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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


JOHN CHAUFFEUR RUSSO / Max Du Veuzit
JOHN CHAUFFEUR RUSSO / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

JOHN CHAUFFEUR RUSSO

 

No pátio lajeado de um grande palácio da Avenida Marceau, em Paris, encontrava- se um luxuoso automóvel, de cor sóbria e linha impecável.

Sentado no estribo, com a cabeça inclinada para um livro, o motorista, um rapagão loiro, de uns trinta anos, esperava ordens.

Lia havia mais de uma hora, quando, no cimo da majestosa escadaria exterior do palácio, apareceu Micaela Jourdan-Ferrières, filha do antigo fabricante de conservas, hoje bem conhecido na grande finança mundial.

Alta, fina e distinta no seu tailleur escuro, os olhos retinham involuntariamente a sua silhueta, analisando-a com prazer. A cabeça altiva, de perfil regular, inclinava-se para trás, com um encanto misto de reserva e orgulho.

A imensa fortuna do pai, homem honrado, mas de medíocre intelectualidade, que se julgava de espírito superior por ter realizado lucros fabulosos com fornecimentos de conservas ao Estado, fizera de Micaela um ser especial, misto de orgulho e de ingenuidade.

Absolutamente honesta e franca, não admitia, contudo, que nenhum dos seus menores desejos deixasse de ser satisfeito.

A mãe talvez tivesse conseguido atenuar o que o seu carácter possuía de voluntarioso e de excessivamente orgulhoso, mas Micaela perdera-a quando era ainda muito pequena, e o pai, casando alguns anos depois, dera-lhe por madrasta uma mulher bonita, mas insignificante, garrida de mais para ser uma boa educadora. Sempre ocupada consigo própria, pouco podia pensar nos outros.

A segunda madame Jourdan-Ferrières não era má pessoa; gostava da enteada, a seu modo, e não lhe contrariava as vontades, contanto que não estivessem em desacordo com a sua preocupação de ser bela, de parecer sempre nova, de ser a mais elegante e mais bem vestida entre as amigas.

Uma tal educação feminina deixara Micaela entregue a todos os desmandos de um carácter ao qual apenas um desmedido orgulho impedia de proceder mal.

Lisonjeada pelas visitas da casa, pedida em casamento por uma corte de adoradores deslumbrados pelo *bezerro de oiro personificado por Jourdan- Ferrières, obedecida servilmente por toda a criadagem, para quem as suas menores vontades eram ordens... pagas, habituara-se, pouco a pouco, ao domínio que o dinheiro dá sobre aqueles que o não possuem. A sua pequenina alma, personalista e ao mesmo tempo orgulhosa, sabia que tudo se compra e se paga! Com oiro tudo se obtém: jóias, vestidos, honrarias... e até consciências!

Se bem que tivesse pouco mais de vinte anos, o ricto de desprezo que lhe vincava quase sempre os lábios era sinal de uma vontade imperiosa- Na realidade, havia nela obscuro desdém por essa mentalidade moderna que reina depois da Guerra em adoração permanente diante do dinheiro, vindo seja donde for, por esses estrangeiros mundanos, os quais subjuga, e por todos os parasitas, prontos a tornarem-se escravos dos seus menores desejos. E andava pela rua, de cabeça erguida, persuadida da sua superioridade esmagadora sobre a eterna multidão, imaginando-se de essência quase divina, porque não sabia o que era precisar e ignorava também as baixezas, indignidades, compromissos e a própria humildade de toda essa multidão anónima, correndo atrás do pão quotidiano, ou de um pouco de supérfluo.

Quando Micaela chegou junto do automóvel, parou a examinar o motorista, quase na sua frente, que continuava lendo por não a ter pressentido. Observou, por momentos, o seu perfil regular, os cabelos loiros, espessos e ondulados, ombros fortes, mãos finas de dedos compridos e unhas impecáveis... tão bem tratadas que toda uma Raça parecia revelar-se naquelas extremidades.

E pensou:

* Olá! Que bonito rapaz!

Mas como o seu pensamento tivesse dispensado uma homenagem a esse homem, levantou ainda mais a cabeça, como censurando-se por esta condescendência íntima.

E com voz fria, tão glacial no seu desdém habitual, perguntou:

- Você é que é o novo motorista?

Ouvindo-se interpelar assim, o rapaz olhou para ela e, vendo-a tão bonita, tão cuidada no seu luxo de bom gosto, levantou-se de um salto, deslumbrado pela graciosa visão.

- Sim, mademoiselle - disse, com simplicidade, mas sem servilismo.

Micaela teve ocasião de admirar a sua alta estatura, que o tornava um colosso.

- Meu pai disse-lhe que está ao meu serviço particular?

- O senhor Jourdan-Ferrières preveniu-me de que ficaria exclusivamente às suas ordens.

Micaela percebeu um leve cantar na voz, notando ao mesmo tempo a pele branca, e nos olhos azuis, de clarões variáveis, a vaga nostalgia do olhar.

- É estrangeiro?

- Sou russo.

- Como se chama?

- Alexandre Isborsky.

Sempre de fronte bem erguida, Micaela continuava a olhá-lo de alto a baixo.

E com desprezo acentuado, notou:

- Alexandre! Que horrível nome para um motorista!... Exactamente como essa origem russa, que não depõe muito a seu favor! É sempre uma evocação de revolucionários, de comunistas, sovietes! De hoje em diante chamar-se-á John, e não dirá a ninguém a sua nacionalidade.

O motorista teve uma ligeira contracção. A face pálida coloriu-se-lhe subitamente e pelos olhos indolentes perpassou rápido clarão. Pareceu hesitar um segundo sobre a resposta a dar. Mas a milionária, sem baixar os olhos, sem querer notar a brusca indignação daquelas pupilas, ordenou no mesmo tom decidido, subindo rapidamente para o automóvel:

- John! Depressa, às Galerias Mundanas.

E com a portinhola já fechada, enterrada nos luxuosos e macios coxins, indiferente ao motorista, ainda mal refeito da surpresa, passava despreocupadamente, com minúcia, a borla de pó de arroz no rosto deslumbrante de mocidade.

A hesitação do rapaz tivera a duração de um relâmpago. Nos seus olhos lia-se agora, em vez de espanto, uma espécie de ironia.

*Alguma nova rica! pensou, com piedade Um belo invólucro numa alma de mujique.

E, tranquilamente, talvez com a vaga resignação dos povos eslavos para aquilo que não podem impedir, subiu para o seu lugar, pondo suavemente o carro em marcha.

 

Antes de chegar ao grande armazém que indicara ao motorista, Micaela ordenou:

- John! Pare!

O carro parou.

- Mudei de opinião. Leve-me à igreja de Notre-Dame-de-la-Croix.

- Muito bem.

Apesar destas palavras, parecia hesitar. Micaela viu-o pegar num pequeno roteiro de Paris e consultá-lo.

Então observou-lhe:

- Não sabe o caminho?

- Estou indeciso, mademoiselle.

- Ao cimo da rua das Amendoeiras.

Não pôde ver o espanto que se manifestou no rosto do motorista, e como ele ficasse calado, insistiu:

- Disse-lhe, ao cimo da rua das Amendoeiras. Não conhece? Em Menilmontant.

- Sim, sei, mas julguei não ter percebido bem. Micaela teve um estremecimento nervoso.

- Então se sabe onde é, vamos. Reflicta amanhã.

O automóvel pôs-se novamente em marcha, leve e silencioso, sob a mão que o guiava.

O jovem Russo ficara bastante admirado. Pouco habituado, sem dúvida, a servir senhoras tão arrogantes como aquela boneca milionária, achou estranha a indicação dada por ela. Conhecia bastante Paris para saber que a rua das Amendoeiras não era usualmente frequentada pelos habitantes do bairro de l'Étoile.

Ao fim de meia hora, tendo aproveitado uma paragem forçada para se informar discretamente onde estava situada a igreja, parou em frente de Notre-Dame-de-la- Croix.

Micaela teve que abrir a portinhola, porque o motorista conservou-se muito direito no seu lugar. E como o rapaz levantasse os olhos para a bela igreja, à qual um grupo de operários limpava a frontaria, sentiu a cólera apoderar-se dela.

- Quando eu descer, abra a portinhola. É melhor tomar atenção ao serviço do que estar de nariz no ar a bocejar.

O Russo olhou para Micaela.

- Queira desculpar, mademoiselle, mas o senhor Jourdan-Ferrières disse-me que havia um trintanário.

- Creio que não estamos no deserto. Quero que faça o meu serviço sem ajudante.

O rapaz não respondeu.

Viu a poucos passos uma rapariguinha que caíra. Na queda quebrara uma garrafa com vinho.

Quando se levantou, com as mãozitas a sangrar, a criança olhou, desgostosa, para os vidros da garrafa e para o vinho entornado, começando a soluçar fortemente.

John chamar-lhe-emos assim, visto que era esse o nome com que a família Jourdan-Ferrières certamente passaria a designá-lo, saltou vivamente do automóvel e correu para a garota.

- Magoaste-te?

- É por causa da garrafa. Vão-me bater. Inclinando-se para a pequena, o Russo agarrou-lhe as mãozitas feridas e verificou que as esfoladelas não tinham importância.

- Não chores mais. Vou dar-te dinheiro para comprares outra garrafa e o vinho; ninguém te castigará.

Ao mesmo tempo, metia na mão da pequena uma nota de cinco francos.

- Pronto. Vai buscar outra garrafa... e tem cuidado de não caíres novamente.

A criança afastou-se, já sem lágrimas.

Micaela assistiu a esta cena sem fazer um movimento sequer. Ficara um pouco surpreendida com a liberdade que o seu motorista tomara.

Algumas pessoas pararam, olhando para o carro e para quem o ocupava. Micaela fez um trejeito de desagrado; tinha horror a exibições.

Quando John voltou, murmurou baixo, mas em tom suficiente para ele a ouvir:

- É filantropo ou humanitário? John fixou-a e disse:

- Não, mademoiselle; apenas egoísta.

- Egoísta, como?

- Não gosto de ver chorar uma criança.

Micaela fez um gesto de mau humor.

- Pois eu não gosto dessas demonstrações públicas de generosidade - retorquiu -, Diante de mim, conserve-se na posição que lhe compete.

Por entre as pálpebras mal fechadas, o motorista olhou longamente para a cabecinha orgulhosa que reclamava tanto servilismo, e conservou-se de pé, imóvel, impecável. Os lábios apertados retiveram a ironia que se esboçava neles.

Micaela teve de se conter com este pesado silêncio. Feliz por lhe ter feito sentir o peso da sua autoridade, benevolamente, continuou:

- Você vai esperar-me aqui, John. Talvez me demore, mas não se preocupe comigo e espere.

- Está bem, mademoiselle.

Micaela deu alguns passos em direcção à igreja, mas voltou-se para trás, olhando para ele. O motorista subira para o seu lugar e, indiferente a tudo quanto o rodeava, recomeçou a leitura do livro.

A filha de Jourdan-Ferrières teve uma hesitação: aquele glacial rapaz impunha- se-lhe mais do que ela confessava a si própria. Mas depressa se resolveu. Dirigiu-se novamente para o automóvel e perguntou familiarmente:

- Quanto lhe dá meu pai, por mês, de ordenado, John?

- Mil e oitocentos francos - respondeu o motorista, surpreendido com a pergunta.

- Eia, não lhe paga mal!

- Porque não tomo as refeições no palácio. Como e durmo fora.

- Ah! come e... Está bem! Pois eu dou-lhe outro tanto; desejo ser bem servida!

John fez um gesto de vago protesto e disse, com indiferença:

- Agradeço-lhe, mademoiselle... mas eu estou disposto a servi-la bem.

- Sim, sim, está entendido, mas eu sou muito independente. Desejo não só uma obediência passiva, mas ser livre de proceder à minha vontade, sem que os meus criados se julguem na obrigação de se inquietarem ou de me vigiarem.

O rapaz não respondeu, perguntando a si próprio onde Micaela queria chegar e, em vista desse silêncio, a milionária continuou:

- No que particularmente me diz respeito, quero que nem veja, nem oiça.

John anuiu com a cabeça.

- Como vê - insistiu Micaela -, conto absolutamente com o silêncio do meu motorista.

- Serei mudo - protestou o rapaz.

- É uma condição essencial para o nosso pacto. Tanto à menor indiscrição como à menor curiosidade, perderá os lucros que lhe concedo, o que junto ao que meu pai lhe dá, perfaz uma boa mensalidade.

Novamente os olhos de John brilharam. Para que insistia essa rapariga tão brutalmente sobre a questão do dinheiro, quando lhe assegurara o seu silêncio?!

- Conte com a minha discrição - replicou friamente.

- Compreendido: estamos de acordo?

- Absolutamente, mademoiselle - respondeu John, que desejaria poder acrescentar: *Que tenho eu com a sua vida?+

Mas conteve-se. Só lhe subiam aos lábios reflexões pouco amáveis. Achou em Micaela um ar decidido e desagradável, que chocava com o seu carácter de Eslavo, cheio de sonhos nostálgicos. E o tom altivo, as reflexões práticas, pareciam-lhe deslocadas em lábios tão juvenis.

Quando Micaela se dirigiu, desta vez, para a igreja, em passo rápido, seguiu-a com o olhar pensativo. Era realmente bonita. A estatura alta fazia-a parecer mais mulher, mas era apenas na aparência, porque os grandes olhos escuros, a boca vermelha, o pescoço delgado e a pele transparente, tudo era ainda de uma garota... e de uma garota impertinente e mal-educada.

Quando Jourdan-Ferrières o contratara, dissera-lhe:

* Fica exclusivamente ao serviço da minha filha. Ela tem vinte anos e todas as curiosidades da vida. Conto consigo para saber aliar as suas impaciências e loucura de andamento à sua segurança. É a vida da minha única filha que confio à sua habilidade de motorista. Julga poder tomar a responsabilidade desta demonstração de confiança?

John aceitara, seguro da sua longa experiência de automobilista. Mas, neste momento, dizia consigo que se tivesse conhecido melhor a filha de Jourdan- Ferrières talvez tivesse recusado.

Servir não lhe custava. Estava decidido a ser impecável no seu trabalho. Aceitando essa colocação de motorista, para a qual nada até então o preparara, estava resolvido a sofrer-lhe todos os inconvenientes, bem como a colher todos os proventos.

E eis porque dera conta de que a arrogância de Micaela fizera estremecer o seu orgulho; aquela boca feminina era bonita de mais para dar ordens tão secas.

Teria força para se calar aos sarcasmos da garota amimada? Poderia aceitar o dinheiro que uma mulher lhe oferecia?

Por muito tempo pensou nesse círculo difícil, de discórdias diárias. Mal entrara em funções, e já se sentia cansado pelo esforço que teria de empregar.

Ficou inerte, com o cérebro pesado, nesse recanto de Menilmontant, onde o capricho de uma rapariga o arrastara.

De repente, estremeceu. Perto dele, uma voz ordenava-lhe, em tom decidido:

- John! Aos Campos Elísios. Chez Elisa.

E Micaela subiu para o automóvel.

Os olhos do motorista cairam sobre o relógio, colocado ao lado do conta- quilómetros. E, enquanto punha o carro em andamento, viu, com espanto, que eram quatro horas e quarenta minutos.

Micaela Jourdan-Ferrières demorara-se uma hora e três quartos na igreja de Notre-Dame-de-la-Croix,

 

A vida continuava normal no palácio da Avenida Marceau. John, sempre correcto no seu lugar, conduzia Micaela a todos os centros mundanos da capital.

Tinham voltado duas vezes à igreja de Notre-Dame-de-la-Croix, mas nesse dia a demora fora ainda maior do que o costume, e o motorista, subitamente inquieto, desceu do carro e penetrou na igreja.

O santo lugar encontrava-se deserto. Não se via forma alguma feminina, nem entre os pilares nem nos recantos dos altares. Uma porta, do lado oposto àquela por onde entrara Micaela, fez-lhe compreender por onde a jovem saía depois de penetrar na igreja,

Já o esperava, mas sentiu uma decepção. Logo no primeiro dia teve a suspeita de um fingimento. Micaela Jourdan-Ferrières não devia ir a uma igreja tão distante do seu bairro fazer as suas devoções.

Tantas precauções para esconder as suas idas e vindas causou-lhe tristeza. Que segredo penoso ou vergonhoso tentava ela ocultar nesse recanto popular, onde ninguém pensaria em a procurar?

Tornara a entrar para o carro havia uns dez minutos, quando Micaela apareceu. Trazia os olhos vermelhos e parecia muito comovida.

- Depressa, John; vamo-nos embora.

Sem dizer nada, este notou-lhe o olhar inquieto, o rosto assustado e um tremor nas mãos.

* Isto vai mal!+ pensou, pondo o carro em movimento.

A sua íntima convicção era que Micaela vinha de uma entrevista clandestina... qualquer paixoneta desproporcionada com a sua situação. E sentiu um pouco de desprezo por essa jovem milionária que corria semelhantes aventuras. A imagem pura mesmo muito pura, reconhecia-o de Micaela, estava em desacordo com a suposição desse flirt culposo. No entanto, fora ela própria quem exigira do seu motorista a maior discrição.

Não proclamara orgulhosamente o seu desejo de absoluta independência?

Entre os frequentadores habituais da casa, John procurava em vão a favor de quem podia Micaela ter esquecido a reserva natural do seu sexo. Mas, na verdade, não descobria ninguém que pudesse merecer aquele excesso de precauções.

Seria apenas curiosidade doentia, ou tara oculta?

A verdade é que o jovem Russo experimentava um sentimento, complexo de amargura e de cólera, pensando que era cúmplice de uma aventura pouco digna.

Nesse dia, principalmente, a consciência de John gritava mais alto, censurando- lhe o papel que representava.

Não seria mais honesto despedir-se e afastar-se assim daqueles misteriosos passeios?

Mas, censurando as longas ausências de Micaela e a comoção que sempre manifestava no regresso, pensou que a sua revolta era um pouco tardia.

* Naturalmente, iremos hoje pela última vez a esse bairro afastado; deve ter-se dado o rompimento+.

Como se enganava!

Passaram-se alguns dias sem que Micaela lhe desse ordem para seguir até Menilmontant. Mas, uma tarde, na semana seguinte, apareceu no alto da escadaria com o tailleur escuro, e John adivinhou o caminho que iam tomar. Dirigiu-se para ele, sem pressa e sem o olhar. Quando ia a subir para o carro, disse de forma que só ele ouvisse:

- Dirija-se para a estação do Metro Couronnes. Ali direi o que desejo.

John obedeceu, pressentindo novidades. A poucos metros da estação de Couronnes, o automóvel parou. Micaela ordenou-lhe:

- Venha cá, John.

Surpreendido, o rapaz voltou a cabeça. A milionária indicou-lhe, com a mão, o lugar vago, a seu lado. John não manifestou, no olhar, nem espanto por aquela estranha familiaridade, nem satisfação pelo favor inesperado; e, sem pressa, o mais naturalmente possível, obedeceu, sentando-se ao lado da jovem patroa.

- Oiça, John. Preciso de si, e que compreenda o que desejo por meias palavras.

- Estou às suas ordens.

- Tem que me acompanhar a uma casa onde sou obrigada a ir.

- E o automóvel?

- Deixá-lo-emos perto da igreja... em qualquer sítio onde veja que fica em segurança.

- Bem! E onde vamos?

- A uma ruazinha...

- Atrás da igreja?

- Não, mais abaixo... à direita... ao cimo da rua das Amendoeiras.

- Tenho que fazer alguma coisa?

- Não, apenas acompanhar-me.

- Estou às suas ordens.

O jovem Russo pensava na singularidade do pedido. Que significava aquele desejo de ser acompanhada?

Como Micaela adivinhasse, pelo mutismo de John, os pensamentos que ele não exprimia, continuou:

- Vou visitar um desgraçado que uma amiga me recomendou...

- Visita de caridade?

- Apenas.

John sentiu uma espécie de alívio.

- Esse homem precisa de si?

- Muito... e, com franqueza, não sei o que hei-de fazer. Tem uma vida irregular, devido, certamente, ao meio em que se encontra. Seria preciso tirá-lo dali... e pensei que poderia ajudar-me.

Micaela falava com hesitação, um pouco humilde, espiando no rosto do motorista os reflexos que as suas palavras lhe causavam.

Mas John continuava impenetrável. Esta atitude de Micaela, contrafeita e suplicante, estava tão pouco nos seus hábitos que o Russo desorientava-se. E de novo afirmou:

- Estou à sua disposição, mademoiselle.

Esta afirmativa devia, de momento, bastar a Micaela. Receava que, acrescentando qualquer palavra mais, John gozasse com as suas súplicas. E esse receio estava tão perto da verdade que, nesse momento, a filha de Jourdan-Ferrières conheceu pela primeira vez como o seu orgulho quebrara a ponto de a ter feito dirigir-se humildemente a um inferior. Esta certeza produziu-lhe o efeito de uma queimadura com um ferro em brasa. Ergueu a cabeça, e os lábios readquiriram o seu jeito desdenhoso:

- Vamos, John. Vá para o seu lugar e conduza o carro para onde combinámos.

O rapaz sentiu o dardo que o feria, mas não lhe ligou importância. Pensava que ia conhecer o segredo de Micaela... e esse segredo não era um flirt banal, nem a suspeitosa aventura que supusera.

 

O automóvel parou em frente de um restaurante, à porta do qual estava um homem gordo. John pediu-lhe que tomasse conta do carro. Era uma precaução útil, naquele sítio. Depois, acompanhou Micaela. Era a primeira vez que caminhavam lado a lado, e se bem que ela, como mulher, fosse alta, ao pé dele parecia pequena.

Mal tinha dado uns vinte passos, Micaela, importunada por um pensamento, reteve o companheiro:

- John, tenho que o prevenir... de que, na última vez, dois homens me seguiram, e tive medo.

- Que queriam eles?

- Penso que esses homens... especiais... de boné... não estão habituados a falar respeitosamente às senhoras... Tomaram-me por...

- Por uma das suas. concluiu ele, vendo-a hesitar.

- Justamente! retorquiu Micaela, encantada por ter sido compreendida.

Estava aliviada por ter falado. Prevenira-o, e não seria tomado de surpresa se os dois temíveis homens reaparecessem.

Os olhos de John envolveram-na, subjugados por um reflexo íntimo. Adivinhava que era por medo que se fizera acompanhar. Ia, pois, representar o papel de protector. Este pensamento divertia-o, mas abstinha-se de o exprimir.

Micaela adivinhava as reflexões que o motorista fazia, mas estava tranquila com a sua presença. Olhava-o, sentia-se absolutamente em segurança. Quem ousaria atacá-la, indo acompanhada de semelhante colosso?

Tinha chegado a uma ruazita estreita, suja, mal-cheirosa, com roupas às janelas; crianças esfarrapadas brincavam num rego que dividia em duas partes o beco.

- É por aqui? interrogou John, que, apesar do ar impassível, achava o lugar abjecto.

- Sim, ao fundo.

- E é aqui que tem vindo sozinha?

- Absolutamente só.

- Os meus cumprimentos! Para uma pessoa educada num meio tão diferente, é realmente admirável não ter tido medo!

Na apreciação do motorista, Micaela sentiu uma censura.

- Nunca tive medo - retorquiu com altivez.

Mas, apesar do tom orgulhoso, havia melancolia nos seus olhos.

Tinham percorrido já meio caminho. Ao fundo, um grupo de homens, de cara patibular, conversavam diante de uma porta.

- São eles - disse Micaela, indicando-os ao companheiro.

E, ao mesmo tempo, diminuiu o andamento.

- E onde vamos nós?

- À porta... que está atrás deles - respondeu, designando o corredor escuro cuja entrada os homens tapavam.

O grupo, sem se mexer, calara-se à aproximação dos dois jovens.

- Em que andar? perguntou John.

- Terceiro - disse Micaela, laconicamente, com a garganta de súbito contraída perante os homens, que, imóveis, a encaravam.

John não hesitou e agarrou o braço da jovem patroa.

- Então, vamos - disse em voz alta, impelindo-a para a porta -, Com licença, meus senhores!

A voz forte e o gesto ousado eram uma ordem. Afastaram-se e deixaram passar o par, um pouco admirados, talvez, com a estatura do Russo.

Um relance de olhos permitiu a John ver, à direita, uma porta baixa, que dava para uma sala cheia de fumo e escura, onde uma dezena de homens estavam sentados.

* Que antro!+ pensou.

E, instintivamente, ao subir, assegurou-se de que não era seguido.

Quando chegaram ao seu destino, um quarto estreito, onde um homem de cerca de sessenta anos os recebeu, o motorista deixou explodir o seu mau humor:

- Mademoiselle sempre tem ideias! Vir exercer a caridade num lugar como este! Pertence-lhe estar aqui? Julga que seu pai ficaria satisfeito se soubesse de tais excentricidades?

Era a primeira vez que ousava falar-lhe tão altivamente. Ele, sempre tão cortês e reservado, estava deveras descontente.

- Que quer dizer? replicou Micaela, pasmada -, Pois ousa...

- Censurá-la?... Certamente que não tenho vontade de me misturar com apaches, e se nos acontecesse qualquer sensaboria, teriam o direito de fazer suposições sobre o que fazíamos em semelhante local.

- Teme pela sua reputação! exclamou a milionária, irónica.

- Talvez também pela sua - retorquiu o Russo, com mais suavidade, porque a viu trémula.

Por medo ou cólera, Micaela caíra numa cadeira, sacudida por estremecimentos. John dirigiu-se para ela.

- Perdoe-me; fui demasiado violento! Mas o sítio pareceu-me tão horrível que o pensamento de a ver aqui, comigo, revoltou-me.

Pegara-lhe suavemente nas mãos.

O homem que Micaela ia visitar era de aspecto gasto e doentio. Alto, magro, cabelo muito preto para a idade, ainda tinha bons traços fisionómicos, mas o vício, a miséria, e talvez os desgostos, tinham-lhe vincado no rosto uma máscara trágica de precoce senilidade.

- Talvez se lhe pudesse mandar os socorros que lhe destina... ou marcar-lhe uma entrevista fora daqui, para lhos entregar - disse, por fim, John.

- Este desgraçado está actualmente meio paralítico - respondeu Micaela, docilmente -, Além disso, prometi ocupar-me dele, não o abandonar. Uma promessa é sagrada, torna-se um dever.

Qualquer coisa de trágico lhe perpassou pelas pupilas, e continuou:

- Um dever! Sim. Creia que se trata de um dever:, de um dever sagrado, e não de uma excentricidade, como há pouco disse.

John viu-lhe os olhos marejados de lágrimas e as mãos agarrarem o peito, nervosamente, como para comprimir a emoção. Admirado, voltou-se para o homem e examinou-o longamente. Os seus olhos foram várias vezes das feições gastas do miserável ao rosto fresco da companheira. Não havia semelhança possível entre eles. Eram ambos altos e morenos, mas limitava-se a isso qualquer parecença.

Em seguida, o olhar do Russo examinou o quarto. De uma cama de ferro, que estava a um canto, caíam lençóis e cobertores sujos, apesar de serem novos, tal como um fauteuil forrado de veludo e duas cadeiras.

Logo pensou que a bolsa de Micaela contribuira para a compra. Sobre a mesa, copos e garrafas meio cheias, e um resto de carnes frias, num papel. Pelas paredes e no chão, numerosos quadros, amontoados uns sobre os outros, mostravam o reverso, cobertos de poeira. Um cavalete, no meio do aposento, tinha uma pintura, representando a cabeça de uma mulher, por acabar.

O motorista estremeceu. O retrato era já antigo. Devia ter sido começado havia muito, mas pareceu-lhe que na mulher de cerca de trinta anos que representava, existiam os traços de Micaela Jourdan-Ferrières.

E o jovem Russo pensava que, sem dúvida, era esse o fio da intriga que forçava sua ama a ir visitar aquele velho.

A corajosa rapariga tirara o casaco e começara a arrumar a roupa da cama.

- Porque se ocupa pessoalmente desse serviço? perguntou John, dirigindo-se-lhe -, Esse homem deve encontrar, no seu meio, a assistência de que precisa.

Micaela fez um gesto de desânimo.

- Já dei dinheiro... até muito! O desgraçado promete-me mandar limpar o quarto, a roupa, mas não vejo nunca o resultado.

Hesitante, apontou o lote de garrafas vazias que se amontoavam a um canto.

- Creio que o mal é aquele - acrescentou, a meia voz.

- Engana-se, eu não bebo - interveio o homem, altivamente.

John sobressaltou-se. O tom daquela voz tinha qualquer coisa de distinto que contrastava com o meio sórdido em que vivia. Examinou-o com mais atenção e viu a prega dos lábios desenhar o mesmo gesto arrogante que, por vezes, notara em Micaela. Foi apenas um relâmpago, mas bastou-lhe para confirmar as ousadas hipóteses que repentinamente formulara.

O mesmo sangue devia correr nas veias da sua patroa e daquele homem. Qual seria o seu grau de parentesco? Era o que John não podia precisar, mas não duvidava, agora, que fossem da mesma raça.

- Então, o que faz ao dinheiro que mademoiselle lhe dá? disse, dirigindo-se ao desconhecido.

- Tinha algumas dívidas, e vou pagando pouco a pouco... Neste bairro todos exploram um doente sem defesa; todos sabem quando me vêm ver e, quando se retiram, apressam-se a vir buscar o seu dízimo sobre o que me trouxeram.

Micaela encolheu os ombros, talvez admirada por ele não ter feito já esta queixa.

- Se lhe procurarmos outra situação, quer? perguntou John.

- Bem o desejo! Visto que já sabe o que se passa, ajude-me com a sua experiência; o senhor deve conhecer o povo.

O jovem Russo não respondeu. Pensou de repente, como se enganara quando julgara conhecer o povo da Rússia. Ilusões e crenças tinham esbarrado no horrível massacre onde aqueles que amava tinham morrido. Na verdade, se fosse apenas esse o seu conhecimento do povo, para o animar a salvar o farrapo humano que Micaela vinha ver, seria um auxiliar bem pouco convicto.

- Visto queixar-se do meio que o rodeia, gostaria de deixar este quarto e ir viver noutro sítio? inquiriu John, de novo.

- Sim; se mademoiselle me levar consigo, prestar-lhe-ei os serviços que me pedir, e envelhecerei feliz.

Ouvindo esta proposta, Micaela fez um enérgico gesto de protesto. Não! Decerto que não podia aceitar sob pretexto de caridade, ou mesmo do dever, semelhante promiscuidade.

Isto não deixou a menor dúvida no espírito de John, pois nem sequer respondeu às palavras do velho.

- Oiça - continuou -, Vamos tirá-lo daqui. Quando tudo estiver arranjado, viremos buscá-lo.

- Para onde me levam? Quero sabê-lo.

- Veremos! De resto, é inútil dizer-lho de antemão. As pessoas que o rodeiam escusarão, assim, de o perseguir.

- E se eu me recusar a partir sem saber para onde vou?

- Então ficará aqui. Mas também lhe digo que é a última vez que nos verá em sua casa.

Micaela quis intervir, mas o Russo insistiu com o gesto e o olhar, impedindo-a de falar.

- Deixe-me tratar deste caso, mademoiselle. Não vamos, agora, alimentar o bairro inteiro à sua custa, a pretexto de filantropia para com este homem.

E, voltando-se novamente para o velho, continuou:

- Reflicta. É a nossa última palavra.

John parecia não querer deixar-se comover. Dirigiu-se para Micaela, tirou-lhe das mãos o copo que ela limpava, e disse-lhe:

- Deixe esse trabalho para outras mãos. Os amigos que vêm fazer companhia a este homem, ajudá-lo a gastar com as suas liberalidades o seu pouco dinheiro, podem, em troca, limpar o quarto.

Subjugada pela autoridade que emanava daquelas palavras, Micaela abandonou a limpeza. John continuou:

- Dê-lhe uma quantia suficiente para viver um mês... e até lá terá notícias nossas. Previna-o, principalmente, de que nunca mais porá aqui os pés.

A rapariga hesitou, porque, na verdade, o ultimato de John dirigia-se tanto a ela como ao velho. Se bem que lhe fosse desagradável parecer obedecer às ordens do seu motorista, resignou-se a agir como ele lhe aconselhava. Pressentia que nunca mais se arriscaria a voltar àquele lugar sem ir acompanhada e, por outro lado, a quem se confiaria ela para prosseguir naquela empresa, se John se recusasse a voltar ali outra vez?

Apesar da sua submissão aparente, os olhos claros do Russo indicavam uma certa decisão, e Micaela compreendia que não seria prudente afrontar de frente esse único aliado.

Despediu-se do velho nos termos que John lhe indicara. Quando iam para sair, o homem balbuciou:

- Bem, está entendido. Não me abandonem; farei tudo o que quiserem.

- Então, conte connosco!

E John afastou-se para deixar passar Micaela.

Fechada a porta da miserável habitação, encontraram-se no patamar escuro da escada desconjuntada. Ao chegar ao primeiro degrau, Micaela inclinou a cabeça. Parecia-lhe ouvir murmúrios em baixo, e hesitava, novamente aterrada.

John tirou da algibeira um acendedor e fez luz. A fraca claridade permitiu ver a escada deserta.

- Deixe-me passar à frente - disse, com simplicidade.

E começou a descer, calcando os degraus com o seu passo de homem, o qual ressoava formidavelmente aos ouvidos de Micaela, que teria preferido passar despercebida. Quando chegaram à última volta, John parou uns segundos. Alguns homens de cara patibular obstruíam o corredor da saída.

Com um gesto rápido, inclinou o boné sobre as orelhas, puxou uma madeixa loira para a testa e, com o braço, rodeou a cintura de Micaela, empurrando-a para a frente.

- Vamos, minha bela, vai à frente que eu cá estou.

A rapariga compreendeu instantaneamente o sentido do gesto e das palavras do Russo. E se bem que o coração lhe batesse descompassadamente, caminhou para o grupo.

Como não se afastassem depressa, e um deles avançasse familiarmente a mão para o rosto de Micaela, a voz do motorista ressoou como um trovão:

- Então, garota, ficamos aqui até amanhã? Havia uma enérgica ameaça, uma força tão hostil no tom do companheiro de Micaela, que os homens recuaram um pouco, voltando-se para ele. Viram-no com o pescoço enterrado nos ombros, a cabeça metida no boné deformado, e a mão direita agarrando, na algibeira, qualquer arma escondida. Instintivamente, recuaram.

A atitude ousada, junto à figura colossal do Russo, impunha-se-lhes mais uma vez; dispersaram prudentemente, esquivando-se a entrar em luta com semelhante gigante.

Recuando para a sala fumegante, um deles exclamou, com admiração:

- O meco tem fígados!

Os que tinham saído para a rua encararam Micaela ao passar.

- Tens umas lanternas bem bonitas!

- He! Garota! Olha que os velhos são mais interessantes.

Com os olhos dilatados pelo espanto, Micaela recuou um passo, sentindo as pernas repentinamente frouxas. John tomara-lhe o braço para a suster e arrastar, enquanto os homens se afastavam vagarosamente, dizendo-lhe de longe, por fanfarronada, pesados gracejos. Estava muito pálida e tão fortemente comovida que o jovem Russo teve que manter o seu braço durante todo o caminho. Deixava-se levar, com os olhos cerrados, junto dele, como se estivesse inconsciente.,

John, em silêncio, guiava-lhe os passos, suavemente, permitindo-lhe assim refazer-se. Lembrava-se da sua orgulhosa resposta de há pouco:

* Nunca tive medo+.

E sorria, cheio de indulgência, por essa fraqueza que se apoiava a ele, e a fazia, nesse instante, verdadeira mulher.

Levaram mais de dez minutos a chegar ao automóvel.

Quando Micaela ia a entrar para o carro, viu atrás de si o grupo, que se divertia em os seguir de longe.

- John! Eles vêm ali - exclamou, novamente aterrada.

- Agora... o que podem fazer? disse o rapaz tranquilamente -, Suba para o carro.

E abriu-lhe a portinhola.

- Não! Não! Aqui não!... A seu lado - gritou ela, com terror.

E fechando brutalmente a portinhola, sentou-se no lugar da frente.

- Depressa, John! Depressa!

Sem se apressar, porque não queria dar a impressão de uma fuga aos seus perseguidores, o motorista pôs o carro em marcha quase ao mesmo tempo que os apaches chegavam junto dele.

Soaram alguns gritos, assobios, e ouviu-se um tiro de pistola.

- Falhou! disse John, fleumaticamente.

- Atiraram?

- Sim, creio que aos pneumáticos.

- Mas esses homens são uns bandidos!

- Estavam em sua casa, e não devíamos vir visitá-los. Este carro de luxo insulta a sua miséria.

- Bem sabem que fui ali com um fim caridoso.

- Sim, aos olhos deles não era com mau fim que a queriam!

- Se não fosse o senhor, ter-me-iam assassinado, não é verdade?

- Não - disse John, sorrindo -, Creio que, pelo contrário, queriam ensinar-lhe a viver... a sua vida.

Morreria de medo.

- Vê bem que não deve voltar aqui?

E acrescentou, como que zombando de si próprio:

- Há pouco fui fanfarrão, mas não estava muito tranquilo. Nada percebo de boxe nem de luta, não estava armado, e, em caso de batalha, apesar da minha alta estatura, não levaria a melhor.

Micaela olhou-o com admiração.

- E, contudo, o senhor ia bem devagar!

- Precisava de tranquilizá-la. O meu sossego dava-lhe confiança.

- Tiveram medo de si. John riu.

- Muitas vezes, quando era estudante, divertia-me com os camaradas a brincar com a minha elevada estatura: desenvolvo-me, incho como um peru, tomo aspecto terrível, e só me falta uma faca entre os dentes! Isto, algumas vezes, impõe-se.

- Hoje, foi magnífico! disse Micaela com sinceridade.

Assim falando chegaram à encruzilhada Oberkampf Avenida da República. John parou o carro.

- Há pouco ficou nervosa. Creio que faria bem bebendo alguma coisa forte, que aquecesse. Está ali um Café muito acessível. Quer entrar?

Micaela aceitou, contente por lhe fazerem essa proposta, da qual sentia necessidade.

- Tive medo, realmente; as pernas ainda me tremem - notou, tomando a direcção do Café.

John hesitou e depois ofereceu-lhe o braço.

- Permita-me - arriscou um pouco timidamente, porque já nada a ameaçava, e não ousava tratá-la com a mesma familiaridade.

Mas a rapariga aceitou-lhe o braço, tendo ainda necessidade de se sentir protegida.

Fê-la sentar num banquinho, junto de uma mesa com tampo de mármore.

- Que deseja tomar?

- Qualquer coisa quente; estou gelada.

- Talvez um grogue.

- Pois seja um grogue.

Maquinalmente, pegou numa cadeira e sentou-se do outro lado da mesa.

Porque cessou Micaela, nesse momento, de ser a rapariga reconhecida para com o seu salvador, para voltar a ser mademoiselle Jourdan-Ferrières em presença do seu motorista?

Nada o poderia explicar, a não ser o gesto, muito natural, do jovem Russo, sentando-se na sua frente.

O caso é que, encarando-o com altivez, observou-lhe secamente:

- Não poderia sentar-se noutra mesa?

O rosto de John manifestou espanto durante um segundo. Mas, compreendendo bruscamente, levantou-se de um salto e, agarrando no copo que lhe tinham colocado na sua frente, levou-o para o balcão.

A vivacidade do seu gesto não escapara a Micaela, e sentiu pesar de o ter provocado depois do serviço que há pouco lhe prestara.

Mas o orgulho foi mais forte.

* Esqueceu-se de que é um motorista! Se alguém me visse, aqui, nesta companhia!+

E olhou em volta. Quase todas as mesas estavam ocupadas, e, naturalmente, não conhecia ninguém. A maior parte das pessoas falavam umas com as outras, preocupando-se mais com os seus negócios do que com os vizinhos.

Na mesa próxima da sua, apenas um homem a encarara. E, vendo tal insistência, julgou que ele a conhecia e começou a examiná-lo. O desconhecido tomou aquele olhar por um incitamento, e então, risonho, veio sentar-se no banco perto dela e pôs o seu copo de "Porto" sobre a mesa.

De repente começou a conversar.

- Deseja que lhe faça companhia, mademoiselle? Estou de passagem em Paris. Não conheço ninguém e ficaria encantado em passar o resto da tarde consigo.

- Mas, senhor...

- Nada receie. Sou homem galante, e saberei recompensar o tempo que passar comigo.

- Não o conheço - disse Micaela com desdém.

- Travemos conhecimento, minha linda.

- Peço-lhe que me deixe em paz.

- Então, então, meu amor, repito-lhe...

Mas a rapariga, ofendida pelo seu gesto, porque ele queria abraçá-la, instintivamente gritou:

- John! John!

O Russo, mergulhado nos seus tristes pensamentos, mal ouvira gritar o seu nome. Mas, por cima do ombro, lançou um olhar para a mesa onde estava Micaela. Bem viu o estranho junto dela, mas não deu conta, de repente, da situação. Só a compreendeu em absoluto depois do gesto do audacioso insolente, sublinhado com um novo apelo de Micaela.

Viu então que, presa de um lado entre a parede e o desconhecido do outro, Micaela não podia afastar-se do seu perseguidor. Dirigiu-se para eles, e, delicadamente, disse:

- O senhor está ocupando o meu lugar! Queira retirar-se.

O interpelado hesitou, mas, perante a firme atitude de John, balbuciou algumas palavras, e de novo voltou a sentar-se à mesa que deixara. O rapaz procedera com tal correcção e tão naturalmente, que Micaela, admirada, perguntava a si própria se não sonhara esta cena.

Mas John fez um sinal ao criado, que veio imediatamente.

- Este "Porto" é daquele senhor... Traga-me o copo que deixei em cima do balcão.

Só depois de terem sido executadas estas ordens é que John, voltando-se para Micaela, assombrada, lhe disse:

- Queira desculpar a minha liberdade, mademoiselle, mas, na verdade, creio ser preferível ser eu quem me sente ao seu lado do que outra pessoa. De resto, se a minha presença lhe é importuna, faça de conta que não estou aqui.

Micaela não respondeu. Quando o motorista tomava esse tom de impecável delicadeza, tinha a impressão de uma hostilidade disfarçada. O incidente que a forçara a recorrer, novamente, aos seus cuidados, era-lhe profundamente desagradável. Estava descontente consigo mesma por não ter sabido meter na ordem um atrevido. Esta última aventura colocara-a numa posição humilhante perante o jovem Russo, visto ser obrigada a suportá-lo à mesa.

E procurou qualquer observação desagradável que lhe permitisse inverter os papéis.

Julgou tê-la encontrado. Quando saíram do Café, depois de John ter pago a despesa, disse, muito alto, malevolamente:

- Que Café tão suspeito! É a primeira vez que ponho os pés numa baiuca como esta!

- É semelhante à casa onde me conduziu - respondeu o rapaz, vivamente.

E sem querer saber mais de Micaela, foi levantar o capot do carro, como se tivesse qualquer coisa a examinar no motor.

 

No dia seguinte, de manhã, John esperou ordens durante muito tempo.

Quando chegara, Landine, a criada de quarto de Micaela, foi preveni-lo:

- Mademoiselle manda dizer que não sabe a que horas sairá hoje.

O jovem motorista era, portanto, obrigado a suportar o capricho da filha de Jourdan-Ferrières.

Segundo o seu hábito, quando estava inactivo, embebia-se, sem mais delongas, num livro científico que sempre trazia consigo. E foi assim que o encontrou Landine, quando novamente foi ter com ele. Achava-o a seu gosto e esforçava-se por atrair a sua atenção,

Sempre com os livros, bonito loirinho!

- Não tenho nada que fazer.

- Sim, a patroazinha gosta de o fazer rabiar.

E acrescentou, misteriosamente, inclinando-se para ele:

- Parece que hoje não sou competente para lhe transmitir as suas ordens.

Como John não respondesse, a criada acrescentou, rindo:

- Quer ficar só consigo; mandou-me ao correio e dizer-lhe que suba.

- Mademoiselle chamou-me?

- Sim, vá ter com ela.

E como John fechasse o livro sem se apressar, Landine disse, com um sorriso zombeteiro:

- Não se faça esquisito, senhor motorista. A pequena Feijão é um bom bocado, com o qual muitos desejariam regalar-se. Tem inúmeros pretendentes!

- Não há-de ser tanto assim! respondeu John por fim, para não ficar calado.

- Aos montões! Pense no número de milhões que ela representa.

O rapaz arqueou as sobrancelhas.

- E ela prefere algum desses adoradores... de dotes?

A criada fez um gesto de ignorância:

- Segundo parece, nenhum! Flirtou com dezenas de rapazes, quando tinha dezassete ou dezoito anos, o que não teve importância, porque era muito garota e travessa. Agora, que está na idade de escolher marido, repele todos os partidos.

- Porque aquele a quem ama não a pede.

- É provável. Mas não o diz... E, se alguém o sabe, é certamente o senhor.

- Eu! Porquê?

- Acompanha-a a toda a parte...

- Mas fico à porta das casas onde ela vai..

- E vê, justamente, quais são os mais cuidadosos em a acompanhar ao carro.

- Pois olhe, confesso que nunca tive a curiosidade de examinar isso.

- Não? Poucas vezes! Que ingénuo você é! Se não quer ver é porque é cego.

- Ou porque sou ainda muito novo na casa para poder ter notado qualquer coisa dessas.

- É possível que desconfie de si. Mas raspo-me; há um quarto de hora que tagarelamos e ela vai ficar furiosa quando você lá chegar. Miss Feijão não gosta de esperar.

- Porque lhe dá esse nome?

- O quê! Não sabe? exclamou Landine, alegremente -, O pai era fabricante de conservas...

- E então?

- Não compreende? Você sempre me saiu um tanso! O pai, Couve fermentada, a mãe, Ervilha, e a garota, Feijão, eis a família Jourdan-Ferrières...

- Ah!

- Você, às vezes, não é lá muito esperto. Desta vez é que me vou embora! Até breve, querido loiro! Quando quiser ir ao cinema, pense em mim para o acompanhar.

E John viu-a afastar-se, ligeira e desembaraçada. Verificava que a criadagem parisiense era ainda menos respeitosa do que a de São Petersburgo.

*O pai, Couve fermentada, a mãe, Ervilha, e a garota, Feijão, eis a família Jourdan-Ferrières!+

Que ironia nestas três alcunhas, apesar dos múltiplos milhões que o antigo fabricante de conservas possuía!

Pela primeira vez sentiu um pouco de piedade por esses novos-ricos, que sofriam toda a vida o peso das suas obscuras origens.

Censura-se aos aristocratas o seu nascimento e antepassados, mas devemos ser mais severos para aqueles que, saídos do nada, dominam o Mundo à força dos seus milhões.

Era a segunda vez que John penetrava no palácio, tendo sido a primeira no dia em que Jourdan-Ferrières o contratara como motorista.

Micaela esperava-o com impaciência.

- Parece que não tem muita pressa! disse-lhe, secamente, quando o viu entrar.

- Tive que me informar onde era o seu quarto, mademoiselle.

- Diga antes que a conversa com Landine o interessava muito. Estava à janela e vi a tagarelice.

John nada respondeu; o que ela dizia era verdade. O seu silêncio exasperou Micaela.

- Naturalmente, estavam dizendo mal dos patrões. Conheço a minha criada, tem a língua comprida, e não deve ter cerimónias para os namorados.

No rosto do jovem Russo houve uma espécie de fadiga, por ter de se defender de tal assunto.

- Quando se tem de tratar diariamente com uma criada que não é de confiança, o melhor é mandá-la embora.

Aquele tom hostil surpreendeu Micaela.

- O que diz?

- Que é o caminho mais simples e mais digno, tanto para a ama como para a criada.

A milionária mediu-o de alto a baixo.

- Noto que se permitiu responder-me num tom inaceitável.

- Há suposições incompatíveis com a dignidade de um homem.

- Talvez, antes, com a virtude de Landine! Que bom defensor ela tem!

- Não creio que haja na minha atitude motivo que estabeleça essa confusão.

- Então de que falavam?

- Banalidades...

- Da tarde de ontem, provavelmente.

- Oh! protestou o rapaz, com indignação -, Se a palavra que há dias lhe dei não basta para a tranquilizar, que mais hei-de dizer?

- A sua palavra...

- Se não acredita nela, só me resta retirar-me.

E deu um passo para a porta. Micaela deteve-o.

- Peço-lhe que não tome a mal o que eu disse.

John parou, olhando-a duramente, esperando uma retratação mais clara. Mas Micaela, levando a mão à testa, onde um martelar sem descanso parecia concentrar-se, acrescentou:

- Passei uma noite atroz, por sua causa, John. Tinha a certeza de que não me trairia; mas é livre de contar os acontecimentos em que se encontrou envolvido sem querer.

- Não creio que a interpretação de uma palavra dada comporte tantas subtilezas. Garanti-lhe o meu silêncio, tê-lo-á.

- É para mim uma grande felicidade... Sim, um grande alívio, sentir a sua dedicação. Quero agradecer-lhe... Ontem foi correctíssimo. Tome, peço-lhe que aceite.

Estendeu-lhe uma nota de cem francos. O jovem Russo teve um estremecimento. Olhou para Micaela e depois para o dinheiro.

- Não me deve nada, mademoiselle; guarde a sua nota - disse, com ar contrariado.

- Não. Tome, insisto. Ainda vou ser obrigada a recorrer a si, e quero indemnizá- lo de todo o trabalho que lhe causo.

- Indemnizar-me com dinheiro?

Micaela fez um gesto embaraçado.

- Decerto que não posso dar-lhe um presente.

- Basta-me o seu agradecimento, mademoiselle.

- Mas não é o suficiente para mim - disse, com vivacidade -, Pago sempre, quando devo alguma coisa a alguém.

John sorriu vagamente.

- É lastimável que eu não esteja habituado a receber dinheiro por certos actos naturais num homem bem-educado.

Micaela esboçou com a mão um gesto um pouco cansado.

- Vamos, John, deixe-se de tolices. Aceite o que lhe é devido, e terminemos com isto.

O Russo não respondeu. Olhava-a e os seus olhos mergulharam nos dela, tentando compreender aquela alma de rapariga, desvirtuada pela sua enorme fortuna, a ponto de não poder admitir que houvesse coisas que se não podem pagar.

- Julga que tudo se vende? perguntou, secamente.

- Julgo que, quando se é rico, é um dever gratificar quem nos ajuda.

- E com o dinheiro paga-se a dedicação, a simpatia, a amizade, como se paga ao sapateiro ou à modista; como mais tarde se pagará o noivo que se escolher ou o marido que se quiser guardar...

Micaela recuou, ferida por esta reprimenda que nunca esperaria da impecável correcção do motorista.

- Sim, não compreende a minha revolta. Paga-me e é suficiente.

Dominava mal o seu arrebatamento perante tão afrontosa insistência.

De repente, decidiu-se, com uma raiva concentrada:

- Está bem, mademoiselle Jourdan-Ferrières, pague-me então, visto que além do dinheiro nada mais há para si no Mundo. Aceito o seu dinheiro.

- Muito lhe agradeço, é melhor assim.

E estendeu-lhe a nota de cem francos.

John, afastando a nota, disse com desprezo:

- Não é com esta irrisória quantia que conta ficar quite comigo, penso eu. Salvei-lhe a honra e talvez a vida, porque aqueles homens, que a desejavam, talvez se tivessem entregue a violências se não se prestasse de boa vontade aos seus desejos! Parece-me que a honra e a vida de mademoiselle Jourdan-Ferrières valem mais de cem francos!

E como Micaela, interdita, o olhasse sem responder, acrescentou, com voz fremente de ironia:

- Não é essa a sua opinião, visto que deseja tão lealmente pagar as suas dívidas?

- Quanto quer? perguntou, perturbada, pegando na malinha que estava em cima da mesa.

- Ponha essa mala de parte, porque, certamente, não contém o bastante para pagar a honra de uma rapariga.

Micaela esboçou um gesto, mas replicou com altivez:

- Indique a quantia, pedi-la-ei a meu pai.

- A quantia? Posso lá saber em quanto se avalia! Qual é, precisamente, o valor venal de mademoiselle Jourdan-Ferrières? A falar a verdade, vendo-a tão bela, altiva e orgulhosa, creio que metade da fortuna do seu pai, se não a totalidade, não seria de mais para a salvar das mãos daquelas distintas personagens de ontem.

- Proíbo-o de fazer tal suposição!... exclamou, furiosa -, Sou uma rapariga honesta...

- E eu um homem honrado, mademoiselle. Peço apenas o que é devido, visto que me quer pagar.

Micaela soltou uma gargalhada.

- Deixei-o falar, para ver até onde o levava o seu raciocínio... Foi bem formulado, o seu cálculo... Peca apenas por uma coisa...

- Qual é?

- Que estou aqui, de boa saúde, e já não temo os bandidos de ontem. Se me quiser indicar uma quantia razoável, pago imediatamente: a minha honra não tem valor venal, como diz! Mas se por acaso se mostrar muito exigente, dir-lhe-ei: passe muito bem, e não apanha nada.

- Mas era justamente o que eu desejava que me dissesse. Há pouco afirmei-lhe que não me devia nada, mademoiselle...

Conservou-se em frente dela, risonho, mas tão correcto e respeitoso que Micaela não podia zangar-se.

Durante um minuto sentiu que aquele rapaz era verdadeiramente de uma raça diferente da sua, e no rosto transpareceu-lhe breve emoção.

- O senhor não é um motorista vulgar, John! Creio que questionaremos muitas vezes.

- Talvez porque a mademoiselle só quer ver em mim o motorista.

Micaela hesitou e tornou-se, de repente, muito feminina.

- E... quem me prestou, ontem, aquele serviço?

- O homem, certamente.

Uma vermelhidão invadiu o rosto da milionária, que ficou um pouco pensativa. Sabia que, depois da revolução, muitos membros da boa sociedade russa tinham que trabalhar para viver, e John podia, talvez, ser de boa família. Mas não quis entrar nessas considerações.

- O homem? Não quero conhecê-lo... Ignoro-o. Não poderia interessar-me - disse, com firmeza.

- Então, tanto pior, porque será ele quem encontrará, sempre que queira apelar para a minha boa vontade.

- Não conheço se não o meu motorista, o excelente motorista que meu pai pôs à minha disposição.

O Russo inclinou-se, sorrindo.

- Às suas ordens, mademoiselle...

- E é por isso que lastimo que esta questão de...

Procurava a palavra a empregar, para não o ferir.

- Essa questão de dívida - disse ele, com seriedade.

- Sim; sinto que não fique regularizada entre nós.

- Ficará para depois... Já falei numa grande quantia, a totalidade de uma fortuna, creio eu! Por muito que eu faça, creio que não podia pedir mais.

Micaela riu, desarmada pelo exagero.

- A menos que não queira, ainda por cima, a minha cabeça! Você é um terrível credor, John!

Dizendo isto, estendeu-lhe espontaneamente a mão, para o despedir:

- A sua cabeça?... Não!

Conservava entre as suas a mãozinha de Micaela, e examinava-a.

- Meu Deus, como é bem feita e linda, a sua mão, mademoiselle. Uma rainha não a teria mais bonita!

Curvou a alta estatura e poisou, respeitosamente, os lábios nos dedos esguios.

Já ele saira, e ainda Micaela, espantada, olhava para a mão. Não se admirava desse beija-mão tradicional entre os Russos de boa educação, mas contemplava os dedos brancos de unhas cor-de-rosa.

*Tem a mão bonita e bem feita... como a de uma rainha!+

Não sabia se havia de se regozijar com o cumprimento do homem ou ofender-se com a audácia do motorista.

 

Micaela dissera:

- Vá por Saint-Cloud e Versalhes, ao Vale de Chevreuse; paremos ali, em qualquer recanto solitário.

E pouco depois já estavam a meia encosta de um caminho retirado, trepando, à direita, por uma ladeira orlada de grandes árvores.

Parado o automóvel, sentaram-se à beira de um talude, com as costas para a estrada, tendo aos pés o vale; os seus olhos podiam seguir, por cima das moitas e das raízes emaranhadas no declive, a estrada, que se prolongava indefinidamente.

- Já pensou, John, na promessa que fizemos, outro dia, àquele desgraçado?

- Já pensei, mademoiselle. Não precisava que me lembrasse a execução dos seus desejos.

Micaela fez esta observação, num ímpeto quase involuntário:

- Antes de tudo, não quero agir pessoalmente.

- Contava com isso - disse o rapaz, com simplicidade.

Depois, com uma hesitação misturada de solicitude, continuou:

- Peço-lhe, mademoiselle, que me responda, mesmo que eu seja indiscreto. É apenas por si que receava ver o seu interesse descoberto?

- Porquê?... Porque me pergunta isso?

- Para desviar o perigo da cabeça que está ameaçada.

- Não há perigo nenhum, nem ninguém ameaçado - respondeu ela, com orgulho, e acrescentou com simplicidade -, São lágrimas e aflições que eu receio... para mim... e para alguém que me é muito querido...

Escondeu o rosto entre as mãos, para não deixar ver as lágrimas que subitamente lhe encheram os olhos. John olhou-a silenciosamente, e uma ruga lhe vincou a testa.

Micaela dissera:

*Para alguém que me é muito querido...+. E John procurou adivinhar quem poderia ser esse alguém. Por fim, afastou o pensamento importuno.

- Trabalharei só por si, porque não quero vê-la chorar - disse, sem dar conta do ousado tom em que falara, e continuou, mais suavemente -, O seu nome não será pronunciado, e ninguém poderá pensar em si. Contar-lhe-ei o que se passar, e dir-me-á se procedi como desejava.

Micaela levantou a cabeça e olhou-o com mais benevolência.

- É preciso tirar aquele homem de semelhante antro, instalá-lo noutro sítio, limpo, e arranjar alguém que o trate... Enfim, fixar uma mensalidade, sem que seja preciso andar atrás dele para a realização deste plano.

- E se esse plano se executar, ficará livre da obrigação que contraiu com esse homem?

- Sim... completamente.

- Então, prometo-lhe que assim se fará.

A jovem milionária estendeu-lhe a mãozinha, num rasgo de gratidão.

- Permitirá Deus que eu não venha a lastimar a confiança que depositei em si?

- Duvida? - disse John, chegando os dedinhos aos lábios quentes.

- Não sei. Metendo-o neste negócio, obedeci a um sentimento mais forte do que a minha vontade: o medo: E em quem podia eu ter confiado? Fosse qual fosse dos meus amigos, teria feito suposições sobre a minha filantropia... A si, pouco me importava! Podia admirar-se, acaso, de me ver exercer a caridade em favor de um desgraçado?

John pensou, consigo próprio, que se admirara. E que as reflexões íntimas que fizera, outros as poderiam ter feito igualmente. Mas não quis desiludi-la com tais observações.

Então, Micaela continuou:

- Foi preciso uma quadrilha de apaches para modificar os meus planos. O senhor censurou-me, não gostou de se encontrar envolvido neste caso; tive que lhe pedir desculpa... As palavras são como as cerejas... e agora estou à sua mercê.

Suspirou dolorosamente, como se a situação lhe parecesse complicada.

- Não está à minha mercê - replicou o Russo -, Tem o direito a todo o meu respeito.

- Agradeço-lhe a afirmação.

O tom em que Micaela falara não era sincero, porque John retorquiu asperamente:

- Se duvida dos meus sentimentos, tranquilize-se; vou-me embora, nunca mais me verá. Afirmo-lhe, pela memória de minha mãe, que é tudo quanto há de mais sagrado para mim, que nunca mais ouvirá falar a meu respeito.

Aquela voz firme e decidida deu coragem a Micaela.

- Não, não me abandone. Agora conto consigo... e, se ao menos tivesse querido aceitar uma gratificação, ficaria mais satisfeita.

- Não vejo a razão.

- Quando está em jogo o interesse das pessoas, conta-se com elas mais facilmente.

- Pois bem, mademoiselle Jourdan-Ferrières, habitue-se à ideia de que pode contar com Alexandre Isborsky, sem necessidade de lhe prometer qualquer recompensa.

- Não quis magoá-lo - protestou ela.

- Então, se não tem intenção de ser agressiva comigo, nunca me fale em dinheiro.

- Mas para que é esse desinteresse comigo? Sou rica e posso pagar os serviços que me prestam.

- O que me pede é de categoria especial! Trata-se de uma missão de confiança. Se duvida de mim, acabou-se, e não se fala mais nisso.

Micaela fitou-o e, depois, em tom mais suave, notou:

- Como é arrebatado! Nunca vi ninguém tão susceptível.

- É que talvez, sem o saber, tenha afastado de si aqueles que tinham direito a sê-lo.

- Se o senhor pertencesse à minha sociedade, a filha de meu pai não se ofenderia com as suas palavras.

O Russo mordeu os lábios para não responder, porque não queria ser descortês.

Micaela lançou-lhe um olhar de través.

- Mais uma vez o fiz zangar, John!

Porquê? Disse bem: não pertencemos à mesma sociedade!... E há um grande abismo entre nós!

Apesar do tom correcto, Micaela teve a impressão de um infinito desdém, mas, certamente, o seu motorista não queria exprimir-lhe tal coisa.

Não era ela a formosa Micaela Jourdan-Ferrières, a herdeira de múltiplos milhões, diante de quem todos se curvavam?

E ficou mergulhada em pensamentos que pareciam alheá-la do resto do Mundo.

Em volta deles tudo ia escurecendo. No campo ia-se estendendo a bruma crepuscular. Grandes nuvens negras deslizavam pelo céu, enchendo subitamente de sombras os pontos mais claros. Ao mesmo tempo, desencadeou-se um vento violento, levantando a poeira e as folhas em turbilhão de tempestade.

A atenção de John foi atraída por esta ameaça atmosférica.

- Mademoiselle, a tempestade aproxima-se. Seria prudente irmo-nos embora.

Mal tinham chegado ao carro quando uma verdadeira tromba de água começou a cair.

Num momento, formaram-se regatos e tiveram que caminhar debaixo de grossas bátegas de água e sob a deslumbrante claridade dos relâmpagos, que parecia persegui-los.

Apanhados no meio do ciclone, tendo à volta árvores desenraizadas, chaminés caídas, muros deitados abaixo, deveram apenas a sua salvação ao sangue-frio com que o Russo guiou o automóvel, levando-o para um abrigo natural entre dois taludes escarpados, onde puderam arrostar o furor do vento, que passava em turbilhão desencadeado por cima das suas cabeças.

John não pensou em voltar para casa se não quando o furacão abrandou. Levou duas horas para alcançar Paris, pelas estradas devastadas, mas o automóvel chegou sem uma arranhadura e Micaela bem disposta.

No palácio da Avenida Marceau os criados já estavam inquietos e Jourdan- Ferrières correu para a filha assim que a viu aparecer.

- Minha querida! Que mau bocado me fizeste passar! Saber-te sozinha, em qualquer sítio, no meio da tempestade e da noite, ia-me endoidecendo.

- Mas, meu pai, eu não estava só - explicou gentilmente, beijando-o -, Quando eu estiver com John, não se inquiete: é um motorista admirável e com um sangue-frio maravilhoso. Asseguro-lhe que pode estar sossegado.

O pai voltou-se para o Russo, que despia nesse momento o casaco molhado.

- Ouviu o que minha filha pensa a seu respeito, meu amigo? O senhor é admirável!

- Não creio ter feito qualquer coisa extraordinária - respondeu o rapaz, modestamente -, Tinha obrigação de trazer o carro em bom estado, e foi tudo questão de mais ou menos tempo.

- Sim, era preciso olhos alerta! Vou dar-lhe cem francos de recompensa, meu amigo. Procure-me amanhã.

Micaela começou a rir.

- Está contente, John? exclamou, com ironia. E, sem lhe dar tempo a responder, acrescentou:

- A sua habilidade profissional está colocada numa categoria especial ou também é uma missão de confiança?

John sorriu, e, com placidez, respondeu:

- Aceito, com prazer, a gratificação de seu pai, mademoiselle. É dada ao profissional.

- Bem. Vou tentar esta noite fazer o distinguo.

- Não vale a pena... e perderia inutilmente o tempo destinado a dormir.

Micaela deu um passo para ele, e, com os olhos flamejantes de cólera, disse a meia voz:

- Porque sou muito estúpida, não é verdade? O Russo protestou, com vivacidade:

- Porque não quer compreender-me.

- É deveras espirituoso apresentar-se como um homem incompreendido!

Perante o olhar brilhante que o fixava, John voltou a cabeça, preferindo não responder.

- Segundo parece, esgotaram-se-lhe os argumentos!

E o seu riso irónico fustigou-o cruelmente.

- Que deseja que lhe responda? Estou ao seu serviço, mademoiselle; já há pouco tomei a liberdade de lho lembrar.

- Não julgue que o esqueço!

E, afastando-se, deu a volta ao carro, que estava coberto de lama. Depois, bem alto, para ser ouvida, exclamou:

- John, o automóvel está num estado deplorável!

- Mas, minha filha, a pressa não é grande - protestou Jourdan-Ferrières, já no alto da escadaria.

- Dê-me licença, meu pai. Não quero que o meu carro fique esta noite neste estado. John que o lave antes de sair; na garagem só amanhã o fariam.

John, fingindo não ter percebido aquela ordem, voltou-se para Mathieu Belland, motorista de Jourdan-Ferrières e interpelou-o:

- Olha lá, Mathieu - disse, com simplicidade, sem baixar a voz -, Este passeio, debaixo da tempestade, quebrou-me os nervos. Estou cansado. Dou-te a gratificação que me prometeram, se quiseres lavar o carro e metê-lo na garagem.

- Está entendido, meu velho. Bem mereces descansar esta noite. Vai comer, meu amigo; quando acabares, já o trabalho estará pronto, e irás deitar-te.

Micaela, estupefacta, ouvia os dois homens. Sob a bonomia aparente das palavras proferidas por John, sentiu a censura que lhe faziam. Por momentos teve tentações de intervir e exigir que o carro fosse lavado por quem era responsável por ele, mas encontrou o olhar impassível do jovem Russo e, aborrecida, furiosa, afastou-se, esforçando-se por parecer indiferente ao que acabava de passar-se.

 

No dia seguinte, Micaela desceu muito cedo. John ainda não tinha chegado, mas Mathieu Belland tinha trazido para o pátio os dois automóveis, que brilhavam como um espelho.

- Foi você quem limpou ontem o meu carro, Mathieu?

O motorista olhou para ela, sorrateiramente.

- Creio que não foi crime ajudar um camarada cansado.

- Fez bem, é claro; mas meu pai não quer que o seu colega fique sem a gratificação que lhe prometeu.

- Isso agora é mais difícil de conciliar...

- Não tanto como imagina. Meu pai encarregou-me de lhe entregar esta nota de cem francos, que John lhe prometeu, mas quando ele lhe quiser dar o dinheiro, dir- lhe-á que o patrão já liquidou essa dívida.

- O senhor é muito generoso e agradeço...

Esta pechincha era tão inesperada que gaguejava ao agradecer.

- Meu pai é muito bom, nunca o esqueça, Mathieu - disse Micaela, com autoridade -, serve um patrão muito justo, o qual deseja que o pessoal esteja contente em sua casa.

- Não há dúvida de que é um bom patrão - disse o motorista, convicto.

A gratificação recebida enchia-lhe a alma de alegria.

- Agora vou falar com o meu pai. É preciso que patrões e criados conheçam mutuamente os seus sentimentos.

E afastou-se serena, enigmática, o rostozinho impenetrável, não deixando perceber o menor pensamento.

- Paizinho! Está disposto a receber a senhora sua filha?

E metia a cabeça garota pela porta do gabinete de trabalho do pai. O antigo fabricante de conservas estendeu-lhe os braços.

- Vem cá, pequena. Não me favoreces muitas vezes com as tuas visitas. Há meses que não conheço carícias tuas.

- Venho ralhar-lhe, meu pai - declarou ela, beijando-o e sentando-se-lhe nos joelhos.

- Porquê?

- Porque ontem não foi galante com John.

- Como?

- Vexou-o!

- Essa agora! Tu é que...

- Eu não conto. Mas consigo o caso é mais grave.

- Não me lembro.

- Recorde-se: ofereceu-lhe cem francos.

- E tu devias fazer esta manhã a mesma coisa a Mathieu.

- Sim, mas com este o caso é diferente. Creio que se lhe dessem cem francos desde manhã à noite, ele aceitaria sem se cansar!

O pai soltou uma gargalhada.

- Estou convencido disso!

- Pois bem! Com John não se dá a mesma coisa.

- Trabalha, então, por amor à arte?

- Não digo isso. Mas é preciso saber oferecer-lhe.

- Hum...

- Sim... e bem vi que, ontem à noite, o vexou.

- Não era essa a minha intenção.

- Estou persuadido disso, mas compreende, meu pai, não se oferecem assim cem francos ao admirável motorista que vos traz uma filha sã e salva debaixo de espantoso ciclone. Os jornais de hoje falam em muitas vítimas.

- Vejo agora que não é bastante. Devia ter-lhe oferecido o dobro.

- Sim... ou cem mil francos, ou um milhão! Com o John nunca se sabe ao certo o que é preciso dar-lhe.

- Que dizes?... Tu estás doente?

E o pai, estupefacto, afastou-a um pouco de si, para a ver melhor.

- O meu pai já pensou quanto eu valho?

- Quanto vales?

- Ontem à noite, quando me esperava, cheio de inquietação, se lhe tivessem pedido um milhão para me evitar um acidente, tê-lo-ia dado sem discutir... por isso, compreende agora?

- Compreendo que estás a mangar comigo há cinco minutos.

- Afirmo-lhe que estou séria! O quê! acha que um milhão é muito para pagar a vida da sua filha?

- Mas, querida, eu dava vinte milhões, toda a minha fortuna, se te ameaçasse qualquer perigo! Como poderia eu passar sem a minha adorada Micaela? exclamou Jourdan, subitamente comovido Foi por tua causa que quis ser rico, minha filha, e preferia perder tudo quanto possuo a ficar privado de ti!

- Pois é isso mesmo - ripostou Micaela com um sorriso encantador -, Conheço alguém que me avalia exactamente assim... Com a diferença de que não é a sua fortuna que está em jogo, é a de outro - acrescentou com um risinho gaiato.

- E... quem é esse alguém?

Subitamente, o pai pensou num possível marido, mas Micaela moveu a cabeça e respondeu:

- Uma pessoa que o pai aprecia pelo seu justo valor. Um ser, o mais desagradável possível... Mas, apesar disso, apresenta-se bem, raciocina como o pai, a meu respeito.

- Tanto melhor e fico muito satisfeito com isso - disse o milionário, a quem aquele tagarelar ligeiro começava a cansar -, E agora, minha filha, deixa-me sossegado. Estou encantado por termos conversado um bocadinho; mas preciso de ver a minha correspondência.

- E John?

- Dar-lhe-ei o dobro, está entendido?

- Então não julgas que um milhão?... insistiu Micaela, sufocando o riso, apesar de desejar estar séria.

- A brincadeira já dura de mais.

- É pena, porque me divertia. Há uma hora que estou alegre como um canário.

E, rodeando o pescoço do pai com abraços, falou-lhe ao ouvido, explicando-lhe longa e minuciosamente qualquer coisa.

O pai admirava-se, queria protestar, mas ela, a cada protesto, fechava-lhe a boca com um beijo. Por fim, desprendeu-se-lhe dos braços, tirou os óculos para melhor poder olhar a filha, cujos grandes olhos suplicavam.

- Vamos, acaba, visto que não me deixarás tranquilo sem te ter feito todas as vontades.

- Bem; quando lhe tiver dito muito mal de mim e tiver louvado as suas qualidades como merecem, anunciar-lhe-á, pomposamente, que, conhecendo o seu valor, lhe eleva o ordenado a quatro mil francos por mês.

Jourdan-Ferrières deu um pulo.

- Quanto disseste?

- Quatro mil francos.

- É insensato.

- Então, se o prefere, cinco mil!

- Mas não há motorista algum que tenha esse ordenado!

- Perdão, paizinho! Todos os motoristas das minhas amigas têm importantes gratificações. Comigo, John não tem nada. Não ponho o meu carro à disposição de ninguém, e ele não faz recadinhos... por vezes muito produtivos. Com uma patroa como eu, que não gosta de bilhetinhos ternos, nem de entrevistas clandestinas, o pobre rapaz conta apenas com o ordenado.

- Está bem; devo dar-lhe um ordenado de deputado.

- Sim; quero ficar com ele. Todas as minhas amigas mostram inveja de que eu tenha um rapaz tão distinto ao meu serviço. Molly está disposta a oferecer-lhe cem mil francos por ano, para mo roubar. Ora eu quero que ele fique aqui. Seria humilhante que nos deixasse por uma questão de dinheiro, como se fôssemos pobretões.

- Está bem, não falemos mais nisso. O teu motorista terá os seus quatro mil francos.

- Pai, combinámos cinco mil!

Jourdan-Ferrières resmungou:

- Hão-de chamar-me imbecil por oferecer esse ordenado a um motorista.

- Não diga isso! Parecerá um milionário americano que paga generosamente ao pessoal.

- És uma feiticeira! Bem, agora desaparece, porque já tens o que querias, e preciso de trabalhar.

- Não dirá a John que foi ideia minha!

- Não direi.

- Jura?

- Sim, diabrete. Posso, acaso, ir contar que a minha filha perdeu o senso comum, por causa de um motorista que as amigas lhe invejam?

Quando fechou a porta do gabinete do pai, Micaela parou subitamente séria, como se tivesse arrancado uma máscara do rosto. Com as mãos cruzadas sobre o peito, no gesto pueril que lhe era habitual quando estava comovida, murmurou:

* Há-de receber o meu sujo dinheiro, esse senhor a quem não posso compreender+.

E nos olhos negros, que olhavam sem ver, passou um clarão de triunfo.

 

John chegou deveras tarde nessa manhã. Mathieu viu-o, com espanto, saltar de um táxi e pagar a corrida.

- Mademoiselle perguntou por mim? informou-se imediatamente.

- Não. Veio até cá abaixo, mas não se informou a teu respeito.

- Tanto melhor! Então, não tornou a falar na lavagem do carro?

- Sim, mas para me dizer que tinha feito muito bem em te ajudar.

- Óptimo!... Ah! É verdade! Devo-te cem francos, que o senhor Jourdan-Ferrieres prometeu dar-me.

- Não te rales, meu velho. Já me deram a massa, e parece-me que o tio Couve Fermentada te reserva igual quantia.

- Como é isso?

- O patrão não quer privar-te da gratificação e acha que negócios são negócios... Por isso... compreendes...

- Veio dizer-to?

- Não! Foi a garota Feijão quando me trouxe a maquia.

- Ah! Foi mademoiselle...

Não disse mais nada, mas vincou-se-lhe uma ruga na fronte pálida. Andara toda a manhã em serviço de Micaela. Porque se metia ela, na sua ausência, com o que lhe dizia respeito?

*Evidentemente, tem que me atirar à cara os seus cem francos. Se julga que os irei pedir ao pai.,.+.

Nesse momento estava deveras furioso contra Micaela.

*A garota Feijão, como lhe chamam, é teimosa!

Nesse momento, um criado gordo e imponente veio preveni-lo de que o senhor Jourdan-Ferrières o esperava no escritório. John fez repetir o recado, supondo ter ouvido mal.

- Apenas o tempo de lavar as mãos - disse, sem se apressar.

Ficou olhando para o homem, que se afastava, perguntando a si próprio que mais lhe seria ainda preciso suportar, porque sentiu uma impressão desagradável com a ordem recebida.

*É difícil servir os outros - pensou - Principalmente quando não se está habituado. Mas, se me aborrecer muito, vou-me embora+.

E, de mau humor, dirigiu-se para o gabinete do antigo fabricante das conservas. Ao atravessar o pátio não pôde deixar de olhar para os aposentos de Micaela.

*Decerto está espreitando, por detrás do cortinado+ supôs.

Mas, mais senhor de si, continuou a monologar:

*Vamos, meu amigo, não vás agora ligar importância aos actos e gestos de uma garota mal-educada. Não tens muito trabalho, és livre; para alguns meses, é quase uma sinecura!+

Conduziram-no à presença de Jourdan-Ferrières quase sem o fazer esperar. Viera em cabelo, tendo horror a estar de boné na mão, preferindo deixá-lo no seu lugar quando previa que devia conservar-se descoberto.

- Preciso de falar-lhe, meu amigo - disse o milionário, que, antes de continuar, o examinou.

Viu-o alto, elegante, bem-posto, com o fardamento cuidado. Trazia roupa bem engomada, gravata da moda, sapatos lustrosos. Na realidade, não era um motorista vulgar.

*Minha filha tem razão - pensou -, Este rapaz é soberbo! Fica bem ao volante um homem assim!+

No seu orgulho de milionário, que pode pagar, para si e para os seus, todos os luxos, não pensou que aquele homem era atraente de mais para acompanhar uma rapariga de vinte anos, e que as invejas das amigas de Micaela podiam ter diferentes interpretações.

Se alguém de outra época, principalmente de outra mentalidade, lhe fizesse semelhante observação, responderia de boa fé que todos os milhões que a filha tinha a punham ao abrigo de reflexões femininas e audácias masculinas.

Mas nem sequer pensou em tal. Pelo contrário, ficou lisonjeado por sua filha ser bastante rica e, poder pagar a um motorista tão aristocrático.

- Reflecti, e não vou dar-lhe a gratificação que lhe prometi.

- Nada pedi, senhor - respondeu John, impassível, se bem que esta entrada no assunto lhe fizesse prever coisa pior.

- O senhor vale mais do que essa quantia irrisória - continuou o milionário -, É hábil, tem nervos e sangue-frio; felicito-me por poder dar-lhe o seu justo valor.

- Muito obrigado!... balbuciou o jovem Russo, com aspecto surpreendido.

- Além disso, tenho uma filha... hum!... uma rapariga encantadora... e se bem que a tenha amimado abominavelmente, tem um coração de oiro, adoro-a!

John não se mexeu, apesar do seu enorme desejo de rir, e perguntava a si próprio o que tudo aquilo queria dizer.

- Ora foi a si a quem a confiei - continuou o milionário -, É uma terrível responsabilidade. Deve ter compreendido o que exijo.

- Sei cumprir o meu dever - afirmou John, pensando que, em muitas circunstâncias, tinha que satisfazer os caprichos de Micaela.

- Sim, bem sei que é correcto, e minha filha aprecia-o muito.

Deteve-se um momento, procurando o que lhe restava dizer.

- Sim...

Coçou a cabeça. Era realmente estúpido oferecer tal ordenado a um rapaz que se contentava com mil e oitocentos francos por mês. A sua hesitação não escapou ao motorista, que continuava a perguntar a si mesmo onde queria ele chegar. Mas Jourdan-Ferrières era como Micaela e não hesitou por mais tempo.

- Por isso vou recompensar a sua tarefa: de hoje em diante receberá cinco mil francos por mês...

- O que diz o senhor? perguntou John, estupefacto.

- Cinco mil francos por mês, meu amigo! Vale-os bem... Você é admirável... e... diga-me... fica contente?

- Até por muito menos, mas pergunto a mim mesmo...

- Não pergunte nada... É tudo quanto há de mais natural pagar o mérito pelo seu justo valor.

- Estou deveras confuso, e agradeço...

- Conto consigo... minha filha também... não é verdade?... Fica à sua responsabilidade... Adeus, meu amigo, sinto enorme satisfação em poder fazer-lhe justiça!

John afastou-se, espantado.

No momento em que chegava à porta, Jourdan-Ferrières chamou-o.

- Olhe lá, John, não é verdade que minha filha é insuportável e lhe dá muito trabalho?

No rosto do rapaz apareceu um sorriso. Mas, obrigado a dar a sua opinião, respondeu apenas:

- Mademoiselle é encantadora.

- Foi muito mal educada e abusa demasiado.

- Então - disse John, suavemente -, admitamos isso, mas o que é certo é que ninguém pode estar zangado com ela por muito tempo.

A fisionomia do milionário transformou-se. Chegou-se ao motorista e disse, batendo-lhe amigavelmente no ombro:

- O que acaba de dizer deu-me muito prazer, John. Desagradava-me que ficasse aborrecido com essa garota... e ontem à noite... realmente, ontem à noite, ela abusou um pouco...

Quando o jovem Russo se encontrou só, no vestíbulo, fez como Micaela uma hora antes; parou e mudou de aspecto.

É fantástico! Cinco mil francos por mês! Que sorte!

Mas, de repente, suspeitou de Micaela.

- Seria ela quem obteve isto do pai, acusando-se, talvez? Se assim foi, conseguiu que eu receba o seu dinheiro.

Um sorriso distendeu-lhe as feições.

- Encontrou o meio de mo fazer aceitar... e, desta vez, bem melhor! Quase bem...

Mal chegara à garagem, apareceu Micaela.

- Que há de novo?

- Por enquanto, nada, mas dentro de quarenta e oito horas devo ter uma solução.

- Muito bem! Tanto melhor!

Mandou seguir para a igreja de São Pedro de Chaillot, onde ficou apenas o tempo necessário para fazer curta oração. Depois, com o mesmo modo reservado e vago que tomara nesse dia, deu ordem para voltar para casa.

John pensou que lhe pagavam cinco mil francos para suportar estes caprichozinhos.

- Vamos! Pare! Espere! Gire! Volte para casa! O trabalho não era grande, apesar dos ares importantes que a patroa tomava. E, como era optimista, pensou nela com indulgência.

*É difícil perdoarem-nos uma grande fortuna! E como nem todos os caracteres são iguais, é preciso uma grande psicologia para o conseguir. A pobre pequena não é feliz comigo, nesse ponto!+

E lembrou-se de Micaela lhe ter dito que ele tinha mau génio.

*Talvez seja verdade! Ninguém se conhece. Acho-a insuportável e cheia de orgulho... E sou, sem dúvida, mais orgulhoso ainda!+

Quando a ajudou a descer do automóvel, disse-lhe, meio sério, meio zombeteiro:

- Muito obrigado, mademoiselle...

- De quê?

- Pela delicadeza de seu pai.

- Bem! Então sempre deu seguimento ao seu projecto?

- Graças a si, que generosamente lho sugeriu.

Arriscou esta audaciosa suposição, quase certo de não se enganar.

Micaela, que não sabia bem como o pai cumprira as suas recomendações, não ousou negar abertamente.

- Meu pai queria recompensá-lo; aconselhei-o...

- Já o supunha - disse John, sorrindo.

- Sim, mas oiça: ele não me quis atender! Disse-lhe que lhe oferecesse um milhão, ou vinte, ou cinquenta! Nem sei! O senhor impediu que me afogasse no Bièvre e, graças ao seu sangue-frio, evitou todos os escolhos da estrada. Isto merecia uma fortuna, não é verdade?

- Julgo que está a brincar! retorquiu John, já revoltado com o sarcasmo.

- Não! Não esqueci os seus argumentos; a vida da filha de meu pai não tem valor possível... ou antes, é incalculável! Empreguei toda a minha eloquência em lhe explicar o caso. Pois talvez não acredite! Riu-se muito e não compreendeu!

- Acredito!

Custava-lhe a aguentar o riso. A impertinência de Micaela não lhe passava despercebida, mas a ideia de que ela retivera as suas reflexões alegrava-o.

- Então - continuou a rapariga, com convicção -, o paizinho deu-lhe um milhão?

- Não. Mas, como nos contos de fadas, ofereceu-me a mão de sua irmã, mas não aceitei.

Micaela deu um pulo.

- Não tenho irmã.

- Pareceu-me...

Olhou-o, estupefacta, e compreendeu que John troçava. Sentiu uma cólera imensa, mas viu-o tão calmo e até risonho, que percebeu a tempo que ia cobrir-se de ridículo se se zangasse por um gracejo, talvez medíocre em relação ao seu.

- Foi muito inteligente em recusar - disse, esforçando-se por sorrir.

- A sua aprovação lisonjeia-me.

- Hoje, as rainhas não casam com os pastores.

- O que é, algumas vezes, uma felicidade para eles...

Os olhos negros faiscaram.

- Julga a resposta inteligente e delicada, John? O rapaz não pôde conter o riso.

- Tem razão; é absolutamente idiota, principalmente para quem ignora o meu invencível desprezo pelo casamento.

A cólera de Micaela desfez-se. Interessada subitamente pelas palavras do Russo, perguntou:

- Não é casado?

- Não, mademoiselle...

- Celibatário?

- Celibatário impenitente!

- Não sei quem me afirmou que John tinha companheira...

- Não é verdade. Vivo e tenho vivido absolutamente só.

- Mas viram-no já com uma rapariga muito distinta...

Falava ao acaso, dizendo mentiras para apanhar verdades.

O rosto do jovem Russo denotou espanto. Fez um esforço de memória para saber a quem ela se referia. E, depois de uns segundos de reflexão, respondeu:

- Não afirmo que nunca saísse com uma rapariga.

O que posso garantir é que não há mulher alguma misturada nos meus projectos de futuro.

- O pastor espera a rainha?

- Seria preciso que ela fosse, de facto, muito bonita para me prender... Já lhe afirmei o meu desejo de absoluta independência.

- Sim! Uma linda mulher... rica! arriscou Micaela, sem saber que demónio a impelia a falar assim.

John estremeceu. Porque fazia Micaela uma tal suposição?

- Creio que seria melhor elevar uma pastorinha até mim.

- Desejo-lhe muita felicidade e bem-estar, com a sua flor campestre.

Por momentos, olharam-se curiosamente, como camaradas a quem o acaso aproximasse e que, tendo emitido ideias gerais, percebessem a distância que os separava.

Foi Micaela quem primeiro rompeu o silêncio:

- Vamos, são horas de almoço e tenho apenas o tempo indispensável para me preparar. Pode dispor da tarde; hoje não saio.

E, como se o tal demoniozinho que a obrigava a tagarelar não tivesse dito a última palavra, acrescentou:

- Esta tarde há grande recepção no palácio; meu pai apresenta-me a um dos melhores partidos do Mundo.

Uma sombra passou pelo rosto do jovem Russo, extinguindo-lhe fugitivo sorriso.

- Uma fortuna colossal!...

- Desejo-lhe um pouco de felicidade com ele, mademoiselle - disse, suavemente.

Havia tanta sinceridade neste simples voto que a rapariga afastou-se, repentinamente entristecida, a ponto de se lhe cravar uma ruga na fronte.

- Felicidade?!

Era fabulosamente rica. Mas permitir-lhe-ia esse dinheiro comprar tudo quanto quisesse? A impressão que sentia na alma não se dissipava. Sim, compraria tudo... tudo quanto se pudesse comprar com dinheiro... Mas a felicidade?...

Num momento, teve uma fulminante revelação. A felicidade nunca a teria, porque é a única coisa que não pode comprar-se! E na esplêndida habitação onde acabava de entrar, Micaela sentiu-se terrivelmente pobre... mais pobre do que o mais humilde dos servos, cujos risos alegres ressoavam, por vezes, nos seus aposentos doirados.

 

Micaela perguntara, na véspera, a John:

- Sabe montar a cavalo?

- Sim, mademoiselle...

- Pouco ou muito bem?

- Bem.

- Tinha a certeza: Molly Burke também ontem dizia isso... Talvez não saiba, mas a sua cara é de quem sabe montar a cavalo.

John sorriu.

- Seria mais natural que fossem as pernas - respondeu, um pouco trocista.

- Sim, eu bem sei o que digo. O seu aspecto é desportivo.

Parou um pouco e continuou:

- Gostaria de me acompanhar, amanhã, ao Bosque? Estamos em meados de Março, e daqui em diante é delicioso passear sob as árvores do Bosque de Bolonha!

- Se assim o deseja, estou à sua disposição, mas... Hesitou, perguntando a si próprio o que diria Jourdan-Ferrières deste novo programa.

- Seria melhor perguntar a opinião de seu pai - permitiu-se dizer.

- O papá é sempre da minha opinião.

- Contudo, seria preferível...

- Mas porquê?

- O senhor Jourdan-Ferrières contratou-me como motorista; talvez não goste que eu saia das minhas atribuições.

Pensava que não era próprio Micaela passear com um cavaleiro tão novo ainda. Mas esta respondeu, imperturbável:

- Mas que tem meu pai com isso? Só quer saber se estou ou não contente.

*De resto - pensou John -, não devo ser eu quem há-de ensinar a esta rapariga a reserva que compete ao seu sexo. Não devo ser mais papista que o papa+.

- Então, está entendido, John! Vá hoje escolher um cavalo à sua vontade, e diga ao moço da cocheira que o sele amanhã e o tenha aqui, às nove horas; quero dar um grande passeio... Será pontual, não é verdade?

- Está entendido, mademoiselle.

E foi assim que o jovem Russo se encontrou, na manhã seguinte, no palácio da Avenida Marceau, em trajo de montar, e, como sempre, irrepreensível, fosse qual fosse o seu trajar.

Micaela, que adorava levantar-se tarde, foi de uma pontualidade surpreendente. Montava à americana e, como era alta, o trajo masculino ficava-lhe adoravelmente bem. Os seus modos eram livres, e desprezava o diz-se, mas ninguém lhe podia negar o mérito de ser infinitamente distinta e de vestir com apurado gosto.

John, que estava ao fundo da escadaria, com os dois cavalos à mão, não pôde deixar de lhe admirar a elegância. Com um chapéu de feltro sobre os cabelos escuros, um pouco puxados para trás, e aqueles grandes olhos negros, estava realmente distinta.

Abotoando as luvas, Micaela ia examinando o companheiro, e reparou logo na correcção do fato. Mas justamente era essa correcção que ela não queria. Com a ponta do chicote tocou-lhe no casaco.

- Tire isto; o resto pode ir... peça um colete.

John corou imperceptivelmente.

- Um colete, como um palafreneiro?

- Parece-me...

Mas foi logo interrompida:

- Parece-lhe mal, mademoiselle. Sou motorista, e não tenho que usar o fardamento das suas cavalariças.

Falava com voz um pouco velada, esforçando-se por torná-la calma. Micaela não quis perceber-lhe o tremor.

De resto, havia alguns dias, depois do momento de abandono que por instantes os aproximara, tinham tomado cada um o seu lugar: ela no seu orgulho altivo de grande senhora, ele na sua delicadeza impecável, quase hostil, de motorista de luxo.

Micaela quase se sentia feliz por encontrar ocasião de o humilhar um pouco. Fingindo não compreender nem dar importância ao seu protesto, disse-lhe com desdém:

- Enfim, vista o que quiser, se a nossa libré não lhe agrada. Há coletes e casacos de todas as cores.

- Parece-me que mademoiselle não compreendeu. Se quiser que eu vá a seu lado, há-de ser com um fato conveniente e não como um criado.

- E se eu não o quiser com esse aspecto?

- Então, terei o desgosto de lhe desagradar, mas fico aqui.

- Está bem - disse glacialmente -, Ajude-me a montar.

John estendeu o joelho, cruzou as mãos e ela saltou para a sela como uma cavaleira consumada.

- Está pronto? disse, indicando o outro cavalo com o chicote.

- Apesar de estar assim vestido, quer que a acompanhe?

- Evidentemente, visto que não pode deixar de ser.

- Podemos passar pelas cocheiras, há sempre moços.

- Não. Para escudeiro basta-me o senhor.

- Muito bem!

Ao chegarem aos Campos Elísios, ela tomou a dianteira.

- Venha atrás de mim, a distância conveniente - precisou.

E o passeio começou. Julgava tê-lo vexado e, afinal, o rapaz tinha enorme vontade de rir da cólera de que ela estava possuída.

*Decerto compreendeu muito bem a sua incorrecção. Não pode negar que é miss Feijão. Não degenera da família+.

Esta observação dava-lhe prazer. Tinha horror às amabilidades de Micaela Jourdan-Ferrières, mesmo quando era ele o beneficiado. A menor familiaridade punha-o de mau humor, como se fosse um gracejo de mau gosto.

Foi, pois, com satisfação, que a seguiu pelos diversos caminhos que lhe agradava tomar, fazendo o possível por se conservar à distância desejada.

Foram pela Muette e Auteuil até Saint-Cloud. Micaela ia sempre à frente, sem trocarem uma palavra. Este amuo não podia eternizar-se. De súbito, a milionária parou o cavalo.

- Está desagradável. Tenho os pés gelados.

- Quer tomar alguma coisa?

- Vamos.

- Ao Pavilhão Azul?

- Deve lá estar imensa gente.

- Não me parece. A esta hora talvez esteja deserto.

- Então vamos, guie-me!

John não aproveitou a vantagem que esta ordem lhe dava. Continuou a ficar para trás, e contentou-se, apenas, em lhe indicar o caminho.

- É sempre em frente. É preciso atravessar a ponte. Estamos lá num momento.

Pararam à entrada do parque. John saltou do cavalo e ajudou-a a descer.

Sem o esperar, a filha do milionário entrou no salão do Pavilhão Azul. No fim de dez minutos, como o motorista tivesse ficado cá fora, foi ao terraço ver o que ele fazia.

Com as rédeas no braço, acendera um cigarro e fumava tranquilamente, com os olhos mergulhados nos seus sonhos habituais, que o levavam para bem longe da França.

Aquele passeio a cavalo dera-lhe grande prazer. Evocava-lhe no espírito as longas cavalgadas na fronteira russa, ou, recordação mais querida ao seu coração, certas caçadas de outro tempo, nas planícies selvagens da Rússia Setentrional, ou nas florestas antiquíssimas da Rússia Branca.

Micaela observava-o, sem que John suspeitasse, a olhar longa e pensativamente, com os grandes olhos enigmáticos, para qualquer visão só por ele percebida.

A rapariga devia ter tido dó daquele homem, ali imóvel, exposto ao tempo, porque, na verdade, estava frio; a um groom que estava perto, ordenou:

- Vá tomar conta dos cavalos e diga àquele senhor que venha ter comigo.

John encontrou-a sentada a uma mesa, com uma grande chávena de chocolate na frente, e os pés colocados sobre um tijolo quente que lhe tinham trazido.

- Precisa de tomar, também, alguma coisa quente, John. Deve estar gelado; quando saímos julguei que a temperatura fosse mais amena.

- O vento sopra hoje, mas não faz muito frio. Penso que talvez o seu fato seja muito leve.

- Os pés é que estão gelados. Mas a culpa é minha, porque trouxe meias de seda. Amanhã não me há-de acontecer a mesma coisa.

A grande sala estava deserta. John sentou-se na extremidade da mesa próxima. Quando lhe trouxeram o café que pedira, deu uma nota ao criado, indicando, com um gesto discreto, que devia pagar-se das duas despesas. Micaela compreendeu tudo e calou-se.

*Ganha, agora, bastante para poder fazer esta despesazinha+ pensou.

Mas o que não confessava a si própria é que lhe teria sido profundamente desagradável, mesmo apenas em presença do único criado de serviço, pagar a despesa a um homem.

Foi este o único incidente do passeio. Ao regressarem a casa, ela retomou a mesma atitude altiva e John conservou, imperturbavelmente, a distância que lhe tinha sido indicada.

 

Dias depois deram um passeio pelas margens do Sena, a uns trinta quilómetros de Paris. O campo estava povoado de chalezinhos. Na estrada, distante, os automóveis passavam a toda a velocidade e, a seus pés, o Sena corria com estremecimentos silensiosos.

Durante uma hora, John, de pé, encostado à portinhola do carro, pôs Micaela ao corrente de todos os passos que dera.

Encontrara uma casinha retirada, um pouco particular, um pouco pensão de família. Depois de várias tentativas, conseguira que o protegido de Micaela ali fosse admitido. Teria um quarto e um pequeno gabinete; dispensar-lhe-iam todos os cuidados, e tudo isso custaria uma quantia relativamente modesta para assegurar ao velho de Menilmontant o auxílio moral e material de que tanto carecia até morrer. Era bem melhor do que um asilo para velhos, era livre de sair à vontade, havia uma sala à disposição dos pensionistas para receberem visitas, e, principalmente, o meio era bom e não rigoroso de mais.

Quando terminou estas longas explicações, que Micaela aprovava sem reserva, o jovem Russo perguntou-lhe:

- Sabe o verdadeiro nome do seu protegido?

- O que ele usa não é o verdadeiro?

- Diz que se chama João Bernier e assina assim todos os quadros. Mas, na verdade, o seu nome completo é João Bernier de Brésmenil.

O rosto de Micaela coloriu-se.

- Tem a certeza?

- Soube-o pelos seus documentos. Tem sessenta e sete anos e pertence a uma família da Normandia da qual vivem ainda alguns membros. Recebeu uma boa educação, cursou a Escola de Belas-Artes e teve alguma notoriedade como pintor de retratos.

- Como pôde então cair tão baixo? balbuciou Micaela, que parecia agitada.

- Diz que, há vinte anos, um desgosto de amor o impeliu para uma vida desregrada.

- Um desgosto de amor?

- Sim; explicou-me que começou a andar na estronice e a frequentar clubes nocturnos, onde todas as noites se perde um pouco de dinheiro e muita dignidade. Com o hábito do prazer, veio o aborrecimento pelo trabalho e, de queda em queda, a miséria.

Micaela ficou pensativa por momentos, e depois perguntou, com ansiosa timidez:

- Disse-lhe o nome dessa mulher?

John hesitou levemente perante aquele rostozinho assustado e, por fim, afirmou:

- Não! Um homem bem-educado nunca diz o nome da mulher que amou.

A fisionomia de Micaela transformou-se.

- Contou-lhe alguma coisa da sua vida íntima?

- Pormenores sem importância... e algumas más recordações.

- E... da mulher... Nunca teve notícias?

De novo a voz de Micaela se tornou hesitante.

- Essa mulher morreu pouco tempo depois de o ter abandonado...

- E porque o abandonou?... Não lho disse?

John, antes de responder, olhou, pensativo, para a sua jovem patroa. Não sabia mentir, e perguntava a si próprio se tinha o direito de esconder uma parte da verdade.

Então, enchendo-se de coragem, explicou:

- Parece que havia uma criança.

- Uma criança?

- Sim, uma filha! A mulher era casada e a criança pertencia, legalmente, ao marido. A mulher teve medo de que o marido, sabendo a verdade, a expulsasse e ficasse com a pequena, para se vingar da traição da esposa.

- Foi por isso! balbuciou Micaela num tom indefinível.

- Sim... por causa da criança!

A linda milionária sentiu-se, repentinamente, sem forças e cheia de melancolia. Encostou-se; mas, como John continuasse de pé, junto da porta, fez um esforço para, num tom indiferente, dizer:

- É muito interessante tudo quanto me conta! Não pensava que o meu protegido tivesse tido uma vida tão apaixonante... Com respeito a si, aprovo todas as iniciativas; o senhor tem, na verdade, muito expediente, John furtou-se aos agradecimentos, voltando para o seu lugar, e Micaela ficou-lhe reconhecida pela discrição, dizendo consigo que fizera muito bem confiando nele. Evidentemente, estava à sua mercê. Mas para que havia ele de falar, se lhe oferecera pagar-lhe o silêncio? De resto, sem saber bem porquê, tinha em John instintiva confiança.

Mas coisa singular nem sequer pensara, ao de leve, no que havia de extraordinário nesse mistério que unia os dois ele, motorista, e ela, a filha do patrão.

Ele, era John, não suspeitando sequer qual seria a verdadeira personalidade do homem a quem dera esse nome.

E desse estrangeiro, cuja vida íntima era um mistério, cujo carácter desinteressado continuava a ser enigmático, bem como os seus modos fidalgos, que não compreendia, desse motorista, enfim, fizera um confidente em quem tinha a máxima confiança. Ainda mais: sentiu-se inconscientemente feliz por existir entre eles esse segredo. Era um laço caprichoso... era qualquer coisa de muito suave e tranquilo... um campo onde nunca batalhariam, mesmo no auge das contendas. E percebia que, de todos os amigos e conhecidos, John era o único que não se dobrava diante dela. Era a única pessoa que ousava fazer-lhe frente e reduzir a nada a maior parte dos seus caprichos.

Ora, fosse qual fosse o estado de espírito, descontentamento ou cólera, arrogância altiva da rapariga ou orgulho ferido do homem, bastava-lhes evocar o segredo de Micaela para que imediatamente desaparecessem todos os rancores entre eles, e ficassem de acordo, sem pensamento reservado.

A jovem milionária admirava-se daquele facto, que não podia explicar, mas do qual beneficiava. Ingenuamente, suspeitava de que John fosse menos desinteressado do que dizia e, acreditando no supremo poder do seu dinheiro, deixava-se embalar pela dedicação silenciosa do rapaz, a qual, a todo o tempo, poderia recompensar.

Não compreendera que o Russo era demasiado cavalheiresco para querer tirar partido da sua situação de confidente e que não desejava que lhe pagassem, nem sequer com uma palavra mais viva, o serviço que prestava.

Contudo, um dia, foi um pouco audacioso com ela, o que Micaela não percebeu logo, e ele próprio, talvez, só mais tarde pudesse explicar a si mesmo.

Após uma das cavalgadas matinais, quando a ajudava a descer do cavalo, ousou, premindo-lhe um pouco os dedos, chamar-lhe a atenção.

- Ainda não me disse se devo felicitá-la, mademoiselle.

- Felicitar-me? E porquê, meu Deus?

- Pelo seu noivado.

- Quem lhe disse que eu tinha noivo? respondeu, rindo francamente.

- Então não me informou de que seu pai devia apresentá-la a um dos melhores partidos do Mundo?

- É desse homenzinho que quer falar?

A prega desdenhosa do lábio foi uma completa revelação para John, e um relâmpago de alegria brilhou-lhe no olhar.

- Esse grande partido seria tão pequeno, santo Deus? escarneceu ele, com sensível prazer.

Aquelas palavras redobraram a alegria de Micaela.

- Exactamente! Um fedelho cheio de nervos, e de meio palmo de altura! Eu, que só admiro homens altos, tive logo a impressão de que, com um sopro o pobrezinho caía no chão.

- Então, nada feito?

- Absolutamente nada! Ia desatando a rir à gargalhada logo que o vi.

- Mademoiselle é terrível, e esse pobre rapaz deve ter tido uma grande decepção.

- A decepção foi para mim; ele parecia encantado com a sua pessoa. Mas meu pai tinha-me dito tantas maravilhas a seu respeito, que, na verdade, julguei-o algum herói de romance! O meu ilustre progenitor não vê, realmente, se não o total da fortuna. Nunca me apresentou um noivo que eu não recusasse!

Contava tudo isto ligeiramente, feliz em tagarelar, como se tivesse diante de si um camarada, em lugar do seu motorista.

Este também a ouvia com prazer.

- Perde-se um marido, encontra-se dez, diz um velho provérbio francês. O principal é que se seja sempre livre.

- Livre! Julga que é o principal?

- Assim parece! respondeu John, um pouco meditativo -, Deve ser horrível sentirmo-nos presos por toda a vida e pensar que nunca mais se terá o direito de amar mais alguém.

Micaela riu com gosto.

- John, você é contra o casamento! Parece-me, pelo contrário, que deve ser delicioso prendermo-nos a alguém a quem se ama... por toda a vida, e estar certo de viver sempre a seu lado; é uma impressão que deve ser doce e suave...

- Quando se ama, sim... Mas como mademoiselle não ama...

- Se esse rapaz me tivesse agradado, o amor podia vir depois.

- Não...

- Porque diz não, tão categoricamente?

- Porque um casamento de dinheiro nunca pode transformar-se num casamento de amor.

- E porquê?

John sorriu, fixando, talvez um pouco de mais, os olhos de Micaela, e explicou:

- Há um deus maligno que zomba de todas as convenções, entrava e derruba todos os projectos... Se mademoiselle amar um dia, estou certo de que não há-de ser nenhum dos noivos apresentados por seu pai... Será alguém que lhe fará mudar as ideias sobre o casamento... e quando der por isso, já será tarde...

- Parece um profeta, John! notou ela, escarninha, sentindo a necessidade de esconder a emoção que a assaltara, ouvindo essa evocação do amor espontâneo e involuntário.

- Geralmente é assim que tudo se passa.

- Pois eu afirmo - disse com decisão -, que nunca amarei sem dar por isso... e ainda menos um homem que não realize o ideal que sonhei! Não sabe como sou senhora dos meus sentimentos e da minha vontade.

- Oxalá que o céu oiça os seus desejos e nunca lhe dê a prova de que a vontade nada tem com isso - retorquiu John, gravemente -, Adivinho que, para si, o fulminante seria uma diminuição dos seus direitos, e o amor do homem uma mortificação do seu orgulho.

Teria acaso falado asperamente? Micaela corou, subitamente aborrecida por falar dessas coisas com ele, e, de um salto, correu para a escadaria, cujos degraus trepou a dois e dois.

 

A Primavera anunciava-se magnífica. Já aparecia nas árvores de Paris a fina renda da folhagem. O Bosque de Bolonha coloria-se, inundado pelos raios do sol, e Micaela, todas as manhãs, o percorria ao trote da sua égua, sem nunca se cansar dessa cavalgada matinal.

Não tornara a falar a John no seu trajo de montar; parecia terem assinado uma trégua tácita. Aceitava o casaco, mas conservava John a distância, não trocando com ele se não as palavras exigidas pelo acidente do caminho.

O seu carácter, de resto, modificara-se havia algum tempo. Tinha momentos de humor que a lançavam, numa alegria exagerada ou numa melancolia doentia.

E, como John estava sempre em contacto com ela, era muitas vezes sobre ele que recaía o mau humor.

O rapaz notava que qualquer sinal de simpatia que Micaela lhe dispensava, às vezes sem motivo, era imediatamente seguido de uma espécie de retraimento, durante o qual se mostrava altiva, mordaz ou arrogante, como se quisesse desfazer o bom movimento que tivera para com ele.

Uma manhã, o jovem Russo rompeu o casaco. A culpa fora de Micaela, que lhe pedira para colher um bocado de azevinho. O ramo estava alto e umas sarças impediram-lhe de se aproximar. Não obstante, quis satisfazer o desejo. Insistiu e o rasgão produziu-se com a maior facilidade. John teve um movimento de contrariedade que não escapou a Micaela, e esta quase desatou a rir, tanto a aventura a divertia. Mentalmente, calculava que o casaco não podia estar arranjado tão depressa, e que ele seria obrigado a vestir outro fato.

Qual não foi o seu espanto quando, no dia seguinte, encontrou John com uma jaqueta cinzento escuro, jaqueta de equitação, evidentemente, que lhe valorizava a alta estatura, tornando-o ainda mais elegante. Nunca parecera menos um motorista do que naquele dia.

O olhar em que a filha do milionário o envolveu tê-lo-ia espantado, se o tivesse notado. Admiração, orgulho, cólera, tudo perpassou como um relâmpago nos olhos que observavam o Russo.

Contudo, não disse palavra. Contentou-se, apenas, em se distanciar dele ainda mais. Partiu à frente, e entrando no Bosque de Bolonha pela Porta de la Muette, enfiou a galope por uma alameda, a seguir por outra, sem se inquietar da direcção que tomava.

E andou tanto ou tão pouco que no fim de um certo tempo parou a montada, perguntando a si própria onde estava.

Na Primavera parece que todas as alamedas do Bosque são iguais. É a mesma verdura suave, as mesmas moitas floridas e cheias de seiva, erguendo para o céu os rebentos coroados de pequenos botões cor-de-rosa.

- Onde estamos? perguntou a John, que parara o cavalo a alguns metros do seu.

O rapaz fez um gesto de ignorância.

- Disse-lhe que queria ir ao Pré-Catelan.

- Mademoiselle foi sempre à frente e pensei que conhecia o caminho.

- Devia ter-me guiado. Agora é que diz que me enganei!

- Julguei que conhecia outro caminho... estes atalhos parecem-se todos uns com os outros.

- Não brinque comigo! Sabia onde eu ia, não devia deixar que me perdesse, por gosto.

O tom agressivo que Micaela empregava desagradava a John.

- Perdão, mademoiselle. Quando sou eu quem a guia, tomo a responsabilidade do caminho que sigo, mas tendo de ir atrás, a distância, não é o mesmo.

- É claro! Há muito que procurava ocasião de me fazer essa observação.

- Não compreendo o que quer dizer - respondeu John, esforçando-se por não perder o sangue-frio diante daquele olhar colérico.

- Sei eu, e basta.

- Então peço-lhe que se explique.

- Quer que lhe diga algumas verdades amargas?

- Tenho curiosidade de as ouvir.

- Não me irrite com a sua irónica delicadeza. Digo que a sua fatuidade é ridícula. Julgou que um bom fato lhe aumentaria o valor! Apesar do seu casaco ou jaqueta, há-de ficar sempre para trás; pagam-lhe para isso.

- Creio que nunca pedi outro lugar - retorquiu o rapaz friamente.

- Não; mas gosta que julguem que o ocupa!

Havia uma hora que sufocava, e fora um alívio lançar essas palavras à cara daquele que desde manhã a irritava. John era apenas o seu motorista, nada mais do que o seu motorista! Porque, sofria a obsessão de o sentir caminhar junto de si num pé de igualdade?

O Russo empalidecera; súbita e violenta cólera lhe toldou o cérebro. Micaela formulara as suas censuras com tanta hostilidade que ele julgou ser tudo um pretexto para o despedir... como se despede um criado que deixou de agradar.

Sem dizer palavra, olhou em volta, procurando um meio de escapar ao mortificador passeio. Estavam em pleno Bosque. Não podia, em sua consciência, abandonar Micaela nessa solidão.

- Tenho que continuar hoje junto de si - disse, por fim -, Mas é a última vez que a acompanho.

- Mas, se isso lhe desagrada tanto, pode ir. Saberei encontrar, sozinha, o meu caminho.

- Sou obrigado a ficar hoje, porque estou às suas ordens.

- E amanhã já não estará? perguntou com menos dureza, porque a irritação a abandonara.

John não respondeu, mas os seus olhos fixaram os da sua orgulhosa ama. Como depois de todas as explosões de cólera, que eram tanto mais violentas quanto mais fútil era a causa, a filha de Jourdan-Ferrières ficou abatida, com os nervos despedaçados e as lágrimas quase a saltarem-lhe.

Mas reagiu, porque não queria dar esse espectáculo ao homem a quem acabava de humilhar.

- Julga que, seguindo esse caminho, poderemos ir dar a uma alameda onde nos informem? perguntou, esforçando-se por mostrar um tom indiferente, mas onde se notava já o desejo de uma reconciliação.

- Podemos experimentar.

Micaela fez voltar o cavalo na direcção indicada e pôs-se a caminho. John deixou-lhe um pouco de avanço e seguiu-a, desta vez a bastante distância.

Ela voltou ligeiramente a cabeça e, vendo a sua táctica, comoveu-se. Essa distância, que ele marcava entre ambos, mostrava bem o seu ressentimento. Desta vez estava realmente zangado. Dissera ser o último dia que a acompanhava... Sentiu oprimir-se-lhe o coração ao pensar, com um certo terror, nos dias que se seguiriam ao ver os seus hábitos modificados tendo que tomar novo motorista.

E parou no fim da alameda, hesitante, tão amedrontada subitamente que não sentiu o menor desejo de continuar a andar. Ficou parada, sem um movimento que pudesse indicar o que desejava.

John teve que lhe passar à frente. Obteve facilmente, de um passeante, a indicação do caminho a seguir até ao Pré-Catelan. Quando voltou para junto dela, notou a palidez do seu rosto tragicamente tenso, numa atitude de comando que desejava parecer altiva.

- Estamos perto do Pré-Catelan, mademoiselle; seguindo à esquerda, por esta álea, estamos lá em poucos minutos.

- Sinto-me cansada, e é já tarde - respondeu -, Gostaria de descansar num sítio qualquer antes de ir para casa.

- Para que lado deseja ir? perguntou John, num tom impecável, mas que parecia colocá-la a grande distância de si.

- A qualquer sítio deserto... seja onde for, contanto que seja isolado.

- Então, por aqui, creio eu.

Micaela seguiu a direcção indicada, com uma passividade que não estava nos seus hábitos.

Ao fim de uns duzentos metros, avistando um talude próprio para repousar, parou o cavalo e largou-lhe as rédeas. O jovem Russo ajudou-a a descer e a instalar-se no talude, cuja erva bateu para ela ficar melhor.

Tudo isto foi feito sem que um movimento os aproximasse ou tivessem trocado um olhar.

E depois dela estar sentada, John, pegando nas rédeas dos cavalos, conduziu-os a uns vinte metros de distância, onde ficou com eles. Nunca tinha procedido assim. Ordinariamente, quando Micaela descansava, John ficava perto e conversavam, sem familiaridade, mas também sem cerimónia.

Micaela viu-o, de longe, acariciar a cabeça dos cavalos, verificar uma fivela mal apertada, e depois acender um cigarro. Na sua imobilidade, adivinhou que estava novamente mergulhado numa das nostálgicas meditações habituais, sempre que ficava só. Teve a impressão de que pesava sobre ela uma solidão esmagadora, deixando-a verdadeiramente isolada. A impressão foi tão nítida que sentiu correr uma lágrima. Por uma tolice, por uma questão de orgulho e de trajo, ferira o único ser que lhe era dedicado sem cálculo.

John não era apenas um motorista, um servo zeloso com quem podia contar, e via agora que era um homem cheio de respeito, atenções e dedicação por ela. Nenhum daqueles a quem honrava com a sua amizade tivera para ela os mesmos cuidados e respeitos que este amigo obscuro e silencioso, que sofria o seu mau génio e caprichos.

Então, nova lágrima lhe rolou pela face, preparando a estrada húmida às que se seguiriam e aos pesados soluços que enchiam o seu coração.

Quanto tempo ficariam assim afastados um do outro?

Todo o seu orgulho de homem se revoltara contra as censuras injustificadas de Micaela, mas John estava aborrecido pelas proporções que a questão tomara, e censurava-se vivamente por ter ajudado as coisas a irem tão além.

Mas pensando que teria de deixar Micaela e renunciar aos passeios quotidianos que davam juntos, sentia um verdadeiro aperto no coração. Enumerava todas as vantagens que lhe trazia o seu emprego de motorista. O lugar era bom, bem retribuído e pouco fatigante. Tinha livres as horas das refeições e as noites pertenciam-lhe. Sob o ponto de vista material, nunca encontraria um emprego tão pouco incómodo. De resto, absolutamente ligado ao serviço da filha do milionário, não tinha que suportar promiscuidades importunas, nem os caprichos de vários senhores. Micaela era bastante altiva e demasiadamente autoritária. Mas a maior parte das vezes dominava-se um pouco para com ele... E acabavam por ficar sempre de acordo, tendo a zanga a singular vantagem de os aproximar mais, como a terra, na Primavera, parece mais quente depois do aguaceiro que a molha.

Fazia estas reflexões quando a égua de Micaela estendeu o pescoço em direcção das tenras folhas das moitas. O seu companheiro quis tomar parte no festim, fez um esforço para se colocar a par dela, e com esse movimento para a frente obrigou John a voltar-se para a sua jovem patroa.

Para esconder as lágrimas, Micaela voltara a cabeça para o lado oposto, mas, pelo movimento dos ombros provocado pelos soluços, John compreendeu o drama.

Duas vezes se lhe cravou na testa a mesma ruga má, desviando os olhos, mas duas vezes também o seu olhar se fixou nela, como atraído por um íman. Conhecia a causa dessas lágrimas: fora a discussão que motivara o desgosto de Micaela.

Por fim, sem que pudesse defender-se, o grande pesar dessa garota despertou-lhe a emoção. Não podia ficar por mais tempo insensível àquelas lágrimas. Era bastante generoso para poder assistir, impassível, a um desespero de que era causa involuntária.

Prendeu os cavalos a uma árvore e dirigiu-se para a jovem. De pé, em frente dela, ficou silencioso, ainda hostil no seu olhar, mas já vencido, visto que viera, até ali.

Quando Micaela o sentiu, esforçou-se por reter as lágrimas. Não ousava levantar os olhos, mas sentia-lhe o olhar fixo sobre ela.

John fez um esforço sobre-humano para quebrar o silêncio. O seu orgulho rebelava-se contra a ideia de ser o primeiro a falar. Contudo, acabou por dizer, com a voz rouca pela emoção:

- Mademoiselle, peço-lhe perdão do meu arrebatamento de há pouco. Diante de uma senhora, um homem bem educado deve conservar-se calmo.

Esta desculpa, cheia de censuras, foi tudo quanto achou para dizer naquele momento. E, contudo, estava extraordinariamente comovido; mas Micaela sentia-se muito feliz em o ver ali e poder apreciar-lhe as palavras.

John dirigia-se-lhe, evitando-lhe a humilhação do primeiro momento. Respondeu logo, pronta a confessar os seus erros e a fazer-se perdoar.

- Não tive intenção de ser tão agressiva consigo e lastimo imenso tudo quanto lhe disse sem pensar.

- Não se desculpe, mademoiselle - disse o rapaz -, Na sua cólera exprimiu o que pensava.

- Não creio isso - respondeu Micaela, calorosamente -, Mal acabei de falar, desejaria poder engolir as palavras que dissera. Que me importa o trajo que usa, contanto que, entre nós, nada tenha mudado e fique sempre a meu lado!

Ouvindo estas palavras, o rosto do atraente rapaz perdeu o seu aspecto severo. Envolveu-a num olhar indefinível e disse:

- Seria melhor ir-me embora.

- Não diga isso; ficaria imensamente desgostosa.

- Era preferível para ambos.

- Porquê?

- Receio que questionemos muitas vezes!

- Não temos que questionar; basta-me poupar a sua susceptibilidade, e que John conserve a sua dedicação por mim; preciso tanto dela que já não poderia deixá-la fugir.

A voz alterou-se-lhe ao pronunciar estas últimas palavras, e uma lágrima rolou pela face pálida.

- Sou-lhe muito dedicado - assegurou John em voz baixa e trémula.

- Bem o sei; é por isso que me habituei a contar consigo, e só pensar que não o veria mais me causa um verdadeiro desespero. Esqueça tudo quanto lhe disse de mau e prometa-me que não me guarda rancor.

Assim falando, levantara-se e, num movimento espontâneo de reparação, estendeu- lhe a mão. John pegou-lhe e conservou-a uns momentos entre as suas...

Havia tanta pureza e lealdade nos grandes olhos que Micaela levantara para ele, que não podia haver equívoco possível: palavras, gestos ou desgostos, eram a impressão de um pesar sinceramente confessado.

Não desejava perturbar aquele rapaz com qualquer coquetismo. Fosse ele velho, seu igual ou até superior, não manifestaria um arrependimento mais simples e digno. Sabia reconhecer muito bem as suas maldades, e John, que era tão difícil de contentar acerca da delicadeza feminina, concordou consigo próprio, que, quando queria, sabia ser uma grande senhora.

Religiosamente, poisou os lábios na mãozinha, que ainda não largara.

Foi assim que terminou esta primeira grande zanga. Nunca mais se falou no assunto, mas também nunca mais o esqueceriam.

A datar desse dia, Micaela foi mais graciosa e cordial com John; esforçou-se, realmente, por lhe poupar a susceptibilidade, mas este, apesar de ser sempre serviçal e atencioso para com a jovem patroa, comprazia-se numa selvagem reserva, sorridente e correcto, mas infinitamente distante...

 

Nessa manhã estava muita gente no Pré-Catelan. A Primavera cantava nas árvores, e toda a sociedade elegante de Paris parecia ter-se combinado para se encontrar nesse sítio.

John saltou do cavalo e ajudou Micaela a descer do seu. Num momento, a filha de Jourdan-Ferrières achou-se rodeada por um grupo de rapazes e raparigas. Os primeiros, ao cabo de uns minutos, eclipsaram-se, ficando as últimas.

- O teu companheiro é um belo rapaz, Micaela; seria capaz de cometer todas as loucuras por um homem assim!

Esta reflexão de uma garota de dezasseis anos, já escandalosamente pintada, fez rir o pequeno grupo.

- Mim aprova Jaquelina - disse Molly Burke, uma jovem americana de modos excêntricos -, Esse rapaz é excitante e, se mo quer ceder, querida Micaela, mim dar a você um presente à sua escolha.

A jovem milionária voltou-se e, num tom mais agressivo do que o caso requeria, perguntou-lhe:

- Ceder-lhe, o quê?

- John, seu motorista... eu gostar muito dele!

- Mas não tenho a menor razão para o despedir.

- Sim, para dar prazer a mim.

- Estou muito contente com ele, Molly, e sinto não poder ser-lhe agradável.

- E ele estar também contente com você? Notara-se na voz de Molly uma dúvida.

- Meu pai paga-lhe principescamente.

- Meu pai oferecer-lhe o dobro.

- Muito lhe agradeço que guarde para si as suas propostas. Entre gente da nossa sociedade não é hábito roubar os criados.

- Sim, na América é permitido... é chique... à força de dólares.

- Em França é de mau gosto...

- Então, mim não roubar seu motorista. Casar com ele.

Todas se tinham aproximado, divertidas por esta discussão, que a situação de fortuna das duas raparigas ainda tornava mais palpitante.

Micaela, um pouco altiva, olhava para Molly, fria e encolerizada, ao passo que a jovem Americana, sem notar o ar de censura da sua interlocutora, fixava, um olhar sonhador em John, que segurava as rédeas dos cavalos, a quinze passos de distância, sem se preocupar com os numerosos olhares que convergiam sobre ele.

- É absolutamente perturbante! continuou Molly -, Mim fazer muitas loucuras por ele, de boa vontade.

Micaela ergueu ainda um pouco mais a cabeça.

- É apenas um motorista - notou, com desdém, por entre dentes.

- Hoje, todos os homens são mais ou menos motoristas...

- Sim... cada um tem o seu automóvel, mas John conduz os dos outros.

- É engraçado - disse Molly, alegremente -, fazer correr o dinheiro dos outros! É fino, muito digno de louvar... Mas Micaela diz que um automóvel diminui a glória?

- A Molly não pode compreender - respondeu Micaela, de mau humor -, John trabalha numa casa alheia.

- Mas, para se ter dinheiro, é preciso ir buscá-lo onde ele está - insistiu a Americana.

- Mas não trabalhando.

- Então será preciso ir buscá-lo sem trabalhar?

- Como é aborrecida, quando não quer compreender, Molly!

- Eu fazer a diligência - disse esta ingenuamente, com os olhos brilhantes de malícia.

- O meu motorista é um homem do povo, compreende agora?

Molly soltou uma gargalhada.

- Ser deveras engraçada, esta Micaela! John é do povo! É verdade. E nós de onde somos? Micaela ter caído da lua?

A filha de Jourdan-Ferrières tornou-se muito vermelha, notando que a sua interlocutora zombava desde o princípio da conversa, mas não podia esquivar-se diante de todo o grupo feminino que as ouvia.

- Em França há classes na sociedade - respondeu -, Um motorista faz parte dos trabalhadores... do povo!

- Até ao dia em que, também milionário, se meta, como seu pai e o meu, na alta finança.

- Não creio que John venha a ser milionário - notou Micaela, com ironia.

- Talvez! Meu pai ter sido mercador, operário numa mina, magarefe, não saber que mais! Agora ser o rei do açúcar, e a sua assinatura valer milhões de dólares... Mas creio ter ouvido dizer que seu pai ter sido aprendiz de salsicheiro... Em França, ser melhor do que motorista?

Micaela não respondeu. Tornara-se escarlate e os olhos brilhavam-lhe de intensa cólera.

- Ser engraçado! Muito engraçado! ria Molly -, Você corou pelo salsicheiro. Eu estar mais orgulhosa por papá ter sabido ganhar milhões de dólares de que se ele tivesse achado sua fortuna num buraco.

- Desejo-lhe, pois, que case com um homem com os seus princípios.

- All right! Querer um marido que me agrade, mesmo que tenha que vender pãezinhos com chouriço, à porta das escolas.

- Cada um tem o seu gosto!

- Naturalmente! Por isso, mim, não aconselhar você a casar com John. Eu querer ele para marido.

O grupo começou às gargalhadas.

- E que fará dele, durante a vida?

- Um marido de quem mim, apaixonada, terá orgulho... porque não ter precisão de ensinar ele a ser elegante, gentleman. Ele saber tudo! E, quando tiver tal marido, todas as mulheres invejarem a mim.

- Olha, Molly - exclamou uma das companheiras -, o que tu dizes talvez seja verdade. Vê, Micaela, não fazem cerimónia para te roubarem o teu belo John.

E apontava para três raparigas que conversavam com o Russo.

- Bem vejo... estão no ar, por ele!

- Olha aquela... a fazer festas aos cavalos!

- Muito excitante! Verifico e tomo nota das probabilidades do querido rapaz; há cinco minutos valer o dobro.

E, voltando-se para Micaela, que estava assombrada e silenciosa, acrescentou:

- Na verdade, Micaela, você achar que John precisa uma fortuna para agradar a uma mulher?

- É ridícula, Molly! Por três levianas se atirarem à cara de um bonifrate fica emocionada?

- Apre! Você ver mal, minha querida! O bonifrate conversa gentilmente, sem berrar e sem gestos! Veja! Veja.

Micaela, enervada, exclamou:

- Há coisas mais interessantes para ver do que as acções e gestos de um motorista!

Molly Burke olhou para ela.

- Noto... que o dinheiro, aqui, fazer perder todo outro qualquer direito. Entre nós, no meu país, um homem valer oiro: hoje ser pobre, amanhã rico... ou, como dizer?

Vice-versa.

Yes!

- E como tratam os vossos criados? interrogou Micaela, secamente.

- Segundo o seu valor, e não pela algibeira. Não os desprezamos como aqui. Eu quero John para mim! Eu ter muita pena dele aqui...

Micaela encolheu os ombros e não respondeu. As reflexões de Molly eram-lhe profundamente desagradáveis, e percebia que todas as palavras seriam mal comentadas pela americanazinha e se voltariam contra ela. De resto, estava persuadida de que se mostrava correcta com os inferiores. No entanto, ficou seriamente aborrecida com tal discussão e tudo isso por inveja, porque tinha um motorista fora do vulgar e que a outra cobiçava!

A filha de Jourdan-Ferrières pensou, num relâmpago, que aquela era bastante rica para lhe tirar John! Questão de dólares... Dólares contra francos... A luta seria desigual.

Molly Burke não olharia ao preço se se tratasse de humilhar outra rapariga. E Micaela percebeu, com amargura, que a sua fantasia tinha limites e que os seus milhões nem sempre tinham um poder ilimitado.

Já tinham deixado o Pré-Catelan havia alguns minutos e galopavam pela estrada, de regresso. De fronte enrugada, Micaela relembrava cada palavra trocada com Molly e a lembrança dos seus sarcasmos fazia-a saltar sobre a sela como sobre o efeito de uma queimadura.

*Seu pai foi aprendiz de salsicheiro+.

Novamente o rubor lhe coloriu as faces. Para que lhe atiravam à cara, forçando-a a corar, os princípios do pai? O seu orgulho não queria compreender a grande lição de humanidade que a Americana, no seu modernismo, lhe dera.

*Um motorista! Falou em casar com um motorista! Como se isso fosse possível!...+.

Só esta suposição lhe era odiosa. Quando voltou a cabeça, disposta a vingar-se em John da admiração que Molly lhe tributava, viu-o tão bem montado, tão perfeito cavaleiro, como se nunca tivesse feito outra coisa na sua vida. Com olhos malévolos, examinou-o a fim de lhe descobrir a tara oculta, o defeito, no envólucro de tão perfeito gentleman.

Era, na verdade, de uma grande beleza, de traços puros, perfil correcto, cabeça altiva, olhar leal, mas cortante como alfange. Teve que reconhecer nunca ter visto espécime igual. Nunca, até esse dia, a beleza russa, sem mescla, ao mesmo tempo selvagem, guerreira e apurada através dos séculos, lhe aparecera daquela forma.

*Sim, tem tudo quanto agrada a uma mulher! E se Molly casar com ele, será rico... mais rico do que eu!+

E imaginou-o de casaca, atravessando os salões.

Seria um deus, perante o qual todas as mulheres se curvariam. Sentiu a garganta seca. Viu que o seu motorista não destoaria em qualquer parte onde estivesse. Era absolutamente um homem de sociedade, tão completamente como qualquer dos rapazes com quem diariamente convivia.

Simples motorista, conservava-se sempre um gentleman impecável.

Quando fosse marido de Molly, a própria Micaela não seria, mais, a seu lado, do que simples milionária francesa, cujas ideias acanhadas não tinham sabido compreender o deus...

Molly vira claro; proclamava bem alto o seu desejo de escolher, primeiro do que tudo, marido que lhe agradasse. Com a sua fortuna, podia arranjar um noivo sem dinheiro; com as suas ideias modernas, aceitar um homem de humilde posição; com o seu senso prático de Americana, seria feliz... amada... e... invejada!

Era preciso impedir isso, fosse como fosse, não porque tivesse a consciência de ter ciúmes, mas John era seu, o seu motorista, a quem estava habituada... Molly não tinha o direito de lho roubar!

A filha de Jourdan-Ferrières compreendia que não podia passar sem esse homem impecável, sempre dedicado e atento aos seus menores desejos. Molly invejara-lho por ser belo, mas Micaela sabia bem que o que lhe agradava no jovem Russo não era essa bela figura, nem o seu fino rosto de feições regulares e um pouco altivas. O que, acima de tudo, a comovia era a protecção incessante que John lhe dispensava.

Saía de carro ou a cavalo: estendia-lhe a mão, compunha-lhe a manta ou o fato sobre os joelhos. Ia a pé: velava conscientemente pelo seu bem-estar, levando a malinha ou o agasalho que ela esquecia. E sentia, continuamente em volta de si, essa solicitude.

Nos seus encontros, nas suas saídas, nos seus jogos, lá estava ele sempre pronto a socorrê-la, a velar por ela, a defendê-la contra todos os perigos e impertinências.

Era esse amigo dedicado e silencioso que Molly lhe queria arrebatar! Mas Micaela tentaria impedi-lo com toda a sua vontade e energia! E quis, imediatamente, sondar as intenções de John.

Refreando o cavalo, esperou que ele estivesse perto e começou:

- Meu pai disse-me que deseja fazer um contrato consigo, John.

- Para quê?

- Quer garantir-se contra qualquer mudança no seu pessoal, oferecendo-lhe ao mesmo tempo lucros interessantes...

E, como John se conservasse calado, continuou:

- Esse contrato seria... muito vantajoso para si... Uma sombra velou o rosto do rapaz.

- Preferia que mademoiselle não tratasse essa questão comigo.

- Porquê? Diz-lhe respeito. Estou habituada consigo, e teria grande desgosto se pensasse um dia em deixar-me.

- Não penso em afastar-me de si, actualmente, mas não quero comprometer-me com contratos. É certo que mais tarde... um pouco mais tarde, devo seguir o meu caminho, mas não vale a pena pensar nisso.

- O seu caminho? Um motorista que pode obter o ordenado que quiser, pode esperar melhor situação?

Um sorriso altivo fez-lhe tremer os lábios.

- Pois é esse o caso. Sou motorista apenas momentaneamente.

- Esperando melhor?

- Deverei chamar-lhe assim? Não julgo ser possível ter por tão pouco trabalho lucros semelhantes...

- Então?

- Cada um deve seguir o seu Destino; o meu não é ficar eternamente motorista, sejam quais forem as vantagens pecuniárias que esse título me traga.

- Mas se alguém lhe oferecer... muito dinheiro, uma situação mais brilhante... deixar-me-ia sem custo?

Os olhos de John mergulharam nos de Micaela.

- Quem queria que me fizesse tais propostas?

Micaela corou imperceptivelmente e levantou os grandes olhos para John. Devia falar em Molly? Seria mais razoável deixar as coisas caminharem por si? Era combativa e, visto que estava certa de que Molly tentaria qualquer coisa, era preciso parar os golpes, prevenindo-o.

- Creio que Molly Burke vai tentar tomá-lo ao seu serviço...

- Quem é Molly Burke?

- Uma amiga minha... muito loira... cabeleira revolta... estava hoje no Pré- Catelan.

- Quer falar numa jovem americana que tem olhos de miosótis e um sorriso encantador?

- Conhece-a? perguntou Micaela, cujo rosto se alterou.

Essas palavras olhos de miosótis e sorriso encantador pareceram-lhe, contudo, exageradas.

- Tem-me falado já diferentes vezes quando a espero à porta das suas amigas.

- Ela já tentou...

- Tentou o quê?

- Indispô-lo contra mim.

- Porque supõe isso?

- Disse-me esta manhã que havia de o levar, como motorista, para a América.

- Disse-lhe como motorista? retorquiu John, sorrindo, sem desfitar a jovem patroa.

- Molly diz tantas tolices! balbuciou Micaela, perdendo terreno perante a perspicácia do Russo, que parecia estar bem ao corrente de todos os projectos de Molly.

- Teria realmente pena se eu a deixasse, para ir com miss Molly Burke?

- Sim, teria um verdadeiro desgosto - confessou sem constrangimento -, Mas sei que, se ela o tentar, consegue-o, porque o pai é mais rico do que o meu.

John fez um gesto de desgosto.

- É, ainda, uma questão de dinheiro que a indispõe contra miss Molly - retorquiu, com verdadeira irritação -, Teve medo que eu me deixasse seduzir pelas ofertas dessa milionariazinha, e quis prender-me a si por um contrato... é isto mesmo, não é, mademoiselle Jourdan-Ferrières?

Micaela não gostava que a chamassem pelos apelidos, porque havia sempre uma certa aspereza nessas duas palavras.

- O meu desejo de o conservar deve lisonjeá-lo! respondeu, um pouco altivamente.

- Está bem, mademoiselle. Farei o possível por me contentar com a lisonjeira satisfação que me dá. Enquanto miss Molly só tiver argumentos financeiros a oferecer-me, posso assegurar-lhe, desde já, que não lhe darei atenção. Não me vendo, mas estou certo de que, se pensasse nisso, seu pai me pagaria o necessário para que a sua amiga não me levasse. Creio que lhe basta esta afirmação.

Micaela não respondeu. Bem sabia que a Americana ofereceria também uma situação... e talvez outra coisa.

Olhou para John, indecisa. Teve a intuição de que, se quisesse, só ela o poderia reter.

E se Molly lhe oferecesse melhor?

- É de uma situação que quer falar?

- Sim.

- Não preciso dela. Quando deixar o seu serviço, a minha estará feita, e deve corresponder às aspirações que tenho.

- Então... se ela lhe oferecesse... ainda mais?

O jovem Russo olhou-a fixamente, por sua vez.

Durante uns segundos observaram-se intensamente. Foi Micaela quem primeiro desviou o olhar.

- Então - disse ele, calando a íntima alegria que o invadia -, se a sua amiga me propussesse ainda mais, pensaria na minha pastorinha e... como ela não será americana nem milionária, miss Molly, com grande pesar meu, não ficaria satisfeita.

O rosto de Micaela coloriu-se novamente. A certeza de que a sua amiga não lhe levaria John bastava-lhe por agora. Sorriu, radiante e reconfortada, aliviada por uma alegria instintiva, desproporcionada com a afirmativa do rapaz.

- Está entendido! Fica comigo, John! exclamou ela, vitoriosamente.

Não dava conta da sua grande felicidade. Era apenas uma questão de amor-próprio. Pensava, com exaltação, no triunfo que obtivera sobre Molly... e não percebia que era por si própria que estava contente.

 

- Meu Deus! Como me aborreço e como o Mundo é estúpido!

John, sempre correcto, esperava, de pé, junto da portinhola aberta, que Micaela desse ordem para a conduzir a qualquer parte.

Estava extremamente elegante, como sempre, e, já sentada, olhava indolentemente para o motorista.

- Onde iremos, meu pobre John? Se soubesse como as minhas amigas já me aborrecem! Todos os dias as mesmas mentiras e intrigas, os mesmos cumprimentos aduladores! Causa náuseas, uma vida assim! Aconselhe-me: que faremos?

- Museus, exposições?

- Não! Que estopada!

- Um filme?

- É fatigante.

- Um teatro!... Os grandes Armazéns... O seu costureiro?

- Não! Não e não!

- Então o quê?

- Já não sei. Leve-me onde quiser. Quero ver coisas novas, interessantes, de emoção.

John sorriu.

- Vamos dar um passeio à rua das Amendoeiras?

- Isso não! Sempre tem ideias!

- Não fala em emoções?

- Peço-lhe que procure outra coisa.

O jovem motorista pareceu reflectir por uns momentos e tirando um bilhete da carteira, leu-o rapidamente. Depois, guardando tudo na algibeira, propôs-lhe:

- Quer oferecer-me a sua tarde.

- A si?

- Sim.

- Para fazer o quê?

- Acompanhar-me a um meio essencialmente russo.

- Ir consigo?

- Evidentemente; sozinha, não seria admitida.

- Uma assembleia de niilistas, talvez? exclamou Micaela, rindo.

- Verá e apreciará.

- Mas diga: não haverá perigo? Pedi-lhe emoções, mas, reflectindo bem, prefiro não as ter.

- Sossegue, o meio é tranquilo e apenas lhe despertará curiosidade.

- Então, vou! É uma novidade para mim. A caminho.

- Sou obrigado a passar por minha casa; apenas para envergar um traje mais apropriado do que este.

Vestia, então, um casaco branco, com canhões de cor, e Micaela compreendeu que ele não podia ir assim.

- Pois seja! Esperá-lo-ei no automóvel.

Minutos depois, o carro parava em frente de um belo prédio, na Avenida de Temes.

Apenas uns minutos.

E, delicadamente,. entregou-lhe um jornal para ela se entreter.

- Se quiser ler...

Micaela pegou no jornal que o motorista lhe entregara. Era o Temps.

*Ah! O senhor John gosta de jornais sérios!+

Como não lhe apetecia ler, deitou a cabeça pela portinhola e examinou o portão por onde o Russo entrara.

*Sua excelência não dispensa nada! Tenho amigas pior alojadas... Mas talvez habite na mansarda!+

Este facto intrigava-a. Desceu do carro para interrogar o porteiro, e deu logo com o ascensor.

*Evidentemente, é uma vantagem para as suas pernas! Não há dúvida, mora no sétimo andar!+

- O senhor Isborsky? perguntou ao porteiro.

- No quinto, porta à direita. Subiu agora mesmo.

- Então, espero-o.

Se bem que se sentisse deveras curiosa, não ousou ir ter com ele, lá acima. Quando voltou para o carro, levantou a cabeça e contou os andares. Pertencia ao quinto andar uma grande varanda de pedra, devendo formar um terraço bastante espaçoso.

*Se mora para o lado do pátio, está bem instalado+.

Nunca se sentira tão preocupada com a vida íntima do seu motorista. Como Molly afirmara poder ele aspirar a todas as situações, pensava, muitas vezes, no jovem Russo, e perguntava a si própria o que faria ele nas horas vagas.

*Meu pai informou-me que John exigira a liberdade das horas das refeições e as noites também livres. Apesar do que me disse, deve viver com alguma mulher!+

E pensou, de repente, que teria graça anunciar isso a Molly. Mas foi arrancada aos seus pensamentos pelo regresso do motorista. Este vestia uma gabardina por cima de uma casaca, visto que devia conduzir o automóvel. Era sempre correcta a sua figura, fosse qual fosse o fato.

A vista exercitada de Micaela analisava-o com surpresa. Cada vez que John mudava de fato era para ela uma revelação. Não podia conceber como conseguia assimilar todas as situações tão à vontade.

Enquanto John calçava as luvas de cabedal, perguntou-lhe:

- Não ficaram surpreendidos, em sua casa, de o ver chegar a esta hora?

- Em minha casa não estava ninguém.

- Nem sua mulher?

- Creio ter-lhe dito já que não sou casado. Moro só, com compatriotas a quem cedo uma parte da casa, reservando para mim apenas dois quartos.

- Quem cozinha e arruma a casa?

- Os meus compatriotas fazem-me o serviço.

- Como criados?

- Pouco mais ou menos.

Micaela estava perplexa.

O seu motorista brincava aos donos de casa, com criado, etc. E de novo pensou em Molly.

*Ela tem razão: apenas uma questão de dinheiro os separa! E, mesmo Molly, ficar- lhe-ia inferior sob todos os pontos de vista+.

Pensava ainda nessas coisas quando o automóvel já ia em andamento. Fixava John. Via-lhe as costas largas, a cabeça altiva, respirando um todo de incomparável vigor.

E, pela primeira vez, formulou esta pergunta:

*Que faria ele na Rússia?+

Compreendia que a superioridade do jovem Russo não residia apenas no seu físico distinto. Certamente que pertencia a qualquer boa família. Um casamento com Molly não era tão desproporcionado como a princípio pensara.

Sob o esforço do pensamento, fechou os olhos. Sentia leve dor de cabeça.

Como poderia saber o que o Russo fizera antigamente? E, de resto, para quê? Não desejava ajudar a Americana nos seus projectos extravagantes. Seria estúpido encaminhá-la para John! E, realmente, aquela rapariga excêntrica merecia encontrar um marido deslumbrante!... Se, ao menos, John fosse um imbecil ou um inútil! Mas a sobrinha do tio Sam era prática e tinha um bom golpe de vista!

 

Chegaram a um pátio lajeado, em volta do qual havia uma escadaria de uma dezena de degraus, que conduzia a um edifício de puro estilo Renascença.

Micaela, absorta nos seus pensamentos, não seguira o itinerário do carro e, quando este parou, olhou em volta, admirada do ambiente aristocrático dessa esplêndida casa.

No pátio estavam enfileirados cinco ou seis automóveis.

John saltara do carro, tirando rapidamente a gabardina, as luvas de cabedal e apareceu supremamente elegante na sua impecável casaca.

- Quer dar-me a honra de aceitar o meu braço, mademoiselle? Aqui, deve sentir-se desconhecida, mas afirmo-lhe que, a meu lado e entre os meus compatriotas, será muito considerada.

Enquanto falava, ia calçando, rapidamente, umas luvas brancas.

Pouco entusiasmada por entrar nessa casa desconhecida pelo braço do seu motorista, Micaela notou ironicamente:

- Vamos a um casamento? John sorriu.

- Não, apenas a uma recepção russa.

- Bravo! Casaca e luvas brancas! Tem a certeza de que é esse aqui o protocolo?

Surpreendido com o tom zombeteiro de Micaela, o rapaz levantou os olhos e disse, secamente:

- Para mim, é obrigatório!

- Como para os criados de serviço!

E indicava dois servos de calção curto, sapatos de fivela, e, é claro, de luvas brancas, que estavam ao cimo da escadaria para introduzir os visitantes.

Uma expressão de pesar pairou no rosto do Russo, a quem os sarcasmos de Micaela surpreendiam. Porque trouxera aquela nova-rica, aquela burguesa, a esse meio quase feudal, onde todos conservavam religiosamente, no fundo do coração, o pesar nostálgico da etiqueta e do cerimonial da corte?

- Se quer seguir-me... disse, friamente, sem insistir em lhe oferecer o braço.

E subiram, lado a lado, a escadaria. Um porteiro dirigiu-se-lhes:

- Quem devo anunciar?

John voltou o rebuço da casaca, atrás da qual estava pregada pequena estrela branca.

- Não anuncie.

O homem inclinou-se profundamente, e John, como frequentador do lugar, atravessou o vestíbulo.

Ao fundo da sala de espera Micaela viu uma outra sala, à entrada da qual um par recebia os que entravam. E como John se encaminhasse para uma porta que havia ao lado, ela observou, um pouco trocista, com um secreto desejo de se vingar da audácia que o seu motorista tivera:

- Bem! A entrada de serviço! Evidentemente, o senhor não pode entrar por ali.

John parou, espantado, e por um momento, olhou-a como se a descobrisse de repente. Um sopro de cólera lhe passou pela face pálida e, dando meia volta, disse:

- Anuncie mademoiselle Jourdan-Ferrières e Alexandre Isborsky.

A sua voz altiva e forte ressoou no hall, de uma maneira profunda, como a de um chefe soltando um grito a reunir. O porteiro anunciou, e Micaela, petrificada, teve de apressar o passo para o poder acompanhar antes que John chegasse à outra porta.

O par que recebia dirigiu-se para eles:

- Meu querido Alexandre...

- Até que enfim, podes ser dos nossos, Sacha.

John pousou os lábios na mão da dona da casa.

- Princesa...

E apertou com força a mão do homem.

- Não é por minha culpa que tenho faltado às tuas reuniões, Jorge; não estava livre.

- Como temos sentido a tua falta!

Trocadas estas palavras, o Russo apresentou a companheira:

- Mademoiselle Jourdan-Ferrières... os príncipes Youri-Bodnitzk.

Cerimoniosamente, inclinaram a cabeça; o príncipe interrogou-o com o olhar, porque aquele nome nada lhe dizia.

John, a meia voz, pronunciou algumas palavras em russo, que tiveram o condão de fundir imediatamente o gelo.

- Muito prazer em nos dar a honra da sua presença - disse o príncipe, graciosamente, a Micaela -, É encantadora, e tanto a princesa como eu lhe agradecemos que quisesse fazer companhia a Sacha.

Novos sorrisos de parte a parte, novas saudações, desta vez espontâneas, e Micaela, um pouco atrapalhada, afastou-se com John através da brilhante multidão que enchia a imensa sala.

Nessa sociedade elegante, onde Micaela não encontrava nenhuma cara conhecida, estava reunida a aristocracia russa que vivia em Paris.

- Quem é esse príncipe Bodnitzki? perguntou a John.

- O dono deste palácio. Casou com uma americana, e mostra-se muito bom para a colónia russa menos afortunada.

- A princesa parece muito amável.

- É encantadora, e o seu grande coração faz esquecer a origem.

*Ah! pensou Micaela! Aqui é como nos arrabaldes Saint-Germain: não têm um cêntimo, mas pouco lhes falta para desprezarem o dinheiro que as esposas lhes trazem, por ter sido ganho com mãos plebeias+.

Nesse momento, uma rapariguinha de dezasseis anos, bela e viva como são na Rússia todos os adolescentes, dirigiu-se para John.

Micaela notou a cabeleira loira, de cabelo apartado ao lado e tão curto que parecia um pajenzinho saído de um quadro de Boticelli.

- Sacha! Que felicidade ver-te! Tenho muito boas notícias a dar-te.

Quase lhe saltara ao pescoço. Com as duas mãos apoiadas no rebuço da casaca, fixava-o com terno olhar.

John parara. Com um sorriso bondoso correspondeu ao seu transporte, mas desprendeu-se das mãozitas que o agarravam e, beijando-as, murmurou:

- Daqui a pouco vou ter contigo, Lenotchka.

E com os olhos fitos na donzela, que sorria, mostrando os lindos dentes, pronunciou duas palavras em russo. Ela olhou-o, admirada, e examinou Micaela. Depois, trocando um olhar de entendimento com o compatriota, disse, com simplicidade:

- Até já, Alexandre Yourievitch.

E eclipsou-se, alegre e ligeira, figurinha encantadora que pareceu esvair-se na multidão.

Esta aparição deixou Micaela pensativa. Aquela loira risonha fazia-lhe lembrar Molly, mas levantava também uma ponta da vida particular do seu companheiro.

Esta familiaridade, que se revelava tão afectuosa e submissa, entristeceu um pouco a filha de Jourdan--Ferrières. Junto de John, no meio dessa multidão de gente sua, para quem ela era uma estranha, sentiu-se subitamente isolada.

Que ideia tivera em vir com o motorista àquele sítio! Aqui, reinava ele, e ela nada era! Em sua casa, no automóvel, até mesmo na rua, dominava Micaela.

Nesse momento, John parecia nem se lembrar de que a tinha a seu lado. E, contudo, era em Micaela que pensava. Visto que a sua companheira se aborrecia de andar a seu lado, ia confiá-la a outro.

Acabava de avistar um homem de idade, condecorado com a Legião de Honra, de casaca, rosto franco e bom, ao qual dois olhos azuis, um pouco ingénuos, enchiam de animação.

- Permita-me, mademoiselle, que lhe apresente Sua Excelência o general Razine, que foi chefe da casa militar de Nicolau II, nosso bem-amado Czar... Excelência, tenho a honra de lhe apresentar os meus respeitos.

- Boa tarde, Alexandre Yourievitch. Sinto grande alegria em tornar a ver-te.

- A honra e prazer são meus; Excelência, vou fazer-lhe um pedido. Apresento-lhe mademoiselle Jourdan-Ferrières, que vem aqui pela primeira vez...

O velho militar beijou a mão de Micaela.

- Excelência, quer fazer-me o favor de lhe oferecer o braço e guiá-la nesta casa? A sua pessoa é-me preciosa, e seria feliz se ela guardasse a melhor lembrança desta reunião.

- Grande honra para mim, meu caro - disse o general, um pouco surpreendido.

- Cumpre-me cumprimentar todos, e não queria que a minha companheira sofresse qualquer falta de cortesia de minha parte...

E acabou, em russo, as suas explicações. Era a quarta vez que John empregava a sua língua natal; Micaela notou-o, mas não teve tempo de aprofundar a questão; o seu motorista voltara-se para ela, e com delicadeza um pouco fria, disse-lhe:

- Mademoiselle, Sua Excelência, o general Razine, está à sua disposição. Pode apoiar-se confiantemente no seu braço; o general é uma das glórias do nosso antigo exército e o seu nome é dos maiores entre a colónia russa.

O olhar de Micaela, um pouco irónico, poisou sobre John, cuja susceptibilidade revoltada adivinhou.

- Tenho muito prazer em que o general me consagre o seu tempo.

- Aceite o meu braço; vou tentar fazer-lhe conhecer a nossa velha Rússia através daqueles que foram os seus senhores.

Micaela seguiu-o, mas, enquanto ele a levava, para a direita e para a esquerda, apresentando-a aqui e ali aos mais belos nomes, como também aos maiores dignitários, os seus olhos procuravam avistar na móvel multidão a alta figura do homem que todos os grupos pareciam olhar afavelmente. E não pôde resistir a perguntar ao seu companheiro:

- Quem era na Rússia Alexandre Isborsky?

O velho abanou a cabeça, hesitando um pouco em responder:

- Era novo... ainda muito novo para ser alguém.

- E os pais?

- Seu pai morreu quando ele era ainda criança. A mãe vivia retirada e não voltou a casar.

- Mas, enfim, que posição ocupava?

- Nenhuma! Serviu no exército branco, apesar da sua pouca idade.

- Mas, sem a revolução, Sacha teria ocupado um posto na Rússia. Qual poderia pretender?

- Um, bem grande. O nosso Czar gostava de ver homens belos, e aquele de quem falamos é um perfeito espécime.

As respostas do velho general eram vagas. Micaela compreendeu que seria incorrecto insistir, mas notou, despeitada:

- Ser bonito rapaz, é, então, uma vantagem na Rússia, e Alexandre Isborsky não podia ter outra pretensão além das vantagens que lhe conferia um rosto agradável e um corpo de atleta?

- Ser dotado de um físico como Isborsky já é alguma coisa.

- Evidentemente, pode fazer-se dele um soberbo picador de circo ou um tambor-mor de bela aparência. Mas sempre esperei que valesse mais.

O antigo chefe da casa militar do Czar olhou para Micaela e sorriu da prontidão da resposta.

- Quem lhe diz que o seu companheiro não valha mais? Julga, acaso, que se recebe aqui, desta forma, um picador de circo ou um tambor-mor? Mas aí vem o almirante Lerizoff. Admire-lhe a frescura, apesar da avançada idade.

Desviado, deste modo, o assunto da conversa sobre John, Micaela teve que se interessar pelas múltiplas descrições que o atencioso general lhe fazia.

Ouvia, distraída, completamente entregue à sua obsessão. De repente, viu aquele que a preocupava tanto na companhia da rapariga loira, a quem dera o nome de Lenotchka. Estavam a um canto, em conversa animada. A garota parecia radiante, e o seu companheiro falava-lhe com um sorriso de grande doçura.

Micaela sentiu irritante melancolia. Não conhecia daquele homem se não o olhar reservado e correcto, igual ao tom impecável que usava sempre com ela.

Salvo Jourdan-Ferrières, que era afectuoso com a filha, nunca sentira fixar-se em si um olhar tão indulgente. Por momentos, invejou a loira Lenotchka, para a qual John se inclinava tão ternamente.

Quando o deixou, Micaela indicou-a ao velho militar.

- Quem é aquela bonita pequena, com um rosto de anjo, que vai além?

- É Lena Dmitrievna, a filha do antigo chefe da aviação de Kiew.

- Pertence à aristocracia?

- Sim! A mãe, a baronesa Colensky, era filha do Grão-Duque Georgij.

Micaela julgou sonhar: o seu motorista tratava por tu a neta de um Grão-Duque.

- O exílio juntou-os a todos? notou ela.

- Sim, apesar de dispersos, continuamos unidos, e a nossa maior felicidade é reunirmo-nos! Mas é a hora do nosso lanche - acrescentou -, Dá-me licença que a apresente à generala Razine e às minhas duas filhas? Vamos tentar arranjar uma mesa, e faremos, os cinco, uma óptima festa.

Micaela aceitou este projecto com prazer, e foi apresentada a uma senhora idosa, muito simpática, e às duas raparigas, de aspecto tímido, que levantavam para ela quatro pupilas de um azul desmaiado.

Nessa ocasião, a sua atenção fixou-se em John, que ajudava a instalar uma senhora idosa, de compridos caracóis brancos, numa mesa um pouco distante.

Alexandra, a filha mais velha do general, seguira o olhar de Micaela e notou com vivacidade:

- Este Sacha é irresistível! Quem o não estimará! Tem para a condessa Bolkovsky, que já fez oitenta e quatro anos, tantos cuidados e atenções como se se tratasse da sua avó.

- Parece conhecê-lo muito? perguntou Micaela.

- Minhas filhas conhecem toda a colónia russa exilada - interveio o pai -, Pelo menos, a que se preza e não se encontra nos restaurantes nocturnos da Praça Pigale.

- Será verdade haver fidalgos russos que se tenham exibido nesses restaurantes nocturnos?

- Dizem que sim... retorquiu o general, secamente -, Nunca aí fui.

John sentara-se em frente da venerável senhora, que instalara na mesa e, solícito, oferecia-lhe o chá, as torradas, os bolos, com um à-vontade incomparável nos seus menores gestos.

Micaela não podia despregar os olhos do grupo.

Subjugava-a inexprimível espanto; John, o seu motorista, conversando com uma autêntica fidalga! A sua razão vacilava e estranhas suposições lhe atravessavam o cérebro. Em volta deles agitava-se uma multidão de convidados, num vaivém, procurando uma mesa livre ou um lugar marcado. Ninguém parecia admirar-se da conversa de John com a idosa condessa. E Micaela aborreceu-se por ser a única a indignar-se!

*Na verdade - confessou a si própria -, sou má para este rapaz. Nos seus menores gestos vejo o mal!+

Alexandra esforçava-se por distraí-la. Mostrava-lhe as fidalgas, que noutro tempo estavam em contacto com a imperatriz, o papel que representavam na corte, e a importância dos seus cargos.

- E essa senhora idosa a quem chamou condessa Bolkovsky?

- A condessa Sofia Pavlovna era irmã do príncipe reinante do Ural ; uma das mais distintas princesas do reinado de Alexandre III.

- E nesta quantidade de cortesãos, essa senhora só encontrou Alexandre Isborsky para sentar à sua mesa? exclamou Micaela, vexada pelo que lhe parecia uma condescendência equívoca.

Olga olhou o par com verdadeira simpatia e disse suavemente:

- Não sei qual faz mais favor. A condessa Sofia é muito espirituosa, mas Sacha é um companheiro delicioso.

Micaela ia replicar, mas nesse momento todos se levantaram e os grupos dirigiram-se à pressa para a sala contígua como se tivessem ouvido uma ordem.

- O Grão-Duque Sérgio acaba de chegar. Deu-se esta festa em honra da sua passagem por Paris.

- Chegou depois do lanche.

- Telefonou, dizendo que vinha mais tarde...

E Olga, muito feliz, arrastou consigo Micaela para a fila de convidados que se formava no meio do salão principal.

- É o mais alto, o que está no meio do grupo, explicou Alexandra -, É imponente, como todos os Romanoff.

O general Razine retomara junto de Micaela as suas funções de cicerone, mas John apareceu.

- Abusei muito da sua bondade, Excelência.

- Esta jovem é encantadora e tive imenso prazer em a acompanhar.

A milionária sorriu.

- Travei conhecimento com a generala Razine e suas filhas. A mãe é deliciosamente indulgente e as filhas muito gentis.

John agradeceu-lhe com o olhar essa apreciação, que encheu de satisfação o velho militar.

- Vamos pedir-lhe licença para nos despedirmos, Excelência. Sua Alteza mostrou interesse em que lhe fosse apresentada mademoiselle Jourdan-Ferrières, e receio não nos voltarmos a encontrar quando sairmos.

Trocaram amigável cumprimento, e Micaela encontrou-se só com John. Este parecia ter esquecido o mau humor que tivera ao princípio da tarde.

O Russo pediu-lhe licença para apresentá-la ao Grão-Duque.

Não ousou oferecer-lhe o braço; mas quando chegaram a um grande grupo, na extremidade da sala, estendeu-lhe a mão.

- Perdoe-me, mas devo conduzi-la à presença de Sua Alteza.

Ela deu-lhe a mão, não ousando criticar o gesto familiar, na ignorância da etiqueta habitual, que ele conhecia melhor, bem o percebia agora.

Quando ultrapassaram os convidados que formavam círculo, Micaela deu conta de que ficava um espaço vazio entre estes e um grupo de homens, no meio dos quais estava uma personagem de grande estatura, cabelos grisalhos e olhar dominador.

Transpôs a distância que a separava do Grão-Duque, com a mão na do jovem Russo, que caminhava tranquilamente, sem emoção aparente.

Micaela corou um pouco sob o olhar agudo do Grão-Duque, que a encarava, e por se ver alvo da atenção de todos os presentes.

Nesse meio aristocrático, onde a fantasia de John a arrastara sem aviso, sentia a estranha sensação de ser ingénua, nova e ignorante, e confortava-se com a ideia de que não conhecia nenhuma das pessoas presentes, que não sabiam bem quem ela era, e a quem nunca mais tornaria a ver.

Evidentemente perturbada, apesar do seu à-vontade habitual, Micaela ouviu a voz um pouco velada de John, que dizia com subtileza incomparável, da qual percebeu todos os cambiantes:

- Alteza, permita-me que lhe apresente mademoiselle Jourdan-Ferrières, que me deu hoje a honra de me acompanhar.

- É encantadora, mademoiselle, e ao vê-los caminhar, admirava a proporção magnífica das vossas duas figuras. Formam um lindo par.

Os convidados deixaram ouvir um murmúrio aprovador. E o Grão-Duque continuou, com um sorriso indefinível nos lábios:

- Queria estar no tempo de Yvan, o Terrível, para poder manifestar-lhe o desejo, Alexandre, de o ver desposar mademoiselle. Nunca haverá na nossa terra bonitas crianças de mais, e os vossos filhos deviam ser soberbos.

Micaela sentiu tremer a mão do companheiro, e nos lábios dos cortesãos transpareceu um sorriso.

O Grão-Duque, divertido com a cara comprometida de Sacha, inclinou-se para Micaela, completamente absorta, e beijou-lhe a mão, continuando:

- Creio que já tive o prazer de encontrar o senhor seu pai. Queira dizer-lhe que tem uma filha encantadora, que possui os mais lindos olhos do Mundo.

Micaela, atrapalhada com o tom soberanamente superior do Grão-Duque, bem como pelas suas reflexões inesperadas, que a aproximavam de John, apenas pôde balbuciar:

- Alteza, estou confusa...

- E eu, encantado, mademoiselle...

Com uma pressão de mão, John fez-lhe compreender que a audiência terminara. E como ela não se mexesse, inclinou-se profundamente, constrangendo-a, com um gesto, a fazer uma reverência.

Micaela ficara um pouco hirta. Não estava habituada a essa saudação profunda, que passou de moda nos nossos salões depois da Guerra.

Quando se afastavam, notou, perturbada, que muita gente se inclinava à sua passagem. Não pararam, e John só lhe largou a mão na escadaria. Quando chegaram ao carro, a rapariga observou-lhe, com azedume:

- Devia ter-me prevenido do sítio onde me trazia... teria ficado menos atrapalhada... não sabia o que devia fazer.

O rapaz respondeu, num tom sincero:

- Foi encantadora. O Grão-Duque não o diria se o não pensasse, e, quando saímos, todos lho fizeram compreender.

Micaela não respondeu. Ainda estava muito perturbada e não analisava as suas impressões.

Sentada no fundo do carro, viu-o vestir a gabardina e mudar de luvas. Então lembrou-se do ousado comentário:

*Formam um lindo par... os vossos filhos deviam ser soberbos...+.

Corou e os dedos crisparam-se-lhe nos joelhos, mas não teve nenhuma veleidade de revolta... nem compreendia como John pudera fazer semelhante figura.

A sua alma de nova-rica estava subjugada pela auréola que rodeava um príncipe de sangue real. A pequena republicana sentia-se soberbamente orgulhosa, porque um autêntico Grão-Duque lhe beijara a mão.

Cansada, muito cansada mesmo, incapaz de reagir naquele momento, sobre a empresa de que Sua Alteza Real a incumbira, acomodou-se nos coxins do carro e fechou os olhos, ainda subjugada pelo encantamento, sentindo necessidade de inconsciência e esquecimento...

 

Durante alguns dias houve uma espécie de tréguas entre Micaela e o seu motorista. Evitavam qualquer palavra inútil, tanto amigável como hostil. Abstiveram-se de evocar a recepção do príncipe Bodnitzky, como se lhes tivesse deixado qualquer recordação má.

Em lugar de os aproximar, essa tarde, passada em pleno ambiente russo, parecia tê-los afastado.

Micaela esforçava-se por não pensar, por não se lembrar, por banir da sua memória tudo quanto se pudesse relacionar com John, com a sua pátria e os seus amigos.

Adivinharia o rapaz o seu estado de espírito? Talvez, porque também se distanciava dela, voluntariamente, silencioso.

Com o rosto feroz e intimamente absorto em qualquer vaga visão, parecia nem sequer dar conta da presença feminina, a quem estava sujeito pelo trabalho. E, maquinalmente, guiava o automóvel, mais com as mãos do que com o cérebro.

Caminhava, parava, tornava a partir, acelerava, manobrava o volante e os pedais sem uma hesitação, sem um gesto supérfluo, qual autómato sem vida.

E isto durou muitos dias. Uma manhã, Micaela ordenou-lhe:

- Vamos a Cherburgo... Consulte o mapa e trace o itinerário. Devemos lá estar antes das quatro horas.

E partiram...

Nada fazia prever que nesse dia se daria um dramazinho que lhes poria à prova o orgulho. Micaela dissera:

- Almoçamos em Lisieux.

E quando John parou o carro, no meio da cidade, entre dois hotéis de boa aparência, nada fez pressentir à milionária qual devia escolher, para sua tranquilidade moral. Indicou ao motorista o mais moderno, por lhe parecer o de assistência mais selecta.

Antes de entrar no hotel, pediu-lhe que fosse arranjar jornais.

John pouco se demorou. Micaela tê-lo-ia visto chegar? Seria intencionalmente que esperava a sua volta para escolher mesa? Só passados uns minutos se poderia responder a estas perguntas.

Quando John entrou na sala ouviu-a dar a seguinte ordem:

- Ponha o meu talher naquela mesa... lá ao fundo, ao pé da janela aberta.

- Só um talher?

- Sim, um.

A seguir, perguntou:

- Não há uma sala para os criados?

- Sim, minha senhora; há uma salinha perto da cozinha.

- Então, mande servir aí o meu motorista.

John, com os jornais na mão, parara, estupefacto, olhando interrogativamente para Micaela. Seria a seu respeito que dissera aquilo? Dele, que a tinha levado dias antes junto dos seus?...

Mas sua muda interrogação ficou sem resposta; a milionária parecia nem o ter visto. Arranjava, ao espelho, a linda cabeleira, sob o feltrozinho, onde a minúscula cabeça parecia enterrada.

Sem dizer palavra, John foi colocar os jornais sobre a mesa que ela marcara. Depois, tranquilamente, saiu da sala.

Micaela viu-o sair e foi sentar-se à mesa escolhida.

- Era preciso proceder assim, depois das palavras audaciosas do Grão-Duque - murmurou -, Agora, cada um de nós voltará ao seu lugar...

Mas não devia estar muito convencida da utilidade do seu gesto, porque ficou pensativa, com a cabeça entre as mãos, encostada à mesa.

- Não ousou protestar, mas durante alguns dias vai ficar zangado... Se soubesse, não teria ido àquela festa; tudo isto me aborrece!

Sentia-se descontente consigo própria.

- Que necessidade tinha eu de o humilhar mais uma vez? É tão orgulhoso que isto não acaba bem!

Nesse momento, o criado mudava-lhe o prato.

- O meu motorista está a comer?

- Vou ver.

Voltou passados dois minutos, dizendo:

- Nenhum motorista pediu para ser servido, minha senhora.

- Está bem! E reflectiu:

- Foi comer fora; é preferível!... Era de prever! ...

Para distrair o pensamento, olhou para a rua. Os seus olhos sonhadores seguiram a multidão de trabalhadores que se dirigiam para as suas casas. De repente, estremeceu. No hotel em frente, no terraço, estavam três pessoas comendo. Os olhos estupefactos de Micaela reconheceram Molly, o pai e John.

Comiam à mesma mesa e conversavam alegremente. A jovem Americana parecia muito excitada; seu pai, muito contente, e o motorista, com um sorriso nos lábios, parecia seguir atentamente a conversa de mr. Burke.

Micaela mudara de cor: a sua amiga e John reunidos!

Sozinha na sua mesa, sentiu-se de repente muito desgraçada. A alegria dos três fazia sobressair o seu isolamento. Molly e seu pai não tinham hesitado em convidar John para a sua mesa! Instintivamente, adivinhavam um homem de boa educação, nesse jovem Russo, e não se preocupavam com a sua actual situação social. Se Micaela tivesse tido o mesmo gesto de generosidade, John, nesse momento, estaria sentado na sua frente.

A sua susceptibilidade talvez sofresse, mas, em compensação, como teria sido alegre aquela refeição! E mesmo se o seu sexo e mocidade lhe proibisse tal familiaridade, não poderia tolerar a presença do rapaz numa mesa afastada, mas na mesma sala?

Molly não o teria ido lá buscar. Fora o próprio orgulho de Micaela que obrigara o jovem Russo a ir comer fora; fora também o seu orgulho que o aproximara da Americana. E por este facto ainda mais se censurava.

As gargalhadas de Molly atravessavam a rua e chegavam até ali.

A filha de Jourdan-Ferrières pensou que, do seu lugar, a amiga a via, e ria-se tanto e tão alto por vê-la só e abandonada... Pegou num dos jornais que John lhe trouxera e fingiu absorver-se na leitura, mas, às furtadelas, examinava o outro restaurante. Notou que o rapaz nem só uma vez voltara a cabeça para o seu lado. Era exactamente como se ela não existisse.

Então, Micaela, enervada, terminou à pressa a refeição.

- Sirva-me o café no salão - disse ao criado.

E saiu da sala, dirigindo-se para o salão, onde John a encontrou, meia hora depois, com um jornal estendido nos joelhos e a chávena do café já frio.

Atentamente, o motorista observou aquela carita rígida, de feições contraídas e olhar fixo. Um vago sorriso lhe pairou nos lábios; mas não lhe perturbou a meditação e retirou-se para o hall do hotel.

Mas pouco tempo depois voltou ao salão, e desta vez dirigiu-se-lhe:

- Mademoiselle - disse discretamente -, Já é tarde. Perdoe-me a observação, mas como desejava estar em Cherburgo antes das quatro horas, não devemos perder tempo.

- Estava à sua espera - retorquiu Micaela secamente.

- Já estive aqui, mas vi-a tão entretida na leitura que não me atrevi a interrompê-la.

Micaela levantou-se, tomou o café de um golo, e, poisando a chávena, perguntou com voz branda:

- Mr. Burke e a filha já se foram embora?

- Sim, mademoiselle, foram para Trouville.

- Foi ter com eles, ali defronte?

- Perdão, já lá estavam quando chegámos... Miss Molly viu-me, e disse ao pai que me convidasse...

- Que sorte! Como devem ter-se divertido!

- Mr. Burke foi muito amável.

- Molly, quando quer, é encantadora, não é?

- Miss Molly é uma rapariga muito original... é muito simples e possui um coração de oiro.

Um clarão atravessou as pupilas negras da jovem milionária.

"Coração de oiro!" - repetiu a meia voz, com os lábios contraídos.

E acrescentou alto:

- Vejo que aprecia muito a minha amiga!

Os olhos claros de John fixaram um pouco duramente Micaela, que os evitava.

- A julgá-la pela aparência, miss Molly é uma rapariga encantadora; foi sempre muito afável! Nunca, apesar da sua fortuna, se mostrou orgulhosa comigo.

Micaela nem pestanejou e retorquiu com a mesma voz pausada:

- Evidentemente, para si, Molly Burke está acima de tudo!

Depois ficou imóvel; então John pegou-lhe suavemente na mão, durante um segundo.

- Vamos, mademoiselle. Não temos tempo a perder.

Ao pronunciar estas palavras, a sua voz tinha um tom de ternura que pareceu a Micaela uma verdadeira carícia.

- Vamos - acedeu, sem parecer notar nem o tom nem o gesto.

Deixou-se instalar no carro, sem sair da sua apatia. E John, que dirigira para o seu lado o espelhinho do auto, viu-lhe o rosto sempre rígido, crispado, e os olhos vagueando, reflectindo importuna inquietação.

Quando desceu no cais, em Cherburgo, onde estava ancorado um grande transatlântico, já a maior parte dos passageiros tinha embarcado, e Micaela, com um grande ramo de rosas na mão, interrogou com o olhar o convés do navio, inquieta por não avistar a sua amiga Ellen Howes, que desejava abraçar antes desta separação definitiva.

De repente, uma rapariga dirigiu-se-lhe com um grito de alegria:

- Micaela, então sempre vieste!

- Nunca prometi que não cumpra.

De braço dado, começaram a passear, tagarelando com volubilidade, felizes por se encontrarem mais uma vez, antes da longa separação.

De repente, a filha de Jourdan-Ferrières deixou transparecer o seu desgosto:

- Não és capaz de adivinhar com quem o meu motorista almoçou, hoje, em Lisieux.

- Hoje, em Lisieux? - repetiu Ellen.

- Isso.

- Contigo, talvez?

- Não.

- Então, com Molly?

- Acertaste.

- Que fazia ela em Lisieux?

- Vai a Trouville.

- Só?

- Não, com o pai.

- Então, foi o pai e a filha que convidaram John?

- Exactamente.

- E tu?

- Estava num hotel em frente.

- Naturalmente só?

- Absolutamente sozinha.

- E Burke e Molly preferiram John a ir ter contigo?

- Assim parece...

- É assombroso!

- Molly seguiu para Trouville sem pensar em cumprimentar-me.

- Delicioso!

Ellen Howes reflectiu uns segundos e depois apertou suavemente contra si o braço da companheira.

- Não gosto de intrigas - segredou, com embaraço - mas parece-me que é tempo de te prevenir,

- Alguma intriga?

- Vais apreciar. Ontem, quando estávamos em casa de Genoveva Delorme, Molly falou durante muito tempo com o teu motorista.

- A que horas?

- De tarde. Não te lembras de que uma de nós notou a ausência de Molly? Ela foi, mas vendo John à porta, preferiu ficar com ele a ir ter connosco.

- John nada me disse.

- Evidentemente!

- Foi ela quem o contou?

- Não. Foi Marinette Grizet, que lá ficou com Molly e ouviu parte da conversa. Devo prevenir-te de que Molly não foi muito indulgente contigo.

O rosto da milionária coloriu-se.

- Que disse contra mim?

- Coisas pouco amáveis. Principalmente, falou das tuas discussões a respeito de John, repetindo todos os teus argumentos... e comentando-os a seu modo.

- Velhaca!

- Sim, não é muito correcto!

- E depois dessa mesquinhez?

- Parece que ofereceu enorme quantia a John para sair da tua casa e ir com ela. Então, Marinette afastou-se. Não quis misturar-se nessa história.

- Foi ela quem te contou isso? - insistiu Micaela.

- Depois de saires, disse-o a todos. E não creio que tenha inventado.

- Com Molly, tudo é possível... Então John sabe agora...

- Tudo quanto disseste a respeito dele, dos motoristas e dos criados, toda essa cantiga!

- Que infâmia! Que teria ela combinado com o meu motorista depois de Marinette se ir embora?

- Isso é que nós não sabemos... penso, apenas, que se entenderam muito bem, visto que almoçaram hoje juntos.

Micaela empalideceu. Num momento, encarou todas as consequências do gesto de Molly, e já não duvidava de que houvesse qualquer acordo entre ela, o pai e o motorista.

- A sua partida é negócio de alguns dias; o tempo de me prevenir, porque decerto não quererá deixar-me sem ter quem o substitua.

Esta perspectiva fê-la entristecer. Ellen Howes olhou-a fixamente e, abanando a cabeça, disse afectuosamente:

- Não devia ter-te dito nada, querida Micaela. Causei-te um desgosto!

- É melhor que esteja prevenida, visto que, cedo ou tarde, sabê-lo-ia.

Mas Ellen continuou o seu anterior raciocínio:

- Têm-se muitas ilusões... mas o homem pende sempre para o lado onde há mais vantagem, quer seja em negócio, afecto... ou mesmo amor! Antes de tudo, e em primeiro lugar, o seu interesse!

- Não! - protestou Micaela, generosamente - Não creio que seja o dinheiro que decida John a deixar-me. Mas é orgulhoso, e se Molly comentou as minhas reflexões...

Ellen abanou a cabeça.

- Certamente o fez com a intenção de te prejudicar... e é mesquinho, pois Molly sabia muito bem que não pensas assim.

- Perdão, mas creio pensar tudo quanto disse.

- Diz-se isso, mas quando se sabe que as nossas palavras foram repetidas, tem-se pena...

- É verdade - confessou a filha do milionário - Não tive intenção de desgostar John.

E baixava a cabeça, apoquentada pelos resultados que as suas reflexões poderiam ter.

Ellen beijou-a afectuosamente.

- Então, minha querida, não te apoquentes! Se se trata apenas de amor-próprio, dentro de alguns dias não pensarás mais no caso... e o melhor é deixar correr... E, não se tratando de dinheiro, é claro que não pensas oferecer a John tudo quanto Molly está disposta a dar-lhe.

- Não... é evidente.

- Quer casar com ele, como bem se compreende. Muito tolo seria John se recusasse a oferta!

- Um motorista! - disse Micaela, pensativa.

- Entre nós, isso não quer dizer nada, quando um homem tem o valor de John. Além disso, dela é que se trata e não de ti, como Molly te disse.

- Sim é dela... e dele!

- E, como não podes oferecer a John uma compensação que valha esse casamento, Molly terá sempre vantagem sobre ti!

- Tens razão! Mas não impede que Molly tenha procedido de forma...

- Que eu censuro, mas compreendo. Se é sincera, dizendo que John lhe agrada, empregará todos os meios para o conquistar.

- Não à custa de uma amiga.

- Isso é outra coisa. Tu nunca amaste, minha querida; mas creio que, quando se está apaixonada, cala-se, sem hesitação, família, amigos e conveniências.

- Então, nunca me apaixonarei! Ellen olhou-a de soslaio.

- Não sei se deva felicitar-te ou desejar que nunca o lastimes, Micaela. Sabes? É preciso ter passado por isso para se saber o que se é capaz de fazer. Antes, tudo são suposições.

- Juro-te, Ellen...

- Psiu!... Está a dar o sinal de partida. Caiu mesmo a tempo para te impedir de fazer juramentos que, talvez mais tarde, não pudesses cumprir. Espero que me escrevas, querida Micaela, e me contes o que se passar; não te esqueças de que sou sinceramente tua amiga.

E Ellen Howes, depois de trocar amistosos beijos, foi juntar-se, precipitadamente, aos pais, que lhe faziam sinais desesperados, chamando-a.

 

Micaela ficou, por bastante tempo, de pé, no mesmo lugar à beira do cais, depois da partida do transatlântico. Com o olhar vago, cheio de pensamentos sombrios, para os quais o seu cérebro a arrastava havia algumas horas, nada via em redor de si. Os operários do porto, os curiosos ou os marinheiros, andavam de um lado para o outro, surpreendidos pela imobilidade daquela elegante rapariga, sem que ela percebesse os olhares que a fitavam.

O automóvel estava a uns cinquenta metros, e John podia vê-la.

Num dado momento, como Micaela, maquinalmente, se inclinasse de mais para a beira do cais, atraída, talvez, pelo brilho da água que se agitava a seus pés, o rapaz inquietou-se. E, em poucos passos, aproximou-se, olhando-a de soslaio.

Viu-lhe o perfil puro, um pouco rígido, os olhos fixos, a carnação pálida. Teve a impressão de que Micaela tinha um desgosto. Tocou-lhe no braço.

- Mademoiselle, não deve estar aqui mais tempo... Micaela estremeceu, ouvindo-lhe a voz. Em pensamento, estava tão longe de Cherburgo!

- Venha - insistiu John - É quase noite, e devemos pensar na volta ou onde devemos ficar.

- Voltarmos? - balbuciou Micaela, esforçando-se por coordenar as ideias - O senhor deve estar cansado!

A seguir, passou a mão pela fronte fatigada.

- Podemos ficar em Caen, esta noite, se quiser. E, numa só etapa, iríamos de Caen a Paris.

- Quer ir dormir a Caen, esta noite?

- Não me parece má ideia, mas, se prefere outra coisa...

Suspirou e sacudiu os ombros, como se quisesse tirar de cima de si um fardo muito pesado.

- Não. Vá guardar o carro. E tome dois quartos no Hotel dos Almirantes.

- Preferia que viesse comigo.

- Para quê?

- Não me agrada deixá-la aqui, só.

Micaela encarou-o, admirada.

- Que ideia! - protestou, instintivamente, rebelde contra aquela vontade que contrariava a sua.

- O senhor seu pai confiou-ma - exclamou John, para se desculpar - Hoje, parece estar muito mal disposta. Ficaria inquieto se a não soubesse perto de mim.

- A partida da minha amiga impressionou-me muito - respondeu, endireitando-se.

- Justamente. Está abatida.

Micaela não protestou. Sentia-se cansada e triste; era-lhe mais fácil obedecer do que mandar. E deixou-se levar pelo braço de John.

Mas todos esses atenciosos cuidados aumentavam o seu desgosto. Porque lhe testemunhava John tanta solicitude, se se entendia tão bem com Molly contra ela!

Este pensamento importuno fê-la desprender-se com vivacidade do braço do jovem Russo. Como ele a examinasse de través, voltou a cabeça e apressou o passo, para o preceder. Um pudor a obrigava a esconder as suas preocupações.

No hotel, enquanto John guardava o carro, Micaela escolheu os quartos que o criado lhe mostrou. Ainda não havia dois minutos que este se afastara, quando o motorista apareceu, trazendo-lhe a mala de que ela se esquecera.

- Tomei um quarto para si, ao lado do meu - disse secamente - Desde que no Palace fui acordada por dois ratos de hotel, vestidos de malha, com máscaras negras, como não sou muito valente, se não soubesse que estava aqui perto de mim, pronto a correr ao menor grito, não poderia fechar os olhos em toda a noite.

- Esta noite pode dormir tranquila. Tenho o sono muito leve, desde que servi no exército branco.

E acrescentou, depois de curta reflexão:

- Se traz alguma coisa de valor, entregue-ma. É melhor não deixar nada no seu quarto; assim, estará ainda mais sossegada.

- Já pensei nisso - disse ela com simplicidade, olhando para a malinha - Esta noite confiar-lhe-ei a minha mala, com dinheiro e jóias.

John não respondeu. Um pouco perturbado, pensava nesses dois quartos com comunicação, nessa porta aberta, nesses objectos de valor que lhe confiavam e, com a garganta seca, dizia de si para si que, se ela fosse sua mulher, haveria uma viagem de núpcias, a mesma intimidade, bem como aquela ansiosa reserva que se apossava dele.

Teria Micaela, de repente, o mesmo pensamento? Um pouco perturbada também, tirou maquinalmente o chapéu, que deitou para cima da mesa e, sentindo as pernas a fraquejar, sentou-se numa poltrona.

Para dominar a sua confusão, John tirou da cigarreira de prata um cigarro. Ia acendê-lo. Mas dando conta da sua incorrecção, exclamou logo:

- Perdão!

Micaela julgou que ele a ia deixar para poder fumar à vontade. Inconscientemente, desejou retê-lo.

- Dê-me um cigarro e acenda o seu - disse, estendendo-lhe a mão.

John apresentou-lhe a cigarreira.

- Nunca notei que fumasse - observou.

- É muito raro. Hoje sinto-me horrivelmente oprimida e farei tudo para me aturdir.

John teve de se aproximar para lhe oferecer lume. A mão que lhe estendia com o fósforo aceso tocou nos dedos de Micaela. Esse contacto perturbante pareceu dar-lhe ousadia.

- A que é devida essa opressão? - perguntou.

- Provavelmente, à partida da minha amiga - retorquiu Micaela, pouco à vontade.

- Só por isso? - insistiu John.

A rapariga encolheu os ombros, balbuciando:

- Sabe-se lá.

E sentiu-se subitamente abatida. Como ele ousara abordar o seu desgosto, sentiu-o aumentar a ponto de ter enorme desejo de chorar, esmagada pelo peso do mal-estar que, havia tantas horas, sentia.

- Então, mademoiselle, diga-me porque está triste... Parece-me que saberei remediar todos os seus desgostos...

A voz do rapaz insinuava-se com tal doçura persuasiva que lhe roubava todo o desejo de resistência. Quis fugir à tentação de pedir explicações dos encontros de John com Molly, e fez como os tímidos que esbarram com os obstáculos que pretendem evitar.

Para não falar do incidente da véspera, evocou a oferta que John lhe fizera, meia hora antes. E esta alusão desencadeou a explicação que ele procurava e ela temia.

- Há pouco, propôs-me irmos a Caen e passarmos lá a noite. Esperam-no ali?

- A mim? Quem?

- Molly.

John ficou uns segundos calado, mas, depois, exclamou:

- Essa agora! Mas o que pensa que haja entre miss Burke e eu?

- Uma boa combinação...

- Decerto, não fala sério... Porque almocei com mr. Burke e a filha?

- Em resultado do encontro que tiveram ontem à tarde.

- Ontem?

Num minuto, John encarou a questão sob o ponto de vista em que Micaela a punha.

- Perdão; disse-lhe já hoje que este encontro fora inesperado e não premeditado.

- Também me disse que Molly era encantadora... simples... que tinha um coração de oiro... que fora sempre muito correcta consigo...

- E o elogio que fiz da sua amiga pareceu-lhe uma censura a si?

- Sim; visto que censurei que mr. Burke o fosse buscar. Decerto o não teria feito sem que John e Molly não se tivessem entendido primeiro.

- Entendido! Se chama a isso entendimento, é fácil de contentar!

Enervava-se com a suspeita de Micaela. Como ela continuasse hostil, olhando-o duramente, John continuou, com mais brandura:

- Expliquemo-nos com sinceridade, mademoiselle. Reconheço que fiquei furioso consigo, quando me mandou almoçar para a cozinha; confesso que nunca ninguém me tratou tão asperamente. E senti alívio em lhe dizer todas as qualidades mais ou menos verdadeiras que atribuí a miss Burke, pelo único prazer de as comparar com a sua dureza comigo...

- Já o adivinhara - notou ela, com afectado desdém.

- Então, em que vê qualquer entendimento entre miss Molly e eu?

- Ontem, segundo parece, estavam de acordo.

- Ontem!... Se miss Molly lhe contou a nossa conversa, deve ter-lhe dito o que respondi.

O coração de Micaela começou a bater desordenadamente.

- Que lhe respondeu? - perguntou, esforçando-se por conter a comoção.

John encarou a carita ansiosamente levantada para ele, e um clarão ardente suavizou-lhe o olhar.

- Que lhe respondi? Sobre os ditinhos, pouco lisonjeiros, a meu respeito? - disse suavemente, sem responder à interrogação.

Micaela corara.

- Molly comentou as minhas palavras num sentido mau e vingativo.

- Não... Creio, apenas, que se contentou em as repetir fielmente.

- John! - balbuciou, consternada - Creia que o estimo e que desejo conservá-lo junto de mim.

- Talvez! Mas também despreza demasiado a minha posição de motorista - replicou o Russo, com um sorriso um pouco triste.

Como Micaela se calasse, não achando nada para se justificar, visto que Molly lhe dissera tudo, John inclinou-se para ela e continuou:

- Não é verdade, mademoiselle, que todo o seu orgulho só visa humilhar este maldito motorista?... Este motorista, obrigado a trabalhar para viver, que se manda comer para a cozinha, a quem se acabrunha, às vezes, com cruéis palavras, como a um criado a quem se põe no seu lugar sempre que se pode...

- Cale-se! - protestou Micaela - É implacável! Nunca quis magoá-lo.

Escondeu o rosto entre as mãos, quase a chorar, mas, percebendo a sua fraqueza, endireitou-se, não querendo que ele tirasse partido da sua emoção.

- Tenho para si um único valor - continuou John em tom irónico - que é miss Molly querer tomar-me ao seu serviço... Se não se tivesse metido na cabeça dessa jovem Americana essa ideia, mademoiselle despedia-me.

- Julga isso? - disse, desafiando-o com o olhar, apesar daquela avalanche de sarcasmos.

- Estou tão persuadido, que pensei... sim, julgo ter encontrado um meio de contentar todos, principalmente a si.

- Desconfie da sua imaginação! Há um bocado que divaga - escarneceu Micaela.

- É caso para ver...

- Já está visto. John começou a rir.

- Primeira - continuou ele - reconheço, facilmente, que tem razão em desprezar o motorista. Não tenho as qualidades precisas para o emprego; não sou nem condescendente, nem interesseiro; consigo, faço muitas vezes o que a minha cabeça...

A milionária sorriu, a seu pesar, desarmada.

- Ainda bem que o reconhece.

- Sim; confesso não ser um motorista vulgar, nem um apaixonado pelo ofício, e o seu automóvel conhece mais as limpezas do garagista, ou o esfregão de Mathieu, do que os meus serviços.

E, reflectindo um momento, soltou uma gargalhada.

- Realmente, é preciso toda a indulgência de miss Burke para comigo, para que mademoiselle possa suportar, pacientemente, um motorista do meu quilate.

- Habituei-me a ele tal como é, estou acostumada consigo, e desejo conservá-lo.

Não parecia haver a menor ilusão no cumprimento.

- Porque não encontra melhor do que eu, para excitar a inveja de miss Burke, não é verdade?... E se eu lhe oferecesse muito melhor...

- Oferecesse o quê?

- Um outro motorista... um verdadeiro motorista de luxo, a quem conheço perfeitamente! Conduzia em São Petersburgo o carro do Grão-Duque Sérgio, tio do Czar, e posso assegurar-lhe que era o homem mais perfeito da Rússia. Além disso, Yvan é um "ás" do volante; adora o seu ofício, e quer que o seu fardamento e carro sejam os mais belos. Com ele, não passaria despercebida em Paris; todas as suas amigas lho invejariam, e aposto em que, antes de quinze dias, toda a gente conhecia o carro. Quer que lhe apresente Yvan?

- Para quê?

- Substituir-me-ia vantajosamente, e teria nele um servo correcto e submisso.

- E essa troca permitir-lhe-á, naturalmente, ir para casa da Molly.

John não pôde conter o sorriso perante a rapidez da resposta.

- Declinei, ontem, as propostas da sua amiga, e mantenho a minha recusa.

- Recusou as ofertas de Molly? - repetiu Micaela, olhando-o fixamente, como para o impedir de falsear a verdade.

- Afirmo-lhe.

- Não me engana?

- Para quê?

- Falou-lhe nesse Yvan?

- Não. Quis primeiro falar consigo.

- Então ofereça-o a Molly - disse Micaela com sincero entusiasmo - É justamente o que precisa: o mais belo motorista de todas as Rússias! Eis, pelo menos, com que a excitar!

Falava com um desdém tão visível, mas tão sincero, que John mal podia conter o riso.

- Julgava que a minha oferta lhe causaria prazer! ...

- Entusiasma-me! Mas tenho horror a ver caras novas e estou habituada consigo.

- Sacrifica uma verdadeira satisfação de amor-próprio a uma mesquinha consideração de hábito.

- Sou muito rotineira.

John sorriu ambiguamente.

- É uma felicidade para mim. Ver-me-ia em sérios embaraços se tivesse que lhe apresentar Yvan.

- Porquê? Não está em França?

- Acabo de o inventar, do princípio ao fim. Esse famoso motorista apenas existe na minha imaginação.

- É pena, por Molly... Mas para que foi essa invenção? - perguntou a rapariga, com surpresa.

- Desejava saber se me queria conservar apenas por amor-próprio... como mo tinham afirmado.

- Se eu tivesse adivinhado!

Parecia realmente confusa.

- Decerto teria respondido de outra maneira -exclamou John alegremente - Mas, mesmo que eu lhe pareça um pouco presumido, prefiro a resposta que me deu; reconcilia-me um pouco com todos os amáveis desdéns que, por vezes, me manifesta. Micaela estava rubra.

- Interpretou as minhas palavras num sentido tão vantajoso para si que não sei já o que hei-de dizer,

- Ora! Visto que já está habituada a todas as minhas irregularidades, conceda-me, esta noite, o direito de estar satisfeito consigo.

- Satisfeito comigo, como?

- Sim; visto que conseguiu expulsar para longe de si esse grande pesadelo que há horas a aborrecia...

- Mas, eu... sinto-me desgostosa pela partida da minha amiga.

E esforçava-se por se mostrar consternada ao dizer isto.

- Deixe-a navegar para a América - replicou o jovem Russo, com brandura - Dentro de uma hora, terá o seu flirt com o vizinho de mesa, e tê-la-á esquecido completamente.

- John! Ellen Howes é a minha melhor amiga - protestou Micaela.

- Está bem. Prefiro vê-la pensar nela com essa boa alegria, do que com o seu ar triste de há pouco. Vai jantar melhor do que almoçou.

Micaela hesitou, e pediu timidamente.

- Venha jantar comigo, John.

O rapaz olhou-a, subitamente perturbado.

- Seria tentador - disse - Mas não se julgue obrigada a copiar miss Molly.

- Então coma noutra mesa, na sala de jantar...

- Não, mademoiselle. Sabem que viemos juntos, os nossos quartos são lado a lado; devo evitar-lhe qualquer comentário. Vou jantar num restaurante.

O rosto de Micaela transformou-se.

- Vou aborrecer-me imenso, sozinha, nesta terra desconhecida.

- Farei o possível por não me demorar.

Micaela estremeceu.

- Não está livre? Não vai jantar só?

- Devo encontrar-me com um amigo de infância, que o acaso me deparou há pouco.

- Ah! - disse ela, sufocada - Tem uma entrevista! Provavelmente, esse amigo é uma conhecida!

- Não. Não se lembra de que um homem me veio falar no cais, enquanto mademoiselle estava com miss Ellen Howes? Levara os pais ao vapor. É o barão Dolgovsky, um amigo de Pajesky Cospous.

- Sim, compreendo agora porque, com tão boas razões, recusou o meu convite de há pouco.

- Mademoiselle, afirmo-lhe que...

- Cale-se!

Estava realmente vexada e lastimava o seu gesto conciliador.

Ainda uma nova humilhação por causa desse homem.

John, que estava deveras aborrecido por lhe causar esse desgosto, propôs-lhe então:

- Estou pronto a ficar, se assim o deseja.

- Então, porque disse que o esperavam?

- Mando uma desculpa ao meu amigo, e estou às suas ordens.

- Às minhas ordens! Que palavras tão odiosas! É então por uma ordem que aceita jantar comigo?

E olhava-o hostilmente. De novo se desencadeava entre eles a tempestade.

- Está entendido. Pode ir-se embora. Não o retenho.

- Então, mademoiselle, não se zangue. Depois da sua atitude em Lisieux, eu não podia adivinhar que esta noite estaria tão bem disposta comigo, e que me daria a grande honra de convidar-me para a sua mesa. Se aceitei, sem pensar, o convite do meu amigo, é fácil desculpar-me e...

- O que vai buscar! Julga ser-me indispensável! Não é a sua ausência que eu lastimo, é o seu ar vitorioso, as suas desculpas desastradas. Realmente, ao ouvi-lo, julgariam que não posso passar sem a sua presença!... Vá, vá-se embora!

John, um pouco confuso com estas palavras e censuras, olhou-a espantado.

Depois, tirando lentamente as luvas da algibeira, disse, com calma:

- Estarei de volta às dez horas.

- Não se incomode por minha causa. Recolha quando quiser. Vou sair, e também não sei quando voltarei.

O rapaz dirigiu-se, silencioso, para a porta; mas, ao transpô-la, voltou-se.

- Em Cherburgo, à noite, há muitos marinheiros pelas ruas: seja prudente.

A milionária esboçou um gesto de desafio.

- Farei o que me apetecer. Até logo e divirta-se!

- Até logo.

Pensativo, John fechou a porta. Custava-lhe afastar-se, deixando Micaela descontente. Mas esse jantar com o barão Dolgovsky tentava-o.

Era todo o querido passado que iam evocar juntos. E esse encontro com o antigo camarada de escola era tão inesperado que seria loucura não o aproveitar por um capricho de Micaela. Fazendo o gesto de atirar para longe este cuidado, decidiu partir.

Durante algum tempo, a filha de Jourdan-Ferrières passeou pelo quarto nervosamente. Estava furiosa por não ter sabido disfarçar o seu descontentamento.

- Sou absolutamente ridícula. Ao almoço, mandei-o comer para a cozinha e julgava proceder bem. À noite, convido-o estupidamente para a minha mesa, e zango-me porque não aceita... É caso para me interrogar se estou em meu juízo perfeito; há momentos em que me parece não estar lá muito boa!

Sentada à beira da cama, brincava maquinalmente com as pérolas do colar. De repente, começou a rir.

- É Molly quem, com todos os seus disparates, me tira o sangue-frio. Por agora, se ela lhe faz olhos ternos para mo roubar, em troca, eu trato-o com um rigor tal a que decerto não está habituado!

E, lembrando-se do ar estupefacto de John, quando há pouco lhe dirigia todas aquelas censuras, soltou uma gargalhada.

- Não ousava afastar-se! Tenho a certeza de que vai comer mal, pensando que vou sair só, esta noite, numa terra cheia de marinheiros!

A certeza de que John estaria desassossegado por sua causa restituiu-lhe o bom humor. Com uma sensação de bem-estar, recordou todas as afirmações do jovem motorista.

Repelira as ofertas de Molly, não deixaria o seu lugar... queria tanto ficar junto dela como ela desejava que ficasse; todas as maldades da Americana não tinham servido para nada!

E o coração de Micaela vibrou por John num impulso de ternura e gratidão.

 

- Mademoiselle, a primeira vez que queira dar um passeio pelo campo e não escolha itinerário, dá-me licença que a conduza a Pacy-sur-Eure?

- Para quê?

- Porque existe ali um restaurante onde se pode comer e descansar confortavelmente, enquanto eu dou um salto a uns quilómetros mais adiante, para abraçar uma pessoa que me é muito querida.

- Uma parenta? - perguntou Micaela, alarmada, como se pressentisse a ameaça de um perigo.

John nunca lhe falara na família, e ela julgava-o absolutamente só em França.

- Não é bem uma parenta. É a minha niania, a minha ama, apenas.

- E essa mulher habita nos arredores de Pacy-sur-Eure?

- Sim... Estava no Norte, mas arranjaram-lhe um lugar num colégio... onde dá lições de alemão e russo... Escreveu-me há tempos uma longa carta e teria muito gosto em vê-la.

- Escusava de ter esperado tanto. Quando fujo de Paris, deixo-lhe sempre à escolha o caminho que lhe agrada.

- Seria preciso sair o mais cedo possível... para que não ache o tempo muito comprido... e, enquanto almoçar, não dará pela minha ausência.

Micaela reflectiu uns instantes e, cheia de curiosidade, disse:

- Porque não iremos comer a casa da sua ama?... Levavam-se provisões...

- Dignar-se-ia dar-nos essa honra? - perguntou o rapaz, feliz com a proposta.

- Essa merenda improvisada seria deliciosa.

- Eu me encarrego da merenda! - retorquiu John, entusiasmado.

- Quer lá ir amanhã? - propôs Micaela - Partiremos às dez horas.

- Deveras, não se importa de ir amanhã?

- Absolutamente nada! Esperar, para quê? Devia ter falado há mais tempo.

- Não queria privá-la dos seus passeios matinais ao Bosque.

- Que me interessa isso?

Calou-se, mas continuou logo:

- Tem medo de mim, John? Noto que nunca manifesta um desejo ou me faz um pedido. Está sempre disposto a obedecer, sem me dar ocasião de ser-lhe agradável.

O russo corou.

- Talvez eu esteja mais habituado a dar do que a pedir - respondeu jovialmente - Tenho um grande prazer em lhe ser agradável e nunca pensei em retribuições.

No momento em que Micaela se sentia feliz por ser amável para com ele, desejaria que não a repreendesse tão subtilmente. Tinha a impressão de que John calculava o que dizia como se tivesse medo de que uma palavra atraiçoasse os seus desejos ou revelasse o seu verdadeiro pensamento.

Ao princípio era muito menos reservado. Lembrava-se da altiva independência com que ousara por vezes impor-se-lhe. Agora, disfarçava com um sorriso ou calava-se... Também verificava que estava mais à vontade com as suas amigas. Desde as tagarelices que tivera com Molly, as amigas de Micaela eram todas amabilidades para com John. Desculpavam-se, entre elas, das suas familiaridades, dizendo alegremente que, visto o motorista estar destinado a ser genro do rei do açúcar, mais valia tratá-lo como camarada.

A velhacaria feminina levava-as a falar assim diante de Micaela, de quem sentiam muda repulsa.

Ora Micaela observava que John correspondia aos amáveis gracejos das suas amigas com ar soberanamente superior de um homem que condescende em brincar com raparigas mal-educadas.

Molly Burke, mais intrépida do que as outras, obtinha às vezes galantes respostas. Ousava certas liberdades de gestos ou de linguagem para com o motorista, oferecendo-lhe bombons, um cigarro, ou qualquer bebida; encarregava-o até de pequenos recadinhos que faziam faiscar de indignação os olhos de Micaela.

E John, sem parecer comover-se com as audácias equívocas da Americana, nem com o descontentamento da sua jovem patroa, respondia, gracejando, com tal liberdade de expressão e familiaridade que parecia impertinência, se pudesse haver qualquer incorrecção na sua altiva atitude.

Então, Micaela perguntava a si própria porque era John tão cerimonioso com ela.

Seria apenas por ser a patroa? Recearia perder um bom lugar se fosse menos reservado? Ou, então, aquela correcção nunca desmentida esconderia a recordação das palavras cruéis que lhe dissera, uma manhã, no Bosque?

"- Apesar dos seus fatos bem cortados, ficará sempre para trás e nunca irá a meu lado."

A suposição de que John estava ofendido era-lhe odiosa e, quando este pensamento lhe atravessava o cérebro, desejaria arrancar essa recordação do peito daquele homem.

Afinal, de que se queixava? Não lhe tinha dito ele, nessa manhã, com tanta amabilidade, que o seu maior desejo era ser-lhe agradável? Que necessidade tinha o seu subconsciente doutras palavras ou doutras atenções?

Suspirou.

Decididamente, era doença desejar sempre outra coisa, nunca estar contente com a sorte, ambicionar felicidades desconhecidas, visões intangíveis, com as quais era proibido à filha de Jourdan-Ferrières sonhar.

 

Chegaram antes do meio-dia à casinha onde morava a ama de John.

Tiveram que se informar várias vezes do caminho depois de terem passado em Pacy-sur-Eure, porque nunca poderiam supor a existência de uma tão pobre choupana, um pouco afastada da estrada, dentro de um jardim maltratado.

John saltou do carro, bastante comovido perante a miserável habitação, e Micaela, que olhava para ele, viu o olhar doloroso com que abrangeu o casebre.

A comoção de John era tão grande que a filha do milionário dirigiu-se-lhe, e, colocando a mão sobre a dele como para o reconfortar com a sua presença, disse:

- Tenha coragem, John. Se ela é desgraçada, tirá-la-emos daqui.

- Como é boa, mademoisélle...

E depois de ter apertado a mãozinha que lhe dava ânimo, beijou-a com desusado ardor.

Não viera Micaela espontaneamente unir-se a ele numa caridade que só lhe dizia respeito?

- Bem! Já estamos prevenidos: lá dentro deve ser uma verdadeira desolação.

- Quer que eu entre primeiro para a prevenir da sua presença? - ofereceu-se Micaela.

- Penso que seria melhor eu ir à frente para lhe poupar a vista de certas misérias.

- Não - decidiu a rapariga - Não me metem medo e criam-me deveres. Mas é preciso evitar a essa mulher uma comoção muito forte.

- Então, entre primeiro. A sua bondade amortecerá o choque.

Micaela dirigiu-se para a porta. Quando lá chegou, bateu, e como lhe respondessem de dentro, abriu o fecho e entrou.

O aposento estava quase desguarnecido de móveis, e os que lá existiam não tinham o menor valor, mas reinava ali o mais escrupuloso asseio, e uma jarra com flores viçosas estava colocada em cima do fogão, em frente de uma imagem da Virgem.

Perto de uma mesa coberta com um oleado encontrava-se sentada uma mulher de cabelo grisalho.

Vendo a recém-chegada, levantou-se:

- O que deseja?

Micaela, que esperava ver uma aldeã, ficou estupefacta ouvindo a voz harmoniosa e distinta com que a interpelavam. A figura feminina pareceu-lhe, na penumbra, muito direita. Apesar do seu modesto vestido preto, o porte e compostura revelavam uma mulher educada.

Um pouco desorientada, porque receava não ser aquela pessoa a quem procurava, e não sabendo exactamente o nome da ama de John, respondeu:

- Perdoe-me entrar assim em sua casa... É Russa, minha senhora?

- Sou.

- E chama-se Natália?

- Chamo-me - confirmou a desconhecida, cujo rosto se inquietou.

- Então, é a si que venho ver! - exclamou Micaela, com um sorriso animador.

E, dirigindo-se para ela, continuou:

- Precedo um amigo... um seu compatriota, que lhe é muito querido, e cuja visita lhe dará prazer.

- Um amigo! São tão raros, hoje, os amigos! Quem pode ainda pensar em mim?

A voz era fraca, de acentuação estrangeira.

- Procure bem, minha senhora. Certamente é aquele que mais desejaria ver.

A mulher não respondeu logo. Olhava para Micaela, reflectindo.

- Estou falando com mademoiselle Jourdan-Ferrières! - disse por fim, com um gesto acolhedor.

Micaela corou.

- Conhece-me? - balbuciou, surpreendida.

- Como não a reconheci logo? Ele escreveu-me, mandando-me dizer que era bonita como a Virgem, e não errou!

Micaela não teve tempo de responder nem de se admirar.

- O Sacha está aqui! - exclamou, de seguida, a ama.

E, radiante de satisfação, correu para a porta, onde aparecia John de braços estendidos.

Micaela, absolutamente pasmada, viu a mulher ajoelhar-se, agarrar as mãos do rapaz, levá-las à testa inclinada e, depois, beijá-las com fervor, repetindo:

- Vieste, Sacha, meu filho querido, incomodaste-te para ver a tua niania.

Era tão feliz com esse gesto de afectuosa humildade que a jovem milionária esquecera o seu espanto e sorria alegremente, como se toda aquela cena lhe fosse familiar e lhe compreendesse o sentido.

John levantara-a e abraçava-a ternamente.

- Há muito que desejava este momento, Natália Petrovna. Que felicidade teres vindo para perto de mim!

Trocaram algumas frases em russo, mas John, vendo Micaela imóvel no meio da casa, disse:

- Deixa-me que te apresente a mademoiselle Jourdan-Ferrières, a quem devo a grande felicidade de poder ver-te hoje.

- Já travámos conhecimento - atalhou Micaela, estendendo a mão à ama, que a apertou com uma graça natural.

E, voltando-se para John, continuou, com malicioso sorriso:

- Imagine que esta senhora conhecia-me sem nunca me ter visto!

Como ele a interrogasse com o olhar, acrescentou:

- Sim, disse o meu nome sem hesitação, e como se lhe fosse familiar.

John corou.

- Talvez eu lhe tivesse feito, a seu respeito, uma descrição muito exacta - tentou explicar.

- Sim - confirmou Micaela, rindo - Um retrato de adulador.

- Natália Petrovna é uma indiscreta; mas que poderia ter-lhe dito que mereça tão grave censura?

E ria, apesar de um pouco inquieto, ao ver o sorriso das duas mulheres.

Mas Micaela continuava a olhar para ele, e nos seus olhos só se via indulgência e alegria.

- Vamos comer contigo, Natália - disse, por fim, John, como para se furtar à comoção daquele insistente olhar - Trouxemos provisões e vou buscá-las ao carro.

- Vou consigo - decidiu Micaela, que sentia necessidade de movimento.

- E eu vou preparar a mesa - acrescentou a velha ama.

Mas nem sequer se moveu. Com as mãos juntas, num gesto de admiração religiosa, seguiu-os com o olhar.

- Como são ambos bonitos! - murmurou -Deus da Rússia, ouve os votos secretos do meu Sacha!

Pouco tempo depois voltaram carregados de mantimentos.

John fizera bem as coisas. Não esquecera os hors-d'oeuvre variados tão queridos ao paladar russo, a caixa de caviar, o presunto e o salmão fumados, as carnes frias, trutas, pastelaria, frutas e vinhos generosos, que se bebem sem água nas margens do Neva.

Micaela mandara arranjar um enorme empadão de coelho e um frango assado, que vinham num cesto, entre rosas.

Quando John abriu o cesto comoveu-se com a delicada intenção de Micaela.

Não tardou que, sobre a toalha muito branca, surgissem as requintadas iguarias.

A velha Russa, alegre com o inesperado banquete, exclamou, radiante:

- Não podemos comer tudo isso, meus filhos!

- A fartura nunca é de mais - respondeu Micaela, alegremente.

Natália dirigiu-se para a mesa, com o rosto sonhador, tocando em todas as iguarias com infantil voluptuosidade.

Pegando nas rosas, apertou-as contra o peito.

- Há dez anos que não vejo em minha casa tal festim - murmurou, com voz apagada - Há dez anos que não como assim. O passado ressuscita!

Mas John dirigiu-se-lhe e poisou-lhe as mãos nos ombros com comovedora ternura.

- Então, Natália Petrovna, alegra-te com o presente que nos reuniu. Prometo-te que faremos mais vezes estas refeições russas, de que tanto gostas.

E, abraçando-a, bateu-lhe nas faces suavemente, acrescentando:

- Então, minha niania, não reparas como hoje sou feliz?

- Tens razão, Alexandre Yourievitch. Sou uma rabujenta terrível. Assim, apoquento-me e apoquento os outros.

- Põe depressa os talheres - ordenou John, para terminar o incidente - Tenho a certeza de que mademoiselle Micaela está cheia de apetite.

- Só tenho esta toalha, e é muito pequena - disse Natália, um pouco atrapalhada.

- Chega muito bem - respondeu Micaela, supondo que era por sua causa que Natália se inquietava.

Mas por três vezes a ama mudou de pratos, como se não conseguisse colocá-los convenientemente.

John, que seguia com os olhos os seus movimentos, adivinhou aquele mudo embaraço.

- Está bem assim - disse, no momento em que Natália se preparava para mudar novamente os pratos.

- Eu ficarei entre as duas. Mademoiselle Jourdan-Ferrières dar-me-á a honra de ficar à minha direita, e tu, minha velha nania, ficarás... do lado do coração!...

Comeram alegremente e com bom apetite. Micaela estava contente e interessava-se por tudo. Fazia mil perguntas sobre o que comia, sobre o serviço à russa;, seus costumes e lendas.

À sobremesa, John ergueu o copo:

- Pela felicidade de ambas! A si, mademoiselle Micaela, ouso desejar-lhe amor, no seu casamento... A ti, Natália, um lugar no meu lar solitário, que encherás com a tua maternal presença.

A velha ama, muito comovida, respondeu:

- Mas tu também hás-de casar, Sacha, e será tua mulher quem reinará na tua casa.

- Então confiar-te-ei os meus filhos, e a mãe ficará aliviada, porque, por pouco que se pareçam comigo, serão terríveis.

E, bebendo um golo, continuou:

- À felicidade das duas!

De um trago, despejou o copo, atirando-o para o chão, onde se quebrou.

Micaela sobressaltou-se, não esperando o gesto destruidor.

John sorriu, explicando:

- Dá sorte!

- Deveras, dá felicidade?

- Parece que sim, visto que há séculos é uso entre nós.

- Então posso fazer o mesmo - exclamou a rapariga, encantada com a novidade - porque estou quase em território russo.

- Peça uma coisa! - disse John, contente por Micaela ter adoptado, espontaneamente, um uso da sua pátria.

Os olhos da jovem milionária brilharam.

- Receio que o meu desejo não seja muito próprio para uma rapariga... Mas tenho enorme vontade de o formular.

- Um desejo sincero é sempre bem recebido; formule-o sem receio.

Micaela levantou o copo com entusiasmo e, com voz clara e radiante, exclamou:

- Bebo ao amor bastante poderoso que faça bater o meu coração, que nunca amou.

Como John, esvaziou o copo de um trago, atirando-o ao chão, para trás; neste mesmo instante, despedaçava-se no solo o copo de John e o de Natália Petrovna.

- O seu desejo realizar-se-á - disse a ama, com fé - Só houve um ruído.

- É um presságio feliz - concordou o rapaz.

- Tanto melhor! - disse Micaela, batendo as mãos.

E começaram os três a rir como ingénuas crianças crescidas.

Demoraram-se a tomar o café, numa intimidade que permitia confidências, rápidas evocações e mil historietas sobre os compatriotas ali exilados, e, por acaso, encontrados num certo momento. A ama falou em bordados russos que aceitara fazer. Esse trabalho aumentava os seus emolumentos de professora, permitindo-lhe um pouco mais de bem-estar. Foi até buscar uns bordados e mostrou-os a Micaela, que admirou a finura do trabalho e a paciência da executante.

- Copiei estes bordados de um vestido antigo da corte, que uma senhora comprou há tempos, vindo da Rússia. Também tenho que bordar a copa de um chapéu que irá bem com o vestido.

Enquanto Micaela examinava de perto o trabalho, John fazia, em russo, algumas perguntas à ama, que lhe respondeu afirmativamente. Então, voltando-se para Micaela, pediu respeitosamente:

- Disse-me, ontem, que nunca lhe manifestei o menor desejo... Posso hoje usar desse privilégio que tão generosamente me autorizou?

- Diga - respondeu a rapariga, com simplicidade.

- Pois bem! Há aqui um trajo da corte russa; quer vesti-lo, permitindo-me que a admire sob esse aspecto?

- Mas isso tem muita graça! Uma rapariga nunca se nega a experimentar vestidos.

Enquanto Micaela ia com Natália para um aposento próximo, John foi buscar à algibeira do casaco, pendurado num cabide, pequena máquina fotográfica, que logo preparou.

Pairou-lhe nos lábios um sorriso. Já por diferentes vezes quisera tirar um retrato a Micaela. Mas não ousara pedir-lhe licença. Naquela altura, a ocasião era favorável. A própria Micaela desejaria, decerto, conservar a fotografia do seu curioso trajo. Esperando a volta das duas mulheres, acendera um cigarro e, com o cotovelo encostado à mesa e as pernas cruzadas, seguia indolentemente as nuvens de fumo azulado, quando a porta, ao fundo, se abriu por fim.

Natália Petrovna apareceu muito alegre.

- Sua Alteza, a czarina Micaela! - anunciou pomposamente.

E afastou-se para deixar passar a milionária, que entrou risonha, mas um pouco intimidada no seu amplo vestido de brocado doirado, cinto vermelho,

deslumbrante de pedrarias, e o pesado kokochnik (boné bordado de pérolas e pedras, usado pelas czarinas e damas da corte), sob o qual o pequenino rosto moreno sobressaía, idealmente belo.

John levantou-se de um salto, maravilhado, diante da radiosa visão. Deliciosa comoção lhe encheu a alma e, com a respiração opressa, ficou de pé, extasiado, cheio de admiração.

Esquecendo a sua habitual impassibilidade, envolveu-a num olhar apaixonado.

- Como é bonita! - disse, inconscientemente.

A sua voz era baixa, rouca, com entoações de mal contido ardor. Micaela, de repente perturbada pelo olhar eloquente do Russo, baixou a cabeça e tornou-se vermelha como uma papoila.

E começou a alisar as pesadas pregas do vestido sumptuoso. Na realidade, não ousava levantar os olhos com medo de encontrar o olhar demasiadamente expressivo de Sacha.

Algumas palavras pronunciadas em russo pela perplexa Natália chamaram o rapaz à realidade. Olhou para a ama, depois para Micaela e, um pouco corado, dominou os nervos e expulsou do rosto os sinais exteriores das suas emoções; readquiriu a impassibilidade.

- Meu Deus! Como está encantadora! - disse por fim, num tom absolutamente correcto - Quando me apareceu, há pouco, não vi mais diante de mim as paredes desta casa, e tive a impressão de voltar doze anos atrás!

A voz grave dissipava a perturbação feminina. Micaela levantou a cabeça, olhou para o motorista, admirada de o encontrar tão cortês, e perguntou a si mesma se não sonhara havia pouco.

- Este vestido é magnífico - afirmou ela - As mulheres russas têm sorte em se vestir tão brilhantemente.

- As parisienses nada têm a invejar a ninguém; são bonitas com todos os trajos. Quer permitir-me que a imortalize sob esse aspecto? - perguntou John, mostrando a máquina fotográfica.

- Trouxe?... Que boa ideia!

Deteve-se, reflectiu, e continuou:

- Tire como quiser; mas dê-me as películas para eu revelar.

O rapaz ficou perplexo, por momentos.

- Posso também revelá-las - observou - Enviar-lhe-ei depois todas as provas.

- Sim, mas isso divertir-me-á imenso.

- Considerar-me-ia muito feliz se pudesse ter uma fotografia de cada pose, como recordação deste dia em que se dignou descer até mim - disse Natália.

- Não me esquecerei de lhas enviar - afirmou Micaela.

- E eu não terei nenhuma? - inquiriu John, com tímida diplomacia.

- O senhor?!

E mediu-o com rápido olhar.

- Os vestidos não interessam geralmente os homens - declarou Micaela, um pouco secamente.

- Mas desta vez o caso interessa-me - respondeu John, com um sorriso de insistência.

E, como ela franzisse as sobrancelhas, explicou:

- A verdade é que esse trajo evoca toda a minha Rússia, toda a minha mocidade, e mademoiselle vestiu-o com tal graça que...

A milionária interrompeu-o bruscamente:

- Fotografe só o fato, visto que lhe agrada. Não posso dar-lhe uma prova dos meus retratos!

Todo o orgulho de Micaela se condensou nestas palavras.

John não respondeu. Preparava a máquina, focando Micaela.

- Quer fazer o favor de tomar pose? - disse, com grande calma - Neste claro-escuro não posso fazer um instantâneo, e tenho que recorrer ao magnésio.

Natália apressou-se em afastar as cadeiras, e empurrou a mesa. A furto, olhou para Alexandre Isborsky e o seu rosto impassível comoveu-a. Como ele sentisse pesar sobre si o olhar da ama, sorriu afectuosamente, para a tranquilizar.

Por detrás de Micaela, a pobre senhora tentava fazer-lhe compreender que as fotos que a rapariga lhe mandasse seriam para ele. Mas o sorriso de John acentuou-se, enrugando o lábio superior numa espécie de troça. E Natália compreendeu que, sob aquela impecável correcção, o Russo já achara meio de vencer a dificuldade.

Evocou então a criança de outrora, sedutora e ao mesmo tempo meiga, tão voluntariosa que raras vezes cedia. E, olhando para Micaela, pensava que, fosse qual fosse a vontade da jovem, John a dominaria sempre.

 

Tiraram quatro fotografias. Micaela prestara-se, sorridente, às diferentes atitudes desejadas por John. Quando fechava a máquina, ela propôs:

- Se quiser fotografar o trajo, faço-lhe a vontade, escondendo a cara com um leque ou um jornal.

- Muito obrigado; já não tenho mais películas.

- É pena! - disse, um pouco impressionada pela vivacidade da resposta.

- Não importa! - observou o Russo.

E os seus olhos claros poisaram, com certa dureza, nos de Micaela.

- Pensei que talvez miss Molly Burke gostasse de experimentar este trajo. É mais pequena, e não tem, evidentemente, a sua figura magnífica, mas a cabeça loira, um pouco infantil, não deve ficar mal sob o kokochnik.

- Deve, realmente, ficar encantadora, e a ela tudo se pode pedir - retorquiu, sorrindo com afectada indiferença.

Mas Natália, que a observava, viu o esforço daquele sorriso.

- Este fato não ficará tão bem a qualquer mulher que não seja como mademoiselle Micaela - notou a ama, desejando adoçar as palavras de John.

Mas ninguém lhe respondeu.

John juntou os quatro chassis utilizados e entregou-os, depois de embrulhados, a Micaela.

- Aqui tem, segundo o seu desejo.

Micaela pegou-lhes e, guardando-os na malinha, voltou-se para Natália e disse:

- Enviar-lhe-ei duas provas de cada pose. É bastante?

- Sim, mademoiselle, e muito lhe agradeço.

Um sorriso vitorioso perpassou pelos lábios de John. Naturalmente, das duas provas anunciadas, uma era-lhe destinada, mas absteve-se de formular o seu pensamento, e quando Micaela, depois de uns minutos, olhou para ele, viu-o gravemente entretido a guardar a máquina fotográfica no estojo.

Nesse momento, abriu-se com ruído a porta, e uma mulher muito velha apareceu no limiar.

- Deus os salve, e sejam abençoados, por saciarem hoje a minha fome.

Este tom declamatório fê-los voltar ,a cabeça para aquela que entrava. Era uma velhinha, curvada e de pele apergaminhada pela idade. O fato esfarrapado, o calçado esburacado, mal penteada, desdentada e suja, tal era o ser miserável que acabava de entrar.

Micaela, um pouco assustada, recuara, pensando que laços podiam ligar Natália Petrovna à recém-chegada.

Não teve tempo de responder à pergunta. A velha notara ainda a mesa posta e um riso diabólico lhe saiu da horrível boca:

- Ah! Ah! Banqueteiam-se, aqui, enquanto os nossos irmãos morrem de fome!

E, em russo, numa linguagem dura, que Micaela não podia compreender, começou a invectivar Natália Petrovna.

Como a megera, em face do silêncio atormentado da ama, elevasse um pouco mais o tom, a voz de John soou de repente:

- Quem se permite falar assim tão alto na minha presença?

A velha estremeceu, subitamente emudecida, voltando-se para o lado donde a voz viera. Só nesse momento o notou, bem como a Micaela, no seu rico trajo.

Espantada, curiosa, dirigiu-se para ela e olhou-a de perto, levantando o rosto tisnado para as feições puríssimas da rapariga.

Esta, instintivamente, aproximou-se de John. E este gesto medroso, que a lançava para ele, fora tão natural, tão inconsciente, que o seu reflexo se fez sentir, como um eco, no jovem Russo. Estendeu o braço, como para melhor dar asilo à sua fraqueza, de forma que se pudesse encostar, em caso de necessidade.

A velha estendeu o dedo curvo para Micaela:

- Não é da nossa pátria... esta rapariga que lhe veste o trajo... É Russa de ocasião... pelo capricho de um homem!

John viu a velha aproximar-se.

- Para trás, mulher! E mais respeito nas observações!

O olhar da intrusa brilhou, e como se uma víbora lhe tivesse mordido o calcanhar, voltou-se furiosa para John.

- Tu ousas dar ordens a Kátia Gretzova...

Ergueu os dois punhos para ele, mas não terminou o gesto. Os seus olhos fixaram-se, alucinados, no rosto do Russo, e uma espécie de terror supersticioso se espalhou pelo seu rosto.

- Tsarskoya Krov! - (sangue de Czar) - murmurou ela - Tsarskoya Krov!

E recuou, trémula. Encostando-se à mesa para não cair, conseguiu dobrar o joelho e ajoelhar.

- Quem é esta mulher? - perguntou John a Natália.

- Kátia Gretzova.

John repetiu lentamente o nome famoso em certos meios, que não lhe era desconhecido. De repente, lembrou-se:

- Kátia Gretzova! A feiticeira vermelha!

- Ela mesma.

E, enquanto a velha continuava na mesma posição humilde, explicou a Micaela:

- A feiticeira vermelha foi bem conhecida na Corte da Rússia! Esta mulher altaica, isto é, da Rússia asiática, apareceu um dia em Tsarskouye sem que se soubesse donde vinha, nem quem a introduzira no palácio. Por diferentes vezes predisse ao nosso Czar as desgraças que haviam de cair sobre ele e sobre a Rússia. Citam--se estranhas profecias insuspeitas, que ninguém podia prever, e que se realizaram. Agora está muito velha, e não a teria reconhecido, apesar do seu perfil correcto, dos seus olhos em amêndoa e da sua cor esverdeada.

- Ainda eras muito pequeno, Alexandre Yourievitch, quando a viste em Tsarskoye - observou a ama.

- Mas de que vive? - perguntou Micaela, cuja bondade despertava perante aquele vulto miserável caído por terra.

- Anda pelas casas russas - respondeu Natália - e cada um favorece-a conforme pode. Ninguém sabe dizer por que caminho veio ter a França, nem que mão a guia para os russos exilados! Chega quando não se espera e parte sem prevenir, livre, selvagem, independente, até no exílio e na miséria.

- Interrogue-a! - pediu Micaela - Talvez nos prediga qualquer coisa interessante.

John olhou fixamente a sua jovem patroa.

- Devemos recear o pior quando se interroga o futuro... Mas, se não tem medo...

- Gostava tanto de saber!

O russo indicou-lhe uma cadeira. E, sentando-se também, disse à ama que preparasse a refeição da velha.

Depois, dirigindo-se a esta, continuou:

- Levanta-te, Kátia Gretzova, e sê bem-vinda à nossa casa.

A mulher descobriu o rosto e, humildemente, se bem que a voz fosse um pouco altiva, disse:

- Que Deus te proteja! Sou a tua humilde serva!

- Em França, os russos são todos irmãos - retorquiu, com doçura, o motorista -, Somos todos iguais na desgraça e no exílio. Levanta-te, Kátia Gretzova.

Ele próprio a ajudou a pôr-se de pé, e, como a sua mão tocasse na de Kátia, esta agarrou-a e levou-a respeitosamente aos lábios.

- Desejo-te sorte e prosperidade. Que o céu registe o meu voto e te dê a felicidade a que tens direito.

- Obrigado, Kátia Gretzova. Mas tu, que sabes tanto, não tens nada a dizer-me sobre o negro futuro, tão fechado para mim?

- Vi-te na cara a raça, mas não o teu nome. Dize como te chamas, para eu ver donde saiu a águia.

- Sou Alexandre Isborsky - respondeu -, não me fales no passado. Conheço-o! O futuro é que me inquieta.

- Tu és Alexandre Isborsky?

- Sou.

- Conheci teu pai; que Deus tenha a sua alma. Era um homem generoso, mas vivo e turbulento! Oxalá te pareças com ele, mas com moderação... Vamos, dá-me a tua mão para eu ver o que a sorte lá escreveu.

John estendeu-lhe a mão esquerda, bem aberta, e a velha inclinou-se com atenção, seguindo com o dedo o traço das linhas marcadas.

Depois ergueu-se, movendo a cabeça:

- Há na tua vida uma mulher ocupando o primeiro lugar... Por ela sofrerás muito... muito... Fugirás para longe com a alma despedaçada... Mas o teu astro brilha com uma luz singular, terás felicidade e riqueza e os teus filhos preencherão todos os teus, desejos de pai... Tenho dito.

Um pormenor inquietou o jovem Russo.

- Falaste numa mulher que me fará sofrer. Será também dela que me virá a felicidade?

- Há só uma mulher na tua vida... Mas que importa que seja ela ou outra, visto que serás feliz... Este sinal é certo e nunca engana!

E com o dedo indicava na mão duas linhas que se cruzavam nitidamente.

John ficou um segundo pensativo, mas, parecendo repelir qualquer pensamento importuno, exclamou:

- Obrigado pelas tuas palavras, Kátia Gretzova. Reconfortaram-me...

- Agora eu! - disse Micaela, que estava impaciente.

E, por sua vez, estendeu a mão à velha.

- A andorinha tem sede do desconhecido - murmurou a vidente, com ênfase - Julgas, Alexandre, que as suas asas possam suportar o voo?

- Mademoiselle é muito pura para ser atingida pelo mal. Tranquiliza-a, Kátia, sem a desgostares...

- Não - atalhou Micaela, olhando para John com indignação - Quero conhecer a verdade sem que me escondam uma parcela! Diga-me tudo, tudo!

A velha riu, com indulgência.

- Sim, minha pomba, sim, Kátia vai dizer tudo. De resto, uma alma forte pode esconjurar a sorte quando está prevenida! E a mademoiselle é uma valente francesinha, de olhos de diamante.

Inclinou-se curiosamente sobre a mão trémula de Micaela. Primeiro, sobressaltou-se, e em voz baixa, em russo, murmurou qualquer coisa.

John, na mesma língua, respondeu bruscamente, como se desse uma ordem.

- Que diz ela? - perguntou Micaela, a quem estes à-partes inquietavam.

- Silêncio! - recomendou John, acrescentando logo em seguida - Dize tudo, mas fala em francês.

A feiticeira vermelha conservou-se muito tempo olhando para a branca mãozinha. Por fim, levantou a cabeça:

- Não é fácil ler o horóscopo da andorinha. A sua linha está perturbada e o voo é agitado... as coisas contradizem-se por toda a parte.

Inclinou-se novamente para a mão aberta e, em frases concisas, declarou:

- Alma pura, mas orgulhosa e dominadora... o sangue é de uma raça, o espírito de outra... Ama, negando o amor... filha sem pai, esposa sem marido... sofre, e a causa do seu sofrimento é ela própria! Está doente... é a morte num corpo vivo...

- A morte num corpo vivo? - interrompeu John, que seguia atentamente as palavras da vidente.

- Sim, a vida e a morte são duplas... tudo existe... e tudo se contradiz - afirmou a velha, cujo dedo apontou as linhas da mão de Micaela.

- Continua - disse John, pensativo.

- A cura é uma ressurreição! - prosseguiu a vidente - Agora está tudo claro! O orgulho é espezinhado. Ela caminha direita na vida para a felicidade!... Terminei!

Calou-se. Os seus olhos de alucinada pareceram descer à terra e olharam suavemente para Micaela.

- Vai, minha pomba - disse por fim - Terás belos dias na tua vida: és amada por um homem de quem serás rainha. A tua linha de felicidade é bela entre as mais belas. Sê feliz, tu, a quem o Destino marcou, e sê boa para com os humildes, tu, que serás rica e poderosa.

- Que alegria! - exclamou Micaela, radiante - Serei feliz, amada, rica e poderosa! Enfim, terei todas as felicidades!

- Nem tanto é preciso para ser verdadeiramente feliz - objectou Natália, um pouco medrosa diante daquela deslumbrante visão de felicidade.

Pouco depois, Micaela, acompanhada por Natália, dirigiu-se ao quarto próximo para mudar de fato. John e a velha feiticeira ficaram a conversar.

- O que viste, realmente, na mão da minha companheira? - perguntou ele, com voz discreta,

- Disse a verdade.

- Na nossa língua, falaste numa analogia?

- A mesma que os une. A sua mão completa a tua.

- Que queres dizer com isso?

- Que os vossos destinos se confundem. Os vossos caminhos são idênticos.

- Segui-los-emos juntos ou separados?

Havia tão intensa ansiedade na voz que formulava esta pergunta que a feiticeira vermelha deixou de comer para melhor olhar para ele.

Que belo exemplar de homem russo! A sua alma de patriota estremeceu de prazer admirando os grandes olhos francos, o belo perfil, a fronte altiva e a boca voluntariosa. E um sorriso franziu a sua boca desdentada.

Num relance, evocou todos os czares e nobres boiardos que, durante séculos, mandavam procurar no campo, entre milhares de raparigas, aldeãs ou castelãs, a mais bela, a mais bonita, destinada a procriar a sua descendência.

E depois de ter terminado o seu exame ao jovem Russo, perguntou a si própria quantas gerações teriam sido precisas, quantos seios maternais sem defeito e quantas belezas femininas seleccionadas, para gerar um tipo tão absolutamente perfeito?

Kátia Gretzova apontou para ele, com o indicador encarquilhado, e profetizou:

- És belo de mais para que uma mulher a quem notaste siga outro caminho sem ser o teu. Os destinos hão-de cumprir-se para satisfazer os teus desejos, visto que está escrito que hás-de triunfar.

- Mas ela? - insistiu John - Ela, cujo destino completa o meu?

Sentiria a velha que era preciso dar-lhe confiança na sua estrela? Com o seu ar de visionária, afirmou:

- Ela é Ela, e tu és Ele. Ele e Ela, o eterno par humano. A tua raça dominará a sua e curvá-la-ás à tua vontade. Não me interrogues mais; sou velha e

as trevas condensam-se em redor de mim. Para te obedecer, ser-me-ia preciso olhar sem ver e responder sem saber.

- O homem não sabe contentar-se com uma esperança: desejaria uma certeza - respondeu John.

E, benevolamente continuou:

- Acaba de comer, Kátia Gretzova. As tuas palavras fizeram-me bem, mesmo que as tivesses dito para me comprazer. Não me esqueço do que predisseste para a nossa querida Rússia e que de facto aconteceu... Mas quem teria ousado acreditar, então, que a verdade saía dos teus lábios, tão cruelmente proféticos?...

- Apesar da tua pouca idade, Alexandre Yourievitch, a tua voz tem modulações de pessoa ajuizada... Sê também tão paciente como és belo e corajoso! O êxito no amor coroará todos os teus esforços... Tenho dito!

A mulher levantou-se, e, com o braço estendido para o Russo, pareceu abençoá-lo três vezes.

John inclinou, grave e respeitosamente, a cabeça, como se o gesto da feiticeira lhe tivesse conferido uma distinção.

- Obrigado - murmurou apenas.

E levantou-se para acompanhar Micaela, que apareceu de chapéu e luvas, pronta para se retirar.

 

Na noite que se seguiu a este passeio a Pacy-sur-Eure a filha de Jourdan-Ferrières dormiu mal. Um pouco excitada, reviu todos os pormenores daquele dia, fértil para ela em comoções de toda a espécie.

Primeiro, a chegada à pobre habitação, e a profunda impressão experimentada com aquela visita de caridade, e o seu espanto ao encontrar uma mulher tão simples e distinta... A alegria dessa mulher ao ver John; o seu grito de ternura contrastando tanto com a saudação humilde com que o acolhera. Também a velha feiticeira tivera o mesmo gesto de humildade.

E Micaela supôs que na Rússia os homens deviam ser, para as mulheres, uma espécie de semideuses a quem serviam devotadamente...

Depois, lembrou-se da refeição: aquela mesa carregada de vitualhas e a alegria pueril de Natália. A atitude de John, nesse momento, veio-lhe à ideia. Ele, tão grave, tão sério habitualmente, de quem um sorriso apenas esboçado era o único sinal aparente de alegria, parecia comovido, transfigurado perante a satisfação da ama... E pareceu a Micaela que a alegria do seu motorista era tão ingénua como a dela... e que ambos eram um quase nada ridículos em se alegrarem ao ver uma mesa superfluamente servida.

A jovem milionária nunca conhecera a fome nem as restrições. Por isso, não percebia o que representava aquela ementa delicada e abundante para os pobres exilados privados de todos os bens e hábitos.

Uma boa mesa, iguarias abundantes, é todo o passado que ressurge. A vida familiar, os jantares de festa, as recepções, os rostos queridos, tudo vem à memória em volta da mesa... No trabalho quotidiano, nos passeios e conversas pode esquecer-se o passado... É à mesa que tudo se rememora: os ausentes, os lugares vazios, o bem estar desaparecido.

Sem poder adormecer, Micaela continuava a desenrolar a película das sensações registadas. Reviu a entrada da feiticeira vermelha, a atitude provocante e rabugenta; a maneira como aquela horrível velha a encarara e a intervenção de John. Porque usara ele, depois, um tom autoritário? Estranha profetisa do Destino!

Anunciara, a John, lágrimas, uma viagem, e depois felicidade e riqueza.

Sem querer, Micaela pensou em Molly. Figurou-se-lhe John fugindo de França, por desgosto de amor... e Molly Burke consolando-o, tornando-o rico...

Era-lhe desagradável verificar que os vaticínios da velha se adaptavam absolutamente aos desejos de Molly. Conseguiria ela, por fim, roubar-lhe o motorista?

Essa suposição desagradava-lhe profundamente e, ainda mais, porque tinha a vaga intuição de que por sua causa John partiria. Desprezava essa ideia, não querendo admitir que pudesse ser ela quem, ocupando o pensamento de John, estivesse destinada a causar-lhe o desgosto anunciado.

Não! Tal ideia produzia-lhe o efeito de um sacrilégio. Um motorista! Um subalterno! Um homem sem fortuna, ousar levantar os olhos para ela... Micaela Jourdan-Ferrières, obrigada a defender-se do audacioso amor de um inferior.

Não! Não! Essa abominação era impossível! Fugia até da lembrança do ardente olhar que a envolvera, quando aparecera em traje da Corte; estremeceu, lembrando-se do olhar desse homem e o sangue ferveu-lhe nas veias como se, apesar das paredes do quarto e das pálpebras fechadas, na escuridão, os olhos do rapaz pudessem ainda poisar nos seus.

E Micaela repetia todas as estranhas profecias daquela mulher. Confessava a si mesma que o seu carácter e certas frases da sua vida tinham sido adivinhadas:

"Orgulho, sangue, espírito, filiação! Só eu conhecia isto! E, contudo, aquela mulher falou a esse respeito. Então será também verdade o resto?"

De facto, esse amor anunciado não existia. E esse marido com quem casaria, sem que ele fosse seu esposo? Essa doença? E a ressurreição?...

Depois de todas as suposições teve que renunciar a compreender. Havia, no entanto, uma coisa que a alegrava: seria amada apaixonadamente e a sua felicidade fundir-se-ia na do homem a quem amaria.

Rejubilou, pensando na perspectiva do amor partilhado; apesar da sua imensa fortuna, podia ser amada por si própria!

Inconscientemente, a imagem do príncipe encantado fazia parte dos seus sonhos de rapariga, e era-lhe infinitamente agradável pensar que esse sonho seria uma realidade. Um único receio absurdo, se bem que mal definido, fervilhava no íntimo da sua alma como um nevoeiro impalpável: o pensamento de que John se misturaria na sua vida sentimental.

Não podia evocar o príncipe encantado sem que lhe aparecesse a imagem do motorista.

Era absolutamente ridículo! Não queria notar que pensava demasiado no rapaz; cada vez que admirava a sua beleza, censurava-se amargamente, como se tivesse cometido uma falta contra o pudor; e quando pensando em Molly Burke, enraivecia, persuadia-se de que o seu despeito era apenas causado pelo desejo de conservar um motorista insubstituível, e, por fim, quando, acautelando-se com as suas palavras, evitava ferir-lhe a susceptibilidade, felicitava-se pela benevolência que tinha para com o inferior, sem perceber que abdicava perante ele a maior parte das suas prerrogativas.

Nessa noite, em que não conseguira adormecer, surgiram-lhe repentinamente certos escrúpulos. Passara o dia com John em casa de alguém que lhe era querido! Comera à mesma mesa, e misturara-se durante horas na sua vida íntima, nas suas afeições.

Esquecendo que era filha de um dos maiores homens de negócios da França, qualquer coisa como uma princesa de lenda, ao lado de um pobre diabo de um motorista, descera até ele, partilhando as suas alegrias e divertimentos.

E não podia compreender como esse dia, que lhe parecia agora um grande pesadelo, lhe dera, durante o tempo que durara, um prazer como há muitos anos

não sentia.

Não era por ter vestido aquele traje que se censurava. Lembrava-se de ter dito a John que o faria para lhe dar satisfação. Pensando que pudera proferir semelhante frase, sentia-se morrer de vergonha.

Naquela escuridão, escondeu o rosto como para se furtar a tal confusão.

Nervosamente, desgostosa, cansada de viver uma existência tão difícil de levar com rectidão, Micaela chorou até que o sono, triunfando de todas essas reminiscências nocturnas, se apossou dela.

Ao despertar encontrou ainda algumas das suas impressões, se bem que um pouco atenuadas. Mas o descontentamento contra si própria persistia, e sentindo uma grande necessidade de reparação para se punir de tal convivência com um motorista, decidiu privar-se, nesse dia, do automóvel.

- Landine - disse à criada de quarto - vai dizer a John que hoje não preciso do carro e que pode dispor do dia.

Assim, tinha ao seu dispor vinte e quatro horas para recompor a sua atitude. Depois de tanta condescendência na véspera, ter-lhe-ia sido difícil, nesse dia, colocar-se no seu lugar. Essa prorrogação que se impunha dava-lhe possibilidade de fazer marcha atrás.

- Amanhã retomarei a minha habitual arrogância... Aproximou-se da janela para poder seguir, através da cortina, o jogo fisionómico do motorista.

Viu Landine falar-lhe. A rapariga era desenvolta e desempenhava, rindo, a sua missão. John ouviu-a com o rosto sério, como de costume.

Por momentos, não foi senhor de si e levantou os olhos para a janela onde ela estava. Micaela afastou-se, como se, através do tule bordado, o olhar do motorista pudesse surpreendê-la a espreitar.

Viu-o tirar o casaco branco, pegar no chapéu e nas luvas, porque vinha sempre para o trabalho correctamente vestido. E lentamente, como a seu pesar, saiu do pátio do palácio. Micaela viu que, na rua, ele hesitava, e mais uma vez olhava para as janelas do seu quarto.

Era visível que a sua decisão o descontentava. Estava inquieto e pensava o que significaria aquilo. Era a primeira vez que ela o tratava assim, e na véspera não fizera a menor alusão a esse dia de liberdade que lhe concedia. Por fim, afastou-se, no seu passo elástico e medido.

Quando John desapareceu, a filha de Jourdan-Ferrières respirou, aliviada. Resistira ao desejo de o chamar, desejo que a dominava desde que Landine o fora procurar. Felicitou-se pela sua força de vontade, mas, ao mesmo tempo, o seu quarto pareceu-lhe, de repente, privado de sol.

Que faria naquele dia? Como matar o tempo? A vida era, às vezes, bem difícil de viver!

Pensou nas suas amigas, em Molly Burke. Estas não tinham tantas esquisitices; aceitavam a vida como ela era, esforçando-se por colher dela todas as alegrias. Certamente, nenhuma teria tido a estúpida ideia de se castigar por um pouco de prazer tão apreciado. Só Micaela era a única que tinha escrúpulos tão ridículos.

Agora, o automóvel fora guardado, e o motorista estaria ausente até ao dia seguinte.

Então caiu-lhe sobre os ombros um peso que a oprimia. Ficou triste e com um imenso desejo de chorar. Deu vários passos pelo quarto e tentou interessar-se pelo vestido que envergara. Mas nada a distraía e tudo a fatigava.

Desesperada, deixou-se cair num fauteuil, e com a cabeça entre as mãos, entregou-se a um pesar invencível.

De repente soou a campainha do telefone. Levantou-se devagar e levou o auscultador ao ouvido, com verdadeiro cansaço.

- Está?

Estremeceu e o seu rosto coloriu-se.

- Estou!... Sim, sou eu... diga.

Já não era a mesma, mas não deu pela transh figuração. Pelo aparelho ouvia-se a voz de John. Para chegar até ela, para a ouvir e poder falar-lhe, não encontrara outro meio.

E, gravemente, explicou:

- Era conveniente que se assinasse hoje a escritura de doação relativa a João Bernier. Estão prontos todos os documentos e o dinheiro depositado. Trata-se apenas de uma assinatura. Posso aproveitar este dia de liberdade para terminar este negócio?

- É uma excelente ideia! Onde vai fazer-se a assinatura?

- No cartório do tabelião.

- Onde é?

- Em Montparnasse.

- A que horas?

- Esta tarde.

- Donde me está a telefonar?

- De um Café na Avenida Wagram.

- Bem... oiça... Desejo ler a escritura antes da assinatura.

- Tem razão, mademoiselle.

- Vou consigo. Venha buscar-me...

- A que sítio? Quer que a espere num carro?

- Não, nada de carros. Oiça: vá almoçar e às duas horas esteja na Etoile... junto do Soldado Desconhecido ...

- Entendido... Até logo, mademoiselle.

- Até logo.

Desligou o aparelho. Estava radiante.

- É um rapaz admirável! Que boa ideia ter pensado em João Bernier e telefonar-me.

E acrescentou logo, consigo mesma, com uma sinceridade evidente.

- Devo certificar-me de que esta doação não deixa nada a desejar... porque, depois de assinadas as escrituras, já seria tarde. Na verdade, esta saída com John é um dever a que não podia eximir-me!

 

A seguir ao almoço, Micaela voltou à pressa ao seu quarto e envergou um vestido de passeio, discreto e de bom gosto.

A verdade era que esse vestido chegara há pouco. Ainda o não vestira e, na prova, observara que a tornava elegantíssima.

Às duas menos dez chegou à Praça de Étoile. Não estava habituada a andar a pé e admirava-se dos olhares que a fitavam. Para chegar ao Arco do Triunfo voltou um pouco à esquerda, não querendo atravessar a praça sob a vista de John, que devia espreitá-la.

Surpreendeu-o, com efeito, pelo lado oposto, mas não se lhe dirigiu logo. Parou um instante e examinou-o. Era a primeira vez que o via em simples trajo de passeio, e admirou-se por o achar tão elegante. Ficou pasmada perante a impecável distinção desse simples motorista.

Onde aprendera o jovem Russo a vestir-se tão bem e estar tão à-vontade?

Uma mulher fica sempre contente por ter a seu lado um homem elegante, e a jovem milionária experimentou essa satisfação. Mas, ao mesmo tempo, constrangeu-se. John estava bem vestido de mais.

Exactamente como no Bosque, a cavalo, parecia seu igual; e sentiu que naquele momento também não parecia viver do seu salário.

Ela estava elegante, vestida por um dos melhores costureiros, mas John, no seu trajo, podia apresentar-se a seu lado: era um verdadeiro gentleman.

Notou que ele era reparado. A sua distinção não passava despercebida e fazia supor uma alta personalidade desconhecida.

De pé, junto do túmulo do Soldado Desconhecido, dir-se-ia alheio a tudo que o rodeava. Aquela pedra, coberta de flores, parecia fasciná-lo, dar-lhe pensamentos sérios. A prega do lábio era grave e a cor pálida tornava-lhe o rosto doloroso. Por vezes, olhava para o lado da Avenida Marceau. E quando verificava que não aparecia ninguém, recaía na sua meditação.

Sempre garota, Micaela pensava se não teria graça deixá-lo ali especado, um bom bocado! Quanto tempo esperaria ele sem se impacientar?

Tentava fazer-lhe uma partida, mas viu uma mulher que já passara duas vezes junto do monumento encaminhar-se para o lado de John. Sentiu que, se não interviesse, essa equívoca mas gentil e bastante elegante mulher, abordá-lo-ia sob qualquer pretexto.

Este pensamento decidiu-a a dirigir-se ao rapaz.

- Estou a vê-lo há cinco minutos, John; parecia pairar na lua!

Ouvindo a voz de Micaela estremeceu, mas, tirando, logo o chapéu, desculpou-se:

- Perdão, não a vi chegar.

- Em que pensava, com ar tão sério? Fugitiva expressão de tristeza velou-lhe os olhos

azuis.

- Nos meus camaradas do exército branco, caídos lá longe, sem sepultura - murmurou com voz alterada.

Micaela começou a rir, para esconder a comoção que a sua gravidade lhe causara.

- Que ideias tão alegres para esperar uma rapariga! - comentou, troçando.

- Não me esqueci que vinha - exclamou John, censurando-se pela falta de galantaria - Espreitava-a daqui... Por onde veio?

- Por ali...

E indicava a Avenida do Bosque de Bolonha.

- E eu a olhar para a Avenida Marceau!

- Como iremos até Montparnasse? - continuou Micaela.

- Quer um táxi? - propôs John.

- Nada de carro.

Pensou que não podia fazê-lo sentar ao lado do motorista. E, como queria evitar qualquer ocasião para familiaridades, a ideia de um carro e da sua intimidade devia ser posta de parte.

- Talvez o metro - decidiu - Vá à frente e compre os bilhetes. Segui-lo-ei.

- Quer permitir-me que a ajude a atravessar a rua? Há tantos carros...

- Não sou uma criança a quem seja preciso guiar. Sei andar sozinha... Vá adiante.

O tom em que falara não admitia réplica, e John afastou-se na direcção da escada do metro, sem voltar a cabeça para ver se ela o seguia.

A essa hora, a multidão era enorme e as carruagens iam cheias, mesmo as de primeira classe. Tiveram de viajar de pé e, como a afluência era grande, Micaela teve de se encostar a ele para se equilibrar.

E, nessa multidão anónima, conservaram-se bastante tempo juntos um do outro.

Apesar de Micaela se esforçar por não ficarem face a face, o seu peito encostava-se ao de John, sentindo-lhe a respiração.

A rapariga estava profundamente perturbada por este contacto que não podia evitar. Parecia-lhe que o sangue lhe corria mais rápido nas veias e que todo o seu ser desfalecia. Surpreendeu, várias vezes, os olhos de John fixos nos seus e, quando os olhares se encontravam, invadia-a um delicioso tremor que lhe distendia os nervos, abrandando-lhe a vontade de parecer indiferente.

Quando voltaram à superfície da terra, em frente da estação de Montparnasse, Micaela estava muito corada e o seu companheiro bastante pálido.

O ar puro fez readquirir, imediatamente, o sangue-frio à filha de Jourdan-Ferrières.

- Felizmente, sirvo-me raras vezes do metro. Viaja-se ali muito mal.

- Há sempre muita gente.

- Sim, e faz um calor sufocante! Agora estou coradíssima.

John olhou-a, ainda perturbado.

- É sempre bonita. O preto fica-lhe muito bem.

O cumprimento lisonjeou-a, mas vinha do seu motorista, e Micaela desejaria ter força para o colocar no seu lugar. Agora, que readquirira todo o império sobre si própria, aborrecia-se pela comoção que a perturbara no metro.

Que disparate era aquele de experimentar tais sensações com o contacto de um homem de condição inferior? De que lama eram formados os seus sentimentos?

Sem dúvida, era ele o culpado dessa vertigem singular. Mas, como tudo tinha passado, jurava não cair noutra. Pareceu-lhe que a mão de John poisara na sua cintura, num dado momento e, aproveitando os encontrões dos viajantes, a apertara mais contra si. Fosse como fosse, o caso era que os seus olhos poisaram ousadamente nos dela. Que orgulhosa audácia dominava, pois, esse homem na aparência tão correcto e impassível?

Pensando em tudo isto, caminhava docilmente ao lado de John, igualmente silencioso.

Havia um grande agrupamento de carros para atravessar uma praça e o sítio era bastante perigoso para os peões. John, sem reflectir, num gesto natural de homem bem-educado para um ser mais fraco, colocou a mão no cotovelo de Micaela, e puxando-a um pouco para si, tomou a iniciativa de a guiar por entre os carros.

Ela não se opôs, mas, mal tinham chegado ao passeio oposto, repeliu a mão com vivacidade. Tomou este gesto de protecção por humilhante familiaridade. Quem lhe permitiria, em plena rua, um tal atrevimento?

- O tal notário ainda é longe? -perguntou, dominada por um íntimo enervamento.

- Não é muito longe... cinco minutos daqui.

- Felizmente! Não desejo passear assim, consigo, por muito tempo.

John parou, interdito. Ela viu, sem olhar, a forma como o rapaz a encarou. Tornando-se subitamente glacial, indicou-lhe o extremo da rua.

- Vá à frente. Quando ali chegar dir-lhe-ei o caminho a seguir. É a cinquenta metros da próxima esquina.

Micaela encolheu os ombros, descontente consigo, e com ele.

- A sua susceptibilidade é ridícula - declarou - Disse que o acompanharia a casa desse maldito tabelião, e iremos juntos. O que não quero é andar consigo pelas ruas mais concorridas.

- Não vou lá para me divertir, assim como não foi por minha causa que há alguns meses visitei a rua das Amendoeiras.

A brutal resposta vexou Micaela, que não replicou.

"Noutro tempo não me teria falado assim - pensou amargamente - A culpa é minha, por tratá-lo com tanta condescendência; agora, julga que tudo lhe é permitido".

E desesperou-se com ele, por ter estragado, pela sua deplorável susceptibilidade, uma tarde que esperava tão bela.

Não se demoraram muito no cartório do tabelião. John apresentou-a como sendo a secretária do dador. Este, não querendo ser conhecido, mandara-a para assistir à assinatura do contrato, assegurando-se assim de que todos os seus desejos estavam mencionados.

A deferência um pouco respeitosa que John mostrava e a reserva altiva de Micaela contribuíram para tornar verosímil a explicação do Russo, quanto à presença de Micaela na assinatura do contrato e às informações que exigia.

Meia hora depois estavam na rua Gaite.

- Sinto-me feliz por ver este caso liquidado - disse John - aconteça o que acontecer, quando eu partir, ficará tranquila a respeito de João Berrier.

A menor alusão à possível partida do motorista entristecia Micaela.

- Pensa em me deixar breve, John? - perguntou com a garganta contraída.

- Cada dia que passa aproxima mais essa eventualidade - respondeu o rapaz, tendo o olhar errante para um futuro já definido no seu pensamento.

O Russo não viu o véu de melancolia que toldou o fino rosto feminino, porque acentuou com amargura:

- De resto, fiquei tempo de mais junto de si... há já meses que, para minha felicidade e sossego, devia ter partido.

Estas palavras cruéis subiram-lhe do coração oprimido aos lábios inconscientes.

Pareceu a Micaela que se lhe abria aos pés um abismo onde ia soçobrar. A confissão do rapaz surpreendia-a menos do que a descontentava.

- Continue : diverte-me imenso ! - disse, escarnecendo.

Mas a voz estava tão alterada que teria preferido não ter falado. Apossara-se dela, apesar da sua comoção, um sentimento desconhecido, e esperava que John falasse mais.

O seu instinto adivinhava outras palavras, confissões ou censuras, prestes a brotar dos lábios do Russo, e, se bem que desejasse ouvir essas palavras, couraçava-se numa vontade feroz de parecer indiferente a tudo quanto ele pudesse dizer.

A sua expectativa falhou porque John ficou silencioso. Lastimava já a confissão involuntária que lhe escapara, e evitava pronunciar qualquer palavra. Sentia que não devia falar mais: as palavras, precisando uma situação para eles já bastante anormal, ou precipitando acontecimentos que não queria ver ainda realizados, seriam perigosas.

E foi só no fim de uns momentos, quando sentiu poder mudar de conversa sem chocar com o fio dos seus pensamentos, que perguntou no seu impecável tom altivo que horrorizava Micaela:

- Onde quer ir agora, mademoiselle?

- Não sei! Não me importa o sítio, mas que seja um sítio isolado.

Olhava de revés, John viu-a tão pálida e rígida que o seu orgulho fundiu-se como um bloco de neve exposto ao lume.

Inclinou-se para ela e disse-lhe com suavidade:

- Quer dar-me a honra de aceitar uma chávena de chá, num estabelecimento russo, frequentado exclusivamente por estudantes do meu país? É um lugar tranquilo que nenhum dos seus conhecimentos pensará frequentar.

- Não! - exclamou Micaela, sem mesmo reflectir, e com um desejo orgulhoso de o humilhar pela sua recusa - chame um carro e dê a direcção do palácio. Volto para casa.

- Como quiser.

Dois minutos depois instalava-se num táxi.

- Até amanhã de manhã, John.

O rapaz inclinou-se para a mãozinha que conservava entre as suas e, como estivesse enluvada, voltou-a e ousou beijar a pele rosada que a abertura da luva deixara à mostra.

Micaela empalideceu ao contacto daqueles lábios ardentes. E, por uma força superior à sua vontade, os seus dedos prenderam os de John.

- Onde é essa casa de chá, russa, de que me falou? - disse com voz trémula.

- Em pleno Bairro Latino, a dois passos da Sorbonne.

- Aceito o convite. Vamos lá.

- Obrigado - disse ele, premindo com força a encantadora mãozinha.

Deu a direcção ao motorista e hesitou, esperando que Micaela o convidasse a sentar-se a seu lado.

Como nada dissesse, decidiu-se a subir para o carro, mas sentou-se ao lado do motorista. Ela ficou-lhe reconhecida por aquela reserva.

"Como ele sabe livrar-se de dificuldades, quando quer!" - pensou Micaela, com reconhecimento.

A verdade devia tê-la feito dizer que o jovem Russo se livrara sempre correctamente de embaraços. Havia dez meses que estava ao seu serviço e nunca tivera que censurar-lhe a menor indelicadeza nem a mais leve inconsequência.

Mas via mal as coisas e, como era por causa dele que conhecia essas lutas de orgulho e sobressaltos de mau humor, tudo lhe atribuía.

"É tão susceptível e orgulhoso - pensava muitas vezes - que sou obrigada, continuamente, a fazer-lhe novas concessões".

 

O estabelecimento onde foram era pequeníssimo. Entrava-se pela cozinha, que estava ao nível da rua. Para lá da cozinha, que se atravessava, tanto à entrada como à saída, dois aposentos serviam de sala para a clientela, pouco numerosa naquele momento.

John explicou-lhe que, às horas das refeições, aquela casa de chá se transformava em restaurante, onde os fregueses, de origem russa, encontravam pratos nacionais, queridos ao seu paladar de exilados. No primeiro e no segundo andar havia outras salas e gabinetes particulares, onde certos frequentadores gostavam de se encontrar em grupos restritos ou em reuniões amigáveis. O ambiente era extremamente correcto, porquanto todos os fregueses apreciavam a boa convivência.

Micaela divertiu-se com a novidade. A casa era curiosa para os seus olhos de parisiense, o chá era bom e gentilmente servido em mesas floridas. As paredes estavam cheias de desenhos, um pouco ingénuos, e de tapeçarias, curiosamente bordadas a oiro e prata. No tecto havia grandes lâmpadas eléctricas, colocadas em candeeiros de cobre, imitando as antigas candeias de azeite.

Falavam numa linguagem um pouco rude, que ela não compreendia, mas que o companheiro lhe traduzia, a seu pedido. Indicava-lhe a origem dos fregueses pelos seus traços fisionómicos.

- Aqueles são cossacos do Ural, de cor ardente... onde as russazinhas usam grossas tranças loiras... Os outros são caucasianos; mais para lá, autênticos ciganos, nervosos, de rosto puro e olhar nostálgico...

Ia continuar a mencioná-los, mas Micaela interrompeu-o:

- A que raça pertence, John?

- Pura raça eslava.

- E onde habitava na Rússia?

- Quando meus pais estavam em São Petersburgo, morávamos na rua Znamensk (rua aristocrática de São Petersburgo), mas, depois de perder meu pai, minha mãe preferiu viver no campo.

- Em que se ocupava seu pai?

- Era oficial.

- E o senhor?

- Eu estava ainda no Pajesky Cospus, escola de pajens, quando estalou a guerra.

- Isto é... estudante?

- Sim, se o prefere.

Micaela começou a rir.

- Se o prefiro? É tão lacónico nas suas respostas, quando se trata de si, que sou obrigada a adivinhar metade. Ora, suponho que Pajesky Cospus é uma espécie de universidade.

Coube a vez de John de sorrir.

- Não, trata-se de uma escola militar.

- Então, se a revolução não demolisse o Império dos czares, seria oficial?

- É provável.

- Mas o que tem feito nestes onze anos?

- Primeiro, servi o exército branco, com Kornilov, e, depois, com Wrangel. Conheci o exército voluntário de Galípoli, a sua desmoralizadora deslocação e o exílio, através da Sérvia, da Bulgária e Argélia, onde pouco me demorei, para vir por fim fixar-me em Paris, há seis anos.

- E há seis anos que é motorista?

- Eu! - exclamou John num ímpeto de orgulho. E esteve para acrescentar:

"Na verdade, tenho aspecto de motorista?" Mas conteve-se, pensando em tantos dos seus camaradas, tão bem educados e de carácter tão nobre como o seu, e que, corajosamente, guiavam táxis em Paris, para ganharem a sua subsistência.

Baixou a cabeça sob o olhar observador de Micaela, que registava todas estas mudanças de fisionomia e, mais suavemente, explicou:

- Não, algumas jóias, conservadas através de muitas dificuldades, permitiram-me viver por algum tempo. Depois, um camarada do exército branco meteu-me numa empresa que dirige... Nestes últimos anos tenho estudado muito... Enfim, seu pai ofereceu-me este lugar, que me permite aguardar uma situação mais em relação com os meus gostos e que um amigo me prometeu em Inglaterra.

- Em Inglaterra? - inquiriu Micaela, cujas pálpebras bateram sob um pensamento secreto.

- Sim... nos arredores de Londres.

- Que situação? - perguntou.

John compreendeu que aquela curiosidade era premeditada. Admirava-se muito de que ela ainda não o tivesse interrogado sobre os seus antecedentes e projectos de futuro. E agora, que o fazia, exigindo dados precisos, bem quisera fugir ou esquivar-se às suas perguntas correctas.

Mas Micaela, voltada para ele, com a cabeça apoiada à mão, não o desfitava.

- Que situação é? -insistiu, perante a sua hesitação - Porque não responde?

- Porque a promessa que me fizeram pode encontrar obstáculos e, apesar da boa vontade do meu amigo, pode não ser mantida. Não gosto de me alegrar antes de tempo.

- É prudente; mas gostava de saber quais são as suas esperanças para o futuro.

O tom da rapariga era firme. Visto que o Russo tinha certas liberdades com ela, queria que ele precisasse, claramente, a sua situação na vida civil. A espécie de mistério em que John se envolvia voluntariamente, desde que estava ao seu serviço, não lhe agradava.

Tudo isto John compreendeu em poucos minutos.

- O príncipe Beloslavsky fundou um hospital nos arredores de Londres - respondeu secamente - Prometeram confiar-me a sua direcção.

- Director de uma Casa de Saúde - murmurou ela, pensativa.

E, depois de uns instantes de reflexão, acrescentou:

- Será, na verdade, um emprego bem remunerado?

- Parece que sim.

- E sente-se com as aptidões requeridas?

- Falo inglês tão bem como francês... De resto, desde que estou em França nunca deixei de estudar.

- Sim - concordou Micaela - poderia ocupar um lugar de administrador. Mas isso forçá-lo-ia a deixar a França!

Uma nuvem perpassou pela fronte de John.

- Será um grande desgosto para mim, mas não tenho por onde escolher: a sorte não me deixa estabelecer em França.

- Que poderia fazer, aqui, se não existisse a questão pecuniária?

John franziu as sobrancelhas, aborrecido:

- É inútil pensar nisso; os meus meios de fortuna nunca me permitiriam fazer projectos... ou, então, só num futuro tão distante que seria já velho de mais para recomeçar a vida.

- Mas se a fortuna lhe sorrisse? - insistiu.

- Não, mademoiselle Micaela - disse o rapaz, energicamente - recuso-me a encarar o futuro sob a problemática visão de uma fortuna caída do céu, sem a ter ganho honradamente.

Micaela pensou em Molly.

- A mulher com quem casar não poderá trazer-lhe a fortuna que lhe falta?

John estremeceu, examinou-a, mas a ruga de desprezo que se cavara ao canto da boca tirou-lhe todas as ilusões, se acaso tinha algumas, e respondeu, com a fronte entristecida, mas num tom que não admitia réplica:

- Não me sinto capaz de casar com uma mulher com um fim interesseiro. Antes de oferecer o meu nome àquela que eu escolher, hei-de ter, primeiro, a certeza de poder garantir-lhe com o meu ganho uma vida honesta e sem privações.

- Então - notou a milionária, com um sorriso irónico - não tem probabilidades de se casar tão cedo.

- É provável, e foi por isso que prometi a Natacha que ela tomaria conta da minha casa.

Micaela ficou alguns segundos descoroçoada, como se esperasse, sem mesmo ter consciência disso, qual quer resposta mais reconfortante.

- A propósito de Natacha Petrovna - continuou - Porque lhe disse que lhe confiaria os seus filhos, e que, se se parecessem consigo, seriam terríveis? O seu aspecto não é o de uma pessoa que foi difícil de educar, John!

O rapaz sorriu, porque a pergunta lhe dava prazer; provava a atenção dispensada ao que ele dissera.

- Pelo contrário, tenho a impressão de ter sido um garoto muito turbulento. Gostava dos jogos violentos e arrebatados: os desportos, a caça, os cavalos! Tinha um carácter batalhador, voluntarioso, e os meus caprichos não admitiam freio.

- Será possível?! - objectou Micaela, divertida com a descrição - E, contudo, o senhor parece uma pessoa tão ajuizada e tão calma!

- A desgraça quebra as forças... e tenho passado por tais provações...

Num relance, lembrou todos os massacres a que assistira, a sua fuga desordenada, sobre a neve, sem ter de comer, quando fora perseguido pelos vermelhos na estepe, ao tentar reunir-se ao exército do general Kornilov. Mas afastava de si essas dolorosas recordações, e confessou a Micaela, que esperava o resto das suas confidências:

- Pratiquei toda a casta de tolices. Éramos um; punhado de rapazes loucos, que vivíamos apenas para a pândega e, à porfia, nos entregávamos a ela...

- Mas que idade tinha? - perguntou, tão anormal lhe parecia que John tivesse vivido tal existência.

- Dezasseis ou dezoito anos - disse ele, rindo -, Éramos uns garotos, mas queríamos fazer mais do que muitos homens.

Baixou a cabeça sob o olhar escandalizado que Micaela dardejava sobre ele, mas sentia imensa vontade de rir, lembrando-se das lindas raparigas que tivera nos braços.

Como a jovem patroa se conservasse calada, olhou-a com hipócrita contrição.

- Consegui aborrecê-la. Julgou-me um santo?

- Confesso que nunca o encarei sob tal aspecto.

- Era novo e os tempos eram outros. Tudo quanto tenho passado, de então para cá, resgatou bem esses pecadilhos.

- E agora?

- E agora? - repetiu John.

- Sim, o jogo, as bebidas, as mulheres?

- O jogo? O dinheiro que ganho é precioso de mais para o dissipar tão estupidamente. O álcool? Já me viu ébrio ou tonto, sequer?

- Com respeito ao outro assunto...

John hesitou, não querendo magoá-la nem mentir. Mas o sentimento que lhe tomava o coração era tão puro que podia falar.

- A feiticeira vermelha disse-lhe que havia na minha vida uma mulher... e não mentiu...

Sobre a pressão de um pensamento confuso, o coração de Micaela estremeceu.

- Mas... as outras? Os passatempos? - continuou a milionária, corando.

- Essas não contam para um homem!... Uma única me ocupa o pensamento, absorvendo-o todo.

- E essa... - interrogou Micaela, timidamente hesitante, porque tinha a intuição de que era perigoso abordar com John um tal assunto.

- Essa é digna de todo o meu respeito, de toda a minha ternura - respondeu com simplicidade, como se quisesse dar a perceber que tocava num assunto íntimo que só a ele dizia respeito.

Mas, enquanto falava, fixava a chávena de chá, mexendo-o lentamente com a colher. E só passados uns momentos levantou a cabeça e ousou olhar para Micaela.

- Está satisfeita com as minhas respostas? -disse calmamente - Satisfiz todas as suas perguntas?

A rapariga encolheu os ombros e, com leve sorriso, respondeu:

- Sem dúvida que sim, mas tenho a impressão de o conhecer ainda menos do que antes.

- Porque lhe disse que era um doidivanas? - perguntou John com um sorriso que procurava tranquilizá-la.

- Não, porque não sei nada dos seus pensamentos, da sua vida íntima, de tudo quanto foi a sua existência até hoje.

- E, contudo, não há nada que eu procure esconder-lhe, visto que o lado escabroso do meu passado já lho contei.

- Mas ainda não me disse o seu verdadeiro nome - atalhou subitamente.

- O meu nome é apenas aquele com que me apresentei em sua casa - afirmou John.

- A sua ama deu-lhe outro.

- Sacha é o diminutivo de Alexandre.

- Não é esse. A Feiticeira Vermelha também lhe deu outro.

John olhou-a verdadeiramente surpreendido, e, de repente, julgando compreender, lembrou-se:

- Chamaram-me Alexandre Yourievitch.

- Exactamente.

- Esse nome quer dizer Alexandre, filho de Jorge. É hábito, na Rússia, lembrar sempre o nome próprio do pai.

Micaela fixou-o para ver se ele não a enganava. Sem poder definir porquê, suspeitava, muito intimamente, e tinha o pressentimento de que John iludira bem todas as suas perguntas. A sua verdadeira personalidade continuava incógnita.

Fitou-o, desejosa de conhecer a verdade que ele lhe não confessara por completo.

Mas o olhar que se apoiou no seu, para a compenetrar da sua boa fé, foi de uma luz tão viva que lhe fez baixar as pálpebras.

Que fluido magnético brotava das pupilas daquele homem, para lhe fazer sentir tal estremecimento?

Sob a chama viva que ainda sentia pesar sobre si, tentou interessar-se pelos outros clientes dispersos pelas mesas. Mas não distinguiu nada... nada, se não dois grandes olhos azuis que a penetravam para lhe aniquilar a vontade.

De repente, sentiu que ele lhe pegava na mão e a cobria de loucos beijos.

- Diga-me, mademoiselle Micaela, não diminuirá a sua estima, agora que me conhece melhor?

A milionária fixou comovidamente aquela cabeça altiva, de cabelos de um belo loiro cendrado, inclinada sobre a sua mão, que continuava a beijar ardentemente. Mas reagiu contra esta comoção que a fazia tremer.

A filha de Jourdan-Ferrières não podia perturbar-se ao contacto da ternura de um motorista!

E, altiva, apesar da sua comoção, disse com um riso escarninho, retirando negligentemente a mão:

- Porque lhe havia de querer mal? Ouvi as suas confidências, como teria lido um livro curioso, que diverte um momento, e que se deita para o canto depois de lido... Já esqueci todas as tolices que há uma hora me conta!

Após fugitiva expressão de surpresa, o rosto de John modificou-se para uma impecável correcção. Contudo, com um gesto um pouco nervoso, chamou o criado e pediu-lhe, em russo, a conta. E, atirando duas notas para cima da mesa, levantou-se.

- Estou às suas ordens, mademoiselle. Quer que mande buscar o carro?

Aborrecida por ser ele quem punha fim à entrevista e parecia despedir-se, Micaela levantou-se também.

- Sim, volto para casa. Perdi muito tempo a ouvi-lo...

Mas John já estava ocupado a dar ordens a um groom e dois minutos depois, após respeitoso cumprimento, fechava-lhe a porta de um táxi.

 

Depois destes dois dias, vividos tão intimamente, John teve, de novo, que suportar a hostilidade de Micaela.

Segundo o seu costume, cada vez que se mostrava muito familiar com ele, humilhava-o a seguir com o seu orgulhoso desdém. Falava secamente, apenas para lhe dar ordens; evitava encará-lo, afectando até não o ver quando o seu serviço de motorista o obrigava a estar em contacto com ela.

Um dia, o jovem Russo pensou:

"O caso de João Bernier está terminado e ela já não precisa de mim".

Esta suposição pareceu-lhe odiosa e incomodou-o mais do que desejaria confessar.

Algumas semanas antes, tomando talvez os seus desejos pela realidade, deixara-se levar por esperanças loucas e possíveis ilusões. O sorriso de Micaela era tão radiante, os seus olhos fixavam-se tão suavemente nos seus, as mãos tão trémulas sob os seus lábios, que, esquecendo a sua modesta situação, julgou que aquele amor insensato achara eco no coração da rapariga. Mas, de repente, a filha de Jourdan-Ferrières entrincheirava-se numa posição distante e glacial, imprevisível depois dos dias de tão suave intimidade que os aproximara.

Se estivesse menos apaixonado, teria percebido tudo quanto havia de fictício no desdém exagerado de Micaela, e a experiência de homem afortunado ter-lhe-ia feito adivinhar afectação nesse súbito orgulho.

Se ele lhe fosse realmente indiferente, não teria necessidade de se envolver numa tão orgulhosa reserva; a própria exageração da atitude ter-lhe-ia aberto os olhos. Mas John, que, havia meses, concentrava ferozmente em si próprio os seus sentimentos, não conseguia dominar a paixão que o arrastara para Micaela.

Conservava-se na atitude de homem bem educado, mas era irresistivelmente levado a registar os menores gestos e acções de Micaela, e tão bem que a menor inflexão da sua voz fazia-o passar imediatamente da alegria à tristeza, segundo a influência que sentia.

Nessa tarde, esperava bastante tempo à porta de uma casa de bela aparência, onde, até então, nunca a levara. Os seus pensamentos não eram muito risonhos, pois o rostozinho de Micaela obstinava-se em permanecer impenetrável ao seu olhar. Adivinha-se, pois, a estupefacção que sentiu, vendo a jovem patroa sair daquela casa na companhia de um rapaz moreno, de uns vinte e seis a vinte e sete anos.

John ficou, por momentos, assombrado, perante essa aparição inesperada. Passaram perto dele, sem sequer o notar, e começaram a conversar, andando pelo passeio, até uns cem metros de distância.

Micaela parecia dirigir vivas censuras ao companheiro, ao passo que este procurava defender-se com indignação.

John, muito pálido, olhava para o par. Num relance, viu que o rapaz era simpático. Alto, vestido com esmero, boa figura, era o tipo que agrada às mulheres, e o jovem Russo, exagerando os encantos do desconhecido, não duvidava de que Micaela gostasse dele.

Assaltou-o uma grande tristeza. Agora estava explicada a sua atitude hostil naqueles últimos dias. Supusera tudo, menos um rival feliz. Não lhe veio à ideia que pudesse enganar-se. O seu instintivo ciúme descobriu imediatamente provas convincentes...

Por duas vezes, o rapaz tentou dar o braço a Micaela, e por duas vezes, ela, certamente descontente, o repeliu.

Mas de que argumentos se serviu ele? Que palavras empregaria para se fazer perdoar? John só podia fazer suposições.

À terceira tentativa do rapaz moreno, Micaela não fugiu e continuou o seu passeio de braço dado, agora completamente de acordo e unidos.

Este espectáculo foi tão doloroso para John que se levantou com o desejo de fugir, de escapar ao sarcasmo dessa intimidade que escarnecia da sua aflição de apaixonado desprezado.

- Bom dia, John! Muito me alegra ver você!

A voz acariciadora de Molly Burke fê-lo despertar.

- Bom dia, miss Molly - disse, numa voz desconhecida, olhando-a sem a ver, tão distante estava o seu pensamento.

- John! Que tem? Você estar pálido, trágico!

O rapaz passou a mão pela fronte, tentando acalmar e não dar a ninguém o espectáculo da sua dor.

- Este calor faz-me mal - conseguiu articular num tom mais humano - Sou do Norte e esta temperatura desagrada-me.

- Ser preciso reagir... aqui fazer muito sol; Micaela devia ter mandado parar à sombra. Olhe, querer uma compensação? Enquanto ela falar com o namorado, você vai oferecer a mim qualquer bebida gelada.

Este pedido, que o obrigava a deixar o seu banco de motorista, era uma bênção. Precisava de agir, afastar-se, para não suportar mais a obsessão daquele par tão bem acasalado.

Levantou-se, desabotoou o casaco de motorista, para o tirar e seguir Molly. Mas Micaela, que até ali parecera nem reparar em John, notou logo a presença da Americana junto dele. E dirigindo-se-lhe imediatamente, exclamou:

- Então, Molly, que temos mais?

- Não, querida! Continuar o seu flirt e deixar a mim.

- Molly, peço-lhe que deixe o meu motorista em paz.

- Querida, como é ridícula em protestar tanto! Você ter um namorado... na verdade, delicioso! E você querer impedir John de oferecer a mim um gelado, de que tanto gosto... Eu não beber amor no passeio!

- Julgo que divaga, Molly - disse Micaela, que se voltou para John.

E, com um olhar duro, perguntou-lhe:

- Que significa isto? Porque tira o casaco?

Mas Molly interveio generosamente, impedindo John de responder.

- Eu dizer a ele para vir e ele vem, querida Micaela. Vá conversar apaixonadamente com Henrique e deixar a mim com John. Ser firme nas ideias e não mudar de um dia para o outro, eu!

Molly tinha uma tal maneira de pronunciar este eu, que Micaela estremecia sempre que lho ouvia.

Neste momento apareceram mais três raparigas que se juntaram ao grupo.

- Que se passa? - informaram-se - Porque está Micaela tão irritada?

- Ser sempre a mesma coisa - respondeu Molly - Ela proibir John de ir beber com mim!

- Então a questão continua?

- Yes! Sempre! Eu querer... Ela não querer! Isto poder durar muito tempo e para quem tem sede não ser muito divertido.

- Molly Burke tem sede, Micaela!

- Empresta-lhe John, Micaela!

E as quatro raparigas começaram, novamente, às gargalhadas. John, que saira do carro, quis levá-las a um bar. Mas Micaela impediu-lhe a passagem.

Nesse momento, o tal desconhecido pegou-lhe no braço e quis levá-la.

- Venha, Micaela, deixe essas pequenas oferecerem um copo de vinho ao seu motorista. Que mal há nisso?

- Ouve a voz do amor, querida Micaela. Henrique chama-te! Deixa-nos John!

Mas a jovem milionária, um pouco corada de despeito, desprendeu-se-lhe das mãos.

- Perdão, Henrique, são horas de voltar para casa, e Molly não verá, creio eu, nenhum inconveniente em que utilize o meu carro e o meu motorista.

E voltou-se para este, que, imóvel, e com o rosto transtornado, lhe deu a impressão de que qualquer coisa grave se passara além da sua discussão com Molly.

- Para casa, John - ordenou, com certa doçura. Teria ouvido?

Em vão esperou a sua habitual obediência. Com o olhar fixo, o elegante motorista parecia mergulhado em letargia.

Micaela despediu-se de todos ao mesmo tempo.

- Até breve. Amanhã, em casa de Denise Monchon. Espero que Molly já terá saciado a sede.

E estendeu a mão a Henrique, que lha beijou.

- Amanhã não faltarei, Henrique.

- Como hei-de agradecer-lhe? Esta noite sou o mais feliz dos homens.

Saindo da sua apatia, John retomava o seu lugar, e tão perturbado que se esquecera de vestir o casaco.

Molly correu para Micaela antes que ela fechasse a porta do automóvel.

- Prevenir a ti que roubamos teu amigo Henrique. Faltar John, será ele quem nos acompanhará.

Micaela sorriu.

- Seja gentil com elas, Henrique. Estão sedentas. Não sei quantas chávenas de chá e limonadas tomarão.

- Estar-se sempre melhor num bar, com um homem - cantarolou Molly.

- Tenha juízo, Henrique - recomendou Micaela ao rapaz, que se conservava junto do carro.

- Prometo-lhe...

Um grande golpe de volante, dado por John, fez saltar o carro. Micaela, violentamente projectada para trás, não pôde ouvir as últimas palavras de Henrique Rousselin.

"Sua excelência está de mau humor - pensou ela, bastante descontente - Escangalhei o seu flirt com Molly.

O carro caminhava num andamento desusado, que muito a admirava, tanto mais que nas encruzilhadas havia polícia para regular o trânsito, e John era obrigado a travar, de repente, para poder entrar novamente na fila.

A jovem milionária, cansada de ser assim sacudida, tomou o partido de ordenar a John que moderasse o andamento. Como ele se não voltasse, para indicar que compreendera a ordem, acrescentou em tom ameaçador:

- Previno-o, John, de que se continua a guiar assim, tão nervosamente, deixo-o seguir só e tomo um táxi.

Julgava esta ameaça peremptória, mas o Russo contentou-se em encolher os ombros e, tomando pelas ruas menos frequentadas, sem pensar em prolongar o caminho, continuou na mesma desordenada corrida até à Avenida Marceau. Quando Micaela desceu, no pátio do palácio, imediatamente o interpelou:

- Faz favor de me dizer porque guiou esta tarde tão mal? Estou moidíssima com o seu excêntrico passeio.

Poderia ter continuado a falar por muito tempo que ele nem sequer a ouvia.

Mas, olhando para aquele rosto martirizado, teve a intuição da verdade. Então, começando a rir, colocou a mãozinha sobre a dele, e disse meigamente:

- Não acha que Molly é velhaca? Quis ver se me importava que Henrique Rosselin a acompanhasse. Creio que, como dizem os garotos, se estendeu ao comprido. O pior é para Henrique, se perder o seu tempo com ela: outra, e não eu, sofrerá com isso!

E acentuou bem esta última frase como para bem o convencer. John voltou para ela os olhos enevoados e encarou-a fixamente.

Micaela sorriu, maliciosa, e parecia muito ocupada em brincar com as luvas.

Após um momento de silêncio, continuou no mesmo tom, levemente indiferente:

- É como essa mania de Molly, de não poder ver duas pessoas de sexo diferente a conversar, sem gritar que estão apaixonadas uma pela outra. Eu já não faço caso; estou habituada aos seus exageros!... Mas, às vezes, é desagradável; se Henrique não estivesse comprometido, podia julgar-se obrigado a fazer-me a corte... Não acha, John, que Molly é, por vezes, inconveniente?

John sentia-se incapaz de responder. Naquela alma, amarfanhada havia mais de uma hora, as palavras de Micaela derramavam um bálsamo consolador. Olhava para ela com uma ternura grave, e agora que a angústia que o afligira desaparecera, perguntava a si mesmo como pudera apoquentar-se tanto.

Como John não respondesse, Micaela olhou para ele e, com um tímido sorriso, continuou:

- É claro que o que Molly diz a meu respeito não tem importância. Ninguém me quer bastante para sofrer com a tagarelice! Mas ouvidos mal intencionados poderiam escutar aqueles estúpidos gracejos e pensar coisas...

- Sim, disse ele por fim - às vezes, uma simples palavra pode fazer muito mal.

- Justamente. Vê, John, se amar alguém, como disse há dias, nunca deve dar ouvidos ao que se diz...

- A desgraça é que a razão nunca fala quando o coração se alarma... - murmurou o rapaz, pensativo.

- Acredito isso! - retorquiu Micaela, comicamente desolada - Então, perdi o meu latim consigo! E eu que estava tão contente por lhe pregar, esta tarde, um sermão de moral!

E, como ele fosse a falar, Micaela disse vivamente:

- Vou-me embora! Até amanhã, John!

Subitamente, mergulhando com ousadia os seus olhos nos dele, acrescentou:

- Não tenha maus sonhos, esta noite, com a dama dos seus pensamentos.

E, a correr, galgou os degraus. Só parou quando entrou no seu quarto.

Atirando travessamente com o chapéu para cima da cama, exclamou com exaltação:

- Ciúmes! Tem ciúmes! - e comprimiu o peito com as mãos num gesto encantador - Meu Deus! Como é delicioso. Ele tem ciúmes!

Chegou à janela e, através das cortinas, olhou para o rapaz que acabava de deixar. John tirava o boné e as luvas. Dirigiu-se para o vestiário e apareceu pouco depois, no pátio, com outro fato.

"- Todos mo invejam e é meu!... É pena que um rapaz tão bonito seja apenas um simples motorista!"

E um grande suspiro lhe expirou nos lábios.

"- Sim, é pena! - repetiu, pensativa - Um homem como ele talvez me agradasse, se fosse rico..."

Mas, sacudindo a linda cabeça, de cabelos ondulados, repreendeu-se seriamente:

- "Então, Micaela! Nada de tolices! Nada de quimeras! Certamente que é delicioso ver um homem ciumento por nossa causa; mas seria menos divertido se mademoiselle Jourdan-Ferrières amasse um motorista!"

E, de repente, altiva, com os lábios desdenhosamente contraídos, a cabeça erguida como se John a pudesse ver, fitou, como que desafiando, o jovem Russo que se afastava, olhando de revés para a janela.

Absteve-se de afastar as cortinas que denunciariam a sua presença, mas, subitamente melancólica, ficou ali, mergulhada num sonho que se prolongou até John desaparecer.

 

John passou a noite tão bem como Micaela lhe desejara. Talvez não sonhasse com ela, mas recordou-a, de pé, junto do carro, contando travessamente as suas queixas contra Molly. Estremecia de alegria, pensando que a jovem adivinhara o seu desgosto e quisera sossegá-lo.

Esta atenção íntima de Micaela abria-lhe horizontes radiantes que não podia afastar. E quando no dia seguinte, de manhã, parou o Rolls-Royce em frente da entrada do Parque Monceau, como Micaela lhe ordenara, não esperava a penosa surpresa que ia sofrer.

Com efeito, mal o carro se enfileirara junto do passeio do boulevard Courcelles, uma voz masculina, que logo reconheceu, exclamou:

- É adorável, Micaela! Não esperava que viesse.

- Quando prometo, cumpro, meu caro Henrique; e ontem insistiu tanto!

Absolutamente estupefacto, John viu o desconhecido dar-lhe o braço, procurando levá-la para o Parque, deserto àquela hora matinal. Mas Micaela, encaminhando-se para a bela alameda que atravessa o grande e pitoresco jardim a todo o comprimento, apontou-a a Henrique, e começaram os dois a percorrê-la lentamente, falando com animação.

Por momentos, John teve a impressão de que o crânio lhe estalava sob o martelar de uma dor física intolerável. Tinha agora a alucinante certeza de que Micaela zombara dele, na véspera.

Acreditara na lealdade dos grandes olhos acariciadores que o fitavam, na ingenuidade daquele riso travesso, que o enfeitiçava com o seu encanto.

Então, na alma do Eslavo passou uma onda de cólera devastadora. Aquele homem não devia estar habituado a ser joguete de mãos femininas. Era feito para dominar em amor e não para suportar caprichos nem afrontas.

E a entrevista de Micaela com o outro, ali à sua vista, depois de na véspera lhe ter feito nascer tantas esperanças, era um ultraje voluntário contra o qual todo o seu ser se rebelava. Uma mulher adivinhava os seus sentimentos e zombava dele, rebaixando-o porque era pobre e subalterno. Que belo apaixonado para Micaela Jourdan-Ferrières, um motorista sem dinheiro, sem lar e sem pátria!

Sob a influência de tal pensamento, tudo quanto havia nele de educação e elegância moral se revoltou, parecendo-lhe que em seu lugar nascia uma alma de bruto. Os dedos crisparam-se-lhe tanto nas palmas das mãos que as luvas ficaram com os sinais das unhas, Teve a impressão de que a sua força formidável bastaria para esmagar ambos, se o quisesse fazer, vingando assim o seu amor-próprio ferido.

Olhou mais uma vez para o par que se aproximava. O homem estava no seu papel de sedutor e talvez de apaixonado sincero; mas ela, a presumida, a mentirosa, cujos olhos pareciam sorrir-lhe ainda de longe?

Mediu-a duramente com o olhar... tão duramente que as suas pupilas de aço, apesar da distância, detiveram-lhe o sorriso nos lábios.

Mas, tornando-se subitamente calmo, dominando a cólera pela decisão que acabava de tomar, retomou o volante e começou a andar, moderadamente, como se o andamento do carro estivesse em relação directa com a impassibilidade da mão que o dirigia.

Minutos depois parava no pátio do palácio da Avenida Marceau. Deixou ali o carro: outro o levaria para o seu lugar.

E à pressa, com gestos sacudidos e nervosos, porque Micaela já o não via, desejando estar longe, reuniu os objectos e fato que lhe pertenciam, metendo-os numa maleta, e levou tudo ao porteiro.

- Faça o favor de guardar isto, até logo à noite. Eu mandarei buscar.

E saiu, por fim, sem um olhar, sem um pesar aparente por aquela casa acolhedora, onde fora todas as manhãs tão feliz, durante alguns meses. Agora ia para outro destino. A sorte, que fazia dele um errante, ainda não se cansara de o fazer sofrer.

Com andar firme, transpôs o portão, sem se despedir de ninguém. No limiar, parou, acendeu um cigarro, sem reparar num táxi que parara à beira do passeio.

Começou a caminhar, mas mal andara alguns metros, ressoou uma voz atrás dele:

- Onde vai, John?

Um segundo de hesitação, pregando-o instintivamente ao chão, bastou a Micaela para se aproximar.

O Russo empalidecera, e, apesar do império que tinha sobre si próprio, a presença de Micaela fez vacilar a sua firmeza.

Um pouco alucinada, encarou-o. Não sabia bem se deveria ralhar-lhe levemente ou dirigir-lhe amargas censuras por ter ousado desertar do seu posto.

Mas diante daquele homem, cujo rosto enérgico tinha vestígios de loucura, apenas teve um sentimento de piedade infinita.

- Meu Deus! - murmurou numa voz dolorosa, onde punha toda a sua alma - Que lhe aconteceu? Que julgou? E, primeiro que tudo, onde ia assim?

John não respondeu. Pensava que, por ela estar ali, nada o impediria de se afastar. Micaela devia ter tido a mesma ideia; a sua clarividência pô-la em guarda contra uma ternura que a levaria a pronunciar palavras sinceras mas... irreparáveis!

Mudando de tom, sem lhe dar tempo a reflectir, fingiu acreditar que ele estava doente.

- Se não se sentia bem, ou se o calor o incomodava, devia ter-me dito. Tomaria um táxi para ir encontrar-me com o meu primo, e não o obrigaria, hoje, a sair comigo.

John conservava-se calado, esperando as mentiras que iria ainda ouvir. Contudo, no seu cérebro fatigado infiltrava-se uma ideia:

"Ela deixara logo o outro e viera ter com ele!"

Entre o momento em que John chegara e Micaela descera do táxi houvera, precisamente, o tempo para tomar o táxi e correr atrás dele, visto que o Rolls-Royce andava infinitamente mais depressa do que os automóveis de praça.

Mas Micaela, arrostando a hostilidade do olhar, continuou:

- Realmente, esta entrevista de hoje era quase uma caridade para com o meu primo...

Deteve-se, procurando coragem nos seus olhos, mas o rapaz evitava encará-la e conservava-se, na aparência, absolutamente indiferente. A jovem milionária estava, felizmente, estimulada pela iminência de uma partida irremediável.

Teve a intuição, também, de que a sua presença na rua não lhe facilitava a tarefa. Deviam falar-se a distância, estribados nas aparências da correcção mundana, sem que o som da sua voz ou o menor dos seus gestos permitisse adivinhar o drama que havia entre os dois.

Enfim, se John quisesse afastar-se, bastaria levar a mão ao chapéu, cumprimentando, e partir sem que ela pudesse achar, naquele sítio, possibilidades de o reter. Continuou, pois, a falar, visto que as palavras eram a única arma de que podia servir-se.

- Imagine, meu primo estava noivo de uma encantadora rapariga das nossas relações... E estou persuadida que é sincero quando diz só a ela amar. Mas esse doido praticou loucuras... com outra mulher, evidentemente pouco recomendável! A história chegou aos ouvidos de Helena, que rompeu com ele há um mês. E, agora, Henrique suplica-me para tratar do assunto e conseguir que ela lhe perdoe. Diz não ter a sua vida razão de ser se não casar com Helena; em resumo, conta comigo para o reconciliar com a noiva.

Micaela tomou alento. Pareceu-lhe que o rosto do Russo se acalmava um pouco. Mas sobressaltou-se, com uma pergunta, tão simples na sua ampla suspeição, ficando admirada como John ousara formulá-la.

- Então essa outra mulher não era mademoiselle?, - disse, num murmúrio.

- Oh! - protestou, rindo, tão surpreendida de tal suspeita que nem pensou em zangar-se.

Calou-se subitamente, incomodada pelo olhar com que ele a envolveu de repente. E, corando, baixou os olhos, procurando ver as horas no relógio de pulso, para disfarçar a comoção.

- É tarde - disse, passados uns momentos - Vi ontem Helena, mas contava ir daqui a pouco a sua casa. Combinei um plano com Henrique... ficará no passeio a falar consigo, enquanto eu subo a casa dela; depois desceremos as duas, se ela me acompanhar...

Este plano, em que o misturavam, convenceu John, e um grande suspiro de alívio lhe saiu do peito contraído. Teve, subitamente, a sensação de que lhe tiravam um peso dos ombros. Era como um despertar feliz, após uma catástrofe, a segurança de um refúgio, depois de frágil suspensão sobre um abismo sem fundo; era a vida que renascia, em todas as fibras sensíveis a seguir a uma morte aparente que lhe tivesse devastado e quebrado todos os esforços da vontade.

Mas fora tão grande a aflição que o torturara durante uma hora que ainda se sentia esmagado, moral e fisicamente. Continuava sério, não gozando completamente a alegria de ver Micaela livre de qualquer suspeita.

Mas esta sentiu que a partida estava ganha; John não podia já afastar-se, visto que conhecia, desde esse momento, a verdade.

- Ainda não é tarde para levar a efeito o nosso plano. Quer vir comigo a casa de Helena?

- Há pouco deixei a sua casa com a ideia de nunca mais voltar.

Uma ansiedade perpassou pelos olhos negros de Micaela, erguidos para ele.

- John! Agora já não pode realizar esse projecto.

- Não! - reconheceu ele com fervor - Mademoiselle voltou, e devo ficar junto de si.

Olharam-se fixamente, trémulos, e John perguntou em voz baixa:

- Porque não me contou, ontem, o idílio do seu primo? Porque não me preveniu, esta manhã, da entrevista que iam ter?

Micaela sentiu a importância da dolorosa censura.

- Porque não julgava que...

E deteve-se. Os pensamentos vacilaram-lhe no cérebro como se tivesse chocado com um escolho perigoso.

- Não, não podia supor que...

E continuava desorientada, sem saber que palavras devia calar, nem encontrando outras para se explicar. Mas tudo nela suplicava que não insistisse... que não a forçasse a responder... Não poderia pronunciar as coisas que ele desejaria ouvir e a ela pareciam monstruosas.

John adivinhou tudo quanto a sua hesitação encerrava de reserva e de abandono. E, já senhor de si, mais do que Micaela estava, disse suavemente, para a auxiliar:

- Não podia imaginar que eu era tão rigorista, e que me recusaria a ser seu cúmplice!...

- É isso mesmo! - exclamou Micaela, livre e feliz, pelo pretexto que tão bem se adaptava aos acontecimentos: a fuga desesperada de John e a sua corrida atrás dele.

Como lhe soavam bem as palavras que ele encontrara para mascarar a verdade e poupar o seu orgulho!

E começou a rir como uma garota, inconscientemente.

- Sim, John! Foi severo de mais... e antiquado! Agora já lho posso confessar: quando o vi partir, tive medo. Deixei meu primo em meio de uma frase, sem lhe dar qualquer explicação. A esta hora deve estar a perguntar que bicho me mordeu!

E riram ambos, alegremente, livres de obsessão. Aquele caso tivera imensa graça!

E riram, riram, como loucos, mas tão confusos, apesar das sinceras gargalhadas, que evitavam encarar-se, sabendo bem que era preciso dar tempo àquela comoção íntima para se tranquilizarem.

 

- Ainda não lhe mostrei as fotografias que me tirou em Pacy-sur-Eure, John?

- Não, mademoiselle.

- Veja-as. Mas não sei o que aconteceu, que só duas se aproveitaram.

Um vago sorriso pairou nos lábios de John, que não respondeu.

Examinou atentamente as duas provas que Micaela lhe entregara, exclamando calorosamente:

- Está encantadora! Gostava de as ampliar. Confie-me os negativos. Verá que lindas provas se farão.

- Devem faltar alguns pormenores, contudo.

- Não. Estão soberbas! De resto, tenho algumas... Tirou a carteira da algibeira e abriu-a.

Micaela viu num dos compartimentos algumas fotografias. John fez um gesto como para as tirar, mas hesitou, olhando para a jovem patroa.

Um sorriso constrangido lhe pairou nos lábios e, finalmente, tornou a fechar a carteira sem ousar mostrar-lhas.

- Afirmo-lhe que essas pequenas fotos de amador dão encantadoras ampliações.

Mas a mão de Micaela poisou sobre a carteira, impedindo John de a guardar.

- Mostre-me os retratos que aqui estão. Porque os esconde? São retratos de mulher?

- Sim, de minha mãe e de minha irmã.

- Tem outras. Quero ver! Quero ver!

Micaela não dava pela aspereza da sua voz. A hesitação de John causara-lhe um mundo de reflexões.

- Porque hesita? Avistei um toucado russo. Tenho a certeza de que é o retrato de Molly! Se estou enganada, prove-mo. Tanto mistério porquê?

E procurava arrancar-lhe, à força, a carteira.

- Nunca fiz mistério para consigo do que me diz respeito. Hesitei, porque tive medo de a fazer zangar.

- Confessa, então, que há aqui qualquer coisa que me desagradará?

- Sim, porque nunca tenho a certeza da reacção dos meus actos sobre si. Já está encolerizada.

- Porque suspeito de coisas desagradáveis.

- O retrato de miss Molly, por exemplo?

- Ou de outra qualquer!

A mão de John agarrara a de Micaela, que não largara a carteira.

- E seria para si desagradável que eu trouxesse um retrato de outra? - interrogou, vibrante de comoção.

O rosto da milionária coloriu-se, e desviou os olhos. Mas continuou a não largar a carteira.

- Mostre-me essa fotografia, exijo-o! - insistiu, com voz rouca.

- Seja! Obedeço. Mas, se lhe desagradar, já não tem o direito de se zangar.

Entregou-lhe a carteira, que Micaela apertou contra o peito como se tivesse medo de que ele se arrependesse. E, olhando-o, disse, muito pálida e com voz subitamente áspera:

- Não sei o que vou encontrar aqui dentro, mas, tanto pior para si, se se tratar de um estúpido gracejo, John. Considerá-lo-ei como o seu verdadeiro pensamento, e seja de quem for o retrato que aqui estiver, nunca o esquecerei, entende?

A altiva e orgulhosa Micaela dos maus dias reaparecia de novo, nessa veemente apóstrofe. O seu olhar duro fixava-se sem indulgência sobre o pobre rapaz, que não pestanejou.

- Disse minha mãe, minha irmã e ela - precisou. A filha de Jourdan-Ferrières que começou a rir nervosamente.

- Sua irmã! É a primeira vez que oiço falar nela. E talvez conte endossar-lhe os retratos inoportunos que não saberia explicar.

- Examine! - disse John, com simplicidade. Micaela abriu a carteira e tirou de um compartimento algumas fotografias.

O rosto, um pouco fatigado, de uma senhora de cerca de quarenta anos, foi o primeiro a aparecer.

- É minha mãe - elucidou John, gravemente.

- Era bonita e distinta, mas não se parece consigo.

- Não. Pareço-me com um avô de meu pai!... Depois, Micaela viu o retrato de uma pequena de uns dezoito anos, cujos cabelos, separados em duas tranças, com pérolas, lhe caíam sobre os ombros.

- Minha irmã Sônia - indicou.

O tipo da rapariga era demasiado russo para que Micaela pudesse duvidar da palavra de John. Antes de continuar, olhou para ele.

- Até aqui encontrei o que disse. E, a seguir, o que irei ver?

- Ela - disse John, com os olhos fitos na jovem patroa.

- Ela - repetiu Micaela, empalidecendo - Aquela a quem... a dama dos seus pensamentos?

- Sim, aquela a quem amo.

Era tão claro, tão formidável, que a arrogante milionária sentiu como que violenta pancada no peito.

Desviou os olhos do motorista e pareceu-lhe que um nevoeiro lhe toldava a vista.

Então, quando John falava da sua pastorinha ou daquela a quem amava, tratava-se de uma mulher que existia, e que não era o reflexo da sua imaginação masculina!...

Agora temia encarar a carteira. Tinha a intuição de uma indiscreta curiosidade, da qual ia ser punida...

- Então, mademoiselle Micaela, já não quer... Pegara-lhe na mão, e sentia-lhe os dedos trémulos entre os seus.

- Disse há pouco que receava fazer-me zangar? - perguntou em voz baixa.

- Sim...

- Então vou ter motivo para isso?

- Não. Será indulgente...

Micaela sentiu-se entristecer. Mas, suspirando, abriu a carteira, e reconheceu-se nas duas fotografias em que pegara.

Era ela nas duas poses que fizera em casa de Natália Petrovna... Ela!... E, falando dela, John ousara dizer aquela a quem amo!... Todo o sangue lhe afluiu ao rosto e sentiu o coração bater desordenadamente.

- Conservou-as? - balbuciou, fazendo alusão às chapas fotográficas, e não querendo reparar na audácia da declaração.

- Sim.

- Deu-me então dois negativos sem nada?

- Exacto.

- Por isso me disse que tinha gasto todos!

- O trajo, só por si, não me interessava. Perante esta nova audácia do seu companheiro o

rosto de Micaela ficou impenetrável. Examinava as ampliações. Para poder pôr na carteira tivera que as cortar, conservando apenas o busto.

- Enviei duas provas de cada uma das outras à sua ama -afirmou a rapariga, respondendo a um pensamento íntimo.

- Ainda não as recebi - disse John, com simpli cidade, respondendo assim ao pensamento da jovem patroa.

Micaela olhou-o rapidamente. Como se compreendiam agora, sem palavras... Já não pensava na estranheza daquele acordo entre eles. Dir-se-ia que já não procurava lutar e que se inclinava diante das coisas que é preciso sofrer sem reagir.

- Não era preciso tomar essa precaução, e guardar esses negativos, visto que estava decidida a mandar as provas que prometera.

- Sabe-se lá o que pode acontecer?... A sorte é algumas vezes tão contrária aos desejos dos homens!

- Prometi! Era sagrado! - replicou com energia.

- Então, quando me fará essa promessa? - murmurou John, numa angustiosa súplica.

- Qual?

Esta exclamação escapara-se-lhe e, contudo, Micaela sabia bem, nesse momento, que promessa ele queria que lhe fizesse.

Calou-se. Os seus olhos procuravam os de Micaela porque o olhar era mais eloquente do que as palavras. Mas a rapariga, contrafeita, baixou a cabeça e, para disfarçar, começou a colocar lentamente as fotografias na carteira de John.

De repente, no fundo do compartimento, viu um outro retrato pouco maior do que um selo de recibo. Era um cartãozinho de identidade de John. Pegou-lhe e examinou-o; apossara-se dela uma grande comoção.

A minúscula fotografia intimidava-a menos do que aquele que representava, e desejaria poder guardá-la para si. Hesitou. Era tão grave para ela pedi-la como deixar as suas nas mãos do motorista.

Olhou para ele, sentiu que a examinava, que adivinhava a sua luta, que esperava o seu pedido.

Reprimindo um suspiro, colocou-a no seu lugar.

- Está parecido!... - disse, para quebrar aquele embaraço.

- Nem por isso! Mas é suficiente para o passaporte. Assim falando, John colocara as fotografias na carteira, metendo, entre as dela, o cartão de identidade de forma que a sua cabeça ficasse à altura da de Micaela.

O gesto perturbou a rapariga extraordinariamente. Parecia que o coração deixava de bater sob o império de uma comoção desconhecida.

- Dou-lhe as provas e os negativos; mas em troca dar-me-á as duas ampliações que eu não tenho - propôs numa voz indiferente.

- Como quiser...

E, gravemente, abriu o grande escaninho da carteira, para Micaela poder fazer a troca.

Com uma das mãos, a milionária agarrou nas ampliações, colocando-as no sobrescrito com as fotografias. E, subitamente, meteu na malinha aquelas em que agarrara, tendo o cuidado em não alargar muito depressa os dedos, porque sabia que o retrato de John estava entre elas...

Feito isto, respirou melhor. Parecia-lhe que o seu gesto fora natural, e que o motorista não poderia ter visto a sua pequena esperteza. Mas, quando levantou a cabeça, viu o olhar de John envolvendo-a numa ternura comovida e grave.

E, desta vez, ficou menos segura de que ele não tivesse adivinhado tudo...

- Vamos! É preciso voltar para casa - decidiu, por fim, para dizer alguma coisa.

Mas John reteve-a suavemente pelo braço...

 

Estavam no boulevard Jourdan, perto da entrada do Parque Montsouris. Micaela fora até ali comprar um jornal de trabalhos femininos que queria levar para a praia na época balnear, que se aproximava.

- Antes de irmos para casa, quer dar uma volta, pelo Parque? Tenho de lhe mostrar uma carta.

- De quem?

- De Inglaterra... do príncipe Beloslavsky.

- A chamá-lo?

- Sim; deseja que vá o mais breve possível.

Por momentos, Micaela fechou os olhos sob a dor atroz que a martirizou. Como tudo se precipitava e encadeava para lhe aniquilar a vontade!

Mal tivera tempo de se habituar à ideia de que ele a amava, e o destino hostil queria separá-los.

- Vamos! - disse, com simplicidade.

John seguia-a, regulando o seu passo pelo dela. Quando percorriam uma alameda completamente deserta, deu-lhe o braço e puxou-a para si, sem que ela se defendesse.

- Quer dar-me licença que me ausente durante três dias?... Preciso de ir a Londres conhecer todas as vantagens dessa situação que me oferecem.

- Contudo, o seu amigo dá-lhe todos os esclarecimentos - disse, depois de ler a carta.

- Sim, fixa uma quantia bem interessante; mas acrescenta: casa, luz, roupa lavada e sustento! Quanto representarão ao certo essas vantagens? Compreende que não posso aceitar um alojamento de solteirão. Esta situação deve permitir-me fundar um lar... e um lar alegre, onde uma mulher se possa sentir bem.

- Assim deve ser - disse Micaela, pensativa - São as vantagens que tem todo o pessoal enfermeiro dos hospitais.

- Exactamente. Em Inglaterra, durante o meu estágio de interno, contentava-me com um simples quarto pintado a óleo; era muito limpo, mas pouco confortável.

- Esteve como interno em Inglaterra? - inquiriu a milionária, de repente, desprendendo o braço - Mas... não compreendo... No outro dia não me falou nisso,

Parara, fixando-o com surpresa.

- Não falei, porque se mademoiselle soubesse que eu tinha feito o meu curso médico não se sentiria bem em ter-me às suas ordens como motorista.

- É médico?

- Tenho diplomas pelas escolas de França e de Inglaterra. Foi-me fácil, porque falo correctamente as duas línguas.

- Então para que aceitou o cargo de motorista?

- Para poder preparar a minha tese, em França. Não esqueça que não tenho fortuna.

- Se tivesse entrado para o hospital, onde colaboraria com um médico parisiense, seria mais normal.

- Mas pior remunerada. Sem contar que, livre todas as noites, pude fazer clínica entre os meus compatriotas pobres e, habituando-me a diagnosticar, ia aliviando um pouco a miséria alheia.

Micaela reflectiu. Estava estupefacta com o que acabava de saber, e procurava outras razões para justificar a presença de John junto dela, como motorista.

- Há quanto tempo defendeu tese em França?

- Há três meses.

- E não partiu mais cedo? O que esperava?

Havia no rosto de Micaela um espanto tão hostil que o rapaz sentiu desanimar.

- Mademoiselle retinha-me, não queria que eu a deixasse... e adivinha-se o que o coração espera em tal caso?

- Contava com uma fraqueza da minha parte! - exclamou ela, numa atitude veemente.

- Não! - protestou John - Abusei alguma vez dos momentos de benevolência que tem tido comigo?

- Tenho-me precavido a tempo.

- Julgo que nunca lhe faltei ao respeito! - disse tristemente.

Micaela não quis notar o tom amargo, se bem que lhe reconhecesse razão, porque jamais John fora incorrecto para com ela. E explicava a si mesma a sua audácia daquele dia. Aproximava-se a partida, e, se não falasse agora, nunca mais teria ocasião de o fazer.

- Como conseguiu entrar, como motorista, para casa de meu pai? - perguntou, depois de um momento de reflexão.

- Já exercia clínica em Londres, mas o príncipe Beloslavsky quis que viesse continuá-la em França, antes de me instalar definitivamente na sua Clínica.. Foi ele e o banqueiro Krassel, um amigo de seu pai, quem me arranjou este emprego... Aceitei, pela grande liberdade que me deixava.

- Krassel talvez lhe dissesse que em casa de Jourdan-Ferrières havia uma rapariga.

- Micaela! - protestou John.

- Está então decidido a partir?

- Leu a carta do meu amigo e as censuras que me faz pela minha inexplicável demora. Não posso prolongá-la mais - concluiu John, com enorme tristeza no olhar.

Couraçada numa aparente indiferença, parecia a Micaela que tudo quanto ele pudesse dizer não a comoveria.

- Está na minha mão fazer com que fique em França? - perguntou, estranhamente calma.

- Não. Garantem-me, ali, uma honesta situação que deverei só ao meu trabalho. Não tenho o direito de a perder.

- E eu? - perguntou a milionária, num grito,

- Mademoiselle? - respondeu John, perturbado.

Mas Micaela caíra em si.

- Vou ficar sem motorista - exclamou.

- Sei que um dos meus companheiros de exílio aceitará substituir-me ao volante do seu carro. É um rapaz sério, em que poderá ter toda a confiança, e que a servirá com dedicação.

- Com dedicação! - protestou Micaela - Ele não me conhece! Que dedicação sincera posso esperar de um desconhecido?

- Conhece-me a mim, e isto é o bastante - disse John, sorrindo tristemente.

- Seja. Ficarei com ele, visto que mo indica.

- Agradeço-lhe essa prova de confiança... Longe de si, estarei mais tranquilo, sabendo-o a seu lado.

- Não receia que ele o substitua em absoluto? - perguntou, quase duramente.

- Não! - respondeu John, gravemente - Creio que há entre nós recordações que não se apagarão, apesar de nos separarmos.

Algumas palavras fazem, às vezes, estremecer o coração... Micaela julgou que tudo girava em sua volta. As pernas dobravam-se-lhe sob a pressão de uma fraqueza desconhecida.

- A nossa separação - repetiu, como num sonho

- Quando julga que terá lugar?...

- Dentro de poucos dias! Voltarei para lhe dizer adeus.

- Não!

Subitamente, o rosto da milionária descompôs-se. Uma sensação de opressão, que quase a sufocava, já não lhe permitia fingir mais.

- Não, não! Não é possível!

- Agora é tarde!... Há três meses... - murmurou John dolorosamente.

Foi Micaela quem, instintivamente, lhe deu o braço, apertando-o contra si.

- É para me castigar das minhas tolas reflexões de há pouco que me diz isso, não é?

- Infelizmente não.

- Não partirá ainda. É a época das férias, procurará um pretexto, e iremos para uma praia.

- Não me tente, Micaela - protestou John, brandamente - Por um sorriso seu faria todas as loucuras.

- E ficarmos sempre juntos, como estamos há seis meses, não seria uma loucura?

- Onde nos levaria isso? -notou o rapaz, com tristeza.

- Tem razão, John - concordou Micaela, suspirando

-, Seria preciso, fosse como fosse, tomar uma resolução.

- E essa resolução seria muito pior de tomar, visto que eu já não teria a minha situação assegurada.

Micaela não respondeu. Com os olhos dilatados, olhava fixamente o espaço.

- Julga que a situação é segura e lhe permitirá oferecer à sua futura mulher todo o bem-estar que ela necessite? - perguntou, como em sonho.

- Creio que uma mulher se poderá contentar com ela. É o bem-estar amplamente assegurado... tudo depende daquela que aceitar ligar a sua sorte à minha...

- Talvez tenha hábitos muito dispendiosos...

- Precisamente, desejo ver se a situação que me oferecem me dará tempo para poder exercer clínica particular. Estou disposto a trabalhar noite e dia para que a minha companheira não sofra nenhuma restrição.

- John! - balbuciou Micaela, comovida - a sua imaginação arrebata-o, fá-lo sonhar... Receio que sofra cruéis decepções.

- Porquê? - perguntou o rapaz, com a garganta contraída.

- Aquela a quem ama talvez não seja livre; tem laços de família, situação, pátria... talvez não se sinta com coragem de quebrar tudo por si...

John teve um sobressalto de revolta.

- Se eu julgasse isso partiria amanhã para nunca mais voltar. A minha bagagem está pronta... e quando se trata apenas de malas, a viagem está quase começada.

- Prometeu-me que voltaria dentro de três dias

- Protestou.

- Precisa desse prazo? - disse, com tristeza.

- Sim - replicou vivamente Micaela - porque não esperava perdê-lo tão depressa.

John olhou-a, procurando ler naquele rostozinho, tão tragicamente resolvido a ficar impenetrável. A custo reprimiu as palavras que lhe subiram aos lábios.

- Está entendido - disse por fim - voltarei para lhe dizer adeus... ou até breve! Será o que decidir.

Calou-se, com a garganta contraída.

- Sou muito pobre para ousar uma tímida súplica - comentou por fim - Um homem não tem o direito de oferecer a mediocridade a uma mulher muito rica.

Evitava-lhe agora o olhar e esforçava-se para não deixar perlar as pestanas com as lágrimas que revelariam a sua fraqueza.

Micaela, muito pequena junto da sua estatura, olhou para ele e Viu a fixidez daqueles olhos rasos de água.

Este mudo desgosto de John enfraquecia-lhe toda a resistência, e a sua comoção fundiu-se num grande soluço, que não pôde conter.

- Micaela! - exclamou John, transtornado por aquela explosão de pesar que não previra.

- Não fale! Não diga nada! - gritou, inconscientemente - Estou triste, muito triste!

- Micaela! - repetiu John, tentando abraçá-la.

Mas, instintivamente, ela repeliu-o.

- Deixe-me - balbuciou por entre lágrimas - É horrível!

Gemia alto, nervosamente, sem compreender por que sentia uma aflição tão grande. E, de súbito, começou a fugir, diante dele, desordenadamente, correndo, parando, como se tivesse enlouquecido.

O jovem Russo, desorientado, seguiu-a. Habituado a vê-la sempre tão senhora de si, admirava-se de que ela exteriorizasse de tal forma a sua dor.

Por fim, Micaela deixou-se cair sobre as almofadas do automóvel, com o rosto escondido entre as mãos. Como o seu companheiro, querendo consolá-la, se preparasse para subir para o carro, ergueu-se quase hostil.

- Vá-se embora - gritou, fora de si - Deixe-me, deixe-me sozinha.

- Suplico-lhe que sossegue, Micaela - implorou John, dolorosamente - Não chore, farei tudo que quiser.

- Então, seja generoso... deixe-me só; preciso de estar só!

Ele hesitou. Parecia-lhe, visto que o pesar de Micaela provinha dele, ser nos seus braços, junto do seu coração, que devia procurar alívio à sua dor.

Mas, ferozmente, o braço de Micaela repelia-o e, para melhor lhe fugir, chegara-se para o outro canto do carro, com a cabeça escondida no braço dobrado, voltando-lhe as costas.

John fechou a portinhola e voltou para o seu lugar. Estava acabrunhado por enorme decepção; Micaela repelira-o, afastava-se dele. Deu conta de que, mesmo antes desta crise de lágrimas, não tivera para ele a menor palavra de esperança.

Durante alguns minutos, ficou aniquilado. Nunca ousara esperar, seriamente, que a filha de Jourdan-Ferrières aceitasse o seu amor, mas o coração tem razões que a sensatez ignora e, na verdade, também nunca pensara que Micaela pudesse repeli-lo de tal forma, a poucas horas de uma separação que seria definitiva.

Como num sonho, pôs o carro em andamento. Voltando as costas ao Parque Montsouris, tomou por uma estrada, depois por outra... atravessou aldeias que não conhecia...

Pelo espelhinho do carro observava Micaela, que continuava imóvel, sempre com o rosto escondido.

Inconsciente do percurso seguido, caminhou para a frente enquanto a viu chorar. Foi só quando a sentiu mais sossegada que pensou no regresso.

Felizmente, no seu caminho sem destino, o carro andara à roda. Estavam, apenas, a uns quarenta quilómetros de Paris, e em meia hora chegariam à Avenida Marceau.

Quando Micaela sentiu parar o Rolls-Royce, despertou da surda letargia, e sentiu pena de se encontrar no pátio do palácio. Podiam espiar-lhe os gestos e comentá-los. Descendo do carro, parou em frente do motorista, que lhe abrira a porta, vendo-o pálido e espectral.

- Sacha - disse suavemente - prometeu-me que voltava daqui a três dias.

- Cumprirei a minha palavra - afirmou gravemente o rapaz, muito perturbado pelo diminutivo que Micaela lhe dera.

- Prometeu-me também, há pouco, que faria tudo quanto eu quisesse... Foi uma promessa vã, por me ver chorar?

Como John a olhasse, surpreso, sem responder, porque tinha medo do sacrifício que ela lhe ia exigir. Micaela acrescentou com um pálido sorriso de onde parecia banir qualquer ilusão:

- Promete-se a lua, para impedir qualquer pessoa de chorar.

- Pessoa a quem se ama - reflectiu o jovem Russo, suavemente.

E baixinho, tão baixo que ela mais adivinhou as palavras do que as ouviu, acrescentou:

- Amo-a, Micaela, e seja o que for que de mim exija, não terei coragem para resistir.

Micaela fixou-o, e de novo os olhos do rapaz se encheram de lágrimas.

Tinham de se conservar, em frente um do outro, impassíveis, como se trocassem banalidades; e, contudo, representavam um drama!

Os olhos húmidos de Micaela fitaram os de John.

- Volte daqui a três dias, Sacha. Esperá-lo-ei e, juntos, decidiremos.

Viu-lhe tremer os lábios... em palavras que não pôde proferir, mas cujo sentido Micaela bem percebeu.

O seu coração recolheu a suprema súplica que ele não ousara formular, e à qual ela não podia responder.

- Quando voltar, Sacha, quando voltar...

Olhou-o pela última vez e, vendo aquele rosto torturado sob a implacável atitude de deferência, foi subitamente dominada por nova crise de lágrimas, e fugiu, a fechar-se à chave no seu quarto.

 

Micaela chorou durante muito tempo... Havia semanas que compreendera os sentimentos que inspirara a John, e isto divertia-a. Brincando, sentia prazer em se mostrar provocante, achando um singular encanto em encontrar os seus olhos, tocar-lhe nas mãos, em enlouquecer com os seus sorrisos aquele rapagão, que, até ali, parecia muito seguro de si próprio, na sua impecável correcção.

Mas, por mais inverosímil que isso parecesse, nunca Micaela acreditara na possibilidade de poder retribuir o amor que o motorista sentia por ela.

Pela primeira vez, a verdade lhe aparecia em toda a sua extensão... e em todo o seu desastre! Como se lhe arrancassem subitamente um véu dos olhos, teve a espantosa visão dos seus sentimentos. Tudo quanto havia semanas recusava ver, surgia agora, a seu pesar.

O abismo estava aberto a seus pés, diante do qual ela teimava em não cair... tentando, ainda, sob uma vontade de ferro, furtar-se-lhe, prender-se a qualquer ilusão...

E, sem dar por isso, à medida que falava, que respondia... que compreendia que a partida do jovem Russo era caso resolvido... deslizava com rapidez... lamentavelmente... até ao fundo do abismo... ao fundo da verdade.

"- Mas, ele, porquê? Ele, de preferência a qualquer outro?... Meu Deus! Não é possível, não haveis de permitir isso".

Tudo quanto repelira no seu pensamento, no seu cérebro equilibrado: as suas lutas inconfessadas, impulsos de orgulho, aos quais se entregava; as irónicas observações que procuravam castigar o amor-próprio de outrem, e que sempre a martirizavam a si própria, tudo lhe parecia claro, terrivelmente luminoso!

"- Amo-o, eu amo-o! É horrível!"

Qual farrapo humano, estirada na cama, Micaela conheceu o calvário de um desmoronar, a agonia de todas as suas ilusões de rapariga ajuizada e ingénua, de todas as suas pretensões de menina rica e adulada.

Sem o querer, sem mesmo o saber, o coração podia prender-se! Apesar da educação, da razão, da vontade, do orgulho, e de todas as convenções sociais, apesar de tudo... amava... um motorista... o seu motorista!

O saber que ele era, na verdade, um médico, não adoçava a sua humilhação. Com os olhos cheios de lágrimas de fogo, na escuridão do seu quarto, mesmo com o lenço a tapar-lhe as pálpebras inchadas, só via um casaco luminosamente branco, enfeitado de vermelho, um boné, um motorista e... quê! Micaela Jourdan-Ferrières, a filha do arquimilionário, amava o seu motorista!

Esta crise de orgulho durou uma parte da noite. Depois, a natureza, benéfica, derramou naquela pobre rapariga, fatigada de tanto chorar e delirar, o esquecimento, um sono profundo, como o da morte, mas sossegado e reparador.

De manhã acordou fatigada, mas tranquila. Toda a sua força de revolta caíra: compreendia que o Destino fora mais forte do que a sua vontade.

Do que lhe acontecia nada tinha a censurar-se. Lutara muito tempo contra a atracção que emanava daquele homem, contra a comoção que se apoderava dela logo que o via; desprezara-o, escarnecera-o, rebaixara todas as suas aspirações, querendo sufocar todos os seus impulsos instintivos. Mas, saindo vitorioso de todos os entraves, mofando dos seus mais sagrados princípios, calcando tudo quanto venerara até ali, o amor surgira triunfante, derrubando todos os obstáculos que ela lhe antepusera.

E Micaela já não tinha forças para reagir. O amor era mais forte do que tudo mais!

Acabava de sair do seu gabinete de toilette quando Landine lhe anunciou a visita de Molly Burke. A Americana apareceu-lhe quando ainda não tivera tempo de pensar o que significava aquela visita tão matutina.

- A que bom vento devo esta visita, Molly?

- Querida, eu vim informar-me consigo.

- De que se trata? - perguntou Micaela, convidando-a a sentar-se numa poltrona tão grande que a pequena milionária quase não se via.

- Eu... vir falar com franqueza, a você.

- A que respeito.

- De John.

Sem querer, o rosto de Micaela contraiu-se.

- Oiça, querida... Ser inútil já questionar a respeito dele... como ser inútil zombar ou mentir... Sei que ir deixá-lo partir para Inglaterra.

- Quem lho disse?

- Ele.

- Quando?

- Ontem à noite.

- Viu John, ontem à noite? - perguntou Micaela, cuja voz a custo se mantinha calma.

- Vi.

- Onde?

- Em casa dele... Eu ir lá.

- Como?

Havia uma tal surpresa na sua exclamação que Molly começou a rir.

- Sim, você já saber que eu ser decidida. Querer falar a sério, com ele, você não me dar ocasião.

- E foi, à noite, a casa de um homem?

- Yes! Landine dar a direcção dele a Mary. Fui lá às nove horas...

- E ele estava?

Molly fez um sinal afirmativo e começou a rir.

- Eu julgar que ele esperar outra... Quando a criada lhe dizer estar ali uma rapariga, John correr, mas ficar desapontado quando viu a mim...

- E depois?

- Parecer surpreendido... também um pouco zangado! Pensar como você, que eu não devia ir a sua casa àquela hora. A questão de correcção, em França, ser pândega!... Eu achar que uma mulher pode ir a casa de um homem, sem fazer mal... e ser pessoa séria...

- Evidentemente... questão de preconceitos...

- All right! Eu gostar de você, quando falar assim, Micaela!

A filha de Jourdan-Ferrières sorriu tristemente.

- É preferível ser reservada... as mulheres podem ser fracas.

- É o que eu pensar... Enfim, John levar a mim ao Café; ser melhor falar em público!

- Não estava convencida disso, Molly - notou Micaela, com um sorriso, porque adivinhara os pensamentos que tinham guiado John.

- Não, não - articulou a Americana - Só com ele, em sua casa, parecer-me mais conveniente do que diante de toda a gente.

- Mas pôde, enfim, dizer-lhe o que queria?

- Yes! Ofereci-lhe casamento.

- Hein?

Molly soltou uma gargalhada, vendo o espanto de Micaela.

- Querida, não olhar para mim com esses olhos. Você dizer a mim: "Não se rouba um criado". Eu responder: "Eu casar com ele!" E você continuar a ficar zangada. Agora ele deixar a você... e dizer você saber a sua próxima partida... Eu oferecer a ele casamento vantajoso, em lugar da posição medíocre em Inglaterra... Assim não fazer mal a você, e você deve ajudar a mim!

- Ajudar em quê - perguntou Micaela, pensativa.

- A convencer John.

- Ele recusou?

- Ele dizer: não sou livre, eu amar outra!

- Então, Molly, se ele não é livre...

- Querida, você concluir muito depressa... John amar, mas confessar a mim não julgar ser correspondido... Ela não consentir em casar... Vê, Micaela, eu ainda ter possibilidades...

Micaela não respondeu. A dúvida de John atingiu-a no coração e, contudo, não gostaria de saber que ele tinha a fatuidade de alimentar uma esperança.

Um pouco pálida, examinou Molly, cujo rosto se tornara sério.

- Como pode pensar em ser mulher de um homem que ama outra?

- Se eu casar com ele é porque a outra terá recusado... John será desgraçado... eu consolarei ele... Eu salvarei ele do pesar e da solidão. Mais tarde, ele amará a mim mais do que ninguém!

Como Micaela a encarasse trémula, Molly sorriu.

- Você não poder compreender, querida! Em França, um casamento ser dinheiro, um negócio... algumas vezes a beleza física contar; o resto é raro. Eu escolher seriamente John. Agrada-me deveras, ter confiança nele; dizer a meu pai, e ele aceitar... Eu falar a John, agora, eu esperar...

- E espera?

- Yes. Eu ter confiança.

- John, então, se for repelido por aquela a quem ama, casará consigo?

- Eu não perguntar essa coisa. Ser preciso esperar que o assunto com a outra terminar. Quando ele for desgraçado, eu voltar e ele ver os meus sentimentos sinceros e fiéis.

- É bem pensado - murmurou Micaela.

Uma terrível comoção apertava-lhe a garganta. Quisera poder gritar a Molly que se calasse, que John a amava, que ela lhe pagava na mesma moeda e que nunca permitiria que lho roubassem... mas os seus lábios fecharam-se ferozmente; na realidade, não sabia se a Americana não teria razão para esperar.

- Porque veio contar-me tudo isso, Molly - perguntou, após um grande silêncio.

- Mim precisar de você.

- De mim? - admirou-se Micaela.

E fixou Molly duramente. Que iria aquela teimosa pedir-lhe?

- Não olhar a mim tão severamente, querida Micaela, John partir... eu não o tirar a você e ter em si confiança, visto dizer-lhe em que ponto estamos...

- Mas que espera de mim? - perguntou, já calma.

- Saber... quem ser a outra... John não querer dizer a mim o seu nome... todas as perguntas ser inúteis. Você deve saber. Eu vir pedir para você dizer a mim o que sabe.

- Que vantagem tem em conhecer o seu nome?

- Para oferecer a ela, visto que não o ama, uma compensação. Se é pobre, eu dar a ela uma fortuna, para que ela repila, já, o oferecimento de John.

- A Molly é prática! - disse Micaela, levantando-se, agitada.

- Business! Eu defender minhas probabilidades.

- Mas quer assim tanto a John? É tão extraordinário!

- Porque você julgar ser uma extravagância e excentricidade. Mas se disser sinceridade, compreenderia.

Molly calou-se, baixando um pouco a cabeça; depois suspirou:

- Eu ser sincera e nada mais.

Micaela viu brilhar-lhe lágrimas nos olhos e sentiu-se comovida.

- Molly! É melhor do que eu!

- Não, eu amar, isto explica tudo!... Você não poder compreender, querida.

- Sim, compreendo-a - murmurou a filha de Jourdan-Ferrières - e creio que será para John uma grande felicidade encontrá-la... se a outra não tiver coragem ...

- Dizer seu nome, Micaela?

A interpelada abanou a cabeça.

- Não! Não devemos meter-nos de permeio entre o Destino...

- Ser apenas um pretexto para recusar...

- E, mesmo, se, mais tarde... triunfar, é melhor que ignore o seu nome, Molly...

Micaela falava devagar, gravemente, não podendo ninguém supor que ela era a interessada na questão. E, durante uns momentos, pensou se não devia responder à franqueza de Molly com igual confiança. De que lado estava a lealdade, neste caso?

Mas o próprio John guardara silêncio e ela observou a mesma atitude. De resto, Micaela tinha que poupar a família, e não estava segura da discrição da Americana. O quiproquó que as aproximara, separá-las-ia logo que tudo se esclarecesse. Por isso, conservou-se prudentemente silenciosa. Mas havia um ponto que ela queria ver esclarecido.

- É impossível dizer-lhe o nome que me pergunta, Molly, mas devo dizer-lhe que ambos se enganam numa coisa.

- O quê? O que sabe?

- Apenas isto: que os sentimentos de John são correspondidos; a mulher a quem ama não lhe quer menos a ele...

- Você ter a certeza? - disse Molly, vivamente.

- Absoluta.

- Verdadeira?

- Em toda a acepção da palavra, John é amado.

- Então - disse Molly, descoroçoada - ela casar com ele.

- É uma dedução talvez rápida de mais.

- Visto você conhecer a ela, diga-me ser uma rapariga...

- Honestíssima.

- Ser de boa família?

- Bem educada.

- Rica?

- Pessoalmente, creio que pouca coisa tem.

- Mas, então, eles, se casar os dois?...

- Tudo me faz supor que terão de contentar-se, para viver, com os honorários de John.

- Mas, na verdade, esse rapaz está maluco - notou Molly, com indignação - Eu oferecer uma fortuna a ele.

- Evidentemente... Seria mais vantajoso para John dar-lhe preferência...

- E você ter a certeza, Micaela querida, que não poderei oferecer a ela... visto ser pobre... Dizer-lhe que eu pagarei...

- Quantos milhões? - perguntou Micaela, sorrindo ironicamente.

- Como? Milhões? - exclamou a Americana, sufocada.

- Meu Deus! Parece-me que Molly tem umas ideias singulares sobre o carácter das raparigas francesas. Diz sempre que eu não posso compreender... que entre nós o casamento é um negócio... Mas propõe-se comprar um marido, pagar a uma mulher para renunciar àquele a quem ama. Entendamo-nos e saibamos para qual das duas o casamento é um negócio: para si ou para a outra?

- Eu ser sincera.

- Porque será ela menos?

- Eu oferecer o meu amor e uma fortuna àquele escolhido por mim.

- Ela dar-lhe-á talvez mais.

- Não acreditar! Que poderá ela oferecer-lhe melhor?

- O seu desinteresse, renunciando a tudo, por ele!

- Eu não compreender muito bem. Mas, querida, você julgar como espectadora; minha oferta ser melhor, mais bela.

Micaela olhou-a, pensativa.

- Talvez... Creia-me, Molly... deixe a Providência operar... pois nada somos em face do Destino - colocou-lhe suavemente as mãos nos ombros e continuou - Fez bem em vir esta manhã... Muitas vezes as suas excentricidades irritam-me. Os meus preconceitos burgueses chocam com o seu senso prático, tão à-vontade. Hoje sinto-me sincera, Molly... e disse coisas que precisavam ser ditas, que era necessário serem expressas neste momento...

- Está bem! Micaela querida, visto você estar contente, prometer prevenir a mim... Quando John estiver em Inglaterra... você conhecer a outra, dizer a mim se o caminho estar livre... compreender?

- Está entendido - prometeu Micaela, gravemente - Preveni-la-ei... Irá consolá-lo!

Molly não adivinhou qual o motivo porque a sua companheira empalideceu ao fazer esta promessa.

Quando Molly saiu, Micaela encostou-se à porta, subitamente enfraquecida. Com os olhos fechados, tinha a impressão de que ia desmaiar. Saíra despedaçada desta atroz conversa, tão calma e tão ajuizada.

Molly, pobre garota sincera, saberia algum dia como as suas generosas palavras tinham flagelado a razão de Micaela e crucificado o seu indomável orgulho?

 

- Papá, já me apresentaste uma infinidade de noivos- disse Micaela, depois do jantar.

- Para pouco tem servido isso! - retorquiu Jourdan-Ferrières - Recusas todos!

- É que, até agora, nenhum me agradou.

- O que prova que és difícil de contentar; todos eram belos partidos.

- O que prova, também, que meu pai e eu temos ideias diferentes sobre o meu marido.

- Que dizes tu?

- A verdade, meu pai. Enquanto houver só noivos da tua escolha, é certo que recusarei.

- Mas porquê?

- É preciso que sejam a meu gosto, para eu aceitar.

- Apresentei-te aqueles que eram aceitáveis, entre os que me pediram a tua mão.

- Mas, a que chamas tu um noivo aceitável? Jourdan-Ferrieres colocou-se em frente de Micaela.

- Um marido aceitável, senhora minha filha, é um homem saudável, honrado...

- Evidentemente.

- Bem parecido...

- Está certo, e...

- E rico!... Tão rico como tu.

- Para quê?

- Para duplicar os teus bens e conheceres o prazer, que uma grande fortuna dá.

- Não preciso de tanto dinheiro para ser feliz.

- Mas eu quero, absolutamente, que o meu genro seja um homem rico... porque isso será a melhor garantia que posso ter dos seus sentimentos a teu respeito; o teu grande dote atrai os noivos, como o bofe ao gato. Tu és tão requestada porque representas uma boa quantia de milhões.

- É muito lisonjeiro para mim!

- Só posso achar sincero um homem que tenha uma fortuna igual à tua, porque aquele que pode escolher sem se interessar pela totalidade de um dote é o único que, verdadeiramente, te amará.

- Paizinho, o teu raciocínio é esquisito. Um belo rapaz, sem fortuna, pode realmente ser sincero e amar-me por mim mesma.

- Nunca conseguirá provar-mo.

- Evidentemente, mas é preciso fazer entrar em linha de conta os meus sentimentos; posso preferir o homem sem fortuna ao pretendente rico.

- Seria uma grande desgraça para ti, minha pobre Micaela, porque nunca aprovaria semelhante projecto.

- Então - disse a rapariga, amargamente - de que me serve ser a filha de um homem como tu, se não posso pagar o luxo de escolher marido à minha vontade?

- Essa agora! Espero que tudo isto não passe de suposições... Tenho-te desculpado muitas fantasias e satisfeito, tanto quanto possível, todos os teus caprichos; mas se alguma vez tiveres a desgraça de amares um rapaz sem fortuna, fixa bem, nunca o aceitarei por genro.

- Ninguém pode mandar nos meus sentimentos; posso amar involuntariamente.

- Meu Deus!... Sim, ama à tua vontade... nisso ninguém pode mandar. Mas não penses em casar com um tal partido.

- Papá! - protestou Micaela.

- Minha filha! - interveio a senhora Jourdan-Ferrières - teu pai expressa-se mal. Quer dizer que o amor é uma coisa e o casamento é outra.

- Na verdade, esta garota faz-me dizer coisas impróprias - disse ele, já um tanto carrancudo.

- É melhor falar claro para eu entender, paizinho... O pai diz que o casamento...

- É um acto importante... mais importante do que a compra de um casaco ou de uma propriedade. E, para estas compras secundárias, procura-se o mais belo e rico, segundo o dinheiro que se quer gastar... O dinheiro, como vês, minha filha, é a segurança da qualidade e solidez.

- Talvez, mas um casamento sem amor, apesar das qualidades que lhe atribui, dá-me a impressão de um casaco forte, mas que me ficará mal.

- Micaela! Que querem dizer todas estas perguntas? Espero que não nos apresentes algum noivo ridículo.

- Não se trata disso, mas Molly Burke dizia, esta manhã, que a fortuna de seu pai lhe permitia casar com um homem a quem amasse, mesmo que não tivesse um franco. Ora eu pensei que tu me concederias as mesmas vantagens.

- Molly Burke é uma pateta, que cairá facilmente nas unhas de um caçador de dotes. E só despertará quando o marido lhe tiver devorado os milhões.

- Nem sempre se dá esse caso!

- Quase sempre. É a história do costume.

- Ao menos, saberá o que é o amor.

- É uma iguaria que não enche o estômago.

- Enfim, meu pai, supõe que quero fazer o mesmo que Molly, e que te apresento um rapaz bem educado, de boa família, mas sem fortuna?

- Prefiro não o supor.

- Não é isso! Responde claro, para eu saber o que hei-de pensar.

- Queres saber? Pois bem! Não tenhas dúvidas. Disse há pouco que nunca te daria o meu consentimento. Acrescento, para boa compreensão do bonito senhor que escolheres, que não te darei um franco para dote. Podes barafustar. Tanto pior para ti...

- Foi exactamente o que pensei, quando falei hoje com Molly.

- Cortava-te os víveres, e teu marido tinha que trabalhar para te sustentar.

- Em resumo, meu pai, para teres a certeza de que meu marido não vivia à tua custa, deixar-me-ias morrer de fome!

- Tu assim o querias.

- Dou-me por prevenida, se alguma vez quiser deixar falar o coração.

- Sim, e não o esqueças, se por acaso vieste sondar os meus sentimentos.

- Falei com Molly Burke, meu pai, e julgo-a felicíssima por ser Americana!

- Mais tarde me dirás.

- Ora! Se, procurando ser feliz, arriscasse alguns milhões e os perdesse, como tu dizes, seu pai é bastante rico para suportar essa perda, por consideração pela felicidade da filha.

E Micaela, um pouco excitada com esta longa e aborrecida palestra, saiu da sala.

Então, Jourdan-Ferrières voltou-se para sua mulher:

- E esta! Não viste a nossa Micaelazinha, tão orgulhosa da sua fortuna, até agora, a falar em casar com um homem pobre? Mas que tome cautela! Asseguro-te que o maroto não levará a melhor. Fundarei qualquer casa de caridade, e darei tudo, até ao último franco... para que ela não tenha nada!

Estava desfigurado pela raiva. Neste momento, abriu-se a porta, e Micaela apareceu tragicamente pálida.

- Gritavas tanto, meu pai, que ouvi tudo e estou contente por conhecer os teus sentimentos paternais. Se alguma vez tiver que escolher entre os teus preconceitos e o homem a quem amar, sei agora o que tenho a fazer.

- Micaela, suplico-te que não desesperes inutilmente teu pai, visto que disseste não se tratar de ti.

- Se o fosse seria a mesma coisa. Meu pai sacrificaria a filha ao amor que tem ao dinheiro. Bem o ouviste, mamã.

Enervada, falava num tremor.

- Sossega, filha, sossega.

Mas o pai também estava fora de si.

- Sim, disse-o, Micaela, e não me arrependo ! - exclamou ele, dando um grande murro na mesa - Não andei a trabalhar toda a vida para ver um genro esbanjar o produto do meu suor.

- Mas eu não fiz nada para ser rica e não posso sofrer-lhe as consequências! Não sei o que me reserva o futuro, mas, agora, tenho a certeza de que quero ser feliz, aconteça o que acontecer!

- Micaela! Ordeno-te que te cales - exclamou a senhora Jourdan-Ferrières, agarrando-lhe num braço.

E acrescentou, mais baixinho, em face do duplo silêncio:

- Para que discutem um caso que não está em jogo e que talvez não o esteja nunca? Micaela não pede para casar, e seu pai, graças a Deus, não lhe recusou ainda o seu consentimento.

- Não!... Mas posso fazê-lo um dia!

- Muito bem; tomo nota.

- Então?... Recomeçamos?...

- Não, mãe. Vou deitar-me. Dirigiu-se para a madrasta e beijou-a.

- Boa noite, mamã... e obrigada. Ao menos, tu, não me atormentas, e terias examinado com indulgência um assunto desta ordem.

- Ora adeus. Quem diz discussão, diz concessão, e eu sou inflexível. Foi com estes princípios que triunfei na vida.

O salão ficou silencioso. Passados momentos, o milionário notou, em voz baixa, como se tivesse medo que Micaela o ouvisse ainda desta vez:

- Porque levantaria a pequena esta discussão?...

- É essa parva da Molly Burke, com as suas modernas teorias: o direito à felicidade! Isto embriaga a cabeça das raparigas.

- Apesar disso, seria bom saber se em tudo isso não haverá qualquer coisa escondida...

- Não creio. Micaela não parece estar preocupada nas festas onde vamos.

- E os pares?

- Não distingo nenhum. De resto, não dança muito. Em geral, tagarela com as amigas.

- Em resumo, arrasta atrás de si os seus flirts.

- Mas tenho notado que não lhes liga importância.

- Mas, então, quem será?

- Nada vejo. Desdenha de toda a gente <e toma ares de imperatriz com todos os rapazes.

- Certamente porque pensa em algum.

- Tenho-a observado, muitas vezes, sem ela dar por isso; não dá importância especial a qualquer.

- Prefiro isso.

- Mas deixa-me dizer-te, meu amigo, que há pouco foste muito brusco.

- Não voltes à mesma.

- Ouve-me primeiro. É preciso não precipitar as coisas no começo. Se Micaela nos interrogou com um pensamento reservado...

- Já sabe o que há-de pensar.

- Infelizmente, porque não ousará de novo abordar este assunto.

- Tanto melhor; assim não terei que recusar.

- Tanto pior; porque não saberemos nada... e é difícil defendermo-nos de uma coisa que ignoramos.

- Sob esse ponto de vista, é evidente!

- E sobre outro também, porque, se realmente se trata da felicidade de Micaela, quero crer que examinarás, primeiro, o homem da sua escolha, antes de o repelires.

- Se ele não tiver fortuna, não! - afirmou, elevando a voz.

- Não grites tanto. Não é preciso que ela oiça o que dizemos.

- Fazes-me ferver o sangue nas veias com as tuas concessões!

- Então, essa garota tem razão. A tua fortuna é uma desgraça para ela. Não pensavas da mesma forma quando casaste com a mãe. E eu própria não te trouxe milhões, quando pediste a minha mão.

- As condições não são as mesmas... Não lhe recuso o direito de escolher... Só pretendo que faça a sua escolha entre aqueles que julgo dignos dela. Já lhe apresentei alguns.

- Não lhe agradaram.

- Encontrarei outros.

- Talvez aquele que lhe agrade seja do número dos que tu rejeitas.

- Tanto pior para ele.

- E para ela também.

- Enervas-me! Não sou um pai bárbaro, sou um homem de negócios, prático, e que não deixa as coisas ao acaso. Se te pões ao lado dela...

- Está bem! Está bem!

- Creio proceder para a sua felicidade.

- Estou persuadida disso.

- Então, não me censures.

- Contudo, examina os meus argumentos.

- Não têm importância.

- Bem, não falemos mais nisso.

Mas, apesar da mudança de conversa, o cérebro do bom homem trabalhava. E quando, à noite, indo deitar-se, passou pela porta do quarto da filha, resmungou:

- Vão lá tentar fazer a felicidade dos filhos!... Quem poderá dizer-me o que esta pateta pensa...

 

Eram dez horas quando Micaela, um pouco grave, mas com aspecto decidido, bateu à porta dos aposentos de John. Por lacónico telegrama que lhe dirigira de Londres, tinha a certeza de que ele regressaria nessa noite.

Antes de partir, o jovem Russo despedira-se definitivamente da família Jourdan-Ferrières. Micaela sabia, portanto, que ele não voltaria ao palácio. E não tendo, previamente, marcado nenhum encontro, vinha pessoalmente dar-lhe as explicações prometidas.

Abriu-lhe a porta uma senhora bastante nova.

- O senhor Isborsky? - perguntou Micaela.

- Não está.

Desenhou-se no rosto de Micaela uma tal decepção que a mulher acrescentou:

- Talvez não se demore.

- Chegou esta manhã, de Londres, não é verdade?

- Sim, minha senhora.

- E não lhe deu nenhum recado, caso o procurassem?

- Não.

- Também não telefonou, esta manhã? Eu esperava uma comunicação.

- Quer ter a bondade de me dizer o seu nome? - perguntou a mulher, a quem a extrema distinção de Micaela perturbava.

- Sou Micaela Jourdan-Ferrières.

A outra sobressaltou-se.

- Mademoiselle! Queira desculpar-me tê-la deixado à porta... o senhor nunca me perdoará... Queira entrar, peço-lhe. Entre, entre...

E tornara-se tão respeitosa e obsequiadora que Micaela sorriu vagamente. Esta, como Natália Petrovna, em Passy, sabia o que o seu nome significava para o jovem Russo.

- Eu não podia adivinhar - explicava a pobre mulher-Um destes dias o senhor zangou-se por eu ter deixado entrar uma outra senhora.

- Creio que não lhe ralhará por minha causa - disse Micaela, sorrindo, feliz por verificar que as palavras da mulher coincidiam com o que Molly lhe tinha dito.

- Bem sei. Há já semanas que o senhor me preveniu da visita de mademoiselle...

E parou em frente de uma mesa onde havia uma jarra com flores.

- Todos os dias devo renovar estas flores, em sua intenção. Esta precaução serviu para alguma coisa, visto que veio.

Micaela, muito corada, sorriu, comovida. Depois da grande crise de desespero que sofrera, por causa de John, qualquer prova de amor, da sua parte, era-lhe infinitamente preciosa.

Dirigiu-se para as flores, tirou uma e pô-la ao peito. Olhou em volta e perguntou:

- Esta casa pertence ao senhor Isborsky?

- Sim; este gabinete serve-lhe de gabinete de trabalho e de sala, quando recebe os seus amigos. Aqui ao lado é o seu quarto, e ao fundo um gabinete de vestir. Meu marido e eu temos a cozinha e dois quartos que dão para o pátio. Estamos todos perfeitamente à vontade.

Micaela chegou até ao limiar da sala que a mulher indicara como sendo o quarto de John. E, pensativa, examinou o aposento onde decorria a vida íntima do jovem Russo. Era simples, sem luxo, mas extremamente confortável e meticulosamente cuidado.

Tudo lhe pareceu claro e irrepreensível como toda a pessoa de John. A mesma orientação de correcta elegância, que presidia à escolha de fatos, presidira à direcção do arranjo desses dois aposentos.

Micaela evocou, passeando entre as quatro paredes, a altiva e calma figura de Sacha, e sentiu uma tranquila satisfação; vivendo junto desse homem, no seu lar, uma mulher nunca se sentiria infeliz.

Fazia estas reflexões quando ouviu o ruído metálico de uma chave na fechadura. Voltou-se, e viu John no vestíbulo, que, não reparando nela, dependurava o chapéu num cabide.

O rosto, um pouco contraído e magro, demonstrava vaga melancolia.

- Nada de novo? Não há correio? A mulher respondeu:

- Veio uma senhora.,. Mademoiselle Micaela...

John voltou-se bruscamente e viu-a.

- Micaela! - disse ele, com voz perturbada - Micaela, veio!

E correu para ela, transfigurado, olhando-a, sem saber se lhe trazia a felicidade ou lágrimas, mas tão feliz por a sentir ali que não sabia como exprimir-lhe

a sua alegria.

- Vim, porque não tínhamos marcado encontro, e prometi que à sua volta falaríamos.

John percebeu-lhe qualquer coisa estranha na voz terna, e examinou-a com penetrante olhar.

- O que lhe aconteceu, Micaela? A que é devida essa palidez e febre que lhe adivinho?

- Tive pena... bem o sabe! Tudo contribuiu para me martirizar, há três dias...

E, com melancólico sorriso, acrescentou:

- Se John tivesse chegado ontem, não poderia ter vindo vê-lo; chorei tanto que estava irreconhecível.

- E qual a razão dessas lágrimas? - perguntou o rapaz, tristemente - Se o meu amor a importuna, nunca mais me ouvirá falar nele. Devia ter-me afastado sem o dar a conhecer. Porque tive essa fraqueza que tanto mal lhe causa?

Fê-la sentar a um canto do divã, rodeando-a de macias almofadas; sentou-se a seu lado, conservando entre as suas a mão de Micaela.

- Engana-se, Sacha - disse Micaela, suavemente, apertando-lhe os dedos - Não foi por causa da sua confissão que eu chorei.

John estremeceu e olhou-a comovido.

- Minha Micaela - balbuciou, com o coração palpitante de esperança.

- Daqui a pouco saberá tudo. Fale-me primeiramente da sua viagem. Está contente?

- Muito contente.

- Dê-me pormenores - insistiu ela - Viu o príncipe Beloslavsky?

- Sim, e procedeu gentilmente para comigo. Mandou arranjar de novo um pavilhão situado a um canto do parque da sua Casa de Saúde. Não é muito grande, mas tem dois belos aposentos e uma cozinha, em baixo, dois grandes quartos e casa de banho no primeiro andar. É uma deliciosa vivenda, enterrada em verdura, que, tendo saída directa para um boulevard, fica completamente independente da porta hospitalar. Das janelas traseiras vê-se o parque, mas como ali só passeiam os convalescentes, a vista não entristece. Em resumo, habitarei a cento e cinquenta metros das primeiras instalações do estabelecimento, o que equivale a dizer que estarei sempre perto de casa.

- E no hospital?

- Tenho duas horas de consulta, de manhã. Durante o resto do tempo dirigirei os restantes serviços.

- Ficará muito ocupado...

- Não muito... Evidentemente, a manhã estará presa. Irei ao meu consultório apenas uma hora, durante a tarde. Isto é, estou preso, o máximo, cinco horas por dia. Poderei fazer clínica por fora... uma clientela rica, mas restrita, bastará para aumentar os meus proventos; sou capaz de me tornar, como os outros, muito exigente...

Micaela sorriu.

- Não é preciso tanto dinheiro para se ser feliz - observou com meiguice.

- Só o desejarei para o bem-estar dos meus.

- Mas se traz a certeza de poder sustentar um lar...

- Certeza absoluta! Ora oiça. O hospital fornece-me tudo, o meu ordenado de cem libras mensais fica quase livre de despesas... E, vantagem ainda superior, asseguram-me um contrato por dez anos!

- Não percebo nada de despesas de casa. Na Avenida Marceau oiço minha madrasta falar em quantias fantásticas. Creio que a roubam a torto e a direito.

- Evidentemente que nunca ganharei o bastante para lhe assegurar vida como a que tem em casa de seus pais - disse John, tristemente.

- Nem é preciso. Acho até que é um fardo muito pesado, semelhante existência; e, se falo nisto, Sacha, é porque não sabe, não pode imaginar...

- O quê? -perguntou John, surpreendido com a leve tremura daquela voz.

Micaela baixou a cabeça. E, a custo, confessou:

- Falei a meu pai. Ele não quer.

John apenas compreendeu uma coisa: que Micaela não o repelia.

E, num ímpeto que não pôde dominar, agarrou-a, apertou-a contra o peito, exaltado, fremente de comoção:

- Micaela! Querida Micaela! É verdade! É bem verdade que não me repele?

Por única resposta, uma lágrima deslizou pela face pálida da rapariga, que pousou a cabeça no ombro de John, conservando-se assim como alheada de tudo.

- Quem dera estar assim toda a vida! Não pensar em nada... esquecer tudo...

Três dias de luta tinham-na abatido completamente. Era apenas uma rapariguinha infeliz, que aspirava ao repouso, à felicidade.

John compreendeu que, naquele momento, ela já não era a mesma. Não vinha para ele altiva, orgulhosa como sempre a conhecera, mas frágil, despedaçada, sob uma fatalidade que lha entregava consciente. Sentiu inquietação e ao mesmo tempo piedade.

Suavemente, puxou-a para si.

- Micaela querida. Conte-me tudo. Que lhe fizeram?

- Meu pai não quer, compreende? Nunca consentirá - repetiu, como se esta notícia contivesse todas as catástrofes reunidas.

- Falou-lhe em mim?

- Não disse o seu nome. Quis saber se aceitaria o meu casamento com um homem bem educado, de boa família, mas com modesta situação.

- E então?

- Só aceitará um pretendente que tenha uma fortuna igual à dele.

John esboçou um movimento de revolta. Sempre essa questão de dinheiro se erguia diante de si.

- Porque não me conhece. Enviar-lhe-ei um dos meus amigos, que falará por mim. Quando souber...

- Não, Sacha, não creia tal. Recusou há poucos meses o príncipe d'Iseo, que pertence à família real do Tirol, mas cuja fortuna é muito modesta. Meu pai só conhece uma nobreza: o dinheiro! E sacrificar-me-ia a este ídolo.

John apertou os punhos.

- Então nada há a fazer? - perguntou.

Sentia-se enraivecer. Pensar que um obstáculo se levantara entre os seus desejos e os separava, enlouquecia-o.

Apertou-a mais contra si, como se receasse que lha roubassem.

- Amo-a, querida Micaela. Não quero perdê-la; diga-me que também não quer que nos separem,.. Se falou a seu pai é porque aceitava a ideia de ser minha mulher... Não é possível... agora... não posso perdê-la.

- Mas não compreende, Sacha, que sou completamente pobre... - disse tristemente.

- Pobre? - repetiu o rapaz, sem realmente compreender, olhando-a como se ela lhe anunciasse qualquer coisa fabulosa.

- Sim. Meu pai não cederá nunca. Previu tudo... se casar comigo, não terei absolutamente nada... nem mesmo posso esperar nada do futuro... percebe?

- Deserda-a? - interrogou.

- Sim, totalmente.

- E essa pobreza mete-lhe medo?

- Não é de mim que se trata... Há... Molly!

- Mas que tem Molly com isto? - perguntou John, espantado.

- A Americana ofereceu-lhe casamento, e é rica; com ela conhecerá todas as satisfações que uma grande fortuna proporciona.

- Mas não gosto dela! Então, minha querida, não compliquemos a questão: é a si que eu amo; é a si que eu quero, só a si!

- Mesmo pobre?

- Sim, absolutamente sem nada. Que importância julga, então, que eu ligo a essa questão de fortuna, que se possui hoje e amanhã se perde... Já sei o que isso é.

- E nunca terá pena?...

- Nunca. Diga-me, querida Micaela: acha que um pouco de dinheiro, a mais ou a menos, pode contar no amor que sinto por si?

E beijou apaixonadamente aquela fronte pálida. Era o primeiro beijo que ousara dar-lhe e cuja doçura saboreava religiosamente.

Depois, com voz grave, traduziu as reflexões que as palavras de Micaela lhe tinham feito surgir no cérebro.

- Há outra coisa que me parece mais importante do que essa questão material: a recusa de seu pai. Tenho acaso o direito de a impedir à revolta? De lhe pedir que passe sobre a vontade paterna? Não será presunção da minha parte julgar que o meu amor a compensará do bem-estar que vai perder? Não terá pena, um dia, dessa vida brilhante de que a privei? Eis o problema, o único problema que me aparece para resolver.

- Então, oiça, Sacha - disse Micaela, profundamente grave -, Eu tive mais tempo ainda do que o Sacha para examinar o assunto e tomar uma decisão. Se o pensamento de que vou para si, completamente pobre e sem esperança de melhor sorte, não o detém; se tem a certeza de que nunca terá pena de Molly nem dos seus milhões, estou pronta a partir consigo para Inglaterra... Parece que o casamento ali é livre: casar-nos-emos o mais cedo possível. Visto que não tenho a menor indulgência a esperar de meu pai, tomo as minhas precauções contra o seu tirânico despotismo. Só o preveniremos depois de casados, e quando ele nada puder contra nós.

- Não sei como agradecer-lhe, Micaela querida, a sua absoluta prova de confiança...

A rapariga interrompeu-o, com doçura:

- Diga prova de amor, Sacha, porque pode-se ter confiança num homem e não o amar. Ora, eu amo-o... não o sabia, não queria sabê-lo, mas há muito tempo que o amo e é dono do meu coração.

Louco de alegria, John abraçou-a ternamente. Beijava-lhe as mãos, os cabelos, os olhos... Era tão feliz que não sabia expressá-lo em palavras.

Micaela! A sua pequena Micaela, por tanto tempo inacessível, aceitava unir a sua mão à dele! Viera! Amava-o! Seria sua mulher...

- Então, minha adorada - disse, quando acalmou um pouco - a partir de hoje, é a minha noiva e aceita o meu nome?

- Sim - respondeu ela firmemente - Sou sua noiva, e desejo que o nosso casamento se realize o mais depressa possível, para que coisa alguma nos possa separar.

Micaela sentia-se divinamente feliz com a sensação de ter, enfim, conseguido a realização dos seus desejos.

Um dia, dissera-lhe que, acima de tudo, desejaria encontrar no casamento a segurança do dia de amanhã. Estar presa a alguém a quem se ama... para toda a vida, estar segura daquele que vive a nosso lado, é uma impressão que deve ser duradoira e tranquila.

E, agora, essa felicidade chegara. Caminharia toda a vida apoiada ao companheiro que escolhera.

Mas não há felicidade completa. Sacha era loucamente feliz e, no entanto, havia uma sombra na sua felicidade. Pensava que a recusa do pai de Micaela era muito aborrecida.

No meio da sua alegria, como era doloroso o isolamento a que ficavam reduzidos! Diz-se que os namorados são egoístas. E, contudo, precisam de sentir sorrisos e aprovações à sua volta.

Na sua alma de Eslavo, ligada por séculos de atavismo ao respeito da autoridade paterna, repugnava-lhe aceitar uma mulher contra a vontade do pai.

Por outro lado, devia calar o escrúpulo que o torturava. Se parecesse hesitar, Micaela podia pensar que ele tinha pena de perder a fortuna do milionário.

- Tem a certeza de que não há forma de obter o consentimento de seu pai? Mesmo fazendo-lhe saber que renunciamos à sua fortuna?

- Não aceitará o nosso desinteresse, e só terá para nós palavras irónicas e cruéis.

- Tanto pior - murmurou, pensativo - Na verdade, só lhe pedia a filha, e não devia recusar-ma... Mesmo dado de má vontade, um consentimento salvaguarda o respeito da família... A minha consciência não exigia outra coisa. É tão grave, para um pai, recusar o seu consentimento para o casamento de uma filha!

Micaela olhou para ele, e viu-lhe o rosto meditativo.

- Na Rússia ligam muita importância a isso? - perguntou.

- Sim - respondeu John - De parte a parte, evita-se um mal-entendido tão grave... procura-se um acordo.

E, como sentisse os olhos da noiva tristemente fixos sobre ele, fez um esforço e sorriu para a animar.

- Seja o que Deus quiser, minha Micaela. Casaremos como dois órfãos.

- Não - retorquiu a rapariga, de repente, levantando-se, muito agitada - Não tenha remorsos, Sacha... Perante Deus e a nossa consciência teremos o consentimento de meu pai. Sacha não sabe... e é preciso que eu lhe diga, antes que o comprometa comigo. Há na minha vida um grande mistério...

- Um mistério? - perguntou John, admirado.

- Sim: João Bernier.

O rosto do Russo iluminou-se.

- Diga - murmurou ele com terna indulgência.

- Pois bem... Sabe que a actual senhora Jourdan-Ferrières é a segunda mulher de meu pai. Minha mãe morreu há muito tempo... Ora, minha mãe...

E deteve-se, confusa, procurando as palavras.

- Sua mãe?

- Minha mãe, antes de morrer, confiou a um confessor uma carta, que me devia ser entregue quando eu tivesse vinte anos.

- E depois?

- Nessa carta recomendava-me João Bernier, dizendo-me que o amara e que... ele era... enfim, que o senhor Jourdan-Ferrières não é... meu Deus - disse, subitamente, mudando de tom - tenho medo que já não me ame quando souber.

- Que criança é, forjando tais ideias, querida Micaela! Tudo isso eu sei, meu amor, há muito tempo.

João Bernier contou-me tudo. Amou sua mãe... e Micaela nasceu!

- Sabia e nada me disse! - exclamou a rapariga, livre de um grande peso.

- Não tinha o direito de partilhar esse segredo consigo... e talvez não gostasse que o soubesse.

- E não me despreza?

- Porquê?

- Por ser a filha... desse desgraçado?

- João Bernier é um homem encantador, que merece que o reconheçam como tal - retorquiu John com meiguice.

Micaela levantou a cabeça e olhou-o estranhamente.

- Porque diz o que não pensa?

- Mas penso-o em absoluto. Sabe bem como foi o nosso primeiro encontro em Menilmontant. Desde então, tenho-o visto várias vezes: entrei na sua intimidade, grandes conversas nos aproximaram, e pude apreciar a sua cultura e carácter.

- É de João Bernier que fala, na verdade? - exclamou a rapariga, admirada.

- Sim, dele mesmo! Conheceu-o um pobre ser abandonado, faltando-lhe o necessário, perseguido pela miséria e pela doença. É preciso compreender como se desce depressa quando a adversidade nos persegue... Toda a nossa aristocracia russa conhece essa terrível situação... E é bem difícil sair desse atoleiro, sem auxílio. Com o bem-estar e a segurança do dia de amanhã, João Bernier encontrou toda a sua antiga dignidade... Foi talvez pensando em si, querida Micaela, que quis forçar o mutismo desse homem e constrangê-lo a revelar-se e a ter confiança; mas essa tarefa só me deu prazer...

- Adivinho como é bom, Sacha.

- Ganhar uma amizade não é ser bom. Tive outra alegria, a de ver os Brémesnil interessarem-se pelo seu parente e recebê-lo afectuosamente em sua casa, todas as semanas.

- Como estou contente - exclamou Micaela, transfigurada - Não tenho que corar dessa fraqueza da minha pobre mãe e, quando nos casarmos, Sacha, teremos perante Deus e nós próprios o consentimento do meu verdadeiro pai.

John não respondeu. Examinava o assunto sob o ponto de vista exposto pela noiva.

- De resto - acrescentou Micaela, com certo rancor na voz -, estou disposta a revelar tudo ao senhor Jourdan-Ferrières depois de nos casarmos.

Mas John protestou logo:

- Não, Micaela, nunca aceitaria que praticasse esse acto. Seria uma maldade inútil que satisfaria apenas a sua vingança. O homem que a educou, protegeu e criou desde que nasceu, é o seu verdadeiro pai. Tem direito a todo o seu reconhecimento e respeito. Fazer-lhe uma tal revelação equivaleria a uma cobardia sem justificação. Julga-a sua filha. Tem por si sentimentos paternais e uma confiança terna na recordação daquela que foi sua mulher. Prometa-me que nunca pensará em tal.

Micaela sorriu.

- É melhor do que eu, Sacha... Verdade seja que não sabe como meu pai foi duro comigo, há poucos dias.

- Que importa! A convicção de fazer a sua felicidade é indiscutível, porque é ditada pelo desejo de a ver feliz!

- Engana-se!

- Mas é sincero no seu erro. E, depois, Micaela, penso... se um filho meu viesse, um dia, dizer-me semelhante coisa...

- Sobre isso não há nada a recear - exclamou, encostando-se a John -, Juro-lhe, Sacha, que o adorarei e lhe serei sempre fiel.

- Tenho absoluta confiança em si, Micaela adorada - respondeu John, beijando-lhe as mãos.

De repente, vendo-lhe um belo solitário no dedo anelar, tirou-lho.

- Vou substituir este anel.

E, sacando da algibeira um estojo novo, entregou-o a Micaela.

- Aqui tem este, que pertenceu a uma das minhas avós, e que consegui trazer da Rússia. Quer aceitá-lo como penhor de noivado?

Era um magnífico diamante, cercado de rubis. Colocado sobre a seda mate do estojo, as pedras dardejavam mil fogos.

Micaela admirou-o sem pensar no seu valor. Só via uma coisa: era o símbolo do laço que os unia. Estendeu a mão a John, e quando o viu no dedo, levou-o aos lábios com verdadeiro fervor. A seus olhos representava um símbolo sagrado.

- Minha adorada-disse o jovem Russo, muito comovido - juro amá-la sempre e consagrar a minha vida à sua felicidade.

- Creio, e tenho confiança em si - respondeu a rapariga suavemente -, Tenha igual fé em mim: sou sua para sempre.

Neste momento, John olhou para o solitário que tirara do dedo de Micaela.

- É para mim, quer? Este anel que a minha Micaela trouxe até casar, lembrar-me-á, sempre, os meus juramentos de amor. Será o meu talismã de felicidade.

Assim falando, colocou o anel no dedo mínimo. Um reflexo obscuro, no pensamento de Micaela, fez-lhe observar:

- É verdadeiro, sabe?... Tem valor.

John nem sequer imaginou que ela pudesse hesitar em lho dar por representar uma fortuna.

- Não é tudo belo e bom entre nós? -respondeu.

Micaela devia lembrar-se, por muito tempo, destas palavras e do tom simples em que foram pronunciadas. De repente, um pensamento atravessou o espírito do rapaz.

- Micaela querida, é meio-dia menos um quarto. Tem de ir almoçar à Avenida Marceau?

- Não. Preveni que não ia almoçar... Contava almoçar consigo.

- Não imaginava, esta manhã, uma felicidade tão completa... Parece-me um sonho do qual vou acordar de súbito.

- Não há perigo, Sacha. Sou eu e não o fantasma dos seus sonhos quem está aqui.

- E como os seres vivos têm apetite, devo pensar em alimentar a minha querida Micaela. Como festa pelo nosso noivado, que faremos?

- Comer sozinhos.

- Não - disse John, sorrindo -, Geralmente, não se deixam noivos sozinhos, à mesa.

- É verdade. Então, vamos a um restaurante.

- Sim, evidentemente... Mas faremos melhor. Convidaremos alguém cuja felicidade em estar connosco será tão grande como a nossa alegria em estarmos juntos.

- Mas quem será esse alguém assim tão feliz? Já sei; é Natália Petrovna.

- Não... de resto, está longe.

- Então, não vejo quem!

- João Bernier.

- Ele? - exclamou Micaela, muito comovida.

- Sim, dar-lhe-emos uma enorme alegria. Quantas vezes me tem falado de si!

- Mas, sabe, realmente, quem eu sou?

- Reconheceu-a logo.

- É impossível, nunca me vira antes.

- Reflicta um pouco, querida... um pintor retratista que não tivesse encontrado uma semelhança entre si e sua mãe..,

- É verdade! Não pensava nisso. Então, quer?

- Parece-me que será uma boa recordação para o nosso noivado, esta aproximação... a alegria dada a esse homem... Vamos partir para Inglaterra... Não temos a certeza de o tornar a ver.

- Sim, tem razão - concordou Micaela, muito perturbada - Deve perdoar-me, meu Sacha, se não manifesto entusiasmo... É que, apesar do que me disse, a lembrança que conservo desse desgraçado incomoda-me bastante para poder acreditar no seu ressurgimento. Mas tem razão. O seu lugar é junto de nós, hoje. Evocará em mim a lembrança da minha pobre mãezinha, e parecer-me-á que ela está ali para nos abençoar.

- Vou telefonar a João Bernier, para aguardar a nossa chegada.

Quando, minutos depois, John deixou o telefone, Micaela correu para ele.

- Sacha, reconheço, mais uma vez, que é melhor do que eu... O meu detestável orgulho teria medo de ser humilhado pela presença de João Bernier.

- Um tal sentimento é indigno de si, minha Micaela. De resto, não terá de que se aborrecer; disse-lhe que esse homem era meu amigo, e pode fiar-se em mim; não dou esse título a toda a gente.

Vinte minutos depois, um táxi deixava-os à porta de uma casa de boa aparência. Devido às afirmações do noivo, o coração de Micaela batia fortemente. A sua emoção era um misto de alegria e ansiedade. De alegria, porque, apesar do seu orgulho, pensava que era seu pai, o seu verdadeiro pai, a quem ia encontrar... A discussão que tivera com Jourdan-Ferrieres aproximava-a, instintivamente, do outro. O receio, a ansiedade, por se recordar da figura do desgraçado, em Menilmontant...

E Micaela tinha um medo atroz de que a sua nova felicidade de noiva entristecesse com essa má recordação.

À porta dessa casa, um homem de uns sessenta anos parecia esperar. Alto, magro, bem barbeado, vestido de escuro, tinha uma distinção que em nada se parecia com o ser sórdido e desprezível que tempos atrás conhecera. Micaela notou a sua extrema distinção antes mesmo de saber ser aquele o homem a quem vinham procurar.

Com espanto, viu Sacha dirigir-se para ele, de mão estendida, ao passo que o rosto do desconhecido se iluminou mostrando um prazer verdadeiro.

- Meu querido Alexandre!

- Meu amigo!

Depois de apertarem efusivamente as mãos, o jovem Russo indicou a sua companheira:

- Permita-me que lhe apresente Micaela, a minha noiva... O meu amigo, João Bernier.

O homem denunciou um espanto e logo satisfação.

- Meu amigo, que grande prazer me dá! Primeiro, pela boa notícia que ainda mais consolidará a afeição que lhe tenho... depois, a alegria que sinto com esta visita... esta aproximação!...

A voz do velho era menos firme ao pronunciar esta última frase, e a comoção que Micaela adivinhava empolgou-a.

Embaraçada, mas instintivamente afectuosa, dirigiu-se para ele, estendendo-lhe as mãos.

- Como sou feliz em a ver - disse o pintor, agarrando-lhas -, Quer dar-me um beijo, minha filha?

- Com toda a alma!

João Bernier apertou-a nos braços e retribuiu-lhe o beijo. Micaela sentia-se tão comovida que as lágrimas saltaram-lhe dos lindos olhos.

Por momentos, Bernier e Micaela olharam-se com fervor.

- Meu pai! - murmurou ela, perturbada.

E esta palavra, nos seus lábios, pareceu-lhe infinitamente doce. Era a primeira vez que o tratava assim. Nunca, falando dele, usara desse título; mesmo em pensamento, nunca relacionara esse nome com João Bernier.

E, de repente, brotara por si próprio, sem reserva, sem reflexão, e sentia uma grande felicidade por tê-lo pronunciado.

- As emoções enfraquecem - atalhou John - agora vamos almoçar. À mesa falaremos de tudo quanto é querido ao nosso coração. É a nossa refeição de noivado; é preciso torná-la bela, alegre e cheia de preciosas recordações.

Falava muito, não querendo deixar-se abater pela comoção, a fim de que todos estivessem alegres. E foi o que aconteceu.

Dirigiram-se para um restaurante, onde o almoço foi excelente e o convívio delicioso. Estavam reunidos, e cada um desejoso de dar alegria aos outros.

No fim da refeição, que tinham feito em gabinete particular, como se conservassem à mesa, para prolongar o mais possível aquele ambiente afectuoso e de confiança, John perguntou de súbito:

- Minha querida Micaela, terá inconveniente em que o nosso casamento seja abençoado na igreja russa, antes de partir para Inglaterra?

- Farei o que quiser, Sacha, se bem que não perceba a importância que isso possa ter para nós.

- Talvez um escrúpulo exagerado da minha parte - explicou o rapaz, com um sorriso confuso - Não desejava levar comigo uma rapariga, como um ladrão, ou, pelo menos, como um homem desonesto.

- Não... como um namorado - balbuciou Micaela apaixonadamente, para o tranquilizar.

John apertou-lhe a mão para lhe agradecer aquelas palavras.

- Apesar disso, passo a fronteira para pôr o meu tesouro ao abrigo de tudo, e fazê-lo muito meu, a despeito da vontade dos seus possuidores actuais.

- Eu dou-la, meu amigo - interveio João Bernier - É verdade que a não possuo oficialmente - acrescentou com um suspiro.

Foi Micaela quem, desta vez, se inclinou para ele, passando-lhe um braço à roda do pescoço e abraçando-o ternamente.

Mas o antigo motorista aferrava-se à sua ideia.

- Sou Russo - insistiu ele - e o casamento religioso é tudo para nós, na Rússia. Se for abençoado por um padre, antes da nossa partida, será minha mulher que eu levarei... Sem cerimónia não é a mesma coisa.

- Compreendo-o e aprovo-o - disse João Bernier, gravemente -, Há, apenas, uma dificuldade nesse projecto: é que não encontrará, em França, um padre que aceite abençoar a sua união antes de irem à mairie.

- Por isso falei em igreja russa.

- Estou persuadido de que tanto se oporão na rua Daru como na rua Mademoiselle.

- Penso o mesmo, mas existe em Neuilly um velho padre que exerceu, antigamente, o sacerdócio em Tsarskoie, e a quem os russos exilados acolheram. Para lhe permitir exercer o seu sacerdócio, fundaram uma capelinha, ao fundo dum parque. Ora eu conheço, particularmente, esse padre, e estou certo de que não se recusará a abençoar a nossa união.

E, dirigindo-se a Micaela, acrescentou:

- Se soubesse o prazer que eu tinha se aceitasse, minha querida... Seria apenas um casamento morganático, evidentemente, mas, para mim, que ligo grande importância aos ritos da nossa igreja ortodoxa, tornar-se-ia infinitamente precioso, porque perante a minha consciência seria realmente minha mulher.

- Aceito - disse Micaela, com simplicidade - Isto não impede que regularizemos o nosso casamento, em Londres, no Registo Civil, e perante um padre católico.

- Prometido e indispensável, porque, note, querida Micaela, se com esta bênção russa eu fico ligado a si para sempre, Micaela só será, realmente, minha mulher, em Inglaterra, depois da dupla cerimónia em que falou.

- Essa situação seria... até esquisita - retorquiu a jovem, sorrindo -se eu não tivesse a certeza de que, desde o momento em que pronunciar o sim perante Deus, me considero também ligada a si. E se falei há pouco do nosso casamento abençoado por um padre católico, é porque desejo conservar-me fiel à religião em que fui educada, em todas as circunstâncias da minha vida.

- Ambos falaram acertadamente - aprovou Bernier. - Vá procurar o seu padre de Neuilly, Alexandre, e fixe a data com ele. Terei enorme prazer em assistir ao casamento... não julgava que tal felicidade me estivesse reservada.

Os três, assim de acordo, conservaram-se juntos até que chegou a hora em que Micaela devia regressar a casa.

 

Recostada nos estofos do automóvel, Micaela, um pouco comovida, pensava no importante acto que deliberadamente ia realizar às escondidas do homem cujo nome usara até ali. Lastimava que, nesse momento, ele não estivesse a seu lado, e nenhum pensamento egoísta ou material se misturava com esse pesar filial.

Vivera durante vinte anos junto de Jourdan-Ferrières numa completa comunhão de afecto e confiança, sem nunca haver, entre eles, outro dissentimento que não fosse o choque dos seus orgulhos; o pai exigindo que Micaela exibisse por toda a parte o poder do seu dinheiro, e ela cansando-se um pouco de toda aquela exposição, a que não ligava o menor valor.

E tinha para ele um pensamento terno, nesse minuto em que arrostava contra a sua vontade e caminhava, sozinha, para o futuro. Contudo, não sentia a menor hesitação, e era com verdadeira alegria que corria para o esposo que a esperava.

Na Porta Maillot desceu do carro e despediu o motorista. Com o olhar procurou John, que devia esperá-la, e viu-o a conversar com uma senhora de uns cinquenta anos.

Não deram pela sua presença, e foi ela própria quem se lhes dirigiu. O rosto de John, ao vê-la, rejubilou.

Micaela viera. Antes que terminasse a manhã seria sua mulher... sua para sempre. E a impressão de felicidade que sentia era tão viva que teve como que um deslumbramento.

Pálido de alegria, com o coração a bater de comoção, beijou-lhe os dedos, e apresentou-a à senhora que o acompanhava.

- A minha noiva, Micaela Jourdan-Ferrières... a baronesa Colensky, cuja encantadora filha encontrou na recepção do príncipe Bodnitzki.

Como Micaela procurasse recordar-se, John precisou :

- Uma rapariga muito loira, chamada Lena... de Lenotchka.

Micaela recordou-se então e, corando, curvou-se intimidada perante a baronesa Colensky. Lembrara-se, de repente, que o general Razine lhe dissera que era filha do grão-duque Georgy.

- A baronesa quis acompanhar-nos, minha querida Micaela - explicou o noivo -, Era uma grande amiga de minha mãe, e é-me grato pensar que, neste dia, estará a meu lado, para representar a mãe que me falta.

- Uma amiga de tua mãe, dizes tu, Sacha? Podias ter mais respeito pelos laços de sangue que nos ligam. Tua mãe era minha prima, e se tenho tanta afeição por ti, Alexandre Yourievitch, é porque me considero a tua mais próxima parenta, e devo tentar substituir os que te faltam.

- Sou muito seu amigo, Olga Youriévna, bem o sabe, e por isso lhe supliquei que dispensasse à minha querida Micaela um pouco da indulgente afeição que tem por mim. Todas as provas de estima que lhe der, me causarão enorme prazer.

- Também a mim - protestou Micaela, beijando-a - Sinto-me verdadeiramente reconhecida, baronesa Colensky, por ter querido substituir, hoje, todos os nossos parentes ausentes.

A baronesa beijou, por sua vez, Micaela.

- Acho-a encantadora e, como em breve será minha prima, espero que este título criará entre nós uma grande confiança e mútua afeição.

E, voltando-se para John, acrescentou:

- Sacha, a tua noiva é encantadora, e sinto já por ela grande estima.

- Como lhe agradeço! E, se o permite, vamos andando.

Tornava-se impaciente!

Muito trémula, Micaela subiu para o automóvel, onde a baronesa já se instalara.

Recordava as suas palavras: a mãe de Sacha era prima de uma autêntica grã-duquesa! Reflectiu, de si para si, como John era discreto sobre o seu passado, levando a sua modéstia a nunca falar nele.

Em poucos minutos, o automóvel chegou ao termo do seu caminho. Micaela viu um grande parque verdejante e, enquanto o noivo se afastava para um lado, com dois amigos que o esperavam, apresentou à baronesa João Bernier, que as ajudara a descer do carro.

Com ele e com a baronesa, Micaela, muito comovida, tomou a mesma direcção do noivo. Pensava naquele singular acaso que a fazia dirigir-se para o esposo da sua escolha, entre um homem que representava a sua mãe, e uma mulher que representava a de Sacha. Era como se uma dupla bênção maternal pairasse sobre ambos, nesse casamento secreto, no qual, para serem um do outro, renunciavam às vantagens a que podiam aspirar.

Micaela evocou o vestido branco, a longa fila de convidados, o brilho de um grande casamento, em Saint-Pierre-de-Chaillot, e sorriu ao seu vestido escuro e às pessoas que a acompanhavam. Não sentia a menor pena desse luxo que teria junto de Jourdan-Ferrières, e sabia que Sacha também não sentia tristeza pela mirabolante situação que Molly lhe oferecia.

Ambos, de mão dada, caminhavam para o futuro, para o amor. A capelinha ficava no fundo do parque, cheio de sol.

O noivo e as duas testemunhas esperavam Micaela.

Esta viu logo o terno olhar em que John a envolvia, e correspondeu ao cumprimento dos dois homens, entre os quais reconheceu o general Razine.

Com olhar curioso, admirou os ícones, os círios, os vitrais multicolores. Muito corada, e repelindo qualquer pensamento estranho ao acto supremo que ia realizar-se, dirigiu-se para Sacha, confiante e serena.

O velho padre, de casula bordada com uma cruz de oiro, começou logo os rituais e, se bem que Micaela não o compreendesse e nada evocasse nela as cerimónias da sua religião, pôs toda a sua alma na oração que dirigiu a Deus.

A seu lado via aquele que ia ser seu marido, muito absorto e fervoroso. Dir-se-ia que ouvia atentamente cada palavra que se lia, adivinhava no seu rosto sério a importância que tinha, para ele, essa cerimónia, e foi-lhe grato pensar no respeito que John mostrava pelo acto que os ia ligar para sempre.

Lembrou-se dos casamentos a que assistira, em que o futuro esposo estava maçado e desejoso de que a cerimónia acabasse. Reconheceu, então, ser mais favorecida do que as suas companheiras, e foi cheia de gratidão para com Deus que colocou a mão na do seu companheiro, quando o padre os uniu.

Três vezes trocaram os anéis nupciais, e Sacha colocou-o, definitivamente, no anelar direito, segundo o hábito russo. Depois, o padre, com a cruz na mão, voltou-se para eles.

Pela pressão, muito suave, com que John lhe apertou os dedos, e no olhar com que a fitou um segundo, Micaela compreendeu que era sua mulher, e que as palavras sagradas tinham sido pronunciadas. Um suspiro de felicidade saiu-lhes dos lábios; agora, nada os podia separar!

Sacha beijou-a, diante de todos os que os rodeavam.

Apesar de não estarem numa igreja paroquial, o jovem Russo quis que o facto ficasse exarado nos registos da capela.

E assinaram, no fim de uma página manuscrita, da qual o recém-casado reclamou um duplicado.

Quando chegou a sua vez, Micaela assinou junto do nome do marido, sem a menor hesitação, mas, depois de ter largado a caneta, ficou a ler, procurando nomes, um estado civil. As frases estavam escritas em russo, que ela não compreendia.

Mas certas passagens estavam também transcritas em francês e, muito comovida, pôde ler:

"Alexandre, filho do príncipe Georgy Isborsky e da grã-duquesa Xénia Alexandrovna...".

John era príncipe e filho de uma princesa imperial. Fechou os olhos sob o império de uma comoção desconhecida. Num relâmpago, evocou todas as humilhações que infligira àquele que era agora seu marido. Exigira que ele se chamasse John, que ocultasse a sua nacionalidade; queria obrigá-lo a usar uma libré, e andar atrás dela; tratara-o como um criado, mandando-o comer com eles... Todos esses vexames ela lhe infligira - a garota Feijão -- que julgara poder dominar todos, e que só tinha uma grande fortuna como superioridade!

Muito pálida, voltou-se para ele e fitou-o. Por única vingança, o seu motorista dera-lhe o seu nome, a sua vida, o seu amor... E encontrou o seu olhar. muito meigo... muito suave...

Sacha adivinhou o drama que se passava no seu íntimo e, com simplicidade, abriu-lhe os braços.

Palpitante, Micaela lançou-se neles.

- Meu Sacha! Poderás acaso perdoar-me alguma vez? - murmurou baixinho.

- Vieste para mim, sem saber, sem me conhecer - respondeu com uma alegria selvagem - Motorista ou médico, foi só a mim a quem amaste e escolheste. Compreendes agora, Micaela querida, porque nunca desejei que soubesses realmente quem eu era?

- Meu príncipe querido, meu príncipe encantador, meu bem-amado marido, agora toda a minha vida te pertence, amo-te, sou feliz...

Tiveram que voltar à realidade e ocuparem-se um pouco dos seus convidados, que, de parte, sorriam com indulgência.

Os noivos dirigiram-se para eles, de mãos dadas.

- Tenho a maior satisfação em felicitar Vossa Alteza - disse o general Razine a Micaela, lembrando-lhe que já lhe fora concedido o favor de lhe apresentar sua mulher e filhas.

- Permita-me Vossa Alteza que lhe apresente os meus cumprimentos - disse a outra testemunha de Sacha, inclinando-se.

Micaela corou, muito perturbada, por este título que lisonjeava, sem mesmo o querer, o orgulho feminino.

Como estava orgulhosa, agora, por ter casado com o seu motorista!

E com que alegria comunicaria dali a algum tempo, a Jourdan-Ferrières, o casamento contraído, e sem querer... sorria, ao pensar na inveja de Molly e na das outras amigas.

Por fim, despediram-se de todos. Micaela beijou a baronesa Colensky, que a tratou por priminha, e dirigiu-se para João Bernier, que, discretamente, se conservava um pouco à parte. Teve para ele palavras afectuosas e sinceras, que deram bastante alegria ao pobre isolado. Prometeu que lhe escreveria de Inglaterra, logo que estivessem definitivamente instalados.

Depois, encontraram-se sós, no carro que os levava, e conheceram então os beijos frementes e as loucas palavras de todos os apaixonados.

 

Quando anoiteceu, Micaela quis voltar à Avenida Marceau.

- Assim é preciso, Sacha - disse àquele que achava muito dura essa separação no primeiro dia do seu casamento - Meu pai exigiu que eu assista hoje a um jantar que dá em honra dos financeiros vienenses, de passagem em Paris. Se eu faltar notarão logo a ausência, principalmente minha mãe, que parte amanhã para Trouville, e meu pai, que vai a Berlim por alguns dias. Ambos partem cedo. Fico depois livre; não nos separaremos mais. Quando perceberem que não estou em Paris nem em Trouville, já estaremos em Inglaterra.

John teve que se render à evidência, porque o raciocínio era muito justo. Quis, contudo, ir com ela até muito perto de casa.

Ao deixá-la, sentiu-se um pouco triste, e abraçou-a longamente.

Não se decidiam a separar-se, como se uma noite fosse uma eternidade.

- Não me entristeças, meu Sacha - disse Micaela ternamente - Tivemos um tão lindo dia de amor!

- Sou ridículo - respondeu John, rindo - Todas as noites parto sem inquietações e, agora, pergunto o que vou - fazer até amanhã.

Era tão extraordinária, com efeito, uma tão pueril tristeza do rapaz, que ambos começaram a rir e por fim separaram-se alegremente.

Sacha viu-a afastar-se, seguindo-a com o olhar, até que desapareceu para lá da grade de ferro, e, então, acendeu um cigarro, afastou-se inebriado com a felicidade que lhe coubera, visto que Micaela era finalmente sua.

 

O jantar em casa de Jourdan-Ferrières decorria com grande animação. Sentada num extremo da mesa, entre dois encasacados, Micaela, sumptuosamente vestida de lamée prateado, mal comia.

Este jantar cerimonioso horripilava-a. Evocava uma outra refeição, muito íntima, entrecortada de beijos. E sentia apoderar-se dela a nostalgia. Tinha a impressão de já não ser da casa; toda a sua alma, todos os seus pensamentos estavam junto de Sacha; o que a rodeava não a interessava.

Por vezes, surpreendia-se a levar a mão direita aos lábios. Às escondidas, beijava discretamente a sua aliança, que conservava no dedo, escondida por uma grande marquise rodeada de deslumbrantes pedras.

Mas Micaela era também obrigada a ouvir.

A discreta homenagem prestada, em pensamento, ao querido ausente, dava-lhe a coragem de suportar a conversa insípida dos vizinhos de mesa, aos quais respondia, por vezes, ao acaso.

De repente, o tom da conversa elevou-se, generalizou-se, contribuindo todos para isso. A palavra russo, pronunciada por um dos convivas, atraiu a atenção da jovem recém-casada.

- Sim - explicava um convidado - é um verdadeiro escândalo. Numerosas raparigas da melhor sociedade estão comprometidas. Esta quadrilha de vadios usava de todos os meios para seduzir as herdeiras ricas. Vestindo-se bem, elegantes, atraentes, desportivos, eram um verdadeiro isco para as andorinhas.

- Calculem - acrescentou outro - entendiam-se tão bem que as suas vítimas só viam pelos seus olhos. Conduziam-nas a lugares selectos, onde se apresentavam uns aos outros com os mais belos nomes, e os títulos mais mirabolantes, não receando mesmo tratarem-se por príncipes, grão-duques, ministros e excelência.

- E diziam-se exilados russos ou polacos - acrescentou o primeiro -, Representavam, todos, belos sentimentos; pátria devastada, fortuna confiscada, família massacrada, em resumo, nada esqueciam. E só se dirigiam às raparigas muito ricas, autênticas milionárias! Representando desinteresse e cortesia, seduziam-nas, chegando a comprometê-las... tão totalmente que algumas raparigas se suicidaram para não se verem desonradas ou ridicularizadas perante a opinião pública.

Micaela levantou a cabeça, alucinada, trémula. Não era aquela a sua história?

Com os olhos esgazeados, procurava ler, de antemão, as palavras que iam sair da boca daquele que estava falando. Todos lhe prestavam atenção e estavam suspensos da narrativa do convidado.

Este, muito orgulhoso por ver o interesse que inspirava, bebeu um golo de champanhe e continuou:

- Um destes hábeis maraus, mais audacioso que outros, conseguiu introduzir-se em casa de um rico industrial do Este. Admitiram-no como motorista e, hábil comediante, subjugou a filha da casa a tal ponto que conseguiu persuadi-la a casar com ele...

- Um motorista!

- Sim, fez-lhe perder, absolutamente, o bom-senso. O mais chistoso da história é que a cena do casamento foi admiravelmente representado pelos cúmplices!... outra comédia! Um representou o papel de pope; um outro, o de grão-duque; foi admirável. O motorista transformou-se em príncipe, e a nossa apaixonada convenceu-se de que casara realmente com um príncipe russo.

Um grande grito de Micaela cortou a conversa ao brilhante cavaqueador. Levantou-se, desfigurada, irreconhecível.

- Não, não... Sacha!... É um horror...

O seu grito terminou em estertor. Abriu os braços e caiu, como massa inerte, sobre a mesa.

Houve, entre os convidados, um movimento de estupefacção. Estavam todos tão empolgados com o escândalo que lhes contavam que ninguém notara a crescente agitação de Micaela. O seu grito causou uma espécie de pânico entre os convidados, os quais, na maior parte, se levantaram e, instintivamente, deixaram os seus lugares.

Os criados precipitaram-se para Micaela e conduziram-na para a sala próxima.

Com a sua presença de espírito, Jourdan-Ferrières, rodeado de toda a gente, afirmava que Micaela nunca estivera doente e que aquilo devia ser apenas uma indisposição passageira. Mas a testa enrugada do pai, apesar da vontade que tinha de se mostrar sorridente, a ausência da mãe, que seguira a doente, tudo contribuiu para tornar aborrecido o final da refeição.

A senhora Jourdan-Ferrières apareceu, uma hora depois, dizendo:

- Micaela deitou-se; o doutor, a quem telefonei, já chegou. Supõe que é uma crise de nervos provocada pela fadiga. Esta pequena abusa. Há oito dias que se deita às cinco horas da manhã, e hoje só dormiu quatro horas. Havia uma quermesse, em casa de uma amiga, esta tarde, e tomou conta de uma venda até às sete. A melhor constituição tem que ceder perante tal desassossego.

Todos, até o próprio pai, pareceram aceitar as explicações maternas, mas, quando o último conviva partiu, acompanhado por Jourdan-Ferrières até à porta, com um sorriso nos lábios, este, voltando-se para sua mulher, perguntou:

- E, agora, a verdade?

- O doutor disse que era uma congestão cerebral.

- Oh! - exclamou Jourdan-Ferrières, com o rosto subitamente descomposto - Então é grave?

- Muito grave, meu pobre amigo.

O milionário deu um passo para a porta.

- Minha filha! Minha querida filha! Quero vê-la!

- É inútil. À sua cabeceira está uma religiosa, e o doutor não quer lá ninguém.

- Nem mesmo o pai?

- Não, meu amigo. É preciso o máximo sossego, e até escuridão. Vai tentar-se tudo para combater o mal.

Jourdan-Ferrières, acabrunhado, deixou-se cair numa cadeira.

- O que quer isto dizer? Como pôde Micaela arranjar esta doença?

- Não percebo.

- Não andava bem?

- Nestes últimos tempos achei-a um pouco pensativa ... Mas isso não tem importância.

- Pelo contrário... talvez alguma coisa a importunasse.

- Não devia ser coisa grave. Davas-lhe tudo quanto queria.

O milionário reflectiu uns instantes, hesitante:

- Não notaste que gritou Sacha, quando caiu.

- Notei.

- É um nome russo...

Um novo silêncio e nova hesitação, tão grande é, às vezes, o medo de precisar certas palavras.

- Conhecemos alguém com esse nome?

- Não me lembro.

- Com quem passou ela a tarde de hoje?

- Creio que em casa de Genoveva Delorme.

- Vou perguntar-lhe, pelo telefone, notícias desse Sacha... desconhecido.

- Tem prudência.

- Nada receies. A minha querida garota já está bastante atormentada para que eu ainda a atormente mais. Quero saber... Notaste...

- O quê?

- Falavam de príncipes russos que seduziam raparigas quando ela gritou Sacha...

- É curioso! Foi mesmo assim...

- Talvez seja um indício.

- Abstenhamo-nos de suspeitas injustificadas...

- Mas esta é um pouco clara de mais... É preciso que eu saiba. Vou falar a Genoveva Delorme.

- Mais uma vez te recomendo prudência, meu amigo.

Jourdan-Ferrières obteve facilmente a comunicação, e voltou em seguida para junto da mulher.

- Então? - interrogou ela.

- Genoveva não sabe quem seja esse Sacha...

- Que mais?

-... e não vê Micaela há dias.

- Não é possível!

- Foi o que me afirmou Genoveva.

- Asseguro-te que Micaela me disse, esta manhã, que não podia almoçar connosco, porque ia passar o dia com Genoveva.

- Sim... pois mentiu!

- Mentiu!

E olharam-se, aterrados.

- Onde poderia ela ir?

- Todas as suposições são permitidas.

- Eis ao que chegámos... Jourdan-Ferrières conservou-se calado por muito

tempo. O seu cérebro trabalhava. De repente, notou:

- Lembras-te da cena que ela me fez a propósito de um pretendente sem fortuna?

A senhora Jourdan-Ferrières ficou pensativa.

- Foi desde esse dia que ela se tornou sorumbática - observou, lentamente.

Esta observação, que ouvia pela primeira vez, foi intolerável para o infeliz pai. Deu um murro no braço do fauteuil em que estava sentado.

- Oxalá que nenhum miserável abuse da sua candura! - exclamou, enfurecido -, Matá-lo-ia como a um cão!

- Então, sossega. Gritar e barafustar não serve de nada. Há dias, devíamos ter sido mais diplomatas, e deixar Micaela desenvolver a sua ideia... Saberíamos ao certo o que essa garota tem na cabeça. Visto que vinha para nós com toda a confiança, deveríamos tê-la escutado!

- Queres dizer que a culpa foi minha? - retorquiu o milionário, carrancudo, levantando-se.

- Não, meu amigo. Peço-te apenas que sossegues e não te precipites, visto que não sabemos nada. É extraordinário que tu, que tens um sangue-frio tão grande para os negócios, não saibas dominar-te num assunto familiar.

- É que este fere-me em cheio!

- Tens razão, mas, neste momento, só é necessário uma coisa: salvar Micaela! Depois, quando houver ocasião, tratar-lhe-emos do coração... ou veremos se podemos fazer a sua felicidade como ela deseja...

- Isso nunca!

- Vamos, não digas tolices. Se eu conhecesse aquele cuja presença pode curar Micaela, iria pessoalmente buscá-lo. E estou certa de que, no fundo, também aprovarias.

O marido não respondeu. Estava desesperado.

- Por agora - repetiu a senhora Jourdan-Ferrières, com firmeza -, curemos a nossa filha e velemos pela sua reputação.

Deteve-se e, mais ansiosamente, continuou:

- Sim! - suspirou - Tomemos o maior cuidado em que o menor dos nossos actos não recaia sobre ela.., visto nada sabermos.

Jourdan-Ferrières curvou a cabeça. Sua mulher tinha razão. Mas, no íntimo daquela alma batalhadora a tempestade rugia, e as suas forças hostis procuravam, já, como, sem tocar na filha, poderia atingir todos quantos se lhe tinham aproximado até ali, e revia-os, na sua mente, à procura de algum a quem Micaela pudesse amar contra a vontade do pai...

 

Havia muito tempo que Alexandre Isborsky esperava Micaela. Dissera-lhe que iria ter com ele às nove horas da manhã. Eram dez horas e meia e ainda não chegara!

Sentia surda inquietação, que não sabia explicar. Imaginava todas as causas susceptíveis de terem impedido Micaela de vir.

Não teria partido seu pai? A madrasta estaria doente? Ou, tendo perdido o comboio, teriam surpreendido a filha preparando a fuga?

Depois imaginou o pior. Ter-se-ia dado algum acidente, da Avenida Marceau à Avenida de Ternes? A Praça d'Étoile era tão difícil de atravessar!... O pai, doente, talvez morto? Aquele homem era tão sanguíneo!

À medida que o tempo passava, a imaginação de John trabalhava e só pensava em dramas: um roubo, um assassínio, um incêndio! Nem por um segundo, depois das provas de amor que Micaela lhe dera, na véspera, lhe passou pela cabeça que a demora era causada por ela.

Pensara na singular tristeza que sentira ao separar-se da noiva, e atormentava-o enorme angústia. Que pressentimento lhe fazia suspeitar uma desgraça? Já duas vezes quisera telefonar para o palácio... Lembrando-se de que Micaela lhe pedira que evitasse fazê-lo com receio de que Landine ou qualquer outra pessoa da casa pudesse desconfiar de qualquer coisa, desligara o aparelho. Ao meio-dia menos um quarto não pôde mais e quis saber, custasse o que custasse.

Com voz agreste, irritada, pediu o número telefónico, mas esperou em vão, e o banal não respondem fê-lo ficar doido de ansiedade.

- Se ela não estiver aqui, ao meio-dia, para almoçar comigo, vou lá - disse à criada.

- Assusta-se depressa de mais - tentou ela sossegá-lo.

Neste momento ouviu-se uma campainha.

- Finalmente! - exclamou ele vitoriosamente; e num pulo chegou à porta.

Esperava-o uma grande decepção.

- O senhor! - disse John, desanimado, reconhecendo o motorista que recomendara a Micaela, dias antes de deixar o serviço.

- Eu mesmo... e desempregado! Mandaram-me embora.

- Porquê?

- Não sei. Parece que despediram todo o pessoal.

- Mas o que há?

- Quando cheguei ao palácio, às nove horas da manhã, o porteiro chamou-me:

"- É inútil ir mais longe - disse-me à entrada -, Aqui tens o teu ordenado, já não fazes parte do pessoal.

"Entregou-me um sobrescrito com um cheque, no valor de seis semanas de ordenado. Pagaram-me bem, visto que só há dez dias lá estava.

"- E Mateus Belland? - perguntei eu.

"- Também foi despedido.

"Tudo isto me parece estranho.

"- Contudo, podiam dar qualquer explicação; não sou um cão que se atira à rua. Não tenho nada a censurar-me, e desejo despedir-me de mademoiselle...

"- Não insista, meu velho; a casa está vazia. Landine foi despedida e todo o pessoal partiu. Só cá estão, ainda, a cozinheira e a criada de quarto da senhora. E deram-lhe, como a mim, oito dias para procurar casa; ficamos apenas enquanto não chegam os outros criados que vêm da Normandia.

"Notei, de repente, que quase todas as janelas tinham as persianas corridas.

"- Partiram já? - perguntei -, Mas mademoiselle devia ficar.

"- Ouve, meu rapaz, isso é com os patrões e não temos que nos intrometer. Eu só sei que tenho esta ordem: não deixar entrar ninguém e responder que os patrões estão ausentes...

"- Enfim - insinuei - se também te põem na rua, e não és muito estúpido, deves compreender que haverá fortes razões para o fazerem.

"- Sofri a sorte comum. Foi tudo resolvido esta noite. A garota feijão adoeceu, ontem, no jantar de festa. Foi uma balbúrdia dos diabos. Veio o médico, uma religiosa, enfermeira, toda a tralha!... Não nos deitámos. Parece que é grave e como é preciso o maior silêncio, fecharam a casa. Não vejo como o novo pessoal possa mudar a situação; por agora, o couve fermentada, está de mau humor!...

Alexandre Isborsky já não o ouvia. As trágicas palavras haviam-no esmagado.

- Micaela está doente... e gravemente!

Tudo girava, subitamente, à sua volta, e as deduções mais aterradoras lhe acudiam ao cérebro. Já não podia esperar a bem-amada, ela não viria... Agora, quando poderia vê-la?

Com voz alucinada, perguntou:

- Pôde, ao menos, saber ao certo o que ela tem?

- Quem? A patroazinha?

- Sim.

- O porteiro nada me disse... Insisti, mas estava aborrecido de me ouvir há tanto tempo. Devem ter-lhe prometido qualquer gratificação para nada dizer enquanto lá estiver.

- É possível.

Como John ficasse silencioso, com o olhar fixo e vago, o outro continuou humildemente:

- Vim preveni-lo e pode contar com a minha dedicação a mademoiselle Jourdan-Ferrières... Não tive culpa de ser despedido. Afirmo-lhe que não fiz nada para merecer esse rigor.

- Estou persuadido disso, Yvan, e continuo a dispensar-lhe toda a minha confiança. Conhece o sítio para onde foram Mateus e Landine?

- Não, ignoro-o.

- Em qualquer caso, posso contar consigo?

- Vossa Alteza dispõe de toda a minha dedicação - exclamou Yvan, comovido, ao reparar no rosto do desgraçado príncipe.

Quando o motorista saiu, Sacha reflectiu um momento; e, sem pensar em comer, pegou no chapéu e dirigiu-se para a Avenida Marceau. Não sabia bem o que ia fazer. Deixava-se levar pelo impulso de momento. Micaela estava doente. Era preciso tentar chegar até ela, fosse como fosse. A grade estava fechada. Teve que tocar. Em vez de accionar o sistema automático, o porteiro veio até ao portão de ferro.

Reconhecendo o antigo motorista, disse imediatamente:

- Vá-se embora, senhor John. Tenho ordens de não deixar entrar ninguém.

- Desejo ver mademoiselle ou... seu pai.

- Nem ela nem os pais estão visíveis - respondeu o servo, com voz ríspida - Não recebem visitas.

- Deveras?

Um estremecimento colérico perturbou-lhe a voz.

- Sim - retorquiu o criado, com importância - São ordens.

Antes que o porteiro pudesse prever o gesto do príncipe, este empurrou o portão e afastou o imponente servidor. Em dois saltos subiu a escadaria e chegou à porta do escritório de Jourdan-Ferrières, que sacudiu, mas estava fechada e não pôde abrir. Correu para a entrada principal da habitação.

Esta curta volta permitira ao porteiro retomar o sangue-frio e chegar ali ao mesmo tempo que Sacha.

- Então, John, seja razoável. Faz com que me ponham na rua. Vá-se embora.

Alexandre Isborsky não o ouvia e, como o porteiro o agarrasse, retesou os músculos e levantou-o com incrível força.

Hesitou um segundo; depois, como se naquele momento não tivesse consciência, nem pudesse dominar-se, atirou com ele, que foi cair a alguns metros.

O caminho estava livre, e já corria para a escada quando se abriu uma porta e Jourdan-Ferrières apareceu.

- Que significa este barulho? É o senhor! Onde vai?

A voz autoritária era tão firme que John teve de parar e morder os lábios até fazer sangue, para se dominar.

- Onde vai? - repetiu o milionário, violentamente.

- Saber notícias de mademoiselle. Está doente?

- E que tem com isso?

- Mademoiselle foi sempre muito boa para mim.

- De mais, creio eu.

- Pois bem! Quer conceder-me alguns minutos?!

- Nada tenho que lhe ouvir! E, se não sair imediatamente, mando-o pôr fora.

O coração de Sacha deu um pulo. Num relâmpago, encarou a situação. Não obteria nada de Jourdan-Ferrières... A escada estava livre, a casa sem criados e... Micaela era sua mulher, outorgara-lhe direitos que nenhuma vontade humana podia postergar. Portanto, para a frente...

E correu com tal tensão de nervos, em frente de Jourdan-Ferrières, como o faria um galgo em corrida fantástica. Subiu a quatro e quatro os degraus da escada. Atrás dele ouviu a voz do dono da casa, ao telefone; reclamava auxílio da polícia para expulsar da sua casa um energúmeno, um antigo motorista, capaz de se entregar aos piores excessos.

Sacha encolheu os ombros. Aquele homem era estúpido. Se houvesse escândalo, não percebia que tudo recairia sobre Micaela, mesmo que o seu nome não fosse pronunciado?

E dirigia-se agora para os aposentos daquela que considerava sua mulher, mas a senhora Jourdan-Ferrières apareceu diante dele.

Estremeceu ao vê-lo, mas, instintivamente, abriu os braços em cruz, para o impedir de avançar.

John, para não desrespeitar uma senhora, parou.

- Micaela? - perguntou, com voz rouca.

- Em nome do céu, fale baixo - implorou ela - A menor comoção pode matá-la.

- Quero vê-la - disse, moderando a voz - Não me impeça de a ver.

- Não. Seja razoável, meu amigo. O médico não quer lá ninguém.

E, com toda a calma, maternalmente, como se tivesse compreendido os sentimentos que o guiavam, acrescentou:

- Se tem algum interesse por esta pobre rapariga, retire-se sem fazer barulho. O doutor quer o máximo sossego. Nem eu nem o pai podemos vê-la.

- Mas o que tem Micaela? - insistiu Sacha" com angústia.

- Uma congestão cerebral - respondeu a mulher do milionário, porque sentia que não havia outro meio de conseguir qualquer coisa daquele homem, se não dando-lhe as informações verdadeiras que pedia.

- Não me engana?

- Juro-lhe que digo a verdade...

Entretanto, Jourdan-Ferrières, tendo desligado o telefone, subia ao primeiro andar.

- Vá-se embora - disse a mãe, suplicante - Que não haja altercação entre os dois, tão perto deste quarto. Seja generoso com minha filha, não a mate, e retire-se, peço-lhe.

Alexandre Isborsky baixou a cabeça. Travava-se nele um combate. Não o enganaria essa gente? Devia partir sem ver Micaela?

Mas Jourdan-Ferrières já estava junto dele. Recuou, como se esse homem lhe inspirasse repulsa.

- Não me toque - disse John, altivamente, mas em voz baixa - Retiro-me pelas súplicas desta senhora, e pensando noutra que afirma estar doente.

E olhou para o pai de Micaela com um olhar de uma firmeza terrível:

- Não se põe na rua um homem que se apresenta lealmente. Asseguro-lhe que teria sido preferível uma explicação... mas hei-de voltar, e nesse dia garanto-lhe que há-de ouvir-me!

O milionário não respondeu. A calma do rapaz dominara-o. Que podia haver entre Micaela e o Russo? E, pela primeira vez, em face da impressão de força e beleza que dele emanava, perguntou a si mesmo por que estúpida cegueira colocara semelhante homem junto da filha.

- Esta criatura nunca foi motorista - disse a sua mulher, enquanto Sacha se afastava - Caí como um papalvo. Mas quem me diria que ele teria a audácia de subir até ao quarto de Micaela, sem me pedir licença?

A senhora Jourdan-Ferrières moveu a cabeça com indulgência. Pálido sorriso lhe entreabriu os lábios.

 

- Foste demasiado apressado, meu amigo. Este homem ter-te-ia fornecido todas as explicações possíveis, se o acolhesses com calma...

- Agora, a culpa é minha...

- Meu Deus! Não há nada perdido, ninguém é culpado. Mas, se queres saber, se pretendes descobrir tudo, quando a luz se apresentar não a apagues.

- A tua luz não é fácil de manejar. John quase matou o porteiro...

Mas ela interrompeu-o:

- Ouve, estão a tocar, são os agentes da polícia que reclamaste... Vai recebê-los. Se queres um bom conselho, evita falar em John... É desnecessário comprometer a tua filha!

Sacha ainda não tinha saído. Estava indeciso, na escadaria. Devia realmente partir? Nunca acharia outra ocasião de se aproximar de Micaela; o esforço que lhe permitira penetrar no palácio talvez não desse, outra vez, resultado.

Ao mesmo tempo, estava desesperado com a sua inútil manifestação. Que obtivera? Comprometer Micaela e despertar a atenção do pai. Que suspeitas cairiam agora sobre ela?

Com o desejo ardente de a ter junto de si ou de saber por que motivo ela não tinha ido ter com ele, tinha sido atrozmente estúpido. Acusava-se de ter perdido o sangue-frio. Quando fazia estas reflexões, viu dois agentes da polícia que chegavam ao portão. O porteiro mandou-os entrar.

Examinando rapidamente a situação, compreendeu que não devia acrescentar-lhe o escândalo. A sua prisão, ou, pelo menos, uma visita obrigatória ao comissariado, não lhe daria a menor vantagem, só serviria para complicar as coisas.

Mas o porteiro indicava-o já aos dois agentes e Jourdan-Ferrières aparecia à porta.

Alexandre Isborsky compreendeu que não podia retirar-se sossegadamente, e era bastante altivo para fugir à polícia. Pálido de furor por o encontrar ali, o pai de Micaela ia apontá-lo à polícia com gesto vingador. O olhar altivamente irónico de Sacha, o sorriso de desafio que descerrava os seus lábios orgulhosos, mais o irritavam, mas, lembrando-se da recomendação de sua mulher, deixou cair o braço.

- Chegaram tarde, meus amigos - disse, recalcando o ressentimento - Aquele por causa de quem os chamei, já se retirou.

E deteve-se; os seus olhos furiosos viram o príncipe russo acender placidamente um cigarro... e pensou que não devia fazer qualquer coisa contra esse homem que o afrontava!

- Vicente ! - gritou nervosamente, dirigindo-se ao porteiro, embasbacado - acompanha esse senhor.

- Até breve - disse Sacha, tranquilamente, e fazendo ligeiro cumprimento.

E, enquanto John se afastava, sem pressa e muito calmo, Jourdan-Ferrières levava os agentes à copa e oferecia-lhes um copo de vinho.

 

Perto da saída, John disse ao porteiro:

- Dou-te duzentos francos se me disseres a morada de Landine e a do criado de mesa.

- Ignoro-as - disse Vicente, carrancudo - Partiram esta manhã, não sei para onde.

- Então, o nome do médico, o da religiosa e da sua comunidade.

Aquele John do diabo tinha uma tal maneira de levar as coisas que o porteiro não resistiu ao oferecimento ... De resto, o próprio patrão não fora obrigado a curvar-se diante dele?

- Cada direcção cem francos? - disse, com desconfiança.

- Sim.

- Então, não fique aí. Afaste-se, para que o vejam ir-se embora. E daqui a uma hora volte à rua Bassano, bata à janela do meu quarto e trocarei um papel, com as direcções, pelas notas.

- Compreendido.

O príncipe subiu a Avenida em direcção à Praça Étoile. Por fraco que fosse o último resultado obtido, um pouco de esperança entrava na sua alma.

Se o porteiro lhe indicasse as duas moradas, não duvidava que o médico consentisse em lhe dar notícias da doente. Por outro lado, pela religiosa e pela intervenção da comunidade, esperava poder entrar em comunicação com Micaela.

Uma hora depois, durante a qual não cessara de andar para acalmar a agitação e enervamento da espera, o porteiro entregava-lhe as direcções combinadas.

Contente com a quantia que tão generosamente lhe davam, Vicente, num bom impulso, forneceu, também, algumas informações preciosas.

"Foi no meio do jantar, quando se falava num escândalo da sociedade, revelado por alguns jornais, que mademoiselle Micaela se levantara, espantada, soltando um grande grito. Levada imediatamente para o seu quarto, delirara toda a noite... Fora proibida a entrada de qualquer pessoa, até aos pais. Apenas, junto dela, autorizada pelo médico, ficou velando uma religiosa ... Tudo estava às escuras e silencioso, no seu quarto... tratavam-na com gelo, visto que, durante a noite, fora preciso arranjá-lo, custasse o que custasse ... Enfim, o médico que tinham chamado, à noite, voltou depois de madrugada e de manhã".

Em todos estes pormenores, Sacha só via uma coisa: era que, de facto, Micaela estava doente!

Por que razão a isolava a família? Era o que ele não podia perceber. Seria contra ele que se tomavam tais precauções de isolamento? Devia concluir-se que o pai já estava ao corrente de muitas coisas?

Para esclarecer um pouco o assunto, entrou num Café, procurou novamente telefonar para o palácio de Jourdan-Ferrières. Disseram-lhe a mesma coisa: Não respondem.

Então ligou para Molly Burke. Contando-lhe a doença de Micaela, suplicou-lhe que, sob qualquer pretexto, fosse pessoalmente saber notícias.

- Ir imediatamente - disse a Americana, cheia de cuidado.

Escondido num canto dum táxi, viu-a tocar ao portão e, sem melhor resultado do que ele, também não a deixaram entrar. A prova estava feita: a ordem era a mesma para todos. Molly explicou-lhe que não pudera obter do porteiro a menor informação a respeito de Micaela.

Limitara-se a afirmar-lhe que o senhor, a senhora e a filha, estavam ausentes..."

Apenas restava ao pobre príncipe interrogar o médico que a tratava. A tarde já ia adiantada e só à noite o conseguiu encontrar.

O bilhete que entregou, para se anunciar, dizia: "Doutor em Medicina pela Faculdade de Paris". Era, pois, um colega que ia interrogar.

O homem a quem ia falar era já de certa idade e de aspecto frio. Acolheu-o com delicadeza, mas sem cordialidade e, logo às primeiras perguntas acerca de Micaela, deteve-o:

- Desculpe-me... o segredo profissional... Sacha pediu-lhe, suplicou-lhe, mas ele conservou-se irredutível, impenetrável.

E foi até agreste para o visitante:

- Os pais da doente preveniram-me de que alguém viria ter comigo para obter notícias. Não supunha que um colega, por muito novo que seja na nossa profissão, se encarregasse desse pedido, um pouco ousado. E também não supunha ter que dar uma recusa a um dos membros da nossa grande família médica.

- Afirmo-lhe, meu caro colega, o móbil que me faz proceder assim é um dos mais respeitáveis. Um parente de Mademoiselle Micaela está atrozmente inquieto pela sua saúde e deseja notícias...

- Com muito pesar meu, não posso substituir o pai neste assunto; é ele quem deve dar notícias da filha...

- Mesmo abusando da sua situação privilegiada, junto dela... Micaela é maior.

- É delicado ser juiz em tal causa... No interesse da família que me confiou um dos seus para tratar, julgo-me obrigado a um silêncio absoluto. Acho que, para todos, é o mais razoável e digno.

O príncipe Isborsky encolheu os ombros. Todas aquelas palavras não o impressionaram. Micaela era o seu bem, coisa sua, sua mulher, enfim! Estava doente e, segundo diziam, gravemente; e recusavam-lhe a possibilidade de a tratar... Não queriam mesmo permitir-lhe que soubesse qual era a sua doença.

E sentiu-se enlouquecer, ao dizer estas palavras cruéis, para fazer tombar os escrúpulos do médico:

- Mademoiselle Jourdan-Ferrières foi atingida por qualquer doença vergonhosa, para que se esconda tão cuidadosamente o seu mal?

O outro deu um pulo.

- Exagera, meu caro colega!

- Sei lá! Ontem esteve comigo, cheia de saúde e risonha. Duas horas depois de me ter deixado era vítima, à mesa, de uma terrível crise. Que sei eu! Porque a afastam de todos? Que resultado pensam obter, permitindo todas as suposições?

- Esteve ontem com ela? - repetiu o médico, admirado.

- Estive.

- Então, não é por conta de outrem que vem pedir informações?

- Não. É para mim - declarou John, perdendo toda a prudência e incapaz de ocultar a verdade, em semelhante momento -, Esta doença inesperada aterra-me,.. Que taras querem ocultar?... Ou, sob pretexto de doença, não estará sequestrada?... O que farão sofrer à minha Micaela, quando estou aqui, ignorante e impotente...

Um soluço cortou-lhe a voz. O homem forte e correcto que sempre fora não podia dominar mais a atroz inquietação que o martirizava. Além de uma chávena de chocolate, ao pequeno almoço, nada mais tomara, e a sua resistência estava aniquilada. Sem dar por isso, naquele momento, era todo nervos e desânimo.

Com a cabeça entre as mãos, conservava-se enterrado na poltrona, onde o velho doutor o mandara sentar.

No rosto deste, que o não perdia de vista, lia-se uma grande perplexidade. Há comoções e fraquezas que os homens desculpam entre si.

- Não "sequestraram" mademoiselle Jourdan-Ferrières - disse por fim, com firmeza -, Eu não seria cúmplice de tal acto...

John levantou a cabeça.

- Então, está realmente doente?... Não é nem nervosismo, nem epilepsia? Então o que é?

Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico reflectia.

- Uma congestão cerebral - pronunciou, por fim, gravemente.

E, pesando bem as palavras, continuou:

- Forma inquietadora e estranha... febre intensa, fraqueza comatosa, delírio contínuo... Haverá hemorragia? Vigio e, receando o pior, emprego todos os meios preventivos. Fui eu quem exigiu esse silêncio absoluto em volta dela. Visto que é médico, deve reconhecer que era meu dever, neste caso; tenho a impressão de que o menor choque a mataria... Farei tudo para a salvar, mesmo que calque os direitos da família... ou os do coração.

Calou-se, olhou longamente para o rapaz, e depois perguntou:

- É o noivo?

- Estamos ligados indissoluvelmente - disse Sacha, com firmeza.

- Amor contrariado pela família? - insistiu o médico, que notara a ambiguidade da resposta.

- Amor ignorado, mas nada pode agora quebrá-lo! Por momentos, os dois homens olharam-se e compreenderam-se.

- E diz que ontem nada fazia prever semelhante crise?

- Absolutamente nada! Deixou-me, cheia de saúde e risonha, às sete horas da tarde... um pouco aborrecida, talvez, pelo jantar de cerimónia a que tinha de assistir.

O médico reflectia:

- Em duas horas podem passar-se muitas coisas - notou, a meia voz - Somente sei o que me disseram. No fim do jantar, levantou-se, deu um grito e caiu desmaiada. Nada, aparentemente, parece justificar a doença.

Calou-se, fez um gesto vago, e depois observou:

- Despediram todo o pessoal e não compreendi porquê, a menos que não seja por medida de precaução contra si, que poderia ter inteligência na praça.

E, com autoridade, concluiu:

- Trato-a, sem me preocupar com as coisas que poderiam ter-lhe abalado a saúde. Farei quanto puder para a salvar.

- E esse estado durará muito tempo?

- Receio-o bem... provavelmente, algumas semanas!

E, olhando-o fixamente, acrescentou:

- O senhor é médico; sabe o que estas palavras querem dizer, nada lhe ocultei... É preciso saber esperar.

Levantou-se.

- Falei-lhe como homem e como colega, segundo a minha consciência me ordenou. Queira esquecer quem o informou.

- Juro-lhe e agradeço-lhe...

- Não me agradeça; foi apenas um acto de humanidade perante o seu desespero...

E, sempre impassível, mesmo glacial, indicou a porta ao visitante.

- Tenho a honra de o cumprimentar...

Mas Sacha estava muito comovido para responder com um simples cumprimento a esse homem que, apesar da sua frieza, acabava de ser tão carinhoso para ele.

Dirigiu-se para o colega e agarrou-lhe a mão.

- Obrigado pela sua compaixão. Saio amanhã de França, e era atroz partir para o estrangeiro numa tal ignorância. Visto nada poder fazer para aliviar aquela a quem amo, ser-me-á menos cruel sabê-la nas suas mãos, porque teve piedade do meu desgosto. Trate-a, confio-lha; e, desde já, aceite o meu reconhecimento.

Calou-se, as palavras queimavam-lhe os lábios; sentia um formigueiro nos olhos.

- É tão triste ser médico e não poder lutar pessoalmente pela saúde de um ente querido...

Nos olhos do velho médico passou uma comoção, mas ergueu-se, diligenciando conservar-se impassível.

- Seja razoável; tudo quanto pudesse tentar, neste momento, de nada serviria. Por agora, bastará talvez a minha ciência... Mais tarde, ser-lhe-á necessária a sua ternura... Viva nessa esperança...

E como se tivesse ficado furioso por ter dito tanto, inclinou-se e deu o assunto por terminado.

No dia seguinte, depois de uma visita à baronesa Colensky, a quem confiou a missão de se informar sobre a saúde de Micaela, pela religiosa que a tratava, o príncipe Isborsky saía de Paris. Afastava-se num espantoso estado de espírito, indo ocupar o seu lugar, em Inglaterra, com o consciente desejo de preparar o futuro da sua vida.

Estranha coincidência.

As profecias da feiticeira vermelha desenrolavam-se, para o príncipe e para Micaela, no sentido trágico que ela anunciara: o primeiro, deixava a França, atrozmente desgraçado, e a outra, esposa sem marido, era a morte num corpo vivo.

 

Enquanto Sacha começava uma nova vida, em Londres, o tempo decorria terrivelmente inquietante no palácio da Avenida Marceau. Durante dias e noites, a religiosa velara Micaela, quase sem esperança, e a tristeza de Jourdan-Ferrières concentrava-se numa feroz reclusão, onde, longe de qualquer olhar, deixava gritar o seu enorme desgosto de pai rico, impotente para salvar a filha única da morte que lha queria roubar.

A seu lado, incansável na sua dedicação e amor de esposa, sua mulher mostrava-se dedicada, grave, boa, como nunca tivera ocasião de o ser.

Indo ao quarto de Micaela, onde da porta vigiava atentamente o progresso do mal, ao gabinete em que ele se encerrava para sofrer, só vivia para esses dois seres, nos quais concentrava agora toda a felicidade da sua vida.

Que doloroso calvário não suportava a sua alma de mãe - embora fosse apenas madrasta de Micaela, a quem muito queria - e o seu coração de esposa, suspensa nos reflexos de uma atroz doença!

Muito pálida e descorada, entre os lençóis brancos, com os rápidos coloridos da congestão estampados por vezes na fronte húmida, Micaela viveu, inconscientemente, perto de quatro semanas. Febre, delírio, sobressaltos, crises nervosas, das quais saía completamente despedaçada, tudo isto, durante intermináveis horas, constituiu a sua existência.

Depois, o delírio cessara e os extremos da sua temperatura tendiam, pouco a pouco, para se aproximarem do normal. A fraqueza era aterradora, mas a respiração tornava-se igual e o verdadeiro sono sucedia-se às longas prostrações que a tornavam rígida como um cadáver.

O médico dissera aos pais:

- Uma destas manhãs, despertará, muito fraca, mas lúcida... e será o momento crítico! Será preciso que tome contacto com a vida, sem más recordações e sem sofrimento. Se há qualquer coisa ou alguém que se lhe possa aproximar, com a certeza de que ela terá prazer em ver, não hesitem. Facilitem-lhe esse despertar cerebral.

O pai compreendera, e o sentimento da sua impotência fez-lhe baixar a cabeça, desesperado.

Durante semanas, procurara um esclarecimento, uma indicação. Todas as suas pesquisas foram vãs...

Depois de entrarem os agentes da Polícia, arrependera-se bastante de não ter retido John, visto que ele não se afastara logo. Porque não lhe concedera a entrevista que ele pedira?... Talvez soubesse tudo.

Por um acaso verdadeiramente estranho não pudera encontrá-lo mais. Foi em vão que remexeu as gavetas da secretária para procurar a ficha com o nome e direcção do antigo motorista, que tinha a certeza de ter anotado. Nada encontrou. Procurou o seu amigo, o banqueiro Krassel... Estava em cruzeiro nas águas da Noruega.

Interrogou alguns criados que tinham ficado no palácio, mas ninguém o pôde informar. Nem Vicente, nem a cozinheira, nem a criada de quarto se davam com o jovem Russo, não podendo, portanto, fornecer a menor informação.

Um detective a quem pagou não foi mais feliz.

É que tanto o milionário como o detective tinham um mau ponto de partida para começar as suas indagações.

Se conhecessem, à falta do verdadeiro nome, a profissão do príncipe Isborsky, talvez o encontrassem. Mas procuravam um motorista, quando até na Prefeitura da Polícia o jovem Russo estava indicado como estudante de Medicina.

Jourdan-Ferrières foi forçado a renunciar a encontrar John, o antigo motorista de sua filha, e quando o médico lhe insinuou que chamasse para junto dela aquele que naturalmente ocupava um lugar no seu pensamento, o milionário confessou a sua ignorância.

- Minha filha não tem noivo, nem lhe conheci nenhum flirt sério... A mãe e eu em vão tentámos aprofundar esse assunto, mas nada encontrámos.

Uma tal resposta não satisfez o médico.

- Mas, na sua idade, deve haver algum caprichozinho!

- Que eu saiba, nenhum.

Isto era tão claro que o doutor perguntou a si próprio se a visita de Alexandre Isborsky não fora um sonho.

- Perdoe-me a insistência - disse ele - Perante a saúde e o restabelecimento de uma filha, que lhe é tão querida, talvez lhe fizesse bem sendo indulgente... A sua fortuna permite-lhe acolher um pretendente de boa família... mesmo que não seja rico...

Assim falando, os seus olhos não desfitavam o milionário, e viu-o muito agitado.

- Doutor, diga o seu nome. Se sabe alguma coisa, esclareça-me já.

Prudentemente, o médico insinuou:

- Na minha ausência, foi a minha casa um homem saber notícias de sua filha.

- De Micaela?

- Sim... Era um rapaz bonito, elegante, um estrangeiro, creio eu... Alto, segundo me disseram. A sua elevada estatura permitirá identificá-lo facilmente...

- A esses sinais, doutor, acrescento loiro, olhos claros... homem altivo, orgulhoso, dotado de extraordinária audácia.

- Um homem bem educado e creio que com a consciência do seu valor...

- Sim! Adivinho de quem quer falar, mas esse indivíduo tem uma situação que lhe não permite levantar os olhos para minha filha.

- Não estará em erro? Trata-se de um homem muito... muito...

- Sim, de grande estatura, como raras vezes se encontra.

- Exacto, um bonito rapaz!

- De que vale isso? Preferia ver Micaela morta, que rebaixar-se a ser sua mulher.

Desta vez, foi o doutor quem se ofendeu. Jourdan-Ferrières falava com tanto desprezo da profissão de médico que se tornou imediatamente glacial.

Mais uma vez o carácter arrebatado do milionário cortava o fio que procurava apanhar.

E perguntou:

- Se conhece a direcção desse homem, ficar-lhe-ia muito reconhecido se ma desse.

Mas o médico parecia agora ter muita pressa.

- Não sei - disse ele, vagamente - O meu criado esqueceu-se de lha perguntar... seja como for, vigie bem o regresso à vida da minha doentinha. Ela está primeiro do que tudo, e só ficarei satisfeito quando a vir completamente restabelecida.

E afastou-se, impenetrável, mas levando a certeza de que o orgulho de Jourdan-Ferrières ultrapassava os limites permitidos e merecia um castigo do céu... Agora compreendia a doença e o desespero do seu colega.

A calma severa e metódica do velho médico sentia-se cheia de indulgência e dedicação por aqueles dois apaixonados. Lastimou sinceramente não ter pedido mais explicações ao jovem colega.

Naquele momento desejaria poder reuni-los, mesmo - e talvez por isso - contra a vontade do milionário.

Jourdan-Ferrières contou a sua mulher a conversa com o médico e concluiu de muito mau humor:

- Que audácia! Esse rapaz é arrojado! Ir informar-se de Micaela, até a casa do doutor!...

A esposa não respondeu, ou antes, escondeu o seu verdadeiro pensamento.

- É provável que esse motorista, se era ele, não se informasse por sua conta... trata-se, certamente, doutra pessoa!

- Então, é preciso conhecer esse outro.

- Talvez o acaso no-lo indique - disse ela, com aparente resignação.

Mas, no fundo, desconfiava das tolices do marido. Teria realmente sabido tirar do médico todas as informações desejadas?

Havia dezoito anos que casara com o milionário e não ignorava o seu génio arrebatado e intransigente. Por qualquer insignificância arquitectava tempestades e transformava-se em déspota. Sabendo como no' fundo era bom e generoso, havia muito que tomara o partido de proceder como entendia.

Era a melhor maneira de não levantar mal-entendidos entre eles, porque o milionário, por uma singular forma do seu carácter, nunca se zangava perante uma realidade. Quando qualquer coisa em que não tinha sido ouvido resultava mal, exprimia apenas o pesar de não ter sido consultado. E empregava toda a boa vontade para lhe atenuar os maus resultados.

O acordo era perfeito entre marido e mulher.

Foi por todas estas razões que a senhora Jourdan-Ferrières interrogou pessoalmente o médico, confessando-lhe que o fazia às escondidas do marido.

- Doutor... esse rapaz de quem falou é um motorista, não é?

- Um motorista? Não, minha senhora. É um colega meu.

- O quê? Um médico! - exclamou, assombrada.

- Sim - confirmou ele - Um médico de origem russa, mas que estudou em França.

- Russo, sim, mas é motorista.

- Ora essa!... Trata-se do príncipe Isborsky.

O espanto da senhora Jourdan-Ferrières chegou ao auge.

- Então não sei, não vejo... Se tem a certeza de que ele procedia por conta própria...

- O pesar que mostrava, as suas palavras de desespero, tudo indicava que falava em seu nome.

- A menos que se servisse do título de um colega para se aproximar de si.

- Verifiquei na Faculdade de Medicina: O príncipe Isborsky defendeu tese este ano... e até brilhantemente!

- E foi na realidade esse homem... esse príncipe, quem falou de minha filha ao seu criado?

- A verdade é que foi a mim a quem se dirigiu. Tenho comigo o seu cartão... quer vê-lo?

E, tirando-o da carteira, entregou-lho. A extremosa madrasta de Micaela pegou-lhe, examinou-o e, pensativa, devolveu-o ao médico.

- Na realidade, não sei o que hei-de pensar, doutor. É a primeira vez que oiço pronunciar este nome.

- Mas os sinais que dei a seu marido não lhe lembram pessoa alguma, minha senhora? Disse-lhe que era um perfeito rapaz, de estatura colossal. É raro, encontrar duas pessoas com essas características...

- Tudo isso me faz lembrar um motorista que conheço...

- O príncipe Isborsky em nada tem o aspecto de um motorista, minha senhora. É um homem de sociedade.

- Pois aquele de quem lhe falo não parece, de facto, um motorista... e talvez a sua figura se assemelhe mais à de um príncipe. Veio a nossa casa, como louco, para ver Micaela, na tarde seguinte àquela em que ela adoeceu.

- Foi justamente nesse dia que me procurou.

- Meu marido, sem reflectir, com os seus arrebatamentos habituais, pô-lo pela porta fora.

- Eu recebi-o...

- Doutor, dê-me a sua direcção. É preciso que eu esclareça este caso, A saúde de Micaela exige que aplane todas as dificuldades, se ela gostar desse homem,

- Creio que, realmente... alguma coisa há! Infelizmente, não pensei em perguntar ao príncipe Isborsky onde morava. Apenas sei que partia para o estrangeiro no dia seguinte.

- Saiu de Paris?

- Assim mo disse.

E como a senhora Jourdan-Ferrieres ficasse aterrada, o médico insinuou:

- Espero, contudo, que possuindo um nome e uma posição bastante distinta, o príncipe Isborsky não desaparecesse sem deixar vestígios. É natural que o possa encontrar.

A mulher do milionário informou-se, discretamente, entre as pessoas com quem Micaela se dava, mas nada conseguiu descobrir.

E adquiriu a certeza absoluta de que, se o nome de Alexandre Isborsky era conhecido na Faculdade de Medicina, era totalmente ignorado dos seus amigos e conhecidos. De resto, os acontecimentos precipitaram-se, não permitindo por mais tempo as suas buscas em Paris.

 

Com a cabeça enterrada entre as rendas das almofadas, o rosto pálido e quase transparente, lábios descorados e os negros olhos parecendo maiores pelas olheiras que os rodeavam, Micaela repousava sem febre nem delírio.

Havia quatro dias que lhe espreitavam o despertar do pensamento, a luz inimitável da vida inteligente. Naqueles olhos que se abriam e se tornavam fixos, nada quebrava a inércia do olhar.

O médico conservava-se pensativo. Preferia reminiscências dolorosas a essa atonia que se prolongava.

Foi a religiosa a primeira a notar o benéfico renascimento da vida cerebral. No princípio da sua doença, Micaela arrancara os anéis dos dedos e atirara-os pelo quarto fora. Como eram objectos de valor, cujo desaparecimento seria para lastimar, a irmã de caridade guardara-os cuidadosamente, certa de que Micaela os reclamaria logo que melhorasse.

Ora entre esses anéis, cheios de brilhantes, um anel de prata, que lhe parecia modesto e de valor, insignificante, despertou a atenção da religiosa.

Era a aliança que o príncipe Isborsky enfiara no dedo de Micaela... um anel semelhante àquele que a religiosa usava desde o dia em que pronunciara os seus votos como esposa do Senhor.

E, na simplicidade do seu coração, compreendeu que essa aliança simbólica, mas pouco decorativa, só podia estar misturada com as deslumbrantes jóias de Micaela por representar para ela qualquer recordação

preciosa.

Visto que a febre declinava, a irmã pensou em pôr no dedo da doente o anel que talvez nunca devesse ter deixado o seu lugar.

Primeiro, colocou-o no anelar esquerdo de Micaela; depois, lembrando-se que lho notara na outra mão, tirou-o e enfiou-lho no anelar direito. O gesto de tirar e pôr o anel, como na cerimónia do seu casamento, na igreja russa, despertaria na doente o subconsciente que dormitava? Abriu os olhos, e a religiosa, cheia de alegria, viu neles um clarão de fugitiva comoção.

Conservou-se ainda durante bastante tempo imóvel, mas como a religiosa, notando o dedo emagrecido, se dispunha a tirar o anel para se não perder, Micaela dobrou o dedo, impedindo assim que lho tirassem.

E, a seguir, a irmã de caridade, maravilhada como perante uma ressurreição, viu a doente abrir os olhos, passeá-los vagamente em redor do quarto e, levantando lentamente a mão pálida, diáfana, cheia de grossos veios azulados, fixar o olhar no dedo onde estava o círculo de metal.

- Sacha! - murmurou, com voz muito clara.

O braço recaiu-lhe logo, fatigado pelo esforço.

Depois, adormeceu.

Quando voltou a acordar, visivelmente se percebeu que, olhando para tudo quanto a rodeava, tentava firmar o pensamento vacilante. As visões precisavam-se no cérebro, ampliando-se, como no espaço fazem as ondas mágicas da T. S. F., que levam até aos confins do Mundo a sua misteriosa linguagem.

- Onde estou eu? - perguntou à religiosa.

- Em sua casa, no seu quarto...

- Em Inglaterra?

A religiosa julgou que ela tentava ligar uma ideia, e como se aproximasse para lhe apalpar o pulso, assegurando-se de que não estava febril, ouviu-a murmurar:

- Não, não... Em Paris!... Meu Deus! E interrogou logo:

- Estive doente?

- Um pouco.

- Durante muito tempo?

- Alguns dias.

- O que vai ser de mim? - gemeu Micaela, com o olhar desvairado - Não parti!

A estas palavras seguiu-se uma crise de lágrimas., inconscientes mas bem felizes, porque indicavam a volta normal à vida pensante... à dor.

No dia seguinte, uma auto-ambulância luxuosa, confortável, levava Micaela para a maravilhosa vivenda que seu pai possuía em Deauville, à beira-mar.

O médico, inquieto pela depressão moral da sua doente, que o retorno à vida revelara, exigira, imediatamente, uma mudança de ambiente. E foi numa atmosfera de luz, bom ar, e no meio de um luxo confortável, que a convalescença começou, convalescença estranha... como o fora a doença.

Micaela não falava, não se queixava; acolhia todos, com um pálido sorriso, mas nos seus olhos dir-se-ia que havia lágrimas reprimidas, que apenas esperavam uma palavra para correr novamente.

Um dia, a senhora Jourdan-Ferrières dirigiu-se para ela com uma malinha na mão.

- Micaela - disse-lhe maternalmente - pensei que te seria talvez agradável teres contigo a tua mala com a carteira e as tuas coisas, e tive o cuidado de a trazer quando viemos para Deauville...

- Obrigada - disse a doente, fracamente, colocando a mão sobre a mala que a madrasta pusera em cima da mesa.

Esta, que esperava, talvez, maior expansão, afastou-se discretamente.

Apenas ficou só, Micaela abriu-a. De um escaninho da carteira tirou três fotografias... as duas ampliações que a retratavam em trajo russo... e a de Sacha.

Examinou as primeiras longamente... receando ver a terceira. Era todo o seu pobre romance, os seus sonhos de rapariga, as suas ilusões, a felicidade que julgara possuir... e tinha medo de perder tudo isto, por uma recordação muito brusca da verdade.

Desde que voltara à vida, Micaela, com efeito, esforçava-se por fugir a qualquer evocação do passado.

Naquela dorida e fraca cabeça havia como que o receio inconsciente de sofrer mais, e de não poder suportar esse sofrimento.

Deixava-se viver uma vida animal e vegetativa, sem pensamentos, sem recordações, para o único prazer de comer e adormecer, num bem-estar delicioso.

Contudo, levantou a pequena fotografia até a poder ver. Foi como se Sacha lhe tivesse aparecido. Recebeu o seu olhar, o seu sorriso, em pleno rosto, e todo o universo desapareceu em face do bem-amado.

- Sacha! Meu Sacha querido!

Cobriu de beijos a imagem adorada, mas, ao mesmo tempo, negras reminiscências se precisavam como outros tantos fantasmas ameaçadores... e, de repente, lembrou-se...

Ninguém soube nunca, a não ser a religiosa que a tratava, quanto Micaela chorou nesse dia!

Mas, se essas lágrimas foram desastrosas para a convalescente, tiveram a vantagem de a forçar a pensar corajosamente nos acontecimentos.

A acção da madrasta, permitindo-lhe encontrar o retrato adorado de Sacha, colocou-a em face da terrível realidade: ou era digno do seu amor, e ela devia fazer quanto pudesse para ir ter com ele, ou era um miserável impostor, e Micaela devia destruir, em si, a sua recordação.

Todos os pormenores do famoso jantar, na noite do seu casamento, lhe voltavam à memória. As menores palavras, as mais pequenas características, nada esquecera.

Evidentemente, o caso podia aplicar-se a ambos. Amara o seu motorista, e ele, por amor, interesse ou diplomacia, soubera levá-la até ao casamento.

Que mal resultaria para ele? Até ali, pareceu-lhe que nenhum.

A religiosa, a quem interrogou sobre os factos passados durante a sua doença, só pôde relatar-lhe o licenciamento do pessoal doméstico e a insistência, no primeiro dia, de um homem que queria entrar no seu quarto.

Pela descrição que dele fez a irmã de caridade, que o vira através das persianas corridas, Micaela reconheceu Sacha. Corou e o coração bateu-lhe com desusada força.

Para chegar junto dela, Sacha não tivera medo de arrostar com seu pai e com a polícia, a quem aquele chamara... Nem receara que se descobrisse estar comprometido no escândalo mundano de que se falara.

Concluiu destas primeiras observações que, antes de tudo, convinha saber, ao certo, em que consistia esse escândalo, e encarregou a religiosa de arranjar todos os jornais relativos à época do seu casamento com Sacha... os que precederam essa data e os que se seguiram...,

De antemão, aterrava-se, pensando nos nomes que poderia descobrir, entre os dos russos acusados... Que horror sentiria se entre eles visse o de Sacha!

Contudo, tentava encarar seriamente essa eventualidade.

Então, todo o passado seria falso. A recepção do príncipe Bodnitzky, a aparição da feiticeira vermelha, em casa da pseudo-ama, o velho padre que os unira, numa capelinha em Neuilly, seriam truques?

Tudo seria falso, até a própria igreja teria sido alugada para o acto?

Falsos os príncipes, os grão-duques, a condessa, o general! Falsa, também, essa história de Molly, cúmplice involuntária desses velhacos... isso era tudo o que havia de mais cómico!

E toda aquela dispendiosa fantasmagoria para conseguir o quê? Para seduzir a filha de Jourdan-Ferrières, a arquimilionária... a rapariga rica, que renunciava a todas as vantagens para casar com o homem da sua escolha, deserdada pelo pai!

Evidentemente, aqueles que tinham organizado tal trapaça, com semelhante cenário, deviam supor que Micaela teria um bom dote... Deviam ter pensado, também, que uma vez bem comprometida, o antigo financeiro pagaria, fosse o que fosse, para abafar o escândalo.

Enfim, o casamento realizara-se... e a comédia representara-se... Que ganhara essa gente em a comprometer?

Na verdade, até ali nenhum proveito tinham tirado dessa vil comédia. Tê-los-ia detido a doença de Micaela?

O bom-senso dizia que, pelo contrário, a partida seria ganha enquanto ela não pudesse defender-se.

A menos que seu pai tivesse já pago.

Este receio era uma obsessão. E, sorrateiramente, quando Jourdan-Ferrières a vinha ver, examinava-o intensamente, procurando adivinhar, sob as suas mil gentilezas e palavras afectuosas, se não lhe escondia alguma terrível verdade.

De resto, havia uma coisa que depunha contra Sacha. Bem quisera repelir essa ideia, para não sobrecarregar o homem a quem amava, mas os factos lá estavam terrivelmente inquietantes. Esse senhor de Brésmesnil, que ele afirmava ser o velho pintor, e que se parecia tão pouco com o João Bernier da miserável mansarda.

Esse era um facto incontestável. Micaela dera mais de sessenta mil francos, e havia muitas probabilidades de que o desgraçado velho ainda continuasse em Menilmontant... apesar do falso notário, dos falsos papéis e da pensão.

Havia mais duas maletas, levadas para casa de Sacha, cheias de coisas preciosas, como jóias de sua mãe, as suas, o famoso colar de pérolas, todos os presentes e lembranças que recebera, o que representava bastante valor.

Sacha, evidentemente, não lhe dissera que as levasse, mas achara natural que o fizesse... e isso também devia fazer parte das possibilidades calculadas!

Nesse círculo atroz de suposições, todas deveras aflitivas, o seu pensamento lúcido molestava-a incessantemente.

 

Por fim, chegaram os jornais.

Micaela quis consultá-los imediatamente. Mas era um trabalho árduo para uma doente, extenuada como estava. No fim de cinco minutos, sem ter ainda encontrado nada, teve de renunciar, pois as letras dançavam-lhe diante dos olhos fatigados e parecia-lhe que a cabeça lhe estalava. Sentia-se tão impotente que os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- Então, Mademoiselle Micaela - interveio a religiosa - Recomeçou a chorar! Realmente, não poderei fazer nada por si?

- Não, nada! - disse a doente, com desânimo.

- Mas não pode ficar doente toda a vida... É preferível que tenha vontade de se curar. Há duas semanas que não progride. Olhe para o anel de prata que tem no dedo; se isto continua, ficar-lhe-á enorme, e será obrigada a separar-se dele.

- O meu anel de prata! - disse Micaela, pensativa.

- Sim, é igual ao meu...

A doente ergueu-se um pouco e um clarão vivo lhe perpassou pelas pupilas.

- O meu anel de prata!... - repetiu ela - De prata! Esta palavra parecia fasciná-la e, subitamente, no seu cérebro exaltado surgiram pensamentos, primeiro incoerentes, depois bem ordenados.

Muitas vezes perguntava como poderia encontrar uma prova de sinceridade de Sacha. E, sem o querer, a religiosa indicava-lhe um caminho: o seu anel de noivado, a sua aliança...

"O anel era de uma avó" - dissera John.

Devia, pois, conter pedras verdadeiras, visto que, colocando-lho no dedo, ousara trocá-lo pelo seu solitário ... uma pedra de grande valor!

Recordava-se que tivera uma hesitação ao trocá-lo. Mas a altiva e terna resposta dele decidira-a:

"Não é tudo belo e verdadeiro entre nós?".

Também Sacha lhe dissera que o anel que o padre abençoara era de platina. Não seria tudo de vidraça e metal branco?

Micaela lembrava-se de que o estojo era novo!

Que ignóbil comédia de amor teria ele representado com os dois anéis? Lembrava-se, ainda, da tarde delirante que passara nos seus braços... dos seus beijos... a loucura de Sacha, sabendo-a finalmente sua!

Não! Não! Tudo aquilo não era mentira! Ele amava-a sincera e apaixonadamente. Não é possível fingir-se assim... Mesmo que o resto fosse comédia, nesse dia, Sacha fora sincero... Disso tinha absoluta certeza...

Mas... se a aliança fosse de prata e as pedras do anel sem valor?

Teria, então, trocado aquilo por um anel de grande valor. A dúvida era atroz. Era preciso saber, imediatamente, a verdade.

- Minha irmã, disse-me que estava disposta a auxiliar-me. Pois bem! Está na sua mão fazer cessar uma inquietação que me atormenta.

- O que é preciso fazer?

- Ir procurar um joalheiro desta cidade e pedir-lhe que venha a esta casa, para avaliar uma jóia... dizendo-lhe que se lhe pagará o seu trabalho.

- Se é apenas isso que a pode tranquilizar...

- Sim, só isso... Mas queria que escolhesse a ocasião em que meus pais estivessem ausentes, para o trazer. Fatigar-me-ia enormemente ter que lhes dar explicações.

A religiosa hesitou... Devia prestar-se àquele desejo? Mas a sua doente estava tão fraca, tão deprimida, que não seria uma crueldade recusar-lhe o seu primeiro pedido?... Tanto mais que Jourdan-Ferrières fizera-lhe prometer que não lhe recusaria coisa alguma...

Então, a humilde serva de Deus prometeu a Micaela agir como ela desejava. E, nessa tarde, pôde dar-lhe a satisfação de lhe trazer o joalheiro.

A irmã disse a Micaela que lho tinham indicado como sendo uma pessoa da maior confiança.

- Incomodei-o para lhe pedir um conselho... ou antes, uma avaliação. Abusei, talvez, do seu precioso tempo, mas perdoará, estou certa, o capricho de uma doente, que não podia ir a sua casa e tinha pressa...

Sorria tão meigamente e era tão jovem que o homem ficou encantado com tanta graça.

- Estou às suas ordens, mademoiselle. Disponha de mim.

- Há dois meses que estou de cama e as minhas jóias ficaram em Paris. Restam-me apenas estes dois anéis e uma aliança. Quer dizer-me quanto valem?

Primeiro, entregou-lhe a aliança, e a religiosa leu-lhe no rosto tal ansiedade, que, instintivamente, se dirigiu para ela, pronta a socorrê-la, caso fosse necessário.

- Uma aliança de platina. Será preciso pesá-la.

- De platina! - repetiu Micaela, num suspiro de alívio.

E a enfermeira leu tal alegria nos seus olhos que, muito perturbada, desculpou-se:

- Eu disse que era de prata! Desculpe-me; percebo tão pouco disso...

- Prata! - disse o joalheiro - Não, minha Irmã; não há confusões possíveis: a cor, o peso... Não! É platina.

- Creio que é a primeira vez que vejo esse metal - confessou humildemente a irmã de caridade.

Micaela, num gesto espontâneo, agarrou-lhe a mão, que apertou entre as suas.

- Nem eu própria tinha a certeza...

Depois, entregando ao joalheiro um outro anel, perguntou:

-E este?

Um pouco desconfiada, fazia avaliar a sua marquise, da qual sabia o valor, para verificar a ciência do joalheiro.

- Anel de oiro; rosas montadas sobre platina. Deve ter custado mais de mil e oitocentos francos.

Era tão acertada a avaliação que a doente sorriu.

- E este terceiro? - disse Micaela, timidamente.

O seu olhar tornara-se indeciso. Com a respiração suspensa, esperava a sentença que ia ser pronunciada.

- Oh! Oh! - exclamou o joalheiro ao pegar-lhe. Tirou uma lente da algibeira, para melhor poder apreciar e, após um rápido exame, continuou:

- Que magnífica jóia! É de um valor incalculável. Micaela suspirou, feliz. Pareceu-lhe que ia desmaiar de alegria.

O joalheiro dirigiu-se para a janela, a fim de melhor examinar a esplêndida jóia.

- Este anel é admirável! O brilhante é da mais pura água e de um tamanho pouco vulgar.

Voltou para perto da cama da doente e perguntou:

- Onde arranjou esta jóia, mademoiselle? Vale uma fortuna!

Uma felicidade enorme transfigurava o pálido rosto de Micaela.

- Nenhuma pedra falsa? São todas verdadeiras?

- Não há a menor dúvida sobre isso! Visto que me faz semelhante pergunta, não conhecia então o seu valor?

- Justamente por calcular ser tão grande o seu valor, receava alguma perfeita imitação - disse Micaela com extraordinário sangue-frio.

Desconfiado, o joalheiro observou:

- Esta jóia não pode ser confundida com qualquer outra, mademoiselle... Tem gravadas interiormente, se bem que já um pouco apagadas, as armas da Casa Imperial da Rússia. Como se encontra em seu poder?

Um sorriso divino entreabriu os lábios de Micaela.

- É um presente de noivado que o príncipe Isborsky me deu - respondeu, como num sonho.

- O príncipe Isborsky? - disse ele, com surpresa -, Foi, noutro tempo, um dos meus melhores clientes... Casou com uma princesa imperial...

- A grã-duquesa Xénia Alexandrovna - precisou Micaela.

- E a senhora diz que foi ele quem...

- Não, ele não - interrompeu, rindo - Seu filho, o príncipe Alexandre...

Sentia um prazer infantil em pronunciar estes nomes, estes títulos por tanto tempo escondidos no mais íntimo do seu ser. Nem sequer pensou que devia calar-se, para que seu pai não soubesse a verdade.

Exactamente como John, quando Micaela adoecera, estivera disposto a afrontar a cólera do pai da sua noiva e a fazer-lhe saber o que se passava, Micaela, descobrindo a boa fé de Sacha, desejaria que o Mundo inteiro soubesse que ele era seu marido.

Era feliz. Precisava de gritar a sua alegria! Não podia calar mais a sua felicidade. Depois de tantas horas de dúvida e pesadelo, saber, finalmente, que se enganara, que aquele a quem amava continuava a ser digno da sua ternura, embriagava-a tanto como se tivesse tomado qualquer bebida alcoólica.

O seu bem-amado Sacha não podia ser acusado de ambicioso, visto que lhe colocara no dedo uma fortuna!

Evocava a cena e a simplicidade com que ele lhe entregara o anel... nem sequer dizendo a menor palavra acerca do seu valor.

E corou subitamente, lembrando-se da mesquinhez com que sublinhara o valor do seu solitário.

John amava-a tanto, era tão indulgente com ela, que apenas, em resposta à sua miserável observação, respondera:

"Não é tudo tão belo e verdadeiro entre nós?"

Frase maravilhosa, que mal notara, e agora lhe parecia mágica e benéfica como um talismã.

Pelo único poder de um anel, de pedras verdadeiras, e por uma frase que lhe penetrara na alma, encontrava novamente Sacha, o bem-amado, o esposo adorado...

E, puerilmente, como uma criança beija a sua boneca depois de um grande desgosto, Micaela, esquecendo aqueles que estavam junto de si, cobriu de loucos beijos o anel e a aliança.

A religiosa, um pouco confusa perante esta exuberância da sua doente, voltou a cabeça, embaraçada, mas o velho joalheiro sorria, cheio de indulgência.

Micaela estava ainda muito fraca e tantas comoções, mesmo muito agradáveis, tinham-na despedaçado de fadiga. Exausta, deixou-se cair sobre os almofadões, com o rosto pálido, velando-se-lhe os olhos com súbita fraqueza.

O joalheiro retirou-se discretamente. A religiosa hesitou um segundo entre a doente e o homem que saía.

A primeira podia esperar os seus cuidados mais uns momentos. E, como as três semanas de delírio de Micaela lhe tinham dito muita coisa, decidiu-se a segui-lo.

- Pedia-lhe que guardasse segredo da sua visita à minha doente - disse ela, chegando junto do joalheiro.

- Com a melhor vontade, minha Irmã. Ninguém tem nada que ver com isso.

- E queria pedir-lhe também para não falar nas confidências... nos nomes que mademoiselle pronunciou.

Como percebesse o espanto do joalheiro, corou, acrescentando rapidamente:

- Tenho notado... parece-me que o pai não aprovava... enfim, o noivo foi posto de parte.

- Pobres apaixonados!

- Sim, a minha doente esteve a morrer.

O joalheiro meneou a cabeça; a experiência que tinha dos frequentadores de Trouville fazia-lhe adivinhar muitas coisas.

- O senhor Jourdan-Ferrières é fabulosamente rico e julgo que a revolução russa deve ter empobrecido consideravelmente o príncipe!

- Talvez - concordou a enfermeira.

- Esteja descansada, Irmã: nada direi. De resto, são coisas que não me interessam. Vá tratar da sua doentinha, e creia que já me esqueci de que vim a esta casa.

Cumprimentou-a e afastou-se. A religiosa, ainda confusa, mas muito satisfeita, voltou para junto de Micaela.

 

A partir desse dia, a convalescença caminhou a passos agigantados. Micaela tinha pressa de ir juntar-se àquele a quem amava e prestava-se de boa vontade a todos os regimes reconstituintes que lhe impunham.

Readquirira a confiança no futuro, mas a dúvida enraizara-se tanto nela, que, apesar de tudo, sentia ainda uma espécie de reserva para com os acontecimentos.

E foi por isso que, sentindo dezenas de vezes o desejo de escrever a Sacha para o sossegar e afirmar-lhe a sua ternura, o não fez. Não sabendo a sua direcção em Londres, poderia ter feito chegar-lhe a carta por intermédio de João Bernier, ou pelo casal russo que morava com ele, na casa de Paris.

Mas, sempre que sentia esse desejo imperioso de se corresponder com o seu bem-amado, Micaela repelia a tentação, com um secreto receio que não podia dominar.

Sacha amava-a, era sincero, e ela tinha confiança no seu amor, mas nada provara que, em volta dele, amigos menos escrupulosos, dos quais podia talvez ser inconsciente cúmplice, não se movessem.

A incompreensível atitude de Jourdan-Ferrières, desviando toda a gente do seu convívio, dava-lhe sérias apreensões. A enfermeira afirmara-lhe que fora o médico quem exigira absoluto sossego, e a resolução do pai era natural. Mas Micaela não se conformava. Porque tinham despedido o pessoal? Porque tinham afastado Landine, que lhe era tão dedicada? E, enfim, porque tinham posto fora Sacha, quando viera saber notícias?

Interrogada sobre estes factos, a senhora Jourdan-Ferrières, não querendo confessar a Micaela as malévolas suposições do pai, desviara prudentemente as perguntas. E essa atitude circunspecta só servira para aumentar o seu mal-estar. Então, preparando-se em segredo para ir ter com Sacha, queria, primeiro que tudo, fazer em Paris umas investigações.

Mas, para partir, precisava de dinheiro, e actualmente não o tinha. Um dia em que o pai se mostrara particularmente amável com ela - trouxera-lhe flores, guloseimas, um bonito relógio de pulso... não se deve animar os convalescentes? - Micaela aproveitou o ensejo para lhe fazer um pedido.

- As minhas malas estão em Paris, paizinho, e não tenho nada que vestir.

- Vamos mandá-las buscar.

- É inútil. Emagreci bastante e nada me deve servir. É preciso arranjar tudo de novo. Precisas de fornecer bem a minha carteira, meu pai...

Jourdan-Ferrières tirou da algibeira um punhado de notas amarrotadas e atirou-as para o colo da filha, que estava estendida numa chaise-longue.

Os olhos de Micaela exprimiram decepção.

- Dás-me uma esmola! Só aos criados devo mais do que isso!

- Manda-os vir ter comigo, para os reembolsar. E com respeito aos vestidos, fazes a mesma coisa. Compra o que quiseres e manda-me as facturas.

- Se tiver vontade de tomar uma chávena de chá, terei também de te mandar o recibo?

- Como quiseres, minha filha. Pagarei tudo.

- Agradeço muito o teu favor, meu pai, mas, se tenho que regularizar assim os meus lanches, corro o risco de nunca sair de casa.

- Mas porquê?

- Porque não terei coragem de entrar nas casas de chá.

O pai estremeceu levemente.

- Precisas então de dinheiro grosso - murmurou, tirando da algibeira o livro de cheques.

- Evidentemente, paizinho. Há casos em que não posso estar a mandar-te a factura. De resto, não me habituaste a calcular as minhas despesas!...

- Com efeito, amimei-te muito... de mais, creio eu! E desejo continuar a fazê-lo. Peço-te, apenas, minha querida Micaela, que sejas franca. Diz-me, lealmente, o que há entre ti e John?

A senhora Jourdan-Ferrières, que assistia em silêncio a esta conversa, não pôde reprimir um gesto de censura. As tolices do marido recomeçavam... dirigindo-se assim a uma pobre convalescente ainda mal refeita de tanto sofrer. De pé, atrás de Micaela, acenava ao marido, tentando fazer-lhe compreender que semelhante pergunta ia novamente tirar-lhe a confiança da filha.

Mas este tinha a sua ideia e, brincando com o livro de cheques, parecia prometer-lhe uma recompensa se ela falasse.

Micaela, que não esperava a pergunta do pai, corou bruscamente. Mas não hesitou:

- Que tem o nome de John com a minha lealdade?

- Queria saber por que razão teve esse rapaz a audácia de vir pedir-me notícias tuas.

- Devias ter-lhe perguntado.

- Sabes que levou a inconsciência até querer penetrar no teu quarto?

- Dá-me grande prazer saber isso - respondeu Micaela, com pálido sorriso -, Aborreceu-me, por vezes, com a sua infinita correcção.

- Parece não quereres perceber a pergunta que te fiz, Micaela... e pedi que respondesses lealmente.

- Lealmente? Essa palavra na tua boca, dirigindo-se a mim, não me agrada, meu pai. Notei muitas vezes que usavas dela com os teus concorrentes, para servires os teus interesses. Quando lhes pedias que respondessem lealmente, sobre qualquer assunto financeiro, em geral, não era para bem deles que falavas...

- Micaela! - gritou Jourdan-Ferrières, levantando-se bruscamente - Parece que me faltas ao respeito.

- Pelo contrário; julgo prestar homenagem à tua habilidade de financeiro e de fabricante, que soube fazer brotar do nada uma fortuna imensa... Mas deixa-me que, em família, desconfie das respostas que tiver de dar-te lealmente...

- Quer dizer que não queres responder? - replicou o pai, enervado.

- Enganas-te, não recuso; permite-me, porém, que devolva a pergunta: dize-me lealmente, papá, por que razão, a propósito do dinheiro que te peço, fazes intervir o nome do meu antigo motorista? Então, meu pai, concretiza lealmente o teu pensamento.

Trémula, com as faces coradas pela febre, olhava para o pai, com um olhar desvairado.

A religiosa interveio, com a sua autoridade:

- Desculpe ter de a interromper, mademoiselle Micaela, mas, se continua assim, vejo-me obrigada a proibir a entrada de seu pai neste quarto. Não está ainda em estado de suportar semelhantes explicações.

A censura indirecta trouxe o pai à razão.

- Então, Micaela, apoquentas-te sem motivo. Fiquei apenas desagradavelmente impressionado, sabendo que esse John, depois de ter querido penetrar no teu quarto, fora informar-se a teu respeito com o médico.

- Que médico?

- Rimbert.

- E John foi a casa dele?

- Não disse quem era, mas, pela descrição que me fizeram, reconheci-o.

Micaela sorriu. Este procedimento de Sacha, que até ali ignorava, dava-lhe prazer.

- Ris-te! - disse o pai, não querendo acreditar no que via.

- Sim - confessou Micaela, alegremente - Acho isso divertido e inverosímil.

- Então, não fatiguemos Micaela por mais tempo - interveio a mãe - Dá-lhe o que ela te pede com justa razão; não pode estar sem dinheiro, e depois vamo-nos embora, para a deixar repousar.

O marido olhou-a, hesitante, e depois fixou a filha.

- Mas, se lhe disse que pagarei todas as facturas que me apresentar!

- Precisamente por isso - insistiu a mãe - Não vejo razão para quereres, absolutamente, que ela fique sem dinheiro.

- Meu pai deseja verificar todas as minhas despesas - observou Micaela, irónica.

- Exactamente, minha pequena, e se queres ser senhora absoluta dos teus actos, deves casar-te. Já te propus belos partidos; escolhe um deles, e terás liberdade e o direito de gastar fabulosamente. Mas, enquanto estiveres em minha casa, acho que o meu papel de pai é...

Não pôde acabar. A senhora Jourdan-Ferrières pegara-lhe num braço e arrastava-o para fora do quarto.

- Espera, espera - disse - Não sou nenhum selvagem.

Rabiscou um cheque e entregou-o.

- Aqui tens dois mil francos; isto representa algumas chávenas de chá.

- Visto que estás com a mão na massa, dá-me também qualquer coisa - reclamou a esposa do milionário -, Perdi, ontem, ao bacará, bastante dinheiro.

- Quanto? - perguntou ele, sem pestanejar, e quase feliz por mostrar à filha que continuava a poder assinar cheques valiosos.

- Muito, o mais possível! Preciso de pagar o que perdi, e recomeçar esta noite.

- Chegam-te cinquenta mil francos?

- Por hoje, sim, mas não garanto que amanhã não precise de mais.

- Vocês arruinam-me! - disse o milionário, sorrindo. E, voltando-se para a filha, deu-lhe uma palmadinha na cara:

- Vamos, cura-te depressa, pequena, para despejares os armazéns.

E ria, feliz, pela partida que julgava ter pregado a Micaela, não reparando na sua palidez.

A diferença que o pai marcara entre a madrasta e a enteada ferira o orgulho desta. Não repelira as carícias do milionário, mas, estendendo o cheque de dois mil francos à religiosa, disse com o seu aspecto cansado:

- Aceite, minha irmã, e mande isto à comunidade, para os orfãozinhos. Quero agradecer àqueles que oraram por mim, durante a minha doença. Não é muito, mas é dado de todo o coração.

E, fechando os olhos, pareceu dispor-se a dormir.

Espantado, o pai olhou para a convalescente, que estava muito pálida. Na penumbra do aposento, as suas faces cavadas, os olhos rodeados de um círculo roxo, fechados, davam-lhe a aparência de um cadáver.

Subitamente, Jourdan-Ferrières teve a consciência da sua falta de tacto. Olhou para sua mulher, a seguir para a religiosa e, vendo naquelas caras sinais de reprovação, enfureceu-se e saiu do quarto bruscamente.

Sua mulher, que o seguia, impediu-o de bater com a porta, como se dispunha a fazê-lo.

Depois dele sair, a religiosa quis devolver o cheque a Micaela, mas esta não consentiu.

- Nunca aceito o que dou, minha irmã. E isso é tão pouco para tantas crianças!...

- Mas fica desprevenida...

- Não se inquiete, peço-lhe... Sei onde o ir buscar. O que me preocupa mais é o mal-entendido que sinto aumentar, cada dia, entre mim e meu pai. Tenho agora a impressão de que somos dois adversários que se observam...

Neste momento, abriu-se novamente a porta e apareceu a senhora Jourdan-Ferrières.

- Precisas de deitar-te, minha filha. A visita de teu pai fez-te falar muito, e deves estar cansada. Telefonei ao doutor. Acho-te com mau aspecto, hoje.

Ajudou-a a deitar-se e, arranjando-lhe as almofadas, disse-lhe maternalmente:

- Quero dizer-te, querida Micaela, que não foi John quem foi a casa do doutor Rimbert. Interroguei o médico e ele disse-me que foi um dos seus colegas... o príncipe Isborsky, creio eu. Isto não tinha importância; por isso nada disse a teu pai, que é uma excelente pessoa, mas que complica tudo...

Beijou a enteada e acrescentou:

- Agora, dorme tranquila e sossegada. Amanhã vou tratar do teu enxoval; é preciso renovar tudo e prometo-te que ficarás contente. Logo que te sintas com forças, virão trazer-te as amostras para escolheres os vestidos.

- Obrigada, minha mãe. És muito boa.

- É tudo quanto há de mais natural que te ajude, visto que ainda estás muito fraca, filha... Que queria eu dizer-te mais? Sim, é a respeito do cheque: bem sabes que não perdi nada ao jogo, e que não preciso desse dinheiro. Mas, quando vi o procedimento de teu pai, irritei-me... Às vezes, não percebe as nossas necessidades...

- Quando quer, é bom. Mas agora, comigo, nem sempre quer.

- Ouve, minha querida Micaela, não te assustes com aqueles repentes. No fundo, é um bom pai, e adora-te! Toma, guarda o cheque, é para ti...

- Mas... não quero privar-te dele, mãe... - protestou Micaela, comovida.

- Precisas desse dinheiro, meu amor... Com teu pai é inútil pedir... aconselhar ou reprovar! É melhor colocá-lo em face dos factos consumados; e, então, tudo caminha por si mesmo... Mas eu sou sua mulher, o meu dever é sustentar a sua autoridade paterna, e não poderei ajudar-te sempre... Guarda, guarda esse dinheiro, minha filha, e... faz dele o que entenderes. Tenho confiança em ti!

Micaela olhava para a madrasta, sensibilizada.

- Mãe, como hei-de agradecer-te! Como és boa!

- Também fui rapariga e amei loucamente teu pai; se tivessem querido separar-nos, creio... sim, creio que teria ido ter com ele! Somos algumas vezes, obrigadas a construir, por nossa própria mão, a nossa felicidade. Enfim, por agora, sossega e trata de ti... mas seja o que for que te aconteça na vida, lembra-te que sou sinceramente tua amiga e que podes contar com a minha afeição.

Beijou ternamente a enteada e durante uns segundos as suas lágrimas confundiram-se. E como Micaela quisesse falar, a madrasta colocou-lhe um dedo sobre os lábios.

- Silêncio, minha querida filha. Não fales... nada mais temos a dizer! Até amanhã, e dorme bem!

E aquela que todos julgavam ser a frívola senhora Jourdan-Ferrières desapareceu, silenciosamente como viera, ao passo que Micaela, muito comovida, perguntava a si própria se não sonhara tudo quanto a madrasta acabava de dizer-lhe.

 

Carta, de Micaela a Jourdan-Ferrières

"Meu pai

"Quando leres esta carta, já estarei longe. Não te inquietes a meu respeito, nem mandes procurar-me; sou maior e reflecti muito antes de agir. Nada me faria agora mudar de resolução. Sigo o meu destino. Penso conseguir que a minha enfermeira me acompanhe: cuidados e respeitos não me faltarão pelo caminho. Se a doença que me reteve presa por tanto tempo perturbasse a minha vida, a ponto de que as coisas favoráveis se me tornassem hostis, nem mesmo assim voltaria para casa. Prefiro trabalhar e ganhar a minha vida, a casar com um homem de quem não goste e a quem escolhesse para te ser agradável, ou para que pusesses o teu cofre à minha disposição.

"Não me queiras mal por não te obedecer. Dizendo-me o que tinha a esperar de ti, deste-me a liberdade de escolher... e prefiro renunciar às vantagens da tua fortuna. A minha querida mãe não era rica quando morreu. Nada tenho, pois, a esperar além do que me proporcione o meu trabalho e o do marido que escolhi.

"Se os acontecimentos me forem benéficos, tornar-me-ás a ver um dia, visto que não precisarei de auxílio; se não, esperarei que a sorte mude e me sorria... Todo o meu desejo é não te obrigar a fazer o que não queres. E não te zangues comigo, paizinho, porque não é para te contrariar que não te obedeço; tu querias que eu fosse, a teu lado, fabulosamente rica, e eu só desejo uma coisa: ser feliz.

O Destino quis, contra minha vontade, que eu amasse um homem bem educado, mas pobre! E todos os meus desejos não podem mudar este estado de coisas... Sujeito-me a uma fatalidade que não quis nem procurei, e à qual obedeço, visto não estar em meu poder resistir-lhe.

"Até um dia, meu pai. Partilha com minha madrasta, que foi para mim uma verdadeira mãe, todos os meus sinceros beijos, e crê no respeito da tua filha muito amiga, Micaela

  1. S. - Parto no comboio das dez horas e levo as minhas malas. Comunico-te isto para evitar que interrogues os criados".

 

O milionário, que voltava de Cabourg, onde passara o dia com sua mulher e alguns amigos, teve de ler várias vezes a carta, para compreender que a filha saira da sua casa. Foi para ele um golpe muito rude, visto que a carta de Micaela o colocava em face de um facto consumado, não lhe permitindo discutir ou fazer concessões.

Sem dizer palavra, entregou a carta a sua mulher e, depois dela a ler, vociferou:

- Que me dizes da força de vontade dessa pequena? Nada pôde fazer-lhe mudar as ideias... e agora já não há dúvidas de que tinha os seus projectos quando me interrogou a propósito de Molly Burke.

- É possível.

- A doença retardou, apenas, a sua execução.

- A não ser que precipitasse os acontecimentos.

- Como assim?

- Nota, meu amigo... que Micaela parece não ir muito segura do que vai encontrar à chegada. Emite a ideia de que as coisas favoráveis podem tornar-se hostis...

- Com os diabos! Tens razão! A pobre garota corre, talvez, para uma decepção!

E releu a carta da fugitiva, analisando bem cada palavra.

- Não é um cântico de vitória que a minha pequena me dirige! - murmurou, comovido - É quase a carta de uma desesperada, impelida pela fatalidade.

- Não se abandona assim a família, sem pensar - notou a madrasta, subitamente agitada.

- Mas, enfim - gritou o milionário, com indignação - ela bem sabe que não está só no Mundo e que pode contar comigo, apesar de tudo!

- Desgraçadamente, disseste-lhe o contrário...

- Então, então... não me apoquentes. Todos os pais procederiam como eu... e isso não impede que os filhos contem com eles.

- Evidentemente, tens razão. Esperemos os acontecimentos.

- O quê? Esperar?

- Não podemos fazer mais nada.

- Essa agora! Vou tentar, imediatamente, encontrar a minha filha.

- Para a trazeres, à força, para casa? Já te preveniu que não voltaria.

- Não se trata de a trazer. É preciso arranjar as coisas. O homem com quem ela partiu tem de a desposar, se realmente não é indigno disso.

- É justamente o que me inquieta. Micaela foi ter com ele. Encontrá-lo-á? E em que disposição? A sua doença interrompeu o idílio, e esse homem não parece tê-la procurado aqui.

- Julgas então que não ama Micaela?

- Ou, pelo menos, que as medidas radicais que tomaste para a isolar dele o tenham desanimado.

- Dize, antes, que ao saber que eu não tomava parte na combinação, arrefeceu!

A senhora Jourdan-Ferrières reflectia e, com o pouco que sabia, tentava desvendar a verdade. A vinda do Russo, aterrado pela doença de Micaela, o seu retrato na malinha da pequena, a visita de um desconhecido ao doutor Rimbert; um homem parecido com o antigo motorista chamava-se príncipe Isborsky, era médico e partia no dia seguinte para o estrangeiro! ... Enfim, a afirmação do doutor Rimbert: esse príncipe amava Micaela e não lhe era indiferente.

"Então - perguntava ela a si mesma -, porque não voltou? Porque não tentou tornar a vê-la, desde que está melhor? Estava persuadida de que a pequena recebera boas notícias dele; de repente, pareceu tão feliz...

"Meu Deus! Tê-la-ia eu aconselhado mal, na minha indulgente cumplicidade?"

E, enquanto o pai se censurava intimamente, ela, ansiosa, pensava se não era mais culpada do que o marido.

- Vamos, dá-me um conselho! - exclamou de repente o milionário, que não podia aceitar passivamente a fuga da filha - Como hei-de encontrá-la? O que hei-de fazer? Indicou-nos o comboio em que partia. Devemos segui-la?

- Tem já muito avanço.

- Mas creio que foi a Paris, à Avenida Marceau.

- Pergunta pelo telefone.

- É uma ideia...

Subitamente, deteve-se. Atravessara-lhe o cérebro um pensamento.

- Mas a Micaela não tinha dinheiro.

- Tem jóias e saberá servir-se delas.

- As jóias compram-se caras e vendem-se baratas. Se as vendeu para partir, de que vai depois viver?

Este cuidado deixava indiferente a senhora Jourdan-Ferrières... e ela bem sabia porquê!

- Sossega! Não compliquemos as coisas. Por agora, Micaela tem o que precisa...

- Não há a certeza...

- Há, sim. A pequena deve ter tomado as suas precauções e não levaria consigo a religiosa, se não tivesse dinheiro para as despesas.

- A menor complicação, a mais pequena demora, pode esgotar uma bolsa. Sinto-me horrorizado só em pensar que a minha pobre Micaela pode conhecer os horrores da fome...

Esta suposição tirava toda a energia ao milionário.

Aquele homem, que hoje gastava à larga, esquecia o tempo em que uma nota de cem francos lhe durava para muitos dias.

- Se é a questão do dinheiro que te aflige, telefona já ao porteiro da Avenida Marceau e dá-lhe ordem para que Micaela tenha dinheiro à sua disposição, se for ao palácio.

- É, realmente, uma boa ideia. Mas vou fazer melhor. Vou eu mesmo levá-lo a Paris. Estarei lá em poucas horas.

A mulher não conseguiu fazê-lo desistir da viagem.

- Não corro atrás de Micaela - repetiu -, Mas, se puder ajudá-la, assim o farei. A pequena não tem experiência alguma da vida, ignora que os mais sinceros apaixonados têm estômago como os outros mortais.

Febrilmente, o milionário mandou prevenir o motorista, e deu ordem para lhe prepararem a maleta.

Logo que ele partiu, a senhora Jourdan-Ferrières correu ao telefone e pediu ligação para casa do doutor Rimbert. Ele saira, e a pobre senhora teve de esperar muito tempo primeiro que conseguisse falar-lhe.

Esperava-a uma decepção: o príncipe Isborsky não dera sinal de vida desde aquele dia em que procurara o médico.

Ao acaso ligou para a comunidade das religiosas enfermeiras, da qual dependia a irmã que tratava de Micaela.

Soube que a Superiora daquela casa indeferira o seu pedido; os regulamentos da Ordem não permitiam às Irmãs sair de França, e mademoiselle Jourdan-Ferrières prevenira que ia para Inglaterra.

A não ser esta informação, que realmente indicava a partida de Micaela para o estrangeiro, a mulher do milionário nada descobriu que lhe permitisse um resultado satisfatório.

Jourdan-Ferrières, pelo seu lado, em vão tentou encontrar a filha. Esta não aparecera na Avenida Marceau, nem visitara nenhuma amiga.

Muito desanimado, voltou a Deauville, para junto de sua mulher, depois de ter encarregado um detective de procurar a filha.

Apenas restava, pois, aos pais, aguardar os acontecimentos. Micaela prometera dar-lhes notícias; era impossível que lhes não escrevesse, mesmo se a sorte lhe fosse adversa.

 

Em Paris, foi facílimo a Micaela encontrar vestígios de Sacha. João Bernier, que continuava a viver na Pensão, disse-lhe que recebia, frequentemente, notícias de John, que exercia clínica em Londres, como estava combinado. Deu até a ler algumas cartas.

E, como Micaela lhe comunicasse todas as torturantes dúvidas que a tinham assaltado, ofereceu-se para a acompanhar à rua das Amendoeiras, a fim de verificar a ausência e a partida daquele a quem ela ia ali socorrer.

Muito comovida pela suspeita que tivera a respeito de Sacha e de Bernier, mostrou-se, a partir desse momento, muito afectuosa e confiante com este.

Foram, ambos, à Avenida de Ternes, a casa de Sacha, onde Micaela passou a noite, com a íntima satisfação de repousar sob o tecto conjugal. E, no dia seguinte, de manhã, sempre acompanhada pelo verdadeiro pai, foi visitar a capelinha de Neuilly, onde o velho padre lhe confirmou a regularidade, segundo o rito ortodoxo, do seu casamento religioso com o príncipe Isborsky.

Numa visita que fez também à baronesa Colensky, soube que esta, graças à amabilidade das religiosas, conseguira comunicar a seu primo notícias da doente.

A certeza de que Sacha nunca se desinteressara da sua sorte deu a Micaela absoluta confiança no futuro. E a sua fé numa próxima felicidade era tal, que, antes de embarcar em Diepa, não pôde resistir ao desejo de tranquilizar a madrasta, escrevendo-lhe um bilhete apenas com as seguintes palavras:

 

"Cheia de confiança, vou ter com meu marido... obrigada."

 

Não assinou, persuadida de que a senhora Jourdan-Ferrières compreenderia. E, para ter a certeza de que ela receberia a mensagem, meteu-a num sobrescrito, e escreveu a um canto a palavra: pessoal.

Este bilhete deu grande alegria à destinatária. Tinham-na assaltado tantas dúvidas, desde a partida da enteada, que precisava bem que a sossegassem. Teve, pois, um pensamento afectuoso e cheio de gratidão para quem parecia ter adivinhado as suas inquietações.

Uma palavra do lacónico bilhete surpreendeu-a um pouco: este título de meu marido, que Micaela dava ao homem a quem ia juntar-se, a madrasta pensava ser o príncipe Isborsky, parecia-lhe um pouco exagerado, mas, visto a fugitiva o preferir ao de noivo, é que provavelmente o julgara mais persuasivo para acalmar a sua inquietação.

A senhora Jourdan-Ferrières perguntava se devia mostrar a seu marido o bilhete. Eram sempre para recear os repentes daquele homem, demasiadamente impulsivo, mas a esposa via-o tão abatido, tão inquieto, que não teve coragem de o deixar assim por mais tempo.

- Ouve - disse-lhe ela -Dá-me a tua palavra de que não sairás de Deauville e de que não darás o menor passo para contrariar os projectos de Micaela, e dar-te-ei uma notícia que julgo te causará bastante alegria.

- Fala! - exclamou Jourdan-Ferrières, com um pálido sorriso de vencido -, Já não sinto desejo de obrigar minha filha a curvar-se à minha vontade: que case com aquele a quem ama. Contanto que me não privem da sua estima, é-me indiferente que seja pobre ou não tenha posição. A minha fortuna permite bem que lhe assegure o futuro.

- Bem! Então lê! -exclamou a mulher, com alegria, dando-lhe o bilhete.

O milionário, depois de ler, perguntou-lhe muito surpreendido:

- Mas porque te escreve? E porque te agradece?

A esposa começou a rir da partida que pregara ao marido.

- Porque... sabes... o cheque... de cinquenta mil francos... não perdi dinheiro ao jogo, dei-o a Micaela alguns dias antes de partir.

- Felizmente! Então a minha filha não está sem dinheiro!

E, muito comovido, abraçou sua mulher.

- És melhor do que eu, minha boa amiga. Mas para que inventaste essa perda ao jogo?

- Tive de arranjar um pretexto para obter bastante dinheiro, visto lho recusares a ela...

- As mulheres são levadas da breca! E pensaste logo nisso!

Esfregava as mãos, satisfeito com a volta que os acontecimentos iam levando.

- Agora já não estou inquieto. Desde que a pequena tem a algibeira quente, existem probabilidades de ter em breve boas notícias. Micaela é teimosa, e se perceber que o homem a quem ama a despreza, fará marcha atrás. Confio no seu orgulho.

A senhora Jourdan-Ferrières não respondeu. Tentava evocar uma figura alta, atlética... uns olhos azuis, sonhadores... cabeça um pouco altiva... e uma grande correcção, completando tudo isto.

Motorista, médico ou príncipe, não sabia ao certo o que supor! Durante semanas procurara todas as ocasiões de se informar sobre os Russos exilados em Paris e descobrira infortúnios, os quais, por serem principescos, não eram menos complexos.

E o belo e enigmático rosto de John prestava-se, nesse sentido, a todas as suposições.

 

Na grande sala de espera do hospital, Micaela sentara-se, a um canto, entre mães e filhos doentes e definhados, que esperavam a sua vez. Fatigada pela viagem e ainda enfraquecida pela grave doença, conservava-se imóvel, com a cabeça encostada à parede. Os olhos brilhavam-lhe nas faces pálidas com um fulgor febril; aquela espera, tão perto do fim desejado, sujeitava-lhe os nervos a uma prova bem dura.

Chegada na véspera, quisera ir logo ter com o marido, mas não o conseguira. O porteiro explicara-lhe que o doutor tinha uma casa no outro extremo do parque, que estava completamente mobilada e pronta a ser habitada, mas, por motivos só dele conhecidos, não residia lá. Mandara preparar um quarto no hospital e ali dormia.

Para o encontrar, como não era permitida a entrada de ninguém fora das horas de visita, aconselharam-na a voltar no dia seguinte à hora de consulta do doutor Isborsky. Era justamente o dia destinado às crianças e, metendo-se por entre as mães, facilmente poderia aproximar-se dele.

Micaela assim fizera. Um pouco desconcertada por se encontrar entre tantas infortunadas, que vinham procurar, gratuitamente, a saúde de seus filhos, conservou-se no seu lugar, pouco à vontade, mas curiosa perante esse espectáculo tão novo para ela.

De repente, estremeceu; o coração pareceu querer saltar-lhe do peito. Acabava de se abrir uma porta ao fundo da sala e a alta figura daquele a quem amava apareceu. Teve a coragem de não o chamar, de ficar imóvel. Dirigir-se-lhe-ia quando acabasse a consulta. É que, ao vê-lo, as mães correram para ele num ímpeto ansioso.

Todas o conheciam e, como uma homenagem, a sua confiança traduzia-se em palavras acolhedoras e em rostos felizes por poderem falar-lhe.

Micaela sentiu-o perscrutar com o olhar, que tudo envolvia, olhar profundo, penetrante, todos aqueles rostozinhos infantis devastados pela doença.

Em volta dele agrupavam-se seis internos e quatro enfermeiras. E de pé, no extremo da sala, examinando cada criança por sua vez, interrogando as mães, ou dando ordens às enfermeiras para levarem os doentinhos para outras salas, o médico começou pacientemente a consulta.

Todo entregue ao seu exame, não notara ainda a figura feminina, imóvel, no outro extremo da sala. Chegou, contudo, um momento em que os seus olhos se voltaram, maquinalmente, para aquele lado. Surpreendido, o seu olhar agudo deteve-se em Micaela; e empalideceu repentinamente.

Ela viu, fixos nos seus, aqueles olhos azuis; pareceu-lhe o mesmo olhar cuja dureza sentira cravar-se em si, em Paris, quando no Parque Monceau passeava com seu primo. Foi passageira a impressão. Se bem que muito pálido, o médico pudera conter-se.

Examinando um rapazito, a quem colocara a mão sobre o ombro, inclinou-se para uma enfermeira e disse-lhe algumas palavras em voz baixa. A loira e bonita miss fez um sinal afirmativo com a cabeça e momentos depois estava junto de Micaela.

- Queira ter a bondade de vir comigo, minha senhora. O doutor disse-me que a conduzisse ao seu gabinete.

Micaela sorriu. Mal chegara junto de Sacha, e já sentia de novo a sua incansável protecção envolvê-la.

Seguiu a enfermeira, mas, antes de sair da sala, voltou-se para ele e, de longe, dirigiu-lhe tímido e discreto sorriso, parecendo-lhe que o seu olhar se humanizava um pouco.

Dez minutos depois, o príncipe Isborsky, muito perturbado para continuar utilmente a sua consulta, foi ter com ela. No limiar da porta parou e examinou-a longamente. A sua experiência de médico descobriu logo os sinais sintomáticos da recente doença e da convalescença mal acabada.

- Minha querida, que doente estiveste! - disse-lhe com infinita piedade.

Micaela correu para ele.

- Meu adorado Sacha!

O príncipe abriu os braços, onde, palpitante como um passarinho medroso, Micaela se acolheu. E o grande pesar daquele homem fundiu-se numa suave censura:

- Como tardaste tanto em vir! Porque não me deste notícias?...

- Não me acuses nem me ralhes. Acaso se é responsável quando se está doente e louca? Vim logo que as forças me permitiram, meu Sacha querido...

- E vens por muito tempo? - perguntou ele, baixinho e a medo.

- Para toda a vida!

Então John apertou bem nos braços a frágil companheira que seria sua para sempre. E os seus lábios, unindo-se, recomeçaram a eterna canção do amor...

A profecia da feiticeira vermelha cumprira-se: a cura era uma ressurreição, e iam caminhar na vida, unidos, completamente felizes...

Quinze dias depois, Micaela escrevia a seu pai, já então mais sossegado, as seguintes linhas:

 

"Meu querido pai

"Tenho a grande felicidade de participar o meu casamento com o príncipe Alexandre Isborsky. A nossa união celebrou-se, religiosamente, em Paris, há três meses, numa igreja russa. A minha doença e todos os acontecimentos que se seguiram só agora nos permitiram cumprir as outras formalidades necessárias. Há três dias que sou legalmente mulher do homem que amo, e sou feliz. Meu marido é médico e dirige uma Casa de Saúde. Temos assegurada, por um vantajoso contrato de dez anos, uma vida desafogada. Sinto-me uma feliz princesinha, vivendo uma existência simples, junto de um marido carinhoso e bom. Se mais tarde quiseres esquecer que és rico, terei a maior alegria, querido paizinho, em te mostrar os encantos da minha nova vida.

"Aceita, bem como a mamã, os afectuosos beijos da tua filha que muito te quer, Micaela"

 

Depois de ler esta carta, o milionário ficou louco de alegria. Sua filha era princesa! Micaela sabia fazer as coisas!

Muito exaltado, dirigiu-se aos aposentos da esposa:

- Micaela escreveu-me! E não és capaz de imaginar a novidade que me dá! Vá, tenta adivinhar o título do marido?

A boa senhora sorriu. Esteve quase a pronunciar o nome do príncipe Isborsky, que lhe acudia aos lábios, mas lia-se tal contentamento no rosto do marido que não quis roubar-lhe o prazer de ser ele a dizê-lo.

- Calcula, minha amiga: Micaela é princesa! Casou com um médico, o príncipe Isborsky, que dirige uma Casa de Saúde, em Londres. É feliz e isso é o principal! Vamos ter com ela.

E, como sua mulher achasse que era cedo de mais, Jourdan-Ferrières exclamou:

- Vamos! Não ensombres a minha alegria. Há três semanas que estou privado do convívio da minha filha! E, além disso - acrescentou, um pouco misterioso -, desejo ver o que Micaela faz como princesa!... Conhecerá bem todos os deveres da sua posição?... Agora, que sou sogro de um príncipe, é preciso que ela gaste, principescamente, o meu dinheiro!

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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