Biblio VT
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
CAPÍTULO 16
Os homens seguiram Kyle quando ele saiu da igreja. Os mineiros tinham decidido que o engenheiro deles ia realmente entrar na mina hoje e, se o administrador tentasse
impedi-lo, só Deus poderia ajudá-lo.
As crianças foram embora correndo, mas muitas mulheres ficaram na igreja. Rose chamou muita atenção, enquanto dobrava os casacos de Kyle. Até que uma mulher de meia-idade,
usando uma túnica simples e um lenço de algodão branco na cabeça, se aproximou.
- É bem provável que os homens fiquem lá até a noite. Vamos mandar uma das crianças acompanhar você na sua carruagem.
- Acho que vou deixar a carruagem para Kyle e voltar a pé. Seria bom que alguém avisasse ao cocheiro, para que ele possa cuidar dos cavalos.
A mulher chamou um menino de uns 6 anos e o mandou dar o recado. Depois deu uma boa olhada nos trajes de Rose.
- Você deve estar bem quente nessa roupa, portanto ele não vai zangar conosco por deixá-la andar. É toda forrada de pele, não é?
Rose mostrou a barra do manto e o forro de pele.
- Tirei de um casaco mais antigo e coloquei aqui.
Outras mulheres se aproximaram para ver e ouvir. Uma delas estendeu a mão para sentir a pele do casaco.
- Não pensei que damas fizessem isto, reaproveitar roupas e tal.
- Muitas fazem. Só que não contam para ninguém.
As mulheres acharam graça. Outras vieram ver as roupas.
Rose ficou conversando um pouco. As mulheres de Teeslow eram bem parecidas com as de Londres, ou de qualquer lugar. Queriam saber qual a última moda, mesmo que não
pudessem comprá-la, e também quais os mexericos da sociedade.
Quando ela voltou para a casa de Harold, a primeira mulher que a abordara, Ellie, foi junto.
- Vou acompanhá-la, se não se importa. Quero ver Prudence. Faz alguns dias que ela não vem ao vilarejo. Somos amigas há muito tempo. Quando meninas, éramos vizinhas
de porta.
Rose gostou da companhia. Quando passaram pelos arredores de Teeslow, Ellie falou de novo.
- Prudence ficou surpresa com o casamento de Kyle. E preocupada. Contou só para mim, para mais ninguém.
- Espero que não esteja mais tão preocupada agora que me conheceu.
- Não ficou preocupada por sua causa.
O lenço branco de Ellie balançava com seu andar pesado.
- Ela quer o melhor para o sobrinho, claro. Entendeu por que se casar com você seria bom para o futuro dele.
- Então o que a preocupou?
Ellie franziu o cenho, como se pensasse o que responder.
- No começo, não entendi. Mas surgiram os boatos no vilarejo. Sobre você e Norbury.
Rose sentiu um aperto no peito. O vilarejo inteiro sabia. Podiam estar interessados na dama que se casara com Kyle, mas também queriam saber da mulher que fora a
meretriz de Norbury.
Será que comentariam alguma coisa com Kyle, apesar de ele estar querendo ajudá-los? Será que algum homem diria algo sobre o passado dela?
Rose nunca se arrependeu tanto de sua ingenuidade com Norbury como neste momento, enquanto andava ao lado da irrepreensível Ellie naquela estrada onde as pessoas
que Kyle conhecia desde que nasceu passavam com tanta frequência.
- Não pensei que essa história fosse chegar a Teeslow - disse ela. - Não pensei que minha presença ao lado dele hoje o envergonharia. Agora me arrependo de não ter
voltado na mesma hora para ficar com Prudence, como ele pediu.
- Ele não casou com você? Então não pode ficar tão envergonhado por sua causa. Quanto à história que chegou aqui, bom, começou a circular após a vinda do filho do
conde, semanas atrás. Todos perceberam a coincidência. Não somos idiotas, sabemos que há um problema entre os dois e alguns sabem qual é.
- Você se refere àquela surra que Kyle deu em Norbury quando eram mais novos. É, imagino como as coisas ficaram mal entre eles.
Parecia que Norbury continuava um menino, espalhando histórias para se vingar de quem bateu nele.
Ellie olhou para ela com uma expressão peculiar.
- Não foi a surra. Mesmo se Kyle tivesse perdido a briga, ele teria ganhado. Mostrou que há coisas que ninguém pode fazer, seja qual for a sua origem. Que existe
certo e errado para todos, quer você more numa mansão ou numa tapera. É humilhante aprender essa lição de alguém que você considera inferior. Pelo jeito, duas vezes.
- A primeira vez também foi por causa de uma mulher?
Elas estavam no ponto em que a estrada para a casa de Harold se bifurcava. Ellie apertou os olhos na direção da casa como se pudesse ver as pessoas que moravam lá.
- Seu marido não contou por que surrou o filho de um conde e aqueles outros meninos? Não me surpreende. Faz tanto tempo - disse e apontou o queixo na direção da
casa. - Pru jamais fala nisso, como se o silêncio fizesse a história sumir. Mas uma vez comentou comigo e outras mulheres. Por isso, sabemos o que teremos aqui quando
o conde morrer e o filho ficar com Kirtonlow Hall. Digamos que o filho não é como o pai e que se comporta mal com as mulheres. Sempre foi assim.
Elas seguiram juntas pela estrada. Prudence ficou feliz por rever a velha amiga. Rose deixou as duas na cozinha e subiu para dependurar os casacos de Kyle.
Ellie não deixara bem claro por que não gostava de Norbury, mas dissera o suficiente para preocupar Rose. Parecia que Kyle vinha desafiando o que o visconde considerava
seus direitos e prerrogativas. De certa maneira, estava repetindo isso hoje, ao examinar o túnel.
Mas isso era o de menos. Segundo Ellie, poucas pessoas sabiam o verdadeiro motivo por que Kyle batera em Norbury tantos anos antes. E fora a tia quem havia contado.
O que significava que tudo começava em Prudence.
Kyle saiu da carruagem para a escuridão da noite. Levantou os braços e esticou o corpo todo.
Tinha esquecido como aquele túnel era baixo. Até homens menores do que ele tinham de se curvar. Passara as últimas cinco horas em posições incômodas para examinar
aquela rocha.
Gostou de Rose ter deixado a carruagem, mas não ousava se mexer dentro dela. A camisa estava toda suja, os cabelos... Tudo era sujeira e pó preto. Até à luz da lua
dava para ver as manchas enormes nos braços.
A casa estava escura. Todos tinham ido dormir. Ainda bem. Não queria que Rose o visse assim. Vê-lo sair para fazer uma boa ação era uma coisa. Vê-lo voltar parecendo
o mineiro que ele tinha nascido para ser era outra.
Havia uma luz pálida da cozinha que desenhava algumas formas nos cômodos da frente. Um fogo fraco vinha da lareira, acrescentando um leve brilho à sala de visitas.
Alguém estava encolhido na cadeira de Harold, mas não era o tio. Rose dormia lá, de camisola e com um grande xale, as pernas sobre a almofada, os pés rosados por
causa do calor da lareira.
Tinha soltado e escovado os cabelos até parecerem um rio dourado e luzidio. Os lábios e as pestanas pareciam bem escuros na luz suave.
Kyle estava com fome, precisava de um banho de água quente e estava tão cansado que mal conseguia ficar em pé, mas olhar para ela o deixou hipnotizado. Como sempre
fora. Como sempre seria. Não é para você, rapaz.
O efeito que causava nele era ainda mais forte agora. Rose já não era um rosto lindo visto num teatro ou à luz da lua. Não era sequer a mulher apaixonada que ele
tinha possuído numa união de almas. Começava a conhecê-la tão profundamente que isso alterava o que sabia de si mesmo.
O xale tinha escorregado pelo ombro que estava mais perto da lareira. Com cuidado, Kyle o colocou no lugar para que ela não sentisse frio. Deixou-a dormir e foi
para a cozinha.
O banho que Rose prometera estava pronto, com a tina de alumínio com água até a metade. Baldes com mais água esquentavam no fogo. Uma tigela de barro cobria um prato
na mesa.
Ele levantou a tigela: tinha carne, queijo e pão. Pegou um copo no armário e se serviu no pequeno barril de cerveja de Harold. Voltou para a mesa e sentou-se para
jantar.
A comida ajudou, mas sentar-se só o fez se lembrar do corpo doído. Levantou-se e despejou a água do balde na tina. Quando foi buscar outro, uma manga de camisola
branca e uma mão feminina trouxeram o terceiro balde.
Rose despejou a água e olhou para o marido. Ele viu que ela notava toda a sujeira e o pó. Ela era boa demais para demonstrar nojo, mas não tinha muita prática em
esconder a surpresa.
- Eu tinha razão. Você vai precisar do banho.
Ela pegou mais um balde. Kyle o tirou da mão dela.
- Eu faço isso.
- Preparei muitos banhos antes, Kyle.
- Agora que está casada comigo, não precisa mais fazer essas coisas.
- Não me lembro dessa parte do nosso acordo. Se Prudence aceitasse ter um criado em casa, eu abriria mão desse serviço com prazer, mas é melhor você se concentrar
em tirar a roupa e tomar um bom banho.
Sem esperar que Kyle concordasse, Rose buscou os outros baldes e despejou seu conteúdo na tina. Ele tirou as roupas e entrou na água quente.
Roselyn pegou a camisa e os calções do marido.
- Essa sujeira sai?
- Não toda, se é isso que pergunta. Ponha lá fora, nos fundos. Pru sabe o que fazer.
Ela obedeceu, depois se ajoelhou atrás dele e começou a esfregar suas costas. Essa trivialidade o encantou, com sua tranquilidade doméstica. Rose decerto tinha feito
isso quando jovem com os irmãos, antes que eles se tornassem banqueiros. Depois, vieram alguns anos ruins. Certamente tinha muita experiência em banhar homens.
O banho continuou sem qualquer insinuação erótica. Ela, sem dúvida, dera uma olhada nele coberto de pó de carvão, os olhos vermelhos devido à iluminação fraca e
o ar viciado da mina, e se desinteressara. Ou percebera que ele tinha se desinteressado.
- Conseguiu fazer progressos hoje? Acha que pode ajudá-los? - perguntou ela.
- Não fiz muito, mas o bastante para saber o que devo fazer amanhã. E depois de amanhã. Preciso de algumas ferramentas. Disse ao administrador que, se ele não as
emprestar, vou falar com o conde e trago uma autorização por escrito.
Ele tinha citado o conde tantas vezes nesse dia que, se o homem já tivesse morrido, iria se revirar no túmulo. Estava tirando o máximo daquela relação nos seus derradeiros
dias. Esperava e confiava que, se Cottington soubesse, compreenderia.
Rose enxaguou o pedaço de pano, passou sabão nele outra vez e o entregou a Kyle. Sentou no chão ao lado da tina e cruzou as pernas.
- Depois que você saiu da igreja, encontrei algumas mulheres do vilarejo. Conversamos um pouco.
- Sobre o quê?
Ela deu de ombros.
- Coisas de mulher.
Ela molhou o dedo numa pequena poça no piso de tábuas gasto. Fez um desenho com a água.
- Todo mundo sabe. De mim. Ele se assegurou de que todos soubessem que você tinha se casado com a meretriz dele. Norbury.
- Quem lhe contou isso?
- Uma mulher chamada Ellie. É uma das amigas de infância de Pru. Veio comigo até aqui e as duas ficaram de conversa quase uma hora.
- Foi grosseiro ela contar isso. Mas você não é a primeira mulher a se enganar com um homem, Rose. Se bem me lembro, Ellie teve o primeiro filho apenas sete meses
após o casamento. Um bebê forte e robusto.
Ela sorriu enquanto desenhava com a água.
- É muito gentil da sua parte tentar fazer eu não me sentir tão mal quanto a isso. Ellie disse outra coisa interessante: que, quando você era menino e bateu em Norbury,
foi por causa da maneira como ele tratou uma mulher. Acho que essa mulher foi a sua tia, pelo que Ellie disse.
- É verdade. Ele e uns amigos estavam mexendo com ela, divertindo-se à custa dela do jeito que alguns garotos ruins fazem às vezes - contou ele, e continuou se lavando.
- O que mais Ellie disse?
- Muitas coisas boas de você. Foi um pouco misteriosa sobre a surra. Disse que algumas pessoas sabem a verdade porque Prudence contou. E que graças a isso sabem
o que esperar do futuro, quando Norbury herdar o título do pai.
Kyle prestava atenção no pedaço de pano e no sabão. Apurou os ouvidos para os sons que vinham do andar de cima, do quarto onde Pru e Harold dormiam. Imaginou que
Pru tinha guardado segredo sobre aquele dia durante muito tempo. Anos, talvez. Acreditava saber o que ela finalmente contara para Ellie e outras mulheres e por quê.
Estava menos cansado agora. Tinha recuperado um pouco das energias com a comida e o banho. O calor da água valera por horas de sono.
A raiva também o revitalizara. Raiva da própria ignorância por todos aqueles anos. Uma ignorância conveniente. Se soubesse a verdade, veria os presentes do conde
apenas como suborno em troca de silêncio.
Rose se levantou.
- Já é bem tarde. Você vai ter mais um dia cansativo amanhã. Devia ir dormir agora.
Ela foi até o fogão sem fazer barulho. As chamas lançaram uma luz quente em sua camisola, mostrando a forma do corpo numa silhueta tentadora. Ele olhou a curva das
nádegas e dos seios mexerem quando ela pegou uma grande toalha aquecida na pedra do fogão.
Rose trouxe a toalha. Ele se levantou e se secou. Ela o observou, como tinha feito na noite anterior sentada na cama, tão decidida a ter uma conversa que podia ser
evitada pelo resto da vida.
Olhou mais para baixo.
- Parece que você se recuperou do cansaço do dia. Sem dúvida.
Estendeu a mão e apertou de leve a prova proeminente do que dizia.
- É incrível o que um pouco de cerveja e comida podem fazer. Consegue subir a escada assim?
- Esqueça isso.
Kyle jogou a tolha e agarrou Rose. O desejo o invadiu com fúria profana e ele se apoderou da boca de Rose com um beijo embriagador. Era a raiva se mostrando, mesmo
que não fosse dirigida a ela.
Precisava possuí-la. Agora. Precisava mergulhar no calor e na maciez dela. Virou-a para a parede de gesso, levantou a camisola dela até a cintura. Beijou o pescoço
e a nuca e se aproximou para cobri-la com o próprio corpo. Empurrou o pênis entre as pernas dela até se aninhar em seu calor úmido. Senti-la só o deixou mais excitado,
mais impaciente. Empurrou o quadril para acariciá-la por dentro e levou as mãos à frente dela para afagar os seios. Ela passou a acariciá-lo também, com o movimento
leve das coxas e o pulsar do sexo.
Foi como se uma loucura tomasse conta deles. Ficaram possuídos por fogo e desejo. Virou-a e a ergueu ao mesmo tempo que a penetrava. Ela prendeu as pernas no quadril
dele, grudou-se nele e saciou sua fome.
Kyle arrancou do bloco a terceira cópia que preparara de seu relatório. Seriam quatro ao todo, de um trabalho extenso, detalhado e completo com desenhos, para mostrar
como tornar seguro aquele túnel. Pretendia dar uma cópia para o administrador e uma para os mineiros, além de enviar uma para Cottington e outra para os proprietários
da mina. O original voltaria com ele para Londres e, se fosse preciso, Kyle faria mais cópias.
Rose dormia no andar de cima. Ele consultou o relógio de bolso. Já estava amanhecendo. Ia entregar aqueles documentos e viajar com Rose para Londres ao meio-dia.
Durante cinco dias ele descera na mina, o bastante para voltar a conhecê-la. Hoje, não precisaria nem das lamparinas para saber o caminho. E enquanto olhava as fendas
e vigas perto do túnel, vinha a sua mente o eco das picaretas que tiravam terra e vidas.
- Ficou acordado a noite toda, Kyle? Faz mal para a saúde.
Ele olhou para a porta. Prudence estava lá, colocando o avental.
- Estou quase terminando. Posso dormir na carruagem.
Ela se aproximou e olhou a pilha de papéis.
- Obrigada por fazer isso. Eles estão muito gratos. Eu também.
Pegou um balde e saiu para pegar água no poço que ele tinha aberto no jardim. Kyle terminou a última folha e deixou de lado a caneta.
Pru voltou e ficou mexendo nas panelas no fogo. Ela agora não precisava começar o dia tão cedo, mas era difícil largar o hábito de uma vida inteira.
- Tia Pru, antes de viajar, quero conversar uma coisa com a senhora. Como estamos a sós, acho que agora seria um bom momento.
Ela ficou com a mão na alça de uma panela. Talvez tivesse sido o tom dele. Talvez ela já soubesse qual era o assunto, como tem gente que sabe quando vai cair uma
chuva de verão.
Ela continuou sua tarefa.
- Claro, Kyle.
- Ellie disse a Rose que a senhora contou a verdade sobre Norbury a algumas mulheres. Também quero saber qual é.
- Acho que você sabe melhor que todos.
- Mas não mais que a senhora. Tenho certeza.
Ela se abaixou e acendeu o fogo. Continuou tão impassível que podia não tê-lo ouvido.
- O que disse a Ellie e às outras, Pru?
- Se fosse para você saber, eu teria contado - respondeu, ríspida, e enrubesceu. - Ellie é uma velha mexeriqueira e vou queimar as orelhas dela quando a encontrar.
Contar para a sua esposa...
- Ela contou pouco para Rose, só para mostrar o que o vilarejo pensa dela com Norbury. Se fosse outra mulher, deixaria por isso mesmo, mas Rose é... curiosa.
Excepcionalmente curiosa. Ela andara xeretando detalhes da vida dele ali no vilarejo.
- Eu disse que ele é um canalha e que as mulheres não devem confiar nele. O que não é novidade para você, nem para Rose - falou ela, como quem finaliza o assunto.
Ele entendia por que a tia não queria falar. Pensou em deixar de lado o assunto, deixá-la em paz.
Foi até a lareira. Encostou-se na cornija para olhá-la enquanto trabalhava. Ela lhe deu uma olhada rápida, mas continuou cuidando da água que tinha posto para esquentar.
- Tenho pensado naquele dia, Pru, quando a encontrei com ele e os dois amigos, nas árvores perto da estrada para Kirtonlow Hall. Tenho pensado nos gritos e risadas
que me atraíram até lá e no que vi. Eu era menino e não sei se entendi mal. Talvez eu quisesse entender mal.
Ela o encarou, triste, zangada. Olhou para o quarto onde Harold dormia. De repente, saiu da cozinha e foi para o jardim.
Ele a seguiu. Pru passou pelas árvores frutíferas nuas e foi até o final do pomar. Cruzou os braços e olhou para o sobrinho.
- Por que fala nisso depois de tantos anos?
- Não sei. Talvez eu tenha pensado por causa do que aconteceu com Rose.
- Melhor não pensar, Kyle. Foi há tanto tempo. O pai vai morrer logo e você vai ter de lidar com o filho.
- Resolverei como lidar com ele. Estou certo? Cheguei tarde demais, Pru?
- Para que saber? Não se pode fazer mais nada.
- Vou saber com quem estou lidando. Se você rompeu o silêncio e contou para as mulheres, entende por que eu também preciso saber.
Ela olhou para as árvores frutíferas tomando forma à luz cinzenta do dia. Mal deu para ver quando ela assentiu.
- O conde sabia - disse ela. - O filho mentiu para ele, mas os amigos tiveram medo de mentir. Então o conde soube. Me ofereceu uma boa quantia, mas recusei. Eu disse
que ia levar o filho dele ao tribunal e, mesmo se ele fosse libertado, todo mundo ia saber que ele não passava de um porco bem-nascido.
- Quando ele propôs isso?
- Um dia antes de mandar chamar você. Enquanto eu o aprontava, sabia como ia ser. Ele havia pensado num outro jeito de garantir meu silêncio. Ele nunca disse nada
sobre isso. Nunca ameaçou mandar você de volta à mina se eu contasse, mas eu sabia.
E Cottington sabia que ela sabia. O conde tinha visto aquela mulher zangada, percebera que era inteligente e que ele nunca teria de lhe justificar seus motivos para
que ela entendesse sua generosidade.
Portanto, deveria haver outro motivo, além daqueles que o conde lhe contara. Por outro lado, Cottington não era burro. Sabia que para alguns crimes não há ressarcimento
possível.
- Não me importo - disse ela. - Claro que ele nunca seria condenado. Melhor assim, e que você tenha se tornado o homem que é. Suponho que ele veja você em Londres
e saiba que só conseguiu chegar lá por causa daquele dia. E que o pai dele fez de um menino de Teeslow um homem melhor do que ele jamais será. Isso dá uma certa
satisfação. Bem maior do que apontar o dedo para ele no tribunal, eu acho.
- Lamento que a senhora nunca tenha tido o prazer de apontar o dedo para ele no tribunal, Pru.
- Não é fácil para uma mulher fazer isso. Vai ter sempre alguém dizendo que a culpa é dela, não? Ele diria isso e muitos acreditariam. As mulheres sabem como vai
ser se acusarem um homem.
Ela deu um tapinha no rosto de Kyle como se ele fosse um menino.
- Agora você sabe, ainda que isso não vá trazer nada de bom. Acho que era melhor você apenas supor.
- Harold sabe disso?
- Ele nunca perguntou e eu nunca disse. Mas tenho certeza de que sabe. Demorou alguns anos para isso deixar de nos incomodar. Se eu tivesse contado, ele seria obrigado
a matar Norbury, não é? Depois iria para a forca. Por isso eu não falei nada. Mas agora, que o conde está morrendo... Norbury vai estar mais presente por aqui. Ele
continua o mesmo homem, como você sabe. Então, eu contei a algumas mulheres mais velhas do vilarejo, para ficarem atentas e alertarem as mais jovens.
Ela foi andando para a casa e ele a acompanhou.
- A senhora disse "como você sabe". Se estiver se referindo a Rose, foi diferente.
- Pelo que ouvi dizer, foi bem parecido, só que você interferiu - falou e balançou a cabeça. - Coitadinha, pensou que ele a amava, mas ele só queria se aproveitar
dela. Aí ela o rejeitou e o que aconteceu? Ele tentou vendê-la para outro que a pegaria à força. Farinha do mesmo saco, a maioria desses nobres.
Ele quase corrigiu a história que a tia ouvira. Era incrível que, contra todas as possibilidades, a versão de Easterbrook para o dia do leilão tivesse chegado a
Teeslow e se espalhado pelo vilarejo, opondo-se à de Norbury.
Kyle entrou com a tia na cozinha. Antes ele supunha, agora tinha certeza. Com sorte, a gana de ir atrás de Norbury e matá-lo sumiria em alguns dias.
CAPÍTULO 17
-Todos aceitaram o convite. O jantar promete ser um sucesso - contou Alexia, enquanto ela e Rose saíam de sua casa na Hill Street. - Você vai ficar ótima naquele
traje de jantar que encomendou. Estamos a caminho de mais uma pequena, porém importante, vitória.
Rose apertou a mão de Alexia num gesto de gratidão. Luva na luva, foram andando em direção ao Hyde Park.
A perspectiva de mais um iminente avanço social não conseguiu animar Rose. Fazia três dias que voltara a Londres. Três dias felizes e três noites gloriosas.
O medo de que o novo "calor" na relação pudesse acabar na volta à capital não se justificara. Na primeira noite, ela e Kyle estavam tão ansiosos por continuar as
explorações sexuais que um foi procurar o outro e se chocaram no quarto de vestir dela, que estava escuro.
Ela nunca mais abriria a porta do armário sem se lembrar de como ele a encostara na porta, nua e de pernas abertas, cobrindo-a com o próprio corpo e a possuindo
por trás.
Infelizmente, de manhã, uma nuvem tinha se posto sobre a satisfação e alegria que se seguira à noite. Chegara uma carta do advogado da família pedindo uma encontro
a respeito da propriedade em Oxfordshire.
Enquanto estivera no norte, ela não pensara na situação de Timothy. Fizera uma pausa em suas preocupações com o irmão. Agora, as solicitações dele voltavam a tomar
sua mente.
O encontro com o advogado a inquietava. Para adiar as preocupações por algumas horas, ela convidara Alexia para uma caminhada no parque.
- Você ficou mais tempo no norte do que eu esperava - disse Alexia. - Cheguei a temer que a Sra. Vaughn pensasse que eu tinha desistido do jantar ou que não a convidara.
Seria um mal-entendido muito ruim. Está tudo bem com a família de seu marido?
- Sim. Gostei deles, Alexia. São gente boa e honesta. E acho que agora têm uma opinião melhor a meu respeito.
- Quem a conhece jamais fica com má impressão a seu respeito. Por isso nossos planos estão tendo tanto sucesso. Além de estar circulando uma nova versão daquele
leilão escandaloso. Nela, você é uma donzela ingênua e Norbury, um grande cafajeste. Confesso que não me senti na obrigação de desmentir.
- Em geral, as pessoas preferem pensar no pior, não se preocupam em desculpar uma mulher num escândalo assim.
- Todos conhecem o visconde, e ninguém gosta muito dele. É um homem desagradável e sempre se ouviu falar nos excessos que comete. Você, por sua vez, tem uma vida
exemplar. Deixe que fiquem com a segunda versão. O comportamento de Norbury em relação a você foi vil o bastante para merecer esse mal-entendido.
Entraram no parque, que estava sem plantas novas e sem frequentadores. Poucas pessoas percorriam as trilhas: o tempo, o mês e a hora garantiam uma grande privacidade.
- Agradeço tudo o que tem feito por mim, Alexia. Mas gostaria que Kyle também pudesse ir ao jantar. Ele diz que você não deve lutar em duas frentes ao mesmo tempo.
Só que me parece estranho que a Sra. Vaughn e o marido relevem o fato de eu ter sido chamada de puta, mas não perdoem meu marido por nascer num vilarejo de mineiros.
- O fato de se irritar com isso é um bom indício em relação ao seu casamento. Mostra que há uma afinidade se formando entre vocês.
Rose duvidava que Alexia imaginasse quanto. Queria contar à prima sobre o homem com quem tinha se casado. Buscava palavras para dizer como se sentia ao mesmo tempo
segura, feliz e indefesa nos braços dele. No mínimo, mandaria todas aquelas pessoas às favas e se recusaria a ir a qualquer jantar de que o marido fosse excluído.
Alexia falou antes:
- Bom, vamos conversar sobre Irene. Tenho algo a sugerir. Algo bem surpreendente.
A menção a Irene interrompeu as palavras que se formavam na boca de Rose. A guerra era mais sobre a irmã do que sobre ela. Até o casamento dela tinha sido principalmente
por causa de Irene.
- Acho que essa temporada é muito cedo para ela ser apresentada à sociedade - disse Rose. - Se você discorda, está sendo otimista demais.
- Antes de afastar a ideia, ouça o que tenho a dizer. Sempre estive ciente de que o filho que espero iria nos atrapalhar tanto quanto o seu escândalo.
Por instinto, Alexia pôs a mão no barrigão que aparecia por baixo de sua peliça azul-aurora.
- Comentei isso quando Hayden e eu jantávamos na casa de meu cunhado, há duas semanas. Meu marido entende a situação de Irene, mas insiste para eu não dar o passo
maior que a perna.
- Seu marido tem razão. O melhor argumento é que seu filho está prestes a nascer. Irene pode esperar mais um ano.
- Parece que todos acham o mesmo e, depois desse jantar, eu me convenci. Imagine então a minha surpresa quando Henrietta me procurou há alguns dias e sugeriu dar
um baile em abril para apresentar Irene à sociedade.
- Henrietta? Não é possível.
- Pois é. Fiquei mais surpresa ainda. Se um amor pode mudar tanto uma mulher, peço a Deus que todas as mexeriqueiras da cidade encontrem um amante antes de a temporada
começar.
- Talvez a nossa melhor estratégia seja arrumar os amantes. Estar feliz nessa área costuma influenciar a opinião da pessoa sobre quase tudo.
Alexia levantou uma sobrancelha.
- E qual a sua opinião sobre quase tudo hoje, Roselyn? Sugeriu este passeio pelo parque apesar do frio e das nuvens pesadas. Você decerto não reparou no tempo de
manhã e viu um dia lindo, apesar do frio de inverno.
Rose sentiu o rosto esquentar. Alexia riu, inclinou-se e deu um beijo na prima.
- Como fui uma das defensoras desse casamento, fico satisfeita que uma parte da união a agrade. Não deve haver nada mais horrível do que considerar a cama apenas
como um lugar para cumprir obrigações.
Obrigações, nunca. Jamais era só isso. Kyle sempre era um amante atencioso, sabia que o casamento deles seria mais satisfatório se ela também sentisse prazer.
Depois daquela noite em Teeslow, o tempo que passavam na cama era o melhor de tudo. De certa maneira, era a única hora em que ela ficava completamente à vontade
e convicta de que tinha acertado.
Podia ser o bastante. O sussurro dele em seu ouvido, o hálito nos cabelos e no peito, até a maestria com que movia seu corpo e exigia rendições que ela jamais questionava.
O prazer podia ser suficiente por si só, mas as marcas ardentes que Kyle deixava em sua alma faziam-na pertencer mais a ele do que a si mesma a cada encontro.
Como uma boa refeição, tinha sido a imagem que ele lhe apresentara do prazer carnal no dia em que ela aceitara seu pedido de casamento. Vinham fazendo ótimas refeições
ultimamente. Era bem provável que fosse assim que ele visse o que tinham: um cardápio variado, com muitas delícias.
Por que então ela estava se sentindo menos centrada a cada dia, naquele casamento que tinha todos os motivos práticos? Kyle talvez dissesse que ela estava cometendo
o mesmo erro em relação ao prazer que cometera na falta dele: confundir o lado físico com o emocional. A intimidade que vinha com aquelas experiências devia ser
inevitável. A reação que ela causava em Kyle decerto seria a mesma que uma mulher de prostíbulo causaria.
Mesmo assim, estavam se formando laços que complicavam certas coisas. Como o encontro que ela teria com o advogado nesse dia.
- Alexia, você nunca enganou Hayden? Nunca o desobedeceu?
Alexia continuou andando enquanto pensava na resposta.
- Uma ou duas vezes. Tentei me convencer de que o enganara, mas claro que era só para me justificar.
Ela sorriu e uma lembrança pareceu surgir em sua cabeça.
- Ele me pegou na maior mentira. Acho que tão cedo não faço nada parecido, nem preciso.
- Você se sentiu culpada?
- Um pouco. Mas há coisas que os maridos não precisam saber. Cometi alguns pecados de omissão que comprometeram a honestidade completa porque o assunto era importante
para mim e, na época, ele não teria entendido - explicou ela e pensou no que disse. - Hoje, entenderia, mas essa compreensão demora bastante num casamento, mesmo
nos que têm as melhores condições, o que não era o nosso caso.
Era característico de Alexia: dar uma resposta sincera e ponderada para uma pergunta difícil e invasiva. Rose deduziu o que a prima não disse. Essas omissões importantes
tinham sido em relação a ela, Irene e Tim, motivadas pela determinação de Alexia em preservar a família que odiava o homem com quem ela se casara.
- Por que pergunta, Rose? Quando fiz isso, foi uma decisão solitária, mas não precisa acontecer o mesmo com você.
Rose pensou em contar. Alexia seria discreta. Se pedisse, a prima não contaria nem para Hayden.
Mas Alexia não concordava que Tim precisava de ajuda. Tinha sido totalmente contra a ideia de que Rose fosse encontrá-lo.
Para Alexia, Tim estava morto. Ela havia acompanhado o pior. Vira Tim fugir e deixar Hayden arriscar a própria fortuna para salvar o que restava da família Longworth
e sua reputação. E devia saber havia muito tempo quanto fora roubado.
Alexia jamais toleraria a pequena mentira que Rose diria agora. Por causa de Tim, não. Nem seria justo preocupá-la novamente com as sórdidas consequências do mau
comportamento do primo.
- Eu a amo, Alexia, e agradeço por se dispor a me ouvir. Mas acho que as circunstâncias me obrigam a decidir sozinha também.
O Sr. Yardley conseguia exalar um profissionalismo absoluto em tudo. Cumprimentou Rose no escritório de advocacia dele, que ficava perto de Lincoln's Inn, com as
palavras educadas e gentis exigidas num encontro de negócios. Instalou-a numa cadeira e olhou para ela com sua pilha de documentos. Sorriu para deixá-la à vontade.
Um contador estava numa mesa próxima, silencioso e discreto, caneta pronta para tomar notas.
O colarinho alto do Sr. Yardley apertava seu rosto atarracado e a gravata emoldurava o queixo duplo. Seus cachos com corte da moda não se embaraçavam muito porque
os cabelos grisalhos estavam bem ralos. Um advogado experiente, que servia à família Longworth de longa data: primeiro ao pai, depois aos filhos, e fazia agora um
ano que não recebia nenhum encargo respeitável.
Rose esperou que ele fizesse as perguntas. O advogado pareceu cauteloso. Claro que a reputação dele também tinha sido afetada com a falência espetacular de Tim.
Trabalhar para Timothy devia ser tão desagradável agora que o Sr. Yardley decidira não pedir nada pela venda da propriedade. Aquela reunião podia significar seu
afastamento e o último adeus.
Ele pigarreou.
- Sra. Bradwell, verifiquei a legislação e concluí que a procuração de seu irmão atende às exigências. Posso vender a propriedade com base na carta dele.
- Boa notícia, Sir. Quando podemos fazer isso? Quanto tempo demora?
Ele pigarreou de novo.
- Há um problema. Lamento dizer que a propriedade não pode ser vendida.
Ela inclinou a cabeça, intrigada.
- Não entendo. Por favor, explique o motivo.
- Talvez, se eu encontrar o seu marido...
- A casa não é minha, é do meu irmão. Meu marido nada tem a ver com ela. Sou perfeitamente capaz de entender o que for, se o senhor explicar.
Ele pressionou os lábios. Pelo jeito, o Sr. Yardley não ficava à vontade discutindo questões financeiras com uma mulher.
- Sra. Bradwell, quando seu irmão deixou de pagar as dívidas, a casa ficou à mercê das pessoas a quem ele devia.
Ele enfatizou bem a palavra "dívidas", mostrando que pelo menos uma pessoa sabia dos crimes por trás delas.
- Na época, lorde Hayden Rothwell fez uma solicitação à justiça pedindo a casa como garantia de dívidas. Tenho o documento aqui. Só por causa desse processo os demais
devedores não a tomaram em pagamento por suas perdas.
- Eu sabia que lorde Hayden tinha feito algo para proteger a casa. Sou grata a ele. Não sabia que a casa continuava nessa situação.
Ela devia ter imaginado. Não podia culpar lorde Hayden pelo fato de ainda haver um processo, mesmo depois de saldadas todas as dívidas. Afinal, tinha sido ele quem
as saldara. Rose nem poderia reclamar caso ele realmente tomasse a casa.
- Na verdade, ele retirou essa solicitação feita à justiça no verão passado.
- Então a casa está livre e a procuração vale. O que impede a venda?
- Outra solicitação de bloqueio.
- Então eram duas? Não acredito que lorde Hayden fosse cancelar a dele, que era para proteger nossa propriedade, e nos deixar à mercê de um segundo credor.
- Esta segunda pessoa não existia quando lorde Hayden cancelou a dele. É mais recente. Fez isso há poucos meses.
- O que é mais alarmante ainda, Sr. Yardley. Por que não me avisou na época?
- Meus serviços eram para o seu irmão, que, considerando-se o que aconteceu no último ano em relação a seus bens, suas dívidas e a mudança para o exterior, parecia
não precisar mais deles. Em resumo, madame, concluí que nosso relacionamento tinha terminado, por isso me desobriguei dos interesses da família. Sua pergunta sobre
a procuração me surpreendeu tanto quanto esta notícia surpreende a senhora agora.
Ela se levantou e foi até a janela, que dava para a rua, onde caía uma chuva fina sobre os pedestres e as carruagens. O cocheiro dela estava levando os cavalos para
andar e se aquecer.
Um novo bloqueio. Parecia que lorde Hayden tinha deixado de saldar uma ou duas dívidas. Devia ter sido impossível encontrar todas as pessoas na trama intrincada
daquela fraude.
- Como está a situação desse segundo processo, Sr. Yardley?
A propriedade podia ser tomada logo. Ela e Irene poderiam perder a casa em que passaram a vida inteira. Seriam arrancadas pelas raízes como as plantas durante a
colheita. Ela não pensara nisso quando vendê-la significava ajudar Tim, mas agora seu coração doía.
Lembrou-se de muitas coisas, tristes e alegres. Lembrou-se do irmão mais velho, Ben, anunciando que se tornaria sócio de um banco em troca do próprio trabalho, que
entraria nesse mundo para que um dia todos eles tivessem uma vida melhor. Lembrou-se de Tim pequeno, subindo na macieira e lhe atirando pequenas maçãs quando ela
tentava subir também. Lembrou-se de estar deitada naquela colina, sentindo-se perigosamente livre por uma hora.
Lembrou-se de Kyle beijando-a pela primeira vez, num gesto inesperado e ousado, passando por cima das formalidades e diferenças que os separavam.
- Ao que consta, nada foi feito além de se estabelecer o bloqueio de bens. O processo apenas existe, como o primeiro, de lorde Hayden. Mas, de qualquer forma, impede
a venda.
Virou-se para encará-lo. Ele estava em pé, assim como o contador.
- Se o novo credor não tomou nenhuma providência a mais, talvez ele possa ser convencido a desistir disso. Como o senhor percebe pela carta, a situação de meu irmão
pode ficar grave se eu não lhe enviar esse dinheiro.
O Sr. Yardley era educado demais para responder, mas seus olhos diziam tudo. Só a família de Tim ficaria triste se ele passasse necessidades.
- Acho pouco provável que a pessoa cancele o pedido de bloqueio. Essas coisas não são feitas por mero capricho.
- Mesmo assim, vou tentar. Compreendo que esse caso não interesse mais ao senhor. Tentarei resolver sozinha. Por favor, anote o nome do credor para mim. Vou escrever
para ele ou pedir que lorde Hayden o faça.
Ele ficou indeciso. Depois olhou para o contador e assentiu. O contador pegou a caneta, se inclinou sobre a escrivaninha e escreveu. Então dobrou a folha e a entregou
à dama. Rose guardou a anotação na bolsinha e saiu.
Ao entrar na carruagem, pegou o papel. Abriu a cortina para melhorar a iluminação e só então desdobrou a folha.
Imediatamente entendeu o mal-estar do Sr. Yardley e as explicações cheias de rodeios.
Olhou, pasma, o nome da pessoa que impedia a venda da casa.
Sr. Kyle Bradwell.
CAPÍTULO 18
O homem que visitava Kyle saiu levando um acordo assinado, embora não concordasse muito com seus termos. A assinatura fora garantida no momento em que ele chegara,
mas a insatisfação se dera quando Kyle se mostrara inesperadamente determinado nas negociações.
Em situações normais, ele teria sacrificado algumas libras em troca de uma despedida agradável. Hoje, entretanto, não via seu fornecedor de madeira como um parceiro.
As negociações tinham se transformado num jogo que Kyle decidira vencer, não empatar.
Viu a porta de seu escritório ser fechada. O papel que acabava de ser levado representava um bocado de dinheiro, pois a madeira viria da Noruega.
Kyle tirou a sobrecasaca e a colocou numa cadeira. Vinha achando mais difícil ficar à sombra nesse mundo onde vivia e trabalhava. Um novo ímpeto tinha surgido e
reprovava a forma como ele vinha engolindo sua personalidade natural.
Rose incitava isso. Quando estava com ela, sentia-se ele mesmo outra vez. Nos últimos anos, ele tinha erguido muros e limitações até na própria mente, em seus planos
e reflexões. Na tentativa de esconder que não pertencia àquele ambiente, acabara se perdendo de si mesmo.
Ficou junto à escrivaninha e olhou o papel com os termos do último acordo. Colocou-o de lado e olhou as anotações que fizera naquela manhã. Eram um rascunho de ideias
ousadas. Corajosas. Audaciosas. Ideias que ele tinha aos turbilhões, quando era mais jovem. Não liberava esse lado de sua personalidade desde que voltara da França.
Rose parecia gostar dele assim. Parecia aprovar o ser híbrido que o passado e o presente tinham criado.
As anotações sumiram da cabeça, dando lugar apenas a Rose. Lembrou-se dela naquela manhã, quando o dia raiou, os cabelos sedosos caindo sobre o braço dele enquanto
o calor feminino pulsava nele ao ritmo das batidas do coração. Como sempre, ficava hipnotizado com a beleza dela, só que já não se tratava de uma mulher distante
que tirava seu fôlego. Não era sequer a adorável dama que tinha trocado a vida e os direitos ao corpo numa tentativa de redenção.
Vieram outras imagens à lembrança. Imagens eróticas e outras em que o desejo tinha pouca participação. Pequenos detalhes ficaram. A curva do rosto na luz do jardim
da casa dela em Oxfordshire. A mão segurando um garfo. Lampejos de beleza e graça surgiam na cabeça de Kyle sem parar. Talvez ele tivesse pressionado tanto o vendedor
de madeira só porque qualquer conversa mais amena faria seus pensamentos voarem para Roselyn.
Ela não parava de surpreendê-lo. Não só na cama. Isso era apenas um reflexo das outras mudanças que se passavam entre os dois. Ele não tinha esperado tanto desse
casamento, muito menos dela. Certamente, não previra a alegria que a companhia dela traria.
Hoje, ela estava visitando Alexia. Kyle pensou se já teria voltado para casa.
Se a procurasse já, Rose jamais o deixaria pensar que ele tinha atrapalhado seu dia. Quem sabe até pusesse de lado o que fosse fazer e o levasse outra vez ao desejo
devastador e à completude sísmica em que ele ao mesmo tempo se perdia e se reencontrava.
Quem sabe...
Um som vindo do lado de fora atrapalhou suas alegres divagações. Foi até a porta e a abriu. Roselyn andava de um lado para outro, como se tivesse sido atraída ali
pelos pensamentos dele. Os passos soavam em batidas rítmicas e surdas no piso de madeira. Ela olhou para a mesa da antessala e para a porta onde ele estava. Parou
de andar e apenas o encarou.
Havia algo errado. Ele percebia pela mudança na postura e a inclinação da cabeça dela. Soara em seus passos. O brilho irritado dos olhos deixou claro que sua gentil
e doce esposa estava muito, muito zangada.
- Eu nunca vim aqui - informou ela, como para responder ao desafio que ele não tinha interesse em fazer. - Estava na cidade e pensei em visitá-lo.
- Gostei. Se soubesse que tinha curiosidade de conhecer meu escritório, teria trazido você aqui antes.
- Onde está o seu secretário? Está aí dentro?
- Não tenho um. Eu mesmo escrevo as cartas e meu advogado confere se os termos estão corretos.
A linha fina da boca de Roselyn era sarcástica demais para ser chamada de sorriso.
- Os advogados servem para muita coisa.
- Não vai entrar? Tem cadeiras aqui.
Ela ficou indecisa, depois aceitou entrar no escritório. Deu uma volta, olhou pelas janelas e avaliou o tamanho do cômodo. O olhar atento reparou no tapete de cores
vivas, nos móveis de mogno, nas altas estantes de livros e nas largas gavetas rasas de guardar mapas.
- Seu escritório é de muito bom gosto. Eu diria que parece um clube masculino. Ou uma biblioteca de Mayfair. Nada sobra e nada falta. Como os seus casacos.
Ele não tomou o comentário dela como um elogio. Aquela não era a mulher que estava em Teeslow e que o compreendera melhor que ele mesmo. Era uma mulher que agora
achava que aquelas cuidadosas escolhas eram enganosas e calculistas. Ele não se ofendeu, pois, em parte, eram mesmo.
Jogou um pouco de lenha na lareira.
- Está frio e você devia se aquecer. Esteve com Alexia hoje? Antes de vir aqui?
Ela ficou ao lado de uma lareira.
- Sim. Ela está cheia de planos para Irene e eu. É uma pessoa boa demais.
O fogo da lareira emprestou um brilho dourado ao rosto dela. Por alguns segundos, enquanto ele observava como o calor fazia reluzirem os olhos e corar sua pele perfeita,
Kyle esqueceu que era estranho Rose visitá-lo e que ela estava zangada com alguma coisa.
A esposa se virou para encará-lo.
- Não vim aqui porque estava curiosa sobre seu escritório ou o seu trabalho. Deveria ter ficado. Como deveria ter tido mais curiosidade sobre a sua família e o seu
passado. Fiquei absorta demais em mim mesma ultimamente. Minha culpa. Via tudo em relação a mim, nunca aos outros. Mas o fato é que sou tão insignificante que até
aquilo que me atinge na verdade diz respeito a outras coisas, mais importantes.
- Nenhum evento ou ação tem motivos ou resultados isolados do restante do mundo, mas você se engana se considera a si mesma insignificante.
- Ainda estou avaliando.
Estava mesmo. Ele notou ceticismo no olhar dela. Ela o avaliava.
- Kyle, sempre achei que todas as vítimas de Tim, todos os clientes do banco que perderam dinheiro, tinham sido reembolsadas. Você disse isso, falou que até os seus
tios foram.
- É verdade. Todos foram.
- Mas nem todos foram restituídos por lorde Hayden, não é?
- Não, nem todos sangraram sua carteira.
- Sangraram sua carteira? Ninguém exigiu dinheiro dele.
- Mesmo assim, sua carteira foi sangrada.
Ela pensou naquilo. Kyle sabia que não iam falar no assunto. Os custos para lorde Hayden eram uma verdade inconveniente, desconfortável.
- A maioria dessas pessoas deve ter ficado muito irritada, Kyle. Mas, se aceitaram o dinheiro de lorde Hayden, não podiam continuar irritadas. Não haveria motivo,
uma vez que foram ressarcidas. Foi por isso que você não aceitou?
Então era esse o problema.
- Alexia lhe contou? Que eu não aceitei dinheiro do marido dela?
- Não.
Mas alguém tinha contado. Ou Rose concluíra sozinha. Ele não entendia como.
- Pru e Harold foram vítimas, não eu. Mas eu era o curador. Não podia aceitar a oferta de lorde Hayden. Não sei como as pessoas aceitaram. Não foi ele quem roubou.
- Elas aceitaram porque queriam o dinheiro de volta, Kyle. O único preço era abrir mão da raiva e esquecer o roubo. Mas o que você fez? Devolveu o dinheiro deles,
usou o seu dinheiro para isso?
- Eu era responsável por eles. Meu parco conhecimento sobre operações bancárias tinha sido a causa da perda. Claro que eu garanti que eles não sairiam no prejuízo.
- Eles não sairiam no prejuízo se você deixasse lorde Hayden compensar a perda. Você não deixou porque aí não teria motivo para se vingar.
Havia uma grande dose de verdade naquilo. Agora Kyle reconhecia. Na época, ele não tinha pensado nisso. De todo jeito, Rose estava tocando em fatos que ele não podia
explicar de maneira que ela aceitasse ou entendesse.
Ela se aproximou até ficar bem perto. Olhou-o com um jeito curioso, indagador. Olhava um estranho.
- Você não é nenhum Hayden Rothwell. Ouso dizer que 20 mil libras fariam diferença para você. Até bem menos.
- Fizeram bastante, Rose. Continuam fazendo.
- Mas você achou um jeito de resolver isso. Se não imediatamente, logo.
A graça e a boa educação mal continham sua fúria, que podia ser notada pela expressão dura e o olhar penetrante.
Ele enxergou algo mais. Rose tinha voltado àquela dureza sutil que ele notara na primeira vez em que a vira. Tinha vestido de novo a couraça do orgulho que lhe permitira
superar a ruína da família, a pobreza e o isolamento forçados.
Ele esticou a mão para trazê-la mais perto. Abraçá-la de maneira que, onde quer que a discussão fosse parar, Rose não ficasse muito longe.
Ela se afastou, ficou fora do alcance.
- Você é muito bom, Kyle. Não é de estranhar que tenha tanto sucesso. Não deixa nada passar. Não fala nada que o coloque em desvantagem.
- Espero que explique por que ficou tão sem chão. Espero que me diga.
- Sem chão? Sem chão? É uma expressão bastante apropriada.
A frase ficou cortando o ar. Roselyn fechou os olhos por um instante para se recompor.
- Soube hoje da propriedade da minha família em Oxfordshire. Sei que você fez um pedido de bloqueio de bens.
- Como soube?
- Como? Descubro um fingimento que jamais esperei e você só quer saber como?
Ela ficou andando de um lado para outro. A raiva aumentara. A dele começava a surgir com aquela revelação.
- Quando fez isso, Kyle? Depois daquela vez que foi à minha casa? Você olhou bem a construção e mediu o terreno todo. Perguntou se era arrendado. Idiota, pensei
que se preocupasse comigo, que fosse meu cavaleiro na armadura reluzente. Mas você estava apenas avaliando o seu provável lucro.
- Não é verdade, maldição!
- Você sabia quem era o meu irmão. Só eu não sabia que você foi o único não ressarcido. Céus, você até fez testes com a terra para ver se valia mais como terreno
ou para construir...
- Como você descobriu isso?
Ela não deu ouvidos. Arregalou os olhos, chocada.
- Ah, e eu até lhe dei o nome de um homem que poderia comprar tudo, se você não quisesse se dar ao trabalho de construir. Você me enganou da maneira mais abominável.
Você me usou.
Foi o suficiente. Kyle se aproximou e segurou Rose pelos braços. Ela se debateu, ele segurou com mais força. Ela olhou bem para ele.
Uma lembrança lhe ocorreu: de dentes expostos pronto para o ataque.
- Solte-me, Kyle.
- Daqui a pouco. Primeiro você vai me ouvir. Sim, eu pus sua casa em penhora.
A confissão não melhorou em nada o humor dela. Ela quis se soltar, arisca como um gato acuado.
Ele a imobilizou.
- Não pretendo me apropriar da casa. Nunca pretendi. Fiz isso para evitar que outra pessoa fizesse. E também para impedir a venda.
Ela gelou. Os olhares se encontraram.
- Como soube do processo, Rose?
- O advogado da família me informou.
- Ele só contaria isso se você perguntasse. Portanto, você perguntou. Por quê? Pensava em vendê-la e encontrar Timothy?
Só de pensar nessa possibilidade, ele foi tomado por ferozes e primitivos sentimentos de posse.
- Claro que não - falou Rose, e a surpresa sumiu de sua face. - Foi por isso? Para garantir que eu jamais pudesse encontrá-lo? Você avisou para eu não ir, quer casássemos
ou não.
- Vender a casa era a única maneira de você ter condição de viajar, a menos que pedisse dinheiro à sua prima.
- Eu disse que não ia encontrá-lo. Casei com você, não foi? Não sou tão desonesta nem tão idiota de prometer, casar e depois fugir para um futuro incerto com meu
irmão.
Ela pareceu ficar mais calma com a explicação lógica.
Ele, não. Se ela não queria vender a casa por motivos próprios, então era por causa de outra pessoa.
Os dois se entreolharam e estava tudo ali: a alegria das últimas duas semanas, a impressão de que eles nunca mais seriam tão livres juntos novamente. Ela sabia o
que ele ia perguntar antes mesmo de a pergunta ser feita. Ele sentiu o corpo dela se retesar em seus braços.
- Recebeu outra carta dele, não foi? Ele pediu para vender a casa, por isso você falou com o advogado.
Ela concordou, enfática. Seu olhar ainda tinha calor bastante para desafiá-lo.
Ela o desobedecera. Essa foi a menos grave das conclusões a que ele chegou. Rose não apenas tinha entrado em contato com o irmão como tomado providências em relação
a ele que podiam ser comprovadas. Se alguém quisesse considerá-la cúmplice, ela havia acabado de produzir uma prova que fundamentaria uma acusação plausível.
Quando Kyle deixou de lado sua conclusão desesperada, viu Rose olhando-o com curiosidade e preocupação. Instintivamente, por causa do perigo potencial, puxou-a mais
para junto de si.
Ela entendeu mal. Ficou assustada, como se aquele abraço tivesse ficado perigoso.
Ele a soltou e se afastou. Olhou pela janela para não ter de olhar para a esposa. Não queria que ela visse mais nada que pudesse assustá-la.
- Sua carruagem está de volta, Rose. O cocheiro terminou de andar com os cavalos. Você deve ir, enquanto ainda há bastante luz do dia. Vou acompanhá-la.
Seguiram em silêncio até a carruagem. Rose andou ao lado do marido como uma rainha, a postura alardeando seu orgulho e seu status. Os olhos dela pareciam úmidos
quando Kyle a deixou na carruagem, mas a raiva era mais óbvia.
Ele faria o possível para resolver as lágrimas e a raiva dela dali a pouco. No momento, precisava saber se a desobediência a deixara vulnerável.
Fechou a porta da carruagem e olhou pela janela.
- Quando chegar em casa, queime essa carta. Não conte a ninguém que a recebeu. Se alguém perguntar, minta. Nunca a recebeu. Não sabe onde ele está. Entendeu? Dessa
vez, não me desobedeça.
O olhar distante dela se desmanchou. De repente parecia tão triste e desanimada que Kyle teve vontade de entrar e confortá-la.
- Não posso queimar a carta. Ficou com nosso advogado, porque tem uma procuração.
Maldição. Kyle fez sinal para o cocheiro ir e se dirigiu ao escritório do advogado. Foi pensando no que precisava fazer agora, o que precisava saber e se um dia
precisaria quebrar o pescoço de Timothy Longworth para libertar Roselyn.
CAPÍTULO 19
Naquele dia, Rose não viu mais Kyle. Quando foi se deitar, ele ainda não tinha voltado para casa. Ela ficou horas na cama desejando não ouvir os passos dele no corredor
ou no quarto de vestir.
Continuava tão zangada que tinha certeza de que não queria que a procurasse, mas também estava preocupada com a discussão e com a reação agressiva à carta de Timothy.
Kyle ficara irritado demais por causa de uma pequena desobediência. Muito irritado, de repente, por uma única questão. Após algumas horas refletindo, Rose concluíra
que a sua desobediência não tinha sido o motivo da raiva dele. A ordem que lhe dera no final e o jeito como se afastara demonstravam preocupação, não uma irritação
masculina com uma esposa malcomportada.
Então, o que o preocupava? Era algo grave. O homem que ela conhecia não se irritava com bobagens. Até então, ela só o vira assim em relação ao cunhado. Mas, se Kyle
queria se vingar, não mandaria queimar a carta com o atual endereço de Tim, exigiria que Rose a entregasse.
Não era o que ele tinha feito. Nem sequer havia perguntado de que cidade a carta fora enviada.
Ela finalmente dormiu, mas foi um sono intermitente. Ao se levantar na manhã seguinte, soube que Kyle tinha chegado tarde e saído cedo. Sem conseguir pensar em nada
que a acalmasse, ficou andando pela casa até que, ao meio-dia, decidiu chamar a carruagem. Mandou o cocheiro seguir para Hyde Park. Lá, deu uma longa caminhada.
Isso ajudou a aliviar a inquietação, mas não diminuiu aquela sensação desagradável no estômago. Estava preparada para receber más notícias. Esperava que o próximo
encontro dos dois fosse mais formal do que todos. Imaginou se seria capaz de manter um casamento cheio de frieza e reserva depois de terem tido mais que isso.
Após uma hora andando sem rumo, ela voltou pelas mesmas trilhas do parque. Viu um cavalo a trote na direção dela. O cavaleiro era alto e ereto. Os trajes, o domínio
do animal, a postura, tudo nele parecia perfeitamente correto.
Quando ele se aproximou, Rose notou os olhos azuis que sempre atraíam sua atenção e as profundezas que mostravam quando encarados. Notou a vitalidade que ele emanava
e o jeito como controlava a própria força para não ser desperdiçada ou usada com maus propósitos.
O nó no estômago aumentou. Ela ao mesmo tempo temia e desejava impacientemente aquele encontro. No dia anterior, tinham se despedido tão mal.
Kyle parou o cavalo ao lado dela e olhou para baixo. Desmontou.
- Precisamos conversar sobre ontem, Roselyn.
Ela queria que a presença dele a confortasse, mas isso não aconteceu. Lembrou-se de quando caminhara com ele na estrada perto de Watlington, na primeira vez que
Kyle a visitara. Exatamente como agora, ele segurara as rédeas do cavalo e andara ao lado dela.
Comparada com esta, aquela outra tinha sido uma caminhada muito agradável. Os ecos do dia anterior eram como um milhão de flechas invisíveis entre eles.
- Você vai se zangar? - perguntou ela.
Ela preferiria que sim, se isso reduzisse a distância que havia entre eles.
- Talvez. Primeiro, vou explicar - falou, virando aqueles olhos azuis para ela. - Eu devia ter me zangado antes.
- Por que não se zangou?
- Se eu tivesse feito isso, você não aceitaria o meu pedido de casamento. Você nem queria muito. Estava procurando motivos para me rejeitar, e a minha explicação
lhe daria um. Teria enganado a si mesma dizendo que trocar esta vida por outra no continente era o único futuro que valia a pena. Você queria acreditar nisso.
- Que generoso, você me salvou de mim mesma.
- Eu queria você, Roselyn. Eu salvei você para mim.
Queria. Queria uma coisa linda, algo que lhe era proibido devido à origem dele. Não podia culpá-lo por isso. Ela sabia dos motivos por trás daquele pedido.
- Ontem, você tinha razão - disse Kyle. - Em parte, não aceitei o dinheiro de lorde Hayden porque assim poderia continuar com raiva e desejo de vingança. Chamei
isso de justiça, mas agora admito que a raiva fez com que fosse outra coisa. Eu disse a mim mesmo que, pelo menos, não aceitei o dinheiro dele, só que, mesmo assim,
queria vingança como os outros.
Ela parou e olhou para ele. Rezou para que os olhos dele mostrassem algo que negasse as implicações das duas últimas palavras.
- Os outros?
- Sei que são, no mínimo, oito homens. Um pequeno grupo que não tem a mesma noção de justiça de lorde Hayden. Puseram um agente seguindo seu irmão no continente
para trazê-lo de volta à Inglaterra.
Uma sensação desagradável tomou conta dela. Invadiu o coração, deixando-o pesado de medo.
- Não entendo para que fazer isso, uma busca assim, se a perda foi compensada...
Mas ela compreendeu o que aconteceria.
- Um agente... Tim não vai escapar. Ele não tem esse tipo de astúcia...
Ela pensou em coisas tristes e desesperadoras demais para pôr em palavras.
- Você tinha razão. Se eu soubesse disso, não teria ficado aqui. Teria tentado ajudá-lo. Teria achado um lugar seguro para ele viver e se esconder. Ele nunca vai
conseguir sozinho.
- Então, ainda bem que não contei. Você teria desperdiçado a sua vida e talvez até a sua liberdade.
Ela olhou o parque, tão vazio àquela hora. Tão frio. Conseguiu se acalmar a ponto de organizar os pensamentos.
- Quem são esses homens tão decididos a pegar meu irmão?
- Um deles é Norbury.
Céus. Mas ele já a usara como uma espécie de vingança. Tinha dito isso naquele leilão.
- Quem mais?
- Homens arrogantes. Lordes. Financistas. Comerciantes... o tipo que tinha quantias vultosas o suficiente para perder. O tipo que se incomodaria por Timothy fazê-los
de idiotas.
As palavras sóbrias e firmes fizeram o coração dela bater forte.
- Homens que ainda teriam dificuldades por causa de 20 mil libras perdidas. Homens como você.
Olhou bem para ela.
- Homens como eu.
- Você me assusta. Pediu-me em casamento apesar de querer enforcar meu irmão? Pretendia descobrir o paradeiro dele pelas minhas cartas e...
- Alguém sugeriu isso. Eu lhe disse para destruir todas as cartas, lembra? Depois do nosso casamento, não me preocupei mais. Foi um erro.
- Um erro! - repetiu ela e, desanimada, teve um pensamento horrível. - Aquele advogado. A carta. Você foi lá ontem, depois que eu saí? Viu o nome da cidade, o pseudônimo
usado por Tim, deu tudo isso para Norbury e os outros...
Kyle segurou os braços dela delicadamente e a obrigou a encará-lo.
- Não, não fiz isso. Tudo o que fiz desde que você saiu do meu escritório ontem foi para protegê-la. Você. Não ele. Não quero a cabeça dele, Rose. Não quero mais
vingança e nem mesmo justiça, pois faria você sofrer. Mas, se for para escolher entre você e ele, não a deixarei sofrer, porque você é inocente, ele não.
Ela ficou sem palavras. Não sabia se chorava ou gritava.
Kyle a puxou para um abraço e ela estava perdida demais para impedir. Rose sentiu um calor, uma empatia e uma tristeza repentina que a assustaram.
- Você tem mais o que dizer, não? - cochichou ela. - Não veio atrás de mim para contar isso. Veio para avisar alguma coisa.
Kyle manteve o braço nas costas dela para ficar perto enquanto andavam.
- Ouça o que vou dizer, querida. Vou explicar tudo.
Rose ficou tremendo sob o leve abraço dele. O rosto relaxou enquanto ouvia a história dos homens que queriam pegar o irmão dela. Kyle não deixou o próprio nome de
fora. Se não tivesse concordado com Norbury e os outros no começo, teria evitado a decisão horrível que logo teria de tomar.
- Se eu não tivesse me afastado do grupo, ao menos estaria acompanhando os últimos progressos - explicou. - Mas ontem procurei um dos que buscam seu irmão e logo
soube.
Ela olhou para baixo, como se mais um golpe não fosse surpreendê-la agora.
- E como vão os progressos?
Ele odiava contar para ela. Odiava.
- Chegou uma carta de Royds, o agente. Foi escrita há semanas, e ele estava na Toscana. Royds sabe que Timothy está na região, usando o nome Goddard.
- Quer dizer que o agente vai encontrá-lo. Talvez até já tenha encontrado.
Talvez. A única coisa boa dessa descoberta era que assim ninguém exigiria que Rose desse essa informação, ou que o marido a obrigasse a dar, como queria Norbury.
Mas ainda havia o perigo de ser acusada de cúmplice. Não haveria motivo para isso, a menos que Royds não conseguisse seguir Longworth por todas aquelas cidadezinhas
da Toscana.
- Por que você ficou tão preocupado com o advogado e a carta de Tim? - perguntou Rose, mantendo-se alerta mesmo enquanto se sentia ameaçada. - Se você se afastou
disso, se não queria saber o pseudônimo dele e a cidade onde estava, por que reagiu tão mal quando soube?
Kyle estava ali para contar tudo. Mostrar honestidade absoluta como ela pedira no dia em que se encontraram no Regent's Park. Viu quanto ela estava abalada e avaliou
o que a honestidade absoluta de fato significaria numa situação como aquela.
Podia não haver mais perigo. Se Royds encontrasse Longworth sozinho, ninguém iria ameaçar envolver Rose como cúmplice.
- Encontrei o advogado e pedi que queimasse a carta. Disse que não ia cancelar o bloqueio de bens, portanto aquela procuração era inútil. Dessa forma ninguém vai
tomar conhecimento de que você soube do paradeiro dele.
- O advogado queimou a carta?
- Vi quando a jogou na lareira.
Isso pareceu convencê-la. Mais do que deveria, mas ela estava triste e agitada demais para analisar as palavras e ver as falhas.
O advogado tinha mesmo queimado a carta, mas só depois de Kyle lê-la. E mesmo com a carta destruída, Yardley sabia que fora escrita e enviada para Rose Longworth.
Os advogados tinham obrigação de manter sigilo sobre os negócios de seus clientes, mas, se fosse pressionado, não havia como saber se Yardley não contaria do contato
entre Roselyn e o irmão criminoso.
Era como se uma espada estivesse dependurada sobre a cabeça de Rose. Ela sentia a ponta se aproximando.
Seus dias começavam com um pequeno e triste ritual. Perdia o conforto dos braços de Kyle quando ele saía da cama, ao amanhecer. Depois, não dormia muito mais. Por
fim, preparando-se para o pior a cada passo, descia para a sala, onde o marido lia a correspondência e os jornais.
Ela cumpria esse mesmo ritual na manhã do jantar na casa de Alexia. Sentia náusea só de pensar em se arrumar para a festa, em fingir alegria e graça.
Não quis tomar café, nem comer nada. Kyle colocou os jornais na frente dela.
- Nada.
Ela sentiu alívio. Olhou a pilha de cartas. Não havia nada nelas também, concluiu.
- Um dia haverá alguma coisa - disse ela.
- Não temos certeza.
Claro que tinham.
Rose imaginou Timothy perambulando naquela cidade italiana, com os cabelos louros e o sotaque mostrando que era inglês, um tolo que usava o mesmo nome falso desde
que fugira. Ela havia olhado um mapa e visto que Prato não era muito grande e ficava perto de Florença.
Era bem provável que Royds não tivesse qualquer dificuldade em encontrar Tim. Quando encontrasse e trouxesse seu irmão de volta, a notícia circularia e ele seria
acusado de roubo, julgado e condenado...
- Não fique pensando nisso, querida.
Rose encarou o marido. Ele sabia o que ela estava pensando.
Isso afetaria a ele também. A posição delicada, talvez até seu sucesso com aqueles imóveis em Kent, seriam prejudicados por estar ligado àquela grande fraude. Isso
ele nunca comentava. Agia como se não importasse que o preço de ter a esposa pudesse ser um retrocesso equivalente a anos em seus negócios.
Ela sofria com isso. Muitas de suas aflições eram por ver Kyle ter perdas por causa daquele casamento, em vez de crescer.
- A que horas vai ao jantar de Alexia? - perguntou ele.
- Às nove. Mais ou menos. Não estou com vontade de ir.
- Depois que chegar lá, vai gostar. Não pode ficar sentada nesta casa esperando, Rose. Como não podemos prever o futuro, devemos viver como queremos e esperar o
melhor.
Era verdade. Só que ela não sabia se aquela festa era como gostaria de viver, mesmo que fosse isso o que se esperasse dela.
- Vou fazer de tudo para que Alexia se orgulhe de mim. E para que você também se orgulhe, Kyle.
Embora ele quisesse muito aquele casamento, não tinha tido muitos motivos de orgulho.
- Talvez, se esperamos o melhor, possamos oferecer um jantar dentro de pouco tempo. Para receber alguns dos seus amigos. Não quero que vivamos sempre em círculos
separados e mundos diferentes.
O rosto dele mudou levemente. Por um instante, ela julgou ver surpresa e até desânimo.
- Se quiser, podemos.
Ele se levantou e se inclinou para dar um beijo nela.
- Ficarei aqui para vê-la sair. Você vai surpreender a todos, Rose, exatamente como sempre me surpreendeu.
- Então, finalmente pôde ver seu velho amigo Jean Pierre. Sua esposa vai para um canto e você para outro, como deve ser a vida conjugal - afirmou Jean Pierre, levemente
embriagado, enquanto olhava sem pressa as cartas na mesa.
Jean Pierre preferia o vinte e um aos outros jogos disponíveis no antro de jogatina aonde iam de vez em quando. Não se interessava por jogos de azar.
Kyle também não. Não gostava muito de qualquer variação desse tipo de jogo, embora não tivesse nada contra perder ou ganhar algumas centenas de libras. Frequentava
lugares assim por outros motivos.
Naquele momento, observava o jogo enquanto conversava com o amigo. Não queria saber das vitórias e derrotas, mas sim dos jogadores. Não dos que perdiam toda a razão
e jogavam temerariamente. Ele prestava atenção nos homens que estavam atentos ao jogo, avaliavam as possibilidades e faziam jogadas ousadas que podiam ser certas.
E prestava mais atenção ainda nos homens daquela mesa cujos trajes e comportamentos indicavam que eram ricos cavalheiros.
Kyle tinha conhecido muitos futuros investidores em locais de jogatina, nos clubes que frequentava.
- Estou livre esta noite porque minha esposa foi jantar com a prima - explicou.
- Então amanhã estarei largado e sozinho outra vez. É triste quando um amigo se amarra.
- Não estou amarrado. Se não apareço nos lugares é porque prefiro passar as noites com minha esposa.
- Com isso, tenho mais pena de mim. Embora eu fique contente de você gostar da companhia dela e de...
Jean Pierre fez um gesto que mostrava as outras coisas que um marido podia gostar de fazer com a esposa.
- Pelo que eu soube, você não precisa ter pena de si mesmo. E não creio que passe todas as noites sozinho.
- Ah, você está falando de Henrietta. - disse Jean Pierre, franzindo o cenho. - Alguns a chamam de Hen. Que apelido idiota. Só porque têm preguiça de falar o nome
inteiro. Às vezes não entendo vocês, ingleses.
Deu de ombros, de seu jeito vago e expressivo.
- Ela é ótima e eu a mantenho ocupada para que não fale demais, porém...
Deixou a frase no ar e franziu o cenho outra vez.
- O perfume da flor já diminuiu, mon ami?
Jean Pierre não costumava se demorar muito em jardim nenhum.
- Não é isso. É que... acho que estou sendo usado de um jeito malicioso.
Kyle teve de rir.
- Conheço essa senhora. Não tem astúcia suficiente para isso.
- Você não entendeu. Ela também está sendo usada.
Jean Pierre fez um gesto de dispensa para o homem que distribuía as cartas e deu as costas para a mesa. Tomou um gole do vinho.
- Há duas semanas, um mensageiro trouxe um bilhete. Dizia que determinado camarote em determinado teatro não será usado por um certo casal e o oferecia para que
eu acompanhasse Henrietta e a filha numa apresentação. Feito um idiota, me orgulhei do convite e do bilhete. Escrito num papel tão fino. Com um timbre tão incrível.
Um homem tão educado. Não me preocupei com o fato de o convite mostrar que o marquês sabia do meu casinho amoroso. Ele é um homem do mundo, a tia é madura, eu sou
inofensivo... tudo bem.
- Concluo que você foi.
- Sentei no camarote como um rei. Fiz a minha parte. Afastei os rapazes que ficaram flertando com a filha dela. Sabia o que se esperava de mim.
- Que bom para você. E que generoso da parte de Easterbrook.
- Conheço esse tom. Você tem razão. Mordi a isca. Cinco vezes, acompanhei a minha flor e a filha nesse local bastante público, naqueles entretenimentos dispendiosos.
Agora todo mundo sabe que sou amante dela. Quando isso acabar, vai ser estranho. Portanto, é claro que vai durar mais do que quero. O marquês foi descuidado, eu
penso. Depois avalio mais um pouco e me pergunto se quer constrangê-la ou apenas não quer cumprir sua obrigação. Não, concluo que não. Eles me pegaram por outro
motivo.
- Easterbrook às vezes é bem estranho. Talvez queira apenas que a tia aproveite o casinho. Por um bom tempo.
Jean Pierre negou com a cabeça.
- Então, para que a filha? Ela sempre nos acompanha. Faz parte da combinação. Assim, só me resta uma pergunta: por que estão me usando? Para o que você acha que
é?
Enquanto refletia, Kyle notou um grupo de homens meio embriagados que chegava animado, fazendo algazarra de forma arrogante. Eram os quatro nobres do grupo "Enforquem
Longworth". Norbury estava entre eles, agindo como o jovem que devia ter deixado de ser fazia anos.
Aquele antro de jogatina atraía só os que não se incomodavam de perder muito dinheiro, o que significava que era frequentado, entre outros, por lordes. Não era a
primeira vez que Kyle encontrava Norbury lá.
Kyle concentrou toda a atenção em Jean Pierre, deixando de lado os recém-chegados, assim não precisava encarar Norbury. Podia cuidar disso outro dia.
- Parece que Easterbrook está realmente usando você - disse ele - E que deu um jeito de se livrar das presenças da tia e da sobrinha.
- Você é esperto. Demorei a perceber. Também não fica curioso com isso?
- Não.
- Pense um pouco: a casa é bem grande. Se ele não quer ficar perto delas, basta ir para outro cômodo em outro andar, outra ala. Se quer que elas sumam de vez...
Um dar de ombros. Kyle deu de ombros também. Jean Pierre fez um muxoxo, exasperado.
- Há algum motivo para ele querer a mansão vazia. Quando elas saem, ele faz alguma coisa que não quer que saibam. Há um mistério. E eu sei qual é.
O mistério era apenas um homem que preferia ficar sozinho. Mas Kyle ia demorar para explicar isso a Jean Pierre. Um dos companheiros de Norbury tinha notado a presença
de Kyle e o grupo começara a circular pela sala de jogo, cumprimentando as pessoas de forma sorridente.
- Pegamos o homem - anunciou Robert Lillingston.
- Que homem? - perguntou Kyle.
Porém ele sabia a resposta. Estava escrita na cara afetada de Norbury. Não importa como fosse o jantar de Alexia nessa noite, Rose logo estaria triste.
Ele queria bater naqueles homens que se deleitavam tanto com algo que deixaria Rose arrasada. Tinha raiva de ter sido um deles, embora por motivos justos e merecedores
de orgulho.
Kyle conseguiu disfarçar a reação de todos, menos de Jean Pierre, que o observava atento.
- Longworth - respondeu Norbury com prazer. - Não lembra? O seu cunhado.
Kyle não se mexeu, mas Jean Pierre colocou a mão no braço dele.
- Royds o encontrou na Toscana. Foi até fácil. O idiota achou que podia se esconder numa cidade pequena, mas era um estrangeiro, chamava muito a atenção - disse
Lillingston.
- Quando voltará? - perguntou Kyle.
Ou seja, quando começaria a pior parte disso.
- Ele está aqui - respondeu Norbury. - Royds o encontrou logo, arrastou-o para a costa e neste momento está com ele nos arredores de Londres. Nós quatro informamos
ao juiz esta tarde. Ele vai para o presídio de Newgate.
Já tinham informado a justiça. A bebedeira era em comemoração.
- Fique conosco, Bradwell - chamou Lillingston.
- É, fique - concordou Norbury. - Você se indignou tanto quanto os outros com os crimes do canalha. Faça um brinde conosco para que ele finalmente pague pelo que
fez, como qualquer mineiro pobre pagaria se fosse ladrão.
Kyle levantou o braço antes que a sensatez pudesse impedir. Jean Pierre conseguiu segurá-lo.
- Meu amigo jamais seria tão incivilizado a ponto de brindar o fim da vida de um homem, muito menos do cunhado - disse Jean Pierre com desprezo. - Saiam, antes que
eu não impeça mais que ele esmurre a cara bêbada de vocês.
- Quem, diabos, é você? - desdenhou Norbury. - Francês, não? Camponês francês, se é amigo de Bradwell.
Kyle se preparou para a briga, impaciente, contente de ter uma desculpa para soltar a tempestade terrível que tinha na cabeça.
Jean Pierre ficou na frente dele e encarou Norbury.
- Quem sou eu? Digamos apenas que sou alguém que conhece tudo de química. Sou capaz de mostrar que há venenos que não podem ser detectados, por exemplo. É um conhecimento
muito interessante para homens como você.
O raciocínio lento de Norbury demorou um instante para entender a ameaça. Exalando desdém e arrogância da maneira que seu estado alcoólico permitia, deu meia-volta
e se retirou. Os companheiros foram atrás.
Jean Pierre se voltou para o amigo, mas manteve o corpo como barreira.
- Merde. Você pode voltar à razão? Seriam quatro contra um.
A saída de Norbury aliviara sua raiva, mas Kyle ficou muito deprimido, imaginando a tristeza de Rose.
- Quatro contra um? Que ótimo amigo você é.
- Este ótimo amigo impediu que você fosse bem idiota esta noite. E o ótimo amigo não vai quebrar a mão defendendo o nome de um ladrão. A irmã dele é sua esposa,
mas, se ele roubou, a bondade dela não altera a maldade dele.
Não, não alterava. Com Jean Pierre, não. Nem com ninguém. Nem mesmo com Kyle Bradwell, quando ele pensou bem no assunto.
CAPÍTULO 20
Rose sabia qual era a finalidade do jantar. Não fez nada para atrapalhar. Mas também tinha seus interesses, e saiu da casa de Alexia achando que poderia alcançá-los.
As pessoas à mesa eram as de mente mais aberta da sociedade. Alexia as escolhera com cuidado. Rose apenas aproveitou isso, enquanto conversava com elas.
Não hesitou em falar no marido. Ressaltou as qualidades dele e seu caráter. Dois cavalheiros ouviram sobre seus empreendimentos e demonstraram interesse em conhecê-lo.
Um deles usou termos vagos e elogiosos sobre a atitude de Kyle em relação a ela.
Três damas disseram que ele era bonito à maneira dele e mencionaram seu jeito convincente. Uma delas lastimou que Kyle não tivesse podido comparecer ao jantar.
Quando Rose voltou para casa em sua carruagem, tinha certeza do sucesso da noite. Era inegável: ela vencera. E estava convencida de que ficar ao lado de Kyle não
atrapalharia sua redenção. Na verdade, só ajudaria.
Afinal de contas, ele tinha participado do escândalo. Ela só estava naquele jantar porque o casamento provocava perguntas sobre a noite do leilão. Alguns dos presentes
olharam para baixo quando um cavalheiro disse algo e, por alto, fez um comentário canhestro sobre Norbury.
Ela foi para seus aposentos imaginando qual dos convidados aceitaria um contato mais direto. Se ela oferecesse um jantar, cuidando para que a lista de convidados
fosse uma mistura democrática, quem aceitaria o convite? A criada a ajudou a se despir enquanto ela pensava em quem convidaria. Monsieur Lacroix era um homem interessante,
um intelectual, e ninguém se oporia à sua presença. Lorde Elliott e Lady Phaedra certamente viriam.
Sentou-se em frente ao toucador e a criada penteou seus cabelos. Olhou no espelho. O rosto tinha um leve rubor devido à animação da noite.
Tinha se divertido. Rira, conversara e nem por um instante sentira-se deslocada ou aceita apenas por causa de Alexia, mas realmente bem-vinda.
A campanha podia dar certo. Podia mesmo. Só depois desse jantar ela começava a acreditar de verdade.
Nunca acreditara que merecesse perdão.
Essa ideia veio-lhe à cabeça, súbita e inexplicavelmente. Olhou-se no espelho e confirmou. Tinha aceitado que os pecados da família mereciam castigo e que competia
a ela pagar por todos, não só por si mesma.
Terminou o devaneio. A criada tinha saído do quarto e deixado a escova de cabelo no toucador.
- Você estava muito pensativa, Rose. No que pensava tanto, ao se olhar no espelho?
Ela se virou, assustada. Kyle estava na porta que ligava os quartos dos dois. Sabia que ele tinha saído, mas agora estava sem a gravata e de colarinho aberto.
- Eu estava conversando comigo mesma - respondeu ela. - Aprendi umas coisas com a minha reflexão.
- Coisas boas, acho. Parecia satisfeita. Segura.
- É, coisas boas, acho.
- Espero que isso signifique que o jantar foi um sucesso - desejou ele, estendendo-lhe a mão. - Venha me contar.
Aceitou a mão de Kyle, que a conduziu ao quarto dele. Sentou-se na cama e contou do jantar enquanto ele ficava ao lado, ouvindo. O olhar mostrava toda a atenção
ao que ela dizia.
Rose ficou sensibilizada por ele compartilhar a alegria pela festa. Desde a discussão dos dois, havia uma distância sutil, um vago afastamento. Naquele momento,
absortos no pequeno relato dela, isso sumiu.
Ela sentiu confiança para ir mais além.
- Sinceramente, não esperava tanta generosidade daqueles convidados. Não acreditava que fossem ser gentis. Mesmo com o plano de Alexia, mesmo com nosso casamento
podendo confundir e o boato sobre o leilão, eu achava que nunca poderia erguer a cabeça outra vez.
- Que bom você ter percebido que se enganou. Foi isso que concluiu na sua reflexão, quando cheguei?
- Foi. E mais ainda. Percebi que não me achava no direito de erguer a cabeça. Meu orgulho tinha virado uma armadura pesada. Eu ficava de pé, mas, por dentro, só
havia confusão e culpa pelos erros da minha família. Até aquele caso... pensando agora, mal reconheço a mulher que ficou tão desapontada. Não era a Roselyn Longworth
de dois anos atrás, nem a de hoje. Aquela mulher era uma estranha, que só fazia más escolhas e que achava que não merecia nada melhor.
Ele ficou pensativo. Brincava com a barra da camisola dela, que se espalhava sobre a colcha.
- Tirei vantagem ao pedi-la em casamento antes que você se reencontrasse.
- Não é verdade. Não diga isso.
Rose entendeu que, para o marido, a última frase do relato dela se aplicava a ele. Isso a deixou horrorizada.
- Eu já estava me reencontrando antes de você me pedir em casamento. Sinceramente.
- Talvez. Mas não me arrependo de aproveitar, mesmo sendo errado fazer isso. Nunca me arrependerei, Roselyn.
Era uma declaração estranha e tão sincera que a deixou aturdida. Resolveu analisar cada palavra, as motivações e as intenções delas. Naquele momento, o olhar dele
só propiciava as melhores interpretações.
Viu calor nos olhos do marido. Um calor que vinha de dentro e combinava com o bem-estar e a alegria dela naquele momento de intimidade conjugal. O desejo também
aquecia, fazendo o corpo dela vibrar ao ritmo da mão dele, que passeava em sua perna. Mas ela viu mais uma coisa.
Orgulho. Não nele, mas nela. Nunca havia notado. Ou não tinha, ou ela não vira.
- Que bom você não se arrepender, Kyle. Eu achava o seu pedido um pouco bobo, já que recebia em troca apenas um rosto bonito.
- Não vou mentir alegando que a sua beleza não influiu na minha avaliação, nem o orgulho por ter você como esposa. Mas, realmente, nada disso pesa na balança hoje
- falou ele de forma sedutora, enquanto desfazia o laço que prendia a camisola. - O que não significa que a sua beleza tenha deixado de me afetar.
Ela riu e afastou a mão dele. Ele riu também e, ousado, acariciou a perna dela até as nádegas. Ela escapuliu dele e ficou de joelhos.
A alegria a deixava impetuosa e audaz. Era como se houvesse passado um ano puxando uma carroça e agora se livrasse do peso.
Não como aquele dia na colina. Não estava se livrando do peso usando a fantasia de se transformar em outra pessoa. Ela era Roselyn Longworth e aquele homem inteligente
e interessante, aquele marido incomum, se orgulhava do caráter dela.
Ele continuava deitado na cama admirando-a, as mãos prontas para agarrá-la se ela se aproximasse. A alegria encheu seu coração e transbordou no brilho dos olhos.
Ela talvez não tivesse encontrado seu rumo sozinha. Podia nunca ter pensado em se livrar daquele fardo. O destino tinha sido generoso, colocando aquele homem na
sua vida.
Ela tirou a camisola e ficou nua. Ele a olhou por um longo tempo, tão longo que o corpo teve vontade de se mexer, de tanto que ele a excitou. Kyle apoiou o corpo
num braço e esticou o outro para ela.
Ela segurou a mão dele, aproximou-se e o empurrou. Afastou as pernas e sentou sobre o marido.
- Peguei muita coisa de você, Kyle. E você deu muito, além da redenção prometida. Decidi que a mulher na qual estou me transformando não será tão egoísta e autocentrada
quanto aquela com quem você se casou.
Ele esticou a mão para fazer duas longas e lentas carícias.
- Não me transforme num santo. Garanto que recebo tanto quanto dou.
- Não sei se é verdade. Acho que vou descobrir esta noite.
Começou a desabotoar a calça dele.
Ele não a ajudou. Deixou que ela puxasse sua camisa pela cabeça sem abrir os punhos e apenas sorriu com enorme charme quando ela tentou corrigir o erro.
- Espero melhorar com a prática - disse ela, enquanto se enfiava nos lençóis para achar os pulsos dele.
- Pode praticar quantas vezes quiser, Rose.
Ela já sabia. Ele gostava, apesar da falta de jeito dela. Isso o excitava. Muito, como provava a pressão que sentia sob si.
A pressão a excitou também, atrapalhando seu progresso. Quando ela tirou a perna para puxar a roupa de baixo dele, sentiu o sexo pulsar, quente e vívido.
Depois que ele ficou nu, Rose sentou-se na perna dele. Kyle olhou o corpo dela e o membro que se levantava de forma tão proeminente entre os dois.
- E agora, Rose?
Ela já o desejava desesperadamente. Queria se adiantar, colocá-lo dentro de si, sentir aquela completude e a deliciosa escalada para o orgasmo.
- Diga você, Kyle.
O desejo sempre o deixava todo teso: braços e pernas, boca e mandíbula, o corpo inteiro. Agora, os olhos dele escureceram e o vago sorriso também endureceu.
- Toque em mim. Me beije.
Kyle não quis dizer tocar a boca ou o peito dele. Súbito, Rose se sentiu um pouco menos ousada e bem mais ignorante.
Ele compreendeu. Não houve decepção no sorriso dele quando esticou a mão para puxar o corpo da esposa sobre si.
Rose se esquivou. Em vez de segui-lo, passou o dedo por todo o pênis e parou na ponta.
Ela já o havia tocado. Isso não tinha nada de novo, a não ser o jeito como ela sentava, olhava as mãos e como ele reagia. Ela achou isso incrivelmente excitante.
Os leves movimentos das pernas dele embaixo dela e a incrível sensibilidade da pele dele aos movimentos fez o prazer espiralar pelo corpo dela. Ela estremeceu e
ele não tinha sequer a acariciado.
Acima de tudo, isso tornou fácil agradá-lo. Ele tinha razão ao dizer que, ao dar prazer, também o recebia. Ela sempre ficava surpresa com quanto recebia. Por isso
parecia muito natural, quase necessário, dar mais a ele. Ela nem sequer pensou muito antes de inclinar a cabeça e beijá-lo.
Tinha ouvido falar nessas coisas, mas não sabia o que deveria fazer. Percebeu que estava numa posição estranha e se ajoelhou ao lado dele. Pôde então usar melhor
a boca. O "Isso!" que passava baixinho pelos dentes trincados dele a deixava saber quando as explorações davam um prazer especial.
Ela quase chegou ao orgasmo com os intensos tremores que a excitavam. Quando ele a levantou, Rose concluiu que era para os dois chegarem juntos, como queria o corpo
dela.
Em vez disso, ele a colocou ajoelhada acima de seu tronco.
- Ajoelhe-se aqui.
"Aqui" era na altura dos ombros dele. Ele passou gentilmente os dedos na fonte do prazer dela. Ela se segurou na cabeceira para se apoiar quando ele ergueu a cabeça.
Novas carícias e beijos, dessa vez de línguas e lábios, enviaram choques ao corpo dela.
Ela foi dominada pelo prazer. Prazer e gritos de desejo. As sensações excruciantes a deixaram fraca e indefesa. Ouviu os próprios gritos, implorando que ele parasse
e, ao mesmo tempo, continuasse.
De alguma forma, ele conseguiu fazer os dois, parar e continuar. Ela se agarrou na cabeceira enquanto ele a levava a um orgasmo estilhaçador. Ficou se apoiando ali
enquanto tentava voltar à consciência. Então a levou à loucura novamente.
Fez isso três vezes. Na última, ela pensou que fosse desmaiar. Perdeu as forças. Ficou inconsciente de tudo, a não ser do desejo, da fome, e de ser ofuscada pela
saciedade.
Ele a posicionou mais para baixo, levantou o corpo dela com carinho e entrou na única parte de Rose que ainda estava desperta. Segurou-a contra seu peito, abraçando-a
enquanto a penetrava. Ela saiu de seu torpor quando ele se mexeu dentro dela.
Ela arfou. O calor da boca de Kyle dominou sua mente.
- Cedo para continuar?
- Não. Pensei que eu não sentiria mais. Parece que me enganei.
Ela sentou sobre as pernas para senti-lo mais profundamente. Ele afundou nela devagar, despertando todo o desejo e ardor. Mais determinado agora. Mais físico e centrado.
Sua consciência estava nublada, mas ela o sentia clara e totalmente. Apertou-o e se mexeu no ritmo, satisfeita quando ele ficou mais duro.
Desta vez, foi diferente. Os tremores se concentraram na pressão. Vibraram profundamente pelas coxas, aumentando em intensidade e velocidade, mas sem sair do lugar
onde se uniam. Ela não aguentava, não acreditava na intensidade daquele prazer. Ele segurou nas coxas dela e a imobilizou para que sentisse o arrebatamento tanto
do corpo quanto do espírito.
O final foi uma escuridão, um prazer. Mesmo quando ela caiu por cima dele, exausta, o prazer ainda fluía em total liberdade, levando-a a outra união, da paz da alma.
No dia seguinte, ela acordou tarde. Já devia ter passado metade da manhã, a julgar pela luz que atravessava as cortinas.
Sentou-se na cama e viu Kyle numa cadeira ao lado da janela, observando-a. Estava vestido, mas nenhum criado parecia ter entrado para trazer o café, arrumar o quarto
ou avivar as brasas na lareira.
A cadeira estava no escuro. Kyle notou que Rose tinha acordado e se empertigou, sem dizer nada.
- Por que está sentado aí? - perguntou ela.
- Esperava você acordar. Estava apreciando vê-la dormir.
- Pelo jeito, fazia isso há bastante tempo. Tenho a impressão de ter dormido a metade do dia. Não é do meu feitio, mas acho compreensível.
- Não faz tanto tempo. Acordei há uma hora.
- Também é compreensível.
Ele não seguiu as divertidas deixas em relação à noite anterior. Em vez disso, apenas levantou-se.
- Não dormi muito - falou ele.
Kyle se aproximou da cama e Rose viu o que a escuridão do quarto tinha ocultado. Apesar de toda a alegria da noite, ele agora não mostrava nenhum contentamento.
Ela se assustou com o ar sério.
Ele sentou na beirada da cama e se virou para encará-la.
- Preciso lhe dizer uma coisa. Detesto ter de fazer isso, mas não quero que saiba por outra pessoa.
O medo esticou seus dedos gélidos para ela.
- É sobre o meu irmão, não é?
Ele assentiu.
- Já o trouxeram para a Inglaterra. Eu soube.
Ela puxou as cobertas para cima.
- Na única manhã que não acordei temendo ouvir isso, aconteceu.
Ele fez um carinho no rosto dela. Ela gostou, mas o medo não diminuiu.
- Os jornais deram a notícia?
- Não, ainda não.
- Então, como você soube?
- Me contaram na noite passada.
Noite passada. Ele a recebera com um sorriso e a ouvira contar o sucesso do jantar. Um sucesso ínfimo, já que ele sabia da prisão do cunhado.
- Você escondeu de mim.
- Você não ganharia nada em saber na noite passada, a não ser por mais algumas horas de tristeza.
- Compreendo, Kyle. Você queria que eu aproveitasse mais um pouco de liberdade antes de voltar à prisão do escândalo. Ofereceu um delicioso banquete antes que a
tristeza dificultasse que eu sequer me sentasse à mesa.
- Mais ou menos isso.
Ele se levantou. Os olhos azuis demonstravam solidariedade e também determinação.
- Sabíamos que esse dia ia chegar. Você vai superar. Vou fazer tudo por isso. Por ora, entretanto, você precisa sumir do mapa até eu saber como estão as coisas.
Se alguém que não for da família vier procurá-la, não atenda. Diga que está doente.
- Não será mentira. Já sinto uma dor no coração. Pobre Tim.
Ele sentiu a dureza de cada vez que o nome do cunhado ficava entre eles.
- Prometi que nosso casamento iria poupá-la do pior, Roselyn, e vou garantir que fique protegida. Seja lá o que for, lembre-se de que esse é o meu dever e a minha
preocupação.
A determinação dele a acalmou. Confortou-a. A preocupação com o irmão diminuiu enquanto ela se entregava à força e segurança de Kyle.
Ela foi invadida por lembranças da noite anterior. Ecos de alegria e prazer pulsaram em silêncio. Ele pareceu ouvi-los. A intimidade voltou ao quarto e ao ambiente,
apesar de estar se preparando para defendê-la das intrigas.
- Deve ter sido difícil para você fingir que estava tudo bem na noite passada, Kyle. Principalmente porque isso com certeza afetará muito você também. Mas que bom
você ter feito isso. Foi gentil me poupar por algumas horas.
- Não foi difícil, Rose. Eu estava muito atraído por uma mulher feliz, não queria pensar no que me esperava ao sair da cama - disse ele e a segurou pelo queixo,
fazendo-a encará-lo. - E se nós desfrutamos de um banquete, não alimentou apenas o meu corpo, querida.
Ele se inclinou, beijou-a e saiu do quarto.
Kyle fechou a porta do quarto e parou. Tentou ouvir o que se passava do outro lado.
Esperava ouvir choro, mas não. Ela continuava com a força que demonstrara ao saber que a espada que antes pendia sobre sua cabeça tinha caído.
Mas iria chorar dali a pouco. Kyle tentou não pensar na tristeza que aguardava Rose. Sentia por ela, como se o sofrimento passasse sem qualquer barreira do coração
dela para o dele.
Não podia poupá-la da dor por Timothy. Só podia se esforçar para que ela se distanciasse dos fatos e se recuperasse com certa dignidade depois que o irmão fosse
enforcado.
Desceu e mandou trazerem seu cavalo. Antes de sair, enviou um bilhete para lorde Hayden dizendo que Longworth tinha sido pego. Não seria bom que lorde Hayden fosse
questionado sobre o assunto sem se preparar antes.
Uma hora depois, ele entrou num café na Strand. Um homem que jogava xadrez numa mesa grande notou sua chegada. Fez um leve sinal para Kyle antes de mais uma jogada
no tabuleiro.
Kyle pegou uma cadeira perto do janelão e aguardou. Meia hora depois, Norbury perdeu a partida de xadrez. Meio irritado, levantou-se e foi até o outro. Pegou outra
cadeira, pediu café e se sentou enquanto dava uma boa olhada nele.
- Foi sensato de vir - disse Norbury.
Quando Kyle acordara naquela manhã, um bilhete o aguardava. Devia ter sido escrito tarde da noite. Enquanto a paixão unia duas almas numa casa em Mayfair, em outra,
um homem que certamente ainda estava bêbado e zangado por causa da discussão no antro de jogatina, tramava algo ruim.
Kyle não comentou com Rose sobre o bilhete. Realmente, algumas vezes a sinceridade absoluta não era a melhor opção.
- Você precisa se desculpar - disse Norbury.
- Com você? Ofendeu minha esposa e a mim. Seria melhor que, no futuro, tivéssemos só uma associação formal, em vez de encontros casuais em cafés.
- A partida de xadrez já estava combinada. Não estou disposto a mudar meus planos por causa de gente como você - falou Norbury, e mexeu o café na xícara com precisão
ritualística. - Precisamos discutir o problema do seu cunhado, do contrário, no futuro, ficarei feliz em falar com você apenas através do meu advogado.
- Não tenho nada a dizer sobre o meu cunhado.
- Tem, sim. Vamos insistir para que o julgamento seja rápido. Você terá que depor.
Kyle deu uma olhada no café. Londres tinha locais democráticos, mas aquele só reunia ricos e poderosos. Seus sofás e poltronas, assim como os charutos caros que
vendia, deixavam óbvia a clientela do lugar. Kyle preferia muito mais o Café Kendal, na Fleet Street, onde se reuniam engenheiros civis e homens de negócio.
- Não vou informar nada. Quando eu disse que estava fora desse assunto, quis dizer completamente fora.
- Vai fazer o que for pedido, a menos que queira essa sua mulher no banco dos réus também.
Kyle não pediu explicação. Ela viria logo. Norbury parecia seguro demais para fazer uma ameaça vazia.
- Semana passada, ouvi um boato bem interessante - disse Norbury. - Lillingston estava com o advogado dele e comentou sobre seu cunhado. O advogado disse que o advogado
de Longworth tinha ouvido falar nele e recebido uma procuração para vender a propriedade que Rothwell protegia. Pensando em descobrir o esconderijo do seu cunhado,
fui ao escritório de Yardley.
Norbury esperava que Kyle o sondasse. Mas Kyle não quis satisfazê-lo.
- Ele mencionou o conteúdo da carta que sua mulher recebeu. Você a leu antes de mandar que ele a queimasse, portanto sabe que ela pretendia ir ao encontro do irmão.
Você precisa me trazer o dinheiro. Foi o que ele escreveu.
- Dinheiro da venda da propriedade. E ela não ia a lugar nenhum.
- Bom, quem vai saber se era apenas o dinheiro da venda? Yardley não lembrava direito e não se pode confiar em você.
Seria o suficiente? As pessoas tendiam a pensar o pior. Além de lorde Hayden ter devolvido dinheiro roubado para que um homem não fosse mandado à forca, e além do
infeliz caso de Rose com uma das vítimas do irmão... aquele último detalhe, aquela carta, podia ser suficiente.
- Você foi o único a não ser ressarcido - disse Norbury. - Não deveria fazer diferença. Só a falsificação de documentos já deveria bastar para condenar Longworth,
mas os jurados às vezes são estranhos. E lorde Hayden pode influenciá-los. Você foi a única vítima a não ser reembolsada e ninguém pode alegar que já teve qualquer
outro tipo de ressarcimento. Você precisa depor. Ou isso, ou peço que ela seja julgada junto com o irmão.
- Você só pode ser um bastardo. Não é possível que um homem como seu pai tenha um filho como você.
- É bom lembrar que meu pai está à beira da morte antes de esquecer qual é o seu lugar e me agredir tão diretamente.
Norbury deu um soco na mesa.
- Você está muito encantado com aquela pomba suja para ver a realidade. Ótimo, seja um idiota encantado. Mas vai depor no julgamento de Longworth.
Sim, ele provavelmente iria. Apesar de tão idiota, Norbury tinha conseguido criar uma rede de cabos de aço.
- A sua insistência em relação à minha esposa beira a loucura. A perseguição que faz ao meu cunhado é inconveniente, apesar de todos os crimes dele. Afinal, você
recebeu seu dinheiro de volta. Quanto a Roselyn, você agora acrescenta ao seu comportamento desonroso uma ameaça a uma mulher que você sabe ser inocente.
- Não sei a que se refere. Quanto ao meu interesse pela sua família... ninguém me faz de bobo sem ter troco. Ninguém.
Kyle se retirou sem dizer mais nada. Saiu para o ar fresco. Ele tinha sido avisado, mas não ficara claro se Norbury sabia o que pretendia fazer.
Anos antes, um filho de mineiro tinha feito Norbury de bobo. No último mês de dezembro, repetira o feito, e a armadura protetora que era o conde de Cottington em
breve deixaria de existir.
CAPÍTULO 21
Kyle procurou Rose naquela noite, mas sem paixão. Sem prazer nem êxtase, sem brincadeiras nem jogos. Apenas deitou-se ao lado dela, abraçado, enquanto o coração
batia os minutos da noite no ouvido encostado ao seu peito.
Levou paz, como se soubesse que era disso que ela precisava. Rose tinha passado o dia tentando inutilmente afastar da cabeça imagens de Timothy preso. Tentava se
distrair, mas logo o pânico a dominava outra vez.
Não sabia há quanto tempo os dois estavam assim, num tranquilo silêncio de afeto. Rose imaginou quanto tempo o marido aguentaria isto.
Naquele momento, Kyle se solidarizava com a tristeza dela. Dali a uma semana, ou um mês, será que ainda a confortaria? Ela continuaria acreditando que Kyle deixaria
a justiça de lado para poupá-la?
Ficava indefesa em relação à força dele. Naquela noite, sentiu essa força com mais clareza. Kyle fez a tranquilidade entrar no quarto para que ela tivesse algum
alívio. Deixasse de lado as terríveis imagens do futuro de Tim.
Isso significou apenas que outras imagens puderam invadir sua cabeça. De Kyle sendo desprezado por causa de sua ligação com um ladrão. Ele nunca tinha sido atingido
por um escândalo. Sua participação naquele leilão não lhe trouxera consequências ruins.
Ele não imaginava como seria horrível. Não sabia como era ser abandonado pelos amigos e ver as pessoas virarem a cara ao entrar numa loja ou chegar a uma reunião.
Não era justo. O único crime dele fora casar-se com ela. Mas iria pagar por isso.
Rose devia ter sido mais decidida quando ele lhe oferecera esse caminho para a redenção. Devia ter visto que as coisas talvez não saíssem como ele esperava e que,
em vez de salvá-la, ele seria prejudicado pela infame família dela. Só que ela aceitara facilmente a visão otimista dele.
Rose apertou de leve o abraço do marido. Era o eco físico da emoção que tomava seu peito. Em resposta, ele a beijou na cabeça.
- Muito agradável - disse ela. - A escuridão e o silêncio. O seu calor.
- É.
Ele se moveu até ficar em cima dela, com as pernas aninhadas no meio. Com os rostos a centímetros de distância, ele percorreu com os dedos o rosto dela, o nariz,
os olhos e a boca.
- Estive com lorde Hayden hoje no final do dia. Ele já sabia mais do que eu saberia em uma semana. Timothy esteve com o juiz esta manhã e foi enviado para o presídio
de Newgate. Será julgado logo. Há homens forçando para que seja rápido.
Logo. Rápido. Talvez isso fosse melhor. Para todos, menos Timothy.
- Todos sabem que ele foi capturado?
- As notícias circularam hoje. Os jornais publicarão muita coisa amanhã.
- E no dia seguinte e no outro, até acabar. Fiquei em casa hoje, como você mandou, Kyle, mas acho que não vou aguentar ficar semanas sem sair. Nem creio que deva.
Vai parecer que estou me escondendo. Ou que estou com vergonha. O erro dele é uma tristeza, mas não acredito que eu deva agir como se o crime dele fosse meu.
Ela sentiu o olhar do marido na escuridão.
- Tem certeza de que quer enfrentar isso, Rose? Tem certeza de que consegue?
Será que conseguiria? Quatro meses antes, era impossível enfrentar o mundo com coragem. Como um cordeiro imolado, ela havia assumido os erros de Tim e aceitado a
zombaria por ele assim como por ela mesma.
Não queria continuar assim. Ela agora era a Sra. Bradwell, não a irmã de Longworth. Um homem direito a honrava com sua admiração e, sim, com seu amor. Nos dias por
vir, ela podia se preocupar com Tim de vez em quando e certamente lastimaria a situação dele, mas Kyle estava certo nessa manhã. Ela superaria, não deixaria que
o irmão a fizesse de vítima novamente.
Acima de tudo, ela não deixaria que Tim fizesse isso com Kyle. E faria, se ela se escondesse e não enfrentasse a todos.
- Garanto que não quero aguentar. Porém acho que devo, mais ainda que no escândalo em que estive.
- Você não poderá defendê-lo. Não há como.
- Eu sei.
- Pode não ser tão ruim. Alexia e Lady Phaedra estarão ao seu lado. E os maridos delas.
Ah, ruim seria. Kyle não sabia de nada. Nem poderia saber. Ela não ia colocar seu sofrimento aos pés dele todas as noites.
- Você também estará ao meu lado, Kyle. Acho que isso será o mais importante.
Ela sentiu o olhar invisível dele ficar mais atento. Depois, Kyle a beijou. Não havia exigência na maneira suave dos lábios tocarem os dela. Nenhuma expectativa.
Ela se empertigou. O coração ficou cheio de amor.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lorde Hayden vai depor no julgamento. Vai confirmar que pagou as vítimas e, com isso, confirmará as acusações. Não tem escolha.
Será intimado a comparecer e terá de ir - disse e fez uma pausa. - Também serei intimado como um dos prejudicados.
- No seu caso, as perdas não foram ressarcidas.
- É.
Kyle pareceu se preparar para a reação dela. Talvez esperasse algo emocional, cheio de lágrimas. Talvez achasse que ela ia rechaçá-lo, com raiva.
Não. Ela não poderia. Mas também não podia negar que seu coração se irritou com aquele "é". De todos as testemunhas, ele seria a mais prejudicial.
- Você tem de ir?
- Acho que sim. E se isso atrapalhar nosso relacionamento depois, ou mesmo agora, eu vou compreender.
Ela gostaria de dizer que não ia alterar nada, mas temia que mudasse. Era como se uma porta já estivesse se fechando dentro dela para proteger da decepção algo pessoal
e vulnerável. Até a Roselyn que havia se reencontrado, que sabia que Kyle era bom, acharia difícil não considerar uma traição o marido mandar Timothy para a forca.
- Por que você precisa ir? Por honra? Por justiça?
As palavras foram mais ríspidas do que ela pretendia.
- Podemos sair de Londres. Se você estiver fora da jurisdição do tribunal, não é obrigado a depor.
- Não ligo mais para a justiça e minha consciência não sabe como justificar isso para a minha honra. Eu apenas tenho de fazer. Peço que aceite e me perdoe, mas sei
que provavelmente vai discordar.
Ele se aproximou, mas o abraço foi menos pacífico. Ela não fez nada para afastá-lo. Aceitou seu conforto pelo que ainda era. Tentou não pensar no que a noite anterior
tinha prometido se tornar.
Na noite anterior ao julgamento de Timothy Longworth, Kyle foi parar numa festa peculiar, realizada totalmente às vistas da sociedade, no teatro Drury Lane.
Tudo começou de maneira bem simples. Mais uma vez, Easterbrook convidou Jean Pierre para usar o camarote dele no teatro. Jean Pierre sugeriu que Kyle fosse também
com Roselyn, para distraí-la do aborrecimento que tinha pela frente. Rose achou que seria a ocasião perfeita para mostrar coragem. Na hora marcada, Kyle a acompanhou
até os lugares bastante visíveis do camarote de Easterbrook.
Certamente foram notados. Rose estava com o sorriso pronto e a dignidade bem à mostra. Provou que podia enfrentá-los, mas Kyle notou os pequenos sinais que mostravam
que os olhares e cochichos a incomodavam.
Logo, porém, Rose deixou de interessar à plateia. A porta do camarote se abriu e entrou lorde Elliot com sua extravagante esposa, Lady Phaedra.
- Bradwell. Tia Hen - cumprimentou lorde Elliot. - Meu irmão recomendou a peça desta noite. Não sabia que a plateia seria premiada com três das mulheres mais adoráveis
de Londres.
- Além das mais escandalosas - cochichou Rose no ouvido de Kyle. - Eu soube que o caso do seu amigo com Henrietta está na boca do povo e Lady Phaedra é notoriamente
excêntrica.
- Se vai dividir as atenções com elas, não precisa de tanta coragem.
Kyle ficou impressionado por Rose ir. Ela passara a semana como quem não quer saber do dia de amanhã. A não ser quando os dois estavam a sós.
Talvez fosse imaginação dele a leve cautela que via na relação dos dois. Não havia nada que ele pudesse provar. Nenhuma palavra ou fato que mostrasse que a intimidade
tinha diminuído de maneira sutil. Mas estava lá, como ele previra quando a avisara do julgamento. Ela não seria humana se não ficasse ofendida com o papel que ele
ia representar.
A única dúvida era se, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, eles romperiam as formalidades novamente e conheceriam os segredos da entrega total como
começaram a desfrutar naquela noite em Teeslow.
Jean Pierre estava atrás de Henrietta e o avistou. Kyle se inclinou para falar com ele.
- Não é curioso que lorde Elliot esteja conosco? Agora não há perigo de ele ir visitar o marquês.
A voz baixa de Jean Pierre tinha nuances de drama.
- Você está louco, amigo. Devem ser todos aqueles produtos químicos.
- Louco? Quem está louco? - perguntou Henrietta, virando-se para participar da conversa.
- C'est moi - respondeu Jean Pierre. - Sua beleza sempre me provoca isso.
Sorrindo com o elogio, ela voltou a atenção para os outros camarotes.
A porta do camarote se abriu novamente. Lorde Hayden entrou com a esposa e Irene.
Caroline insistiu para Irene sentar-se à frente para poderem conversar e olhar as pessoas. Para isso, foi preciso mudar as cadeiras de lugar. Kyle então ficou ao
lado de Jean Pierre, na fila de trás.
- O camarote está quase lotado - observou o amigo, olhando para as cabeças na frente deles.
- Todo mundo quer se divertir, é isso. O pior vai ser amanhã. Como sabemos que Roma vai pegar fogo, esta noite nos divertimos.
- Vai pegar fogo só para ela. Lorde Hayden vai sentir as chamas, mas pequenas. Mesmo assim, estão todos aqui. Ele armou isso. E, mais uma vez, a mansão está vazia,
só com ele e os criados.
Jean Pierre tocou no nariz.
Talvez Easterbrook tivesse mesmo arranjado aquilo. Se assim fora, ele precisara dedicar algum tempo a isso antes de agir. Não importava, Kyle ficava grato. Rose
estava se divertindo. Com todas as demais presenças famosas para reparar, o público não estava prestando muita atenção nela.
Na metade do segundo ato, a porta do camarote se abriu mais uma vez. Kyle ouviu e Jean Pierre deu uma pequena cotovelada nele.
Olhou para trás. O marquês brindava a todos com sua presença. Arrumado e engomado, parecendo o nobre que era, colocou-se no fundo do camarote.
- Se ele queria reunir a família no teatro, por que não convidou todos? - cochichou Jean Pierre, irritado.
A chegada de Easterbrook acabou com toda a especulação e a esperança de um mistério interessante na noite.
- Acho que não queria vir. Não parece muito satisfeito de estar aqui.
Como uma águia, o olhar do marquês esquadrinhou os outros camarotes. Se estava procurando alguém em particular, deve ter se desapontado. Saiu da sombra e foi até
as cadeiras.
Os irmãos notaram. Dava para notar a surpresa nos olhos deles. As damas se levantaram, por respeito ao título.
Um título tem lá seus privilégios e deixar Easterbrook na frente do camarote causou uma leve comoção. O marquês assumiu o comando.
- Caroline, você e sua amiga sentam atrás para eu não ter de ouvir suas risadinhas. O Sr. Bradwell vai bater em qualquer jovem que tentar flertar com vocês. Cavalheiros,
tenho certeza de que não se importarão se esta noite eu me rodear dessas lindas damas. Quando a peça terminar, elas serão de vocês novamente.
Pelo resto da peça, o marquês ficou bem no meio da primeira fila de seu camarote, absorto pelo que se passava no palco. Alexia tinha lugar de honra à direita dele,
prova do afeto por ser a esposa do segundo irmão. Lady Phaedra ficou à esquerda. Completando a fila, Henrietta e Roselyn.
- Você tem razão, esse homem não é misterioso nem calculista. É apenas caprichoso e estranho - murmurou Jean Pierre.
Kyle não tinha interesse nos impulsos do marquês. Só queria saber da linda loura sentada à sua frente, que provavelmente fazia os jovens da plateia perder o fôlego
quando a viam.
O efeito era o mesmo, qualquer que fosse a intenção de Easterbrook. Um marquês tinha acabado de cumprimentar a Sra. Bradwell, cujo irmão ia ser julgado no dia seguinte,
e ela colocara sua cadeira perto da dele. No mundo que ela enfrentava naquela noite, era só o que importava.
CAPÍTULO 22
-Hayden não deixou Alexia vir. Temia que, no estado em que ela se encontra, não aguentasse a agitação. Mas ela lhe manda todo o carinho e orações, Rose - falou Lady
Phaedra ao se instalar na cadeira ao lado de Rose no tribunal de Old Bailey.
Lorde Elliot ficou ao lado dela e reconfortou Rose, ainda que os fatos fossem contrários.
A situação de Tim não tinha saída. Os jornais estavam cheios de detalhes dos crimes, depois que as notícias foram confirmadas. Nomes, quantias, a audácia de tudo:
ela ficara sabendo mais dos pecados do irmão do que uma irmã precisava saber. Soube também que as pessoas ainda não entendiam muitas coisas.
O julgamento só poderia seguir uma direção, e rápido. Se ela fosse do júri, também teria de condená-lo.
Só que ela não estava lá, mas ali, pronta para assistir, esperando ver a cabeça loura do irmão na frente de todo aquele público, depois que o julgamento atual terminasse.
Não podia desculpá-lo ou defendê-lo; mesmo assim, seu coração chorava de tristeza.
- Você foi muito corajosa por vir - disse lorde Elliot. - Tenho certeza de que ele vai ficar agradecido.
Quem? Timothy? Sentiria algum conforto se a visse? Ela ainda não falara com ele. Só tinha direito a uma visita e a estava deixando para depois do julgamento. Ele
então precisaria mais dela, embora um encontro assim e uma triste despedida só pudessem ser horríveis para ambos.
Viu os homens que estavam sentados embaixo. Os olhos se iluminaram ao encontrar Kyle. Talvez lorde Elliot se referisse a ele, não a Timothy. Mas ela não acreditava
que Kyle ficasse grato. O casal jamais poderia fingir que Kyle não falara, caso ela assistisse mesmo ao depoimento dele.
Lenta e inexoravelmente, eles vinham caminhando para esse dia, embora tentassem contornar suas implicações. Kyle tinha voltado a ser cuidadoso. Ela ficara cautelosa
de novo. Camadas de formalidade foram se formando entre os dois a cada dia, até ela precisar fixar os olhos para enxergar o homem que não era mais um estranho.
Nas últimas três noites, dormiram em quartos separados. Kyle sabia que a terrível espera dela não poderia ser vencida. Entendeu quando ela foi cedo para o quarto,
dizendo que estava cansada.
- Ah, lá está Hayden - disse Lady Phaedra no tribunal.
Rose viu lorde Hayden parar na porta, depois tomar seu caminho. Encontrou lugar ao lado de Kyle. O julgamento atual prosseguia, passando por provas e depoimentos.
Lorde Elliot tocou na mão enluvada dela.
- Meu irmão me encarregou de dizer que fará o possível para salvar o seu. Pediu que compreendesse que as declarações dele precisam ser verdadeiras, é claro, mas
que terão por intuito poupar Timothy.
- Lorde Hayden sempre foi generoso com minha família. Eu jamais questionaria os motivos dele agora. Mas obrigada por me avisar.
Lorde Elliot franziu o cenho e olhou para Phaedra. Ela deu de ombros. Rose não estava disposta a explicar. Dali a pouco, eles saberiam a verdade.
Havia só uma coisa que lorde Hayden podia dizer para amenizar a acusação contra Timothy. Podia declarar que ele não agira sozinho ao pegar todo aquele dinheiro e
que nem sequer idealizara o plano.
- Já fez isso antes? - perguntou lorde Hayden.
- Nunca - respondeu Kyle.
- Ao depor, restrinja-se aos fatos. Seja simples e direto para que os jurados entendam. Eles podem fazer perguntas. Responda apenas ao que foi perguntado, nada mais
- explicou lorde Hayden, e olhou, atento. - Digo isso porque imagino que, naturalmente, você preferia que ele não fosse enforcado.
- Tem alguma chance de não ser?
- Nunca se sabe. Esse juiz já perdoou antes. Pode ser que se repita.
Não eram só eles que esperavam um julgamento terminar para começar o seguinte. Uma galeria provisória tinha sido montada, não por causa dos pobres ladrões de carteira
que estavam enfrentando a justiça agora. Os elegantes chapéus presentes na galeria ornavam cabeças que dormiam em lençóis finos. Um desses chapéus estava empoleirado
nos cachos flamejantes e desalinhados de Lady Phaedra. Um gorro simples escondia quase todos os cabelos louros e o rosto de Roselyn.
Mais homens chegaram e se espremeram no espaço onde estavam Kyle e lorde Hayden. Kyle viu Norbury e os outros integrantes do grupo "Enforquem Longworth."
- Muitas testemunhas - disse ele.
- Muitas vítimas - retrucou lorde Hayden.
- O fato de você tê-los ressarcido não ajuda?
- Em geral, o reembolso costuma ajudar na absolvição. Mas na última vez em que ocorreu, o banqueiro foi executado devido a uma única acusação de falsificação. E
acredito que o motivo real tenha sido a grande quantia roubada.
Kyle percebeu a ironia terrível.
- Eu também devia ter aceitado o seu dinheiro. Assim não seria a única vítima não reembolsada.
- Garanto que isso não mudaria nada.
As pessoas se mexeram. O final do julgamento causou agitação, com algumas pessoas saindo e outras tomando seus lugares. Lorde Hayden inclinou a cabeça para ser mais
discreto.
- Faça um depoimento curto, sem qualquer opinião ou detalhe. Diga apenas o que tem certeza que aconteceu.
Rose quase chorou quando Tim foi trazido para o tribunal. Com os cabelos louros desarrumados, ele tinha uma aparência doente, estava pálido e com muito medo. Não
tinha nem 25 anos, parecia mais o menino que fora até pouco tempo atrás, franzino, comparado aos homens que iriam julgá-lo.
Ele não conseguiu manter a dignidade. Olhou para as testemunhas e seu queixo tremeu. Passou os olhos pela galeria e a encontrou. Ela tentou sorrir, levantou a mão
num pequeno aceno. Ele ficou arrasado. Precisou olhar para o chão para se recompor.
As vítimas foram depondo, uma por uma. Falaram de dinheiro sumindo, de continuarem recebendo dividendos, da confissão de Timothy e da oferta de ressarcimento. Todas
disseram que o pagamento foi feito por lorde Hayden Rothwell, após se casar com Alexia, prima de Timothy.
Rose notou que o fato de não haver uma perda real influenciava os jurados, mas não o bastante para absolver Tim. Observou o juiz para ver sua reação à questão do
dano financeiro.
- Está indo melhor do que eu esperava - cochichou Lady Phaedra. - Já que todos foram reembolsados...
- Nem todos. Kyle não foi - observou Rose.
Lady Phaedra ficou pasma. Cochichou para o marido. Lorde Elliot ficou mais sério ainda.
A luva de Phaedra pousou sobre a de Rose.
- Eu sabia que seria sofrido, mas não pensei que seria um dia tão horrível para você, Roselyn.
Rose aceitou a tentativa de consolo. Mas seu coração deu um salto quando o nome de Kyle foi chamado.
Os olhos de Kyle encontraram os dela. Ela notou o arrependimento, a desculpa. Depois, ele prosseguiu para fazer o juramento.
O depoimento foi curto. Incrivelmente curto. Parecido com os demais, o relato de uma quantia investida que depois sumiu devido a fraude e falsificação.
Desta vez, faltou o depoente informar da restituição.
O promotor decidiu deixar claro.
- Sr. Bradwell, a quantia foi restituída?
- Sim, totalmente.
A resposta de Kyle surpreendeu as testemunhas. Rose viu Norbury ficar agitado. Ouviram-se resmungos de "perjúrio".
O promotor ficou sério.
- Sr. Bradwell, o senhor quer dizer que lorde Hayden ressarciu essa quantia? Aviso que ele vai depor logo a seguir e, se o senhor não disse a verdade, será descoberto.
Kyle encarou o homem.
- O senhor não perguntou como nem por quem, mas se foi pago. Respondi a verdade. A quantia foi totalmente ressarcida.
- Vejo que o senhor é um homem de precisão. Então pergunto: como exatamente foi reembolsada?
- Eu mesmo restituí o dinheiro.
- Portanto, o Sr. Longworth roubou o senhor.
- A quantia não estava no meu nome. O Sr. Longworth roubou de meus tios e eles foram reembolsados. Foi essa a sua pergunta e eu a respondi. Não posso, em sã consciência,
considerá-lo responsável por minha enorme generosidade de pagar com meu dinheiro.
Os jurados acharam engraçado. O juiz quase sorriu também. O promotor apenas bufou sua pergunta seguinte.
- Não importa se o senhor o considera responsável ou não. A lei considera.
- É mesmo? No julgamento anterior, uma mulher acusou um homem de roubar o dinheiro dela no cais. O marido certamente a reembolsou para ela poder comprar o jantar
da família. Ele não afirmou isso, mas a perda, no final das contas, foi dele. No caso em questão, tive o mesmo papel do marido, ou de lorde Hayden nos outros depoimentos
que o senhor ouviu hoje.
- Ele tem razão - resmungou lorde Elliot.
Tinha mesmo. Isso agitou a promotoria.
- Sua opinião sobre a lei não nos interessa, Sr. Bradwell. Permita-me repetir a pergunta mais diretamente. O senhor foi ressarcido por lorde Hayden, pelo Sr. Longworth
ou por qualquer pessoa ligada à família, quando reembolsou aquela quantia após o roubo?
- Sim.
O promotor jogou as mãos para o alto e se dirigiu ao juiz.
- Meritíssimo, sabemos que ele não foi. Está mentindo.
- Está mentindo, Sr. Bradwell?
- Respondi honestamente à pergunta.
- Lorde Hayden declarou ao juiz que o senhor não aceitou ser reembolsado por ele.
- O senhor não perguntou se recebi restituição. Perguntou se alguém da família Longworth me ressarciu. A perda foi de 20 mil libras. Tenho um bloqueio judicial da
propriedade de Longworth que me garante pelo menos 5 mil, por exemplo.
- E os outros 15 mil?
- A irmã do Sr. Longworth aceitou casar-se comigo. Considero que a conta foi saldada.
Rose teve de sorrir, mesmo se os olhos nublassem. Ele estava se esforçando para ajudar Tim e se saindo muito bem.
O tribunal explodiu em conversas e murmúrios. O promotor deixou que comentassem; depois, sorriu com ironia.
- Deve achar que somos bobos, Sir. Casa-se com uma mulher sem dinheiro e quer que acreditemos que isso zera as contas e quita a dívida do irmão?
Kyle fuzilou o homem com um olhar tão claro, tão sincero, que o tribunal silenciou.
- Quem não acredita é porque não a conhece. Ela está aqui, sentada a duas cadeiras de lorde Elliot Rothwell. Olhem para ela e me digam se não vale 15 mil libras.
Olharam. Todos. Centenas de olhares masculinos caíram em Elliot, depois passaram para ela. Rose sentiu o rosto corar.
- Tire seu gorro. Agora - cochichou Lady Phaedra.
Rose desamarrou as fitas e tirou o gorro. Lembrou-se de algo, de outros olhos observando e julgando quanto ela valia por outros motivos, pouco tempo antes.
Seu olhar procurou o de Kyle e vice-versa. Olhou só para ele, sem ver os outros. Ele estava fazendo isso por ela, para ajudar o irmão inútil. Não importava o que
houvesse, ficaria grata para sempre.
A expressão dele mudou. Ela ficou sem reação. O olhar dele não transmitia qualquer truque para salvar a vida do cunhado. O olhar era de um homem que realmente via
uma mulher de enorme valor.
Ele não escondia a admiração. O afeto. Outras pessoas deviam ter notado. Ela ficou emocionada com aquela declaração pública de afeto e orgulho. Sentiu-se honrada.
Não achava que merecia tanto.
O olhar a dominou a ponto de ela não ouvir o barulho no tribunal de Old Bailey. No silêncio que a invadiu, ela tocou os lábios num beijo invisível e seu coração
emitiu palavras de amor há muito devidas.
- Ele tem razão, Sir - disse o juiz. - Um homem pode fazer coisa pior com 15 mil libras.
Os jurados riram e se cutucaram, concordando. O promotor teve que dar sua conclusão.
- É verdade, ela é adorável. Mas o senhor não foi ressarcido.
- Discordo - disse Kyle.
- O senhor não precisa estar de acordo. Pode se retirar.
O próximo a depor foi lorde Hayden. Cortou a primeira pergunta do promotor dando um olhar arguto e levantando a mão.
- Antes do meu depoimento, gostaria de dar informações que dizem respeito aos depoimentos das testemunhas anteriores.
O juiz concordou com a cabeça. O promotor deu de ombros.
- Como fui eu quem descobriu os roubos e verificou todos os documentos bancários, sei a data de cada retirada, a quantia e o nome dos correntistas. Muitas testemunhas
não deviam nem ser ouvidas, pois não tiveram participação. As perdas que sofreram foram antes de Timothy Longworth se tornar sócio do banco. Ele roubou, é verdade,
mas não de todas essas pessoas.
Por alguns segundos, reinou um silêncio de espanto. Depois, as vozes aumentaram num rugido de perguntas e gritos. O juiz pediu que fizessem silêncio para o promotor
ser ouvido.
- É melhor explicar, lorde Hayden.
- No verão passado, quando fiz o reembolso, não atendi apenas as vítimas de Timothy Longworth, mas também às do homem do qual ele herdou essa participação e com
quem aprendeu o trabalho e os esquemas criminosos. Refiro-me ao irmão dele, Benjamin. Não revelei antes o envolvimento de Benjamin por vários motivos. Depois de
ser ressarcido, ninguém quis saber quem roubou. Benjamin tinha sido meu amigo e confesso que isso também me influenciou. Mas, se a dimensão e o tamanho dessa fraude
tivessem sido revelados, o banco iria à falência e mais gente sofreria.
- Muito bem, Sir. Mas agora é tarde para revelar.
- Eu tinha uma dívida de honra com Benjamin e queria poupar o nome dele.
- Claro. Mesmo assim, o senhor seria interrogado. Sabia que isso viria à tona.
- Gostaria de responder como o Sr. Bradwell fez. Sem cometer perjúrio, mas também sem interpretações. Benjamin Longworth morreu e, após muito pensar, achei que minha
dívida morrera com ele. O irmão é, sem dúvida, um canalha, mas já tem muitas culpas, não precisa assumir também as do irmão mais velho.
- O senhor tem certeza sobre as datas dos roubos?
- Absoluta. Grande parte do dinheiro foi roubado antes de Benjamin Longworth ir lutar na Grécia.
O promotor insistiu para lorde Hayden dizer quais das testemunhas foram realmente vítimas de Timothy. Kyle concluiu que isso ia demorar. Então saiu do tribunal para
tomar um pouco de ar fresco.
Muitas pessoas circulavam do lado de fora e as surpresas do julgamento se espalhavam. Isso, por sua vez, causou um pouco de confusão e discussões. Com sorte, serviriam
para aturdir os jurados também. Talvez por isso lorde Hayden tivesse adiado revelar toda a verdade.
O clima lá fora zombava dos tristes fatos que se passavam no tribunal. Um calor fora de época dava uma prévia da estação que estava prestes a chegar. Uma brisa fresca
trazia os aromas da renovação para provocar a pele das pessoas.
- Imagino que a explicação de lorde Hayden levará no mínimo uma hora.
Ele olhou para trás. Era Rose chegando, com o gorro na mão.
- Suponho que sim. Ele parece ter decorado os registros.
- Alexia diz que ele jamais esquece números. Suponho que ninguém esqueça, quando desembolsou mais de 100 mil libras.
Ela parecia calma. Composta. Mais do que nos últimos dias. Muitas vezes, esperar por uma coisa ruim é pior do que a própria coisa.
- Rose, você sabia? Que seu irmão mais velho participou disso?
Ela concordou com a cabeça.
- Não sabia exatamente quanto cada um tirou de quem. Alexia me contou no verão passado, depois que Tim foi embora. Lorde Hayden conseguiu que Tim reembolsasse essas
pessoas, mas descobriu que havia outros saques. Fiquei arrasada ao saber que os dois eram ladrões e não quis analisar a culpa.
- Foi um alívio ele resolver separar os delitos hoje.
Um leve sorriso passou pelos lábios dela. Os olhos estavam tristes, mas claros como cristais. Olhou Kyle como se pudesse penetrar a cabeça dele.
Abraçou-o, deu-lhe um beijo carinhoso no peito dele e o soltou.
- Obrigada, Kyle, pelo que disse lá. Tim não merece a sua preocupação em causar o menor dano possível. Porém temo que ele não vá entender como é difícil ser bom
com quem apenas nos prejudicou. Ele é pueril demais para saber que é preciso força para ter pena de alguém que acreditamos merecer a forca.
- Não fiz isso por ele, Roselyn.
- Não. Foi para me poupar. Para me proteger. Para me honrar. Eu sei e sou grata para sempre.
Ela olhou para o prédio do tribunal e se empertigou.
- Preciso voltar, quero estar lá no final. Não quero que ele fique sozinho.
- Claro.
Rose se afastou. Kyle andou pela frente do prédio, adiando a volta. Mas entraria no tribunal a tempo de ouvir o veredicto e a sentença. Não queria deixá-la sozinha.
Houve um pequeno tumulto na rua. Meninos corriam com folhas impressas, gritando a notícia. Quase todos anunciavam as surpresas no julgamento de Longworth. Mas um
deles gritava uma informação menos dramática.
Kyle foi até o menino e comprou a folha. Tinha margens pretas e uma notícia bem curta.
O conde de Cottington tinha morrido.
Rose seguiu ao lado de lorde Hayden, tentando não ter ânsias de vômito com o fedor do presídio. Levava um cesto de produtos para Timothy e alguns presentes. Ele
não os merecia, mas ela lembrou que Alexia costumava fazer isso nos meses de privação que a prima passara.
Alexia não pudera ir com eles devido ao estado em que se encontrava. Lorde Hayden também proibira que Irene fosse e Rose agora entendia por quê. O presídio de Newgate
era um lugar horrível. Ela e o lorde passaram por celas grandes, onde homens e mulheres faziam coisas que nenhuma moça devia ver. Pela expressão séria, lorde Hayden
decerto achava que qualquer mulher decente também não deveria.
Tim estava numa cela pequena, com apenas cinco outros detentos. Ficara nesse lugar menos cheio graças a lorde Hayden. Com sorte seria a última vez que o lorde gastava
dinheiro com os Longworth.
O carcereiro retirou os outros presos da cela para que Rose não ficasse acuada pela presença deles.
Tim só olhou para os dois quando ficaram a sós. Fez uma triste e desanimada tentativa de sorrir.
- Bom ver você, Rose. Foi gentil de comparecer ao julgamento.
- Você é meu irmão, Timothy. Irene e Alexia mandam seu carinho. Alexia está prestes a ter o bebê, por isso não veio. Escrevi contando essa boa notícia, mas acho
que você não recebeu a carta.
- Irene vai bem?
- No geral, sim. Mora com Alexia e lorde Hayden. Foi poupada de quase tudo da... bem, de quase tudo.
Tim teve a dignidade de agradecer a lorde Hayden por ajudar Irene. Depois, olhou para Rose com menos gratidão.
- Seu marido não veio com você.
- Foi para o norte, ao enterro do conde de Cottington. De qualquer modo, acho que não viria.
Tim torceu a boca quando ela mencionou o conde.
- Imagino que Norbury já seja o novo conde. Ainda bem que a sentença foi antes de todos saberem da notícia, senão eu certamente estaria enforcado. Norbury queria
me matar para me manter calado e vou rir na cara dele por não ter conseguido. Embora a prisão não seja melhor do que morrer.
- Não diga bobagem - ralhou lorde Hayden. - Uma pena de catorze anos não é a forca. Você está vivo. Um dia estará livre. É jovem, pode começar de novo. Devia agradecer
a Deus por o juiz ter sido clemente.
- Clemente nada. Vou morrer da mesma maneira, só que mais devagar. Lá para onde vou, eles escravizam os homens. Soube que só a viagem de navio leva seis meses. Eu
só peguei um dinheiro emprestado, nada mais. Ia devolver, se você não tivesse me obrigado a confessar. Você podia ter dito no tribunal que o autor de tudo foi o
Ben. Eles acreditariam.
Lorde Hayden ficou tão tenso que Rose pensou que ele fosse bater em Tim.
- Só que não foi só Ben. Eu teria mentido.
Tim torceu a cara, de emoção e raiva.
- Você gostou que isso tivesse acontecido. Ficou contente por terem me achado. Contente por Ben estar morto. Eu sei.
Rose se aproximou para acalmar o irmão.
- Você está dizendo tolices. Lorde Hayden ajudou você. Ajudou todos nós. Quanto ao dinheiro que ele deu no verão passado, foi um último gesto de ajuda, Tim.
Tim ficou com os olhos marejados, mas manteve a petulância. Rose olhou para lorde Hayden.
- Posso ficar a sós com ele? Meia hora, não mais?
Lorde Hayden pareceu aliviado com o pedido.
- Espero na porta. Se o carcereiro ficar impaciente, eu o distraio.
Ela colocou o cesto na pequena mesa rústica que era o único móvel da cela.
- Trouxe algumas coisas para a viagem e depois. Ainda tem as roupas que tinha na Itália?
Tim concordou com a cabeça e a observou arrumar os pequenos mimos. Ela havia embrulhado coisas práticas às quais ninguém dá valor, como tesoura de unhas e alfinetes.
Mas também trouxera uma lata de chá, doces e um saquinho de moedas. Além de papel e penas de escrever, assim talvez ele mandasse notícias, se pudesse.
- Não trouxe conhaque? - perguntou ele.
- Nenhuma bebida, Tim. É bom que você largue isso para sempre.
Ele balançou a cabeça, contrariado. Andou pela cela.
- Tim, o que você quis dizer quando se referiu a Norbury? Ele queria que você morresse para não falar?
Tim coçou a cabeça e fez um gesto vago para não responder.
- Nada. Não interessa. De todo jeito, agora estou como morto.
- Pode não interessar, mas continuo curiosa.
Ele voltou e mexeu nos presentes.
- Há uns quatro anos, passamos algum tempo juntos. Nos encontramos no jogo e ele me aceitou no círculo de amigos, em alguns de seus divertimentos - contou ele, abrindo
uma lata de chá para cheirá-la. - Ele tem uma propriedade em Kent, perto do pai. Dá festas lá.
- Ouvi falar nessas festas. Você ia?
Tim enrubesceu.
- Numa delas, houve um problema. Ele e a amiga discutiram e ela foi embora. À noite, eu estava, hum, dormindo, quando ouvi uma mulher gritar. Só um grito, mas não
um grito normal... hum, não do tipo que se ouviria lá, quero dizer.
Ele enrubesceu mais.
- Entendo.
- Bom, isso me incomodou, fui ver se alguém tinha se machucado e ouvi o grito de novo. Fui seguindo na direção de onde ele tinha vindo, achava que era do andar de
baixo, e o encontrei. Estava com uma criada na biblioteca. Da idade de uma menina de escola, não mais. Ele a tinha amarrado e, bem...
- Ele percebeu que você viu?
- Norbury não estava prestando atenção em mais nada - falou e deu de ombros. - Tinha machucado muito a menina. Vi primeiro as marcas de socos, embora eu tenha ficado
pouco tempo lá. Ela tentava cuspir o lenço que Norbury tinha usado para amordaçá-la. Ele viu e bateu com tanta força que pensei que ela tivesse desmaiado.
Embora eu tenha ficado pouco tempo. Ele não tentou impedir. Fechou a porta para não ver o sofrimento da pobre menina.
- Se você saiu e ele não o viu, por que ele queria silenciá-lo?
Ele se assustou. Ruborizou de novo.
- Timothy, você foi idiota a ponto de chantagear Norbury? Contou o que viu e pediu dinheiro para ficar calado?
- Pedi pouco. Uma quantia muito pequena, quando as coisas ficaram mal na primavera passada. Ele nem respondeu a minha carta. Sabia que eu não faria aquilo.
- Imagino que não. Mas, claro, ele não podia ter certeza.
Ela visualizou Norbury avaliando se Timothy teria coragem de chantagear um visconde ou denunciá-lo à justiça. Norbury jamais saberia se um ato de coragem ou a má
conduta não motivariam Tim nos anos seguintes. Ele podia procurar um advogado. Ou podia simplesmente escrever uma carta para o pai de Norbury.
Foi bastante conveniente para Norbury que Tim cometesse delitos e, com isso, ficasse vulnerável. Um homem enforcado não fala.
Ela colocou os presentes no cesto novamente. Menos o papel, a tinta e a pena de escrever.
- Você vai escrever tudo isso, Tim. Agora.
- Não adianta, Rose. Ninguém vai acreditar nas palavras de um detento contra o homem que o acusou sob juramento. Vai parecer que inventei a história por vingança.
- Mesmo assim, você vai escrever. Depois, vai escrever algo que vou ditar. Se fizer essas duas cartas por mim, serão duas boas ações, Tim. Duas nobres e honestas
ações para começar a compensar todas as más que cometeu. É um pequeno começo para salvar sua alma e o respeito por si mesmo, irmão.
CAPÍTULO 23
Kyle voltou tarde para Londres. Entrou em casa cansado e desanimado.
A casa estava silenciosa. Nada de diferente, nada de especial. Mesmo assim, quando se aproximou da porta, sentiu um alívio parecido com quando estudava e ia para
Teeslow nas férias. Era a emoção de voltar para casa.
Casa. A sensação de conforto parecia nova e muito agradável. Há alguns anos ele não considerava nenhum lugar como casa.
Ao subir a escada, notou uma luz sob a porta de Rose. Não esperava que estivesse acordada àquela hora.
Foi até o próprio quarto e tirou a sobrecasaca. Jordan tinha deixado tudo arrumado, caso o patrão voltasse de repente. Kyle ia ao quarto de vestir, mas parou ao
lado da cama. Lá havia uma pilha de cartas que não podiam passar despercebidas.
Reconheceu o timbre. Tinha-o visto muitas vezes nas cartas enviadas por um homem que agora estava morto. Mas eram de outro conde de Cottington. Jordan, sempre atento
a status e títulos, deixara as cartas ali por achar que exigiam atenção imediata.
Kyle levou as cartas para a escrivaninha. Norbury podia esperar mais um pouco. Dentro de dois ou três dias, Kyle leria aquelas cartas e resolveria o que fazer.
Passou pelos quartos de vestir e entrou no quarto de Rose. Ela estava sentada à escrivaninha, de penhoar rosa e touca de renda branca, olhando um papel à luz da
lamparina. Anotou alguma coisa e coçou o queixo com a pena da caneta.
- Escrevendo poesia, Rose?
Ela se assustou, largou a pena, levantou-se e se aproximou dele. Deu um abraço que foi de carinho e boas-vindas.
O calor feminino dela era o melhor bálsamo para o corpo e o coração. Só o cheiro dela já afastava as nuvens de tristeza.
- Imagino que tenha sido uma grande cerimônia fúnebre - disse ela, baixo.
- Grande. Muitas decorações e formalidade, lordes e damas. Norbury chegou ao norte depois de mim. Claro que ficou aqui um pouco mais para comemorar a herança. Mas
lá representou muito bem o papel de filho desolado.
- Acho que o filho simbólico ficou mais desolado.
Provavelmente. Deus sabia que Kyle ficaria desolado como qualquer espécie de filho que fosse. E não chorava apenas a morte de Cottington, mas a infância, a juventude
e as raízes que seriam arrancadas uma por uma nos próximos anos, como foi essa.
- Venha me contar.
Levou-o para a cama dela e fez com que sentasse ao lado.
- Prefiro não contar, se me permite.
Não queria explicar que, na verdade, não fora ao enterro. Sabia que não seria bem-vindo. Haveria um confronto com o novo conde e Kyle não queria que isso atrapalhasse
o respeito pelo antigo.
Ele assistira a tudo de longe, de uma colina de onde podia ver o cortejo e a nova sepultura no cemitério da mansão. Preferira assim. Lá, podia ficar só com seus
pensamentos.
- Claro. Eu entendo.
Ela deu um tapinha na mão dele, solidária como uma mãe.
Kyle pegou a mão da esposa e a levou aos lábios. Casa.
- Visitou seu irmão no presídio?
- Lorde Hayden me acompanhou.
- Imagino que tenha sido bom.
- Muito triste. Tim não mudou muito, lamento dizer. Não está mais sensato. Continua vendo as coisas de uma maneira pueril. Pode não resistir ao que vai enfrentar.
- Se ele quiser, conseguirá. Sendo seu irmão, não pode ser fraco. Precisa só encontrar as forças dentro de si, nada mais.
- E se não encontrar... Você tem razão. A escolha é dele.
- Vamos falar em coisas mais agradáveis, Rose. Sem dúvida, aconteceram coisas normais e mais felizes nesses dias. Comprou um gorro novo, por exemplo? Teve notícias
de Alexia? Como vai Henrietta?
Ela riu. O riso foi um adorável som de vida. Para ele, era como uma brisa primaveril.
- Alexia está bem, mas desconfortável. Irene está sobrevivendo ao choque das notícias sobre nossos irmãos. Sim, comprei um gorro novo e fomos convidados para uma
festa.
- Uma festa? Bem, isso é bastante comum em Londres. Festa de quem?
- Lady Phaedra e lorde Elliot, portanto pode não ser tão comum. Será na casa de Easterbrook. Em homenagem ao pintor, Sr. Turner. Ela o conhece. Todas as pessoas
importantes vão estar lá, além dos amigos dela, que consta serem bem interessantes. Artistas e tal. Ela insistiu para você ir.
- Quero ir. As pessoas importantes e os excêntricos, todos no mesmo lugar. Imagino que o marquês vá aparecer. Iria se divertir.
- Vou perguntar a ele. Espero visitá-lo depois de amanhã. Preciso dar o recado do conde. Alexia prometeu usar sua influência para que eu seja recebida.
Kyle olhou o quarto de Rose, cheio das coisas e detalhes que mostravam sua presença no mundo dele. Passou a mão pelas costas dela e a beijou na testa.
- É bom estar de volta, Rose. Eu devia ter parado numa pousada, mas insisti para o cocheiro prosseguir. Entrei aqui e imediatamente fiquei em paz. Fazia tempo que
eu não entrava num lugar e sentia isso.
- É uma boa casa. Do tipo que fica mais confortável com o tempo e o uso.
- Não é bem a casa, mas a sua presença nela.
- Acho que as pessoas também se sentem mais confortáveis com a convivência, Kyle. É o que significa estar casado.
Talvez, mas não foi conforto o que ele sentira nos últimos quilômetros de estrada, mas muita ansiedade. Só pensava em estar com ela, falar com ela, deitar com ela.
Amá-la.
Ela o fez levantar e abriu os lençóis.
- Está tarde e você está cansado. Durma aqui comigo.
Segurou-a e deu-lhe um abraço. Tirou a touca de renda dela, que caiu suavemente.
Era tarde, mas não tão tarde. Ele estava cansado, mas não cansado demais.
- Eu disse que ele não ia recebê-la. É sempre assim. Ele nem sequer finge que está fora de casa. Simplesmente manda o mesmo recado. Hoje, não, obrigado - falou Henrietta,
balançando a cabeça, desanimada com a grosseria do sobrinho. - Era melhor você escrever uma carta para ele. É assim que eu faço. Escrevo, mando, a carta vem para
cá e segue para ele junto com as outras correspondências. Bem complicado, não?
- Não posso dar o recado por carta. Tenho de falar pessoalmente.
- Se tivesse esperado eu chegar, Henrietta, teríamos mais sorte - disse Alexia. - Não me atrasei muito.
Alexia tinha chegado pouco depois que Henrietta decidira resolver as coisas. Com a recusa, Rose teria de esperar outro dia.
- Faça o que eu disse. Escreva uma carta. Acho que ele até lê as que recebe.
- Vou fazer isso, mas quero evitar a demora para a carta chegar e ser entregue, se for pelo correio. Posso usar a mesa? - pediu Rose, indicando a escrivaninha da
biblioteca.
- Por favor. Alexia, conte quem já aceitou o convite de Phaedra. Soube que ela é amiga de gente muito interessante.
Enquanto Alexia fazia um relato, Rose escreveu o bilhete. Dobrou-o e pediu que um criado o entregasse.
- Muitos acham que ela devia fazer um baile de máscaras, assim quem está louco para ir mas acha que não deve poderia comparecer - disse Hen.
- Phaedra jamais apoiaria um comportamento tão covarde - disse Alexia.
- Se ela quiser receber a nata...
- Está convidando a nata por você e para mim. Se não quiserem ir, ela não vai se importar.
Hen sorriu de leve enquanto tentava se acostumar com a ideia de que alguém poderia não se importar, mesmo Lady Phaedra.
O criado voltou.
- O marquês vai recebê-la na sala de visitas, Sra. Bradwell.
Henrietta arregalou os olhos de surpresa, depois os estreitou, incomodada. Rose acompanhou o criado até a sala.
Esperou um bom tempo. O suficiente para se perguntar se o marquês teria mudado de ideia. Talvez quisesse colocá-la em seu devido lugar, obrigando-a a esperar horas.
Em vista do que dizia o bilhete, seria justo.
Finalmente, ele entrou na sala com um olhar distraído e vago, mal se dando conta de onde estava.
Ela fez a reverência.
- Obrigada por me receber.
- Não tive escolha. A senhora ameaçou mudar-se para a biblioteca até eu recebê-la. Tia Hen e a filha já são invasão feminina suficiente nesta casa, obrigado.
- Sei que errei. Mas queria cumprir logo minha obrigação. Não adiantava transmitir as últimas palavras de um falecido um ano depois.
Easterbrook se virou e deu uma boa olhada nela.
- Estranho que esse homem a tenha encarregado disso, já que eu mal o conhecia. Mas conte, estou ouvindo.
Ela ficou com a boca um pouco seca.
- Ele insistiu que eu transmitisse sua mensagem palavra por palavra. Por favor, tenha isso em mente...
- Diga-as, Sra. Bradwell.
Ela fixou o olhar no tapete que estava a meio metro de distância.
- Ele disse que o senhor foge vergonhosamente aos seus deveres. Que está na hora de parar de ser excêntrico e participar do mundo. Que precisa se casar, ter um herdeiro
e assumir seu posto no governo. E que sua família é muito inteligente para desperdiçar isso e que a vida não é para ser levada como se quer. Essa é a maldita verdade.
Rose não ouviu nenhum xingamento. Nenhuma raiva. Deu uma olhada sorrateira para o marquês.
Nada. Nenhuma reação. Ele fora xingado da tumba, repreendido como um menino na escola e, de certa maneira, ofendido, mas não se importava.
- Entendo agora por que ele mandou dar o recado depois que morresse.
- Fiquei temerosa, pois é bem agressivo. Mas achei que a tarefa podia ser útil, pois eu teria a chance de me encontrar com o senhor. Espero que me conceda um pouco
mais de seu tempo.
Ele pensou. Indicou uma cadeira.
- Um pouco, pode ser.
Ela sentou-se. Ele, não. Ela teria preferido que sentasse. O lorde ficou a certa distância, mãos nas costas, com metade da atenção esperando o que mais tinha de
ouvir.
- Lorde Easterbrook, tenho uma pergunta estranha. O senhor pagou para que meu marido se casasse comigo?
Ele prestou um pouco mais de atenção nela.
- Por que acha que alguém pagou? É uma linda mulher. Tenho certeza de que isso já bastaria para ele.
- Obrigada pelo elogio, mas, para um homem inteligente, a beleza de uma mulher não é suficiente.
- Se acha que há outros motivos, por que não pergunta a ele?
- Por que, entre nós, isso não tem mais importância. Pergunto por outros motivos.
E também porque Kyle queria que ela acreditasse que lucrara apenas em tê-la, nada mais. Não importava o que ela descobrisse agora, continuaria com essa pequena ilusão.
- Se alguém pagou, certamente foi Hayden. Por que pensou que fui eu?
- Lorde Hayden negou e ele não mente. Lorde Elliot está muito centrado em seu casamento recente para reparar em mim. Sua tia Henrietta seria o mais estranho anjo
da misericórdia para uma mulher perdida. Restava o senhor.
Ele andou até uma mesa perto da janela e, distraidamente, abriu uma caixa dourada enfeitada com pedras.
- Confesso que o incentivei um pouco. Seria indiscreto dizer de que maneira.
- Por quê?
- Não tinha nada a ver com você. Mas Alexia fez meu irmão mais feliz do que ele talvez merecesse. Gostei e estou disposto a fazer com que ela seja feliz, se puder
- explicou ele e fez uma pausa para concluir: - Ela me inspira.
- A ser bondoso?
- Não, não, Sra. Bradwell. A ser otimista.
Não era o que ela esperava ouvir. Levantou-se.
- Sei. Pensei que talvez... Bem, tenha um bom dia. Obrigada por me receber.
Chegou à porta antes que ele voltasse a falar.
- O que pensou?
- Que talvez o senhor se interessasse por integridade e justiça. Que se intrometera para corrigir um erro.
Isso pareceu diverti-lo.
- E se fosse isso?
- Eu teria pedido um conselho seu.
- Interessante. As pessoas raramente me pedem conselhos. Não me lembro da última vez que isso ocorreu.
Ele parecia realmente interessado pela natureza extraordinária da questão.
- Assim, não tenho experiência em dar conselhos, mas acho curiosa essa novidade. Se ainda quiser perguntar, vou me esforçar.
Rose tirou a carta de Tim da bolsinha.
- Norbury não estava interessado no meu irmão só por dinheiro, orgulho ou justiça. Tim me disse a verdade e mandei que ele escrevesse tudo.
Easterbrook pegou a carta e a leu.
- Mostrou para seu marido?
- Não. A sociedade dos dois, que já é cheia de má vontade, ficará bastante prejudicada pela morte do conde. Depois do que aconteceu comigo, se Kyle visse isso, poderia...
- Entender errado o que houve com você? Achar que há mais do que você diz? Ir atrás de Norbury?
- Algo assim.
Easterbrook leu a carta outra vez.
- É a palavra de um criminoso. No mínimo, podem duvidar dela. No máximo, podem considerá-la inútil.
- Timothy também achava que era inútil, portanto ele não tinha por que mentir. Mas não foi a primeira vez que Norbury maltratou uma mulher. No vilarejo onde meu
marido nasceu... quando era menino, houve algo. Com a tia de Kyle. E todas aquelas festas na casa de Norbury...
- Mulheres fáceis, ele diria.
Lorde Easterbrook olhou a carta com nojo.
- Embora haja limites para o que uma mulher aceita, quanto mais uma menina. Mesmo assim, pela lei não há nada a fazer. Ninguém vai admitir isso sob juramento.
- Há essa menina, se for encontrada. Tem a tia de Kyle. Até meu marido.
- Isso aconteceu há anos. Ele era criança. A tia não falou na época e ele pode até não lembrar direito.
- Acho que lembra.
- Sra. Bradwell, estamos falando de um conde. Os outros nobres jamais o acusariam num julgamento na Câmara dos Lordes. O processo nem chegaria lá.
- O senhor quer dizer que levariam mais em consideração a palavra do conde do que a de mulheres simples, que foram maltratadas há muito tempo.
Sempre foi assim. Mesmo sem o título, Norbury era inatingível. Agora, que ele era o conde de Cottington, estava totalmente imune.
Talvez algum dia houvesse outro jeito. Ela percorreu a pouca distância que havia entre eles e estendeu a mão para pegar a carta.
O lorde não a entregou.
- Vou ficar com a carta, Sra. Bradwell. Ela só pode dar problemas para a senhora e seu marido.
- Foi um engano procurar o senhor. Avaliei mal. Esqueci que os nobres têm uma justiça especial só deles.
Ele não disse nada. E Rose saiu de mãos abanando, sem a frágil prova que Tim dera da depravação de Norbury.
Rose admirava o marido do outro lado do salão de baile. Ele estava muito bonito nessa noite. A sobrecasaca nova, azul-escura, destacava ainda mais os olhos. O corte
do tecido fazia uma silhueta elegante, mostrando a força e a ótima forma de Kyle. O mais incrível era o colete. Justo, mas de maneira alguma apertado, com fios prata
misturados a toques de azul-safira.
Ele estava tranquilo, conversando com um artista amigo de Phaedra. O tempo que Kyle viveu em Paris fizera dele uma companhia interessante para o grupo que se reunia
nessa noite.
Outras pessoas reparavam nele. As damas, especialmente, eram suscetíveis àquele homem de ombros largos, tão bonito a seu modo, de olhos azuis profundos e uma energia
que parecia alterar o ar ao redor. Naquela noite, ele não estava controlando bem isso.
- Não precisa se preocupar com ele, Rose - Lady Phaedra falou no ouvido dela, que se assustou. Não tinha notado sua aproximação.
- Não estou preocupada. Ele está bem. Muito à vontade.
Nessa noite, ninguém precisava se preocupar com Lady Phaedra também. Tinha arrumado os cabelos formando uma coroa de fogo no alto da cabeça, seguindo a última moda.
O vestido verde-escuro exibia sua pele branca como neve. Deixara de lado as excentricidades. Rose achava que era para a mistura de convidados ficar mais equilibrada.
Usar renda preta faria a balança pender mais para um lado.
- Não estou me referindo ao traquejo social dele, Rose. Pensei que você pudesse se preocupar com a atenção que as mulheres estão lhe dando.
- Também não preciso me preocupar com isso.
Ela sabia. Sabia tanto que nem pensava em ciúme.
- Não que minha segurança se justifique por uma falta de atrativos nele, é claro.
- Nem precisa dizer, já que ele está se mostrando muito atraente. Mas, se você está segura, é muito bom. Daí poderá aceitar convites feitos por motivos errados e
usá-los para outros fins. Pelo jeito, tais convites vão surgir logo.
Uma dama resolveu se aproximar de Kyle e do Sr. Turner, o artista, pelos tais motivos errados. Kyle conversou com ela, simpático, e não pareceu notar o rubor da
dama quando ele pousou seus olhos azuis nela.
Kyle viu que Rose o observava. Desvencilhou-se do artista e da admiradora e saiu.
- Lady Phaedra, vai ter muita inveja na cidade quanto começar a temporada de eventos sociais. A fama desta festa vai fazer muitos se arrependerem por não terem recebido
convidados em suas casas um pouco antes.
- A data facilitou fazer a lista de meus amigos. Não precisei escolher a dedo para evitar constrangimentos. Quanto aos demais, Elliot disse que eu deveria convidar
todos os nobres que estivessem na cidade, com as esposas, já que o irmão nunca se diverte sozinho. Felizmente, Norbury não apareceu, embora tenha tido a má ideia
de aceitar o convite.
Kyle nem piscou ao ouvir o nome de Norbury. Em vez disso, deu uma olhada nos convidados a partir de seu elevado ponto de observação.
- Onde está lorde Elliot? Não o vi ainda.
- O irmão mais velho o convenceu a ir fumar com ele. Easterbrook não ficou dez minutos e achou uma desculpa para escapar.
Phaedra deu uma olhada nos convidados e franziu o cenho.
- Ah, céus, Sarah Rowton está entediando o Sr. Turner. Ele parece que vai dormir em pé. Preciso salvá-lo.
Largou Rose e Kyle para cumprir seu dever.
- Ela está especialmente bonita esta noite - disse Kyle. - Mas muito menos que você, Rose. Você ofusca qualquer mulher aqui.
Ela enrubesceu sob o olhar dele.
- É uma pequena aparição em público depois dos fatos dos últimos meses e do meu exílio. Tenho a impressão de ainda estar com um pé na sala de aula e não pertencer
muito a este espaço.
- Ninguém diria que você não está completamente à vontade. Juro que só veem graça e porte em você. Tenho certeza que não estava mais bonita na primeira vez em que
apareceu numa festa.
- Na verdade, nunca fui oficialmente apresentada à sociedade. Na época, vivíamos em Oxfordshire e não tínhamos dinheiro. Ah, eu me ressentia muito por causa disso.
Morar lá e não em Londres, era como se me roubassem a vida. Durante um ano, mais ou menos, detestei aquela casa. Agora tenho vontade de ir lá visitar. Não é estranho,
Kyle? Há pouco tempo aquilo era como uma prisão e agora sinto falta.
- Sempre foi o seu lar, Rose. Talvez nunca tenha sido uma prisão, mas um santuário. Precisa de um novamente?
- Preciso dar uma pausa e passar algum tempo num lugar calmo para lamentar a ausência do meu irmão. Tenho certeza de que nunca mais vou vê-lo.
Kyle segurou a mão dela e lhe deu o braço.
- Então nós vamos lá. Mas agora vamos dar uma volta por este lindo salão de baile. Você uma vez quis saber quem são meus amigos. Lady Phaedra convenceu Henrietta
a conseguir alguns nomes com Jean Pierre e eles vieram. Quero que os conheça para eu ficar cheio de orgulho por você ser minha.
Claro que Rose encantou a todos. Kyle sabia que isso ia acontecer. A elegância, o porte e a gentileza tiveram um resultado inevitável. Ela ouviu atenta todas as
conversas com os amigos dele, que não conhecia.
Rose jamais saberia que o Sr. Hamilton, o banqueiro, tinha xingado a família dela quando Kyle comentara sobre o casamento. Hamilton conheceu bem os irmãos Longworth.
Jamais saberia também que a Sra. Caldwell, cujo marido era projetista de pontes em países distantes, tinha espalhado que a escandalosa Roselyn Longworth jamais se
sentaria à mesma mesa que ela, mesmo sendo respeitavelmente casada com o amigo do marido.
Kyle sabia que eles se aproximariam depois que a conhecessem, como tinha acontecido com Pru e Harold. Um convite para uma reunião onde se misturariam com lordes,
damas e artistas talvez também ajudasse a amenizar a opinião deles. Sem dúvida, beber ponche nas taças de um marquês lançava outra luz em tudo.
Se Jean Pierre não tivesse dado os nomes para Henrietta, os encontros poderiam não ocorrer nunca. Foi o que Kyle concluiu. Estava disposto a reduzir aquelas amizades
a relações formais de negócios.
Mas Rose pareceu gostar dos amigos dele. Se quisesse aceitar o convite da Sra. Caldwell, ele não permitiria que o ressentimento atrapalhasse. Provavelmente, Rose
precisava de tantos amigos quantos fosse possível arranjar. A batalha não tinha terminado, embora desse a impressão de ir bem.
Depois que essas novas alianças se formaram, Kyle atravessou o salão com Rose. Ela estava olhando para Alexia no momento em que outra pessoa os observava.
Kyle viu uma cabeça loura virar-se e olhos atentos observarem. Finalmente, Norbury tinha aparecido.
- Vá falar com Alexia, Rose. Vou procurar lorde Elliot. Ele sugeriu que praticássemos remo numa manhã da próxima semana.
Ela se afastou na mesma hora em que Norbury veio na direção do marido. Kyle se virou e foi na direção de uma parede, para que nada se passasse bem no meio do salão.
Norbury estava em sua melhor aparência quando parou na frente de seu alvo.
- Não respondeu às minhas cartas. Mandei que me procurasse, você não procurou.
- Estive bastante ocupado e, de todo jeito, não estou muito disposto a atender ordens suas. Não tenho nada a dizer de suas cartas. Não consegui nem entender a primeira,
tão irracionais eram as acusações.
- Você as entendeu muito bem.
Era verdade, entendera. A primeira carta tinha os desvarios bêbados de um homem cheio de ressentimentos por um pai agora morto. A mistura de ódio, arrependimento
e tristeza tinham sido muito ásperas, bastante reveladoras para terem sido escritas em estado sóbrio, ainda mais sendo endereçadas a Kyle Bradwell.
Por outro lado, para quem Norbury poderia escrever tais coisas? Não para os homens que participavam de suas orgias. Eles não se importariam com o desespero momentâneo
de um filho porque seu sonho da morte do pai se realizara. Também não entenderiam as alusões ao possível parentesco dos dois homens que agora se enfrentavam.
Kyle se perguntava se Norbury se lembrava do conteúdo dessa carta, ou da bizarra e amarga acusação de que os dois eram mesmo irmãos. As outras cartas, sãs na frieza
e sóbrias no veneno, Norbury provavelmente conseguiria recitar palavra por palavra.
- Preciso lhe dizer umas coisas, Kyle. Você vai ouvir.
- Talvez devêssemos ir a outro lugar. A biblioteca é mais discreta.
Por sorte, não havia ninguém lá. As acusações começaram antes que a porta fosse fechada.
- Você tentou deixar aquele canalha livre. Deu a impressão de que foi reembolsado.
- Não quer sentar-se? As cadeiras na frente da lareira parecem confortáveis.
- Maldição, explique-se.
Parecia que iam resolver a situação no meio da sala: rodeava um ao outro como dois pugilistas escolhendo onde aplicar bons socos.
Para Kyle, estava ótimo.
- Eu disse a verdade no tribunal. Nada mais, nada menos.
- Você mentiu. Disse que foi reembolsado ao se casar com a irmã dele. Com a minha puta.
O punho de Kyle atingiu em cheio a cara de Norbury. O conde cambaleou, de olhos arregalados.
- Eu avisei - disse Kyle.
Sentia um ódio gélido, cuja ameaça fria aguardava.
- Avisou? Me avisou?
Norbury passou a mão no lugar onde fora atingido.
- Que audácia! Vou enfiar você e aquele ladrão num navio, junto com a sua pomba suja. Agora meu pai não pode protegê-lo. Você não passa de mais um arrivista que
conseguiu subir até os melhores salões, sem nenhum direito a isso.
- Você não vai fazer nada comigo. Se eu tiver de explicar esse soco, direi aos jurados que você ofendeu minha esposa agora e antes de nos casarmos. Mostrarei aquela
carta irritada na qual questiona a pureza de minha mãe. Falarei de outras coisas, de muito tempo atrás. Que não é a primeira vez que bato em você e por que bati
antes.
Norbury parou. No começo, pareceu cauteloso, depois fez uma cara mesquinha.
- Sua família foi mais do que compensada.
- De jeito nenhum. Contente-se por eu não ter matado você quando soube a verdade.
- Sua tia pediu. Na época, ela era uma coisinha linda, não estava acabada como agora. Ela namorava sem parar. Convidava todos nós para...
Kyle deu outro soco. Desta vez, Norbury caiu no chão. Um fio de sangue escorreu do nariz dele.
Sentou-se e pegou um lenço. Surpreendeu-se por ele ficar manchado de sangue.
- Você está louco!
- Não me sinto nem um pouco louco.
Norbury se levantou, cambaleante.
- Você causa muita confusão, está na hora de me livrar de você. Sei do relatório que fez sobre a mina. Como ousa intrometer-se no uso que os donos fazem da propriedade?
Ia lhe dar a chance de se retratar, não vou mais. É bom que ele tenha morrido e minha parceria com você possa acabar.
Os olhos dele brilhavam. Deu um riso torpe.
- Não permitirei que use a propriedade de Kent em seus negócios. Ela agora é minha. Os papéis que foram assinados não interessam. Meu advogado vai ficar com eles
tanto tempo que você morrerá antes.
Kyle olhou bem para ele e sentiu aquele soco sem punhos. Devia doer, mas ele só sentiu alívio, pois a partir desse dia não precisaria mais ver aquele sujeito.
Ouviu um ruído vindo da direita. Olhou. Era a mão de alguém colocando uma taça de vinho no chão, ao lado de uma das cadeiras de espaldar alto.
Eis que os dois não estavam sozinhos na biblioteca.
Cabelos negros surgiram quando um homem se levantou. Era Easterbrook. Ele se virou com uma expressão vaga e aborrecida.
- Norbury, você devia conferir se está sozinho antes de discutir problemas pessoais.
- E você devia mostrar que está presente antes de ouvir conversas!
- Não tive chance de avisar. Vocês começaram a brigar assim que entraram aqui e ainda não pararam.
Um segundo homem surgiu na outra cadeira. Lorde Elliot também tinha ouvido.
- Norbury, acho que isso aí vai inchar - comentou lorde Elliot. - Ouvi som de socos, mas como não houve revide, achei que tinha me enganado.
- Certamente Norbury temia machucar Bradwell, se reagisse com os punhos - disse o marquês, com voz arrastada.
- Tenho testemunhas, Bradwell - zombou Norbury. - Você me atacou e vou denunciar isso.
- Seria um drama ridículo. Eu não gostaria de ser chamado para depor numa situação tão banal - disse Easterbrook. - Por que não acertar tudo aqui e agora? Elliot
e eu não deixaremos que o mate, Norbury. Mandaremos parar antes que a luta vá longe demais.
A expressão de Norbury congelou. Parecia pensar bem por trás de seus brilhantes olhos gélidos.
Lorde Elliot passou por eles e se postou à porta.
- Seguro os casacos de vocês.
Kyle tirou o dele e o entregou. Norbury ficou indeciso.
- Você tem que aceitar o desafio - disse lorde Elliot. - Numa situação assim, um cavalheiro não tem escolha. E você também não vai denunciar um assunto tão insignificante.
Seríamos obrigados a repetir para um juiz tudo o que ouvimos. A história sobre a tia de Bradwell pode ser interpretada como admissão de culpa.
Norbury enrubesceu. Entregou os casacos.
O marquês afastou alguns móveis leves para abrir espaço.
Lorde Elliot colocou os casacos num divã e ficou atrás de Kyle.
- Vamos seguir as regras do boxe, é claro.
- É preciso?
- Creio que sim.
Norbury levantou os punhos e arreganhou os dentes.
- Ele não conhece as regras do boxe. Não são seguidas por esse tipo de gente.
- Conheço, sim. Mas segui-las só faz o adversário sentir mais dor e demorar mais a cair. Nas atuais circunstâncias, não me importo.
Mesmo assim, a luta não demorou muito. Norbury não era rápido nem forte e a experiência que tinha não ajudou muito.
Por Rose. Por Pru. Pelas outras que não conheço. A cada soco que Kyle dava em Norbury, dizia por quem era. Em dez minutos, Norbury estava no chão outra vez, inconsciente
e mais castigado do que parecia.
Kyle olhou para ele. O gelo da própria ira tinha se tornado um fogo frio que queria continuar ardendo. Os punhos não abriam.
O marquês pôs a mão no ombro de Norbury.
- Compreendo que queira lutar mais, porém basta. Encoste-o na parede, Elliot. Daqui a pouco ele melhora.
Alexia não aguentava ficar muito tempo em pé sem se cansar, então Rose procurou com ela um lugar sossegado. Tentaram entrar na biblioteca, mas a porta estava trancada.
- Estranho - falou Alexia e tentou de novo.
Dessa vez, a porta se abriu. E emoldurou três homens altos e morenos, a poucos centímetros do nariz de Rose. Ela olhou para o marquês, para lorde Elliot e Kyle,
um de cada vez. Kyle parecia um pouco nervoso, um pouco zangado e muito tenso.
Ela e Alexia pareciam ter interrompido uma discussão.
- A porta estava trancada - disse ela.
- Estava? - perguntou lorde Elliot, inocentemente.
Veio um gemido de trás deles. Rose virou a cabeça para um lado e Alexia para o outro, olhando dentro da biblioteca.
- Quem... está lá no chão? - perguntou Alexia. - Alguém passando mal?
- É o conde de Cottington - disse lorde Elliot. - Continua comemorando a herança com grande entusiasmo e desconfio que esteja bêbado. Vou chamar o cocheiro dele
para ajudá-lo a voltar para casa. Discretamente, para que os outros convidados não fiquem comentando.
Rose olhou Norbury de soslaio. Não parecia bêbado coisa nenhuma. Parecia...
De repente, a visão de Rose foi cortada por um largo peito masculino, num casaco azul-escuro. Ela olhou para cima até encontrar um olhar divertido.
- Kyle, você bateu nele? De novo?
- Tivemos apenas uma conversa que precisávamos ter há tempos.
Kyle segurou o braço de Rose e a levou para o salão. A expressão do rosto dele a encantou. Não tripudiava. Não estava convencido. Não estava sequer satisfeito. Parecia
um homem contente por terminar um trabalho que precisava ser feito, como quando consertara o portão do jardim dela.
Easterbrook vinha atrás, acompanhando Alexia. Com um único olhar arguto, conseguiu que um traseiro levantasse de uma cadeira confortável no salão.
Instalou Alexia na cadeira e cuidou do bem-estar dela.
- Você está um pouco pálida. Precisa beber alguma coisa leve.
- Vou trazer um ponche - disse Kyle, e se afastou para buscar a bebida.
Rose ficou mais perto do marquês.
- Ele bateu muito?
- Bastante.
- Que bom. Não é uma opinião adequada a uma dama, mas é a verdade.
Easterbrook olhou para Alexia, cuja atenção fora atraída pela chegada de uma amiga.
- Sra. Bradwell, conte a seu marido sobre a conversa que tivemos quando me visitou, se é que já não contou. Se ele ficar questionando se a surra de hoje valerá o
que ele pôs a perder, o relato que seu irmão escreveu irá animá-lo.
Valerá o que ele pôs a perder?
- Temo que ele dê outra surra em Norbury se souber daquela menina.
O medo era que Kyle o matasse.
- Eles não se encontrarão mais.
- É difícil evitar que se encontrem.
Lorde Easterbrook viu Kyle voltar com o ponche.
- Ontem conversei com uns amigos influentes. Expliquei a longa história de mau comportamento do novo conde e mostrei o relato de seu irmão. Eles chegaram à mesma
conclusão que eu.
- Isso significa que concordam que Norbury jamais seria julgado, muito menos punido, portanto meu marido vai continuar se encontrando com ele.
- Eu não disse que ele jamais seria julgado ou punido, Sra. Bradwell. Disse que ele jamais seria condenado num julgamento público. A simples ameaça de um pode ser
uma arma poderosa.
- Não entendi.
- Vários bispos visitarão Norbury enquanto ele se recupera da surra de hoje. Vão apresentar uma sentença dos jurados bastante particular. A menos que ele seja idiota
e precise ser convencido com mais empenho, creio que vai se retirar logo e de uma vez por todas para sua propriedade no campo em Kent. Lá, vai distrair apenas os
clérigos e suas famílias.
- Acho que nada o conterá. Mesmo em Kent, mesmo sozinho, fará o que bem entender.
- Escolheram para ele um mordomo e um caseiro muito especiais. Vai ser parecido com aqueles retiros fechados de antigamente: terá todo o luxo, mas nenhuma liberdade.
Confie no que digo, a partir de hoje, ele estará contido.
Kyle passou por eles com uma expressão indagadora, como se achasse curiosa a longa conversa de Rose com Easterbrook.
- Posso contar para meu marido? - perguntou Rose.
- Claro, embora eu ache que ele já se sente vingado. Deu socos como se quisesse igualar o placar.
O marquês se encaminhou para Alexia e Rose o alcançou.
- Obrigada por se envolver nesse assunto, lorde Easterbrook.
- Era meu dever, depois que você me chamou a atenção para a história sórdida, Sra. Bradwell. Como a senhora disse, os nobres têm uma justiça especial só deles.
CAPÍTULO 24
Rose adorava o campo na primavera. Adorava o cheiro da terra se aquecendo e das plantas voltando a crescer. Naquele dia, até o ar frio prometia mais calor. Adorava
o aconchego de ficar deitada na cama com Kyle, enfiada nas cobertas. A brisa esfriava os corpos, mesmo quando a paixão os aquecia.
- Você é linda demais - murmurou ele.
Deu um beijo na ponta do seio, tão sensível naquela manhã ao toque e à língua dele.
- Sempre que vejo você, dói.
Brincando, ela colocou a mão no lugar onde doía. Os olhos dele passaram de apenas azuis para um safira profundo.
- Posso cuidar de você se estiver com dor - disse ela.
Ele deixou que cuidasse e cuidou dela também. Com a boca e as carícias, fez com que ela flutuasse em rendição. Ela agora conhecia o orgasmo muito bem. Ela afastava
todos os cuidados e preocupações, todas as defesas e desculpas e, por fim, toda a distância, quando os dois se uniam assim.
A mão de Kyle, forte e máscula, acariciava a parte inferior do corpo de Rose. Beijou a orelha dela.
- Não é só o meu corpo que dói, Rose. Sua carícia consola o meu coração também, mesmo que por pouco tempo. Até o seu sorriso causa isso.
- Lamento que seu coração doa, Kyle. Lamento que qualquer coisa lhe cause dor.
- Você entendeu mal, querida. É uma dor boa, de amor e desejo. Você me avisou que não tinha ilusões românticas, mas eu nunca prometi que jamais a amaria.
Ela tocou a mão dele, fazendo com que parasse o estímulo erótico. Ficou assim, sentindo a respiração dele no pescoço e o coração batendo no dela.
- Eu disse que nunca mais mentiria para mim mesma sobre isso, Kyle. Mas a verdade não é uma mentira e sei que você não mentiria. Podíamos ter um casamento bom e
razoável sem amor, mas acho que fica melhor amando um ao outro.
Ele se apoiou nos braços e a encarou em meio aos cabelos revoltos. Rose ainda ficava insegura quando era olhada assim, com tanta intensidade e tão profundamente.
- Não esperava ouvir uma declaração de amor, Rose. Estava preparado para jamais ouvi-la.
E, apesar disso, ele se declarara, mesmo achando que não era correspondido. Isso fez doer o coração dela, no bom sentido dado por Kyle.
- Sei que você jamais falaria em amor sem motivos, Kyle. Sei que posso confiar em você. Já vi e senti o seu amor, não precisava ouvir as palavras.
Rose percorreu com o dedo a linha firme do rosto dele.
- Mas acho muito bom que as tenha dito. E eu também. Percebo agora que é a rendição final do passado, do futuro e do meu coração.
Ele a beijou com intensidade, com maestria. Ficou por cima da esposa e dobrou as pernas dela, depois olhou o corpo exposto enquanto fazia carícias delicadas que
a deixaram louca. O prazer veio em ondas fortes e intensas até ela implorar por ele, alto e sem pudor.
Ele se apoiou nos braços, sua força pairando sobre o delicado e insano abandono dela. Inclinou a cabeça para ver a penetração. Ela fez o mesmo, vendo à clara luz
do dia seu corpo absorvê-lo uma vez, duas, mais, enquanto ele entrava e saía em estocadas vagarosas.
Não podia continuar assim para sempre, por mais que ela não quisesse perder aquela sensação. Ele fechou os olhos, levantou a cabeça e foi mais fundo, mais rápido.
Ela foi jogada na escuridão.
Rose se entregou, como sempre acontecia agora. Entregou-se ao desejo físico e espiritual. Na pureza da força e da presença dele, que afastava quaisquer outros pensamentos
ou dores que não fossem aquelas ali. Kyle a levou ao êxtase e passou por aquele glorioso limiar junto com ela, ainda unidos em corpo e alma.
Depois, ela o prendeu a seu corpo, desfrutando da alegria e da segurança que as declarações de amor tinham acrescentado àquela união. Ela sentiu a perfeição, enquanto
o dia brilhava por trás das cortinas e a brisa entrava trazendo os aromas e sinais da renovação.
- O dia está lindo. Vamos dar uma boa caminhada.
Kyle fez a sugestão enquanto Rose secava a frigideira onde tinha preparado alguns ovos. Isso por que os dois estavam lá sozinhos, longe de todas as preocupações
de Londres.
Ela adorava a primavera, mas dias lindos e quentes também significavam lama. Calçou suas botas, pegou um xale e saiu com Kyle para o jardim.
Andaram até depois do portão, no campo. Ao longe, ela via a colina onde tinha se deitado naquele dia, quando sonhava encontrar Timothy.
Hoje, ao lado de Kyle, não conseguia nem lembrar que distorção a fizera considerar uma boa ideia encontrar Tim. O coração tinha sido rápido demais em mentir, num
tempo nem tão distante.
- Preciso contar uma coisa, Rose. Lamento que não sejam boas notícias - disse Kyle.
Ela parou e olhou bem para ele. O tom da voz causou um pressentimento ruim no coração dela.
- O que é?
- Estou prestes a envolvê-la em outro escândalo.
- Não creio que você seja capaz de fazer um escândalo.
- Ah, sou sim. Um por que você já passou. Estou falido, querida.
Kyle tentava falar normalmente, mas Roselyn notava o cuidado em ser gentil na voz dele.
Ele podia estar preocupado com a reação da esposa, mas não parecia triste sobre si mesmo, nem muito preocupado. Poderia ter a mesma expressão se, depois do passeio
pelo campo, percebesse que tinha pisado em estrume. Seria um fato desagradável, mas facilmente corrigível.
- Falido como? - perguntou ela, quase gaguejando a palavra que lhe trouxera tanta infelicidade.
- Completamente. Norbury retirou a propriedade dele do nosso empreendimento imobiliário. O pai assinou os papéis, mas o advogado pode atrasar as coisas por tempo
indeterminado. Enquanto isso, a madeira que encomendei precisa ser paga e outros materiais que comprei a crédito também. Os demais investidores terão perdas, mas
sobreviverão. Já eu...
- Você já estava mal antes que isso acontecesse e não vai resistir. Isso significa que você vai para a prisão?
- Depende da generosidade dos meus credores. Não vão ganhar muito com isso - falou ele e ergueu o queixo da esposa. - Não se preocupe comigo. Acabo me recuperando.
Mas vai levar alguns anos e as oportunidades podem não estar em Londres.
Pôs o braço nos ombros dela e continuaram a andar.
- Você tem como se sustentar - disse ele. - Não precisará economizar carvão e comida novamente. Pode continuar sua batalha na sociedade. Tem o dote do casamento
e mais um investimento que vai lhe render 300 libras por ano.
- Que investimento?
- Fiz um em seu nome logo depois que nos casamos.
- Estava em dificuldade, mas fez um investimento para mim? Foi pouco sensato, Kyle. Devia ter guardado o dinheiro.
- Talvez houvesse guardado, se tivesse previsto que isso poderia acontecer, mas não me arrependo.
Como ele podia estar tão calmo? Falência não era pouca coisa. Não era, de maneira alguma, como estrume na sola da bota, era mais como perder uma perna. Mas ele não
estava arrependido de dar grande parte do que tinha para ela e agora enfrentar um desastre.
Ela ficou em pânico. Os credores podiam não ser generosos, e sim vingativos. Ela não suportava pensar em Kyle preso por causa de dívidas. O coração batia pesado
pelas implicações de como ele falara num futuro seguro para ela. Parecia que ele não esperava ou não queria que ela ficasse ao seu lado, se as oportunidades fossem
longe de Londres.
- Vamos os dois viver da renda do investimento que você fez para mim. No final das contas, pode ter sido sensato - disse ela. - Ou, melhor: temos de achar um jeito
de retirar esse investimento do banco, assim você poderá usá-lo para evitar a falência.
- Não. Mesmo que o tribunal autorizasse, eu não faria isso.
Rose sabia por que ele fizera o investimento logo depois que se casaram. A quantia depositada devia ser o incentivo dado por Easterbrook. Tinha sido um gesto temerário
dar o dinheiro para ela. Além de romântico, bem antes de ela achar que aquele casamento tinha alguma possibilidade de tais sentimentos.
- Se você encomendou material de construção, acho que seria bom usá-lo para construir alguma coisa - disse ela.
- Não posso construir sem um terreno, Rose. Acredite em mim: a propriedade em Kent e as quantias já pagas a Cottington ficarão presas durante anos, mesmo que eu
leve o caso ao tribunal e ganhe a causa.
- Então você precisa encontrar outro terreno.
- Isso exige dinheiro. Mesmo que eu consiga um acordo parecido com o que fiz com Cottington, os pagamentos são adiantados.
- Talvez lorde Hayden possa emprestar...
- Não, Rose. Não vou ficar em dívida com seus parentes.
Claro que não. Fora estupidez sugerir isso. Em breve, tudo o que restaria ao marido seria seu orgulho.
Rose olhou a colina em frente e os campos ao redor. Uma das lembranças mais antigas da infância era de andar com os dois irmãos pela trilha onde estava agora. Nada
havia mudado na paisagem, a não ser as estações do ano.
Apesar de tudo, apesar da tristeza pelas mortes e perdas, apesar da pobreza depois das dívidas do pai e, depois, da falência de Tim, aquela propriedade testemunhava
seu lugar no mundo, mesmo se Rose não tivesse o que comer. A sala de visitas podia ter apenas duas cadeiras e uma mesinha, mas era o lugar onde seus antepassados
reuniam os moradores de todo o condado.
Ela sentiu a garganta queimar. A nostalgia queria se apoderar dela. A emoção não foi suficiente para ela se calar. Parou e segurou o braço de Kyle.
- Por que não usar esta terra, Kyle? Usar a madeira e os outros materiais para construir aqui. Não seria pagamento suficiente pelo que meus irmãos fizeram, mas seria
alguma coisa.
- Quando eu disse no tribunal que já tinha sido reembolsado, era sério, Rose.
O sorriso dele a agradava, mas também mostrava que ela não o havia convencido.
- É a casa da sua família, querida. O seu santuário. E ainda pertence ao seu irmão, que um dia vai voltar.
Kyle pegou a mão da esposa e a obrigou a seguir com ele, na brisa.
- Na verdade, Kyle, a propriedade agora é minha, não do meu irmão. Timothy enviou uma carta para nosso advogado, mandando que fizesse a transferência para o meu
nome. Se a última carta relativa à propriedade atende às exigências legais, essa também vai atender.
Chegaram ao alto da colina antes que ele respondesse.
- Quando seu irmão escreveu essa carta?
- Na prisão, quando fui vê-lo antes. Lorde Hayden e o carcereiro foram testemunhas.
- Por que ele fez isso?
- Eu mandei. Temia que ele fizesse alguma bobagem no futuro e perdesse a casa. Também achei útil ter a carta e essa propriedade, por segurança. Pelo jeito, eu estava
certa.
Ele balançou a cabeça.
- Se é sua, mais um motivo para eu não fazer isso.
- Céus, como você é teimoso!
Rose deu um passo na direção do marido e deixou claro quanto a postura nobre dele a afligia.
- Você é meu marido. Somos um só, no prazer, no amor e na falência. Não vou ficar frequentando festas enquanto você está preso por causa de dívidas, ou lutando anos
para recuperar a fortuna. Se você não vai usar esta terra nem a quantia do banco, então usaremos a minha renda como garantia para suas dívidas e vivermos do que
conseguirmos juntar.
- Você não vai viver assim. Eu proíbo. Já suportou isso uma vez e não permitirei que isso se repita.
- Eu vou, não interessa o que você permite. Vou achar um jeito de usar a renda. Vou economizar cada centavo e entregar pessoalmente aos credores.
Ele ia fazendo uma cara zangada, mas não conseguiu. Olhou bem para ela, bastante tempo.
- Por favor, Kyle - pediu Rose. - Considere essa propriedade como um presente meu para você, se quiser. Considere como um dote. Se preciso, me considere como um
dos investidores com quem se associa.
- Eu teria de vender a terra. Você entende? Os arrendamentos não serão suficientes. Eu precisaria tomar a terra usando aquele bloqueio que pedi na justiça, enquanto
a propriedade ainda está no nome de Tim. Depois que estiver no seu, posso usá-la na condição de marido, mas não vendê-la.
- Então tome a terra.
Kyle se afastou alguns passos e estreitou os olhos, vendo a paisagem ondulada.
- Acho que podemos poupar a sua casa e o terreno de trás. Esta colina também. O restante seria suficiente.
Ela foi até ele e o abraçou por trás, encostando o rosto nas costas fortes dele.
- Se não bastar, venderemos a casa e o terreno também.
Ele se virou e encarou Rose.
- Tem certeza? Não vai ser a mesma coisa, mesmo se mantivermos a casa. Você está sacrificando algo que...
- Tenho toda a certeza. Por favor, não discuta mais, nem fale em sacrifício. Se me ama, se me respeita, não vai mais falar.
Ele não discutiu. Nem sequer falou. Só a beijou suavemente como nunca tinha feito. O coração dela ficou mais leve de alívio.
- Então está decidido. Certo? - sussurrou ela.
- Vamos combinar com os inquilinos já e encontrar outras fazendas para eles - disse Kyle.
Ele a abraçou com força. Sua respiração aqueceu os cabelos dela quando a beijou no alto da cabeça.
- Você me emociona, Roselyn - sussurrou, com a voz rouca de emoção. - Sempre emocionou. Primeiro, pela beleza, depois pela bondade e paixão, e agora por seu amor.
Você faz meu coração arder, doer e se encher de orgulho. De toda a sorte que tive na vida, você foi o maior presente que o destino me deu.
Rose inclinou a cabeça para seus lábios encontrarem os de Kyle. O calor e o amor dele fluíram por ela. Mais calor do que ela jamais esperara. Mais amor do que achara merecer.
Ela se aninhou no marido enquanto olhavam a paisagem do alto da colina. Uniu-se a ele até se fundirem numa única silhueta.
Madeline Hunter
O melhor da literatura para todos os gostos e idades