e honestas. Quero acreditar que eles também pensam menos mal de mim agora.
- Ninguém que te conheça pode pensar mal de ti. É por isso que os nossos planos estão a progredir tão bem. E há evidências de que a interpretação revista daquele leilão escandaloso já corre de boca em boca. Uma interpretação em que tu és uma donzela inocente e o Norbury o pior dos canalhas. Confesso que não me senti obrigada a desenganar ninguém desta outra versão dos acontecimentos.
- Normalmente as pessoas têm tendência para acreditar no pior, e não para tentarem arranjar desculpas para uma mulher envolvida num tal escândalo.
- O mundo conhece o visconde e não gosta muito dele. Não é um homem muito agradável e há anos que correm rumores sobre os seus excessos. Tu, por outro lado, tens levado uma vida exemplar. Deixemos o erro vingar. O comportamento do Norbury para contigo foi suficientemente abjecto para merecer este mal-entendido.
Entraram no parque, agora despido de folhas e de pessoas. Havia um ou outro transeunte nos caminhos, mas o tempo, a altura do ano e a hora do dia garantiam uma privacidade quase total.
- Agradeço muito tudo o que estás a fazer por mim, Alexia. No entanto, gostava que o Kyle também pudesse estar presente nesta festa. Ele diz que não devemos travar uma guerra em duas frentes ao mesmo tempo. Mas acho estranho que Mrs. Vaughn e o marido estejam dispostos a ignorar o facto de eu ter sido rotulada de prostituta, mas não o facto de o meu marido ter nascido numa aldeia de mineiros.
- O facto de estares indignada com essa injustiça abona em favor do teu casamento. Mostra que começa a existir uma simpatia mútua.
Rose duvidava que Alexia tivesse a mais pequena ideia. Queria falar à prima do homem com quem casara. Procurou as palavras para descrever como se sentia segura, viva e indefesa nos braços dele.
Pelo menos, devia mandar o resto do mundo para o diabo e anunciar que não compareceria em qualquer festa ou jantar do qual ele tivesse sido deliberadamente excluído.
Alexia falou primeiro.
- Agora, em relação à Irene, tenho uma proposta a fazer. Bastante espantosa.
Quando ouviu falar em Irene, as palavras que se estavam a formar morreram-lhe nos lábios. Aquela guerra era mais pela irmã do que por ela própria. Até o seu casamento fora celebrado acima de tudo a pensar em Irene.
- Acho que esta estação ainda será demasiado cedo para ela disse Rose. - Se pensas o contrário, estás a ser demasiado optimista.
- Ouve-me antes de pôr a ideia de lado. Estou consciente desde o princípio de que este bebé será um obstáculo, tão seguramente como o teu escândalo. - Alexia pousou instintivamente a mão sobre o ventre inchado por baixo da capa azul-céu. - Falei nisso quando o Hayden e eu estávamos a jantar em casa do irmão dele, há duas semanas. O Hayden é sensível em relação à situação complicada da Irene, mas declarou com bastante firmeza que eu não posso assumir fardos maiores do que aqueles que ele julga que as minhas pobres forças conseguirão suportar.
- O teu marido tem razão. A altura da chegada do teu filho é o argumento mais forte. A Irene pode esperar mais um ano.
- Parece ser esse o consenso geral e, depois desse jantar, eu própria fiquei convencida. Imagina a minha surpresa quando a Henrietta veio ter comigo, há alguns dias, e me propôs organizar ela um baile em Abril e apresentar a Irene à sociedade nesse evento.
- A Henrietta? Estou espantada.
- E eu também. Ela surpreende-me cada vez mais. Se um amante pode causar tal transformação numa mulher, rezo para que todas as bruxas da sociedade arranjem um antes de a estação começar.
- Talvez a nossa estratégia devesse ser arranjar-lhes amantes. A felicidade nessa área da vida tem tendência a influenciar a forma como vemos tudo o resto.
Alexia ergueu uma sobrancelha.
- E como vês tudo o resto ultimamente, Rose? Propuseste este passeio no parque apesar do frio e das nuvens. Talvez não tenhas reparado no tempo esta manhã, mas visto apenas um dia bonito apesar do frio.
Rose sentiu-se corar e Alexia riu-se, inclinou-se para ela e beijou-a na face.
- Uma vez que me esforcei por te persuadir a aceitar esta união, estou aliviada por pelo menos uma parte dela estar a correr bem. Acho que nada poderia ser mais desagradável do que ver a cama de casal apenas como um local para cumprir um dever.
Não era um dever. Nunca fora apenas isso. Kyle sempre fora um amante atencioso, que sabia que o casamento seria mais agradável se ela também sentisse prazer.
E agora, desde aquela noite em Teeslow, o tempo que passavam juntos na cama era o melhor. Em certos aspectos, era a única altura em que ela se sentia completamente à vontade com ele, e certa de que não cometera um erro ao casar.
Podia ser suficiente. As palavras dele ao seu ouvido, a respiração dele no seu cabelo e nos seus seios, até a forma hábil como ele movia o seu corpo e lhe exigia rendições que ela nunca questionava. Só o prazer bastaria para que fosse suficiente, mas as marcas em brasa que ele deixava no seu espírito tornavam-na mais dele e menos de si própria de noite para noite.
Tal como uma boa refeição, fora assim que ele descrevera o prazer carnal naquele dia em que ela aceitara o seu pedido de casamento. E andavam a jantar muito bem ultimamente. O mais provável era que, para ele, continuasse a ser apenas isso. Uma ementa variada com muitas delícias.
Então por que motivo ela estava a sentir-se cada vez menos prática, naquele casamento prático? Kyle provavelmente diria que ela estava a cometer o mesmo erro no prazer que cometera na ausência dele, confundindo o lado físico da vida com o lado emocional. A nova familiaridade derivada dessas explorações era inevitável,
provavelmente. Os homens deviam reagir da mesma forma com as artistas da sensualidade nos bordéis.
Fosse como fosse, estavam a formar-se laços que complicavam certas coisas. Como a reunião que teria hoje com o advogado.
- Alexia, alguma vez enganaste o Hayden? Alguma vez lhe desobedeceste?
Alexia continuou a caminhar enquanto pensava na pergunta.
- Uma ou duas vezes. Disse a mim própria que não estava a fazê-lo, mas claro que era apenas para ter uma justificação para o fazer. - Sorriu como se uma recordação privada lhe tivesse passado pela cabeça. - Ele apanhou-me no pior engano. Duvido que tente enganá-lo outra vez tão cedo, ou que precise de o fazer.
- Sentiste-te culpada?
- Ligeiramente, sim. No entanto, há coisas que os maridos não precisam de saber. Cometi alguns pecados de omissão no registo da honestidade total, porque a questão era importante para mim de uma maneira que ele nunca teria compreendido na altura. - Pensou na sua própria resposta. - Sei que o compreenderia agora, mas esse tipo de compreensão demora algum tempo a alcançar, mesmo num casamento celebrado nas melhores das circunstâncias, o que não foi o caso do nosso.
Tipicamente de Alexia, era uma resposta franca e calculada a uma pergunta difícil e importuna. Rose adivinhou o que a prima não lhe explicara. Essas decisões importantes tinham sido em relação à própria Rose e a Irene e Tim, e à determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Porque perguntas? As circunstâncias deixaram-me sozinha quando fiz a minha escolha, mas tu não precisas de o estar.
Rose pensou em confiar em Alexia. Ela seria discreta. Nem sequer contaria a Hayden, se lhe pedisse que guardasse segredo.
No entanto, Alexia não vira com bons olhos quando soubera que Tim precisava de ajuda. Opusera-se firmemente à ideia de Rose se juntar a ele.
Tim estava morto para Alexia. Ela passara pelo pior em primeira mão. Vira Tim fugir e deixar Hayden a arriscar a sua própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth e da sua reputação. E Alexia provavelmente sabia há muito tempo a quantidade de dinheiro que fora roubada.
Alexia nunca aprovaria a pequena fraude que Rose enfrentava agora. Não em beneficio de Tim. Nem seria justo perturbá-la de novo com as consequências sórdidas do mau comportamento dos Longworth.
- Gosto muito de ti, Alexia, e agradeço a oferta de um ouvido amigo. Mas temo que as circunstâncias me obriguem também a mini a decidir sozinha.
Mr. Yardley conseguia transmitir um profissionalismo extremo em todos os aspectos possíveis. Recebeu Rose no seu escritório de advocacia perto de Lincolns Inn com o tipo de palavras suaves e educadas apropriadas para um encontro de negócios. Ofereceu-lhe uma cadeira e sentou-se em frente dela com uma pilha de documentos. Sorriu para a pôr à vontade. Numa mesa perto estava um secretário, calado e discreto, com a caneta preparada para tomar notas.
As pontas do colarinho alto de Mr. Yardley faziam pressão nos maxilares rechonchudos e a gravata apertava o queixo duplo. O cabelo muito bem cortado não se prestava a grandes penteados porque estava a ficar demasiado ralo. Era um advogado experiente que servira a família Longworth durante muito tempo, primeiro o pai e depois os filhos, e não tinha trabalho que se visse com eles há já mais de um ano.
Rose aguardou que ele abordasse o assunto que a trouxera ali. O advogado parecia cauteloso. Sem dúvida que a sua reputação também fora manchada pela ruína espectacular de Timothy. Estar agora a trabalhar para ele podia ser tão desagradável que Mr. Yardley concluíra que não queria ter qualquer participação na alienação da propriedade. A reunião podia ser uma recusa e uma despedida.
Ele pigarreou.
- Mrs. Bradwell, estive a estudar a lei e cheguei à conclusão de que a procuração do seu irmão tem valor legal. com base na carta dele, posso vender a propriedade em seu nome.
- São boas notícias, senhor. Quando podemos fazê-lo? Quanto tempo demorará a venda?
Mr. Yardley pigarreou de novo.
- Há uma complicação. Lamento dizer-lhe que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, uma expressão interrogativa estampada no rosto.
- Está a confundir-me. Por favor, explique-me por que motivo não pode ser vendida.
- Talvez se eu me reunisse com o seu marido.
- A propriedade não é minha, mas sim do meu irmão, e o meu marido não tem qualquer autoridade na matéria. Julgo que sou capaz de entender a situação se se esforçar por a tornar compreensível.
O advogado franziu a boca. Mr. Yardley, ao que parecia, não se sentia à vontade a explicar questões financeiras a mulheres.
- Mrs. Bradwell, quando o seu irmão fugiu às suas dívidas, a propriedade ficou vulnerável aos credores - colocou uma ênfase particular na palavra dívidas, indicando que ele era uma das pessoas que sabia dos crimes por trás dessas dívidas. - Lord Hayden Rothwell, na altura, aplicou um direito de retenção sobre a propriedade. Tenho aqui o documento. Foi apenas esse direito de retenção que impediu os outros credores de ficarem com ela para pagamento das suas perdas.
- Eu sabia que Lord Hayden tinha feito qualquer coisa para proteger a propriedade. Estou-lhe muito grata por isso. Mas não sabia que o direito de retenção ainda estava em vigor.
Devia ter antecipado aquilo. Não podia culpar Lord Hayden por a sua reivindicação ainda se manter, mesmo depois de todos os outros credores terem sido pagos. Afinal de contas, fora ele que lhes pagara. Mesmo que ficasse com a propriedade em troca, ela não podia colocar objecções.
- Na verdade, o direito de retenção foi removido em finais do Verão passado.
- Se esse direito foi removido e a propriedade é livre e a procuração tem valor, o que impede a venda?
- Outro direito de retenção.
- Então havia dois? Não acredito que Lord Hayden tenha retirado o seu, que pretendia proteger a nossa propriedade, deixando-a vulnerável a um segundo credor.
- Este segundo não existia quando Lord Hayden removeu o dele. É mais recente. Foi registado sobre a propriedade há poucos
meses. ?
- Isso é muito alarmante, Mr. Yardley. Porque não me informou do facto quando aconteceu?
- Eu trabalhava para o seu irmão, que parecia já não precisar dos meus serviços, tendo em conta os desenvolvimentos do último ano em relação à sua fortuna, as suas dívidas e o facto de se encontrar a residir no estrangeiro. Em suma, minha senhora, parti do princípio de que a nossa relação terminara, portanto deixei de tratar de questões relacionadas com a sua família. Quando me contactou relativamente a esta procuração, surpreendeu-me tanto como eu estou a surpreendê-la hoje.
Rose levantou-se e percorreu o escritório. A janela dava para a estrada, onde uma chuva fina caía sobre pessoas e carruagens. O seu cocheiro estava a arrancar com a carruagem, para que os dois cavalos que a puxavam não arrefecessem.
Um novo direito de retenção. Parecia que Lord Hayden se esquecera de pagar uma ou duas dessas dívidas. Encontrar todas as vítimas devia ter sido impossível, no meio da teia emaranhada tecida pela fraude.
- Até onde foi esta reivindicação sobre a propriedade, Mr. Yardley?
As terras podiam ser-lhe retiradas em breve. Ela e Irene podiam perder o lar onde tinham vivido toda a sua vida. Seriam desenraiza das daquele solo tal como plantas depois da colheita. Fizera um esforço para não pensar nisso quando a venda significava ajudar Tim, mas agora as implicações apertavam-lhe o coração.
Ocorreram-lhe memórias, dezenas de memórias, de épocas felizes e tristes. Do seu irmão mais velho, Ben, a anunciar que ia comprar sociedade num banco onde trabalharia, descendo ao nível do mundo apenas para que todos pudessem viver melhor. Ou de Tim, em criança, a trepar à macieira no jardim e a atirar-lhe frutos verdes quando ela o tentou seguir. Ou de estar deitada naquela colina e de se sentir tão perigosamente livre durante uma hora.
De Kyle a beijá-la pela primeira vez, num salto inesperado e ousado sobre as formalidades e diferenças que os separavam.
- Para além do registo do direito de retenção propriamente dito, não parece que tenham sido tomados outras medidas. O direito existe simplesmente, tal como o de Lord Hayden. No entanto, impede qualquer venda.
Ela virou-se para ele. O advogado estava de pé, bem como o seu secretário.
- Se o direito de retenção foi simplesmente registado e nada mais, talvez a pessoa que fez a reivindicação possa ser convencida a retirá-la. Como pode ver pela carta do meu irmão, a sua situação pode tornar-se séria se eu não lhe enviar estes fundos.
Mr. Yardley era demasiado bem-educado para responder, mas os seus olhos disseram tudo. Tim numa situação complicada não entristeceria ninguém a não ser os seus parentes mais próximos.
- Parece-me pouco provável que o direito de retenção seja levantado. Não é algo que uma pessoa registe por capricho.
- Mesmo assim, tenho de tentar. Compreendo que este serviço não lhe é agradável, senhor. Tentarei fazê-lo eu própria. Por favor, escreva o nome do credor. Eu escrever-lhe-ei uma carta ou pedirei a Lord Hayden que o faça em meu lugar.
Mr. Yardley hesitou. Depois olhou para o secretário e acenou. O secretário pegou na caneta, inclinou-se sobre a mesa e escreveu. Depois dobrou o papel e entregou-lho. Rose guardou-o na bolsa e saiu.
Assim que se encontrou na privacidade da carruagem, retirou de novo o papel da bolsa. Afastou a cortina para deixar entrar a luz e desdobrou o papel.
Compreendeu de imediato o constrangimento de Mr. Yardley e as suas explicações indirectas.
Olhou, estupefacta, para o nome da pessoa cujo direito de retenção interferia com a venda da propriedade.
Mr. Kyle Bradwell.
CAPITULO 18
O visitante de Kyle saiu com um acordo assinado na mão mas não muito satisfeito com as suas condições. O primeiro resultado ficara garantido assim que ele entrara pela porta. O segundo era produto de uma determinação inesperada que se apoderara de Kyle durante as negociações.
Normalmente, Kyle teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Mas hoje não vira aquele fornecedor de madeira com boa vontade. As negociações tinham-se tornado um jogo que Kyle estava determinado a vencer, não a contentar-se com um empate.
Viu a porta do escritório fechar-se. O papel que acabara de sair representava muito dinheiro. A madeira viria da Noruega. Talvez, afinal de contas, tivesse sido um empate.
Despiu o casaco e pousou-o numa cadeira. Estava a achar agora mais difícil esconder-se nas franjas do mundo em que vivia e trabalhava. Uma vitalidade nova apoderara-se dele, uma vitalidade que não o deixava ocultar o seu carácter natural.
A responsável era Rose. Sentia-se novamente ele próprio quando estava com ela. Mesmo nos seus pensamentos, nas suas reflexões e planos, construíra paredes e limitações ao longo dos últimos anos. Ao tentar esconder o facto de não pertencer àquele mundo, acabara por se esquecer de quem era.
De pé, ao lado da secretária, olhou para o papel com os termos do novo acordo. Pô-lo de lado e estudou uma folha de apontamentos
que fizera nessa manhã. Era um esboço grosseiro de ideias extraordinárias. Temerárias. Audaciosas. O tipo de ideias que lhe ocorriam incessantemente quando era mais novo. Desde aquele primeiro ano, depois de regressar de França, que não dava rédea solta a esse lado da sua personalidade.
Rose parecia gostar da pessoa que ele era. Parecia aprovar o homem híbrido criado da fusão de passado e presente.
Os apontamentos desapareceram e Kyle viu apenas Rose. Lembrou-se dessa manhã, ao nascer do dia, do seu cabelo sedoso caído sobre o braço dele e do calor dela a pulsar ao ritmo do seu coração. A beleza de Rose fascinava-o, como sempre o fascinara, mas agora não era uma mulher distante que o deixava sem fôlego. Nem sequer era a dama encantadora que abdicara da vida e do direito ao seu corpo numa tentativa de encontrar redenção.
Ocorreram-lhe mais imagens. Imagens eróticas, mas também outras em que o desejo não tinha lugar. Detalhes simples gravados no seu cérebro. A curva do rosto dela sob a luz do jardim de Oxfordshire. A sua mão a erguer um garfo. Pequenos vislumbres de beleza e graça que lhe estavam sempre a vir à cabeça. Talvez tivesse sido tão determinado com o vendedor de madeira porque, caso contrário, ter-se-ia perdido em fantasias sobre Roselyn.
Ela estava constantemente a surpreendê-lo. E não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras alterações entre eles. Kyle não esperara muito do casamento, muito menos da parte dela. E certamente que não antecipara a alegria que a companhia de Rose lhe trazia.
Hoje, ela ia visitar Alexia. Perguntou-se se já teria regressado a casa.
Se fosse ter com ela nesse preciso momento, Rose nunca o deixaria perceber se estivesse a atrapalhar os seus planos para o dia. Talvez até pusesse esses planos de lado e o atraísse de novo para o desejo ardente e satisfação avassaladora em que ele se perdia e, ao mesmo tempo, se redescobria.
Talvez.
Um som proveniente da antecâmara perturbou os seus pensamentos felizes. Dirigiu-se à porta e abriu-a.
Roselyn estava ali, a caminhar de um lado para o outro, como que convocada pelos pensamentos dele. Os seus passos ecoavam
no soalho com baques rítmicos. Ela olhou para a mesa do escrivão, depois para a porta onde ele se encontrava. Parou de andar e limitou-se a fitá-lo.
Havia qualquer coisa errada. Havia algo a afectar a postura e a inclinação de cabeça dela, algo que ecoara naqueles passos. Os olhos ardentes de Rose deixavam bem claro que a sua doce esposa estava muito, muito zangada.
- Nunca aqui tinha estado - anunciou ela, como que em resposta a um desafio que ele não tinha qualquer interesse em fazer.
- Estava na City e lembrei-me de te visitar.
- Fico contente por o teres feito. Se soubesse que tinhas curiosidade, já te teria trazido aqui antes.
- Onde está o teu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho secretário. Escrevo as minhas próprias cartas e o meu advogado certifica-se de que quaisquer contratos estão correctamente formulados.
A linha fina dos lábios dela era demasiado sardónica para se poder considerar um sorriso.
- São úteis em muitos aspectos, os advogados.
- Não queres entrar? Há aqui cadeiras.
Rose hesitou, depois permitiu que ele a introduzisse no escritório.
Andou de um lado para o outro, observando a vista das janelas e tirando as medidas à sala. O seu olhar lento e perspicaz reparou no tapete de cores quentes, nas mobílias de mogno, nas estantes altas para livros e nas gavetas grandes e pouco fundas para mapas.
- É de muito bom gosto. Como um clube masculino, imagino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada de excepcional mas ao mesmo tempo irrepreensível. Como as tuas roupas.
Ele não ouviu qualquer simpatia naquela avaliação. Não era a mesma mulher que, em Teeslow, compreendera melhor do que ele as razões por trás do molde que adoptara. Era uma mulher que sugeria agora que essas escolhas cuidadosas eram uma fraude calculada. Uma vez que, em parte, era verdade, Kyle não se sentiu insultado.
Atirou mais lenha para o fogo.
- Está frio, anda aquecer-te. Visitaste a Alexia hoje? Antes de vir à City?
Rose colocou-se ao pé da lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para mim e para a Irene. É boa de mais.
O fogo lançava um brilho dourado no seu rosto. Por alguns segundos, enquanto observava a forma como o calor lhe iluminava os olhos e ruborizava a pele perfeita, Kyle esqueceu-se de que a vinda dela era invulgar e de que ela estava zangada com qualquer coisa.
Rose virou-se para o encarar de frente.
- Não vim aqui por estar curiosa em relação ao teu escritório ou aos teus negócios. E devia ter estado. Tal como devia ter sido mais curiosa em relação à tua família e ao teu passado. Sou culpada de um egocentrismo terrível na minha vida recente, sempre a ver os acontecimentos em termos da minha pessoa e nunca dos outros. A verdade é que sou tão insignificante que até os acontecimentos que me afectam têm na realidade a ver com outras coisas, mais importantes.
- Embora nenhum acontecimento ou acção seja isolado na sua razão ou nos seus resultados, estás errada quando dizes que és insignificante.
- Estarei?
Kyle viu cepticismo no olhar dela. Estava com dúvidas em relação a ele.
- Kyle, sempre presumi que todas as vítimas do Tim, todos os clientes do banco que tinham sofrido perdas, tinham sido pagos. Tu mesmo mo disseste. Até os teus tios.
- É verdade. Todos foram pagos.
- Mas nem todos foram alvo de restituição por parte de Lord Hayden, pois não?
- Não, nem toda a gente lhe extorquiu dinheiro.
- Extorquir? Ninguém lhe pediu o dinheiro.
- Mas foi extorquido, apesar disso.
Ela absorveu a resposta. Kyle sabia que não falariam disso. Os custos para Lord Hayden eram uma verdade inconveniente e desconfortável.
- Imagino que a maioria dessas pessoas ficou muito zangada, Kyle. Aceitar o dinheiro de Lord Hayden implicaria abdicarem dessa raiva. Não teriam motivos para a manter depois de o dinheiro lhes ser devolvido. Foi por isso que não o aceitaste?
Então era disso que se tratava.
- Foi a Alexia que te falou nisso? Que te disse que eu não quis aceitar o dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém o fizera. Ou então Rose percebera sozinha. Mas ele não imaginava como.
- As vítimas foram a tia Pru e o tio Harold, não eu. Mas eu era o administrador do fundo. Não podia aceitar a oferta de Lord Hayden. Não compreendo como alguém pôde fazê-lo. Não foi ele que cometeu o crime.
- Os outros fizeram-no porque queriam o dinheiro deles de volta, Kyle. O único preço de o aceitarem era abandonarem a raiva e ignorarem o crime. O que fizeste tu? Cobriste pessoalmente os fundos deles? Investiste mais uma vez o teu dinheiro?
- Tinha uma responsabilidade perante eles. Foi a minha má escolha de bancos que causou a perda. Claro que tive de garantir que não perderiam o dinheiro.
- Não o teriam perdido se tivesses permitido que Lord Hayden os recompensasse. Penso que não o permitiste porque, se o tivesses feito, ficarias sem desculpa para procurar vingança.
Havia uma boa dose de verdade nisso. Kyle admitia-o agora. Mas, na altura, não o admitira. Fosse como fosse, Rose estava a tocar em assuntos que ele nunca conseguiria explicar de uma forma que ela pudesse aceitar ou compreender.
Rose aproximou-se até estar muito perto dele. Perscrutou os seus olhos com uma expressão curiosa e interrogativa. Estava a examinar um estranho.
- Tu não és o Hayden Rothwell. Creio que vinte mil libras te fariam pestanejar. Até muito menos do que isso.
- Pestanejei muito, Rose. Ainda estou a pestanejar.
- Mas acho que encontraste uma forma de parar de pestanejar. Se não logo, pouco tempo depois.
A sua pose e graça natural quase se desmoronaram devido à fúria que a invadia, visível apenas na expressão tensa e no olhar ardente e penetrante.
Kyle viu também outra coisa. A dureza subtil, que vislumbrara quando conhecera Rose, estava de volta. Ela envergava de novo
aquela armadura de orgulho que lhe permitira sobreviver após a desgraça da família e durante a sua pobreza e isolamento forçados.
Estendeu a mão para a puxar para si. Para a abraçar de forma a que, onde quer que aquela discussão levasse, não a afastasse demasiado.
Ela rodopiou sobre si própria e afastou-se do seu abraço.
- És muito bom, Kyle. Não admira que tenhas sido bem-sucedido. Não admites nada. Nem sequer falas, para que isso não te coloque em desvantagem.
- Presumo que me vais explicar o que te deixou tão perturbada. Estou à espera que me digas.
- Perturbada? Perturbada? Que bela expressão - as suas palavras cortaram o ar. Fechou os olhos por um breve instante enquanto se recompunha. - Hoje descobri o que se passa com a propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que registaste uma reivindicação sobre ela.
- Como soubeste disso?
- Como? Descobri uma duplicidade que nunca esperei, e só te interessa saber como? - Recomeçou a andar de um lado para o outro, dando largas à sua fúria. Kyle, com a revelação, estava também a começar a sentir a sua fúria a crescer.
- Quando fizeste isto, Kyle? Depois daquela primeira visita? Examinaste a casa e tiraste as medidas às terras muito pormenorizadamente, nesse dia. Perguntaste-me se era alodial. Como fui estúpida. Pensei que mo perguntavas como um amigo preocupado. Como o meu cavaleiro de armadura reluzente. E, afinal, estavas apenas a calcular os teus potenciais ganhos.
- Isso não é verdade, raios.
- Sabias que a propriedade era do meu irmão. Mas eu não sabia que eras tu o único credor que nunca fora realmente recompensado. Meu Deus, até verificaste o solo para ver se teria mais valor como quintas do que transformado em casas novas.
- Como é que descobriste isto?
Rose ignorou-o. Os seus olhos arregalaram-se numa expressão chocada.
- Oh, céus, até te dei o nome de outro homem que compraria tudo se não quisesses dar-te ao trabalho de construíres tu próprio as casas novas. Enganaste-me de forma ignóbil. Usaste-me. " .
Foi a última gota. Aproximou-se dela e puxou-a para os seus braços. Ela contorceu-se, tentando resistir, mas ele segurou-a com firmeza. Rose ergueu para ele os olhos em chamas.
Kyle teve uma memória repentina, de dentes arreganhados para defender um ataque.
- Solta-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro tens de me ouvir. Sim, apresentei uma reivindicação sobre aquela propriedade.
A confissão não contribuiu em nada para a acalmar. Torceu-se para se libertar, com petulância, como um gato preso. Ele não a soltou.
- Não tenciono ficar com ela. Nunca tive essa intenção. Registei a reivindicação para que mais ninguém pudesse fazê-lo. E também para que não pudesse ser vendida.
Ela parou subitamente e olhou para ele.
- Como soubeste do meu direito de retenção, Rose?
- O advogado da família informou-me.
- Ele só saberia se lhe tivesses pedido para investigar. Portanto deves ter-lhe pedido. Porquê? Estavas a pensar em vendê-la e em ires ter com o Timothy, de qualquer maneira? - Bastava pensar nisso para que a sua mente se enchesse de reivindicações primitivas e ferozes de posse eterna.
- Claro que não. - Uma expressão de compreensão substituiu a de surpresa. - Foi por isso que o fizeste? Para te certificares de que eu nunca poderia ir ter com ele? Avisaste-me de que não o faria, quer nos casássemos ou não.
- A menos que pedisses dinheiro à tua prima, era a única forma de conseguires fundos para uma viagem dessas.
- Eu disse que não iria para junto dele. Casei contigo, não casei? Não sou desonesta ou estúpida ao ponto de fazer uma promessa e celebrar um casamento e depois fugir, ao encontro de um futuro incerto ao lado do meu irmão.
Rose pareceu encontrar alguma calma interior com aquela explicação lógica.
Kyle não. Se ela não estava a tentar vender a propriedade com os seus próprios interesses em mente, isso significava que estava a fazê-lo no interesse de outra pessoa.
Fitaram-se, olhos nos olhos, e estava ali tudo - a alegria das últimas duas semanas e o conhecimento de que nunca mais seriam tão livres juntos. Kyle percebeu que ela sabia a pergunta que se seguiria antes mesmo de ele a fazer. Sentiu-a ficar tensa nos seus braços.
- Recebeste novamente correspondência dele, não foi? Ele pediu-te que vendesses a propriedade. Foi por isso que falaste com o advogado.
O aceno dela não foi tímido. O seu olhar ainda o desafiava.
Rose desobedecera-lhe. Essa era a menos importante das conclusões urgentes que se formaram com uma nitidez cortante na mente dele.
Não só Rose tivera contacto com o irmão, como empreendera acções por ele que podiam ser localizadas. Se alguém a quisesse acusar de cumplicidade, ela acabara de dar a essa pessoa provas para tornar a acusação mais plausível.
Enquanto chegava a essa conclusão desesperada, Kyle viu que ela o fitava com um misto de curiosidade e preocupação. Instintivamente, apertou-a mais, em reacção ao potencial perigo que a espreitava.
Rose compreendeu mal. A sua expressão era agora de espanto, como se o abraço se tivesse tornado perigoso.
Kyle soltou-a e afastou-se. Olhou para a janela, para não ter de olhar para ela. Não queria que ela visse mais qualquer coisa que a pudesse assustar.
- A tua carruagem voltou, Rose. O cocheiro já aqueceu os, cavalos. Devias partir agora, enquanto há luz. Eu acompanho-te à porta.
Não falaram enquanto se dirigiam à carruagem. Ela caminhou ao lado dele como uma rainha, com uma postura que declarava o seu orgulho e posição. Quando a ajudou a subir para a carruagem, os olhos dela pareciam um pouco húmidos, mas a sua raiva era ainda mais nítida.
Ele faria o que pudesse em relação às lágrimas e à raiva. Mas, naquele momento, precisava de descobrir se a desobediência de Rose a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e espreitou pela janela.
- Queima essa carta assim que chegares a casa. Não digas a ninguém que a recebeste. Se te perguntarem, mente. Nunca a viste. Não sabes onde ele está. Compreendes? Não me desobedeças desta vez.
A expressão distante de Rose dissipou-se. De súbito, parecia tão triste e consternada que ele teve vontade de subir para a carruagem para a consolar.
- Não posso queimá-la. Contém uma procuração para o nosso advogado e ele ficou com ela.
Maldição. Kyle fez sinal ao cocheiro para arrancar e depois começou a caminhar na direcção do escritório desse advogado, pensando no que precisava de fazer agora e no que tinha de descobrir, e perguntando a si próprio se alguma vez chegaria o dia em que teria de trocar a vida de Timothy Longworth pela liberdade de Roselyn.
CAPÍTULO 19
Rose não voltou a ver Kyle nesse dia. Ele ainda não regressara a casa quando ela se recolheu aos seus aposentos. Ficou deitada na cama, sozinha, durante horas, tentando não estar à espera de ouvir os passos dele no corredor ou no quarto de vestir contíguo.
Continuava suficientemente zangada para ter a certeza de que não queria que ele a procurasse, mas estava também preocupada com a discussão e com a reacção intempestiva de Kyle à carta de Timothy.
A raiva de Kyle fora demasiado extrema para uma desobediência tão pequena. Demasiado grande, demasiado imediata, demasiado concentrada. Após algumas horas de reflexão, Rose percebera que ele não estava na realidade zangado com a sua desobediência. A ordem que lhe dera antes de se separarem e a forma como se afastara - aquela fúria era causada por preocupação, não por despeito com uma esposa malcomportada.
Mas, se assim era, o que o preocupava? Só podia ser algo importante. O homem que ela conhecia não dava rédea solta à sua determinação por questões insignificantes. Até agora, vira-o assim apenas quando o assunto era o seu irmão. Mas, se Kyle estivesse decidido a vingar-se, não lhe teria ordenado que queimasse a carta com as provas da residência actual de Tim. Teria antes insistido para que ela lha entregasse.
E não o fizera. Nem sequer lhe perguntara o nome da cidade de onde a carta fora enviada.
Por fim adormeceu, mas o seu sono foi inquieto. Quando se levantou, na manhã seguinte, soube que Kyle chegara tarde e voltara a sair muito cedo. Incapaz de se distrair fosse com o que fosse, percorreu a casa durante horas até que por fim, ao meio-dia, chamou uma carruagem e pediu ao cocheiro que a levasse a Hyde Park. Aí, saiu para caminhar um pouco.
Isso ajudou a aliviar a sua agitação, mas não fez nada pelo temor que lhe apertava o estômago. Um pressentimento de que a aguardavam más notícias pesava no seu espírito. Estava à espera de que a próxima conversa com o marido fosse mais formal do que qualquer outra que tinham tido até então. Não sabia se conseguiria viver num casamento cheio de pragmatismo e de uma reserva fria, depois de ter conhecido outra coisa por um breve período de tempo.
Depois de caminhar sem destino durante uma hora, deu meia-volta e percorreu os caminhos do parque em sentido inverso. Foi então que viu um cavalo a trotar na sua direcção. O homem sentado na sela era alto e montava muito direito. As suas roupas, a forma como dominava o animal, a sua postura - tudo parecia precisamente correcto.
Quando se aproximou, ela viu aqueles olhos azuis que nunca deixavam de captar a sua atenção e as profundezas que revelavam se olhasse bem para eles. Sentiu a vitalidade que o rodeava e a forma como ele controlava a sua força para que não fosse desperdiçada ou usada para fins adversos.
O nó no seu estômago apertou-se. Temia aquele encontro, mas ao mesmo tempo aguardava-o com impaciência. Tinham-se separado de forma tão desagradável na véspera.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Depois desmontou.
- Precisamos de falar sobre o que aconteceu ontem, Roselyn.
Ela desejou que a presença dele a reconfortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de caminharem lado a lado pelo caminho perto de Watlington, da primeira vez que ele a visitara. Tal como nessa altura, Kyle caminhou agora ao seu lado com o cavalo pela rédea.
Esse primeiro passeio fora agradável, em comparação com este. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de setas invisíveis disparadas entre ambos.
- Vais ralhar comigo? - perguntou. Desejou que ele o fizesse, se isso servisse para eliminar a distância entre ambos.
- Talvez. Primeiro vou explicar. - Voltou os olhos azuis para ela. - Já o devia ter feito há mais tempo.
- E porque não fizeste?
- Se o tivesse feito, terias recusado o meu pedido de casamento. Já assim, tiveste tantas dúvidas. Estavas à procura de uma razão para recusar e a minha explicação ter-te-ia dado uma. Terias mentido a ti própria, dito a ti própria que fugir a esta vida e trocá-la por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Era nisso que querias acreditar.
- Como foste generoso, ao salvar-me de mim própria.
- Eu desejava-te, Roselyn. Salvei-te para mim. Desejava-a. Desejava uma coisa bonita, um bem que lhe era
proibido pela posição do seu nascimento. Ela não podia culpá-lo por isso. Conhecia os motivos por detrás do pedido de casamento.
- Tinhas razão, ontem - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de Lord Hayden porque recusá-lo me permitia agarrar-me à raiva e justificar o desejo de vingança. Chamei-lhe justiça, mas admito que a raiva a transformou noutra coisa. Disse a mim próprio que, pelo menos, não tinha aceitado o seu dinheiro e continuava à procura de vingança, como os outros.
Ela parou de andar e olhou para ele. Rezou para que os olhos de Kyle mostrassem algo que negasse as implicações dessas duas últimas palavras.
- Os outros?
- Pelo menos oito, que eu saiba. Um pequeno grupo de homens que não aceitou a noção de justiça de Lord Hayden. Têm um agente a seguir o teu irmão no continente, com a intenção de o trazer de volta a Inglaterra.
Rose sentiu-se agoniada. O pavor invadiu-lhe o coração, deixando-o pesado.
- Não compreendo por que motivo se dão a tanto trabalho. Embarcar numa busca dessas quando as suas perdas foram recuperadas. - O significado daquela revelação cortou-a como uma lâmina. - Um agente. o Tim nunca conseguirá escapar. Ele não possui esse tipo de astúcia.
A sua mente era um turbilhão de pensamentos demasiado tristes e desesperados para pôr em palavras.
- Tinhas razão. Se eu soubesse disso, não poderia ter ficado aqui. Teria de tentar ajudá-lo. Podia ter-lhe encontrado um sítio seguro para viver e uma forma de se esconder. Ele nunca o conseguirá sozinho.
- Nesse caso, estou muito contente por não te ter dito nada. Terias desperdiçado a tua vida e talvez até a tua liberdade.
Ela olhou para os terrenos do parque, tão vazios. Os seus pensamentos acalmaram-se o suficiente para os conseguir organizar.
- Quem são esses homens que estão tão determinados em apanhar o meu irmão?
- O Norbury é um deles.
Deus do céu. Mas, na verdade, a forma como ele a usara já fora motivada pelo desejo de vingança. Ele próprio o dissera, no leilão.
- Quem mais?
- Homens orgulhosos. Nobres. Homens de finanças. Comerciantes. O tipo de homens que podiam ter perdido o suficiente para causar mossa. O tipo de homens que se importariam por o Timothy os ter feito passar por parvos.
As suas palavras firmes e graves fizeram com que o coração dela batesse mais depressa.
- Homens a quem perder vinte mil libras faria pestanejar. Homens como tu.
Ele suportou o olhar de Rose.
- Homens como eu.
- Surpreendes-me. Pediste-me em casamento, apesar de estares a tentar levar o meu irmão à forca? Tencionavas ver se conseguias descobrir o paradeiro dele através da minha correspondência e.
- Houve quem o sugerisse. Eu disse-te para destruíres todas as cartas, lembras-te? Assim que casámos, saí do grupo. No entanto, talvez tenha havido um erro.
- Um erro! - Uma ideia terrível emergiu no meio da sua consternação crescente. - O advogado. A carta. Foste lá depois de me deixares, ontem, não foste? Ficaste a saber o nome que ele usa e a cidade onde se encontra, e agora entregaste a informação ao Norbury e aos outros.
Kyle segurou-lhe nos braços com gentileza e obrigou-a a fitá-lo nos olhos.
- Não, não fiz nada disso. Mas tudo o que fiz desde que saíste do meu escritório na City, ontem, foi para te proteger. Não a ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Já nem sequer quero vingança ou justiça, porque isso te causaria dor. Mas, se a escolha for entre ti e ele, não te deixarei sofrer quando és inocente e ele não.
Ela estava sem palavras. Não sabia se havia de chorar ou de gritar.
Ele abraçou-a e Rose estava demasiado perdida para se opor. Sentiu-se invadir pelo calor de Kyle, pela sua compreensão, e por uma tristeza subtil que só a deixou ainda mais assustada.
- Há mais, não há? - murmurou. - Não me seguiste até aqui hoje, para confessares. Vieste avisar-me de qualquer coisa.
Kyle manteve o braço sobre os ombros dela e recomeçaram a andar.
- Por favor, ouve-me, querida. vou explicar tudo.
Rose ainda estava trémula, apesar do abraço. O seu rosto foi empalidecendo à medida que ouvia a história dos homens que queriam apanhar o seu irmão. Kyle não se poupou a si próprio. Se não se tivesse juntado inicialmente a Norbury e aos outros, teria evitado a horrível decisão que podia ter de tomar em breve.
- Se não me tivesse afastado, saberia pelo menos em que pé estão as coisas - explicou. - Mas, ontem, procurei um dos outros e rapidamente descobri.
Ela baixou as pálpebras, como se mais um golpe não pudesse surpreendê-la.
- E como estão as coisas?
Ele odiava ter de lhe dizer. Odiava.
- Tiveram notícias do Royds, o agente. A carta tinha sido escrita há várias semanas. Ele estava na Toscana, na altura. O Royds sabe que o Timothy está na região e que usa o nome Goddard.
- O que queres dizer é que vai encontrá-lo. Talvez até já o tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que significava que ninguém podia exigir que Rose desse ela própria a informação ou que o seu marido lha arrancasse, como Norbury sugerira.
No entanto, a ameaça de a acusar de cumplicidade ainda pairava no ar. Provavelmente não haveria nada a ganhar com isso agora, a menos que as tentativas de Royds para localizar Timothy em todas aquelas cidadezinhas da Toscana não fossem bem-sucedidas.
- Por que razão ficaste tão preocupado com o advogado e com a carta do Tim? - O seu espírito sofrera um duro golpe, mas a sua mente não perdera a clareza. - Se já estavas de fora, se não querias saber o nome dele e da cidade, porque reagiste de forma tão violenta quando soubeste?
Kyle fora ali para lhe contar tudo. Para lhe dar a honestidade total que ela lhe pedira no dia em que se encontrara com ele em Regents Park. Viu a aflição dela e pesou o que uma honestidade total podia realmente significar numa situação como aquela.
Talvez já não houvesse perigo algum. Se Royds encontrara Longworth sozinho, ninguém ameaçaria Rose de a acusar de ser cúmplice dele.
- Estive com o advogado e exigi-lhe que queimasse a carta. Disse-lhe que não tencionava remover o direito de retenção, pelo que a procuração era inútil. É melhor que esteja destruída, Rose, para que ninguém saiba que tiveste notícias do paradeiro dele.
- E ele queimou-a?
- Vi-a ser consumida pelas chamas. : Isso pareceu tranquilizá-la. Mais do que devia, provavelmente,
mas estava demasiado triste e perturbada para analisar as palavras e ver as lacunas.
Yardley queimara de facto a carta, mas só depois de Kyle a ler. E, mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que ela fora escrita e enviada a Roselyn Longworth. Os advogados juravam manter a discrição em relação aos assuntos dos seus clientes, mas não havia forma de ter a certeza se, sob pressão, Yardley manteria o silêncio acerca da correspondência em curso entre Roselyn e o seu irmão criminoso.
Rose sentia-se como se tivesse uma espada sobre a cabeça. Sentia o seu gume a descer sobre ela.
Os dias começavam agora com um triste ritual. Renunciava ao conforto dos braços de Kyle quando ele se levantava, perto do nascer
do dia. Depois disso, não dormia muito mais. Por fim, descia ao encontro do marido, que lia o correio e os jornais na sala de estar, reunindo as suas forças a cada passo que dava.
Desempenhou esse ritual na manhã do dia da festa em casa de Alexia. A perspectiva de se vestir para essa festa, de fingir alegria e encanto, deixava-a enjoada.
Recusou comida ou café. Kyle empurrou os jornais na direcção dela.
- Nada.
O alívio que a invadiu foi tão intenso que a deixou sem forças. Olhou para a pilha de correspondência. Presumiu que também não haveria nada aí.
- Um dia haverá qualquer coisa - disse.
- Não temos a certeza. Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy a percorrer as ruas daquela cidade italiana, o seu cabelo cor de areia identificando-o como um inglês, tanto como a sua língua, continuando a usar insensatamente o mesmo nome falso que adoptara quando fugira. Ela procurara num mapa e descobrira que a cidade de Prato não era muito grande e não ficava muito longe de Florença.
O mais provável era que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim.
E quando o encontrasse, quando Tim fosse trazido de volta e os lesados dessem queixa dele, quando fosse publicamente acusado como ladrão, julgado e condenado.
- Não penses mais nisso, querida.
Rose ergueu os olhos. Kyle sabia a direcção que os seus pensamentos levavam.
Isso também o afectaria. A sua posição, já de si ténue, talvez até o sucesso daquelas propriedades que estava a construir no Kent seriam prejudicados pela sua associação a uma fraude daquela magnitude. Ele nunca falava nisso. Agia como se não tivesse importância que a reputação manchada da sua mulher pudesse fazê-lo perder muitos, muitos anos de trabalho.
Isso magoava-a. Grande parte do seu sofrimento derivava de pensar que Kyle sairia mais prejudicado do que beneficiado com o casamento.
- A que horas pensas sair para o jantar da Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não me apetece nada ir.
- Quando lá estiveres, vais divertir-te. Não podes ficar aqui fechada em casa à espera, Rose. Uma vez que não podemos prever o futuro, devemos viver como quisermos e esperar pelo melhor.
Havia verdade nesse conselho. Mas ela não tinha a certeza de que aquela festa era como queria viver a sua vida, apesar de ser o que se esperava dela.
- Farei os possíveis para deixar a Alexia orgulhosa. - E a ti também, Kyle. Pois apesar de todo o desejo que o levara àquela união, ele não tivera até agora muitos motivos de orgulho. - Já que vamos esperar pelo melhor, talvez possamos dar nós próprios um jantar, em breve. Para receber alguns dos teus amigos. Não queria que vivêssemos para sempre em círculos separados e em mundos diferentes.
A expressão dele alterou-se ligeiramente. Por um breve instante, ela pensou ter vislumbrado surpresa, até mesmo desânimo.
- Se quiseres, podemos fazê-lo. - Kyle levantou-se e inclinou-se para a beijar. - Estarei em casa logo para me despedir de ti. Vais deixá-los a todos boquiabertos, Rose, tal como sempre me deixaste a mim.
- Então, finalmente tens tempo para sair com o teu velho amigo Jean Pierre. A esposa vai para um lado e o marido para outro, como deve ser na vida de casado - disse Jean Pierre em tom ligeiramente inebriado, enquanto olhava com expressão indolente para as cartas na mesa à sua frente.
Jean Pierre preferia vingt-et-un às outras opções disponíveis naquele antro de jogo que visitavam de vez em quando. Não gostava de jogos que dependiam unicamente da sorte.
E Kyle também não. Não era grande apreciador daquele tipo de jogo, em nenhuma das suas variantes, embora não se importasse de ganhar ou perder algumas centenas de libras. Frequentava aqueles locais por outros motivos.
Naquele momento, estava a observar o jogo e a conversar com o amigo. As perdas e ganhos não lhe interessavam, mas os jogadores
sim. Não os que abandonavam toda a racionalidade e jogavam de forma imprudente. A sua atenção concentrava-se nos homens cuja expressão revelava atenção ao jogo, um cálculo das opções e jogadas ousadas que podiam ser justificadas com uma forte probabilidade de sucesso. Demorava-se ainda mais com os homens cujas roupas e modos os identificavam como cavalheiros de posses.
Kyle encontrara muitos futuros investidores nesses antros de
jogo.
- Estou livre porque a minha mulher vai jantar com a prima
- explicou.
- Nesse caso, amanhã estarei de novo sozinho e à deriva. É sempre tão triste quando um amigo é caçado.
- Não fui caçado. Se não tenho estado disponível para sair é porque prefiro passar as noites com a minha noiva.
- Assim fazes-me sentir pena de mim próprio. Embora fique feliz por saber que tens prazer com a companhia dela e. - Jean Pierre fez um gesto largo com a mão que pretendia indicar as outras coisas em que um marido podia encontrar prazer junto da mulher.
- Por aquilo que ouvi, não tens motivos para sentir pena de ti próprio. Parece-me que também não tens estado disponível todas as noites.
- Ah, referes-te à Henrietta. - Jean Pierre franziu a testa. A Hen, como lhe chamam. Que alcunha tão palerma. É só porque são demasiado preguiçosos para dizer o nome todo. Às vezes, não compreendo os ingleses. - Encolheu os ombros daquele modo vago e expressivo. - Ela é doce quando a mantenho ocupada para não falar muito, mas. - Outro franzir de sobrolho.
- O perfume já está a desaparecer, mon amií - Jean Pierre raramente se demorava muito tempo no mesmo jardim.
- Não. Mas. acho que estou a ser usado de uma forma muito astuta.
Kyle teve de se rir.
- Conheço essa mulher. Ela não é inteligente.
- Compreendeste-me mal. Ela também está a ser usada. -
1. Hen, em inglês, galinha. (N. do E.)
Jean Pierre recusou mais cartas e virou costas ao jogo. Bebeu um gole de vinho. - Há duas semanas, recebi um mensageiro com um bilhete. Esse bilhete dizia que um certo camarote num certo teatro não seria usado por um certo grupo, e oferecia-me o seu uso se eu acompanhasse a Henrietta e a filha. Como um tolo, fiquei lisonjeado com a oferta, com o bilhete. Um papel tão fino. Um brasão tão impressionante. Um homem tão nobre. O facto de revelar que o marquês tem conhecimento dos meus jogos de sedução não me preocupou. Ele é um homem do mundo, a tia é uma mulher madura, eu sou inofensivo. está tudo bem.
- Então aceitaste, presumo.
- Ali me sentei, como um rei. Desempenhei o meu papel. Olhei com má cara para os jovens que vieram namoriscar com a rapariga. Sei o que se espera de mim.
- Que bom para ti. E que generoso da parte do Easterbrook.
- Conheço esse tom de voz. Tens razão. Engoli o isco. Já por cinco vezes que dou por mim a acompanhar a minha flor e a filha desta de forma muito pública e em diversões muito caras. O mundo ficou a saber que eu sou amante dela. Agora, quando acabar, será forçosamente embaraçoso, portanto a relação vai durar mais do que eu queria. O marquês foi muito negligente, pensei eu para mim próprio. Depois pensei melhor. Talvez ele a queira ver embaraçada, ou talvez queira apenas evitar essa tarefa ele próprio. Não, decidi que não era nada disso. Estou a ser fisgado por outro motivo qualquer.
- O Easterbrook consegue ser um homem muito estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite a sua aventura amorosa. Por muito tempo.
Jean Pierre abanou a cabeça.
- Se assim fosse, porquê a presença da filha? A rapariga está sempre connosco. Faz parte do acordo. Assim, resta apenas uma questão para o Jean Pierre. Estou curioso em relação ao motivo pelo qual estou a ser usado. O que achas?
Kyle pensou distraidamente no assunto. com a outra metade da sua atenção reparou na chegada de um grupo de homens. Alegres e embriagados, entraram com demasiado barulho, demasiado arrogantes. Eram os quatro membros aristocráticos do comité "Enforquem o Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o
jovem fogoso que devia ter tido o bom senso de perceber que já não era há vários anos.
Aquele antro de jogo recebia qualquer pessoa que pudesse dar-se ao luxo de perder bom dinheiro, o que significava que era frequentado também por lordes. Não era a primeira vez que Kyle ali encontrava Norbury.
Virou-se para Jean Pierre e ignorou os recém-chegados para que o seu olhar não se cruzasse com o de Norbury. Isso podia ficar para outro dia.
- Parece que o Easterbrook está realmente a usar-te - disse.
- Parece que ele encontrou maneira de se livrar da presença da tia e da prima na sua casa.
- Mas que esperto que és. Demorei muito tempo a chegar a essa conclusão. Não ficas curioso também?
- Não.
- Pensa. A casa é muito grande. Se ele não quisesse a companhia delas, bastava-lhe ir para outra divisão, outro piso, outra ala. Se quer que elas estejam mesmo fora. - Encolheu os ombros.
Kyle imitou o gesto.
Jean Pierre deu um estalido com a língua, exasperado.
- Ele quer aquela grande casa vazia por uma razão. Está a fazer alguma coisa lá, quando está sozinho, que não quer que elas saibam. Há aqui um mistério. Tenho a certeza.
Não havia mistério nunhum, para além de um homem que preferia o isolamento. Mas explicar isso a Jean Pierre teria de ficar para outro dia. Um dos homens no grupo de Norbury reparara na presença de Kyle e todo o grupo se aproximou, com sorrisos radiantes.
- Apanhámo-lo - anunciou Sir Robert Lillingston.
- A quem? - perguntou Kyle, apesar de saber a resposta. Estava escrita na expressão arrogante de Norbury. Independentemente de como corresse a festa de Alexia essa noite, em breve Rose estaria a chorar.
Teve vontade de atacar aqueles homens que se deliciavam de tal forma com algo que deixaria Rose em sofrimento. Odiava o facto de alguma vez ter sido um deles, por mais que os seus motivos fossem justos ou altivos.
Conseguiu esconder a sua reacção de toda a gente excepto de Jean Pierre, que o observava atentamente.
- O Longworth - explicou Norbury com satisfação. - Lembra-se dele, não? O irmão da sua mulher.
Kyle não se mexeu, mas a mão de Jean Pierre pousou no seu braço.
- O Royds encontrou-o na Toscana. Nem sequer foi difícil. O idiota pensou que se conseguiria esconder numa cidade pequena, onde apenas se destacava como o estrangeiro que era - disse Lillingston.
- Quanto tempo até cá chegar? - perguntou Kyle. Quanto tempo até o pior começar?
- Já cá está - disse Norbury. - O Royds encontrou-o depressa, arrastou-o até à costa e está com ele nos arredores de Londres neste preciso momento. Nós os quatro demos queixa dele ao magistrado esta tarde. Estará em Newgate em breve.
Já tinham dado queixa. Estavam embriagados porque tinham estado a celebrar.
- Junte-se a nós, Bradwell - convidou Lillingston.
- Sim, junte-se a nós - disse Norbury. - Estava tão indignado como os restantes com os crimes daquele canalha. Brinde connosco por ele finalmente ir pagar, como qualquer pobre mineiro pagaria se fosse um ladrão.
O seu braço ficou tenso antes que o cérebro conseguisse conter o impulso. Jean Pierre apertou-o com mais força, o suficiente para o deter.
- O meu amigo nunca seria bárbaro ao ponto de brindar ao fim iminente da vida de qualquer homem, muito menos do irmão da mulher - disse Jean Pierre com desdém. - Vão, vão, antes que eu resolva não continuar a impedi-lo de vos partir a cara.
- Quem diabo é você? - rosnou Norbury. - Um francês, hein? Um camponês francês, para ser amigo do Bradwell.
Kyle levantou-se para a luta que era agora inevitável, impaciente por ela, contente por ter uma desculpa para libertar a fúria terrível que lhe rugia dentro da cabeça.
Jean Pierre colocou-se em frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou? Digamos apenas que sou um homem que percebe muito de químicos. Consigo explicar que há venenos que são indetectáveis, por exemplo. Homens como o senhor acham sempre esse tema muito fascinante.
Na sua mente lenta, Norbury percebeu que acabara de ser ameaçado. Transmitindo tanto desdém e altivez quanto era possível a um homem embriagado, deu meia-volta e afastou-se. Os companheiros seguiram-no.
Jean Pierre virou-se mas não se desviou, continuando a servir de barreira.
- Merde. Não te importas de recuperar a racionalidade? Seriam quatro contra um.
A partida de Norbury acalmara o pior da fúria. Agora, era a antecipação da tristeza de Rose que invadia Kyle.
- Quatro contra um? Que belo amigo me saíste.
- Este belo amigo impediu-te de ser muito estúpido esta noite. E este belo amigo não partirá os punhos a defender o nome de um homem que é um ladrão. A irmã dele pode ser tua esposa, mas, se ele roubou dinheiro, a bondade dela não altera a verdade da maldade dele.
Não, não alterava. Nem para Jean Pierre, nem para ninguém. Nem mesmo para Kyle Bradwell, para ser honesto.
CAPITULO 20
Rose compreendia o objectivo daquele jantar. Não fez nada para interferir. No entanto, tinha também os seus próprios objectivos e saiu de casa de Alexia convencida de que eles também poderiam realizar-se.
Os convivas sentados à volta daquela mesa eram algumas das pessoas de espírito mais aberto da sociedade. Alexia planeara as coisas nesse sentido. Rose limitara-se a explorar o que isso significava enquanto conversava com eles.
Não hesitara em falar sobre Kyle. Fora eloquente em relação às suas melhores qualidades e ao seu bom carácter. Dois dos cavalheiros estavam a par dos negócios de Kyle e expressaram interesse em conhecê-lo. Um deles falou em termos vagos e admiráveis sobre o comportamento honroso de Kyle em relação a ela.
Três das senhoras mencionaram que ele era muito atraente, à maneira dele, e aludiram àquela aura cativante que ele emanava. Uma delas lamentou mesmo que Kyle não tivesse podido estar presente.
Enquanto regressava a casa na sua carruagem, Rose avaliou o sucesso da noite. Fora uma vitória para ela, isso era inegável. No entanto, estava convencida de que ter Kyle ao seu lado não atrasaria a sua redenção. De facto, suspeitava que ele até a ajudaria.
Afinal de contas, ele desempenhara um papel no escândalo. Rose estava sentada àquela mesa apenas porque o seu casamento levantava algumas dúvidas em relação ao que sucedera naquela noite. Algumas
expressões tinham-se fechado quando um dos cavalheiros mencionou inadvertidamente o nome de Norbury de passagem, ao contar uma história.
Enquanto subia para o quarto, pensou quais daqueles convidados aceitariam uma ligação mais directa. Se ela desse o seu próprio jantar, com uma mistura democrática de convidados, quem poderia aceitar? A criada ajudou-a a despir-se enquanto formulava um primeiro esboço da lista de convidados na cabeça. Msieur Lacroix era um homem interessante, um intelectual, e ninguém colocaria objecções à sua presença. Lord Elliot e Lady Phaedra provavelmente aceitariam o convite.
Sentou-se ao toucador e a criada escovou-lhe o cabelo. Olhou para o espelho. O seu rosto mostrava um ligeiro rubor da excitação da noite.
Tinha-se divertido. Rira e conversara e nunca se sentira excluída, ou uma pessoa tolerada apenas por causa de Alexia mas não muito bem-vinda.
A campanha podia resultar. Podia mesmo. Nunca acreditara completamente antes dessa noite.
Nunca acreditara de facto que merecia a redenção.
Essa admissão surgiu-lhe na cabeça, espontânea e inesperada. Olhou para os seus próprios olhos e soube que era verdade. Aceitara que os pecados da sua família exigiam penitência e que lhe cabia a ela expiar todos esses pecados, não apenas os seus.
Quando despertou dos seus pensamentos, a criada já saíra e a escova de cabelo estava pousada em cima do toucador.
- Estavas perdida nos teus pensamentos, Rose. O que te absorvia tanto enquanto olhavas para a tua imagem?
Virou-se, sobressaltada. Kyle estava à porta do quarto de vestir. Percebeu que ele tinha saído essa noite, mas já tirara a gravata e tinha o colarinho da camisa desapertado.
- Estava a falar comigo própria - respondeu. - Estava a aprender coisas através do meu reflexo.
- Coisas boas, imagino. Parecias satisfeita. Confiante.
- Sim, coisas boas, julgo eu.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso. Estendeu a mão. - Vem, conta-me tudo.
Ela pegou-lhe na mão e Kyle conduziu-a para o quarto dele. Rose sentou-se na cama e descreveu o jantar enquanto ele se deitava de lado, a ouvir. O seu olhar mostrava uma atenção total às palavras dela.
A forma como ele partilhou a alegria dela nessa noite comoveu-a. Desde a discussão, existia uma distância subtil, uma vaga distracção. Nesse momento, enquanto estavam absorvidos na história dela, essas coisas desapareceram.
Isso levou-a a confidenciar ainda mais.
- Não estava realmente à espera de tanta generosidade da parte destes convidados. Não acreditava que pudessem ser amáveis. Mesmo com o plano da Alexia, mesmo com a forma como o nosso casamento pode ter confundido as opiniões e os rumores sobre aquele leilão, não pensei verdadeiramente que alguma vez poderia voltar a erguer a cabeça.
- Ainda bem que percebeste que estavas errada. Era isso que estavas a descobrir pelo teu reflexo esta noite, quando te encontrei?
- Sim. E mais. Estava a perceber que tinha perdido a confiança no meu direito de erguer a cabeça. O meu orgulho tornou-se uma concha de aço. Mantinha-me de pé, mas lá dentro havia caos e culpa pelos pecados da minha família. Mesmo aquele caso com o Norbury. olhando para trás agora, mal reconheço a mulher que se enganou a si própria daquela maneira. Não era a Roselyn Longworth de há dois anos, nem a Roselyn de hoje. Era uma desconhecida, essa mulher, que via apenas opções desoladoras e que acreditava não merecer melhor do que isso.
Kyle ficou pensativo. Os seus dedos brincaram com a bainha da camisa de dormir dela.
- E eu aproveitei-me, pedindo-te em casamento quando ainda não te tinhas reencontrado.
- Não é verdade. Não digas isso. - Ele julgara que ela estava a falar também dele. Rose ficou horrorizada com essa interpretação. - Já tinha começado a reencontrar-me antes de me pedires em casamento. A sério.
- Acredito que sim. No entanto, mesmo que não seja esse o caso, não me arrependo de me ter aproveitado dessa vantagem, apesar de ser errado da minha parte fazê-lo. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha, e tão honesta que ela ficou atrapalhada. Decidiu deixar para mais tarde a análise das palavras dele e do que revelavam sobre as suas motivações. Naquele momento, a expressão daqueles olhos azuis dava azo apenas às melhores interpretações.
Viu calor no olhar dele. Vinha do fundo do seu ser e era equivalente ao conforto e alegria que ela própria sentia com aquele momento privado de intimidade familiar. O desejo ardia também, fazendo o seu corpo cantar, tanto como a mão dele, que lhe acariciava a perna nua. Mas viu que havia algo mais em Kyle.
Orgulho. Não dele próprio, mas dela. Rose nunca tinha reparado nisso antes. Ou não existira, ou ela fora cega às evidências.
- Fico contente por não te arrependeres, Kyle. Sempre pensei que a tua oferta era um pouco tola, quando receberias pouco mais do que uma cara bonita em troca.
- Não vou mentir e dizer que a tua beleza não pesou no desejo que sinto por ti, ou no orgulho que tenho da minha mulher. Mas, na verdade, já não entra sequer no balanço. - Sedutoramente, puxou a fita que prendia a sua camisa de dormir. - O que não significa que a tua beleza já não me afecte.
Ela riu-se e afastou a mão dele. Kyle riu também e a sua mão deslizou ousadamente pela perna dela, até à nádega. Rose desviou-se e pôs-se de joelhos.
A alegria deixara-a impetuosa e ousada. Era como se tivesse arrastado uma carroça durante um ano e agora se tivesse visto livre do seu jugo.
E também não era como a alegria que sentira naquele dia na colina. Não estava a escapar ao seu fardo com uma fantasia de se tornar uma pessoa diferente. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem interessante e inteligente, aquele marido invulgar, achava que o seu carácter era digno de orgulho.
Ele ainda estava deitado na cama a olhar para ela, com a mão preparada para a agarrar se se aproximasse. O sentimento abafou a sua alegria, enchendo-lhe o coração até lhe virem as lágrimas aos olhos.
Podia não ter encontrado o caminho sozinha. Podia nunca ter conseguido encontrar uma forma de se livrar dessa carroça pesada. O destino fora bom para ela, quando lhe enviara Kyle para interferir na sua vida.
Levantou a camisa e despiu-a, ficando nua. Ele olhou-a longamente, durante tanto tempo que ela quase cambaleou com a forma como a excitava. Kyle levantou o braço para ela.
Rose pegou-lhe na mão e aproximou-se, depois empurrou-o para baixo. Sentou-se em cima dele, com os joelhos ao lado das suas ancas.
- Recebi tanto de ti, Kyle. E deste-me tanto, para além da redenção prometida. Prometo que a mulher que estou a reencontrar não é tão egoísta nem tão egocêntrica como aquela com quem casaste.
Ele levantou as mãos e acariciou-lhe lentamente o corpo.
- Não faças de mim um santo. Garanto-te que recebo pelo menos tanto como dou.
- Não sei se isso será verdade. Acho que o descobrirás esta noite. - Começou a desabotoar-lhe as calças.
Ele não a ajudou enquanto ela o despia. Deixou-a tentar despir-lhe a camisa antes de lhe abrir os punhos e sorriu com um charme irresistível enquanto ela tentava resolver o problema.
- Suponho que se vai tornando mais fácil com a prática - disse ela, enquanto afastava o tecido para encontrar os botões de punho.
- Podes praticar tanto quanto quiseres, Rose.
Ela já sabia disso. E Kyle estava a gostar, apesar da atrapalhação dela. Excitava-o. E muito, a julgar pela evidência que a pressionava entre as pernas.
Essa pressão também a excitava e só atrapalhava o seu progresso. Quando afastou a perna para despir a roupa interior de Kyle, sentiu as palpitações quentes do desejo.
Depois de Kyle estar despido, Rose voltou a sentar-se em cima dele, mas mais abaixo.
- E agora, Roselyn?
Ela já o desejava, desesperadamente. Queria chegar-se para a frente e levantar-se e recebê-lo no seu corpo e sentir aquela plenitude deliciosa e a aproximação do êxtase.
- Diz-me tu, Kyle.
O desejo deixava-o sempre todo tenso - os membros e os maxilares e a boca e todo o corpo. Agora os seus olhos escureceram e o seu vago sorriso era igualmente duro.
- Toca-me. Beija-me.
Não estava a falar da boca ou do peito. De súbito, Rose sentiu-se um pouco menos ousada e muito mais ignorante.
Ele compreendeu. Não havia qualquer desilusão na forma como sorriu perante a hesitação dela, ou na forma como estendeu os braços para a puxar para si.
Mas ela afastou-se para trás, para fora do alcance dele. Passou o dedo pelo membro duro, depois acariciou a ponta.
Já lhe tinha tocado antes. Não era novidade, excepto a posição em que estava sentada, a olhar para as suas próprias mãos e para a forma como ele reagia. Achou a situação surpreendentemente excitante. As contracções subtis das pernas dele por baixo das suas nádegas e a sensibilidade extraordinária da pele dele ao seu toque fizeram com que o prazer lhe percorresse o corpo. Estremeceu, e ele ainda nem sequer a acariciara.
Isso, mais do que qualquer outra coisa, tornava fácil dar-lhe prazer. Ele estava certo quando dissera que, ao dar prazer, também o recebia. Ela não conseguia acreditar no prazer que estava a sentir. Tanto, que lhe pareceu muito natural, quase necessário, dar-lhe mais. Nem sequer pensou muito antes de baixar a cabeça para o beijar.
Já ouvira falar dessas coisas, mas não sabia o que devia fazer. Percebeu que a sua posição não era muito cómoda e deslocou o corpo, ficando ajoelhada ao lado dele. Assim conseguia usar a boca com mais premeditação. O sim baixo que ele murmurava entre dentes dizia-lhe quando as suas explorações lhe davam um prazer particular.
Quase atingiu o clímax com os estremecimentos intensos que a percorriam. Quando ele a levantou, presumiu que era para os seus corpos se unirem da maneira que ela precisava.
Em vez disso, ele puxou-a mais para cima.
- Põe-te de joelhos, aqui.
Aqui era ao lado dos ombros dele. Os dedos de Kyle acariciaram-na gentilmente. Rose agarrou-se à cabeceira da cama para se apoiar quando ele baixou a cabeça. Novas carícias e beijos, com língua e lábios, lançaram ondas de choque pelo seu corpo.
O prazer assumiu o controlo. Prazer e uma fome gritante. As sensações delirantes deixaram-na fraca e indefesa. Ouviu a sua própria voz a gritar, a implorar-lhe que parasse e que continuasse, tudo no mesmo fôlego.
E, de alguma forma, ele conseguiu fazer ambas as coisas. Ela agarrou-se à cabeceira enquanto ele a levava a um clímax avassalador. Deixou-se ficar na mesma posição enquanto ele a deixava recuperar parte da sanidade. E depois ele lançou-a de novo na loucura.
Fê-lo por três vezes. Da última vez, ela julgou que fosse desmaiar. Ficou completamente sem forças. Não havia mais nada a não ser o seu desejo e a sua fome e a obliteração da libertação.
Ele puxou-a para baixo, levantou-a gentilmente e deixou que os seus corpos se unissem. Segurou-a contra o peito e enlaçou-a. Quando o sentiu tão profundamente, Rose emergiu do seu torpor de saciedade.
Arquejou. A boca quente dele roçou-lhe a cabeça.
- Ainda não?
- Não é isso. Pensava que seria incapaz de mais. Mas parece que não. - Dobrou os joelhos debaixo do corpo para o poder sentir mais profundamente.
Ele continuou, agora com movimentos lentos, completos, despertando mais uma vez o prazer e o desejo. Mais concentrado, agora. Mais físico. As nuvens fecharam-se sobre a sua consciência, mas ela sentia-o clara e totalmente. Moveu-se ao seu ritmo, feliz.
Desta vez foi diferente. Os tremores concentraram-se na pressão dele. Vibraram profundamente, num prazer sem limites. Ela estava fora de si, não acreditava no poder de tais sensações. Kyle segurou-a e imobilizou-a para que ela aceitasse a forma como lhe invadia o corpo e o espírito.
O fim foi escuridão, apenas sensação. Mesmo enquanto se deixava cair sobre ele, exausta, o prazer ainda fluía numa liberdade perfeita, guiando-a para outra união, esta de paz de espírito.
Quando acordou no dia seguinte, era tarde. Meio da manhã, pelo menos, a avaliar pela luz que entrava pelas cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle sentado numa cadeira ao pé da janela, a observá-la. Ele já se tinha vestido, mas o quarto não mostrava sinais de terem entrado criados. Não havia café, nem ninguém tinha tirado as cinzas da lareira.
A cadeira dele estava nas sombras. Kyle reparou que ela estava acordada e endireitou-se mais, mas não disse nada.
- Porque estás aí sentado? - perguntou.
- Estava à espera que acordasses. E estava a gostar de te ver dormir.
- Há muito tempo, pelo que parece. Sinto-me como se tivesse dormido metade do dia. Não é normal em mim, mas acho que tenho desculpa.
- Não há tanto tempo como isso. Eu próprio só me levantei há uma hora.
- Também tens desculpa.
Ele não pegou nas insinuações dela sobre a noite. Em vez disso, levantou-se.
- Não dormi muito.
Aproximou-se da cama e ela viu o que as sombras tinham escondido. Apesar de toda a alegria da noite, não havia qualquer felicidade nele agora. A sua expressão grave alarmou-a.
Kyle sentou-se na beira da cama e virou-se de modo a olhar para ela.
- Tenho de te dizer uma coisa. Detesto fazê-lo, mas não quero que saibas de outra maneira.
Um medo gelado invadiu-a.
- É sobre o meu irmão, não é? Ele acenou.
- Já o trouxeram de volta para Inglaterra. Já foram apresentadas queixas contra ele.
Ela puxou as cobertas da cama para o peito.
- A única manhã em que não acordo com a preocupação de ser recebida por essas notícias, é quando isso acontece.
Kyle acariciou-lhe o rosto. O toque reconfortou-a um pouco, mas não conseguiu afastar o medo.
- Está nos jornais?
- Não. Ainda não.
- Então como soubeste?
- Disseram-me, ontem à noite.
Ontem à noite. Ele recebera-a com um sorriso e ouvira-a falar sobre o sucesso da festa. Um sucesso insignificante, como ele muito bem sabia, assim que a notícia da captura do seu irmão viesse à luz do dia.
- Escondeste-me isto.
- Não ganharias nada em saber ontem à noite, a não ser mais algumas horas de infelicidade.
- Compreendo, Kyle. Quiseste que eu apreciasse a minha liberdade durante algum tempo antes de regressar à minha prisão de escândalo. Deste-me um banquete delicioso antes de a infelicidade me tirar a vontade de comer seja o que for.
- Mais ou menos isso. - Levantou-se. Os seus olhos azuis reflectiam compreensão, mas também determinação. - Sabíamos que este dia podia chegar. Sobreviverás a isto. Eu certificar-me-ei de que assim é. Mas, para já, devias afastar-te do mundo enquanto eu tento saber como estão as coisas. Se alguém te contactar, para além da tua família, não o recebas. Manda dizer que estás doente.
- Não será mentira. Já me sinto doente no coração. Pobre Tim. A dureza que o invadiu foi visível, como acontecia sempre que
o nome do irmão dela surgia entre ambos.
- Prometi que o nosso casamento te pouparia ao pior, Roselyn, e garantirei que estás protegida. Aconteça o que acontecer, lembra-te que esse é o meu único dever e a minha única preocupação.
A determinação dele acalmou-a. Reconfortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto se rendia à aura de força e confiança de Kyle.
Recordações da noite anterior passaram-lhe pela cabeça. Ecos de alegria e prazer pulsaram de forma inaudível. Mas ele pareceu ouvir. A intimidade regressou ao quarto e à atmosfera, apesar da forma como ele endurecera para combater os mexericos em nome dela.
- Deve ter sido difícil para ti, ontem à noite, fingir que não se passava nada, Kyle, especialmente tendo em conta que isto também te afectará bastante. Mas estou contente por o teres feito. Foi bondoso da tua parte poupar-me durante algumas horas.
- Não foi nada difícil, Rose. Estava demasiado cativado por uma mulher que encontrara a sua própria felicidade, para pensar naquilo que me aguardava quando saísse desta cama. - Segurou-lhe no queixo e fitou-a nos olhos. - E, se partilhámos um banquete, não foi só o meu corpo que se alimentou, minha querida.
Inclinou-se, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fez uma pausa do lado de fora do quarto e ficou à escuta dos sons do outro lado da porta.
Não ouviu os soluços que esperara que começassem com a sua saída. A força que ela conseguira reunir ao ouvir que a espada caíra ainda estava a sustentá-la.
Mas choraria em breve. Tentou não imaginar a infelicidade que a aguardava. Sentia-a também, como se fluísse sem barreiras do coração dela para o dele.
Não podia poupar-lhe o sofrimento por causa de Timothy. Podia apenas fazer os possíveis para garantir que ela estaria afastada da situação, para que pudesse retomar a sua vida com alguma dignidade depois de o irmão ser enforcado.
Desceu e pediu que lhe trouxessem o cavalo. Antes de sair de casa enviou uma mensagem a Lord Hayden, dizendo-lhe que Longworth fora apanhado. Não seria bom que Lord Hayden fosse interrogado sobre os eventos e os pagamentos que fizera sem aviso prévio.
Uma hora depois, entrou num café na Strand. Os seus olhos cruzaram-se com os de um homem que jogava xadrez numa mesa grande. Este acenou ligeiramente na sua direcção antes de mover outra peça.
Kyle sentou-se numa cadeira perto da grande janela e esperou. Meia hora depois, Norbury perdeu o seu jogo de xadrez. Pouco satisfeito, levantou-se e dirigiu-se a Kyle. Puxou outra cadeira, mandou vir café e recostou-se enquanto inspeccionava Kyle.
- Foi sensato da sua parte aparecer - disse Norbury.
A mensagem e o pedido de um encontro estavam à espera de Kyle quando acordara. O bilhete devia ter sido escrito na noite anterior. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, noutra casa um homem, sem dúvida ainda bêbado e ainda zangado com a discussão no antro de jogo, maquinava algo que nada teria de bom.
Kyle não falara a Rose sobre esse bilhete. Havia realmente alturas em que a honestidade total não era o melhor caminho a seguir.
- Tem de pedir desculpa - disse Norbury.
- A si? Insultou-me a mim e à minha mulher. Seria melhor que, daqui para a frente, a nossa associação fosse apenas formal, sem mais encontros casuais em cafés.
- Já tinha combinado a partida de xadrez. Não ia alterar os meus planos por alguém como você. - Norbury mexeu o café com precisão ritualista. - A questão do irmão dela tem de ser discutida. Se assim não fosse, teria todo o prazer em me dirigir a si apenas através do meu advogado, no futuro.
- Não tenho nada a dizer em relação ao irmão dela.
- Uma ova é que não tem. Vamos fazer pressão para que o julgamento seja rápido. Terá de dar queixa também.
Kyle olhou em volta. Aqueles cafés eram, de uma maneira geral, estabelecimentos democráticos, embora este servisse apenas homens de posses e de posição. Anunciava a clientela que preferia através dos divãs e poltronas e dos charutos caros que vendia. Kyle preferia o Kendal Coffee House em Fleet Street, onde os engenheiros civis faziam as suas reuniões e os homens de negócios se juntavam.
- Não apresentarei queixa. Quando disse que estava de fora, queria dizer completamente de fora.
- Fará o que lhe digo, a menos que queira ver também a sua mulherzinha no banco dos réus.
Kyle não pediu explicações. Sabia que Norbury as daria voluntariamente. Estava com um ar demasiado satisfeito para fazer uma ameaça vazia.
- A semana passada, chegou-me aos ouvidos um rumor muito interessante - disse Norbury. - O Lillingston esteve com o advogado dele e mencionou o caso do Longworth. O advogado confidenciou-lhe que o advogado do Longworth teve notícias dele e recebeu uma procuração para vender aquela propriedade que o Rothwell protegeu. com ideias de descobrir o covil do Longworth, visitei pessoalmente o Yardley.
Norbury esperou que Kyle reagisse. Kyle recusou-se a dar-lhe essa satisfação.
- Ele falou-me sobre essa carta e sobre o que continha, e disse-me que tinha sido escrita para a sua mulher. Sei que a leu antes de o obrigar a queimá-la, portanto sabe que ela tencionava ir ter com ele. Tens de me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Da venda da propriedade. Ela não ia a lado nenhum.
- bom, quem sabe se estavam a falar apenas do dinheiro da venda? O Yardley não se recordava muito bem e não podemos confiar na sua memória, Bradwell.
Bastaria isso? As pessoas tinham tendência para acreditar no pior. Juntamente com o facto de Lord Hayden ter pagado as dívidas de um homem para o salvar do carrasco, e tendo em conta a relação funesta de Rose com uma das vítimas do irmão - esta última peça, esta carta, podia ser o que faltava.
- Você foi o único que não recuperou o dinheiro - disse Norbury. - Não deve ter importância. Em princípio, bastará a falsificação para o mandar para o cadafalso, mas às vezes o júri pode ser peculiar. E Lord Hayden pode tentar exercer a sua influência sobre os juizes. Você é a única vítima que não foi recompensada e ninguém pode dizer que já lhe foi feita justiça, de alguma maneira. Tem de testemunhar. E testemunhará, caso contrário garantirei que ela é julgada ao lado dele.
- Juro que deve ser um bastardo, Norbury. É impossível que um homem como o seu pai tenha tido um filho assim.
- Faria bem se recordasse que o meu pai está cada vez mais perto da morte antes de se esquecer do seu lugar e me insultar de forma tão directa. - Norbury deu um murro na mesa. - Está demasiado enfeitiçado por aquela pomba suja para ver a verdade. Muito bem, seja um idiota enamorado. Mas vai testemunhar no julgamento do Longworth.
Sim, provavelmente testemunharia. Para um homem tão estúpido, Norbury forjara uma bela rede de cordas de aço.
- A sua tenacidade em relação à família da minha mulher raia a loucura. A maneira como perseguiu o irmão dela é indecente, apesar de todos os crimes que ele cometeu. Afinal de contas, recuperou o seu dinheiro. Quanto à Roselyn, só vem agravar o seu comportamento desonroso em relação a ela quando ameaça agora uma mulher que sabe ser inocente.
- Não sei nada disso. Quanto ao meu interesse nessa família. ninguém me faz passar por idiota sem pagar por isso. Ninguém.
Kyle saiu sem mais uma palavra e inspirou o ar fresco. Acabara de ser avisado, mas duvidava que Norbury se tivesse sequer apercebido de que revelara as suas intenções.
Anos antes, o filho de um mineiro fizera Norbury passar por parvo. Em Dezembro último, fizera-o de novo, e o escudo de protecção do conde de Cottington em breve desapareceria.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose nessa noite, mas não houve paixão. Não houve prazer nem êxtase, nem alegria nem jogos. Simplesmente deitou-se ao lado dela, prendendo-a com um braço enquanto o seu coração marcava a passagem dos minutos sob o ouvido que ela encostara ao seu peito.
Ele trouxe-lhe paz, como se soubesse que era disso que ela precisava nesse momento. Rose passara o dia a tentar afastar da mente imagens de Timothy no patíbulo, mas sem sucesso. As distracções duravam pouco tempo e o pânico crescente voltava sempre a dominá-la.
Não sabia durante quanto tempo Kyle a tinha abraçado, num silêncio reconfortante. Perguntou a si própria durante quanto tempo mais ele continuaria a querer fazê-lo.
Agora, mostrava-se compreensivo com o sofrimento dela. Daí a uma semana, ou a um mês, continuaria a oferecer conforto? Continuaria ela a acreditar que ele teria renunciado à justiça se isso significasse poupar-lhe aquela dor?
As emoções à flor da pele deixavam-na indefesa perante a força dele, que se sentia muito claramente essa noite, impondo uma tranquilidade no quarto para que ela pudesse ter algum alívio, mantendo ao largo as imagens horríveis sobre o futuro de Tim.
Isso significava apenas que outras imagens podiam invadir-lhe a cabeça. Imagens de Kyle a sofrer o desprezo da sociedade por causa da sua ligação a um ladrão infame. Ele nunca fora verdadeiramente
queimado por um escândalo. O seu papel na história do leilão não era negativo.
Kyle não fazia ideia de como seria horrível. Não sabia como era quando velhos amigos abandonavam uma pessoa e as cabeças se viravam quando entrava numa loja ou numa reunião.
Não era justo. O seu único crime fora casar com ela. Mas pagaria por essa união.
Rose devia ter sido mais veemente ao avisá-lo sobre isso, quando ele lhe oferecera aquele caminho para a redenção. Devia ter percebido que as coisas podiam não correr como ele pensava e que, em vez de ele a salvar, a fama da família dela podia arruiná-lo. Aceitara com demasiada facilidade a visão optimista de Kyle.
Apertou um pouco mais o seu abraço, num reflexo físico das emoções que lhe apertavam o coração. Ele beijou-lhe a cabeça.
- Isto é agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O teu calor.
- Sim. - Ele virou-se até ficar por cima dela, com as ancas entre as suas coxas. Apoiado nos antebraços, com o rosto a centímetros do dela, percorreu-lhe com as pontas dos dedos o queixo e o nariz, os olhos e os lábios.
- Hoje estive com Lord Hayden. Ele já sabia mais do que eu teria conseguido descobrir numa semana. O Timothy compareceu perante o magistrado esta manhã e foi enviado para Newgate. O julgamento terá lugar em breve. Há homens a fazer pressão nesse sentido.
Em breve. Talvez fosse melhor. Para todos, excepto para Timothy.
- Já se sabe que ele foi apanhado?
- Apareceram alguns cartazes hoje. Estará em todos os jornais amanhã.
- E no outro dia, e no outro, até terminar. Hoje fiquei em casa como me ordenaste, Kyle. Mas acho que não consigo fazê-lo durante semanas. Nem me parece que deva. Parecerá que estou a esconder-me. Ou que tenho vergonha. As acções do Timothy foram infelizes, mas não creio que deva agir como se o crime dele fosse meu.
Sentiu o olhar dele na escuridão.
- Tens a certeza de que queres enfrentar isto, Rose? Estás confiante de que és capaz?
Seria? Há quatro meses, teria sido impossível enfrentar o mundo de cabeça erguida. Como um bode expiatório, ela assumira os pecados de Tim e aceitara o desdém por ele como seu.
Já não se sentia inclinada a ver as coisas dessa maneira. Agora era Mrs. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem bom honrara-a com a sua admiração e, sim, com o seu afecto. O terror por Tim podia arrasá-la de vez em quando nos dias que se aproximavam, e certamente que sofreria, mas Kyle estava certo no que lhe dissera essa manhã. Sobreviveria àquilo, porque não permitiria que o irmão fizesse novamente dela uma vítima.
Mais importante ainda, não permitiria que Tim o fizesse a Kyle. E era o que aconteceria, se ela se escondesse e não enfrentasse o mundo.
- Tenho a certeza de que não quero enfrentá-lo. No entanto, acho que tenho de o fazer, mais ainda do que com o meu último escândalo.
- Não poderás defender o teu irmão. Não há defesa possível.
- Eu sei.
- Pode ser que não seja muito mau. Terás a Alexia ao teu lado! E Lady Phaedra, e os respectivos maridos.
Oh, seria mau. Ele não fazia a mais pequena ideia. E nunca saberia. Rose não tencionava sobrecarregá-lo com a sua infelicidade todas as noites.
- E a ti, Kyle. Acho que o mais importante para mim será ter-te ao meu lado.
Sentiu o olhar dele intensificar-se. Depois beijou-a. Não havia qualquer exigência na forma gentil como os lábios dele tocaram nos seus. Nenhuma expectativa. Mesmo assim, algo se agitou dentro dela. O seu coração inchou.
- Tens de saber uma coisa, Rose. Lord Hayden testemunhará no julgamento. Dirá que pagou às vítimas, mas, ao fazê-lo, confirmará as acusações. Não tem alternativa. Será chamado e terá de ir. - Fez uma pausa. - Eu também serei chamado, como uma das pessoas que sofreram perdas.
- Perdas que não foram recuperadas, no teu caso.
- Sim.
Sentiu que ele ficava tenso à espera da sua reacção. Talvez
esperasse uma reacção emocional, cheia de lágrimas. Talvez achasse que ela o empurraria, furiosa.
Não o faria. Não podia fazê-lo. Mas também não podia negar que o seu coração se rebelava com as implicações desse "sim". De todos os testemunhos no julgamento, o dele seria o mais prejudicial.
- Tens de o fazer? - murmurou.
- Tenho. Mas compreendo se isso se erguer entre nós daí em diante, ou até agora.
Rose desejou poder dizer que isso não mudaria nada, mas temia que não fosse verdade. No seu espírito, já havia uma porta a fechar-se, para proteger da desilusão um ponto privado e vulnerável. Mesmo a Roselyn que se reencontrara, que sabia que Kyle era bom, teria dificuldades em não se sentir atraiçoada se fosse o marido a enviar o seu irmão para o cadafalso.
- Porquê? Por uma questão de honra? Por justiça? - As palavras saíram em tom mais cortante do que ela tencionara. - Podemos sair de Londres. Se estiveres fora da jurisdição do tribunal, não serás obrigado a falar.
- A justiça já não me interessa e a minha consciência também passaria por cima da minha honra, nesta questão. Simplesmente tenho de o fazer. Peço-te que o aceites e me perdoes, mas sei que provavelmente não conseguirás.
Deitou-se de novo ao lado dela, mas o abraço já não era tão reconfortante. Rose não o desencorajou de ficar. Aceitou o conforto por aquilo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior prometera que poderia vir a tornar-se.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy, Kyle viu-se no meio de um grupo peculiar, perante os olhos de toda a sociedade, no teatro de Drury Lane.
Começara de forma bastante simples. Jean Pierre recebera mais uma vez uma mensagem de Easterbrook a convidá-lo para usar o camarote no teatro. Jean Pierre sugerira que Kyle também fosse e levasse Roselyn, para a distrair da inquietação que ameaçava dominá-la. Rose concordara que seria a forma perfeita de mostrar a sua coragem. À hora marcada, Kyle acompanhou-a aos lugares bem visíveis que Easterbrook tinha sempre reservados no teatro.
E as pessoas repararam neles, sem dúvida. Rose tinha o sorriso pronto e a dignidade bem à vista. Provou que conseguia disfarçar a angústia de forma excepcional, mas Kyle reconheceu os pequenos sinais que indicavam que os olhares e os murmúrios a magoavam.
No entanto, pouco depois, Rose deixou de ter interesse para as pessoas. A porta do camarote abriu-se e Lord Elliot entrou com a sua invulgar esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell, tia Hen - disse Lord Elliot. - O meu irmão recomendou a peça desta noite. Não me tinha apercebido de que a plateia teria a sorte de ver três das mulheres mais belas de Londres de uma só vez.
- E das mais escandalosas também - disse Rose ao ouvido de Kyle. - O caso da Hen com o teu amigo, segundo ouvi dizer, anda nas bocas do mundo, e Lady Phaedra é famosa por ser outré.
- Assim, precisarás de menos coragem, já que partilhas as atenções com elas.
A decisão de Rose aceitar aquele convite tinha animado Kyle. Ao longo da última semana, ela sempre dera a entender que o dia de amanhã não seria nada de especial. Excepto quando estavam a sós.
Talvez ele estivesse a imaginar a leve cautela que se introduzira na forma como lidavam um com o outro. Não podia apontar nada de concreto, palavras ou acções que provassem que a intimidade diminuíra subtilmente. Mas estava lá, tal como ele calculara que aconteceria assim que lhe falara sobre o julgamento. Ela não seria humana se não se ressentisse do papel que o marido desempenharia nele.
A única questão era se, no futuro, quando estivesse tudo terminado, conseguiriam voltar a derrubar a formalidade e a conhecer os segredos que aguardavam na rendição total que tinham começado a partilhar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre inclinou-se por trás de Henrietta e olhou para ele. Kyle inclinou-se também.
- Não é curioso que Lord Elliot se tenha juntado a nós? Assim não há perigo de que ele visite o marquês. - A voz baixa de Jean Pierre era dramática.
- Estás louco, meu amigo. Sem dúvida por causa desses químicos todos.
- Louco? Quem é que está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para se juntar à conversa.
- Cest mói disse Jean Pierre. - A sua beleza tem sempre esse efeito em mim.
Sorrindo com o elogio, ela virou-se de novo para os outros camarotes.
A porta do camarote abriu-se de novo e Lord Hayden entrou, com a mulher e Irene.
Caroline insistiu para que Irene se sentasse com ela à frente, de modo a poderem observar a multidão e trocar mexericos. Isso obrigou a algumas alterações de lugar. Kyle deu por si ao lado de Jean Pierre na fila de trás.
- Quase cheio - observou o amigo, lançando um olhar significativo às cabeças à frente de ambos.
- Toda a gente procura distracção, é apenas isso. Amanhã aguarda-nos uma provação terrível. Sabemos que Roma vai arder e estamos a tocar harpa esta noite.
- Arde apenas para ela. Para Lord Hayden, as chamas serão pequenas. E contudo, aqui estamos todos. Foi ele que preparou isto. E, mais uma vez, aquela grande casa está vazia, para além dele e dos criados. - Jean Pierre levou o dedo ao nariz num gesto conspirador.
Talvez Easterbrook tivesse preparado aquilo. Se assim fora, provavelmente o assunto distraíra-o durante alguns minutos antes de prosseguir com a sua vida. Kyle estava grato, independentemente da forma como acontecera. Rose parecia estar a divertir-se. com tantos nobres à sua volta, o mundo não estava a prestar-lhe uma atenção particular.
A meio do segundo acto, a porta abriu-se mais uma vez. Kyle ouviu o som e sentiu a cotovelada de Jean Pierre.
Olhou para trás. O marquês concedera-lhes a honra da sua presença. Impecavelmente vestido e arranjado, parecendo o grande senhor que era, encostou-se à parede ao fundo do camarote.
- Se queria juntar a família no teatro com ele, porque não os convidou, simplesmente? - murmurou Jean Pierre com irritação. A chegada de Easterbrook deitara por terra todas as especulações e a esperança de um mistério interessante para aquela noite.
- Não creio que ele tivesse intenção de vir. Não me parece muito feliz por aqui estar.
O marquês inspeccionou os outros camarotes como um falcão. Se estava à procura de alguém em particular, devia ter ficado desapontado. Deu um passo em frente, saindo das sombras e aproximando-se das cadeiras.
Os irmãos repararam então na sua presença. A surpresa nos seus olhos era inconfundível. As senhoras levantaram-se, numa manifestação pública de deferência ao seu título.
A posição social tinha os seus privilégios, e arranjar lugar para Easterbrook na primeira fila do camarote causou alguma agitação. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, sente-se lá atrás com a sua amiga para eu não ter de ouvir os vossos risinhos. Mr. Bradwell tratará de quaisquer jovens impetuosos que tentem entrar às escondidas para namoriscar convosco. Cavalheiros, estou certo de que não se importam que eu me rodeie por estas belas damas esta noite. Serão novamente vossas quando a peça acabar.
Durante o resto da peça, o marquês permaneceu na frente do camarote, ostensivamente absorvido na acção que se desenrolava no palco. Alexia tinha o orgulho de se sentar ao seu lado direito, em sinal do afecto que ele sentia por ela, bem como da sua posição enquanto esposa do segundo irmão do marquês. Lady Phaedra estava à sua esquerda. Roselyn e Henrietta preenchiam os restantes lugares da fila.
- Tinhas razão, não há qualquer mistério neste homem. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha qualquer interesse nos impulsos do marquês. A única coisa que lhe interessava era a bela loura que estava sentada na fila da frente, provavelmente deixando sem fôlego os jovens na plateia que erguessem os olhos para ela.
O efeito era o mesmo, fosse qual fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês acabara de cumprimentar Mrs. Bradwell, cujo irmão seria julgado no dia seguinte e enfrentava a pena de morte, e colocara a cadeira dela perto da sua. No mundo que Rose enfrentava naquela noite, isso era tudo o que importava.
CAPÍTULO 22
Hayden não deixou a Alexia vir. Temia que ela não conseguisse aguentar a perturbação, no seu estado. Ela manda o seu amor e as suas orações, Rose. - Lady Phaedra sentou-se na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lord Elliot sentou-se ao lado da mulher e ofereceu a Rose algumas palavras de esperança que toda a gente sabia serem apenas de circunstância.
A situação de Tim era desesperada. Os jornais estavam cheios dos detalhes dos seus crimes, agora que as queixas tinham sido apresentadas. Os nomes, as quantias, a audácia de toda a fraude - ela ficara a saber mais sobre os pecados do irmão do que qualquer irmã precisava de saber, mas descobrira também o quanto o mundo ainda não compreendia.
O julgamento só teria um sentido e seria muito rápido. Se ela fizesse parte do júri, também se veria obrigada a condená-lo.
Mas não estava entre o júri, e sim ali, preparando-se para o que ia ver, à espera de vislumbrar a cabeça loura do irmão à frente de todas aquelas pessoas, assim que o julgamento em curso terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo, mas, apesar disso, o seu coração chorava.
- Foi muito corajosa em vir - disse Lord Elliot. - Estou certo de que ele ficará grato.
Quem? Timothy? Se ele a visse, encontraria nisso algum conforto? Rose ainda não o visitara. Só teria uma oportunidade de o
fazer, e estava a poupá-la para depois do dia do julgamento. Ele precisaria mais dela nessa altura, embora um encontro e separação nessas circunstâncias medonhas fossem certamente horríveis para ambos.
Passou o olhar pelos homens sentados lá em baixo, detendo-se em Kyle. Talvez Lord Elliot estivesse a referir-se a ele, e não a Timothy. Mas Rose duvidava que Kyle se sentisse grato. Nunca poderiam fingir que ele não testemunhara, se ela estivesse presente para ouvir as suas palavras.
Lenta e inexoravelmente, tinham avançado em direcção àquele dia enquanto tentavam contornar as suas implicações. Kyle tornara-se de novo cuidadoso. Ela reencontrara a sua cautela. Véus de formalidade tinham caído entre eles, dia após dia, até ela ter de fazer um esforço para conseguir ver o homem que já não era um estranho.
Nas últimas três noites, tinham dormido separados. Ele sabia que nada podia fazer que se sobrepusesse à terrível espera. compreendera quando ela se recolhera mais cedo, alegando cansaço.
- Ah, ali está o Hayden - disse Lady Phaedra.
Rose viu Lord Hayden fazer uma pausa à porta e depois avançar e sentar-se junto de Kyle. O julgamento em curso continuou.
Lord Elliot estendeu a mão e colocou-a sobre a mão enluvada de Rose.
- O meu irmão pediu-me que lhe dissesse que fará o que puder para que a vida do seu irmão seja poupada. Pede-lhe que compreenda que as suas palavras têm de ser verdadeiras, claro, mas que as suas declarações terão esse objectivo.
- Lord Hayden sempre foi generoso para com a minha família. Nunca questionaria os seus motivos agora. No entanto, obrigada pelo aviso.
Lord Elliot franziu a testa e olhou para Phaedra. Ela encolheu os ombros. Rose não tentou explicar. Descobririam a verdade muito em breve.
Só havia uma coisa que Lord Hayden podia dizer para mitigar o caso contra Timothy. Podia dizer a todos que Timothy não estivera sozinho quando se apoderara de todo aquele dinheiro e que o esquema nem sequer fora ideia sua.
- Alguma vez fez isto antes? - perguntou Lord Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- No seu testemunho, diga apenas os factos. De forma simples e clara, para que o júri compreenda. Pode haver perguntas. Responda apenas ao que lhe perguntarem, nada mais. - Lord Hayden lançou-lhe um olhar cortante. - Quando lhe dou estes conselhos, estou, naturalmente, a presumir que prefere que ele não seja enforcado.
- Há alguma hipótese de isso acontecer?
- Nunca se sabe. Este juiz já se mostrou misericordioso antes. Se tiver razões para isso, pode fazê-lo de novo.
Não eram os únicos que esperavam que um julgamento terminasse e o próximo começasse. Tinha sido construída uma galeria improvisada, e não por causa do pobre carteirista que enfrentava agora a justiça. Os belos chapéus que nela se viam estavam colocados sobre cabeças que dormiam em lençóis de seda. Um deles cobria os caracóis cor de fogo de Lady Phaedra. Outro, mais discreto, escondia a maior parte do cabelo louro e do rosto de Roselyn.
Chegaram mais homens e o espaço onde Kyle e Lord Hayden estavam sentados ficou apertado. Kyle viu Norbury e os outros membros do comité "Enforquem o Longworth".
- Muitas testemunhas - disse.
- Muitas vítimas - respondeu Lord Hayden.
- Servirá de alguma coisa o facto de lhes ter restituído o dinheiro?
- Essa é, muitas vezes, uma das condições para a misericórdia. No entanto, da última vez que isto aconteceu, o banqueiro foi executado por uma única condenação de falsificação. Julgo, contudo, que o volume total dos roubos foi a verdadeira razão para a sentença.
A ironia não passou despercebida a Kyle.
- Devia ter aceitado também o seu dinheiro. Assim, não me encontraria agora na posição da única vítima que não foi compensada.
- Asseguro-lhe que, mesmo que tivesse aceitado, isso não alteraria nada do que vai acontecer hoje.
Quando o julgamento em curso terminou, houve uma agitação generalizada na assistência enquanto algumas pessoas saíam e outras
ocupavam o seu lugar. Lord Hayden inclinou a cabeça para Kyle, de forma a não ser ouvido por terceiros.
- Faça um testemunho breve, sem suposições nem desenvolvimentos. Diga apenas aquilo que tem a certeza de ter acontecido.
Rose quase chorou quando trouxeram Tim. com o cabelo claro mal penteado, parecia doente, pálido e terrivelmente assustado. Ainda não tinha vinte e cinco anos e parecia-se demasiado com o rapaz que fora até há bem pouco tempo, insignificante em estatura quando comparado com os homens que o julgariam.
Tim não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas reunidas e o seu queixo tremeu. Depois os seus olhos percorreram a galeria e encontraram-na. Ela tentou sorrir e levantou a mão num pequeno aceno. Tim foi-se abaixo. Teve de olhar para o chão enquanto se recompunha.
Uma a uma, as vítimas prestaram as suas declarações. Uma a uma, falaram do desaparecimento dos fundos, da confissão de Timothy e da oferta de restituição. Todos explicaram que a restituição viera na realidade de Lord Hayden Rothwell, depois de ter casado com Alexia, a prima de Timothy.
Rose percebeu que a ausência de prejuízos efectivos tinha alguma importância para o júri, mas não a suficiente para absolver Tim. Observou o juiz, para avaliar a sua reacção à litania de queixas.
- Está a correr melhor do que eu esperava - murmurou Lady Phaedra. - Uma vez que ninguém ficou prejudicado.
- Nem todos recuperaram o dinheiro - disse Rose. - O Kyle não recuperou.
A expressão de Lady Phaedra era de espanto. Murmurou algo a Lord Elliot, que ficou ainda mais sério.
Phaedra pousou a mão enluvada na de Rose.
- Eu sabia que isto seria uma provação e que sofreria muito, mas não tinha a noção do quanto este dia seria terrível para si, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de conforto. Mas o seu coração deu um salto quando o nome de Kyle ecoou no tribunal.
O olhar de Kyle cruzou-se com o dela. Rose viu o seu pesar, o seu pedido de desculpas. Depois ele avançou e prestou juramento.
As suas declarações foram breves. Extraordinariamente breves. A história era muito parecida com a dos outros, um fundo de investimento que se viera a descobrir estar vazio devido a desfalque e falsificação.
Desta vez, faltava a parte da recuperação do dinheiro.
O advogado da acusação decidiu deixá-lo bem claro.
- Mr. Bradwell, o seu fundo recuperou o dinheiro perdido?
- Sim, o dinheiro foi totalmente reposto.
A resposta de Kyle causou consternação entre as testemunhas. Rose viu Norbury a ferver de raiva. Murmúrios audíveis de "perjúrio" fizeram-se ouvir nessa parte da sala.
O acusador fez uma expressão severa.
- Mr. Bradwell, está a dizer que Lord Hayden repôs esses fundos? Recordo-lhe que ele prestará testemunho dentro em pouco e que, se estiver a cometer perjúrio, rapidamente será descoberto.
Kyle devolveu o olhar do homem.
- Não me perguntou como os fundos foram repostos, nem por quem, mas apenas se o tinham sido. Respondi com a verdade. Esse fundo recuperou a totalidade do dinheiro que possuía antes de ser roubado.
- Vejo que é um homem preciso, senhor. Nesse caso, pergunto-lhe agora, precisamente como foi esse dinheiro reposto?
- Eu próprio o repus.
- Então o senhor é que foi roubado por Mr. Longworth.
- O fundo não estava em meu nome. Mr. Longworth roubou aos meus tios e eles recuperaram o dinheiro. A sua pergunta foi essa e eu respondi-lhe. Em boa consciência, não posso considerar Mr. Longworth responsável pela minha generosidade insensata ao usar o meu próprio dinheiro para cobrir os prejuízos.
O júri achou a resposta divertida. O juiz quase sorriu também. O acusador praticamente rosnou a próxima afirmação.
- Não tem qualquer importância se o senhor o acha responsável ou não. A lei assim o considera.
- Sim? No julgamento anterior, uma mulher testemunhou que o homem sentado no banco dos réus lhe tinha roubado dinheiro. Acho provável que o marido o tenha reposto, para que ela pudesse comprar o jantar para a família. No entanto, ele não foi chamado a testemunhar, apesar de o prejuízo, em última análise, ter sido dele.
No caso deste fundo, eu desempenhei o mesmo papel que esse marido, ou que Lord Hayden nos outros relatos que ouvimos hoje.
- Ele tem uma certa razão - murmurou Lord Elliot. Sim, tinha. O advogado de acusação estava atrapalhado.
- A sua opinião sobre a lei não interessa, Mr. Bradwell. Permita-me que pergunte, mais especificamente: o senhor foi recompensado, por Lord Hayden ou por Mr. Longworth ou por qualquer outra pessoa relacionada com essa família, pela sua própria perda quando repôs o dinheiro no fundo em questão depois do roubo?
- Sim.
O acusador levantou as mãos e apelou ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que não é verdade. Ele está a mentir.
- Está a mentir, Mr. Bradwell?
- Estou a responder à pergunta com a verdade.
- Lord Hayden admitiu ao magistrado que o senhor não aceitou restituição da parte dele.
- Não me perguntaram se recebi restituição. Perguntaram-me se alguém da família Longworth me tinha pago. A perda foi de vinte mil libras. Tenho um direito de retenção sobre a propriedade dos Longworth que vale pelo menos cinco mil, por exemplo.
- E as outras quinze mil?
- A irmã de Mr. Longworth acedeu em casar comigo. Considero as contas saldadas.
Rose teve de sorrir, apesar de os seus olhos se encherem de lágrimas. Ele estava a esforçar-se por ajudar Tim e a aguentar bastante bem o ataque.
Ergueu-se um coro de murmúrios e conversas. O advogado deixou a assistência acalmar e depois sorriu.
- Deve considerar-nos a todos idiotas, Mr. Bradwell. Casou com uma mulher sem qualquer fortuna e pede-nos que acreditemos que isso equilibra as contas e salda a dívida do irmão dela para consigo?
Kyle trespassou o homem com um olhar tão límpido, tão honesto, que a sala se silenciou.
- Quem tiver dúvidas a esse respeito, é porque não a conhece. Ela está ali, sentada lá em cima, a duas cadeiras de Lord Elliot Rothwell. Olhem para ela e digam-me que não vale quinze mil libras.
E eles olharam. Todos. Centenas de olhos masculinos procuraram Elliot, depois deslocaram-se para ela. Rose sentiu as faces a arder.
- Tire o chapéu. Agora - murmurou Lady Phaedra.
Rose desatou as fitas e retirou o chapéu. Ocorreu-lhe uma memória, de olhos a mirá-la e a calcular o seu valor por outros motivos, não há tanto tempo como isso.
O seu olhar encontrou o de Kyle. Olhou para ele para não ver os outros. Ele estava a fazer aquilo por ela, para ajudar o inútil do seu irmão. Acontecesse o que acontecesse, estar-lhe-ia para sempre grata por ter tentado.
A expressão de Kyle alterou-se, deixando-a aturdida. O seu olhar não transmitia qualquer indício de tudo não passar de um truque para salvar a vida de Timothy. Na verdade, aqueles eram os olhos de um homem que via realmente uma mulher de valor incalculável.
Kyle não escondeu a sua admiração. O seu carinho. Os outros provavelmente viram-no também. Aquela declaração pública do seu afecto e orgulho comoveu-a. Fê-la sentir-se humilde, lisonjeada.
O olhar de Kyle prendeu-a de tal forma que deixou de ouvir o barulho no tribunal. No silêncio que a envolveu, tocou nos lábios em resposta a um beijo invisível e o seu coração pronunciou palavras de amor há muito adiadas.
- Ele tem uma certa razão - disse o juiz. - Um homem podia sair-se bem pior por quinze mil libras.
Os membros do júri riram e trocaram acenos entendidos. O advogado de acusação não estava disposto a admitir que lhe negassem a sua conclusão.
- É muito bela, de facto. No entanto, na realidade, não foi recompensado da sua perda.
- Discordo - disse Kyle.
- Não necessitamos do seu acordo. Pode ir. ? " A seguir foi a vez de Lord Hayden prestar juramento. Quando
o advogado de acusação abriu a boca para fazer a primeira pergunta, Lord Hayden silenciou-o com um olhar gélido e a mão erguida.
- Antes do meu testemunho, gostava de apresentar evidências que estão relacionadas com as declarações das testemunhas anteriores.
O juiz acenou afirmativamente e o advogado encolheu os ombros.
- Uma vez que fui eu a pessoa que descobriu os roubos e que examinou todos os registos bancários, sei a data em que ocorreu cada roubo, o nome dos titulares dos fundos e o montante subtraído. Muitas destas testemunhas nunca deviam ter sido chamadas, porque não têm qualquer ligação a este caso. As perdas que sofreram aconteceram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade, mas não a todas estas pessoas.
Um silêncio chocado abateu-se sobre a sala durante alguns segundos. Depois as vozes ergueram-se num tumulto de gritos e perguntas. O juiz conseguiu reduzir o nível de ruído para que o advogado de acusação se conseguisse fazer ouvir.
- Seria melhor se se explicasse, Lord Hayden.
- Quando efectuei as restituições, no Verão passado, não o fiz apenas em relação às vítimas de Timothy Longworth. Cobri também os prejuízos das vítimas do homem de quem ele herdou essa sociedade e com quem aprendeu a profissão e os esquemas criminosos. O seu irmão, Benjamim. Não revelei o envolvimento de Benjamin por várias razões. Depois de as vítimas recuperarem o dinheiro, ninguém queria saber quem o roubara. O Benjamin era meu amigo e confesso que esse sentimento também me influenciou. No entanto, se a duração e alcance dessa fraude tivessem vindo à luz do dia, o banco não teria sobrevivido e muitos outros teriam sido prejudicados.
- Muito admirável, Lord Hayden. No entanto, revela tudo isto bastante tarde.
- Tinha uma dívida de honra para com o Benjamin e mantive a esperança de que o seu nome pudesse ser poupado.
- Claro. No entanto, sabia que seria interrogado. Sabia que isto se viria a saber.
- Tenciono responder como Mr. Bradwell respondeu. Sem perjúrio, mas também sem interpretações. No entanto, o Benjamin Longworth está morto e, após muita reflexão, cheguei à conclusão de que a minha dívida morreu com ele. O Timothy Longworth é um tratante, sem dúvida, mas já tem pecados suficientes sobre os ombros para ter de responder também pelos do irmão mais velho.
- Tem a certeza, relativamente às datas dos roubos anteriores?
- A certeza absoluta. A maior parte desse dinheiro já tinha desaparecido quando o Benjamin Longworth partiu para combater na Grécia.
O advogado de acusação insistiu em questionar Lord Hayden sobre quais das testemunhas tinham de facto sido vítimas de Timothy. Kyle decidiu que isso demoraria algum tempo e saiu do tribunal para apanhar um pouco de ar.
Havia muitas pessoas reunidas no exterior e a notícia das revelações surpresa já se tinha espalhado, causando alguma confusão e discussões. com um pouco de sorte, teria o mesmo efeito entre os jurados. Talvez fosse essa a verdadeira razão pela qual Lord Hayden adiara a revelação da verdade.
O tempo troçava dos eventos tristes que tinham lugar dentro do edifício. O calor, invulgar para a época, dava uma amostra da estação que estava prestes a começar. Uma brisa fresca trazia consigo aromas de renovação.
- Suponho que a litania de Lord Hayden demorará pelo menos uma hora.
Kyle deu meia-volta e viu Rose, com o chapéu na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado aqueles registos.
- A Alexia diz que ele nunca se esquece de números. Acho que homem nenhum se esqueceria, se tivesse pago mais de cem mil libras.
Rose parecia bastante calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Em muitos casos, estar à espera de que acontecesse alguma coisa má era pior do que quando ela acontecia de facto.
- Sabias, Rose? Que o teu irmão mais velho era parte nisto? Ela acenou com a cabeça.
- Não sabia os pormenores, nem quem roubou o quê a quem. Mas a Alexia confidenciou-me a verdade no Verão passado, depois de o Tim desaparecer. Lord Hayden disponibilizou o dinheiro para que o Tim o devolvesse àquelas pessoas, apenas para descobrir que houvera mais roubos. Fiquei arrasada quando soube que ambos eram maus e não quis analisar as respectivas quotas-partes de culpa.
- Estou aliviado por ele ter decidido fazer a distinção entre os crimes de um e outro.
Um leve sorriso surgiu nos lábios dela. Os seus olhos eram tristes, mas claros como cristais. Olhou para ele como se conseguisse ver a sua mente.
Depois abraçou-o e depositou-lhe um beijo cuidadoso no peito antes de o soltar.
- Agradeço-te, Kyle, pela forma como falaste lá dentro. O Tim não merece o esforço que fizeste para o prejudicar o menos possível. Temo que ele não compreenda como deve ter sido difícil para ti mostrar bondade a alguém que apenas te fez mal. Ele é demasiado infantil para saber a força que é necessária para mostrar misericórdia a alguém que crês que merecia a forca.
- Não o fiz por ele, Roselyn.
- Não. Fizeste-o para me poupar. Para me proteger. Por mim. Eu sei e serei eternamente grata. - Olhou para o edifício e endireitou os ombros. - Tenho de voltar, para estar presente quando chegar o fim. Não quero que ele esteja sozinho nessa altura.
- com certeza.
Ela afastou-se. Kyle caminhou ao longo da fachada do edifício, adiando o regresso à sala. Mas tencionava entrar a tempo do veredicto e da sentença. Não queria que ela estivesse sozinha nessa altura.
Uma pequena agitação fez-se sentir na rua. Rapazes correram com folhas acabadas de imprimir, apregoando as notícias. A maioria anunciava surpresas no julgamento de Longworth. Um, contudo, gritava informações menos dramáticas.
Kyle aproximou-se do rapaz e comprou a folha. Trazia uma faixa negra e um artigo muito curto.
O conde de Cottington morrera.
Rose caminhou ao lado de Lord Hayden, tentando não vomitar com os cheiros da prisão. Levava um cesto para Timothy com bens de primeira necessidade e também alguns pequenos luxos. Ele não os merecia, mas ela lembrava-se de como Alexia lhe costumava mandar esse tipo de coisas durante os meses desgastantes de frugalidade no ano anterior.
Alexia não podia acompanhá-los, devido ao seu estado. Lord Hayden proibira também a companhia de Irene, e agora Rose compreendia porquê. Newgate era um lugar terrível. Passaram por
grandes celas onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma jovem devia ver. Pela expressão severa de Lord Hayden, Rose calculou que ele achava que nenhuma mulher decente as devia ver também.
Tim estava numa pequena cela com apenas cinco homens. A sua instalação em condições mais privadas devia-se à influência de Lord Hayden. Rose esperava que fosse a última vez que Lord Hayden gastava dinheiro por um Longworth.
O carcereiro retirou os outros prisioneiros para que ela não tivesse de suportar a interferência deles.
Assim que ficaram a sós, Tim virou-se para eles. O seu sorriso era triste e forçado.
- É bom ver-te, Rose. Foi muito amável da tua parte vires ao julgamento.
- És meu irmão, Timothy. A Irene e a Alexia mandam abraços e beijos. A Alexia terá um bebé em breve, por isso não pôde juntar-se a nós. Escrevi-te com a feliz notícia, mas duvido que tenhas recebido a carta.
- A Irene está bem?
- Na medida do possível. Vive com a Alexia e com Lord Hayden. Foi poupada à maior parte de. bom, à maior parte.
Tim teve a decência de agradecer a Lord Hayden por ter ajudado Irene. Depois olhou para Rose com menos boa vontade.
- Vejo que o teu marido não te acompanhou.
- Teve de partir para o Norte, para assistir ao funeral do conde de Cottington. Mas não, não acredito que tivesse vindo, de qualquer maneira.
A boca de Tim estremeceu ao ouvir falar no conde.
- Suponho que o Norbury é agora o novo conde. Ainda bem que o veredicto foi pronunciado antes de isso ser do conhecimento geral, caso contrário estaria na forca sem a menor dúvida. O Norbury queria ver-me morto e calado para que nunca pudesse falar, mas rir-me-ei na cara dele por não o ter conseguido. Não que aquilo que me espera seja muito melhor do que a morte.
- Não fale como um tolo - disse Lord Hayden. - Um degredo de catorze anos não é a forca. Estará vivo. Um dia, será livre. É jovem e pode começar de novo. Devia agradecer a Deus por o juiz se ter mostrado misericordioso.
- Misericordioso, uma ova. Morrerei na mesma, apenas mais devagar. Os homens são obrigados a trabalhar como escravos no degredo. Ouvi dizer que é preciso meio ano de barco só para lá chegar. Eu apenas pedi emprestado algum dinheiro, mais nada. Ia devolvê-lo, se não me tivesse obrigado a admiti-lo naquela altura. E podia ter dito em tribunal que era tudo culpa do Ben. Teriam acreditado em si.
Lord Hayden ficou tenso e Rose pensou que ele podia bater em Tim.
- Mas a culpa não foi toda dele. Isso seria mentira.
O rosto de Tim contorceu-se num misto de emoções e raiva.
- Está contente por isto ter acontecido. Contente por me terem encontrado. Contente por o Ben estar morto. Sei-o muito bem.
Rose aproximou-se para acalmar o irmão.
- Estás a dizer disparates. Lord Hayden ajudou-te. Tem-nos ajudado a todos, desde o princípio. Se não fosse o dinheiro dele, no Verão passado, esta seria mesmo uma despedida final, Tim.
Os olhos de Tim encheram-se de lágrimas mas a sua petulância não desapareceu. Rose olhou para Lord Hayden.
- Poderia deixar-me a sós com ele? Apenas durante meia hora? Lord Hayden pareceu aliviado com a sugestão.
- Estarei do outro lado da porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu obrigo-o a esperar.
Rose pousou o cesto na pequena mesa grosseira que era a única peça de mobiliário da cela.
- Trouxe-te algumas coisas, para a viagem e para depois. Ainda tens as roupas que tinhas em Itália?
Tim acenou e observou-a enquanto ela retirava os pequenos presentes do cesto. Trouxera artigos práticos que a maior parte das pessoas tomava por certos, como tesouras e alfinetes. Mas incluíra também uma lata de chá, alguns doces e um saco de xelins. Havia também papel e canetas, para que ele lhe escrevesse, se pudesse.
- Não trouxeste brandy? - perguntou Tim.
- Nada de álcool, Tim. Farias melhor se nunca mais tocasses numa gota.
Ele abanou a cabeça, revoltado, e afastou-se.
- Tim, o que querias dizer quando falaste do Norbury? Disseste que ele queria ver-te morto para não poderes falar.
Tim coçou a cabeça, depois afastou a pergunta com um gesto largo.
- Nada. Não tem importância. É como se estivesse morto, de qualquer maneira.
- Talvez não tenha importância, mas estou curiosa.
Ele aproximou-se de novo e remexeu nos artigos que Rose trouxera.
- Passámos algum tempo juntos, há cerca de quatro anos. Conhecemo-nos através do jogo e ele acedeu em incluir-me no seu círculo de vez em quando, para algumas das suas diversões. Abriu a lata de chá e cheirou-o. - Ele tem uma casa no Kent, não muito longe da propriedade do pai, onde costuma dar festas.
- Estou a par dessas festas. Frequentaste-as? Tim corou.
- Houve problemas numa delas. O Norbury discutiu com a mulher com quem estava e ela partiu. Nessa noite, eu estava a. hum. a dormir, quando ouvi um grito de mulher. Foi só isso, apenas uma vez, mas não foi um grito bom. hum, não foi o tipo de grito que eu estivesse à espera de ouvir, é o que quero dizer. - Corou mais ainda.
- Compreendo.
- bom, fiquei inquieto e tinha saído do quarto para ver se alguém se tinha magoado quando o ouvi de novo. Dessa vez segui o som, percebi que vinha do piso de baixo, desci e encontrei-o. Ele tinha uma criada da copa na biblioteca. Ela não era mais velha do que uma menina de escola e ele amarrou-a e, bom.
- Ele sabe que viste isso?
- Quando eu espreitei, ele não estava em condições de reparar em grande coisa. - Encolheu os ombros. - Tinha-a magoado bastante. Ela tinha marcas de pancadas, foi a primeira coisa que vi, embora não me tenha demorado muito. Ela tentou cuspir o lenço que ele usara para a amordaçar, ele reparou e bateu-lhe com tanta força que ela perdeu os sentidos.
Embora não me tenha, demorado muito. Tim não tentara impedi-lo. Fechara a porta sobre o sofrimento daquela pobre rapariga.
- Se saíste e se ele não te viu, porque achas que ele queria silenciar-te?
Ele fez uma expressão consternada e corou de novo.
- Timothy, foste estúpido ao ponto de abordar o Norbury? Contaste-lhe o que tinhas visto e pediste-lhe dinheiro para manter o silêncio?
- Não muito. Uma quantia miserável, quando as coisas estavam piores na Primavera passada. Ele nem sequer respondeu à carta. Sabia que eu não seria capaz de o denunciar.
- Imagino que sim. Mas, claro, não podia ter a certeza. Imaginou Norbury, a debater se Timothy teria coragem de
apresentar queixa contra um visconde ou de o chantagear. Norbury nunca estaria descansado, sabendo que, num acesso de coragem ou de consciência pesada, o seu irmão podia um dia dar com a língua nos dentes. Tim nem precisava de ter ido ao magistrado. Podia simplesmente ter escrito uma carta ao pai de Norbury.
Que conveniente para Norbury quando os crimes de Tim o tinham deixado vulnerável. Um enforcado é bom a guardar segredos.
Rose arrumou de novo os presentes no cesto e deixou de fora apenas caneta, tinta e papel.
- Vais escrever essa história, Timothy. Imediatamente.
- Já não tem importância, Rose. Ninguém acreditará na palavra de um condenado contra o homem que o denunciou. Parecerá apenas uma história inventada por vingança.
- Vais escrevê-la, de qualquer maneira. Depois vais escrever outra coisa que eu te vou ditar. Se fizeres isto por mim, se escreveres estas duas cartas, terás cometido duas boas acções, Tim. Duas acções nobres e honestas, para começar a compensar todas as más. É um princípio para recuperares a tua alma e o teu amor-próprio, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle chegou tarde a Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Não havia nada diferente, nada especial. No entanto, quando parou à entrada, a sua alma suspirou, como costumava acontecer quando voltava a Teeslow nas férias da escola. Era a emoção de uma pessoa que regressa a casa depois de estar fora.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e era muito agradável. Há já alguns anos que não pensava em sítio nenhum como a sua casa.
Quando subiu as escadas, viu luz por baixo da porta do quarto de Rose. Não esperava que ela estivesse ainda a pé àquela hora.
Entrou no seu quarto e despiu o casaco. Jordan deixara tudo pronto para o caso de o patrão regressar inesperadamente. Kyle dirigiu-se ao quarto de vestir mas parou junto da cama, onde estava uma pilha de cartas, colocadas de modo a que ele não pudesse deixar de as ver.
Reconheceu o brasão. Vira-o muitas vezes antes, em cartas enviadas por um homem agora morto. Mas estas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento a brasões e títulos, deixara-as ali porque presumira que elas exigiam a sua atenção imediata.
Kyle transferiu-as para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de um ou dois dias Kyle leria aquelas cartas e decidiria o que fazer em relação a elas.
Passou pelos quartos de vestir e entrou nos aposentos de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, com um roupão cor-de-rosa e uma touca de dormir de renda branca, a estudar um papel à luz do candeeiro. Escreveu qualquer coisa, depois coçou o queixo com a pena da caneta.
- A escrever poesia, Rose?
Ela deu um salto, sobressaltada, depois largou a caneta e dirigiu-se a ele. O seu abraço era de conforto e de boas-vindas.
Aquele calor vivo e feminino era o melhor bálsamo para o seu coração e o seu corpo. Bastava o aroma dela para ajudar a dissipar as nuvens de dor.
- Deve ter sido um funeral grandioso - disse Rose baixinho.
- Muito. Muitas faixas e fitas e lordes e damas. O Norbury chegou depois de mim. Deve ter-se demorado em Londres para festejar a herança. Mas, assim que chegou, desempenhou na perfeição o papel do filho enlutado.
- Acho que o filho simbólico chorou mais a morte do conde.
Provavelmente. Deus sabia que a lamentara bastante. Mas sabia, mesmo enquanto o chorava, que não era apenas a morte de Cottington que lamentava, mas também a morte da sua infância e da sua juventude e as raízes que, uma por uma, seriam cortadas nos anos vindouros, tal como esta fora.
- Anda, conta-me tudo. - Conduziu-o para a cama e fê-lo sentar-se ao lado dela.
- Se não te importas, preferia não falar nisso. - Kyle não queria explicar que, na realidade, não estivera presente no funeral. Sabia que não teria sido bem recebido. O confronto com o novo conde era inevitável e Kyle não quisera que isso perturbasse o respeito pelo anterior.
Observara tudo à distância, do alto de uma colina de onde podia ver a procissão e o novo túmulo no cemitério da propriedade. Preferira assim. Ali, podia estar a sós com os seus pensamentos.
- Claro. Eu compreendo. - Rose deu-lhe uma palmadinha carinhosa na mão, como uma mãe faria.
Kyle pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios. Estou em casa.
- Viste o teu irmão?
- Lord Hayden levou-me.
- Suponho que foi apropriado.
- Infelizmente. Lamento dizer que o Tim não mudou muito. Não está mais sensato. Continua com as suas ideias infantis. É possível que não sobreviva ao que o espera.
- Sobreviverá, se assim o decidir. Se é teu irmão, não pode ser assim tão fraco. Precisa apenas de encontrar forças dentro de si, mais nada.
- E se isso não acontecer. tens razão. Será a escolha dele.
- Vamos falar de coisas melhores, Rose. Certamente que houve acontecimentos normais, mais alegres, ao longo destes últimos dias. Um chapéu novo? Notícias da Alexia? Como está a Henrietta?
Ela riu-se. Era um som de vida maravilhoso, que o invadiu como uma brisa de Primavera.
- A Alexia está bem, mas muito desconfortável. A Irene está a sobreviver ao choque de saber dos crimes dos nossos irmãos. Tenho um chapéu novo, por acaso, e fomos convidados para uma festa.
- Uma festa. Aí está algo abençoadamente normal, para Londres. Quem a vai dar?
- Lady Phaedra e Lord Elliot, por isso pode não ser tão normal como pensas. Será em casa do Easterbrook. É em homenagem ao pintor, Mr. Turner. Parece que a Phaedra o conhece. Estará lá toda a gente que é alguém, bem como pessoas dos círculos antigos da Phaedra, que consta serem muito interessantes. Artistas. Ela disse muito especificamente que queria que tu também fosses.
- Terei todo o gosto. Os mais respeitáveis e os excêntricos juntos no mesmo sítio. Será que o marquês também nos dará a honra da sua presença? Deve ser um evento do seu agrado.
- Talvez lhe pergunte. vou tentar visitá-lo amanhã. Tenho de lhe transmitir a mensagem do conde. A Alexia prometeu usar a sua influência para ele me receber.
Kyle olhou em volta, para o quarto de Rose, tão cheio de detalhes e pequenos toques que falavam da presença dela no seu mundo. Passou o braço em torno das costas dela e beijou-a na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Devia ter parado para passar a noite numa estalagem, mas obriguei o cocheiro a continuar. Entrei em casa e senti-me imediatamente em paz. Há muito tempo que não me sentia assim quando entrava em qualquer lado.
- É uma boa casa. O tipo de casa que se torna mais confortável com o tempo e a familiaridade.
- Não é o edifício, mas porque tu estás aqui.
- Suponho que as pessoas também se tornam mais confortáveis com a familiaridade, Kyle. É isso que significa o casamento.
Talvez, mas não fora conforto que ele sentira ao longo dos últimos oitenta quilómetros, mas uma antecipação crescente. Não pensava em mais nada excepto em estar com ela, em falar com ela, em se deitar com ela. Em amá-la.
Ela fê-lo levantar-se e abriu a cama.
- É tarde e estás cansado. Dorme aqui comigo.
Ele pegou-lhe na mão e puxou-a para os seus braços. Tirou-lhe a touca com gestos delicados.
Era tarde, mas não demasiado tarde. Estava cansado, mas não assim tão cansado.
- Eu disse-lhe que ele não a receberia. É sempre assim. Nem sequer finge que não está em casa. Manda sempre a mesma mensagem. Hoje não, obrigado. - Henrietta abanou a cabeça, consternada com a descortesia do sobrinho. - O melhor que tem a fazer é escrever-lhe uma carta. É o que eu faço. Escrevo uma carta, selo-a e envio-a para esta casa, onde é levada para cima juntamente com o resto da correspondência. Que bela complicação, não é?
- Não posso transmitir isto por carta. Sou obrigada a falar com ele.
- Se tivesse esperado até eu chegar, Henrietta, talvez tivéssemos tido mais sorte - disse Alexia. - Não cheguei muito atrasada.
Alexia aparecera pouco depois de Henrietta ter decidido tratar ela própria do assunto. Agora ele recusara o pedido e Rose teria de esperar por outro dia.
- Faça como lhe digo. Escreva uma carta. Acredito que ele até as lê.
- Acho que vou seguir o seu conselho, mas vou evitar o tempo que se perderia se a enviasse por correio. Posso? - Rose apontou para a escrivaninha da biblioteca.
- Esteja à vontade. Agora, Alexia, diga-me quem aceitou o convite da Phaedra. Ouvi dizer que ela é amiga de algumas pessoas extraordinárias.
Enquanto Alexia fazia o seu relatório, Rose escreveu a sua mensagem. Depois dobrou a folha e pediu a um lacaio que a levasse.
- Há quem pense que ela devia fazer um baile de máscaras, para que as pessoas que estão mortas por vir mas acham que não devem fazê-lo pudessem comparecer - disse Hen.
- A Phaedra nunca toleraria um comportamento tão cobarde
- disse Alexia.
- Se ela quer ter os melhores dos melhores.
- Ela vai convidar os melhores dos melhores apenas por sua causa e por minha. Se decidirem não vir, isso não terá qualquer importância para ela.
Hen sorriu vagamente, tentando encaixar a ideia de que esses assuntos podiam não ter importância para alguém, mesmo para Lady Phaedra.
O lacaio regressou.
- O marquês vai recebê-la na sala de estar, Mrs. Bradwell. Hen arregalou os olhos, surpreendida, depois semicerrou-os
com aborrecimento. Rose seguiu o lacaio até à sala.
Esperou bastante tempo. Tempo suficiente para começar a achar que ele tinha mudado de ideias. Talvez tencionasse pô-la no seu lugar deixando-a à espera durante horas, em vão. Tendo em conta o que escrevera na mensagem, haveria nisso algum tipo de justiça.
No entanto, por fim, ele entrou na sala, com ar distraído e vago, como se apenas uma ínfima parte da sua mente desse atenção ao local onde se encontrava.
Ela fez uma vénia.
- Obrigada por me receber.
- Uma vez que ameaçou ficar a viver na biblioteca até eu o fazer, não me deixou alternativa. A tia Hen e a filha já são presenças femininas mais do que suficientes nesta casa, obrigado.
- Eu sei que foi terrível da minha parte. Mas queria cumprir este dever tão rapidamente quanto possível. Não seria apropriado só lhe transmitir as palavras de um homem que morreu daqui a um ano.
Ele inclinou a cabeça e inspeccionou-a.
- O mero facto de ter sido encarregada dessa tarefa é estranho, uma vez que eu mal conhecia o homem, mas, se tem de falar, fale. Estou a ouvir.
Rose sentiu a boca seca.
- Ele insistiu para que eu usasse exactamente as suas palavras. Por favor, tenha isso em conta.
- Fale, Mrs. Bradwell.
Ela fixou o olhar num ponto do tapete a dois metros dos seus pés.
- Ele pediu-me que lhe dissesse que é uma vergonha a forma como se esquiva aos seus deveres. Está na altura de sair para o mundo e deixar de ceder à sua tendência para a excentricidade. Tem de se casar e produzir um herdeiro e assumir o seu lugar no governo. Ele disse que a sua família tem demasiada inteligência para a desperdiçar e que a sua vida não lhe pertence para a viver como entende, e esta é a verdade.
Não ouviu imprecações, nem raiva. Olhou disfarçadamente para o marquês.
Nada. Nenhuma reacção. Ele acabara de receber uma repreensão vinda do túmulo, um conde morto chamara-lhe a atenção como se se tratasse de uma criança de escola, insultara-o, de certa forma, e ele não se importava.
- Agora percebo por que motivo o conde lhe disse para esperar que ele estivesse morto.
- Temia esta obrigação porque a mensagem é muito rude. No entanto, decidi que seria útil porque me proporcionaria a oportunidade de o ver em privado. Tinha esperança de que me dispensasse um pouco mais do seu tempo.
Ele pensou no assunto e apontou para um sofá.
- Um pouco mais não fará diferença, suponho.
Ela sentou-se. Ele não. Rose desejou que o fizesse. Mas o marquês limitou-se a ficar de pé, a três metros dela, com as mãos atrás das costas, aguardando com metade da sua atenção daquilo que ela tinha para dizer.
- Lord Easterbrook, tenho uma pergunta constrangedora para lhe fazer. Pagou ao meu marido para casar comigo?
A pergunta conseguiu captar um pouco mais da atenção dele.
- Por que motivo acha que alguém o fez? É uma mulher muito bela. Estou certo de que isso foi razão suficiente para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher só tem importância até certo ponto.
- Se julga que houve mais alguma coisa, porque não lhe pergunta directamente?
- Porque isso já não tem qualquer importância entre nós os dois. Pergunto por outras razões. - E porque Kyle queria que ela acreditasse que não tinha lucrado muito mais com a união do que ela própria. Independentemente do que ficasse a saber hoje, Rose tencionava deixar que essa pequena ilusão se mantivesse.
- Sem dúvida que, se alguém interferiu, terá sido o Hayden. Porque pensou que poderia ser eu?
- Lord Hayden disse-me que não o fez e ele não mente. Lord Elliot tem estado demasiado absorvido com o seu recente casamento para reparar na minha situação. A sua tia Henrietta seria um estranho anjo de misericórdia para uma mulher caída em desgraça. Penso que foi o senhor porque, na realidade, não resta mais ninguém.
Ele aproximou-se de uma mesa perto da janela e brincou distraidamente com a tampa de uma caixa de ouro, incrustada com pedras preciosas.
- Admito que talvez o tenha encorajado um pouco. Seria indiscreto explicar como.
- Porquê?
- Não teve nada a ver consigo. Mas a Alexia trouxe mais felicidade ao meu irmão do que ele provavelmente merece. Estou-lhe reconhecido por isso e gosto de a fazer feliz, quando posso. - Fez uma pausa. - Ela parece inspirar-me.
- Inspirar-lhe bondade?
- Não, bondade não, Mrs. Bradwell. Optimismo.
Não era o motivo que ela estava à espera de ouvir. Levantou-se.
- Compreendo. Tinha pensado que talvez. enfim, bom-dia. Obrigada por me receber.
Estava já ao pé da porta quando ele falou de novo.
- O que tinha pensado?
- Que talvez o senhor se preocupasse com justeza e justiça. Que tivesse interferido para corrigir um mal.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se assim fosse?
- Pediria o seu conselho numa questão dessa natureza.
- Fascinante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso aconteceu. - Ele parecia verdadeiramente encantado pela natureza extraordinária da sugestão. Assim sendo, não posso reivindicar experiência a dar conselhos, mas a originalidade da ideia agrada-me. Se quiser perguntar de qualquer maneira, farei o meu melhor.
Rose retirou a carta de Tim da bolsa.
- O interesse do Norbury no meu irmão não se devia apenas a questões de dinheiro, ou orgulho, ou justiça. O Tim disse-me a verdade e eu pedi-lhe que a escrevesse.
Easterbrook pegou na carta e leu-a.
- Já mostrou isto ao seu marido?
- Não. A ligação entre ambos já está suficientemente tensa após a morte do conde e já existem muitos ressentimentos entre eles. Depois do que se passou comigo, se o Kyle soubesse disto, podia.
- Compreender mal o que se passou consigo? Pensar que houve mais do que aquilo que a Rose admite? Confrontar o Norbury?
- Algo do género.
Easterbrook passou novamente os olhos pela carta.
- É a palavra de um criminoso. Questionável, na melhor das hipóteses. Inútil, na pior.
- O Timothy também acreditava que seria inútil, o que significa que não tinha motivos para mentir. E não creio que essa tenha sido a primeira vez que o Norbury abusou de uma mulher. Na aldeia onde o meu marido cresceu. quando eram rapazes, aconteceu algo entre eles que envolveu a tia do Kyle. E todas aquelas festas na casa do Kent.
- Mulheres condescendentes, diria ele. - Lord Easterbrook olhou para a carta com expressão repugnada. - Embora existam limites para o que qualquer mulher faria, ainda para mais uma rapariga. No entanto, pela lei, não há nada a fazer. Não há ninguém para apresentar queixa.
- Há a rapariga, se a conseguíssemos encontrar. Há a tia do Kyle. Há até o meu marido.
- Isso foi há muitos anos. Ele era um rapaz. A tia dele não disse nada na altura e até Mr. Bradwell pode não ter a certeza.
- Julgo que ele tem a certeza.
- Mrs. Bradwell, estamos a falar de um conde. Os seus pares nunca o condenariam num julgamento público na Câmara dos Lords. Duvido que chegasse sequer a esse ponto.
- Quer dizer que as palavras dele terão mais peso do que as palavras de mulheres comuns maltratadas há muito tempo. - Era sempre assim. Mesmo quando era apenas Norbury, ele já estaria fora do alcance da lei. Agora que era o conde de Cottington, estava completamente seguro.
Talvez houvesse outra forma, um dia. Rose aproximou-se do marquês e estendeu a mão para recuperar a carta. O marquês ergueu-a, afastando-a do seu alcance.
- vou ficar com isto, Mrs. Bradwell. Pode arranjar problemas para si e para o seu marido.
- Fiz mal em vir procurá-lo. Foi um erro de avaliação da minha parte. Esqueci-me de que os nobres reservam uma justiça especial para os seus pares.
Ele não respondeu e Rose saiu, com as mãos agora vazias até mesmo das fracas provas que Tim lhe tinha fornecido da depravação de Norbury.
Rose admirou o marido do outro lado do salão de baile. Estava extremamente atraente naquela noite. O casaco novo, de um azul muito escuro, tornava os seus olhos mais vivos. As linhas do casaco davam-lhe uma silhueta elegante, revelando a sua força e boa forma. O mais espantoso era o colete, discreto mas nada sóbrio, de tons prateados e cor de safira.
Ele estava a conversar com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle passara em Paris fazia dele uma companhia agradável para esses elementos do grupo.
Outras pessoas também reparavam nele. As senhoras, em particular, reagiam ao homem alto, de ombros largos, tão atraente à maneira dele, com aqueles olhos azuis e uma vitalidade que parecia afectar o ar que o rodeava. Nessa noite ele não estava a conseguir contê-la muito bem.
- Não precisa de se preocupar com ele, Rose - disse-lhe Lady Phaedra ao ouvido. Rose assustou-se. Não se apercebera da aproximação de Phaedra.
- Não, não estou preocupada. Ele está muito à vontade. Muito descontraído.
Também ninguém precisava de se preocupar com Lady Phaedra. Ela penteara o cabelo numa coroa cor de fogo, segundo a última moda. O vestido verde deixava ver a pele cor de neve. Por aquela noite, pusera de lado as suas excentricidades. Rose suspeitava que o fizera para que o seu conjunto heterogéneo de convidados parecesse mais aceitável. Aparecer vestida de gaze preta teria decididamente inclinado a balança para o outro lado.
- Não me refiro às suas capacidades sociais, Rose. Pensei que estivesse com ciúmes das atenções femininas de que está a ser alvo.
- Sei que também não preciso de me preocupar com isso. E era verdade. Sabia-o tão bem que nem lhe passara pela cabeça ter ciúmes. - Embora não seja a falta de encantos dele que me deixa tão confiante, claro.
- Uma vez que ele se está a mostrar muitíssimo encantador, nem é preciso dizê-lo. No entanto, é muito bom que se se sinta tão segura. Assim pode aceitar convites feitos pelas razões erradas e usá-los para fins diferentes dos pretendidos pelas anfitriãs. Pelo aspecto das coisas, não demorará muito a receber esse tipo de convites.
Uma das senhoras decidira abordar Kyle e o artista por essas razões erradas. Kyle conversou amavelmente com ela e pareceu não reparar no rubor das suas faces quando voltava para ela aqueles olhos azuis.
Depois viu que Rose estava a observá-lo e afastou-se do pequeno grupo, dirigindo-se a ela.
- Haverá muita inveja na cidade quando a estação começar, Lady Phaedra. As notícias desta reunião farão com que muitos se arrependam de não terem aberto as suas casas um pouco mais cedo.
- Escolhi esta data porque seria mais fácil reunir os meus amigos. Não tive de me preocupar com grandes selecções para evitar choques. Quanto aos outros, o Elliot disse que tinha de convidar os nobres que estivessem na cidade e as respectivas esposas, uma vez que o irmão nunca recebe ninguém. Felizmente, o Norbury não apareceu, apesar de ter tido o mau gosto de aceitar o convite.
Kyle não pestanejou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, estudou os convidados.
- Onde está Lord Elliot? Ainda não o vi desde que cheguei.
- O irmão chamou-o para fumar um charuto. O Easterbrook não ficou mais de dez minutos até encontrar uma desculpa para se escapulir. - Phaedra olhou também em volta e franziu a testa.
- Oh, céus, a Sarah Rowton está a matar Mr. Turner de tédio. Ele parece estar prestes a adormecer. Tenho de ir salvá-lo.
Deixou Kyle e Rose para cumprir os seus deveres de anfitriã.
- Ela está particularmente encantadora esta noite - disse Kyle. - Mas nem de longe tão bela como tu, Rose. Fazes sombra a todas as mulheres presentes.
Ela sentiu-se corar sob o olhar dele.
- É um pouco como ser apresentada à sociedade pela primeira vez, dadas as circunstâncias dos últimos meses e o meu exílio. Sinto-me como se ainda tivesse um pé na escola e este não fosse realmente o meu lugar.
- Ninguém adivinharia que não estás completamente à vontade. Vêem apenas graciosidade e compostura, garanto-te. E tenho a certeza de que não eras mais bonita quando foste apresentada à sociedade.
- Na verdade, nunca o fui, oficialmente. Estávamos em Oxfordshire nessa altura e não havia dinheiro. Oh, como fiquei ressentida. Viver ali em vez de estar em Londres. senti-me como se a minha vida me estivesse a ser roubada. Durante um ano, mais ou menos, odiei aquela casa. Agora estou ansiosa por lá voltar. Não é estranho, Kyle? Ainda há tão pouco tempo era uma prisão, e já tenho saudades dela.
- Sempre foi o teu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisas de santuário novamente?
- Sabia-me bem um descanso e algum tempo num sítio tranquilo para chorar a perda do meu irmão. Tenho a certeza de que nunca mais o verei.
Kyle pegou-lhe na mão e deu-lhe o seu braço.
- Nesse caso, iremos para lá. Mas, para já, vamos dar uma volta por este belo salão de baile. Uma vez manifestaste curiosidade em relação aos meus amigos. Lady Phaedra fez com que a Henrietta arrancasse os nomes ao Jean Pierre e alguns deles estão presentes. Quero apresentar-te, para poder ficar inchado de orgulho por seres minha. ?
Rose deslumbrou-os a todos, claro. Kyle sabia que o faria. A sua elegância, a sua compostura e a sua simpatia tornavam inevitável esse resultado. Ela ouviu atentamente todas as conversas com aqueles amigos dele que nunca conhecera.
Nunca saberia que Mr. Hamilton, o banqueiro, amaldiçoara a família dela quando Kyle lhe contara do casamento. Hamilton conhecia demasiado bem os irmãos Longworth.
Nem poderia saber que Mrs. Caldwell, cujo marido desenhava pontes para nações em todo o mundo, fizera saber que a escandalosa Roselyn Longworth nunca se sentaria à sua mesa, apesar de ser respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que as pessoas mudariam de opinião quando a conhecessem, tal como acontecera com a tia Pru e o tio Harold. O convite para uma reunião onde estariam entre lordes e damas e luminares das artes, provavelmente também ajudava a suavizar os seus pontos de vista. Sem dúvida que beber ponche pelos copos de um marquês lançava uma luz diferente sobre as coisas.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes a Hen, talvez nunca tivessem tido oportunidade de se encontrar. Kyle presumira que assim seria. Estava preparado para reduzir essas amizades a associações formais de negócios.
Mas Rose parecia gostar dos amigos dele. Se ela quisesse aceitar agora o convite de Mrs. Caldwell, ele não deixaria que o ressentimento por preconceitos passados interferisse. Rose provavelmente precisava de tantos amigos quantos conseguisse arranjar. A guerra não chegara ao fim, embora as coisas parecessem estar a correr bem.
Depois de essas novas alianças estarem forjadas, pegou no braço de Rose e atravessaram a sala. Rose viu Alexia precisamente quando outra pessoa os viu a eles.
Kyle viu uma cabeça virar-se e olhos semicerrados concentrarem-se neles. Afinal, Norbury sempre viera.
- Porque não vais falar com a Alexia, Rose? vou procurar Lord Elliot. Ele falou em irmos remar uma manhã na próxima semana.
Ela afastou-se ao mesmo tempo que Norbury se dirigia a Kyle. Kyle virou-se e aproximou-se da parede, para que o que tivesse de acontecer não acontecesse no meio da sala.
Norbury estava em boa forma quando parou em frente do seu inimigo.
- Não respondeu à minha carta. Pedi-lhe que me visitasse, mas não o fez.
- Tenho estado demasiado ocupado para visitas e, de qualquer maneira, não estou muito inclinado a obedecer às suas ordens. Não tenho nada a escrever em resposta às suas cartas. Nem sequer consegui compreender a primeira, de tal forma as acusações eram irracionais.
- Compreendeu-as muito bem.
Sim, compreendera. Essa primeira carta eram os delírios embriagados de um homem a despejar o ressentimento contra um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento e pesar fora demasiado crua, demasiado reveladora, para ter sido escrita num momento de sobriedade, muito menos quando era dirigida a Kyle Bradwell.
Por outro lado, a quem mais podia Norbury escrever aquelas coisas? Não aos homens que se juntavam às suas orgias. Esses homens não se importariam com o desespero momentâneo de um filho por os seus sonhos da morte do pai se terem realizado. Nem teria compreendido as alusões à ascendência questionável dos dois homens que se enfrentavam agora.
Kyle não tinha a certeza se Norbury se lembraria sequer do que escrevera nessa carta, ou da acusação bizarra e amarga de que eram, na realidade, irmãos. Quanto às outras cartas, frias e sóbrias mas carregadas de veneno, Norbury conseguiria provavelmente recitá-las, palavra por palavra.
- Tenho coisas para lhe dizer, Kyle. E vai ouvi-las.
- Nesse caso, talvez seja melhor irmos para outro lado. Devemos ter alguma privacidade na biblioteca.
Felizmente, a biblioteca estava vazia. As acusações começaram antes mesmo de a porta se fechar.
- Tentou salvar aquele filho da mãe. Fez com que parecesse que tinha recuperado os seus prejuízos.
- Não quer sentar-se? Aquelas cadeiras altas voltadas para a lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se!
Parecia que a conversa ia ter lugar no meio da sala, os dois homens frente a frente, como pugilistas à procura de oportunidade de aplicar um bom golpe.
Kyle não tinha qualquer problema com isso.
- Disse a verdade em tribunal. Nem mais, nem menos.
- Mentiu. Disse que tinha sido pago com o casamento com a irmã dele. A minha puta.
O punho de Kyle acertou na cara de Norbury. Este cambaleou, de olhos muito abertos.
- Eu avisei-o - disse Kyle. Uma raiva gelada invadiu-o, uma raiva perigosa.
- Avisou-me? Avisou-me! - Norbury levou a mão ao rosto, onde fora atingido. - Como se atreve! Hei-de vê-lo num navio ao lado daquele ladrão, e a sua pombinha suja consigo. O meu pai já não pode protegê-lo. É apenas mais um novo-rico que conseguiu subir a um lugar perto dos que lhe são superiores, onde não tem qualquer direito a estar.
- Não fará absolutamente nada em relação a mim. Se me pedirem que explique este soco, direi ao júri como insultou a minha mulher, agora e antes de nos casarmos. Mostrarei a carta delirante na qual põe em causa a virtude da minha mãe. Contar-lhes-ei outras coisas, de há muito tempo. Direi que esta não é a primeira vez que lhe bato e contarei porque o fiz da primeira vez.
Norbury calou-se. Primeiro, pareceu cauteloso, mas depois , uma expressão maldosa invadiu-lhe o rosto.
- A sua família foi mais do que recompensada.
- Dificilmente. Dê-se por feliz de eu não o ter matado depois de saber a verdade.
- Ela estava a pedi-las. A sua tia era uma coisinha bonita, nessa altura, não uma velha gasta como agora. Estava sempre a namoriscar. Convidou-nos a todos.
Kyle atingiu-o de novo. Desta vez, Norbury caiu. Um fio de sangue começou a escorrer-lhe do nariz.
Sentou-se e procurou o lenço. Levou-o ao nariz e fitou a mancha de sangue, estupefacto.
- Está louco!
- Não me sinto nada louco. Norbury levantou-se.
- Só me tem causado problemas e está na altura de me ver livre de si. Estou a par do relatório que escreveu na mina. Como se atreve a interferir com a forma como os homens usam a propriedade que lhes pertence? Ia dar-lhe oportunidade de se retractar, mas agora não o farei. Estou feliz por ele estar morto e a minha associação consigo poder chegar ao fim. - Os seus olhos chisparam e um sorriso desdenhoso surgiu-lhe nos lábios. - Não vou permitir que aquela propriedade no Kent seja utilizada. É minha, agora. Não importa que papéis foram assinados. O meu advogado atrasará as coisas de tal forma que estará morto antes de a questão ficar solucionada.
Kyle olhou para ele e absorveu aquele golpe dado sem punho. Devia afectá-lo mais do que afectava. Na verdade, sentiu apenas alívio por, a partir deste dia, não precisar de voltar a ver Norbury.
Nessa altura ouviu um som à sua direita. Olhou nessa direcção e viu uma mão pousar um copo de vinho no chão ao lado de uma das cadeiras de costas altas.
Parecia que, afinal, não estavam sozinhos na biblioteca.
Viu uma cabeça escura quando um homem se levantou. Easterbrook virou-se, com expressão de desinteresse e de tédio.
- Devia certificar-se de que está sozinho antes de discutir assuntos privados, Norbury.
- E o senhor devia dar a conhecer a sua presença antes de os escutar!
- Não tive oportunidade de dar a conhecer a minha presença. O senhor começou a discutir assim que entrou e não parou desde então.
Outro homem levantou-se da outra cadeira. Lord Elliot também os ouvira.
- É uma nódoa negra que vejo a formar-se aí, Norbury? perguntou Lord Elliot. - Pensei ter ouvido o som de socos, mas quando os golpes não foram devolvidos achei que estava enganado.
- Sem dúvida que o Norbury teve medo de magoar o Bradwell se respondesse com os punhos - disse o marquês com voz arrastada.
Norbury fez um esgar desdenhoso.
- Parece que tenho testemunhas, Bradwell. Você atacou-me e eu vou apresentar queixa.
- Que drama tão ridículo que esse seria. Não me agradaria nada ver-me arrastado para algo tão vulgar - disse Easterbrook. Porque não resolvem o assunto aqui e agora? O Elliot e eu trataremos de garantir que não o mata, Norbury. Prometemos detê-lo antes de as coisas irem longe de mais.
Norbury ficou paralisado. Parecia estar a pensar furiosamente por trás dos olhos frios.
Lord Elliot passou por eles e trancou a porta.
- Eu seguro nos vossos casacos.
Kyle despiu o dele e entregou-lho. Norbury hesitou.
- Devia responder ao desafio dele, Norbury - disse Lord Elliot. - Um cavalheiro não tem alternativa, numa situação destas. E certamente que não quer apresentar queixa por uma questão tão insignificante. Isso exigiria que nós repetíssemos perante um magistrado tudo o que ouvimos. Aquela conversa sobre a tia do Bradwell pode ser vista como uma admissão de culpa.
Norbury corou e despiu o casaco.
O marquês aproximou-se, afastando distraidamente algumas peças mais pequenas de mobília.
Lord Elliot pousou os casacos num divã e posicionou-se atrás de Kyle.
- Regras de Queensberry, claro.
- Tem mesmo de ser?
- Receio que sim.
Norbury levantou os punhos e sorriu.
- Ele não conhece as regras de Queensberry. Este tipo de gente não as usa.
- Oh, eu conheço-as. Simplesmente demoro mais tempo a dar cabo de um homem se as seguir e acabo por infligir mais dor. Mas, dadas as circunstâncias, não me importo.
Apesar disso, não demorou muito tempo. Norbury não era rápido nem forte e o seu treino não ajudou muito.
Pela Rose. Pela tia Pru. Pelas outras que não conheço. A mente de Kyle entoou este cântico a cada golpe que desferia contra Norbury. Dez minutos depois, Norbury estava novamente no tapete, inconsciente e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo dentro de si transformara-se num
fogo frio que queria arder para sempre. Não conseguia abrir os punhos.
O marquês pousou-lhe a mão no ombro.
- Compreendo que quer mais, mas terá de se dar por satisfeito. Encosta-o à parede, Elliot. Não deve demorar muito a recobrar os sentidos.
Alexia não conseguia estar muito tempo de pé sem se cansar, por isso Rose foi com ela à procura de um sítio sossegado para descansar. Tentaram a porta da biblioteca, mas estava trancada.
- Que estranho - Alexia tentou novamente.
Desta vez a porta abriu-se. Do outro lado estavam três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela ergueu os olhos e viu o marquês, Lord Elliot e Kyle. Kyle parecia um pouco corado, um pouco zangado e muito tenso.
Parecia que ela e Alexia tinham interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou Lord Elliot com ar inocente.
Atrás deles, ouviu-se um gemido. Rose inclinou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, para espreitarem para dentro da sala.
- Quem. está uma pessoa ali no chão? - perguntou Alexia.
- Há alguém doente?
- Oh, é apenas o conde de Cottington - disse Lord Elliot. Ainda está a festejar a sua herança com um entusiasmo indecoroso, e temo que esteja ébrio. Ia precisamente chamar o cocheiro dele para o ajudar a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não se apercebam do seu estado.
Rose olhou para Norbury com os olhos semicerrados. Ele não parecia bêbado. Parecia.
De súbito, um peito largo, coberto por um casaco azul, cortou-lhe a visão. Ergueu o rosto e encontrou aqueles olhos espantosos.
- Kyle, bateste-lhe? Outra vez?
- Ele e eu tivemos apenas uma conversa que já devíamos ter tido há muito.
Kyle pegou no braço de Rose e afastou-a da porta, guiando-a em direcção ao salão de baile. A expressão dele fascinava-a. Não era de regozijo, nem presunçosa, nem sequer de satisfação. Parecia
apenas um homem aliviado por ter despachado uma tarefa que tinha de ser feita. Era a mesma expressão que lhe vira no rosto quando ele lhe arranjara o portão do jardim.
Easterbrook caminhou atrás deles, com Alexia pelo braço. com um olhar cortante fez com que o ocupante da cadeira mais confortável do salão de baile se levantasse.
Ajudou Alexia a sentar-se e verificou se estava bem instalada.
- Parece-me um bocadinho pálida. Precisa de beber qualquer coisa.
- vou buscar um pouco de ponche - disse Kyle, e afastou-se. Rose aproximou-se do marquês.
- Ele deu-lhe uma boa sova?
- Bastante boa.
- Fico contente. Sei que não é próprio de uma senhora, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, que estava distraída com a chegada de uma amiga.
- Mrs. Bradwell, pode contar ao seu marido a conversa que tivemos quando me visitou, se ainda não o fez. Se ele começar a ter dúvidas sobre se as suas acções de hoje valerão o preço que terá de pagar por elas, a história do seu irmão talvez lhe dê ânimo.
Preço?
- Receio que apenas queira bater-lhe de novo se souber do que aconteceu com aquela pobre criança.
O seu verdadeiro receio era que Kyle o matasse.
- Os caminhos de ambos não se cruzarão no futuro.
- Não me parece que seja possível evitá-lo.
Lord Easterbrook olhou para Kyle, que regressava com o ponche.
- Ontem, falei com um grupo de nobres muito influentes. Expliquei-lhes a longa história de mau comportamento do conde e mostrei-lhes a carta do seu irmão. Eles chegaram à mesma conclusão que eu.
- Uma vez que isso significa que o Norbury nunca será julgado, quanto mais castigado, certamente que o caminho do meu marido se cruzará com o dele no futuro.
- Eu não disse que ele nunca seria julgado ou castigado, Mrs.
Bradwell. Disse que ele nunca seria condenado num julgamento público. Mas a mera ameaça de um pode ser uma arma poderosa.
- Não compreendo.
- Quando recuperar da sova de hoje, o Norbury receberá a visita de vários bispos. Eles levar-lhe-ão a sentença de um júri, um júri muito particular. A menos que ele seja estúpido e precise de argumentos mais fortes, a minha previsão é que em breve se recolherá permanentemente na sua propriedade do Kent, onde, daqui para a frente, receberá apenas vigários e as suas esposas.
- Não acredito que alguma coisa o faça parar. Mesmo no Kent, mesmo sozinho, fará o que muito bem entender.
- Foram seleccionados para ele um criado e uma governanta muito especiais. Será muito parecido com a reclusão forçada de antigamente. todos os luxos mas nenhuma liberdade. Acredite, a partir de hoje, ele está detido.
Kyle passou por eles com uma expressão curiosa, como se achasse estranha aquela longa conversa com Easterbrook.
- Posso transmitir ao meu marido as notícias que me confidenciou? - perguntou Rose.
- com certeza, embora me pareça que ele já se sente bastante vingado. Usou os punhos como um homem que tenciona acertar as contas.
O marquês afastou-se em direcção a Alexia e Rose seguiu-o.
- Obrigada por se incomodar com esta questão, Lord Easterbrook.
- Era o meu dever, dada a minha posição, depois de me ter chamado a atenção para esta história sórdida, Mrs. Bradwell. Como disse, os nobres reservam uma justiça especial para os seus pares.
CAPITULO 24
Rose adorava o campo na Primavera. Adorava os cheiros da terra a aquecer e das plantas a ressuscitarem. Até o ar fresco prometia mais calor à medida que o dia avançasse.
Adorava a sensação aconchegante de estar deitada na cama com Kyle, aninhados um no outro debaixo das cobertas. A brisa refrescava os seus corpos enquanto a paixão os mantinha quentes.
- És demasiado bela - murmurou ele. Beijou suavemente o seu mamilo duro, tão sensível naquela manhã ao ar e à língua dele.
- Sofro cada vez que te vejo.
Ela acariciou com ar divertido a origem desse sofrimento. Os olhos dele escureceram para uma cor de safira profunda.
- Se sofres, posso consolar-te.
Ele deixou-a, garantindo ao mesmo tempo que ela também era consolada. A sua boca e as suas caricias fizeram-na flutuar numa rendição deliciosa. Conhecia agora muito bem esse êxtase. O seu espírito libertava-se de todas as preocupações e inquietações, de todas as defesas e desculpas e, por fim, de toda a individualidade, quando se uniam daquela forma.
A mão dele, tão forte e masculina, acariciou o seu corpo. Beijou-a na orelha.
- Não é só o meu corpo que sofre, Rose. As tuas caricias consolam-me também o coração, mesmo que seja por pouco tempo. Até o teu sorriso o faz.
- Tenho muita pena que o teu coração sofra, Kyle. Lamento se algo te causa qualquer sofrimento.
- Compreendeste mal, minha querida. É um sofrimento bom, de amor e desejo. Avisaste-me de que já tinhas perdido todas as ilusões românticas, mas eu nunca te prometi que não te amaria, mesmo assim.
Ela tocou-lhe na mão, parando os gestos de sedução, e abraçou-o, a respiração dele no seu pescoço e os corações de ambos a baterem juntos.
- Disse-te que nunca mais mentiria a mim própria em relação a isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira, e sei que nunca dirias uma coisa dessas se não fosse verdade. Podíamos ter construído um casamento bom e razoável sem amor, mas acho que é muito melhor se nos amarmos um ao outro.
Ele soergueu-se nos cotovelos e olhou para ela por entre os fios de cabelo despenteados. Rose ainda sentia a sua confiança vacilar quando ele a fitava assim, de forma tão intensa e profunda.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor em resposta, Rose. Estava preparado para nunca a ouvir.
E contudo falara de amor, sem esperar retribuição. Isso fez com que o coração de Rose doesse, daquela maneira boa que ele descrevera.
- Sei que nunca falarias em amor de ânimo leve, Kyle. Sei que posso confiar em ti. Senti o teu amor, vi-o, portanto também não precisava de palavras. - Percorreu a linha dura do queixo dele com a ponta do dedo. - Mas estou contente por o teres dito. E por eu o ter dito. É, apercebo-me agora, a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele beijou-a profunda e habilmente. Colocou-se por cima dela, dobrou-lhe os joelhos para cima e olhou para o seu corpo exposto enquanto, com as suas carícias, a levava à loucura. O prazer percorreu-a em ondas de sensação deliciosas, até que ela implorou por ele, em voz alta e sem vergonha.
Kyle apoiou-se nas mãos, a sua força suspensa sobre o corpo frágil e indefeso de Rose. Sob a luz do dia, ambos se deleitaram com a visão da união dos seus corpos.
Não podiam continuar assim para sempre. Ele fechou os olhos,
levantou a cabeça e começou a mover-se mais depressa, com mais violência. A sua força arrastou-a num redemoinho para a escuridão.
Perdeu-se, como acontecia sempre. Perdeu-se no anseio físico e espiritual. Na pureza da energia e da presença dele, que baniam todos os outros pensamentos e dores excepto os que tinham a ver com ele. Ele levou-a ao clímax e atravessou com ela esse limiar glorioso, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, Rose apertou-o contra o seu corpo, apreciando a satisfação e a segurança que as suas declarações de amor tinham acrescentado à união. Saboreou a perfeição enquanto o dia clareava para lá das cortinas e a brisa entrava no quarto, trazendo consigo os cheiros e sinais de renovação.
- O dia está bonito. Vamos dar um passeio.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose limpava o tacho no qual cozinhara alguns ovos. Era ela que tratava das refeições porque tinham vindo sozinhos, para se afastarem de todas as preocupações de Londres.
Rose adorava a Primavera, mas dias bonitos e calor significavam também lama. Calçou umas botas, pegou num agasalho e seguiu-o para o jardim.
Caminharam até ao portão mais distante e saíram para os campos. À distância, ela conseguia ver a colina na qual se deitara, naquele dia em que sonhara juntar-se a Timothy.
Hoje, com Kyle ao seu lado, nem sequer conseguia perceber que perversão de espírito a levara a pensar que ir ter com Tim seria uma coisa boa. O seu coração, até há bem pouco tempo, era rápido a acreditar nas suas próprias mentiras.
- Tenho de te explicar uma coisa, Rose. Infelizmente, não são boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou para ele. O seu tom de voz causou-lhe uma pontada de mau presságio no coração.
- O que é?
- Estou prestes a lançar-te noutro escândalo.
- Não acredito que sejas capaz de criar um escândalo.
- Oh, mas sou. Um escândalo que já conheces bem. Estou arruinado, minha querida.
Tentou falar num tom normal, mas ela ouviu demasiado cuidado na sua voz.
Kyle podia estar preocupado com a reacção de Rose, mas não parecia triste, nem sequer particularmente aflito. Era como se tivesse olhado para as botas depois de atravessar aquele campo e reparasse que pisara estrume. Uma ocorrência infeliz, mas fácil de remediar.
- Arruinado como? - Ela quase se engasgou com a palavra. Trouxera-lhe já tanta infelicidade na vida.
- Completamente. O Norbury retirou a propriedade do nosso projecto. O pai dele tinha assinado documentos, mas o advogado pode adiar as coisas indefinidamente. Entretanto, tenho madeira a chegar, que tem de ser paga, e outros materiais que comprei a crédito. Os outros investidores sofrerão prejuízos mas sobreviverão. Mas eu.
- Já estavas mal antes de isto acontecer e não sobreviverás. Isso significa a prisão por dívidas?
- Dependerá da generosidade dos meus credores. Não terão muito a ganhar com isso. - Levantou-lhe o queixo com as pontas dos dedos. - Não te preocupes por mim. Hei-de recuperar, de alguma forma. Mas serão precisos alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Passou o braço pelos ombros dela e continuaram a andar.
- O teu futuro está assegurado - disse ele. - Nunca mais terás de racionar a lenha e o pão. Podes continuar no teu caminho para a respeitabilidade. Há a tua pensão por casamento e outro fundo que renderá trezentas libras por ano.
- Que fundo?
- Um fundo que estabeleci em teu nome pouco depois de casarmos.
- Estavas com dificuldades mas puseste dinheiro num fundo? Isso não foi sensato, Kyle. Devias ter ficado com o dinheiro.
- Se tivesse previsto os desenvolvimentos actuais, talvez o tivesse feito, mas não me arrependo da minha decisão.
Como podia ele estar tão calmo? A ruína não era uma coisa insignificante. Não era estrume na bota, era mais como ficar sem uma perna. No entanto, ele não mostrava qualquer arrependimento por
ter gasto uma parte tão significativa da sua fortuna com ela, o que o deixava agora à beira da desgraça.
O pânico cresceu dentro do peito de Rose. Os credores de Kyle podiam não se mostrar generosos, mas antes vingativos. Ela não suportava a ideia de ele ser preso por dívidas. O seu coração bateu com mais força ao pensar nas implicações daquilo que ele dissera sobre o seu futuro estar assegurado. Parecia que ele não esperava nem queria tê-la com ele se as oportunidades fossem longe de Londres.
- Viveremos ambos desse rendimento que asseguraste, claro, portanto talvez tenha sido sensato, afinal de contas - disse. - Na verdade, devíamos encontrar uma forma de desfazer o fundo para que possas usar o dinheiro para evitar a ruína.
- Não. Mesmo que os tribunais o permitissem, nunca o faria. Ela pensava saber uma das razões pelas quais ele estabelecera
esse fundo depois de terem casado. Esse dinheiro devia ser o encorajamento que recebera de Easterbrook. Fora um gesto irreflectido dar-lho. E também romântico, muito antes de ela acreditar que havia lugar para esses sentimentos naquele casamento.
- Parece-me que, se tens tanto material encomendado, devias usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não pode haver desenvolvimento de terras sem terras, Rose. Acredita, a propriedade do Kent e os fundos que já foram pagos ao conde de Cottington não estarão disponíveis durante anos, mesmo que eu vá a tribunal e vença.
- Então tens de encontrar outras terras.
- Também é preciso dinheiro para isso. Mesmo que fizesse um acordo semelhante ao que tinha com o Cottington, há pagamentos que têm de ser feitos antecipadamente.
- Talvez Lord Hayden possa emprestar.
- Não, Rose. Não ficarei endividado aos teus familiares. Claro que não. Fora uma estupidez da sua parte sugeri-lo, sequer. Em breve lhe restaria muito pouco para além do seu orgulho.
Olhou em frente, para a colina, depois para os campos em pousio à sua volta. Uma das suas primeiras memórias de infância era de percorrer o caminho onde se encontrava agora, com os dois irmãos ao seu lado. Em toda a sua vida, nada mudara na paisagem excepto a passagem das estações.
Ao longo de tudo, de todo o sofrimento por mortes e perdas, da pobreza após a morte do pai e depois novamente após a ruína de Tim, a propriedade fora testemunho do seu lugar no mundo, tivesse ou não comida na mesa. A sala de estar podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde os seus antepassados tinham reunido assembleias de todo o condado.
Tinha um nó na garganta e sentia-se prestes a afogar-se em nostalgia. Mas a emoção não era suficiente para a calar. Parou de caminhar e segurou no braço de Kyle para que ele parasse também.
- Porque não usas estas terras, Kyle? Podes aproveitar o material e a madeira aqui. Seria um pagamento insuficiente por aquilo que os meus irmãos fizeram, mas já era alguma coisa.
- Quando disse em tribunal que já tinha sido pago, estava a ser sincero, Rose. - O seu sorriso encantou-a mas provava também que ela não o conseguira convencer. - É a casa da tua família, minha querida. O teu santuário. E ainda pertence ao teu irmão, que voltará um dia.
Pegou-lhe na mão e recomeçou a andar.
- Na verdade, Kyle, agora pertence-me, não ao meu irmão. O Timothy escreveu uma carta ao nosso advogado, dando-lhe uma procuração para transferir a propriedade para o meu nome. Se a carta anterior relativamente à venda da propriedade tinha valor legal, esta também o terá.
Caminharam até chegarem ao cimo da colina antes de Kyle responder.
- Quando é que o teu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando o visitei antes de partir para o degredo. Pedi a Lord Hayden e ao carcereiro que servissem de testemunhas.
- Porque faria ele uma coisa dessas?
- Porque eu lhe pedi. Temi que ele fizesse algum disparate durante os anos de ausência e acabasse por a perder. Também pensei que poderia ser útil ter essa carta, e esta propriedade, como segurança. Parece que tinha razão.
Ele abanou a cabeça.
- Se é tua, mais uma razão para não poder fazê-lo.
- Céus, consegues ser muitíssimo teimoso. - Ela aproximou-se dele e deixou-o ver como estava aborrecida com esta nobreza inconveniente. - És meu marido. Somos um só, no prazer e no
amor e na ruína. Não vou andar em festas enquanto tu estás na prisão, ou a lutar durante anos para reconstruíres a tua fortuna. Se não queres usar estas terras e não queres desfazer o fundo, então usaremos o meu rendimento para ir pagando as tuas dívidas e viveremos aqui daquilo que conseguirmos.
- Não viverás assim. Proíbo-o. Já passaste por isso uma vez e não permitirei que aconteça de novo.
- Fá-lo-ei, penses o que pensares. Encontrarei forma de pagar as tuas dívidas. Pouparei todos os tostões do meu rendimento e levarei o dinheiro aos credores pessoalmente.
Ele começou a franzir a testa, mas por pouco tempo. Olhou para ela durante um longo momento.
- Por favor, Kyle - suplicou Rose. - Pensa nesta propriedade como uma prenda minha para ti, se quiseres. Pensa nela como o meu dote. Pensa em mim como um consórcio de investidores, se necessário for.
- Teria de vender as terras. Compreendes isso? Arrendamentos não seriam suficientes. Teria de fazer valer aquele direito de retenção enquanto a propriedade ainda está em nome do Tim. Se estiver em teu nome, como teu marido, posso usar a tua propriedade mas não vendê-la.
- Então usa o direito de retenção para ficares com ela.
Kyle deu alguns passos e observou os terrenos com os olhos semicerrados.
- Podíamos poupar a tua casa e o campo por trás dela, julgo eu. E esta colina também. O resto deve ser suficiente.
Rose aproximou-se dele e abraçou-o por trás, encostando o rosto às suas costas fortes.
- Se não for suficiente, venderemos também a casa e o campo. Ele virou-a para si.
- Tens a certeza absoluta em relação a isto? Nunca mais será igual, mesmo que consigamos poupar a casa. Estás a sacrificar algo que.
- Tenho a certeza. Por favor, não discutas mais comigo nem me fales em sacrifício. Se me amas, se me respeitas, não o farás.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Limitou-se a beijá-la, com mais doçura do que nunca. O coração de Rose ficou mais leve, de alívio.
- Então está decidido, sim? - murmurou.
- Falaremos imediatamente com os rendeiros, para termos tempo de lhes encontrar outras quintas - disse ele.
Apertou-a contra si e beijou-a na cabeça.
- Deixas-me comovido, Roselyn - murmurou, com a voz embargada pela emoção. - Sempre o fizeste. Primeiro com a tua beleza, depois com a tua bondade e paixão, e agora com o teu amor. Fazes com que o meu coração arda e doa e se encha de orgulho. De todas as coisas boas que me aconteceram na vida, tu foste o maior presente do destino.
Ela inclinou a cabeça para que os lábios dele pudessem encontrar os seus e deixou-se inundar pelo calor e amor de Kyle. Mais calor do que alguma vez esperara. Mais amor do que se atrevera a acreditar que merecia.
Encostou-se a ele enquanto olhavam para o horizonte do alto da colina. Fundiu-se nele até ser apenas a força dos braços do marido que a mantinha de pé.

 

                                                                  Madeline Hunter

 

 

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