UMA boa sombra... o lago entre os ramos... um cheiro a fetos... não se está mal, aqui - disse ela no magnífico silêncio do bosque.
E, assegurando-se, num último olhar, de que a paisagem condizia com a sua alma, deitou-se junto da crosta avermelhada dum pinheiro.
Queria ler a carta de Florêncio sem ninguém a aborrecê-la, ninguém a dizer-lhe: "De quem é essa carta, Isabel?", ninguém a espiar-lhe no rosto os sinais da sua alegria.
Pôs-se a decifrá-la, sozinha e com vagar, bebendo gota a gota as palavras traçadas pela caligrafia pequenina e direita. Não costumava romantizar o seu pensamento, aquele rapazinho. Não, era concentrado, mas recto, forte, o seu noivo.
- O meu noivo!
Isabel repetiu estas palavras por prazer, separando as sílabas que corriam docemente pelos lábios E, depois, cruzando os braços nus atrás da nuca, deixou-se embalar pelo Verão, com o sol a bater-lhe nas pálpebras cerradas.
Pensava na Châtaigneraie, donde viera a carta de Florêncio, aquela carta que começava, como todas as outras, pelo nome querido cuja propriedade ciosamente se reservava: "Minha Liseron".
A Châtaigneraie: uma verdadeira casa, uma casa antiga e todavia alegre, reluzente desde o vestíbulo de perfume a maçã até ao sótão cheio de coisas divertidas. Uma casa bem construída no meio do campo, uma casa donde se ouve o mugir das vacas, o coaxar das rãs, o piar da coruja, o cantar do galo; e, às vezes, nos dias de chuva, a trepidação de um comboio na ponte. Uma casa onde corre, conversa, ri e briga uma juventude impulsiva: Noelle, Catarina, Solange, Denise. E Florêncio. Enfim, todos os Morot-Léandre sob a presidência de uma avòzinha rechonchuda e jovial. Ah! Boas férias que Isabel Morlainville e o seu irmão João-Lucas lá tinham passado!
Mas, numa noite de Junho, a senhora Morlainville tomara o tom seco que há um tempo para cá adoptara - ninguém sabia porquê - quando se dirigia à enteada:
- Chegou o momento de pensar nas férias. Os
Morot-Léandre convidaram-te muito amàvelmente, como ao João-Lucas, a passá-las mais uma vez no Limousin. Mas o médico acha o teu pai muito nervoso - sabes bem como ele se cansa com a representação das suas peças - e aconselha-lhe uma longa estadia na montanha, à beira dum lago. Portanto vamos todos para os arredores de Annecy. Silêncio. A bela Jeanine impacienta-se.
- Vamos, Isabel, não te ponhas com esse ar estúpido. Diz qualquer coisa...
- Mãezinha... Estava tão convencida, tão convencida de que ia para a Châtaigneraie!
- Sim, eu bem sei. Decidiste isso sem mesmo consultar os teus pais. De há um ano para cá que andas a pôr os vestidos velhos de parte, dizendo: "Fica para a Châtaigneraie". Minha querida, renuncia a essa vida de selvagem que te encanta e me desagrada. Este Verão serás uma menina de sociedade; bem vestida, bem penteada, serás a menina Morlainville, filha do grande poeta e dramaturgo que se esconde muito mal sob o pseudônimo de Romain Villane!
- Suplico-te. Concede-me, ao menos, um pedacinho de Verão com os meus amigos.
- Os teus amigos... Falas das quatro raparigas ou do teu pretenso noivo? Escuta, minha Querida...
E a voz tornara-se meiga:
- Prefiro falar-te francamente. Não vos consideramos absolutamente nada como noivos a ti e ao Florêncio.
- Oh! Mãezinha, nós trocámos promessas.
- Ora, que grande coisa! Promessas de garotos não têm valor. Acredita, meu bebê, esquecer-te-á, esse Florêncio, quando conhecer outras raparigas mais destravadas do que a Isabel Morlainville. E tu, bonita como és, e com um bom dote, poderás fazer um casamento completamente diferente. Tem confiança na mãezinha: aceita uma separação passageira. Tudo se resolverá por bem. Compreendes, vocês andam a brincar aos Paulos e Virgínias neste romântico cenário. Isso não serve para nada. Tu já és excessivamente sentimental, uma rapariga de dezoito anos que faz versos...
- Antes de mais nada, não sabes se faço versos ou se deixo de os fazer.
Jeanine pôs-se a rir, um riso que quisera tornar gentil mas que exasperou a petiza.
- Claro que sei. Pois se eu os li...
Então Isabel fora chorar para a cozinha, junto de Marieta, a sua velha criada.
- Ao menos tu compreendes-me.
- Sim, meu amor - responderam os bons lábios cinzentos num rosto mal modelado. - Mas não te vás zangar. Não remedeia nada. E tu vales mais do que isso, minha querida.
Vales mais do que isso... Palavras simples e grandes. Apelo à alma. Isabel, apertada contra a blusa de lã que cheirava um bocadinho a cebola, acalmara-se lentamente. Pusera as mãos esguias naquela mão gasta pelo trabalho, atravessada por veias azuis e terminada por unhas quadradas, que faziam o horror da linda senhora Bastien, Fani, meia-irmã de Isabel. E a mão teve o mesmo poder apaziguante de outrora, quando o frágil bebé-Isabel, não podendo adormecer, suplicava a Marieta:
- Aperta-me a mão. Por muito tempo. Para sempre.
Mas já não era um bebê; e Marieta inquietava-se, sentindo subir até ela o perfume daquela juventude.
- "Estou velha... Estas minhas bronquites gastam-me. Quem lhe prenderá a mão, se eu morrer antes de ela encontrar um bom marido? Ah! Morrer não custaria nada se não se deixasse ninguém".
Então, apertava com mais força a linda cabeça de caracóis negros contra o peito.
Florêncio também se encolerizara, e uma cólera de grande estilo, quando soubera que a sua Liseron não partilharia com ele os dias felizes de férias. Mestre Florêncio, quando se zangava, não sabia medir o que dizia. Ah! Fora bem duro:
- Um pouco de persistência e teria conseguido... Mas você não se importa comigo para nada. Há-de esquecer-me depressa, descanse... Vai namoriscar rapazes idiotas... Vai tornar-se uma menina chique...
Aquilo acabara com lágrimas, um arrependimento tumultuoso e uma promessa ainda mais ardente de se amarem para sempre.
Tudo isto Isabel recordava estendida à sombra dos pinheiros de cujas agulhas se evolava um perfume quente.
"Nunca me poderei sentir feliz nesta terra. Irrita-me. Não a compreendo. As montanhas em frente sufocam-me. As pessoas vestem-se bem demais. Até eu... A mãezinha não pensa senão em exibir uma filha muito moderna. Oh! O meu vestido amarelo, já velho, como eu o preferia a este modelo jeune fille, como diz a costureira da mãezinha! Era um vestido para se ser feliz. Este, um vestido para se ser imbecil. vou tornar-me estúpida, aqui. Está tanto calor! Na Châtaigneraie, quando tínhamos calor, íamos para o pé da torrente. Refrescava, ouvir a água despenhar-se das rochas. E o riso dos Morot-Léandre também era fresco... Sufoco. Estou aborrecida. Não passo de um manequim bem vestido".
Num repente, como uma criança, adormeceu, mas uma criança com o corpo muito alto, desde o cabelo escuro apertado por um laço cor-de-folha até às sandálias de salto alto, que Jeanine escolhera para a "selvagem que de boa vontade andaria descalça por esses caminhos". E, porque não? Na Châtaigneraie, isso parecia natural!
Uma rapariga adormecida. Uma rapariga de branco... Clic... clic... A rapariga, que tinha um sono leve - um autêntico passarinho no ramo, no dizer de Marieta - abriu as pálpebras. Este barulho? Ergueu-se e tornou-se carmesim. Tinham-na fotografado, assim, a dormir! E fora um rapaz...
Arranjou o cabelo, puxou a saia para a tornar mais comprida. Ele disse alegremente:
- Quietinha!
Nova fotografia. Num salto, Isabel pôs-se de pé:
- Quem lhe deu licença de me fotografar?
- Ninguém. Nem era preciso. Fazia parte da paisagem. Não tome um ar tão zangado. Eu apresento-me: Hugo Lesoir, engenheiro. Creio que estamos no mesmo hotel: vi-a esta manhã, no jardim. Está cansada, não é verdade? Depois da viagem da noite passada? Foi por isso que adormeceu. Não imagina a beleza do quadro, você e este pinheiro!...
Belo rosto de traços regulares. tom mundano. Isabel lembrou-se de uma recomendação de sua irmã Estefânia:
- Não te faças parva quando estiveres com rapazes mais ou menos atrevidos. Se te mostrares intimidada, ainda é pior.
Portanto, esforçou-se por não se "fazer parva", e tomou um ar mundano para falar de banalidades, enquanto se dirigiam para o hotel.
- Demasiado cansada para continuar o passeio?
- perguntou ele, espiando as reacções daquela linda rapariguinha que parecia tão emotiva.
- É verdade, muito cansada - declarou, aborrecida por sentir que teria de o suportar até ao fim.
Ele ofereceu-lhe um cigarro que ela recusou. E teve um riso ligeiro:
- Já calculava. Permite que fume? Conversava bem. Isabel, que gostava de pessoas inteligentes, divertia-se- a seguir os seus pensamentos de homem feito. E como ela própria era incapaz de falar durante muito tempo de banalidades, readquiriu o seu gênero pessoal. Mas, de súbito, deteve-se numa curva do caminho:
- Estamos a subir em lugar de descer.
- Talvez. Aborrece-a, passear comigo? Ralham-Lhe?
- Ralharem-me? Claro que não. Mas não estou habituada, compreende, a passear com rapazes que não conheço.
- Compreendo muito bem. Mas aqui vai mudar de hábitos. Começa já hoje e comigo, Miss Morlainville.
- Sabe o meu nome? Já?...
- Soube-o esta manhã, por acaso. Será filha do poeta Romain Villanel? O autor da moda?
Quando Isabel falava do pai, tornava-se eloqüente. Hugo Lesoir ouviu, depois interrogou. A rapariga fez uma paragem para dizer alguns versos. Recitou-os bem. E viu que o olhar dele se tornava demasiado directo, audacioso: seria o perfume quente da poesia?... Corou.
- Não sei mais. Vamos para o hotel. Estou cansada.
Dócil, Hugo fez marcha atrás. Um breve sorriso tornava irônico o seu rosto pesado; mas ela não viu o sorriso. Ele não falava e ela agradecia-lho. Olhava a água azul do lago através dos ramos das árvores: impossível negar a beleza da paisagem.
Numa curva, Hugo exclamou:
- Olhe, a minha irmã. Está a vê-la, além, ao sol? Olá!
com o andar balançado da moda, uma rapariga aproximou-se. Tinha a pele bronzeada e uns olhos pálidos. Hugo apresentou-as:
- Minha irmã Faustina. A menina Morlainville.
A mão morena de unhas vermelho-escuro apertou a mão branca de Isabel. E seguiram caminho os três.
- "É chique demais" - notou Isabel. - "É horrível que haja tanta gente assim no hotel. A mãezinha vai insistir para que tome o mesmo gênero. Mas não há perigo: o Florêncio tem horror a tudo isto".
Pensar em Florêncio devolveu-lhe a sua felicidade equilibrada, enquanto seguia entre dois desconhecidos por uma estrada desconhecida. Sentiu-se menos em exílio.
Assim chegaram ao parque do hotel. Isabel parou e, gentilmente:
- Rasgue a película daquela fotografia. Peço-lhe.
- Nunca se pede um sacrifício desses a um fotógrafo - replicou Hugo, divertido.
- De que se trata? - perguntou Faustina. Ele teve um riso breve.
-Amanhã verás. Uma fotografia estupenda. Não, não destruirei a película. Se quiser, dou-lha.
- Sem guardar nenhuma cópia?
- Tem cada uma! Quando nos encontraremos de novo, diga? Há um óptimo tênis e há um pingue-pongue.
Ambos se afastaram. Isabel sentiu-se de novo expatriada, procurou o bem-estar, a poesia, a felicidade, enfim. Mas não encontrou.
Então onde se meteram os outros? O paizinho, a mãezinha, o João-Lucas? O Sol desce depressa atrás da montanha. Em breve ela o engolirá. Já não haverá luz. Tudo se tornará frio... Quando o Sol se punha, na Châtaigneraie, a erva ainda ficava quente, os perfumes corriam. Davam as mãos e iam para casa a cantar uma moda do Limousin.
com efeito, num repente, o jardim encheu-se de sombra. A uma janela assomou a cabeça loira da senhora Morlainville.
- Isabel! Sobe. Tens que te vestir para o jantar.
- "Pois sim" - murmurou ela sem que Jeanine a pudesse ouvir. - "Eu fico aqui. E não mudo de vestido".
- Isabel! - repetiu Jeanine. Preciso de ti.
Anda cá! Isabel nunca resistia àquelas palavras: preciso de ti. Atravessou o jardim de maravilhosos canteiros, o vestíbulo onde se amontoavam os ociosos nas suas poltronas de couro; tomou o elevador e suspirou:
- Um elevador em férias!
A madrasta esperava-a com o cabelo solto.
- És capaz de me pentear? Tens tanto jeito!
Penteou-a e muito bem; e Jeanine olhava-se no espelho. Mas desviando um instante os grandes olhos negros e lindos para o reflexo do rosto da petiza, comoveu-se:
- Choras, filhinha? Porquê? Sempre os Morot-Léandre? Não estás a ser razoável. Tenho a certeza que te vais divertir muito, aqui. Há cá gente muito simpática.
Como, apesar de tudo, aquela mulher era Mãe, a rapariga deixou-se embalar nos seus joelhos e poisou a cabeça no ombro redondo e macio, de uma frescura perfumada.
- Pobre bebê - dizia Jeanine, acariciando a face molhada.
- "Quem me dera ser ainda um bebê", pensava Isabel.
Mas murmurou, tentando rir:
- Sou estúpida, mãezinha. É o cansaço da viagem, compreendes.
JUSTINA LESOIR, estendida no jardim, soergueu-se para olhar, mancha cor-de-rosa no azul do lago, aquela esguia silhueta que se afastava num passo dançante.
- Hugo... vês, além, a petiza Morlainville? Adora passear sozinha. "Sonhos de passeante solitário". Ela arma em ingênua, mas estou convencida que é namoradeira.
- É possível... Que é que isso me interessa? replicou Hugo.
- Não é tanto assim. Um lindo dote, meu velho.
- Estás a irritar-me, Faustina. Não tenho vontade nenhuma de me casar. É muito difícil a vida, neste mundo em armas.
- Ora! Está-se sempre a falar na guerra e ela nunca vem. Alguma vez se há-de decidir. Porque não com esta? Estou convencida de que a mãe e a senhora Morlainville. que já se tornaram amigas, uniriam os filhos de boa vontade.
- A Isabel é apenas enteada da senhora Morlainville, disseram-me no tênis.
-Pois é, é filha do poeta, viúvo duma mulher bastante rica. Tornou a casar com esta linda Jeanine, também viúva, com duas filhas: uma delas casou com um pintor sem vintém, o Sílvio Delorme; a outra, vamos tê-la entre nós com o seu bebê, mas sem o marido. Ele fica em Paris a ganhar o dinheiro, que a mulher derrete brilhantemente.
- Mas que noticiário!
- É preciso ser-se prático, meu amigo. Não quero que faças um casamento idiota, que traria embaraços ao meu. A miúda Morlainville não é nada mal: uma morena de olhos azuis é sempre engraçada. E tem uma bonita figura. Óptima situação com a sua fortuna pessoal, a celebridade do pai. Mas deve amar ternamente algum jovem... No seu olhar há amor. Não vás apaixonar-te por esta ingênua, antes de lhe sondares o coração. A não ser que Vossa Excelência esteja seguro de que o seu encanto é capaz de apagar a imagem sentimental que aqueles olhos azuis procuram ao longe. Deve ser algum poeta...
- Não. Há-de ser um escuteiro com a consciência repuxada por quatro alfinetes.
- Ou um hereje que ela quer converter.
-Enganas-te redondamente, Faustina. Há agora uma juventude estranha que põe a virtude acima de tudo. Casam-se entre militantes do mesmo ideal. A petiza Morlainville, que pretendes namoradeira e que talvez o seja sem mesmo dar por isso, é absolutamente o gênero que te apontei.
- Então, meu velho, não é para ti. As mães de família perdem o seu tempo. És um bonito rapaz e inteligente. Mas não tens nada de tradicionalista e ainda menos de moderno, segundo esse modernismo que definiste. Olha, aí estás tu vexado só com a idéia de que podes desagradar a uma rapariga... Tenta primeiro a tua sorte. Tenta afastar o escuteiro de consciência repuxada por quatro alfinetes.
- Sim, não é desengraçado, como desporto de férias - disse ele espreguiçando-se. - Obrigado pelos teus conselhos... Onde vamos esta tarde?
Puseram-se a fazer projectos, mas sem conseguir encontrar nada que satisfizesse os seus dois egoísmos Por isso cada um decidiu associar-se a um "grupo", enquanto a "petiza Morlainville", só, deliciosamente só, ferozmente só, passeava de barco no lago.
- Uma sorte, saber remar! Graças ao Florêncio que me ensinou tão bem, no ano passado. Zangava-se quando eu tinha medo. Adoro a água, como o Florêncio adora o ar. A água fala, canta, embala, separa-nos de tudo o que nos aborrece, de tudo o que nos aprisiona. Obrigada, Florêncio, por me teres ensinado a amar a água! Quando casarmos, ensinar-me-ás a amar tudo o que amas.
Largou o remo para enviar, na ponta dos dedos, um beijo para este.
- Chegarão ao seu destino os beijos que enviamos? Porque não? A música chega sempre...
E depois sacudiu a cabeça para libertar os caracóis escuros do laço imposto por Jeanine, e pôs-se a cantar.
A água do lago, tão azul, tinha manchas escuras, causadas pelas nuvens, as lindas nuvens de Verão, irisadas de alegria. Ao longe as montanhas davam um cenário romântico a esse lago de suaves contornos, orlados de flores. Isabel reparou que começava a amar a região saboiana.
- Mas só gosto quando estou sozinha. Ou com o paizinho, o que é quase a mesma coisa. É esquisito... o paizinho, que se tinha tornado um senhor chique, voltou a ser selvagem. Porquê? Isso irrita a Jeanine, e a mim encanta-me. Não gosto que ele se pareça com toda a gente. Desde manhãzinha que partiu de mochila às costas, sem prevenir ninguém. A Jeanine estava furiosa. Compreende-se. Por isso o João-Lucas me fez sinal: "Desaparece, minha rica, a mãezinha vai levar-nos a tomar chá a Annecy. Eu, por mim, não estou para isso. Tu também não". E não sei onde o rapazinho se meteu. E aqui estou eu tranqüila, magnificamente tranqüila. Mesmo assim... Pobre Jeanine, pobre mãezinha, devia talvez ter ficado a fazer-lhe companhia? Sou uma egoísta detestável. Mas não gosto daquele grupo Lesoir com quem a mãezinha passa todo o tempo. O Florêncio não gostaria do Hugo, nem da Faustina... Florêncio. Florêncio, meu amigo!
com um sorriso, curvou-se para remar como ele lhe ensinara. A água fazia um barulho de seda amachucada. O ar corria fresco nos seus braços, que o esforço tornava húmidos. Como a paisagem era azul! Isabel, que viera contra a vontade e decidida a resistir ao encanto, já não podia lutar. Ergueu a cabeça para melhor ver, e, com um suspiro de bem-estar e de saudade, recordou um conselho que lhe dera um outro mestre de pensar, a frágil sr. a D. Inês, que fora a sua professora nos últimos anos de estudo.
- "A sr.a D. Inês disse-me um dia: "Tu, Isabel, se deixares de amar, acima de tudo, a vida grande, bela, descerás muito depressa. Não existe o meio termo... Vai-te ser difícil manteres-te no plano superior com uma natureza sensível e tonalizada em excesso. Mas o ideal porque se luta tem tanta força! Não tenhas medo de lutar". Todos me repetem: "Não tenhas medo". Quer seja para remar, quer seja para deslizar entre os arames farpados da vida moral, as pessoas verdadeiramente minhas amigas sabem bem que não passo duma rapariguinha fraca, um "liseron". E ao mesmo tempo querem ver-me forte. Justamente porque gostam verdadeiramente de mim. Se eu escutasse a Jeanine! Uma boneca, era o que eu seria. Muito pior do que a Faustina, porque a Faustina tem uma coragem que eu não tenho, nem nunca terei.
De súbito, teve medo da sua fraqueza. E da fragilidade do barco no meio de toda aquela água. O grande barco que faz a travessia aproximava-se dela. A sua massa pesada provocava uma ondulação excessiva. Debruçados no convés, os passageiros contemplavam a rapariga assim sacudida e achavam-na imprudente. O coração de Isabel batia com força, soerguendo a blusa de linho cor-de-rosa, e os seus lábios murmuravam o nome de Florêncio. Mas estava longe, tão longe, o Florêncio! E a sua Liseron lutava sozinha! As ondas faziam dançar o barco e salpicavam Isabel. Oh! Poderia aguentar-se até que o "Saboia" se afastasse? Havia com certeza uma manobra a fazer, mas qual?
- Não tenha medo! - gritou uma voz misturada com o tic-tac dum motor. - Experimente voltar o barco em sentido contrário.
Uma vedeta chegava com muita gente; alguém saltou lesto para o barco, terminou a difícil manobra e tomou os remos. Era Hugo Lesoir. Ah! como lhe soube bem aquela presença quase amiga!
- Isto vai já acalmar - disse ele gentilmente. Pronto... Já passou tudo. Mas que idéia foi essa de vir meter-se no caminho desta arca de Noé? É então muito valente?
-Não sou mesmo nada, infelizmente!... Mas faço por sê-lo, porque acho estúpido confessar que se tem medo.
- Olhe, se lhe fizer bem, pode chorar. Eu continuo a remar, sim? E vamos dar um passeio. Mereço bem um passeiozinho consigo, não acha?
Pensando no Florêncio, apeteceu-lhe recusar. Mas com franqueza, não seria correcto. E, além disso, depois de termos sido sacudidos por um perigo, é tão bom que uns braços seguros e fortes tomem a direcção de tudo! Teve um sorriso hesitante para dizer:
- Certamente.
E o rapaz pensou: "Que lindo sorriso!" Assim, enquanto conduzia o barco, espreitava aquele sorriso impregnado de não sei que terna graça, sorriso por que ansiava o pobre Florêncio, lá longe, perguntando a si próprio "que imbecis recolheriam a carícia daqueles olhos que ele queria reservar só para si...
Àquela mesma hora, Florêncio Morot-Léandre, encostado a um castanheiro, com os braços nus cruzados sobre a camisa de linho, pensava na noiva. Onde estaria? com quem? As cartas que vinham da Saboia eram deliciosas. Mas tornavam-no ainda mais sequioso da sua presença. E depois, tinha ciúmes. Sentimento brutal que a sua consciência francamente reprovava, e contra o qual lutava, trabalhando nos campos, sendo bom, amigo, justo com a gente do campo, complacente com a família.
Mas quando as irmãs, traquinas, se atreviam a fazer alguma alusão às "penas de Florêncio", ele perdia a cabeça e, depois duma cena de grande pancadaria, vinham os remorsos veementes; alma humilhada sucumbindo ao peso da sua miséria, até que o olhar interior ousasse erguer-se para o céu pedindo força para vencer.
Férias duras, que a reprovação no Técnico ainda tornara mais duras. Reprovação que previra porque trabalhou sem gosto, só pensando na aviação. Malogro que o pai acabara de criticar asperamente:
- Então, não passas dum inútil, meu rapaz? Eu entrei logo à primeira. É verdade que não perseguia quimeras. Concentrava a vontade no fim que me propunha alcançar.
- Pai - respondeu Florêncio, olhos nos olhos desse Pai que admirava, embora temesse - nunca serei um bom engenheiro. Deixe-me fazer a admissão à escola de Aeronáutica.
- Nunca. Dei-te a escolher quatro ou cinco cursos. Mas esse não.
Então Florêncio fugira para o bosque, porque não queria que o vissem chorar como um garoto. Ah! Se a Isabel, tão terna, tão querida, ali estivesse!
- Liseron, Liseron - repetia, batendo com o pé num montinho de terra - ter-me-ias consolado, tu! Mas estás longe, tão longe, num mundo diferente, e tenho tanto medo que te afastem de mim. Sem aviação e sem ti, que querem que me torne? Todavia, há coisas, coisas, em mim! Há amor. E não somente para ti, minha querida, mas para o País, para o Ideal. Existe amor. Existe, talvez, heroísmo... E querem que me torne um burguês medíocre! Acabo por morrer. Não, foi estúpido o que disse: não se morre de desgosto quando se é da construção dum Florêncio Morot-Léandre: um metro e setenta e cinco, setenta quilos, uns pulmões e coração magníficos. Então!... Pois bem, há maneiras de morrer sem se matar. Farei como o Padre Foucauld. desapareço. O pai não dirá que não. E a Liseron casar-se-á com quem quiser.
Como era ainda muito criança, escondeu o rosto no braço nu para chorar a triste sorte do "pobre Florêncio".
Lágrimas ardentes. Inúteis? Não. Se agimos heroicamente aos trinta anos não será porque chorámos lágrimas assim aos vinte?
E STOU cheia de fome! - exclamou Isabel.
alegremente. - Se almoçássemos? Paizinho, mostra cá o farnel.
Desde o nascer do Sol que subiam lentamente as veredas da montanha. Ávidos de ar puro e de solidão, João Morlainville e a filha sentaram-se à beira duma torrente, cujas vagas possantes e breves o Sol adiamantava.
A mão de João, aquela mão esguia mas queimada, rebuscou na mochila escura e tirou dela os elementos duma refeição rude. Isabel soltava gritos de alegria:
- Pão escuro! Chouriço! Queijo! Fruta! Que bom que vai ser! Já estou farta dos molhos complicados que a dona do hotel inventa. E tu, paizinho?
- Eu? Não seria capaz de o dizer diante da mãezinha, mas começo a ter horror aos cogumelos e à mayonnaise. Estás a rir? Olha só para este petisco campesino. minha filha!
Isabel não podia estar contente sem dançar. Apesar dos sapatos ferrados e das meias de lã, executou passo muito bonito.
- Ninfazinha! - murmurou João. semicerrando as pálpebras para guardar ainda a imagem da rapariguinha à beira da água. Já se formavam versos no seu espírito. A criança, poetisa em embrião, adivinhou-o.
- Proíbo-te que penses em versos - gritou. Hoje não és Romain Villanel, és o paizinho. Só, e mais nada, estás a ouvir? O paizinho. E eu, a tua filhinha selvagem, mal arranjada, mal penteada, sem pó de arroz na ponta do nariz, mas contente, tão contente!
com um feto na mão, improvisou ainda alguns passos de dança, e depois atirou-se para a relva, ao lado do pai, e passou-lhe o braço em volta do pescoço:
- Dá-me um beijo. Já. Outro! Paizinho, é o primeiro dia feliz destas férias!
Ele não perguntou a razão por que os outros o não tinham sido: adivinhava-a.
Mas fora de comum acordo com o senhor Morot-Léandre que trouxera a filha para longe daquele que ela considerava seu noivo. O pai de Florêncio continuava a opor-se a qualquer projecto de casamento entre gente tão nova, e não admitia que o filho preparasse o futuro sentimental antes do profissional. Por outro lado, Jeanine não gostava dos Morot-Léandre, cuja simplicidade de gostos e de vida a desconcertava e aborrecia. Portanto, a separação afigurava-se uma medida sensata. Certamente.
Mas o senhor Morlainville amava demasiado Isabel para que a pudesse ver triste sem sofrer ele próprio. Assim, não perguntou: "Por que razão não foram felizes os outros dias? ". Mas, acariciando as bochechinhas arredondadas que o Sol doirava como doira os frutos, perguntou-lhe:
- Por que razão és tão feliz este dia, filhinha? Então os olhos dela encontraram os seus, cheios duma alegria azul:
- Porque estamos os dois, paizinho.
Que delicioso, sentir no ombro a cabeça dum filho! Estiveram calados alguns instantes, escutando a torrente precipitando-se de rocha em rocha. E, depois, a voz da rapariga associou-lhe o seu murmúrio lento:
- Só os dois... Sem ninguém a ouvir o que dizemos... Mal vestidos, como vagabundos... Adoro estar assim... Vamos comer pão, queijo, maçãs... sem jazz, sem telefonia, só o ruído da floresta. Sem má língua, sem namoricos, palavras ocas, cheias de vento... Nós dois. E Deus que, certamente, vagueia na montanha. Porque eu sinto-O pertinho. E amo-O tanto! Tu também, diz?
João hesitou. Sentia um nó na garganta. Amaria Deus, como aquela criança? Ah! As paixões humanas - amor, glória - tinham feito forte concorrência àquele outro Amor. Mas, de súbito, pensou em Pedro, o pecador, convidado também a dizer se amava e que, apesar da sua miséria respondeu: "Sim". E também ele respondeu:
- Sim.
E a filha beijou-o, porque esperava aquela resposta.
- Paizinho, - continuou, espreguiçando-se estás farto de cogumelos e de mayonnaise, e das pessoas do hotel, não estás farto, também? Têm um ar tão estúpido, enquanto bocejam no vestíbulo depois do almoço! Acreditas que exista alguma idéia a fundo naquelas cabeças? Eu acho que estão vazias.
- Toda a gente tem, pelo menos, uma idéia na cabeça, intransigente criança. É por isso que até os mais medíocres podem tornar-se heróis de romance, de comédia, de filme. Compreendes?
- Compreendo, sr. Intelectual... Mas vejamos um exemplo: a família Lesoir inspirar-te-ia uma peça teatral?
- Porque não? Os pais são muito convencionais, mas os filhos nunca bocejam no vestíbulo, depois do almoço, e estou convencido que ambos têm idéias formadas. De resto, alguém sabe o que os novos têm dentro de si? Alguns prometem muito e no fim tornam-se medíocres. Outros, erguem vôo sem que ninguém espere.
- Paizinho, que serei eu. mais tarde? Às vezes sinto-me tão repartida. O céu e a terra a puxarem cada um para seu lado. Achas que tenho asas para erguer vôo, como tu dizes?
- Tens asas... Mas quebram-se, as asas. Gastam-se. Toma cuidado com os maus ventos. E tem mais cuidado ainda com os cerceadores de asas.
Isabel pensou nos cerceadores de asas que já tinham passado por ela: o actor Cláudio Ariel, o melhor intérprete das obras de seu pai; a amiga Odília, céptica e revoltada; Estefânia, a sua irmã mais velha; e... era triste verificá-lo, a sua madrasta. Envergonhou-se deste pensamento, ali, tão perto do homem que amava Jeanine apaixonadamente. E, todavia, não fora ela, também para ele, uma cerceadora de asas? Durante algum tempo os versos de Romain Villanel haviam perdido parte da sua beleza. Isabel lembrava-se daquele comentário severo dum crítico: "O sr. Romain Villanel era maior quando se inspirava em temas dolorosos ou, pelo menos, melancólicos quando escrevia para si próprio, ignorado de todos. A glória e a felicidade arrancarão a chama a um poeta?"
Aquela falha coincidira com a fase de grande mundanismo do casal Morlainville, convidado para toda a parte, festejado, admirado. E depois - coisa estranha! - João parecia ter-se enfastiado do mundo e tornara-se triste. E, de novo, os versos se revestiram de majestade fremente.
Isabel não podia perguntar: "Porque estás triste, meu poeta, meu pai?" Mas entre os seus corações não era preciso falar para compreender.
Repetiu somente:
- Os cerceadores de asas... Os cerceadores de asas...
E esta palavra "asas" evocou a recordação de Florêncio. Suspirou. Seria tão fácil casá-los já! Ajudá-lo-ia a trabalhar em lugar de o prender, ao seu Florêncio. Tentou dizer isto, mas as palavras ficaram-lhe na garganta. Então pôs-se de pé.
- Sou uma estúpida... Se almoçássemos, paizinho?
E beberam a água gelada da torrente.
A ascensão fora rude. Depois do almoço, Isabel adormeceu. Mas o pai resistia ao cansaço visto que todas as manhãs - com grande aborrecimento de Jeanine - partia, cajado na mão. Tapou a rapariguinha com o seu próprio casaco e ficou só, único ser consciente no meio daquele silêncio de altitude.
Então o rosto impassível do homem que dantes alcunhavam de "homem carrancudo" e a quem agora a filha dizia: "Tens um ar chique, paizinho", aquele rosto despojou-se da sua máscara e tornou-se um pobre rosto enrugado, de olhos encovados, de lábios caídos. E o homem carrancudo, o homem muito chique, o marido apaixonado duma Jeanine excessivamente bela, pôs-se à escuta, querendo ver se a garotinha falara verdade, e se Deus errava na montanha em busca das almas.
Regressaram tarde. João-Lucas, furioso por terem partido sem ele, arreliara a mãe. Assim, Jeanine repreendeu os alpinistas por terem feito "caixinha", por serem egoístas, selvagens...
- Isabel, vai tomar banho e leva o vestido de folhos para o jantar. E põe um bocadinho de pó de arroz, por amor de Deus. Tens o nariz vermelho. Um golpe de sol. é claro. Ah! Estás linda! Mas sabes perfeitamente que detesto esse gênero. Isabel afastou-se: o cansaço fazia-a arrastar os sapatos forrados. Jeanine julgou que era amuo e disse ao marido:
- Esta pequena está a tornar-se insuportável. Dás-lhe tanto mimo. Eu e o João-Lucas nada contamos para ti. Só estás contente ao pé dela... Ah! Gostava bem de a casar o mais depressa possível... Porque não a havemos de casar com o Hugo Lesóir?
- Estás doida, Jeanine! - exclamou ele, trocando de má vontade o seu fato de alpinista pêlo smoking.
- Doida? Muito ajuizada, até! Hugo Lesoir tem verdadeiras qualidades e uma situação brilhante.
- É pesado, materialista, sem imaginação. Um perfil de imperador romano, começa a ser barrigudo; tem uma conversa árida... De que é que estás a rir?
- De ti, um homem sério que só repara nas aparências. Meu pobre poeta, desce das tuas nuvens e confessa que aquele rapaz, bonito, inteligente, robusto, moderno, é precisamente o que convém a um serzinho nervoso e frágil como a tua filha.
- Frágil? Nervoso? Pelo contrário, sólido e perfeitamente equilibrado sob a sua aparência delicada.
- Como é natural, não admites a mínima sombra na petiza. Emprestas-lhe todas as perfeições, até mesmo aquelas que nunca possuirá.
Então ele calou-se fazendo cuidadosamente o laço negro da gravata.
Estar-se-ia tornando, Jeanine, invejosa da juventude radiante de Isabel e ciumenta do terno amor que unia o pai à filha? Notava-se que a petiza a irritava.
Isabel, apesar do cansaço, estava encantadora quando desceu para jantar. A transparência dos folhos, dançava em torno do seu corpo delicado. No caminho encontrou o irmão, e fez as pazes com aquele rapaz, que não sabia estar amuado muito tempo; Ela explicou gentilmente:
- Meu pobre pequeno: estavas a dormir como um prego, quando nos fomos embora. Mesmo que te tivesse acordado não terias saído dos lençóis a tempo.
- É tão bom dormir, sem termos que nos preocupar com a hora de entrada no liceu! Tu é que tens sorte por poderes passar sem dormir. És uma pessoa esquisita: podes passar sem uma data de coisas, e no entanto gostas delas. Ouve cá... Como estava furioso com a minha irmã, roubei-lhe a carta do -Florêncio.
-Infame!
-Fazia tenções de só ta dar amanhã. Mas contigo é impossível guardar rancor. Olha, aqui a tens. com uma condição, prometes?
- Lá isso não. meu amigo; sem saber o que é, não prometo nada.
. Então, "adeus, carta", linda dama. vou rasgá-la em mil bocadinhos e atirá-los ao lago.
- Prometo-te! Prometo-te! - gritou Isabel aterrada.
- Bem. Tens de conseguir que o paizinho me leve, da próxima vez, à montanha. É formidável a independência daquele senhor! Sempre sozinho lá em cima. Já que te levou, também hei-de ir. Oh! Não tenho ilusões a respeito dos encantos da minha companhia, comparada à tua. Mas quando a mãezinha diz que tu o monopolizas, tem um bocadinho de razão.
- A mãezinha diz isso?
João-Lucas, bom rapazinho, quis emendar a sua indiscrição:
- Ora! Ela disse isso como podia ter dito outra coisa. Maça-a isto de ver o paizinho fugir, todos os dias, para a montanha. Não tomes esse ar infeliz, minha pomba. A mãezinha nunca está zangada durante muito tempo. Depois de ter dançado hoje à noite, tudo esquecerá. Aqui tens a preciosa missiva. Foi a Noelle quem escreveu o endereço. Gostava de saber o que terão vocês para contar tão amiúde.
Isabel guardou a carta, e os folhos desceram a escada evolando o perfume de que ela tanto gostava, "o amanhecer dum lindo dia", escolhido pela Rosa, a caixeirinha de perfumaria, a amiga de Isabel: "Porque se parece consigo, Isabel; parece-se com a sua juventude..."
Os pais já estavam à mesa, Jeanine muito loira e muito bonita.
- Atrasados, os meninos - disse ela, mas amavelmente.
Numa vista de olhos inspeccionou a toilete da enteada.
- Não estás mal. É bonito o teu vestido. Mas tens uma madeixa de cabelo fora do lugar. Não estás muito cansada? O teu pai julga as tuas forças iguais às dele.
- É claro que não posso recomeçar amanhã respondeu Isabel, prendendo a madeixa. - Paizinho, devias levar lá o João-Lucas. Porque não amanhã? Até podem subir mais; é um ás para trepar, ele.
- Fica assente meu rapaz - disse o pai. Mas arranja-te a horas.
João-Lucas deitou um olhar contente à irmã que sorriu, sentindo estalar a carta que viera do Limousin e lhe daria tanto prazer, quando a lesse.
À noite dançou-se. Isabel caía de sono, mas Jeanine, que vira Hugo entre os pares, disse-lhe:
- Dormirás mais tarde. Tanto pior para ti, pequena vagabunda da montanha.
Naturalmente, Hugo convidou-a logo.
Ela só gostava de dançar com o Florêncio: não seria ele o único a ter o direito de a guiar assim, para formar aquela harmonia de passos? Mas como dizer: "Não, não danço"?
Assim, deixou-se levar, primeiro contra a vontade, e, depois, sentiu prazer: gostava tanto de dançar, aquela Liseron flexível e leve! Mas era aborrecido ter a idéia fixa do descontentamento de Florêncio, se a visse...
E suspirou. E o Hugo logo a perguntar:
- Aborrecimento? Cansaço? Não suporta dançar comigo.
Isabel tinha horror a desgostar quem quer que fosse. Sorriu, olhando-o, e. uma vez mais, ele achou delicioso o sorriso e a criança. Dizer-lho? Ofender-se-ia. Disse simplesmente:
- Você dança... é maravilhoso!
E ela ficou contente. Porque gostava - um pouco em demasia - de agradar. Sorriu outra vez.
Jeanine que dançava também, com uma graça lenta de mulher, reparou naquele sorriso alegre.
- "Tudo se arranjará" - pensou.
Mas João sofria atrozmente ao ver dançar a mulher e a filha. Queria levá-las lá acima, onde tudo é tão grande, tão simples e puro.
NÃO trepas nada mal, para rapariga - confessou João-Lucas. - Mas passa para cá a tua mochila, minha pobre Isabel. És tão magra que me dá a idéia que ela te vai partir ao meio. Paramos um bocadinho?
- És muito amável - disse Isabel desembaraçando-se do fardo. - Mas tens que ma dar antes de lá chegarmos, se não a Teresa põe-se a fazer troça de mim. Não há nada que canse aquela Teresa, nada que lhe meta medo: quer se trate de trepar, de nadar, de voar...
- A Teresa é a Teresa e a Isabel é a Isabel. Danças e patinas melhor do que ela e acho-as muito bem a ambas, cada uma no seu gênero. Mas a Fani, a Fani! Oh! Que insuportável! Sabes, tenho a certeza que nos escondem qualquer coisa a respeito dela. Os pais cochicham, tomam ares trágicos.
- Julguei que viesse cá ter connosco...
- Partilhar da vida de família? Não há perigo. A linda senhora Bastien prefere os banhos de sol em Juan-les-Pins. Coitado do velho Paulo, não tem uma mulher muito de confiar.
- Mas, e a pequenita? Não vem para cá? João-Lucas respondeu gravemente, escavando a terra com a ponta da sua bengala ferrada:
- Se a miúda a maçar, a Fani despacha-a. E estou convencido que já começa a maçá-la. Sim, minha querida. Por mais que abanes a cabeça como um manipanso chinês, a Estefânia acha a criança um amor, com a condição que não lhe dê que fazer.
- Ela que ma traga! - exclamou Isabel. - Coitadinha da Edite, eu passearei com ela, dar-lhe-ei banho, deito-a no meu quarto... Porque é que estás a rir dessa maneira?
- Estou a rebentar de riso! Oh! Mana ingênua, tu julgas que a mãezinha deixaria que armasses em aia de meninos, neste palácio? Desilude-te: não convinha nada aos seus projectos!
- Que projectos? Fala. Acaba com isso e fala, João-Lucas!
- Que "Vossa Majestade" não se encolerize. Mas antes considere que a senhora Morlainville veria com muito bons olhos o noivado da menina Isabel Morlainville com o senhor Hugo Lesoir, engenheiro diplomado em Artes e Manufacturas e provido duma brilhante situação, bem como duma família chique.
Isabel levantou-se dum salto e, os braços nus cruzados sobre a blusa de linho grosseiro:
- A Isabel Morlainville nunca casará com Hugo Lesoir. Olha para o meu dedo, para este dedo.
- É igual a todos os outros.
- Não sejas estúpido. Este dedo está à espera dum anel, belo ou simples, pouco importa. Mas se não for o Florêncio a pô-lo aqui, não será mais ninguém, estás a ouvir?
- E se os pais disserem: "nada de Florêncio"?
- Fico solteira. Não me há-de faltar que fazer.
- Pobre cordeirinho, não tens queda para isso. Serás devorada pelo lobo Lesoir.
- Ah! Julgas isso? Lá porque sou uma pena, tenho os olhos azuis e por qualquer coisinha me ponho a chorar, julgam que eu não sei querer? Gosto do Florêncio; esperarei o tempo que for preciso e serei sua mulher.
- Bravo! - gritou João-Lucas. - Queria experimentar-te. Aquele Hugo não te larga, a ponto de eu ter medo pelo amigo Florêncio. Dá cá um beijo. E fica-te com esta: o paizinho é pelo Florêncio. Há só uma coisa: não quer contrariar a mãezinha.
- Sabes tudo, tu. Mas como é que consegues?
- Vejo. Ouço. Não sonho, como a minha irmã, vivo... Vamos andando? Onde eles se haviam de ir empoleirar, o Sílvio e a Teresa!
Isabel, antes de partir, contemplou a beleza da paisagem, e foi para ela um estímulo. Em baixo, lá muito longe, a claridade azul do lago donde vinham, e, lá ao cimo, a massa escura dos pinheiros onde ia ter o caminho a pique que trilhavam.
- Têm muita razão em se empoleirarem - declarou ela. - Quando se ama, não há necessidade do mundo e dos seus prazeres.
- Oh! Como falas bem! Uma noiva romântica: Adélia ou Elvira?
Isabel deteve-se, nada satisfeita:
- Porque é que estás sempre a fazer troça de mim?
- Mana do meu coração, não estou a troçar, estou radiante porque quero o Florêncio para cunhado e não o Lesoir. Somente, sabe bem arreliar-te um bocadinho, hoje, que somos selvagens. Maravilhoso, o estado de selvagem, não achas?
- Maravilhoso... Faz lembrar a Châtaigneraie.
Continuaram a subida em silêncio, atentos ao chocalhar lento de um rebanho, ao ruído impetuoso da água correndo pelas rochas, à música do ar deslocado por uma asa de passarinho. E pensavam na irmã que estava lá em cima, aquela Teresa de bochechinhas de maçã, de olhos cor de folha, e que, muito docemente, ia fazendo do Sílvio indolente e flexível um grande pintor, porque fazia dele um homem.
De vez em quando caía uma frase, vaga, imprecisa, para não destruir o silêncio:
- Bonita esta cascata... O ar da manhã tem um gosto a noz... Não, a gelado de morango. Julguei que o carro nos trouxesse mais acima... Achas que encontraremos ciclames?... Que bem situada que está esta cruz!... Que lindo pedaço de França se vê daqui!
Por fim, João-Lucas declarou com ar de mestre:
- Pega na mochila. Já lá estamos quase. Estás a ver, além, aquele alturas a fazer trejeitos com uma bengala? É Sílvio.
com efeito, o Sílvio corria com uma leveza que lembrava um boneco articulado.
- bom dia, meninos. A Teresa está a acabar uma torta de ameixas.
- Seguiu a receita da Marieta? - perguntou Isabel. - Estamos cheios de fome, como calcula. Não, não, Sílvio eu quero levar a mochila. Se não a Teresa chamava-me piegas. Oh! É aqui a vossa casa? Que linda!
No terraço de madeira castanha, esperava-os um vestido cor-de-rosa:
- Teresa! Maçã!
Ela desceu, eles treparam, e encontraram-se a meio da escada encostada ao flanco da vivenda saboiana. Teresa apertou a sua meia-irmãzita contra o peito.
- Lili, estás tão bonita! Ainda estás mais alta!
- E tu, minha Maçã, as tuas bochechinhas dão, mais do que nunca, vontade de trincar, tão frescas! Tens um ar tão feliz!
- Não admira. Se soubesses a vida maravilhosa que aqui levamos, no meio de pomares, de prados, de animais, desta boa gente!... O Sílvio está sempre a trabalhar: olha para esta quantidade de telas... Eu, contento-me em dizer: está bem ou está mal.
- E quando diz: "está bem", o pintor sente-se mais orgulhoso, do que se tivesse recebido uma medalha de ouro - declarou o Sílvio, beijando a mulher nas faces, naquelas faces que apetecia sempre beijar.
Isabel pensou: "Como se amam! ". E desejou casar-se também.
Sentaram-se à mesa em frente da casa. As cerejeiras serviam de toldo. As galinhas depenicavam minhocas. Entre duas árvores recortava-se, límpido vitral, um pedaço de panorama azul, céu todo claridade para onde a igreja apontava. Montanha rude semeada de pinheiros.
Isabel e João-Lucas achavam tudo bonito e bom. E, sem dúvida, a mesa estava posta com arte.
- Estamos a comer num verdadeiro ambiente rústico. Estão lindas estas campainhas sobre a toalha de linho grosso. Lá em baixo, tudo é artificial.
- Menos o lago. Oh! Nadar no lago! - suspirou a Teresa, estendendo os lindos braços que tão bem puxavam um crawl. - A água aqui faz-me falta.
- Há a água das torrentes - disse Isabel. - Escuta este barulho tão bonito. Dá-me idéia que cada torrente tem a sua personalidade.
- Prestava-se muito para ninfa de torrente, irmãzita - notou Sílvio semicerrando as pálpebras para idealizar o seu quadro.
- O paizinho disse-me exactamente a mesma coisa. Que esquisito.
- Não tem nada de esquisito. O pintor e o poeta vêem de modo semelhante. Agrada-lhe, a Romain Villanel, a sua estadia no meio dos snobs?
Isabel hesitou. Mas o irmão não tinha tantos escrúpulos.
- O paizinho? Nunca lá pára. Aquilo aborrece a mãe, que tanto gosta de exibir o grande homem. Mas o grande homem só está satisfeito nas alturas. Às vezes - por especial favor - leva-nos com ele. Mas prefere a solidão. Está-se a tornar muito original, o pai.
- Ainda bem - exclamou o Sílvio. - Romain Villanel e um senhor da sociedade não se coordenam. Mas vão lá fazer compreender isto à minha sogra!...
- Ainda não acabaste de dizer tolices? - perguntou severamente Teresa.
Então ele beijou-a e foi buscar a torta de ameixas, que regaram com um bom vinho saboiano.
- Não deite mais, Sílvio - gritava Isabel, tentando retirar o copo. - Não estou habituada a beber. vou ficar tonta.
- Ou adormecer - disse a dona da casa. Deves estar cansada, meu passarinho; daqui a pouco, instalo-te no feno para dormires a sesta. Vais ver como tens bons sonhos.
- com quem sonharemos, irmãzinha? -perguntou o cunhado, traquina.
Ela corou. E aquela graça de mocinha apaixonada trouxe à idéia do Sílvio o belo Morot-Léandre. À Maçã também; mas a Maçã estava inquieta. Porque a mãe lhe tinha escrito:
"Há cá um rapaz que gosta de Isabel. Rapaz inteligente. Óptima situação. Uma boa família. Vê lá se convences a tua irmã... "?
Depois, a senhora Morlainville falava da Estefânia, e o que dizia era tão preocupante que a Teresa esquecera os projectos matrimoniais.
- "Tenho que sondar aquele coração" - pensou. - "Mas devagarinho... Estou convencida que a mãe não tem grande jeito para isso".
E a Maçã foi preparar a cama no feno perfu mado.
- Deita-te, querida... Aqui tens um bom cobertor.
Teresa vestida de cor-de-rosa, está ajoelhada entre a erva alta. No cabelo dança-lhe um raio de sol que o torna loiro. Os olhos tomam a cor do prado. São alegres. São ternos. Olhos de mulher feliz.
Isabel tem sono. Mas quer conversar.
- Chiu! Chiu! -diz a mulher ajoelhada. - Durma, queridinha. Durma, estamos no Verão. A torrente canta. A montanha é azul.
- Maçã... Então também te tornaste poetisa?
- admira-se Isabel bocejando.
A Maçã tem um lindo riso, muito fresco.
- Eu poetisa? Talvez milagre de amor... Isabel, com uma margarida na mão, adormece, embalada por aquela palavra de amor...
Os pequenos passaram lá dois dias maravilhosos. A vivenda de cheiro a madeira quente ressoava de canções e gargalhadas. Desde o cantar do galo ampliado pelos ecos. até ao frágil concerto que os grilos davam às estrelas, tudo era alegria.
João-Lucas, que adorava trepar, acompanhava o Sílvio com os seus pincéis. As irmãs ficavam juntas. Para quê, ir procurar tão longe o que ali tinham? Uma paisagem adorável que, a cada hora, adquiria novas tonalidades, tão depressa o sol inundava a pradaria salpicada de flores brancas ou cor de ouro, como se escondia atrás da montanha e a sombra envolvia tudo na sua paz aveludada. À noite apareciam as estrelas. Tantas, tantas, que a alma de Isabel desfalecia. Mais simples, a Teresa exclamava:
- Que lindo!
E pensava no filho que nasceria dentro de alguns meses: o filho de Sílvio.
Nela, a felicidade era alegre. Em Isabel, a angústia misturava-se-lhe. Teresa murmurava, sentindo junto de si aquele serzinho inquieto:
- Tu complicas demais as coisas. Assim, nunca poderás ser feliz.
E nem mesmo ousava falar de Hugo Lesoir, um rapaz medíocre, a uma Isabel tão exigente. Todavia, era preciso.
Não escolheu, para abordar aquele assunto delicado, a hora das estrelas, porque Sílvio, perturbado também pela melancolia das noites excessivamente belas, por nada deste mundo deixaria a sua apaziguante Teresa. Sentava-se no chão e poisava a cabeça nos joelhos daquela mulher que era tudo para ele: paixão, ternura, serenidade, juízo. Teresa acariciava-lhe a fronte larga e ossuda e, por vezes, os lábios de Sílvio beijavam silenciosamente a mão que o curara outrora e que, presentemente, o guiava.
Isabel? À hora das estrelas afastava-se um pouco. No seu espírito passavam fragmentos dos poemas do pai. E do seu coração subiam preces, desdenhando as palavras habituais, preces novas, suas, preces de criança e de mulher; preces de poetisa.
Foi numa tarde, debulhando feijão, que Teresa interrogou a irmã. Porque Teresa, no bom senso da sua juventude, não queria que um cenário romântico influenciasse a petiza. Perguntou-lhe se tinha companheiros simpáticos no hotel. Então Isabel encolheu os ombros e corou.
- Há lá um engenheiro com quem a mãezinha queria que eu me casasse, segundo diz o João-Lucas. É velho... Tem, pelo menos, vinte e seis anos! E há-de fazer-se gordo. Nota que não o acho muito desagradável para jogar o tênis ou andar de barco. Mas para casar, não. Primeiro... tu sabes muito bem que...
- Sim, eu sei. Mas pensa: daqui a quantos anos poderá o Florêncio casar-se? Chumbou no Técnico, o que não é uma glória.
- Pobre Florêncio, ele detesta aquilo.
- Ter um marido aviador, que vida, Isabel! O riso de Isabel evolou-se:
- Tu que sabes e eu que sei, cala-te tu que eu me calarei... Pregas bom senso aos outros, e tu escolheste um doidivanas. E, além disso, a menina vá de voar, sem pedir opinião a ninguém, até Marrocos, tratar do doidivanas. E casa-se com ele, julgando-o moribundo. E és tu, tão excêntrica, apesar das aparências de boa rapariga, és tu que vens dizer as vantagens de um casamento "razoável" à tua irmã mais nova? Maçãzinha querida, isso não é nada o teu gênero. Agora que já obedeceste à tua mãe dando-me um sermão, deixa-me falar-te do Florêncio. Se soubesses as cartas que ele me escreve!
- Escreve-te? A mãezinha deixa?
- Fecha os olhos. Não é assim tão terrível, a mãezinha. E acha tão aborrecido obrigar os "miúdos" a obedecer-lhe! As minhas cartas e as do Florêncio viajam nos envelopes das irmãs dele e do meu irmão. Olha, vou ler-te um bocadinho da última.
A Maçã sorriu contente: qual é a mulher que não gosta de ouvir falar de amor?
"Custou-me" - escrevia Florêncio - "a minha reprovação no Técnico. O Pai sacudiu-me como a uma ameixoeira. A Mãezinha disse-me, muito ternamente, que eu a desgostara, o que me impressionou ainda mais. As raparigas portaram-se muito bem, mas eu sinto que desci na sua estima, mesmo na daquele bebê que é a Denise... É difícil aceitar isto. Mas quero manter-me digno de si, digno do tempo em que vivemos. As falhas individuais prejudicam a guarnição moral do mundo; sei-o bem, e com a guerra que se aproxima... Assim, aceitei a humilhação, o desgosto, ofereci tudo na querida igrejinha onde tantas vezes rezou. Nela encontrei a sua alma. Sofro ainda, mas já não ando como um porco-espinho. Reze pelo seu Florêncio". Isabel dobrou a carta e, guardando-a:
- Entre Florêncio e o Hugo há um mundo. Se casar, será por amor, como tu. De contrário, irei ao encontro daqueles que ninguém ama: os pobres, os doentes, os maus, os velhos. Já mais de uma vez julguei que me chamavam.
- Não compreendo lá muito bem - confessou a Teresa, juntando o feijão. - Queres casar. E ao mesmo tempo tens idéias completamente diferentes.
- Nem eu, minha pobre Maçã. Talvez que, casando-me com Florêncio, me possa ocupar de todos os meus mendigos de amor... Não sei. A Marieta diz que só compreendemos a vida quando ela está quase a acabar.
- Oh! Que complicados que vocês são todos! exclamou a mais velha. - A felicidade é bem simples.
Então Isabel, olhando-a tão serena e bonita, murmurou:
- Ao pé de ti, tudo é simples. Está-se bem ao pé de ti...
QUANDO voltaram, queimados e selvagens, ao hotel de gente chique esperava-os uma surpresa:
- Imaginem - anunciou Jeanine - que os Bastien vão mandar-nos a filha, sob a escolta da Marieta.
Isabel, ainda em trajo alpino, pôs-se a dançar de contente.
-Por amor de Deus - disse a senhora Morlainville, nervosa, - não te ponhas a saltar com esses sapatões ferrados. É ridículo. E esse barulho dá-me cabo da cabeça.
"É ridículo". Jeanine tinha o dom de encontrar destas palavras que desfazem a alegria.
- Desculpa, mãezinha... Mas dá-nos depressa os pormenores.
- Chegam esta tarde. O teu cunhado acompanha-as. A Estefânia anda em viagem com uns amigos e o Paulo não quis deixar a filha entregue a criadas de passagem. Pensou, muito gentilmente, que ninguém poderia cuidar dela melhor do que a Marieta, e que a pobre velha gostaria de vir ter connosco. Não é lá muito decorativa como nurse, mas...
- A pobre velha... - repetiu Isabel que ainda não concebera que a valente Marieta da sua infância se tornara aquilo: uma pobre velha. Alguma coisa estremeceu no fundo de si própria.
Como era natural, os irmãos tinham muito que contar a respeito daquela gente feliz, lá de cima.
- Deixa-me falar - reclamava um.
- Não, eu sei muito melhor essa história - repontava o outro.
E questionavam, com belas gargalhadas.
Mas Jeanine declarou que, apesar das suas descrições entusiastas, a Teresa não receberia a sua visita: uma loucura, ir para tão alto. E viver como campónios...
- Decididamente tenho umas filhas impossíveis. Digo isto tanto para ti como para as outras, Isabel. Vê lá se tomas um ar civilizado. E tu também, João-Lucas. Estão vermelhos, reluzentes, despenteados, horríveis.
- Não é tanto assim, mãezinha - disse João-Lucas. - Temos um gênero alpino que dá um chique enorme. Apesar de tudo, queres beijar este horrível rapaz, todo despenteado? Sou também um filho impossível, como as tuas filhas?
- Tontinho - murmurou ela, beijando aquele belo adolescente que adorava. - Agora vai-te arranjar.
No patamar para onde davam os quartos, Isabel e João-Lucas pararam a cochichar:
- Alguma coisa há, minha rica.
- Também me parece; é extraordinário que o Paulo as venha trazer, ele próprio. E, além disso, a mãezinha disse: "Tenho umas filhas impossíveis. Isto também é contigo, Isabel". Portanto, antes de pensar em mim, pensou nas duas mais velhas.
- O paizinho não abriu a boca e, na testa, tem outra vez aquela famosa ruga.
- A Fani anda a fazer alguma... Ah! Que diferença entre ela e a Maçã!
Visões frescas ergueram-se-lhes na memória. Teresa, de cor-de-rosa com os lindos braços nus; a vivenda sob o grande telhado castanho, donde subia o fumo anunciando a sopa; as pradarias impregnadas de um silêncio verde, interrompido às vezes pelos chocalhos dos rebanhos; a espuma saltitante das torrentes; as cores das telas do Sílvio. E aquele amor de jovens esposos.
- De qualquer modo, meu velho, - disse Isabel- vamos ter cá a Edite sem aquela nurse-dragão, que não deixava que a beijássemos. Ah! Agora vou vingar-me. Nunca mais a largo.
- Se a mãezinha te deixar, criança ingênua. Fica sabendo que a mãezinha, aqui, quer que faças figura de menina de sociedade, menina casadoira, estás a perceber? Oh! Minha querida... Não, não me batas. Se não, logo à noite, digo ao teu pretendente que estás louca por ele.
- Oh! Que bom vai ser dar uma bofetada nessas bochechas coradas - murmurava a petiza meio-zangada, meio-risonha. - Se eu te agarro...
- Mas não agarras.
E corriam, perseguindo-se, abafando as vozes.
- É bela a juventude! - suspirou detrás da porta um senhor já velho, indulgente e sensato.
- Que barulheira insuportável - resmungou uma dama ainda sonolenta.
- São simpáticos aqueles dois - murmurou, limpando o pó, o groom que, sob a sua máscara impassível, observava os clientes e sabia julgá-los. Têm sorte em poder brincar juntos!
E pensou, o Alexandre, nas irmãs. Sim, os grooms têm família, como toda a gente e uma alma.
Hugo Lesoir parecia encantado por voltar a ver Isabel na sua mesa, na sala de jantar. Doirada pelo sol da montanha, estava mais engraçada do que nunca.
-Uma cigana de olhos azuis. Na verdade, há-de fazer-se uma bonita mulher... Que tal achas a petiza Morlainville esta manhã, Faustina?
- Um pouco menos "menina exemplar" do que o costume. Um lindo golpe de sol nos braços.
- Parece que esperam a família - disse a senhora Lesoir naquela voz cortante, que metia medo a Isabel. - O genro e o seu bebê.
- Paulo Bastien. Sabes, aquele que tem uma fábrica em Pantin...
- Paulo Bastien. Que negócio formidável mãe! Souberam casar a filha, os Morlainville! Olha, estou interessado em ver esse tipo.
Instantaneamente, Hugo inclinou-se mais ainda a casar com Isabel. Oh! Não estava louco de amor! Mas bonitinha, com um bom dote, um cunhado rico e um pai célebre, tornar-se-ia uma senhorinha Lesoir muito apresentável. com um nadinha de originalidade que não lhe desagradava mesmo nada: a maior parte das raparigas era tão insípida! Ou então umas intelectuais, ávidas de independência. Ora, Hugo Lesoir queria ver o mestre da "equipa", termo empregado por Faustina para designar os esposos.
Dia de expectativa... Paulo não precisara a hora da sua chegada. Esperar - é simultaneamente, delicioso e enervante. Porque se aquela felicidade esperada falhasse... Talvez a Fani tivesse mudado de opinião e quisesse ficar junto do seu amor de filhinha. E, além disso, Marieta, que devia encontrar-se a meio do caminho com Paulo, não teria perdido o comboio?
- "Ter aqui a Edite é demasiado bom, para ser possível. Não vem com certeza" - pensava Isabel sentada à beira do lago.
Acreditava pouco numa felicidade durável. Já vira tantas vezes oscilar a felicidade dos que amava! Pedro Jacquelin, o amigo, o conselheiro da sua adolescência, morrera; a sua amiga Odília sofria as torturas dum corpo doente e duma alma revoltada; Rosa Martin, outra amiga duma classe humilde, precisava de lutar para defender a sua juventude pura; João e Jeanine, os pais de Isabel tinham vivido tanto tempo sem se compreenderem...
Quanto à sua felicidade pessoal... Era apenas uma flor que despontava. Oh, -Deus! Tornar-se-ia fruto alguma vez? com tantas tempestades...
Hugo parecia sentir-se vexado, há bocadinho, quando ela recusou ir ao tênis. E - contradição que a irritava - ficara aborrecida por o ter contrariado. Todavia, estava absolutamente decidida a não lhe ligar nenhuma. Mas Isabel gostava de agradar e de dar alegria a toda a gente - impossível endurecer a sua natureza neste ponto -, sentia remorsos da sua fraqueza, até mesmo como que uma humildade que emprestava ao seu olhar, à sua voz, ao seu sorriso, algo de suplicante. Só servia para a tornar mais perigosamente bonita.
Ah! O pobre Florêncio conhecia bem todos os cambiantes do seu "liseron". E cerrava os punhos, lá longe, pensando em todos aqueles mundanos que dançavam, remavam, nadavam, jogavam com ela. e recebiam a carícia inconsciente do terno olhar azul.
Naquele dia, Isabel sentia-se, estranhamente pensativa. Junto de Teresa, esposa feliz e daqui a pouco mãe, amadurecera nela o desejo do casamento. Mas era preciso esperar tanto! Esperar por isso era ainda mais difícil do que esperar os viajantes. Como encher o tempo sem desperdício das forças interiores?
- "O paizinho, que já pensou tanto, preveniu-me: os anos "de dezena"... dezassete, dezoito, dezanove, - exercem uma influência extraordinária para o resto da vida. Prepara-se, durante eles, tudo o que se virá a ser mais tarde".
Um cisne deslizava através da água azul. As asas brancas palpitaram. Pureza... Ela teve a impressão de que o seu sonho de rapariga enobrecia.
- "O paizinho disse-me mais: "Desejo para ti um belo destino de mulher e de mãe. Mas, peço-te, emprega desde já os recursos da tua alma. Vive imediatamente. Cultiva o espírito e fortifica a vontade, ama. O verbo amar tem outra significação além da que lhe emprestam os apaixonados. Há quem assegure- Augusto Cochin, creio eu - que a vida inteira depende de dois ou três "sim" e de dois ou três "não", ditos antes dos vinte anos. Não confundas o destino pessoal com a grande missão humana. O amor não é tudo, vês tu? Não, o amor não é tudo".
Procurou como poderia "viver imediatamente". Talvez que, naquele momento, " houvesse um "sim" ou um "não" a dizer. Mas a voz que interroga secretamente as almas dos jovens quando diz: "Queres?", a voz nada pedira ainda claramente.
Como pano de fundo, estava Florêncio, lá longe. Mas, antes que ele tivesse o direito de a chamar "Minha mulher", como Sílvio chamava "Minha mulher" à Maçã, não deveria fazer qualquer coisa dos sentimentos que despontavam, um tanto confusos, dentro de si?
Completo o liceu, começara a estudar Direito, embora o coração a atraísse para o trabalho social. Mas Jeanine achava chique o curso de direito. Quanto ao trabalho social:
- Oh! Minha querida, isso dá um gênero austero às raparigas... Afasta os rapazes... É fatigante!
E, sem protestar, Isabel matriculara-se na Faculdade de Direito, cujas aulas se lhe afiguravam tão áridas...
- "Fui mole" - confessava. -"Não tive coragem. Satisfeita com a minha entrada na Sociedade, tornei-me tão medíocre!"
Teve vergonha e desgosto.
- "Na próxima carta, falarei de tudo isto ao Florêncio. As irmãs dele valem bem mais do que eu. A Noelle está na Faculdade de Medicina e trabalha sem descanso. A Catarina estuda apaixonadamente música. E eu... vegeto. É incrível como a Fani e a mãezinha me tornaram mundana!"
com um grande livro aberto sobre a saia branca, Isabel não pensava em ler.
"Há mais coisas no céu e na terra do que aquelas que sonhastes na vossa filosofia", dizia Hamlet. Como era verdade, e que miséria seria ler diante de uma paisagem tão cheia de beleza, com uma alma tão pensativa!...
Bateram cinco e meia no sino saboiano. Já! Passa depressa o tempo quando se contempla.
Apressou-se a ir ao encontro da família que esperava no jardim.
Jeanine tinha uma rosa no ombro e fumava, embora não gostasse. O senhor Morlainville jogava as cartas com o filho. O círculo de família... Isabel juntou-se-lhe, perguntando a si mesma por que razão os pais não diziam palavra. Todavia, a chegada de Edite sem aquela terrível nurse era uma alegria para todos...
E depressa ela saiu, a Edite, do lindo automóvel paterno; uma pequerrucha muito loira e fresca, ao colo da "pobre velha" que era a Marieta. A infância procura a juventude; os seus braços estenderam-se para Isabel.
- Oh! Dá-ma depressa, Marieta!
A bochechinha do bebê poisou o seu delicioso aveludado contra a face da rapariga. A cabeleira de ouro pálido aclarou, com o seu reflexo, o cabelo escuro de Isabel. Meu Deus, como é macio, roliço, quente, doce, apertar nos braços um corpo de dois anos!
- Gosto de ti - respondeu Isabel.
Então, uns braços gordinhos enlaçaram-lhe o pescoço, e Edite beijou com entusiasmo a sua linda madrinha, sem que nenhuma nurse a viesse impedir.
Paulo Bastien olhava-as. Depois, passando a mão pela fronte já tão enrugada, aproximou-se de Isabel.
- A minha filha está em boas mãos. A Isabel e a Marieta...
João-Lucas disse consigo:
- "Olha, não falou na mãezinha".
Jeanine também certamente o notara, visto que reclamou a neta. E foi então que Isabel reparou que nem mesmo dissera: "Boa tarde" a Marieta. Querida Marieta, com o seu chapéu das uvas que fazia parte da indumentária dos grandes dias, ocupava-se silenciosamente das malas. Isabel quis beijá-la, mas ela afastou-a:
- Boa tarde, menina.
- Oh! - fez Isabel sufocada de espanto.
Mas, num relance de olhos, Marieta mostrou-Lhe o elegante motorista do cunhado e os criados do hotel, que se aglomeravam em volta do carro. E ela compreendeu.
Ah! Vingou-se no quarto! Os braços à volta do pescoço. Beijos. Perguntas:
- Achas-me queimada, Marieta? Cresci, não é verdade? Tu não trazes nada bom aspecto. Olha... aqui vais ter uma vida de preguiçosa. Está decidido que levo a Edite para o meu quarto. Oh! Deixa. A mãezinha não se importa e eu gostava tanto... Deve ser maravilhoso dormir com uma criança no quarto! Há com certeza anjos que olham por ela. E, mesmo, é preciso que me habitue. Quando me casar...
Julgou que a faria rir; mas eis que Marieta, cansada da longa viagem, se põe a lacrimejar:
- Oh! Minha pequenina! Tinha tantas saudades tuas!
E Isabel repreendeu-a. Ternamente. Mas, com franqueza... seria razoável?
- Não - respondeu Marieta enxugando os olhos. - Mas, quando envelhecemos, já não sabemos ser razoáveis, compreendes? Não? Melhor, minha jóia. é a prova de que és nova...
NA verdade - declarou, mais uma vez, João -Lucas encantado com o passeio que acabava de dar no automóvel do senhor Bastien - o velho Paulo é um óptimo cunhado. Deus queira que o conservemos!...
- Endoideceste? - perguntou Isabel.
- E se a Fani não o quiser conservar como marido?
- Não te ponhas a inventar fitas de cinema, João-Lucas. Talvez discutam um bocadinho, e é natural: a Fani nunca foi um anjo de doçura, e ele, que casou tão tarde, deve ter uma quantidade de manias. Mas essas coisas arranjam-se com o tempo.
- Que experiência! Onde aprendeste a conhecer os reveses da vida conjugal?
- Oh! Eu tenho antenas para adivinhar as coisas... Não sabias?
- De qualquer modo, é estupendo aproveitar o Citroen.
Passeios maravilhosos durante aqueles dois dias que Paulo Bastien passou com Os Morlainville! O Citroen girava, rápido e seguro, à beira dos precipícios. A cada curva nova paisagem verdejante, toda em profundidade e coroada de neves deslumbrantes. João-Lucas preferia a tudo o brilho metálico do gelo. Isabel amava a frescura do vale.
Que repouso, ao voltar das estranhas águas azuis e geladas do mar de Glace, voltar a ver o Arve. alegre através dos prados!
- A montanha esmaga-me - dizia ela.
E o irmão encolhia os ombros. Mas o pai olhava-a pensativo. Não ignorava quanto aquela sensibilidade era frágil.
Bem entendido, não levavam Edite. Era duro ter que lhe dizer adeus todos os dias; e também deixar Marieta que, desconcertada com a vida de hotel e com a região montanhosa, suspirava apaixonadamente pelas férias passadas à beira-mar.
- Vivia-se com simplicidade, naquele tempo. Valia bem mais. Deus queira que me não estraguem a minha Isabel. Pobre menino Florêncio! Se ele visse todos estes jovens à volta dela! Ainda bem que cá está a pequenina.
Sim. estava lá a pequenina... Isabel nunca imaginara que uma caminha de criança pudesse dar tanta frescura e tanta alegria a um quarto. Quando voltava, à noite, depois de dançar ou da sessão de cinema, aproximava-se em bicos de pés para ver se a Marieta enrolara convenientemente o caracol de Edite; aquele caracol que, no dia seguinte, formaria uma crista de ouro fluido sobre os grandes olhos de ardósia da criança.
Pela manhã, ambas lhe queriam dar banho e era talvez essa a mais bela hora do dia, com gritos de felicidade do bebê, contente por chapinhar na água.
- Compreendes - explicava Isabel - é preciso que eu aprenda. Quero ter muitos filhos. Infelizmente, estou convencida que não hão-de ser loiros como a Edite. Tenho os cabelos tão pretos...
E Marieta ria à socapa. É que ela sabia que se estava também a pensar num paizinho de cabelo negro.
- "Se casar com o menino Florêncio, hão-de ter bonitas crianças, com certeza... Bonitinha como ela é, e ele, um lindo rapaz. Morenos ou loiros, ainda cá estarei para lhes dar banho?"
Um suspiro dilatava-lhe o velho coração gasto. Mas sorria, porque os pequeninos gostam do sorriso.
com efeito, Paulo Bastien podia partir tranqüilo, deixando a filha entre aquelas duas mulheres.
- É uma preocupação a menos para mim disse ele quando se despediu.
Quais seriam as outras preocupações?...
Um dia, Isabel recebeu uma carta timbrada de S. Gervásio e assinada por Odília. A sua amiga recomeçara a tossir e, por isso, tinham-na mandado, de novo, para a montanha. Reclamava uma visita.
A senhora Morlainville amuou:
- Não me agrada que lá vás. A Odília é muito mal educada, meio doente. E é uma viagem muito complicada, quer vás de comboio, quer de camioneta. Ah! Se tivéssemos um automóvel!
Lamento apaixonado de Jeanine. Mas João esquivava-se sempre que a mulher exprimia esse desejo. Ninguém sabia porquê. Marieta na sua sabedoria de velha, pensava:
- "O senhor tem medo que a senhora vá longe demais".
E Jeanine repetia:
- Desiste dessa visita. Divertes-te tanto, aqui. E está cá a pequenina.
Isabel ergueu os olhos patéticos:
- Mas, mãezinha, ela pediu-me. Devo ir.
- Sempre os exageros da Isabel... Tu não estás encarregada da salvação dessa Odília.
Alguma coisa vibrou no coração de Isabel: sem dúvida, estava encarregada, misteriosamente, do destino espiritual de Odília. Mas Jeanine não podia compreender; e, segundo o bom senso humano, tinha razão.
Muito amàvelmente, ofereceu um lenço novo à enteada para a consolar.
- Olha, põe-no assim no cabelo. Estás adorável.
Era verdade. E Hugo, que as encontrou, foi da mesma opinião. Disse-o sem insistir mais do que convinha.
- Um lindo lenço!
- Não é verdade? Mas veja só como esta pequena está amuada.
- Não estou amuada, mãezinha. Nunca amuo. Tenho horror a isso.
- bom, estás desolada, se preferes. Imagine você que...
Explicou toda a história a Hugo, enquanto Isabel se enervava.
- "Para quê, contar-lhe tudo isso? Interessa-Lhe? São coisas minhas".
Deteve-se, sinceramente zangada, para não ouvir. Os morangos mostravam o nariz rosado por entre as folhas. Colheu-os. Deliciosos... Ainda lambia os beiços quando os outros dois se voltaram.
- Isabel, o senhor Lesoir é tão amável que propôs levar-te a S. Gervásio, com a sua irmã e o teu irmão. Ficarás com aquela insuportável Odília enquanto eles subirão até ao desfíladeiro do Voza. Queres?
Isabel fez-se vermelha:
- Oh! É muito amável! É claro que quero.
- Então, amanhã - respondeu Hugo. - Mas não terá pena do Voza? É um sítio maravilhoso, sabe?
- A minha filha é uma original - disse Jeanine com o seu lindo riso trinado. - Uma visita de caridade agrada-lhe mais do que qualquer divertimento. Ah! Ainda não sabia disto?
O olhar do rapaz pousou no da petiza: - Já o supunha. Linda, sensata e boa. É maravilhoso.
E Jeanine gostou que ele tivesse falado assim. Não muito grande, o automóvel do Hugo; mas todos os que lá iam eram delgados. Faustina quis guiar durante parte da viagem.
- Cada um por sua vez, meu velho.
Hugo cedeu facilmente porque lhe agradava ir ao lado de Isabel, fazer as honras da estrada, recolher as suas impressões. Mas, na altura da grande subida, reclamou o volante, e tomou-o apesar dos protestos de Faustina.
- Os homens julgam-nos incapazes de conduzir um carro... Guio tão bem como tu, hás-de concordar.
Mas ele não cedeu. Nunca cedia. E a sua firmeza agradou a Isabel. De resto, guiava à maravilha; disse-lho, ele já o esperava e um sorriso emprestou certo encanto ao seu rosto pesado e frio.
Guiado por ele, o carro costeou a torrente, tomou a estrada que torneava os bosques, atravessou uma ponte arrojada sobre as águas agitadas do Bonant. Ao longe brilhava um cume todo neve.
- Aquilo refresca - disse João-Lucas. - Não estás com muito calor, Isabel?
- Não - respondeu ela, sacudindo a cabeça apertada pelo "lindo lenço", que pusera - sem ousar confessá-lo a si mesma - devido à exclamação de Hugo: "Um lindo lenço!"
- Onde mora a sua amiga? - perguntou ele.
- Ela telefonou-me para que a esperasse em frente da igreja.
Isabel calculava, e com razão, que a casa de Odília devia ser demasiado medíocre, para que ela desejasse dar-lha a conhecer.
Com efeito, sentada em frente da igreja, avistaram uma rapariga magra e feia. Muito pintada, pobre Odília, mas o carmim em cima dos ossos só serve para os realçar...
Lançou a Hugo um olhar audacioso e ele achou-a muito antipática. Terminadas as apresentações, o automóvel partiu. Então Isabel deu o braço à amiga:
- Onde vamos?
- Para a minha casa, não. É muito pequena, muito feia.
Isabel, tão perspicaz, adivinhou o secreto desejo daquela rapariga cheia de azedume. Perguntou:
- Sabe dalgum sítio para se tomar chá? Estou cheia de fome. E seria tão divertido lancharmos as duas!
O rosto carrancudo iluminou-se. Odília, forçada à economia, adorava sentar-se numa esplanada de hotel. Dirigiu-se logo para o mais elegante e Isabel encomendou alegremente a mais apetitosa das merendas.
- Que gulosa que se tornou! - admirou-se Odília.
E ela corou um pouco: teria preferido um pãozinho com um pau de chocolate!
com os cotovelos pontiagudos fincados na mesa, Odília falou:
- Estou perdida, minha amiga. Oh! Já não tenho ilusões! Esta tosse! Duro mais dois anos, quando muito. Tanto melhor. Mais depressa acabo... Os pais? Estão bem. A mãezinha diverte-se, e o pai barafusta. A casa há-de estar numa linda desordem, sem mim para a arrumar.
- Arrumava-a tão pouco, querida!
- Agora ninguém arruma nada. Conheço o gênero... Enfim, ao menos aqui tenho um quarto. Aquele divã na sala, quando se está doente, é um horror! O travesseiro escorregava pela parede abaixo, nunca sabia onde pôr a chávena com a tisana; tudo cheirava a tabaco; as telefonias dos vizinhos a berrarem. Aqui, tenho paz. Mas uma cama dura. E como mal. É caro, aumentar um tuberculoso...
Tossiu.
- Foi muito amável, Liseron, em ter vindo ver-me. É sempre o mesmo "liseron"? Diga-me a verdade.
- Sim-respondeu Isabel, olhos erguidos para um pico de neve. - Contínuo a amar tudo o que é puro.
Àquela alma perturbada, sentia que não devia revelar os altos e baixos da sua vida interior. Odília precisava de acreditar nela.
- E os "negòciozinhos do coração"? - perguntou brutalmente a outra.
Liseron corou, secretamente magoada.
- A que chama "negòciozinhos do coração"?
- bom, há o Florêncio Morot-Léandre... O Cláudio Anel... Este belo Hugo Lesoir que me apresentou há pouco e parece achá-la a seu gosto. Espero que deixe o Florêncio: um fedelho sem situação. Que, na verdade, o dinheiro não dá muito bom resultado na sua família. O quê? Não sabe?
Foi o Cláudio quem me contou. Tem-nas feito bonitas, a sua irmã Estefânia. Uma namoradeira furiosa. O marido começa a estar farto. Aquilo acaba mal, ao que dizem.
Isabel, atingida no seu orgulho de família, tomou, para lhe responder, o tom de Jeanine quando estava zangada:
- Minha amiga, o Paulo acaba de passar três dias connosco: gentil, afectuoso, absolutamente como família. Tudo isso são calúnias. Quando um homem de uma certa idade casa com uma mulher nova e bonita, não falta quem invente coisas estúpidas.
- Ah! Não se zangue! Cá por mim, tanto se me faz o que se passa com a bela Fani. Falemos doutra coisa. Diga-me, tem visto o meu primo Cláudio?
- Vi-o em cena na última peça do paizmho. Uma interpretação fantástica.
- Mas... de outra maneira, não o viu?
Isabel compadeceu-se daquele coração torturado pelo ciúme:
- Não, minha querida, nunca o vejo.
Então, a outra encolheu os ombros esqueléticos:
- É das tais coisas... Você ou outra... Nunca serei eu...
As faces tinham-se feito vermelhas. A sua voz
tomara um tom rouco.
- "Como ela o ama! Meu Deus, como o ama!"
- pensou Isabel. - "É uma verdadeira paixão.
E tão inútil... Em lugar de se preparar para a morte de que está sempre a falar, pobre pequena". Tentou evocar idéias grandes. Mas Odília respondeu com dureza:
- Basta! Sou uma revoltada. Não pode compreender. Você esteve doente e curou-se. É bonita, chique, feliz. Nada de sermões, hem? Não tem o direito...
- Não - disse, baixinho, Isabel. - Mas posso recordar-lhe Pedro Jacquelin de quem éramos tão amigas no Sanatório. Sofreu... morreu. E você sabe como.
Então Odília olhou ao longe:
- Um santo. Aquele era um santo.
E Liseron, volteando a colher cheia de morangos no creme gelado, compreendeu até que ponto os doentes podem irradiar grandeza.
E os mortos, vida.
IMPOSSÍVEL deslindar o mistério da Fani. Quando Isabel repetira à madrasta as insinuações de Odília, Jeanine contentara-se em dizer, com ar comprometido:
- É uma pestezinha, a Odília. Fizeste bem em pô-la no seu lugar. Não te preocupes com isso, minha querida. Vês tu, uma grande diferença de idade entre marido e mulher traz sempre alguns conflitos. Não penses mais nisso. E diverte-te.
Diverte-te... certamente, é divertido divertir-se- Aquilo satisfazia em Isabel o seu gosto pelo arco-íris de impressões que tantas vezes combatia o seu desejo de claridade espiritual cheia de paz. Não foram as férias criadas para nos divertirmos? E, além disso, o lago de Annecy parecia ter sido pintado e desenhado unicamente para dar felicidade. Nada em excesso, espaço bastante para o sonho, mas não para a inquietação. Um suave arredondado, sombria folhagem elegantemente recortada sob um céu meridional. E o azul, o azul de pedra preciosa da água que corre nos jardins.
Sim, Isabel divertia-se. Certamente teria preferido a Châtaigneraie, mas não era sem prazer que se associava ao grupo muito moderno formado pelos Lesoir e os seus amigos. Cada dia se tornava mais alegre, com grande contentamento de Jeanine que sonhava casar a enteada num mundo brilhante.
O senhor Morlainville, esse, desdenhava os prazeres cá de baixo. Subia. E voltava trazendo no rosto um ar longínquo; ar que inspirava uma espécie de respeito a Jeanine, irritando-a ao mesmo tempo. Que homem singular, apaixonado e distante, bom conversador e taciturno! Mas como o homem singular gozava de grande prestígio nas margens do lago, Jeanine raramente ousava censurar a sua atitude.
Sabia ser mundana pelos dois. "A linda senhora Morlainville": título de glória. Só o que era aborrecido era ter de se apresentar com uma filha crescida! Isso impedia-a de participar em tantos divertimentos! E a sua qualidade de avó ainda a incomodava mais. Por isso, ninguém a via com Edite... No quarto, sim, beijava-a, brincava com ela. Mas lá fora, não. Deixava-a com a sua "velha aia", título com que Marieta fora gratificada oficialmente e que tanto fazia rir Isabel e João-Lucas.
"A velha aia" observava toda aquela gente de vestido e alma de Verão. E os lábios cinzentos entreabriam-se para rezar, porque Isabel, o senhor, os pais de Edite, todos, precisavam muito de ajuda.
- "É só o que posso fazer por eles" - dizia consigo Marieta.
E era tanto! Ela sabia-o. Muito suavemente; diante daquele lago que gerara santos, a alma ricamente dotada de humildade, Marieta adquiria a plenitude do seu valor. Vinha até ela não sei que murmúrio de eternidade.
Certa manhã, viram aparecer o Sílvio e a Teresa que os pais tinham convidado a passar alguns dias no hotel.
- Deus queira que a Teresa não apareça com o ar de selvagem - dizia Jeanine pouco tranqüila.
- Estes casais de artistas...
Mas a Teresa estava encantadora com a pele tostada pela montanha e aquele olhar luminoso que põe em toda a mulher a esperança da maternidade. E "meu genro, o pintor tinha uma elegância um tanto indolente de muito bom tom.
Para lhes dar prazer, alugou-se um pequeno veleiro e passaram-se nele horas maravilhosas.
- "Não foi este o lago cantado por Lamartine"
- pensava a petiza, de novo possuída pelo gosto da poesia. - "Mas tudo o que notou é tão exacto, apesar disso!"
- Tens um ar inspirado - disse-lhe Teresa. -Estás a fazer versos ou a recapitular os de Lamartine?
Sem responder, Isabel procurou o olhar daqueles olhos verdes e serenos. Olhos de mulher feliz.
- Lunática! - murmurou a mulher feliz.
Goza a tua juventude sem pensar no "oceano das idades". O paizinho, o Sílvio e eu complicamos tudo.
O seu riso correu sobre as vagas breves.
João-Lucas estendia as velas. Voltou-se e Teresa achou-o belo.
- Esta rapariga vive sempre adiantada - declarou ele. - Sempre que está contente, pensa: "Depressa passará". Assim, o prazer morre antes de o saborearmos. É estúpido ou não é?
Pôs-se a cantar um estribilho em voga. As outras vozes, depressa em acordo, juntaram-se-lhe em dois tons. Também as almas tinham dois tons: alto e claro para Teresa e João-Lucas, terno e baixo para Sílvio e Liseron. E as sombras da tarde punham na água fugaz a forma eterna dos montes.
No dia seguinte, Jeanine conseguiu uma vitória: João consentia em ir com todos a Annecy. Ela estava triunfante, ele taciturno. Isabel apoiou-se, ao lado do pai, na amurada do grande vapor que os conduzia à cidade saboiana através do lago. João emudecia- E a rapariga respeitava esse silêncio em que, sem dúvida, nasciam pensamentos novos a que o poeta daria forma. No entanto, sobre a colina, apontou-lhe um castelo:
- O castelo da pequenina Ana de Guigné. Fui vê-lo, e ao túmulo...
- Com quem?
- Sozinha. Há coisas que a gente gosta de fazer sozinha.
E ele poisou a mão na de Isabel, a felicitá-la por ter guardado, sob a aparência mundana, o gosto pela solidão pensativa. E ambos pensaram naquela Ana, rapariguinha de França, cuja alma ganhara asas tão cedo.
- Bernardo de Menthon, - murmurou ele Francisco de Sales, Joana de Chantal. Ana de Guigné... Barres dizia: "Há lugares onde o espírito adeja". Sente-se isso, aqui.
E voltou ao seu silêncio.
Bem entendido, "ir a Annecy" para Jeanine era ir ao casino ou ao salão de chá. O Sílvio, esse, queria passear ao longo dos canais onde deslizavam cisnes; sob as arcadas das velhas ruas, junto do flanco do castelo e das suas torres feudais, João Morlainville procurava a alma de S. Francisco e também a de Jean-Jacques Rousseau. Teresa, a quem tudo dava prazer, divertia-se com aquele regresso à vida civilizada. Isabel espiava as impressões de Sílvio, porque achava maravilhoso ver coisas belas em companhia de um pintor. E João-Lucas sentia-se importante no seu papel de cicerone:
- Venham por aqui, entrem por ali...
Mas Jeanine suspirava: ruas mal pavimentadas... sol escaldante... companheiros sérios demais... O marido, sensível ao cansaço daquele lindo rosto que tanto amava, disse-lhe ternamente:
- Vai com as pequenas para o salão de chá, que nós vamos lá ter.
Mas Isabel protestou. Apetecia-lhe mais ir com o artista e o poeta. E João, satisfeito, deu o braço à filha.
- Já está da sua altura - notou o Sílvio.
- Já? - admirou-se o senhor Morlainville voltando-se para ver aquela carinha fresca sob o chapéu. - Queríamos que os nossos filhos fossem sempre pequeninos.
- Não há dúvida... Cada vez que penso na pobre Fani...
Outra vez o mistério! Certamente o Sílvio supunha Isabel e João-Lucas ao corrente, porque perguntou:
- Acha que aquilo se remediará? O Paulo pensa realmente em divorciar-se?
- Tentámos trazê-lo à razão - disse, com tristeza, o senhor Morlainville. - Mas a Estefânia cometeu erros tão graves...
Isabel puxou o braço do pai:
- É horrível o que dizem! Quero saber. O que é que aconteceu?
- Julgam-nos sempre uns miúdos - gritou João-Lucas. - Valia mais contarem-nos a verdade do que deixarem-nos imaginar coisas do outro mundo. O que há, paizinho?
- Um desacordo sério entre Paulo e a Estefânia, cuja frivolidade, coquetismo, vaidade, levam por muito mau caminho. Teimou em viajar com um grupo de amigos que desagradam ao marido. Infelizmente, o Paulo já não tem convicções religiosas e as da vossa irmã eram, certamente, muito pouco sólidas visto que ambos falam em divorciar-se.
- Mas, paizinho, não pode ser! Ela tem uma filha...
- Fui estúpido em falar nisto à frente de vocês - disse o Sílvio. - Mas eu julgava-os ao corrente desta história deplorável. A Isabel está branca como um lírio.
- Faremos tudo para os reconciliar, minha querida - prometeu o pai. - Nada está perdido, podes crer.
Numa voz surda ela murmurou:
- Não quero chorar na rua, é estúpido. Nem na pastelaria. vou um bocadinho à igreja.
Frescura... Silêncio... Entardecer raiado por aquela flecha azul que o Sol dardeja através do vitral. E a lâmpada, a lâmpada que palpita. Há Alguém, ali. Alguém que disse uma vez para sempre. "Vem, quando o peso for grande".
O peso é grande. Isabel já não sabe, já não compreende. Então pode-se faltar às promessas da manhã de núpcias? Todavia, a Fani parecia sincera ao jurar fidelidade àquele Paulo por quem deixara o Sílvio. E agora deixava o Paulo, o pai da sua filha?
Uma vez mais se ergue, trágico, diante da alma que desabrocha, o problema do contraste entre o que se afirma e o que se vive. Fani afasta a fé desde que, esta a incomoda. Ter-se-á o direito de afastar tudo o que incomoda? Os mandamentos que se recitam no catecismo são para as crianças? Então, tudo se desmorona?
Um passo vivo ecoa na nave. João-Lucas vem buscar a irmã. Cruza os braços sobre o peito. Reza. Reza na verdade. Como o seu olhar é recto! A sua oração estimula a de Isabel que desfalecia. Ambos pedem que o casal Bastien continue unido.
São novos, não sabem precisamente quais as tentações que a irmã sofre; mas sabem que uma alma tentada é digna de piedade. Pobre Fani! Eles amam-na tanto, apesar dos seus defeitos! Às vezes era tão boa para eles, os mais novitos!...
À saída, João-Lucas disse com meiguice a Isabel:
- Põe um bocadinho de pó de arroz, minha jóia. Para que a mãezinha não veja que choraste! Não, Jeanine não viu que a "jóia" tinha chorado. Jeanine, sentada no terraço, sentia-se linda entre tantas mulheres bonitas, e a hora era doce, a orquestra tocava árias sem tristeza. Porque há músicas que, de repente, fazem que uma mulher sinta que se formam rugas no seu rosto e que a felicidade tem falhas. Era música alegre que se desprendia de todos os violinos.
Jeanine sorriu-lhes. O seu João, que amava cada vez mais, o seu João-Lucas, um rapaz magnífico, a encantadora Isabel, e o Sílvio, tão elegante. Na verdade, sentia-se feliz por viver no meio deles.
- Chocolate? Gelados? Aos meninos aconselho gelado de morangos. E você, João?
Porque agora, em sociedade, tratava o marido por você.
- Paizinho, - anunciou João-Lucas comendo o sorvete - chegaram os jornais. Qual queres que compre?
Inclinaram-se todos. Em férias nunca acontece nada. Todavia, o Sílvio apontou para uma coluna:
- Que diz, pai? Não me parece muito segura esta notícia. A situação diplomática torna-se cada vez mais tensa.
- Oh! Vocês são insuportáveis! - exclamou Jeanine. - Há uma quantidade de tempo que se repete: "As coisas vão mal". No entanto a vida continua- Não falem mais de política, peço-vos. Não o julgava pessimista, Sílvio...
Ele endireitou o corpo esguio e indolente.
- Pessimista? Não. Mas se for preciso dar a vida para defender o país, como outros o fizeram em 14, prefiro sabê-lo antecipadamente.
- Cala-te - disse a Maçã. E fizera-se branca.
Então o Sílvio readquiriu o tom Ligeiro que o tornava encantador, enquanto os ardinas passavam e tornavam a passar carregando nos braços resmas de papel cheias de palavras assustadoras.
E os músicos, em que ninguém pensava, faziam cantar na luz doirada do anoitecer o seu sonho de beleza, o seu sonho de pobres homens pagos para darem alegria àquela gente que os escutava tão pouco, que não os escutava, atenta a outra coisa: ao rumor das suas próprias paixões.
Ou àquele ruído de armas, ao longe...
TINHAM falado de banalidades. Mas era uma noite de Verão. Tantas estrelas sobre a montanha adormecida. Aquele breve suspiro de água contra o terraço. Aquele perfume que se desprende da terra depois dos dias quentes. Aquela música de dança que sempre esconde um soluço. O vestido, o seu vestido de cor pálida, até aos pés.
Decididamente ela agradava a Hugo. O projecto da família afigurava-se-lhe muito conveniente e até mesmo agradável. Havia apenas um obstáculo: a reserva daquela petiza que tinha sempre um ar de que pensa "no outro". Hugo já sabia quem era "o outro". As mães haviam falado disso entre si. E a senhora Lesoir tranquilizara-se, Na sua voz elegante e seca dissera:
- Não é temível o teu adversário. Um colegial. Desembaraça-te.
- Oh! mãe! Nem podia ser pior - respondeu Faustina. - O Hugo já está muito velho para aquela flor campestre. E, além disso, alguns colegiais têm um estado de espírito muito especial neste momento em que a Europa está em fogo. Oh! Garanto-te. Estou farta de observar isso no Bairro Latino! O Hugo nunca teve aquela chama, aquele gosto pelo difícil. É um rapaz inteligente, mas julgo que o seu rival deve ser um óptimo rapaz. Entre ambos, eu não hesitaria, se tivesse o gênero espiritualizado da petiza Morlainville.
- Não és lá muito amável, minha querida mana
- retorquiu Hugo, aborrecido pela verdade daquelas palavras.
- Conheço os teus limites.
Nenhum homem gosta de ver marcar os seus limites. Hugo, encolhendo os ombros, declarou que aquele garotelho o não assustava. E decidiu conquistar o coração de Isabel. Coração talvez inteiramente dado ao noivo distante, mas volúvel. Hugo suspeitava-o. Enfim, ela era mundana apesar do seu famoso gênero espiritualizado. E gostava de agradar. Sim, de agradar a toda a gente. Há pessoas assim, que não podem encontrar um gato ou um cão sem desejar fazer dele um amigo.
Isabel a todos agradava. Até mesmo ao groom, o Alexandre, que se esmerava em fazer brilhar os sapatos da "menina Morlainville", que diligenciava para que ela tivesse sempre flores no quarto. E a petiza agradecia-lho com um sorriso de olhos e de lábios. Adorava que o Alexandre a tratasse como cliente de honra. Adorava que o bebê da irmã lhe estendesse os braços, gritando: "Madrinha!" Adorava que os miúdos no tênis se disputassem para lhe apanharem as bolas.
Hugo, conhecedor de todos aqueles pequenos êxitos, dizia consigo que havia um meio de humanizar aquela rapariga que sabia ser simultaneamente distante e atraente, altiva e garrida.
Começou por procurá-la; depois, subitamente, abandonou-a para se ocupar duma certa Maddy de cabelo ruivo e muito namoradeira.
Sentiu Isabel surpresa; um pouco zangada depois; ah! como era mulher!
E quando a adivinhou próxima do ciúme, fez o seu grande jogo.
Fora naquela noite. As montanhas ofereciam à Lua uma vertente onde coleava a sua alvura de leite. Hugo dançou com Maddy e depois foi sentar-se no balaústre, a que ela se encostara.
Isabel avistava o corpo esguio da rapariga inclinado para a água; e sofria por dançar com qualquer, numa noite em que sentia um estranho desejo de se apoiar a uma amizade segura e terna- Não, ninguém a quem se apoiar. Florêncio lá longe... Na verdade, Maddy era bem feliz.
Não reparou que começava a detestá-la, a essa Maddy. Como o teria reconhecido? Nunca fizera mais que amar: alegre ou dolorosamente, abaixo ou acima de si própria, mas amar. E eis que despertava nela um estranho sentimento. Que seria? Oh! Que a orquestra se cale! Para que possa pensar sob um ritmo à sua escolha, interpretar o luar a seu modo. A música roubava-lhe o luar... Se fosse até à beira do lago? Mas assim, com um vestido comprido e leve? Impossível.
- Este vestido aborrece-me. Não gosto dele. O Florêncio não o acharia bastante juvenil. vou lá acima e visto outro. Deus queira que a mãezinha não me veja! Ela quer que eu dance. Está sempre a dizer-me: "Diverte-te!" Como é aborrecido divertirmo-nos por imposição!
Caminhava por entre uma alameda sem lua quando alguém lhe pousou a mão no braço:
- Isabel, não tenha medo. Sou eu.
- Eu quem? - perguntou, embora tivesse reconhecido aquela voz metálica que queria fazer-se terna.
- Hugo. Desculpe tê-la assustado - Porque é que se veio embora tão cedo? Venha dançar.
- Estou cansada. Não me apetece. Está muita gente.
- Três motivos, quando um só bastava: já não quer dançar comigo. Isso não é amável, Isabel. Desgosta-me, sabe?
- Não tinha aparência disso.
- A aparência, a aparência, que significa a aparência? Sabe qual é a sua? A duma menina desdenhosa. Oh! Sei perfeitamente que não lhe interesso. Mas, ao princípio era mais amável. Por isso julguei que não me achasse completamente idiota. Enganei-me, eis tudo. Boa noite, Isabel.
Tinham dado alguns passos. Agora, Isabel e o seu vestido pálido estavam iluminados pelo luar. Hugo deixara-se levar pelo jogo e acabava "por acreditar em tudo o que dizia.
- Boa noite-repetiu. - Tanto se lhe faz que eu fique triste...
Ela enervou-se:
- Você é muito engraçado. Foi você que mudou. Nunca mais me veio buscar para dançar, acha isso bonito?
- Para me responder como esta noite: "cansa-me, aborrece-me, está muita gente"? Não.
- Sinceramente que o magoei?
Olhar encantador... Aquela cabeça inclinada...
- Sinceramente? - repetiu. - Bem, então vamos dançar.
Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.
- Muito obrigado... Vamos depressa. Ao luar e consigo, será um autêntico poema de Romain Villanel.
Isabel hesitou, recordando aquela noite maravilhosa da sua adolescência em que, vestida de Fada, dançara - sem saber dançar - com Florêncio, Mandarim Chinês. Não iria manchar a pureza dessa recordação? Suspirou. Hugo notou-o.
- Está a suspirar. Confesse que a aborreço, Isabel.
Então, ela teve pena, saudade, e levou-o pela mão ao encontro dos outros pares.
Dançaram. Dançaram ainda, Isabel nunca tivera tanta graça. O vestido era macio e um perfume subia.
- Qual é o seu perfume?
Ela hesitou, antes de responder:
- "O amanhecer dum lindo dia".
- Mas... é você, esse perfume. A mesma frescura. A mesma juventude.
- Não diga tolices.
Se bem que ele fosse pesado e ela tão frágil, eram da mesma altura, enquanto que para o seu grande Florêncio precisava de levantar os olhos. Pareceu-lhe demasiado próximo aquele olhar. E corou.
- "Mas ao luar não se vê".
Mas sim, via-se. E Hugo apertou-a um pouco mais contra si. Sentiu-se feliz e censurou-se por isso.
- "É por causa do luar"Mas não se atreveu a seguir a conversa. Ele, que a graça do momento tornava delicado, respeitou-lhe o silêncio. A outra rapariga teria, certamente, dirigido galanteios; àquela não.
Encostaram-se ao balaústre: como escapar ao sortilégio da água? A Lua fazia diamantes do capricho das vagas curtas. Isabel, baixinho, repetiu uma frase que lhe parecia conter toda a beleza do mundo:
- O sonho duma noite de Verão... O sonho duma noite de Verão...
A sua alma desorientava-se sentindo afluir tantas ondas. Hugo adivinhou-o. Pousou a mão larga naquela mão de rapariga e disse:
- É maravilhoso estar aqui, junto de si.
Ela não retirou a mão e ele continuou:
- Não sabe o que isto representa para mim?
- Disse o mesmo à Maddy...
- Oh! Isabel! Só você pode causar esta impressão. E eu queria poder dizer a mim próprio que a terei ao pé de mim toda a vida, para sempre.
Ela endireitou-se, altiva:
- Não sabe que estou noiva?
- Imagina-o... Mas, tão nova? Não pensemos nisso.
- Não há idade para o amor. Vamos para dentro, sim?
- Está zangada? Oh! Desculpe-me... a culpa é desta noite de Verão... Escute, Isabel, não falaremos mais nisto, mas gostaria que pensasse um bocadinho. Promete?
Jeanine viu-os voltar em silêncio e inquietou-se: amuo? ou emoção contida?
- Isabel, - disse ela - queria que dançassem ambos mais uma vez. Estava a jogar uma partida de bridge e não vos vi. Toda a gente disse que faziam um lindo par. Sê boazinha...
Impossível arranjar desculpa. Puseram o passo em acordo e o vestido pálido embalou no seu ondear Isabel, a juventude, os seus sonhos. Oh! Florêncio, que bom seria dançar consigo, entre o lago e as estrelas!
Depressa se desembaraçou do par:
- Boa noite.
Ele não ousou retê-la. Ela subiu a escada sozinha e lentamente, apoiada ao corrimão. Alexandre, que começava a juntar o calçado à porta dos quartos, viu a rapariguinha em fato de baile e perguntou a si próprio porque razão, tão bonita, parecia tão triste. Ele não gostava do engenheiro Lesoir.
- "Muito espesso. E não pertence ao mesmo mundo. Tenho esperança que ela não case com ele. Todos os anos há manigâncias de casamentos nos hotéis. Estou convencido que não há-de dar muito bom resultado. Quase que não se conhecem uns aos outros! Eu, quando me casar..."
Isabel entrou furtivamente no quarto. A criança dormia. Inclinou-se.
- A Marieta tapou-te demais. Tens calor, meu passarinho.
Afastou o cetim cor-de-rosa do edredão.
Sim, Edite tinha o pescoço e os braços suados. Os braços, aqueles bracitos de bebê! Isabel ajoelhou-se, pousou os lábios na covinha do cotovelo. Suave perfume de infância...
- Minha pequenina... - murmurou. - Oh! Ter um bebê mesmo nosso! Tu és só emprestada. Hão-de levar-te. E para onde irás? com quem? Se os teus pais se separarem... Não poderás ser feliz. Gostaria que fosses minha filhinha.
Despertava nela a mulher e a mãe. Já não lhe bastava a sua felicidade de rapariga. Queria viver a vida em plenitude- Aquela noite empurrava-a bruscamente para diante. Havia um homem feito que a queria para companheira da sua vida. com Hugo casaria imediatamente. com Florêncio, era preciso esperar. Como empregaria esses anos de expectativa? Não desperdiçara já um deles? Mas uma rapariga poderá viver intensamente?
Um beijo no pescocito onde pende o fio de ouro do baptismo. Edite estremece, as pálpebras batem e uma voz fininha diz:
- Mamã.
Então Isabel escondeu o rosto entre as mãos.
Mamã... Ouvir chamarem-lhe mamã...
MARIETA andava zangada. Isabel sabia muito bem porquê, mas fazia como se o nhão soubesse. Às vezes é mais cômodo assim. De resto, estava certa de que tinha razão. Que intransigente velha, esta Marieta! Pretendia guardar a sua Isabel numa torre de marfim, longe de toda aquela pobre gente não muito boa, nem feliz, nem sã?
- "Eu detesto a tal torre de marfim. Quero ir para junto dos outros. Amo-os. E desde que posso ajudá-los, terei o direito de me pôr a distância? ".
Assim, Isabel julgava Marieta estreita de idéias e sem caridade. E Marieta julgava Isabel imprudente e quimérica. Oh! aquela petiza, aquela petiza que sabia contentar-se com a sua parte de misérias! A parte que já atravessara: a perda da mãe, a falta de saúde durante a adolescência, vários anos de Sanatório... E, logo a seguir, preocupações de família devido ao desacordo entre o pai e a madrasta. E isto já lá ia. Que, mais tarde, ainda havia de vir mais. Como a toda a mulher. Senhor Deus! Mas a teimosa ainda por cima corria em socorro de misérias de alma e de corpo que a sua juventude nem mesmo devia aflorar. A Odília não era lá grande coisa. Doente, má, revoltada, uma família impossível, um gênero nada como deve ser... Isabel imaginaria que a ia curar ou converter? Era mais fácil que a pequena Flaviot lhe transmitisse os seus micróbios.
- Marieta, és um velho dragão insuportável respondia Isabel a cada objecção da sua exigente guardiã.
E depois, com medo de a entristecer, beijava-a entre as rugas. E os pobres olhos de cão fiel iluminavam-se.
- Ao menos, promete-me que vais ser prudente. Só a beijas uma vez quando chegar e outra quando se for embora. Não a deixes servir-se do teu pente nem da tua borla de pó de arroz. Oh! Não é motivo para rir: naquela família, o pente e a borla andam por toda a parte e quem queira servir-se só precisa de estender a mão... E, se ela te disser mal dos pais ou da religião, se te contar histórias feias, fá-la calar. As tuas idéias não a corrigiriam e conversas desse gênero podem desorientar-te.
- Julgas que sou uma ventoinha que vira conforme lhe dá o vento?
- Não. Mas tens piedade. Ter piedade é belo, mas nunca sabemos até onde pode levar. Ah! Se chovesse a cântaros, a Odília ficaria lá na sua montanha!
Mas não choveu, e Odília veio da sua montanha. Jeanine examinou-a num relance de olhos e declarou:
- A Isabel almoça consigo na esplanada, Odília. com certeza que gostam mais e tomam ar.
Dois excelentes motivos. Mas havia um terceiro: Odília, mal vestida, mal penteada, muito pintada, produzia mau efeito no restaurante. Apresentá-la como amiga de Isabel? Isso nunca. Elas que almocem lá fora, que almocem lá fora.
- Ainda bem! - exclamou Isabel. - Assim podemos conversar.
Mas ficou inquieta. Meu Deus, contanto que a Odília, tão perspicaz, nada tenha adivinhado! Para que pusera ela aquele horrível vestido sarapintado e deixaria as melenas caídas sobre os ombros esqueléticos?
O senhor Morlainvile falou-lhe com bondade, uma bondade tão cheia de compreensão que Odília se admirou:
- O seu pai está esquisito... Há qualquer coisa nele que mudou. O quê? Não faço idéia. Mas acho-o muito mais simpático. Faz-lhe bem a montanha. Quanto à madrasta...
- Detesto o termo. Odília.
- Ora! Confesse que gosta dela muito moderadamente...
- Há uma quantidade de maneiras de gostar.
- Não confessará, já vejo. Que menina tão bem educada! Chega a ser ridículo. Enfim... seguindo a minha frase, - não vale a pena fazer esse ar impaciente-quanto à madrasta, está linda, e dum ch: - que, minha querida! Mas tão banal, como antes. E você, querida flor de "liseron", está cor-de-rosa e azul ao mesmo tempo, muito mudada, mais crescida. Está a tornar-se tão mulher!
Isabel apressou-se em passar-lhe o aperitivo.
- Come-se bem, no seu hotel - declarou Odília, servindo-se das delicadas rodinhas. - Está-se a fazer gulosa, Liseron?
- Sim e não... Gosto das coisas boas. Mas tenho a impressão que, em caso de necessidade, poderia passar sem nada.
- Bela disposição... Quando estivermos em guerra sofrerá menos do que os outros.
- Então acredita na guerra? - admirou-se Isabel.
- Evidentemente, é uma coisa que pode estalar dentro de oito dias. Vamos, não perca as suas lindas cores. Ninguém sabe o que está para acontecer, e eu ainda menos do que os outros. Contudo, a mim, não me desagradaria uma guerra.
- Como pode dizer uma coisa dessas?
- Desde que o penso... Sim, a minha vida é tão aborrecida que desejo um grande choque. E, além disso, num mundo de tormenta, eu já não seria um ser de excepção, isolado. Tomaria, muito naturalmente, um lugar na fila dos infelizes.
Isabel escutava com horror aquela rapariga. Um monstro? Apeteceu-lhe fugir, deixando-a sozinha com o seu belo almoço e as suas idéias atrozes. Mas reparou em todos os estigmas com que a doença marcara Odília: faces encovadas, olhos pisados, orelhas transparentes, dentes estragados... Ouviu aquela tossezinha... E a alma também sofria. Então, como o previra Marieta, teve piedade.
Oh! Encostar ao seu ombro aquela cabeça mal penteada, acariciar as linhas duras daquela face, beijar aquela testa suada, dizer "tu" em lugar de "você"...
Mas não ousaria, naquele terraço onde riam as toalhas e os vestidos alegres, seguir o impulso do seu coração emocionado. Além disso, as severas recomendações de Marieta oprimiam-na.
com um suspiro, disse somente:
- Como deve sofrer para pensar assim, Odília!
- Brutalmente-replicou a outra com aspereza. - Não o sabia ainda, menina privilegiada?
Os dois olhares encontraram-se por sobre os ciclames da mesa. Vinha tanto amor dum lado, que o ódio recuou do outro. Mas Liseron vira o ódio nos olhos daquela que, apesar disso, se dizia sua amiga. E alguma coisa soluçou dentro de si:
- "Não sou capaz de encontrar as palavras que consolam. Não sou suficientemente boa. Prendo-me a tanta coisa..."
De boa vontade teria atirado à água o seu lindo vestido, as suas jóias de Verão, para se tornar igual a Odília e para que o relâmpago de ódio não tornasse a atravessar o olhar de amizade. Mas, para isso, ser-lhe-ia preciso mais, ser-lhe-ia preciso deixar de ser aquela Liseron-poetisa e tornar-se uma alma seca e tiritante. Porque, acima de tudo, era isto o que Odília Flaviot invejava de Isabel Morlainville: a riqueza da sua personalidade.
Perturbação. Como é difícil fazer bem! Como nos sentimos limitados, avaros de nós mesmos, fechados numa prisão de timidez! Aquelas almas irradiantes, Pedro Jacquelin, Rosa Martin, a Sr-a D. Inês, como o conseguiriam?
- "Ah! Se irradiam, é porque são luz. Eu, qual é a minha chama? Está sempre a vacilar..."
Não sabia que o seu olhar a possuía, a essa luz. E que bastara que os olhitos de maldade se encontrassem com aqueles grandes olhos de amor para que a ternura substituísse o ódio.
- Não falemos mais da guerra nem de outras calamidades. Comamos. É bom.
Comia com o apetite caprichoso do doente, ora voraz, ora sem gosto.
- Este frango nevado está estupendo... Diga-me, a linda Estefânia divorciar-se-á em breve?
- Não se divorciará nunca - disse Isabel, de súbito rígida. - Na nossa família? Não pense nisso.
- A mãezinha era divorciada antes de casar com o Sr. Raviot. Ah! Não sabia que ele não é meu pai? A mãe quis que eu usasse o mesmo nome que eles.
- Não sabia. Confesse que vocês três não formam uma família muito feliz.
- Um verdadeiro pai faria por que eu fosse melhor educada, mais instruída, melhor alimentada e melhor tratada. Um verdadeiro pai não resmungava para pagar a minha estada na montanha. O pai, aquele a quem chamo pai? Irrita-se comigo e tem razão... Voltando à sua irmã, o Cláudio Ariel escreveu-me. Diz que ela tem uma atitude deveras singular em Monte-Carlo e que, mais dia, menos dia, o senhor Bastien estalará... bom, cá temos esta criança outra vez verde. Que fará mais tarde com um coração tão sensível? Isso tem forçosamente que endurecer.
- Ou quebrar - disse Isabel tentando sorrir.
- Às vezes, pergunto a mim própria como se consegue viver, sofrendo tanto? Vendo sofrer tanto?...
- Habituamo-nos... A propósito da Fani, há-de mostrar-me a sua sobrinha. Uma toleirona como ela, não?
- Oh! Um amor, um amor... Toleirona, com vinte e dois meses? Pobre Edite! Se soubesse como é engraçadinha, ainda um bebê, e tão esperta! E os cabelos... os olhos...
Odília, que, apesar dos seus maus repentes, era amiga de Isabel, alegrou-se por ter encontrado um tema de conversa que lhe devolveria a sua habitual boa disposição.
- Ah! Gosta de crianças? Há-de ter uma dúzia. Eu, só quereria uma, para a amimar mais.
- Que seria da França, se todas as mulheres só quisessem um filho!
De novo pensaram na guerra. Oh! Aquela sombra que se sobrepunha à alegria azul do Verão!
Um cisne aproximou-se reconhecendo a hora em que se lhe atiram restos de bolo. Elas contemplavam-lhe o lindo colo inclinado e as asas que se abriam em leque, perladas de gotas de água. Pureza... Isabel amava aquela alvura que o espelho do lago reflectia. Pensou na sua amiga Rosa Martin, a caixeirinha que vendia perfumes, que adorava todos os brancos e atravessava as piores situações sempre tão pura.
Odília, habituada a fazer repouso e cansada pela excitação do passeio, deitou-se no terraço e adormeceu. Isabel foi buscar o bloco e a caneta para escrever ao Florêncio. De passagem deteve-a a voz imperiosa, tenaz, dum locutor de rádio:
- "Situação diplomática extremamente tensa".
Sempre a mesma sombra...
Encontrou Hugo que lhe propôs um passeio de barco e ficou aborrecido com a sua recusa. Tanto pior.
Admirou Edite adormecida. Avistou o pai debruçado para o jornal. Uma grande ruga atravessava-lhe a fronte.
Voltou para junto de Odília que, apesar das camadas de pintura, estava pálida como cera. E pôs-se a escrever ao Florêncio. Alegria. Força Paz. Ar livre e puro para a alma. O seu mundo... É claro, falou da guerra.
- "Se ela se declara, não sei o que faremos, tão próximos da fronteira. Florêncio, não consigo acreditar que possa acontecer uma coisa dessas! E você? Aqui continuam a divertir-se ou a fingir que se divertem. Tenho a certeza de que, no fundo, ninguém se sente feliz. O paizinho fala pouco. Tem paz e é bom. É grande. Estou a definir-lhe muito mal esta impressão... A mãezinha nem mesmo quer que se pronuncie a palavra guerra".
O despertar de Odília recebeu a claridade do sorriso de Liseron. Afigurou-se-lhe que era de novo uma criança feliz, e pura.
- vou ver se a Edite já acordou e trago-lha disse Isabel.
- Não tem um pente que me empreste? - perguntou Odília, o que a divertiu. Marieta previa tudo.
Lá em cima encontrou o bebê bem desperto. Delicioso pôr-lhe o vestidinho de tobralco e enrolar-Lhe o caracol de oiro. Alexandre interrompeu o trabalho para as ver passar: achava lindo como um filme, o dia da menina Morlainville.
- Lili - dizia a voz da criança - leva-me ao cisne. Ele não é mau, pois não? Diz... Oh! A Edite não tem pão para lhe dar!
Alexandre, que limpava o corrimão, ouviu e inclinando-se diante da pequenita como se ela fosse uma rainha:
-Vou buscar pão para a menina.
- Oh! muito obrigada, não se incomode disse Isabel com um sorriso.
Ah! Um sorriso daqueles, vale bem mais do que uma gorjeta!
Dirigiram-se para o cisne. Isabel regulava o passo pelo da companheira que saltitava a seu lado.
-Lili! Lili - cantarolava a criança.
O olhar levantava-se, procurando o da madrinha, tão alta. E a mão pequenina sentia-se protegida naquela mão, segura e terna, que tinha umas unhas envernizadas, tão bonitas!
Ainda mais pálida, Odília espreguiçava-se. Exclamou:
- Que lindos olhos! Que lindo cabelo! Que lindo vestido! Dá cá um beijinho, meu amor de bebê!
Já atraía a criança.
- Não! Não! - protestou Isabel. Odília afastou Edite e disse duramente:
- Esqueci-me de que sou uma pestífera. Obrigada por mo ter lembrado - Edite olhava-as espantada, assustada; qualquer discussão fazia tremer aquela petizinha que vira o pai e a mãe insultarem-se um ao outro... A Lili falara tão alto! Fez beicinho... Isabel, presa entre aquelas duas dores, julgou-se uma grande culpada. Murmurou:
- Perdão. Odília. Sou responsável pela petiza, compreende? Mas beije-me a mim.
Odília empurrou-a com o cotovelo.
- Para trás, flor de Liseron. Não há necessidade que a baba do meu beijo pouse em si.
Então foi Isabel que a beijou, tão ternamente que um ímpeto de afecto diluiu o rancor de Odília.
- Adoro-a, Liseron. Sou como um animal ferido... Mas você, minha Liseron! Não deixe a vida murchá-la. A miséria do mundo precisa de beijos como este. Mas fez-me mal o seu gesto de proteger a miúda. Compreende? Então, acha-me muito doente? Mas eu não quero morrer, não, eu não quero morrer, tenho medo da morte, Liseroncom o rosto entre as mãos, lamentava-se com lágrimas. E o bebê olhava, olhava... Quanta profundidade naquele olhar de inocência! Saber-se-á até que ponto os pequeninos compreendem? Saberse-á se estas primeiras visões dolorosas não marcarão indelèvelmente a sua vida? Isabel teve medo pela afilhada.
- Edite, esqueceste-te do cisne. Ele está cheio de fome.
Lenta e forte, a alvura da ave rondava. Edite soltou uma gargalhada, uma grande gargalhada de bebê, vinda lá do fundo e mostrando os dentinhos de pérola- Dá o pãozinho, Lili!
Odília, ouvindo rir assim, ergueu o rosto para o céu e, numa voz estrangulada:
- Feliz idade! Ah! Devíamos ser crianças toda a vida! Ou, então, morrer!
DIA esplêndido de Verão. Mas porque será tão triste?
Entre o perfume das rosas vermelhas da sala, as mulheres trabalham. Os homens e as raparigas estão de pé. Florêncio, de braços cruzados, domina o grupo das irmãs. Olha o pai, esse homem que nunca fala inutilmente e que nunca se arrepende das decisões que toma.
O senhor Morot-Léandre conclui assim a breve exposição que acaba de fazer aos filhos:
- É inútil aterrorizarem-se. A guerra e a paz são igualmente prováveis. Mas o meu dever é retomar o meu posto. Vocês ficam na Châtaigneraie até que a situação se aclare. Parto amanhã com a vossa mãe.
Silêncio. Dois passarinhos- não sabem de nada, aqueles felizes! - cantam na tília como nos outros dias. Finalmente, Noelle ergue o rosto de traços ousados:
- Paizinho, se houver guerra, eu vou para a frente.
- Irás, minha filha, para onde os chefes acharem útil a tua ciência tão rudimentar.
Ela baixou a cabeça: tinha razão.
- Paizinho, - disse Catarina ardentemente eu não vou ficar escondida no Limousin, não. Quero fazer alguma coisa.
- Fazes camisolas. Rezas.
As duas mais novas estão de mão dada.
- Achas que nos bombardearão, aqui? - perguntou Solange, com mais curiosidade do que medo.
Denise sente vontade de chorar. Mas os Morot-Léandre nunca choram.
Florêncio cala-se. Não sei que fluido lhe percorre o corpo. É novo, forte. O bastante para ser soldado. Mas o pai de família recusará, com um daqueles "não" peremptórios. Ah! Florêncio já conhece aquele "não!" A Escola de Aeronáutica... O noivado... E não pode impedir-se de adorar aquele pai de autoridade rude.
A senhora Morot-Léandre deixou cair o trabalho nos joelhos- Olha Florêncio. Resignar-se-á à inacção? Ah! O seu filho vale mais do que isso! E, todavia, vê-lo afastar-se sem saber se a sua juventude será ou não ceifada, que angústia! A Mãe pensa: "fica". A Francesa pensa: "vai". Que reaja, aquele rapaz, que reaja! Ela sabe que o pai também o espia em sobressalto e que, se o Florêncio nada disser, ele o desprezará.
Florêncio nada disse. Saiu da sala atrás das raparigas. Desceram os degraus da escada exterior de cabeça baixa, graves, envelhecidos de súbito. Mas, uma vez no jardim, as duas petizas põem-se a correr como de costume. Perseguem-se aos gritos, às gargalhadas. Certas pessoas pensariam: "Não têm coração". Mas os psicólogos sabem que a criança tem o pudor dos seus sentimentos. Solange e Denise brincam exactamente como nos outros dias. Todavia, pensam nalguma coisa terrível. Não cessam de pensar, no meio de risos agudos.
Para pensar nessa mesma coisa terrível, os outros separam-se. Catarina, a cigana, trepa para um pinheiro. Aquilo dá-lhe uma sensação de isolamento de sabor selvagem. Noelle, sentada junto da ribeira, escuta o rumor da água saltitando por entre as pedras do leito. Quer servir, tomar o seu lugar no grande drama, se houver drama. Já não é criança.
O seu coração amadureceu por um desgosto de amor, o espírito, pelo estudo. Nos hospitais aprendeu a conhecer a miséria dos corpos. Saberá pensar e compreender. Florêncio, esse, dirigiu-se para o ponto onde a ribeira é mais profunda. Mergulha, nada, tem necessidade de lutar contra qualquer coisa.
Sobre todos eles, estende-se o céu de Verão, azul, imperturbável na sua alegria. Alegria? Quando na Europa ronda o terror!
- "Nasci tarde demais" - pensa Florêncio. - "Se eu fosse maior..."
Ao sair do banho encontra André Solignac, um rapaz da quinta.
- Sabes, - anunciou André - se isto rebentar, alisto-me. O meu pai quer. E tu?
Florêncio apanhou um ramo de nogueira e quebrou-o.
- Porquê? O teu pai não quer que partas? perguntou André, que compreendera sem que o outro falasse.
- Não lhe pedi nada hoje... Para quê?... Já sei perfeitamente o que ele me vai dizer: "Trabalha, meu rapaz... E bater-te-ás na próxima". A próxima: querem sempre guardar para mais tarde, os pais, mas nós... é já que queremos agir.
- Sim, imediatamente. Mas se tu não pediste nada, meu velho!
A cólera explodiu:
- Há quinze dias que lhe ando a falar nisto, meu idiota! E o pai responde que não tenho largura de ombros suficiente; que tem a responsabilidade do filho; que hão-de precisar de nós para substituir os que morrerem primeiro; que, partindo ele, visto que é oficial de reserva, serei eu o chefe da família; que prestarei melhores serviços se primeiro adquirir o meu valor, etc. etc. Chegou mesmo a ameaçar que me dava um estalo, num dia em que o macei mais do que o costume.
- Ora! Um estalo - disse filosòficamente André- não magoa, quando vem de um pai.
- Magoa, quando se destina a mostrar ostensivamente que não se passa de um badameco imbecil.
Zás... outro ramo quebrado. Vergava ao peso das nozes. Florêncio quebra-as com os seus belos dentes quadrados, e come-as enquanto caminha.
- Come, homem! - diz ao amigo. - São estupendas!
- Felizmente que não te agarraste com a mesma fúria aos ramos de uma macieira.
- Estou convencido de que desenraizaria um castanheiro, tal é a minha fúria!
André é um rapaz senhor de si. Compadece-se do nervosismo daquele parisiense. Dá-lhe o braço:
- Ouve, se eu fosse a ti, teria uma boa explicação com o teu pai. Estou certo que ele te compreende melhor do que imaginas. Quanto às bofetadas...
- O meu pai nunca cede, nunca, estás a ouvir? Receberia de boa vontade uma centena de bofetadas se com isso obtivesse... Oh! as coisas com que sonho há dois anos.
André sabe muito bem quais são "as coisas"; a aviação, o noivado. Mas não falará de Isabel: seria demasiado profundo, delicado e doloroso. Recorda-se daquela bonita rapariguinha alta e delgada, dos seus olhos azuis, um pouco tristes, do seu sorriso alegre, dos seus caracóis negros, soltos ao vento. Dizia-se por toda a vila:
- É a prometida do Morot-Léandre filho. E, depois, nunca mais ninguém a viu.
André meditava com a sua sabedoria de camponês, sabedoria que o estudo dos clássicos alargara.
- O que é certo-disse finalmente- é que o teu pai te não dará licença para te alistares já.
- Voltar àquela escola pardacenta, para preparar a admissão ao Técnico? Não e não. Não quero ser engenheiro, nem de pontes, nem de minas, nem de electricidade, nem de caminhos de ferro, nem de nada!
- Não te enerves dessa maneira. Ouve: procura uma coisa entre as duas, uma coisa que não te mace, e que ajude a voar ou a bateres-te mais depressa.
De súbito Florêncio desatou a rir:
- Óptimo! Achei! Oh! Obrigado, meu velho. Aperta-me estes ossos... Talvez não consiga nada mas vou tentar a minha sorte. Oh! André! És um tipo estupendo! Despertaste-me o cérebro. vou dizer assim ao paizinho: "O Técnico? Detesto aquilo. Trabalho sem gosto e hei-de chumbar indefinidamente. Deixa-me fazer a admissão a Sáint-Cyr".
- Saint-Cyr! - repetiu André.
Diante dos olhos de ambos passou o desfile moço e encantador dos cadetes vestidos de azul com um capacete de neve e púrpura.
- Bela idéia... Uma vez lá, podes estar certo que hás-de servir. E, além disso, com certeza que assim se te tornará mais fácil voar, não achas? Vai já falar-lhe enquanto não esfria o entusiasmo. Gira... Fico a pensar em ti.
- Obrigado, André!
E Florêncio desatou a correr:
- Mãezinha! Onde está o pai?
A senhora Morot-Léandre estava a fazer as malas. Voltou-se e viu que alguma coisa de novo despontara na alma do seu filho. Mas não sabia onde estava o pai. Florêncio procurou, chamou. Por fim, correu para a ribeira, viu o vestido branco de Noelle, que lhe disse:
- O paizinho está a pescar lá em baixo.
Meu Deus! Quem poderia supor que aquele homem pensava na guerra? São assim, os tempos modernos: continua-se a viver simplesmente, sem contudo se ter a certeza de nada.
Florêncio sentou-se junto dele. E falaram da pesca à linha. Naturalmente, os peixes deixaram de morder, mas o pescador resignou-se. Havia outro trabalho visto que o rapaz ali estava.
No fim de cada frase - frases estúpidas, ocas
- Florêncio dizia consigo: "É agora". Mas, impossível: as palavras de sentido pleno ficavam no tinteiro. Por fim pensou em Isabel. E teve coragem.
- Paizinho, queria falar-te... Se a guerra rebentar, deixar-me-ás partir?
- Agora, não, sabes muito bem. Para que havemos de voltar ao mesmo assunto?
- Não voltarei. Mas tenho outra coisa a pedir-te. Fui reprovado no Técnico...
- Sim, não é nenhuma glória.
- Também não digo que o seja. Mas detesto aquele trabalho. Já que não queres que realize a minha idéia e que voe. deixa-me ao menos preparar-me para ser outra coisa diferente de engenheiro.
- O país precisa de engenheiros- Tanto para a paz como para a guerra.
- Mas não de engenheiros medíocres como eu seria. Paizinho, o país precisa também de homens que o protejam nas fronteiras e que ensinem aos novos, o que é patriotismo. Já que achas que deves recusar-me a entrada na Aviação, deixa-me fazer a admissão a Saint-Cyr. Desde que tudo se tornou tão mau que me sufoca a idéia de que passarei a minha vida a fazer cálculos. Estou farto do quadro negro, meu pai... Compreende-me... Não seria teu filho se me resignasse a ver por terra todas as minhas aspirações. Dá-me a impressão que a França me chama. Deixa que seja este o meu "Presente!"
Os cotovelos nus fincados nos joelhos das calças de linho e o rosto apoiado nas palmas das mãos, calou-se. Não há necessidade de falar muito, entre homens.
Na superfície da água deslizou o reflexo azul das asas de um pica-peixe.
O senhor Morot-Léandre, maquinalmente, tirara o chapéu de palha. Que saudaria? Talvez a juventude ardente do filho.
Por fim, Florêncio levantou-se e partiu sem dizer palavra. Catarina viu-o do seu pinheiro.
- "Alguma coisa se passou. Ainda bem. Parecia um farrapo há bocadinho. Um rapaz que aceita que se batam sem ele, que vergonha! Apre!"
E sacudiu a cabeça sempre cheia de árias de música.
A senhora Morot-Léandre viu o filho através da janela, a que se debruçava de tempos a tempos, para guardar no coração aquela imagem que amanhã já não veria. Que talvez nunca mais visse...
Ele gritou:
- Posso subir, mãezinha? Apertou-a nos seus grandes braços...
- Mãezinha! Pedi uma coisa ao pai. E ele não respondeu. com certeza que te vai falar nisso. Suplico-te, meu amor pequenino de mãezinha, defende a minha causa. Não queres que eu seja infeliz como uma pedra e resmungão como um porco-espinho, toda a minha vida, pois não? E estou convencido de que tu vais gostar do que eu pedi. Vais ser o meu advogado, diz? Juras? Oh! Que rica, que rica mãezinha que tu és! A mais bela dentre as belas!
Beijos loucos naquele rosto alto, já vincado pelas rugas, causadas pelo cuidado dos filhos, naquelas faces ainda de um cor-de-rosa delicado, mas encovadas. E, para findar, nas pálpebras cansadas, flores prestes a desfolharem-se.
- Tolinho! Tolinho! Sufocas-me! Mas era delicioso aquele sufocar.
No dia seguinte, à hora do pequeno almoço, o senhor Morot-Léandre disse ao filho, numa voz sem expressão:
- Preciso de falar-te. Quando acabares as tuas inúmeras torradas, vem ter comigo ao quarto da mãe.
- "O Florêncio fez alguma asneira" - pensaram as raparigas.
A idéia fê-las estremecer.
A avózinha, que cortava de um grande pão as famosas fatias, também se assustou:
- Deixa-o almoçar, coitadinho do pequeno! Olha, Florêncio, come mel.
Já a porta batia atrás do pai.
- Já não tenho fome, avózinha - disse o rapaz. E levantou-se para rectificar ao espelho o risco do cabelo.
Denise, que tinha vontade de chorar, levantou-se da mesa e estendeu-lhe os braços:
- Dá-me um beijinho, Flô.
Como é doce, refrescante, um rosto de garotinha! Se houvesse guerra, perderia tudo aquilo? A mãezinha, a avó, as irmãs, Liseron... Oh! Mulheres, mulheres de França...
Lá em cima, a mãe vestia aquele lindo roupão cor-de-rosa. Sentada aos pés da cama, fingia que apanhava as malhas de uma meia. Mas as mãos tremiam-lhe. O pai, que olhava pela janela assobiando, voltou-se:
- Olha, meu rapaz, pergunta à tua mãe o que decidimos e agradece-lhe.
- É ao pai que deves agradecer, meu querido
- disse a senhora Morot-Léandre. - Ele permite a tua candidatura a Saint-Cyr.
- Obrigado, paizinho - disse ele, numa voz rouca. - Juro-te que serei recebido. E com boa classificação.
- Assim o espero. A França precisa de valores. Disseste e muito bem: serias um medíocre como engenheiro- Torna-te um ás como soldado. A tua mãe convenceu-me. É um grande coração, a tua mãe.
Florêncio ajoelhou-se e beijou aquela mão que tinha o dedal preso num dos dedos.
- O teu pai tem outra coisa a dizer-te - murmurou ela com os olhos húmidos de lágrimas.
- Ou antes, a pedir-te. Uma promessa. Sei que és um rapaz de palavra. És capaz de ter cá os teus amigos Morlainville sem fazeres a corte à petiza?
- Não compreendo, paizinho.
- Evidentemente... A mãezinha e a tua avó, que são a bondade personificada, há dias que se inquietam por causa dos dois pequenos. Por isso, telefonei ao senhor Morlainville e propus-lhe que mandasse Isabel e João-Lucas para a Châtaigneraie, onde ficarão até que as coisas se definam. Há só uma coisa, meu filho: não vais aproveitar-te da ocasião para fazeres romance. Portanto, espero de ti a promessa seguinte: Isabel Morlainville será tratada por Florêncio Morot-Léandre como a amiga das suas irmãs, uma gentil companheira, e é tudo.
Florêncio calou-se. Uma promessa daquelas... Por fim, levantou os olhos, aqueles olhos puros e ardentes que o pai admira em segredo:
- Prometo. A Isabel pode vir.
As três sílabas do nome querido tinham adquirido não sei que magnífica gravidade.
JOÃO MORLAINVILLE vira o comboio partir. A sua filha, o filho, aquela pequenina Edite que lhe chamava avôzinho... E Marieta, cujos olhos castanhos o contemplavam tão profundamente.
- Pode ficar descansado, senhor Morlainville,
- dissera ela - se houver guerra e... lhe acontecer alguma fatalidade, velarei por todos eles até ao meu último suspiro... Pela senhora também acrescentou depois de uma pausa.
Aquela última promessa trouxera certa paz ao rosto crispado do homem...
Voltou da estação num passo arrastado sob as arcadas. A vida continuada; os belos frutos da França, dourados ou cor de púrpura, brilhavam em todas as lojas; as mulheres passavam, vestidas de branco, raqueta na mão.
Sentou-se à sombra dos plátanos, esperando a hora do barco. A neblina esfumava os cumes das montanhas mais altas. Diante da beleza do lago e dos Alpes, recordou o rosto querido. Marieta dissera: "Velarei pela senhora..." Oh! Jeanine, Jeanine, que ele tanto adorava apesar das suas falhas, Jeanine que amava nele "o homem célebre" bem mais do que "o homem"!
João Morlainville, insatisfeito, queria agora ser amado como homem, simplesmente.
Comprou o jornal: notícias inquietantes, sempre. Enfim... os filhos estavam em segurança, em casa dos amigos do Limousin. Mas Jeanine?
Na véspera-cena breve cuja recordação ainda o queimava - Jeanine dissera-lhe:
- Escuta, João, nunca respondes à minha pergunta. Se houvesse guerra, tu não ias, pois não?
Já estás muito velho.
- E deixavas-me? - gritara Jeanine.
Olhou-a sôfregamente. Meu Deus, como a amava! E desde há tanto tempo!... Mas respondera:
- Sim, minha mulher.
E aquelas palavras "minha mulher" pareciam ter-lhe causado um choque. Nunca falava assim. Ela correra para ele, pousara-lhe no ombro a cabeça loira, aquela cabeça que tinha um perfume a cravo. Quando uma coisa é ameaçada, sabemos melhor quanto lhe estamos presos.
- "Então, é porque me ama por mim. Por mim, João Morlainville. Oh! Começava a detestar esse Romain Villanel que a conquistou!"
Foi o homem, o pobre homem, que sentiu repousar aquela cabeça no seu ombro...
Isabel assistira à cena. Recordava-a, no comboio que a levava para a Châtaigneraie. E, uma a uma, vinham-lhe à idéia todas as recordações dessas férias. Hugo continuava muito calmo - demasiado até - dizendo:
- Oh! Eu serei mobilizado na fábrica.
Alexandre já partira, sem que ninguém soubesse, excepto Isabel. Encontrara-o no jardim por acaso? - e o rapaz murmurara:
- Se a menina quisesse rezar um pouco por mim... Irei esta noite para o Centro de Mobilização.
Já não estava fardado.
Isabel estendera-lhe a mão: oh! não era para lhe dar gorjeta. E ele não ousava apertá-la na sua, tão estragada pelo trabalho. Então fora ela que a prendera. E, com um sorriso:
- Alexandre, rezarei por si todos os dias. Já tudo pertencia ao passado.
Para lhe recordar o presente e o futuro, aquele corpinho tépido de criança, dormindo encostada a si. Sim, levavam a Edite para a Châtaigneraie. Depois de muitas chamadas telefônicas inúteis, Jeanine ouvira, finalmente, a voz de Estefânia, do outro lado do fio:
- Mas que loucura! Não haverá guerra nenhuma. Estou rodeada de gente bem informada. Eu fico cá. Mas não sei o que hei-de fazer com a minha filha. A Isabel não a poderia levar para casa dos seus queridos Morot-Léandre?
Isabel lembrava-se da voz, que o telefone endurecia mais ainda: "Não sei o que hei-de fazer dela..." Meu Deus, uma mãe a falar assim! Não saber o que fazer dela!... Embrulhamo-la no nosso casaco e levamo-la até ao fim do mundo, se for preciso.
Com ternura, contemplava Edite adormecida. E Marieta contemplava Isabel. Ambos os corações estavam ocupados, satisfeitos no seu instinto maternal.
João-Lucas, esse, devorava um romance de aventuras.
E as horas passavam, monótonas. Encontraram-se com um grande comboio, cheio de reservistas que riam, porque, em França, achamos valente rir diante do perigo.
Chegaram ao Limousin à hora dourada do entardecer. As sombras estendiam-se, longas. O ar tinha um perfume de feno cortado. Reconheciam a paisagem. Mais um pouco, e eis a estação, orlada de campainhas. Uma rapariga muito alta, além: é a Noelle. E, a seu lado, Florêncio.
Edite é a primeira a sair como coisa preciosa. Mas ela não larga o pescoço da madrinha. Rabuja um bocadinho para ser beijada, porque todos se beijam, incluindo Marieta.
Florêncio mudou. Um homem. Intimida um pouco a sua Liseron quando se curva sobre Edite para a beijar.
- Cresceu tanto, Florêncio! - exclamou ela.
- E você mudou de penteado - responde ele, para dizer qualquer coisa.
Como era natural, foi um "qualquer coisa" idiota o que encontrou para dizer, e- fica aborrecido consigo próprio. Noelle morre de desejo por prender o bebê nos braços, mas não há nada a fazer! Os grandes olhos infantis estão cheios de susto. Ouve-se um murmúrio:
- Lili... Lili... Marieta resmunga:
- Ela é muito pesada para si, Isabel.
- Uma pena! - responde alegremente a rapariga.
E a camioneta do caseiro parte. Ah! Que sacudidela! Sabe tão bem! Mas Edite, habituada ao luxuoso automóvel do pai, tem medo e aperta-se ainda mais contra a madrinha.
Não a largou senão para dar a mão a Denise. As crianças atraem-se umas às outras. Edite pôs-se imediatamente à vontade com a rapariguinha que, maravilhada, esqueceu todas as ameaças da guerra, na sua alegria por ter um bebê, um lindo bebê de luxo na Châtaigneraie.
- Hás-de emprestar-ma, Isabel! -suplicou ela. - Queria dar-lhe banho e dar-lhe de comer...
- Está bem, mas eu penteio-a - declarou Isabel, o que fez rir toda a gente.
Só se sentiram verdadeiramente chegar, quando respiraram o perfume de maçã no vestíbulo. Isabel sorriu de prazer quando entrou no seu quarto forrado de esbatidos lilases. Uma caminha de criança estava ao pé da sua, pequena barquinha junto de um grande navio.
À sobremesa, foi servida uma imensa torta de ameixas. E, à noite, a rã lançou ao luar a sua nota de prata: seria ainda a mesma rã?
Isabel demora-se à janela. Um vento quente faz estremecer a seda do seu roupão até aos pés.
- Mas que chique que tu ficas assim vestida!
- tinham admirado as amigas. - Vamos parecer-te selvagens, bela dama de palácio! Aqui, a moda são os vestidos velhos, já sabes. Não tens nenhum? Pobre rapariga! Deixa lá; a gente empresta-te. Paz dessa noite de Verão... Como poderiam os povos pensar em bater-se? Isabel pensa nas mulheres, nas mães, nas filhas, nas noivas que não despregam os olhos desse ponto da Europa donde pode partir o sinal. O pai dissera: "Partirei". Ele, o paizinho? Que pai desconcertante! Ele, o poeta das cambiantes, iria ao encontro daquilo? Ele, o marido apaixonado de Jeanine, deixá-la-ia? Como mudara durante aquelas férias! Nunca fora tão reservado. Sentiam-no crescer, mas misteriosamente.
- Eu, não cresci - reconheceu Isabel. - Cheguei cá estúpida e medíocre, numa hora em que seria preciso heroísmo. Porquê? vou pedir ao Florêncio que me explique.
E adormeceu a pensar em Florêncio que adormecera impedindo-se de pensar em Isabel. Mas como estava encantadora, com aquele bebèzinho loiro pendurado ao pescoço! Tão frágil, e todavia criada para aquilo, para ter uma criança nos braços e inclinar-se para ela a sorrir. Há estátuas da Santa Virgem que dão esta impressão, de rapariga soerguendo o mundo inteiro no filho que tem nos braços.
No dia seguinte descobriram de novo a querida Châtaigneraie. Isabel, que achara muito velhos os vestidos das amigas, pôs o mais simples dos seus: não queria que o Florêncio a achasse feia.
Pobre Florêncio... Uma gentil companheira e é tudo. Julgara que lhe seria fácil: terrível, afinal! Porque Isabel, que nada prometera, procurava-o constantemente. Noelle, que o desgosto de amor tornara perspicaz, teve pena do irmão:
- Ouve, se eu fosse a ti, falaria francamente à Isabel. Explicar-lhe-ia o que o paizinho pediu.
-Como é que tu sabes o que é que o paizinho pediu?
- Deduzi, e as manas também o sabem. Julgas que nós somos cegas? Desenvencilha-te disto.
- Não. Deixar-me-ia levar a falar-lhe... ternamente. E a minha promessa impede-o. Não direi nada. Ela que pense o que quiser.
- Que tolinhas que são as crianças! - disse a irmã com um lindo sorriso triste.
Sim, são tolinhas... Isabel, primeiro decepcionada, depressa se tornou triste, inquieta. E fechava-se consigo mesma:
- "A culpa é minha, " - concluiu - "acha-me frívola, já não gosta de mim. Mas que farei eu, se ele já não gostar de mim?"
Tristeza horrível. As informações da rádio, que vão ouvir à quinta, caem pesadamente num coração que o desgosto tornou tão sensível. E já não pode consolar-se da sua dor pessoal e da dor da humanidade, embalando a pequenina querida. Denise adoptou-a. E, é forçoso reconhecê-lo, a Denise sabe brincar melhor do que Isabel.
Só. Completamente só, no meio de uma família. Mas Florêncio rígido, frio. Edite soltando-se dos seus braços a gritar:
- Denise! Denise!
Isabel vai muitas vezes até à pradaria onde a vista se estende. Precisa de um horizonte vasto. "Continue um "liseron", dissera o amigo Pedro, aquele que fizera que a sua alma desabrochasse. Não deixou manchar a sua frescura de "liseron", mas há poeiras... E é, sem dúvida, essa poeira que desagrada a Florêncio.
Viverá doutro modo, este Inverno. Se houver um Inverno igual aos outros Invernos. E mesmo
- e sobretudo - se for diferente. Recorda-se do seu desejo de ser, mais tarde, assistente social. Dois anos atrás, já dois anos atrás, o paizinho dera o seu consentimento, aqui, na ribeira. Mas depois Jeanine fizera uma careta:
- Vais cansar-te... Isso dar-te-á um ar solteirão... Impedir-te-á de casares. Diverte-te enquanto é tempo, minha querida.
Recuo. Renegar de Ideal! Ah! Era tempo de sair daquilo! Nesse momento trágico em que as almas deviam levantar-se, ela abriria as asas, as suas asas fracas de criança. Mas voar sozinha?
- Florêncio, preciso de si!
Era isto que lhe queria dizer. Mas como seria possível falar com um rapaz que lhe perguntava de mãos nos bolsos:
- Que tal o passeio, Isabel?
Ele trabalhava todo o tempo na quinta. Era triste, horrivelmente triste, a Châtaigneraie.
Em torno da sua dor adejavam amizades. Mas ninguém ousava falar. Aquele menino já tinha idade para tratar dos seus negócios, sem ajuda.
E Isabel sofria, como se sofre naquela idade, com a cabeça escondida no travesseiro.
E aquele sofrimento, que ela julgava pequeno e sem valor, ia juntar-se ao sofrimento das nações ameaçadas. E, depois, todo o sofrimento - o seu, o de tantos outros-unia-se misteriosamente ao grande holocausto do Cordeiro Divino que carrega sobre Si toda a miséria do mundo.
VOLTARAM os Fleurville - anunciou Solange, durante o almoço. - Ainda bem! Assim, com o Alain, já ficamos quatro para jogar o tênis: o João-Lucas e ele, a Denise e eu; ficamos quatro, como vocês, os grandes.
Catarina lançou um olhar severo à irmã: 'Não precisamos cá deles para nada. Uns pedantes! Proíbo-te que convides esse bucha do Alain.
- Bucha! Cresceu muito nestes dois anos e é um bom rapaz. Não achas, João-Lucas?
-Oh! Sabes muito bem que ele nunca me atraiu muito. E que burro! Quando me lembro das lições com o famoso preceptor que se chamava...
- Deleville... ou qualquer coisa no gênero sugeriu Noelle. - Lembras-te, Isabel?
- Delesalle, Bernardo Delesalle - rectificou Isabel, corando um pouco.
E Florêncio achou que ela se lembrava demasiado bem do normalista.
Noelle mudara de cor ao saber do regresso dos Fleurville: por causa de Gerardo e do seu pobre amor sem perseverança?
E Catarina, que conhecia todas as tonalidades da alma da irmã mais velha, declarou:
- Basta de Fleurville. Há dois anos que deixaram o Limousin para se irem divertir para sítios chiques, e só cá voltaram quando ouviram falar em guerra. Se vêm convencidos de que alguém lhes vai ligar importância, estão enganados. Deixemo-los. Ouviram, meninas? Quando os virem, tomem o vosso grande ar Morot-Léandre.
- Como é o ar Morot-Léandre? - Perguntou Denise.
- Altivo, independente e desembaraçado. compreendes?
João-Lucas pensou:
- "Esta rapariga é estupenda!" E Noelle:
- "Tem um grande coração, a Catarina". Isabel perguntou a si própria:
- "Saberei tomar um ar Morot-Léandre quando for a senhora Morot-Léandre? Altivo, independente e desembaraçado: nunca conseguirei. Se calhar é por isso que o Florêncio já não gosta de mim".
E o seu rosto encheu-se de tristeza.
Já eram duas: a Noelle e a Isabel. Felizmente, Catarina olhava pelo seu mundo. Propôs logo um passeio:
- Eu empresto-te as minhas sandálias, Isabel. Com os teus admiráveis sapatos de presilha, não irás muito longe.
- As tuas sandálias são muito feias para a Isabel - declarou Florêncio.
Ah! Então ele ainda se preocupava com ela? Um sorriso arredondou o rostozinho emagrecido - Sorriso da Isabel... Delícia do pobre Florêncio.
- Dar-me-á muito prazer calçar as tuas sandálias, Catarina. A mãezinha obrigou-me o Verão inteiro a usar sapatos que me aborrecem, por não poder andar depressa.
- Hoje vamos trotar, minha filha. Hoje vamos divertir-nos. Não, avòzinha, não levamos farnel. Merendamos numa quinta, com pão escuro, manteiga e leite.
E, a rir, toda aquela juventude esqueceu preocupações.
Rir, cantar pelo caminho. Enlambuzar-se de amoras. Colher um ramo de flores, depressa murchas, mas que se substituem.
Os sete juntos não somavam mais de cem anos. Sentir que têm os mesmos vincos marcados na alma, e que o perigo, a morte, encontrariam em todos o mesmo acolhimento, porque são cem por cento Franceses e baptizados, conscientes do seu baptismo!
Por sobre eles, o céu é já mais pálido porque o Outono ronda. Isabel acredita que a felicidade voltou. Nessa manhã, à sombra brilhante de orvaLho, no bosque, compôs versos tristes. Martirizaram-na, procurando caminho através do pensamento; todavia, sente-se mais rica e mais nobre. Quereria falar deles a Florêncio. Mas ele não pára de comer amoras.
Catarina vai à frente, rosto ao vento, com ar decidido. Dir-se-ia que caminha para a batalha, a Cigana. Um reflexo de malícia fez-lhe, por momentos, chamejar o olhar.
- "Que partida terá ela em mente?" - pensa
Florêncio.
Faz-lhe a pergunta. Ela responde com majestade:
- Estou a compor uma ópera. Sim, uma ópera, caro senhor. Cada um tem a sua arte. Tu, como engenheiro, preparas-te para modificar a face do mundo.
Ele encolhe os ombros. Ah! ainda pensam que será engenheiro? Decididamente, o Florêncio sabe muito bem guardar segredos.
Mas ela ri à socapa: conhece-os a todos, aos segredos do irmão. Saint-Cyr. A promessa de ser um rapaz de estuque, de mármore, de cimento armado, em presença da sua Liseron. Porque também sabe que lhe chama "Liseron".
Como ele encolhera os ombros - uma injúria ela deitou-lhe a língua de fora. E ficaram quites.
Ela retoma o seu lugar de chefe de fila e anda, fazendo balançar, como uma verdadeira cigana, a saia rodada. Enfurece-te, amigo Florêncio!
Merendou-se. Muito bem. A avòzinha enchera generosamente o porta-moedas de Florêncio. E o cenário era maravilhoso, com aquele prado florido de grandes margaridas. Um sítio para se ser feliz.
Noelle disse-o gentilmente; mas o proprietário da quinta respondeu, olhos voltados para Leste:
- Desgraçadamente, como viver feliz no meio de inquietações como as que atravessamos? Asseguram que tudo se arranjará, mas já da outra vez disseram o mesmo! O meu filho mais velho já foi mobilizado.
O pão já não parece tão bom. O pão da França... Quando os seus passos se afastaram através das sombras, já pairava um cheiro a noite.
- Isabel, - disse de súbito Catarina - vem ver um sítio estupendo, onde nós descobrimos uma nascente. Tu gostas de nascentes, bem, poetisa?
Frescura. Ajoelharam-se entre os fetos para beber.
- O João-Lucas devia ter vindo - lembrou Isabel. - Está sempre com sede.
- vou buscá-lo. Espera aqui por nós.
Estava calor. Isabel deixou correr a água da nascente pelos braços. E na alma também. Que silêncio...
Sim, mas por que razão não voltava a Catarina?
- Catarina!... Catarina!... Hú-hú!... Nenhuma resposta. Meu Deus, Isabel sufocava
agora naquele silêncio...
- Catarina!...
Nada... Ninguém. Três caminhos formavam a encruzilhada; qual havia de escolher? Hesitou, começou, voltou atrás; e, por fim, deixou-se cair junto da nascente. Tinha medo.
As lágrimas começaram a embaciar-lhe os olhos. Foi então que ouviu um passo aproximar-se. Catarina? Não, uma silhueta de homem. Quem, meu Deus? Que iria acontecer-lhe, ali, sozinha? E os outros que a tinham abandonado! De repente, o homem apareceu em plena luz. Deu um grito:
- Florêncio!
E, desatando a correr, caiu-lhe nos braços:
- Florêncio! É você, você.
Afastar aquela rapariguinha trêmula? Aquela cabeça que se refugiava no seu ombro? Não, não. E como impedir-se de a beijar ternamente, respeitosamente? Todavia, a sua promessa...
- Liseron - murmurou. - Minha Liseron. Então, ela olhou-o, com um olhar doloroso de mulher.
- Ainda sou a sua Liseron? Ele suspirou:
- Não o sabe, minha querida?
-Não. Julguei que já não gostasse de mim.
- Eu? Deixar de amá-la? Até à morte, gostarei sempre de si.
- Diga isso outra vez, Florêncio. Pensei que tivesse perdido o seu amor por minha culpa... Porque dancei muito na Saboia... Porque deixei o Hugo Lesoir dizer-me coisas... Porque me tornei mundana... Porque já não era tanto "liseron"...
Como ela se humilhava! Apeteceu-lhe ajoelhar-se. Mas não: a sua promessa... Afastou-a docemente:
-É sempre a mesma Liseron deliciosa. E, embora me irrite muito saber que agrada aos outros, nada posso fazer para o impedir.
- Então? Então? Porque é que me fez sofrer tanto?
- Sofrer? Minha pequenina... Sofreu mesmo? Ah! Sou um bruto. Perdoe-me. Mas se soubesse...
Contou-lhe sob que condição o senhor Morot-Léandre recebera os Morlainville. Ela admirou-o.
- É fantástico manter assim uma promessa... Mas devia ter-me prevenido, Florêncio. Fazer chorar uma rapariguinha tola como eu, é cruel.
É cruel - repetiu. - Perdão, minha querida. Sim, chamo-lhe minha querida: nunca mais torno. Beije o seu "companheiro", pela última vez... Juro-Lhe que não torno a ser um urso. Agora que já sabe tudo, será muito mais fácil.
-Sim, porque também me sinto ligada pela promessa. Mas, sabe que, nos nossos corações, nada mudou.
- Nada. Para a vida e para a morte.
- Florêncio, queria perguntar-lhe ainda uma coisa. O laço de veludo azul... lembra-se? Aquele que me tirou na floresta de Fontainebleau, há mais de dois anos, ainda o tem?
Da algibeira, ele tirou uma carteirinha de couro, donde saiu um lenço de seda branco e dele um laço, já desbotado. Pousou-lhe os lábios. E depois, bruscamente:
- Vamos ter com os outros, Liseron.
Se ele soubesse que, entre "os outros", havia conspiradores! Era aquilo, a ópera que Catarina preparava, com a cumplicidade de Noelle e João-Lucas.
Pelo caminho, Isabel disse-lhe:
- Florêncio, o seu pai exigiu uma coisa difícil. Quer que o ofereçamos, os dois? Pela França.
Ele deteve-se, e de olhos no céu:
- Sim, Liseron. Nestas horas de fogo, será a nossa maneira de ajudar o país. Já que nos acham muito novos para fazer outra coisa.
Ela pousou-lhe a mão no braço, por um instante, para que estivessem unidos na oferenda. Mas depressa se afastaram: as promessas obrigam.
E já principiavam o sacrifício.
A FIXARAM editais na Câmara - anunciou Marieta, que fora de madrugada à missa por alma do marido, que caíra naquele mesmo dia de Setembro, em 1914. -Uns grandes editais brancos. As mulheres choravam tanto que não tive coragem para lhes perguntar: "Que foi que aconteceu?"
Pousou na mesa o velho missal de folhas já soltas pelo uso.
- A guerra, Senhor Deus, ainda terei que assistir a outra?
Os lábios tremiam-lhe.
- Eu vou lá ver - disse Isabel. E fizera-se pálida pensando: "Paizinho!" Na sua caminha, Edite dormia com um braço
sob os caracóis de ouro.
- Pobre inocente! - murmurou Marieta. Vir ao mundo num tempo como este!...
E foi fazer "o seu trabalho", murmurando avemarias, que se iam juntar a tantas outras vindas de lábios de mulheres através do mundo ansioso.
Isabel voltou num instante:
- Nada de novo. Mas chamam certas classes de reservistas. Perguntei ao polícia. Ele disse que não devíamos perder a cabeça. Ah! assustaste-me, Marieta.
- Também eu me assustei. Mas tens a certeza de que a polícia te disse a verdade verdadeira? Vai ouvir as notícias à quinta... Mas come primeiro. Nem sequer pensei no teu pequeno almoço. Ah! Trato-me mal, estou a ficar velha, meu amor.
- Eu como quando voltar.
No fundo da escada encontrou Noelle:
- Onde vais? A casa dos Solignac? Também eu. No jardim encontraram Catarina. No caminho,
uns passos seguros, rápidos, alcançaram os seus: os rapazes. Todos iam ouvir.
Marcos e André Solignac receberam-nos. Sem uma palavra, sentaram-se na sala em volta do rádio donde saíram palavras de esperança ou de tristeza. Ireneu, o pai, também lá estava. Mas não Germana, a irmã. Então Ireneu disse lentamente:
- O meu genro acaba de receber ordem de partida.
A emissão vai principiar: algumas notas duma velha canção de França anunciam-na. Depois é indicada a hora, com os minutos, os segundos que marcam esse instante, único na eternidade. Enfim, ergue-se uma voz um pouco arquejante. As noticias são confusas. Toda a Europa tem febre.
Em torno da sala os rapazes parecem homens feitos, altivos: olhar duro, bocas cerradas. Isabel não conhecia aquele Florêncio. Ao vê-lo assim, compreende que o amor se poderá tornar para ele um sentimento secundário. Como conta pouco, um "liseron" no meio duma tempestade capaz de desenraizar carvalhos!
Uma manhã sem vida arrastou-se. Os pequenos suprimiam o trabalho de férias: para quê, se não se voltaria às aulas?
Só Edite ria, perseguindo um gatito alegre como ela. Dois pequeninos seres ainda no mesmo plano de inocência.
Mas, à hora do almoço, a avòzinha viu-se rodeada de rostos calmos e resolutos. Florêncio, que sentia dentro de si uma alma de chefe, reunira todo o grupo em volta do relógio de sol que lhe inspirava misterioso respeito. E, em voz seca, declarara:
- O paizinho disse-me: "Eis-te chefe da família". Como chefe vou dar-vos a senha. Primeiro: nada de neurastenia. É indigna de gente como nós. Só serve para semear o pânico. Abre buracos por onde entra a infelicidade. Segundo: coragem. Nada está perdido. E, mesmo que a guerra viesse, era preciso continuar de cabeça levantada. Portanto, a vida tem que continuar como de costume. Somente, seremos melhores. Combinado?
- Combinado-responderam todas as vozes.
- Olhem, a avòzinha é velha, a Marieta é velha.
A cozinheira é velha. Se nós, os novos, nos pomos a gemer, como é que elas hãO-de resistir? Ânimo, coragem, bondade, eis o programa. Cada um é livre de lhe acrescentar o seu grãozinho de heroísmo... De começo, vamos almoçar decentemente. Esta manhã um grupo de meninos sentimentais julgou mostrar o seu patriotismo recusando o café com leite. Digam lá se isto é inteligente?
- Estúpido - reconheceu a assembléia que, sem que ousasse confessar, sentia fome.
- Não é nisso que está a virtude, meus amigos
- continuou o orador. - No dia em que não haja que comer, apertaremos o cinto com bravura. Mas, enquanto isso não acontecer, comamos. É preciso que sejamos fortes.
Alívio, aquele gênero de heroísmo pesava. E, além disso, é tão bom encontrar de novo a verdade, a verdade que é sempre simples!
Isabel olhou o rapaz com terna admiração:
- Obrigada, Florêncio. Fez-nos fantàsticamente bem!
- Ah! Não tenhas dúvida - exclamou João-Lucas, menos rosado do que de costume. - Eu, por mim, estou a morrer de fome. Mas a Solange disse-me: "Não tens vergonha de pensar em comer num dia como o de hoje?
- Ora, a "menina" Solange tirou às escondidas um canto de pão do armário - revelou Catarina indignada. - Pobre João-Lucas, condenado ao jejum por aquela peste de criatura!
- Nada de zangas - disse a sensata Noelle. E nada de privações. O Florêncio tem razão: não é aí que está a generosidade das almas.
- Então em que é? - perguntou Denise. - Eu não compreendi muito bem.
Isabel envolveu com o braço aquela irmãzita do Florêncio.
- É preciso ser boa. Trabalhar. E rezar, querida. com palavras do nosso coração.
A criança apertou-se contra ela, sentindo que Isabel rezava verdadeiramente "com palavras do seu coração". Adivinham-se à transparência estas coisas.
Portanto, almoçou-se sòlidamente. A avòzinha, encantada por ver desaparecer a montanha de fritos, sentiu fugir a sua dor de cabeça e pensou:
- "com certeza que a guerra há-de ser evitada." Marieta, levando os pratos vazios para a cozinha,
apressou-se a anunciar à Eugênia, a gorda cozinheira:
- As coisas melhoraram, eles comeram tudo. Assim, a Châtaigneraie, aquela casa velha da
França, tornava-se mais França, porque um rapaz ordenara: "Coragem!"
Palavra de honra, dir-se-ia que até os heliotrópios tinham recuperado o seu perfume.
A todas as horas do noticiário, alguém corria à quinta. E, à tardinha, o Florêncio trouxera uma grande nova: as conferências começavam em MuniqueNo dia seguinte, levantaram-se cedo para ouvir a voz longínqua. E as três mulheres que os esperavam, ansiosas pela sua volta, compreenderam, apenas pelo seu andar, rápido, decidido, que não seria nada, a tal coisa terrível.
Mesmo assim, que alívio! Ousou-se rir, brincar, zangar-se. Catarina voltou ao piano e não reconheceu o que cantava dentro de si. E Noelle que todos os domingos via os Fleurville na missa, alegrou-se ao saber por Eugénia que "a gente do castelo" partira de novo. É que ela tinha medo de encontrar Gerardo numa curva do caminho e descobrir então que ele já não se parecia com o Gerardo que amara.
Mas agora, que a vida retomava o seu curso normal, era mais difícil aos noivos manter a atitude imposta pela autoridade paterna. Florêncio tinha acessos de cólera, Isabel, crises de melancolia. Nunca falavam um ao outro do amor que os unia e não sabiam que os seus olhos o revelavam sem cessar.
Juntos, tinham combinado o programa do próximo Inverno. Florêncio prepararia Saint-Cyr, Isabel entraria numa escola de serviço social. Não era possível continuar-se medíocre depois de se ouvir o rugido da tempestade que se aproximava. Varrera toda a poeira, aquele vento.
- "Ser puro, forte, livre, alegre" - pensava Florêncio.
- "Soerguer nos meus braços a miséria do mundo" - pensava Liseron.
E a palavra ardente de Guynemer mantinha as almas naquela generosidade plena, total: "Quando não se deu tudo, nada se deu".
- Como são felizes em se amarem assim! murmurava, por vezes, Noelle.
A sua vida seria apenas vida de médica? O amor e a maternidade não teriam lugar nela? A flor da sua juventude fora arrancada sem ruído- Será que a juventude pode reflorir?
Um dia, Florêncio interrogou Isabel a respeito de Estefânia.
Ela hesitou: eram assuntos de família. Mas Florêncio, pelo coração, também pertencia à mesma família.
- Os pais estão muito preocupados. A Fani sempre foi frívola. E imagine que deu agora em juntar-se com um grupo que desagrada ao Paulo. Zangaram-se. E as más línguas chegam a afirmar - uma coisa pavorosa, impossível! - que é questão de divórcio.
Florêncio olhou-a com um olhar trágico.
- Deus nos defenda duma coisa dessas, Isabel Nunca, está a ouvir, nunca o meu pai permitirá que eu entre numa família onde há um divórcio!
- Mas não haverá nunca, Florêncio!
- Conte-me tudo o que sabe. E o que supõe. Essa história põe-me fora de mim.
Pormenores dolorosos, humilhantes. Mas não teria ele o direito de o saber? E, além disso, aquilo aliviava Isabel, confiar-se a Florêncio, mais experiente do que ela e João-Lucas.
Quando acabou, teve uma pergunta ansiosa:
- Isto não quer dizer que eles pensem em divorciar-se, não acha?
-Quer sim, Isabel, quer.
- Mas a Fani é crente!
- Sem raízes. E o seu egoísmo, esse sim, tem-nas!
- A pequenina... Ela há-de ter piedade da petiza.
- Julga isso? O velho Paulo é rico, à filha nada faltará, materialmente. E o resto, para a Fani, não conta. Meu Deus, quando meu pai souber disto...
Deitou-se na terra a chorar, com soluços ásperos de homem que tem vergonha de chorar. E Liseron, de pé, tremia como a folhagem, diante daquela infelicidade que não pressentira. Sim, de pé, levemente curvada para que o seu olhar abrangesse aquele corpo nervoso e esmagado. Ah! Vê-lo chorar assim, a ele, ao Florêncio que a consolava sempre! Porque seria que lhe vinha à idéia a Mater Dolorosa, de pé, junto da cruz?
Apoiou-se contra uma árvore que a magoava através do vestido leve, crispou nela as mãos. Queria resistir. As lágrimas rolavam, mas sem ruído. Era o outro que soluçava. E ela sentia-se ligada pela promessa: não ergueria aquela cabeça querida para a pousar no ombro e beijá-la. Era preciso encontrar outra coisa.
Oração ampla, confiante, brotando directamente daquele coração de rapariga. Bênção que desce. Isabel, com a palma das mãos rasgada pela casca rugosa e os olhos cheios de lágrimas, chamou docemente:
- Querido.
Novo soluço. Um movimento. Ela repetiu:
- Querido. Florêncio. Gostamos um do outro para sempre. Nada nos poderá separar. Por que razão desespera?
Ah! Seria preciso que ela devolvesse a força àquele rapaz robusto?
- "Sim" - diz a bênção do Altíssimo. - "Foi para isso que Eva foi dada a Adão. Sê grande, garotinha! Sê forte, frágil mulher!"
- Querido. Quando a paz do mundo estava ameaçada, repetiu-nos: "Nada está perdido". Hoje é a nossa felicidade que oscila. Porque julgar tudo perdido? O Paulo é sensato, justo, e ainda gosta da Fani. Há-de perdoar, visto que ama. E ela, pobre Fani, no fundo, é boa. Nunca lhe contei que, na manhã do casamento, ela quis pedir perdão a Teresa... por causa do Sílvio. Sim, tão bonita, tão altiva com o seu vestido de noiva, humilhou-se porque a palavra do Evangelho a perseguia: "Se, no momento de subires ao altar, te lembrares de que há alguma coisa entre ti e o teu irmão..." Foi ela que me disse. E disse-me ainda: "Vai pedir à Teresa que me beije antes de eu ir para a igreja. Antes, ouviste?" Vê, ela não esqueceu o Evangelho. Porque não acreditar que o Evangelho a salvará mais uma vez?
Já não ouvia aquele soluçar na relva. Mas como a crosta era áspera sob a palma das mãos! Apesar disso, Isabel apertava-a, para resistir.
- Florêncio. Eu vou ter com ela. Falo-lhe da filha. E também de nós dois... Quando ela vir que o seu divórcio destruirá a minha vida, deter-se-á. Ela não é má, e garanto-lhe que é minha amiga. Florêncio, tenhamos esperança, lutemos. Eu sinto-me tão fraca para defender o lar de Fani e a nossa felicidade... É preciso que me ajude, Florêncio. Se chora dessa maneira...
Calou-se sem forças. Ele erguia-se, o cabelo cheio de folhas secas. Alisou-o com um gesto e, ainda ajoelhado, beijou-lhe a orla do vestido.
Mas, levantando os olhos para contemplar o rosto querido, viu que as mãos sangravam, aquelas mãos onde se incrustara o relevo do bosque. Então estendeu a cara para que as mãos feridas nela repousassem. E, baixinho, acalmado por aquela paz que descia, murmurou:
- Perdão, Liseron pequenina. Ah! Como o tempo é duro para os novos! Mas venceremos.
ISABEL despejava as malas uma por uma e as A recordações do Verão readquiriam estranho relevo...
- Ajudas-me muito, Edite.
A pequenina, muito orgulhosa, saltitava de cá para lá com as mãos cheias daquelas coisas lindas que a madrinha lhe confiava.
Porque Edite voltara com ela, rosada pelo ar do Limousin. Junto da cama de Isabel, uma camita de criança, como lá. Que decidira, finalmente, Estefânia? Ninguém o sabia.
Antes de deixar a Châtaigneraie, Isabel fizera confidências à avòzinha que, para melhor escutar, a tomara simplesmente nos joelhos, como se aquela rapariga tão alta fosse um bebê. Oh! Que alívio, já não ter tudo encerrado no coração!
A senhora Honorat comoveu-se. Isabel seria para Florêncio a companheira ideal. Mas esta ameaça de divórcio comprometia terrivelmente a felicidade dos dois pequenos. Florêncio nunca obteria consentimento para entrar numa família onde "aquilo" se tivesse passado.
- Minha querida, - disse a avòzinha -é preciso que a sua irmã se reconcilie com o dever.
- Ela é teimosa, orgulhosa, frívola. Por pouco não estragou a vida à Teresa. Agora vai recomeçar...
- Mas deteve-se a tempo... Porque havemos de esperar o pior?
- Oh! Porque a história do Sílvio e da Teresa acabou com o pedido de casamento do Paulo, que era muito rico. Deixou o Sílvio, de quem nem sequer gostava. Mas agora dizem que quer casar-se, e brilhantemente. Portanto...
A senhora Honorat comoveu-se. Aquele coração de rapariga, aquele coração tão puro, não é apenas o seu desgosto que o perturba; é o golpe no círculo de família; a desordem social; é a renúncia à idéia cristã. E é o destino de Edite...
- Avòzinha, o que fariam de Edite?
- Entregá-la-iam à mãe. Ainda é tão pequenina...
- Então, e o pai? Aquele homem adora a filha! Seria uma injustiça, uma crueldade privá-lo dela, a ele que não tem outra falta além de não ser novo nem divertido.
- Sim, uma injustiça e uma crueldade, portanto, é preciso que isso não aconteça, minha querida. Tu podes muito e hás-de saber exercer a tua influência. Conheço-te muito bem, sabes... Falaram-me tanta vez da pequenina Isabel e do seu coração.
Isabel tem vontade de perguntar: "Quem, quem é que falou?" Mas não se atreve. Esconde a cabeça naquele ombro roliço. E a senhora Honorat acaricia-lhe os caracóis negros e brilhantes.
-Disseram-me que ela estava sempre a pensar nos outros e que o seu sonho era fazer bem. Disseram-me que ela conhecia o segredo de consolar, de tornar bons os maus. Disseram-me: "Avòzinha, se conhecesse o coração de Isabel!"
Disseram-me... disseram-me... Como se tornava transparente aquela forma indefinida!
- Disseram-me tudo isto. Portanto, tenho confiança. O coração de Isabel há-de saber tocar o coração da pobre Fani embriagada pela sua fortuna e pela sua mocidade...
- Avòzinha, - suspirou a rapariga - porque é que não é minha avòzinha?
A velhinha pensou:
- "Oxalá eu o possa vir a ser!"
E foi a despedida... Encontrar-se-iam de novo, todos juntos, na Châtaigneraie? As coisas tremem, sacudidas pelo tempo...
Isabel, arrumando no armário aquele lindo enxoval de férias, muito elegante, que a senhora Morlainville escolhera para "o bicho do mato" tomava de novo, pouco a pouco, posse do seu quarto. A cada Outubro nos sentimos diferentes! Doloroso e belo ao mesmo tempo, o Verão que findava. E uma nova vida ia começar. Nova, devido aos estudos que esperavam Isabel. Nova, devido aos problemas que a atitude de Fani impunha. Nova, também, devido àquela como que purificação que a tempestade de Setembro operara nas almas. Já não era possível continuar amarrada a preocupações medíocres. As coisas grandes vinham colocar-se em primeiro plano.
Mas Fani, Fani, que não dera pela tempestade, continuaria como dantes?
Bateram à porta. E Marieta apareceu, solene:
- É a senhora Bastien. Tens de ir à sala com a menina. Tira-lhe o avental. A Fani acha que os aventais não são chiques.
- O caracol... O caracol... Deixa-me penteá-la. Estefânia falava numa voz alta e mole, muito
em moda.
- Oh! Minha querida mãe! - dizia ela a Jeanine.
Isabel entrou com Edite pela mão- Viva, minha boneca!
Edite, intimidada, escondeu-se atrás da saia da madrinha.
- Vai depressa dar um beijo à tua mãezinha
- murmura Isabel.
Um olhar inquieto que vai daquela senhora de que se lembra vagamente - mas que não tinha os cabelos daquele loiro -para a madrinhazita de todos os dias. Não se decide a largar aquela mão tão segura. Então, Isabel ergue a criança e pousa-a nos joelhos de Fani que a beija:
- Estás linda. Muito bem penteada. Tens um vestido muito bonito. És um amor de bebê.
Foi tudo o que encontrou para lhe dizer.
Edite, como pessoa bem educada que é, deixa-se ficar onde a madrinha a pôs. Dá um beijo à mãe. Mas não se atreve a falar. Estefânia irrita-se:
- Então, já não me conheces? Ah! A ingratidão dos filhos! Tens umas bochechinhas de maçã. Mas acho-te um gênero muito campónio. É tempo de a entregar a uma nurse de estilo. Vocês não se importam de ficar com ela por mais uns tempos? A nurse deve estar a chegar por estes dias.
- Não vais viajar outra vez?
- Por agora, não. Posso estar em minha casa visto que o meu amável esposo lá não está.
Como é dura! Vai ser difícil ganhar a partida.
- E tu, Isabel? - pergunta a mais velha. O que é que fazes este Inverno?
- vou começar o curso de Assistente Social.
- Ah! A velha mania da tua adolescência. Acho isso idiota. A minha mãe também, não é verdade? Diverte-te enquanto é tempo. Uma vez casada, minha filha, acabou-se a liberdade. Um marido que é sempre um tirano, miúdos, o "parece mal"... Temos muitas ilusões a respeito do casamento, acredita. O meu exemplo não te basta?
- Fani, - interveio a senhora Morlainville não deves falar assim diante da tua irmã.
- Porquê? Tenho muitos defeitos. Mas não sou hipócrita. De resto, a Isabel já tem idade para saber o que se passa na família. As coisas vão mal entre mim e o Paulo, não o escondo. Se isto quebrar é bom que o João-Lucas e a Isabel estejam prevenidos.
- E a tua filha? - perguntou ternamente Isabel. - Que será dela, se isso "quebrar?
- Não será um caso único. Evidentemente estas coisas são sempre aborrecidas para os filhos. Mas não se pode sacrificar uma vida a uma miúda de dois anos.
- Edite, dá um chi-coração à tua mãezinha diz Isabel. - Muito amigo, como tu sabes dar.
Sim, ela sabe, e obedece, guiada por um secreto instinto. A seda loira do seu cabelo acaricia o rosto da mulher. Os braços frescos apertam-lhe o pescoço sobre o calor de pérolas. E a boca, como um fruto, pousa-lhe na face. A maternidade vibra em Estefânia. com as pálpebras descidas, recorda o nascimento daquela criança. Sentira-se orgulhosa, mas fora doloroso. Fani não tem vontade de recomeçar. De resto, a filha é suficientemente bonita para que ela pense: "Esta chega! ". E beija-a terna, longamente.
- Na verdade, trataste-a muito bem. Agradeço-te muito teres tomado conta dela. Compreendes, tive tantas maçadas este Verão! A propósito, como vai a Teresa? Contente, por estar à espera de bebê? Gostaria de saber onde irão buscar o dinheiro para o sustentar. A não ser que a Teresa volte ao emprego.
- A Teresa? Quer ser ela a tratar do filho. O Sílvio começa a ganhar menos mal, sabes?
- Fazes-me rir... Uma ninharia. Enfim, a Teresa foi sempre uma original. Tu também, és outra original, mas estou convencida que já não tens o mesmo gosto pela mediocridade. O amor e uma cabana... Ouve cá, ouvi dizer que fizeste uma conquista, na Sabóia? Muito bem, o pretendente Lesoir. Uma situação sólida, uma família chique, mentalidade moderna. E parece que bonito rapaz.
- Mesmo nada. Há-de ser um bucha aos quarenta anos. Já começa. Um imperador romano.
- Estás a exagerar, Isabel - disse, rindo, a senhora Morlainville. - Ele tem até imenso chique e dança muito bem. Se os visses dançar juntos, Fani... Faziam um lindo par.
- Então, Florêncio já passou à história? Dou-te os parabéns.
Oh! Que vontade que Isabel tinha de se zangar! Mas não: perderia a influência naquela alma. Respondeu alegremente:
- Não te ocupes dos negócios do meu coração, Fani. Bem vês que não penso em casar-me, visto que vou amanhã matricular-me na escola. Olha, empresta-me a tua filha que está a amarrotar-te a saia. Gosto imenso desse plissado!
E falaram de modas, embora o espírito de Isabel estivesse cheio de pensamentos dolorosos e grandes.
À noite, quando o senhor Morlainville voltou do ministério, a mulher anunciou-lhe:
- Estivemos com a Estefânia. Voltou para casa dela e leva a miúda daqui a dias.
O rosto dele iluminou-se:
- Para casa dela? com o marido?
- Não... O Paulo anda em viagem de negócios.
- Falaste-lhe? Fizeste-lhe ver o erro em que está?
- Como é que tu queres impedir que uma mulher tão nova procure a sua felicidade?
Isabel ergueu os olhos para o pai. Ele compreendeu o apelo. Passou a mão comprida e esguia pela testa:
- A felicidade? Abusa-se do termo. O que é a felicidade?
Os olhos de Jeanine, aqueles olhos admiráveis, fitaram-no e, quase a gritar:
- A felicidade é amar, João!
- Amar? Nem sempre. Ah! Não seremos nós os culpados, nós, os escritores, que pomos o amor em primeiro plano e que justificamos, em seu nome, todos os pecados? Sim, Jeanine, todos os pecados. A tua filha cometerá um pecado imperdoável se deixar o marido que é bom, que a ama apesar das suas insuficiências, e que se farta de trabalhar para que ela seja rica. A felicidade, encontrá-la-á em casa. Não uma felicidade romanesca, certamente, mas sólida, segura e embelezada pela presença duma criança. A Fani tem que decidir-se a ser feliz ali, junto daquele homem e daquela criança, e não lá fora. Tudo o resto... Ah! tudo o resto é falso.
Jeanine escutava-o estupefacta.
- És tu, um poeta, um dramaturgo, quem assim fala? Mas não te reconheço. A felicidade que exaltas nos teus versos não se parece nada com essa felicidade austera. E as tuas peças de teatro. João, as tuas peças contradizem o que acabas de expor. Olha, a última, a que vai ser posta em cena, mostra precisamente o caso de uma mulher tida como bem-casada e que sufoca numa vida sem alegria. Quando ela foge a essa vida, aprovam-na.
João estava de pé, de braços cruzados. Escutava. E a sua atenção era intensa. Disse, finalmente:
- Sim. Compreendeste perfeitamente a minha peça, a minha peça má. Cheguei a esta monstruosidade: fazer aprovar o erro e o pecado. Obrigado por mo teres feito notar. Pequenina Isabel, peço-te perdão do que escrevi.
- Porque falas assim, João? "Patrícia" é uma obra esplêndida.
- Condenaste-a em três palavras, Jeanine: faz aprovar o mal.
- Pensa nos direitos da arte!
- Pensa nos direitos da família. Se uma só mulher, vendo a minha "Patrícia", se separar do marido, julgando-se no direito de fazer o mesmo, serei um criminoso.
- Isabel, o teu pai enlouqueceu - disse Jeanine, que fazia por rir. - Esta Fani dá-nos volta à cabeça... A propósito da "Patrícia", tenho que fazer um vestido para a estreia. E tu também, Isabel.
- É inútil. A Isabel não vai ver "Patrícia".
E aquele homem calmo saiu atirando com a porta.
- Se eu esperava uma coisa destas! - exclamou Jeanine. -Uma peça em que ele trabalha há meses e pensa há anos! Decididamente, os poetas são doidos! Não te cases senão com um homem de negócios, minha pobre Isabel.
MARIETA, de metro na mão, tomava as medidas de Isabel, desde o ombro à orla do vestido. E, abanando a cabeça:
- Ainda cresceste mais. Não é bom espigar tanto. Cansa as raparigas. E com a vida que vais levar...
- Oh! Dragão, confessa que o teu sonho seria ver-me bordar o enxoval ao canto da janela, como as raparigas dos tempos idos. Nós, morreríamos de pasmo.
- A tua mãe era o que fazia. E nunca andava aborrecida.
- Sabes lá! Nem ela o sabia. Sonhou demais, coitadinha; foi talvez por isso que morreu.
- Na verdade, - murmurou Marieta - se tivesses muito tempo livre para sonhar, tu... Bem, já que é preciso, vou então cortar a tua bata de enfermeira. Meu Deus, contanto que não vás apanhar doenças lá nesses teus hospitais!
- Estás a tornar-te aborrecida, Marieta! Tem cuidado!
- É sinal de que estou velha... Oh! Sinto-o bem. Vês tu, aquelas histórias da guerra cansaram-me.
- Esquece-as, visto que, graças a Deus, tudo se tranqüilizou.
Mas Marieta sentia bem que aquele gênero de tranqüilidade nada tinha de sólido. Onde estava a calma de outrora? Tempo áspero para o coração dos velhos! Felizmente havia um pensamento agradável a dar-lhe coragem: a certeza de que Isabel gozava agora de esplêndida saúde- Não se começa um curso como o dela sem exame médico. Ora, fora soberbo o certificado conferido a Isabel. Há dezanove anos que Marieta se inquieta...
com um olhar terno contempla-a. Delgada, mas não angulosa; o rosto fresco, os olhos brilhantes. "A mais bonita de todas as raparigas, certamente. Porque as outras parecem-se todas com aquele gênero cinema". Isabel com uns caracóis negros, uns olhos cor do Céu e um sorriso de espanto, era... a Isabel, pois quê!
E aquele olhar exprimia um tão fervoroso amor que Isabel, comovida, passou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Oh! Meu dragão! Somos tão amigas, nós duas!
A delícia daquele beijo da sua menina... Marina voltou ao "seu trabalho", trabalho humilde que ela fazia com grandeza.
Isabel foi dizer à madrasta:
- vou sair, mãezinha. Tenho de ir matricular-me à Escola, comprar a sarja para a minha bata de emfermeira e quero ir ver a Rosa Martin.
- Ah! Vais ver a caixeirinha? Então traz-me o perfume. Tu sabes... "Sonho oriental".
- Não, o paizinho não gosta. Consulto a Rosa. Ela tem uma arte especial para escolher o perfume apropriado...
- És um amor. Ouve cá... Estás mesmo decidida a matricular-te nessa tal escola? com franqueza, ver uma rapariga como tu levar uma vida de irmã de caridade, é superior a mim. A minha esperança é que te cases antes de tirar o célebre diploma. Tu sabes que o Hugo Lesoir continua a pensar em ti.
- Oh! Se me falas desse Lesoir, fujo- Até logo, mãezinha. Conta comigo para um delicioso perfume.
- Pó de arroz também - gritou Jeanine. Não te esqueças.
Isabel guardou no espirito a ressonância daquela voz: perfume... pó de arroz... Como aquilo contava para Jeanine! Não terá sido porque dissera muita vez que aquilo contava que a pobre Fani se tornara tão frívola? Um espinho, esta idéia de Fani. Que se iria passar quando o Paulo voltasse? Os Morot-Léandre já sabiam que o casal Bastien não ia bem. E a senhora Morot-Léandre já não era tão maternal para com Isabel.
Lindo dia de Outubro... A avenida Henri Martin é toda ouro. Isabel sente prazer em caminhar pela placa coberta de folhas.
- "Parece a floresta - pensa, erguendo os olhos para as copas das árvores.
Mas de súbito é o verdadeiro Paris que alcança, aquela velha rua Saint-Honoré onde a graça do gosto parisiense faz de cada loja uma composição de arte. Isabel gosta das coisas bonitas porque são bonitas. E, depois, vê, para além da exposição frívola, todas as costureirinhas que trabalham para realizar aquelas maravilhas. Imagina-as. Gostaria de dizer: "Está lindo", àquela que, por detrás da montra, soubera realizar um xaile, umas luvas, uma pulseira, uma flor.
Ah! Cá está a loja onde a Rosa trabalha. Isabel avista a linda normanda de cabelos de ouro. Não deve mostrar que a conhece bem: faria mau efeito junto dos chefes. Isabel declara:
- Estou à espera da menina Rosa. É ela que me atende sempre.
E já um sorriso discreto se aproxima.
Nesse momento a "menina Rosa" atende uma cliente muito chique. É preciso ter paciência. Mas os olhos de poetisa sabem ver beleza em tudo. É engraçado ver as caixeiras andarem de cá para lá com as batas azuis de pervinca e os seus saltos altos. E, além disso, naquele reino de perfumes o ar tem qualquer coisa de estonteante que ela não sabe definir. Talvez Romain Villanel conseguisse dar o nome àquele fluido estranho que ali flutua, tão cruel e ao mesmo tempo tão suave.
Finalmente, Rosa aparece. No tom moderno que lhe foi imposto, indaga o que "mademoiselle" deseja.
- Para mim "O amanhecer dum lindo dia" responde "mademoiselle". - O mesmo que me aconselhou. Recebi imensos cumprimentos este Verão.
Isabel disse isto muito alto, para que o chefe de serviço a oiça e fique conhecendo o valor profissional da Rosa.
- Para a minha mãe, é difícil escolher. Entrego-me ao seu gosto perfeito, menina Rosa.
Ambas têm vontade de rir- São tão amigas, tão simplesmente amigas a Isabel e a Rosa!
Instalam-se diante duma mesa de vidro e falam de perfumes. Mas, em surdina:
- Como vai a sua vida, Rosinha?
- Ando preocupada... Um dos patrões persegue-me... Se eu desse ouvidos, seria imediatamente aumentada. E que aumento! Mas, como não dou...
E, em voz alta:
- Falou de "Rosa púrpura"? Oh! Não. Para uma loira, não. Parece-me que "Noite de Junho" é o que convém à senhora Morlainville. Ora cheire.
Tantos perfumes! Chega a estontear. Pobre Rosa... Aqui, deve tornar-se ainda mais difícil a luta para continuar uma rosa branca. E, apesar disso, como o seu olhar é puro!
- Compreende, se eu saio zangada com ele, é-me difícil arranjar emprego noutra perfumaria. É muito rancoroso... Enfim, tudo se há-de arranjar... "Noite de Junho" agrada-lhe, não é verdade, "mademoiselle"? Quanto ao pó de arroz, acabamos de receber um que me parece absolutamente adequado ao tom da pele da senhora Morlainville.
Num pequeno pulverizador apresenta aquela poeira de tom delicado. E, muito baixinho, enquanto Isabel a recolhe na ponta dos dedos:
- A Edite tem uma boa nurse?
- Uma muito novinha e que não tem um aspecto lá muito sério. Tenho medo... O meu cunhado ainda não voltou... É linda a cor deste pó de arroz.
Passam à caixa. Isabel, um pouco altiva, aceita o embrulho das mãos da caixeira. Esta envia-lhe uma nuvem de perfume e condu-la à porta. As duas raparigas despedem-se ternamente com o olhar.
- Reze por nós - murmura Isabel. - Pela Fani, pela Edite... Pelo Florêncio... O meu curso.
A porta fecha-se. A menina Rosa, com os seus saltos altos, volta a atender as clientes. As companheiras olham-na: aceitará as propostas do patrão? Se assim for, poderá dominá-las a todas.
- "A sorte desta rapariga!" - pensam algumas. Mas outras:
- "Rosa, Rosa, prova-nos que se pode ser pura e que isso de rezar serve para alguma coisa".
Isabel, um nadinha estonteada por tanto perfume, sentia que a vida era bela e pensava que "tudo aquilo se havia de arranjar".
Mudança de ambiente: A Escola. Na perfumaria, Isabel tinha um ar simples e, apesar da sua graça, passava despercebida. Aqui, as companheiras acharam-lhe um ar mundano.
- Uma nova. É chique.
Chique demais? A directora de olhos de paz viu imediatamente que havia ali uma espiritualidade. A alma de Isabel estava tão próxima do seu olhar!
A essa alma em flor, a mulher que sentira o peso da vida, a muiner, sorriu. Deixar a vida fácil do mundanismo e vir junto da miséria humana, era belo. Gostava de preparar personalidades em todo o frescor da juventude para realizarem o grande trabalho de reconstrução social. As cansadas, as desiludidas, experientes, certamente, eram precisas- Mas estas petizitas que traziam como dote as primícias do seu coração...
E pronto. A matrícula estava feita.
-"O Florêncio vai ficar contente- Gostava de lho dizer já..."
Mas não ia tanto a casa dos Morot-Léandre. A sombra inquietante de Estefânia erguia-se entre eles. Ah! Esta ameaça à felicidade...
Vagamente triste, dirigiu-se ao boulevard Saint-Michel para comprar livros. Que vaivém de juventude no velho Bairro Latino! Rostos ainda queimados pelo sol de Verão. Frontes inteligentes. Bocas prontas a rir. Rapazes e raparigas em sã camaradagem. Que seriam, mais tarde, aqueles estudantes esperançados no futuro? Isabel recordou alguns que conhecera no Sanatório, de que um dia deixara de ouvir falar. A porta abrira-se para dar passagem a um caixão comprido e estreito. Excesso de trabalho? Abuso de prazeres? Falta de alimento? Desgosto de amor? Uma alma que gastara o corpo? Na sua vida sã e larga, Isabel sentiu-se de súbito uma privilegiada... Feliz. Sim, feliz: com a condição de que a não separassem de Florêncio. Porque então seria apenas uma infeliz no meio de tantos outros, aquela rapariga bonita, bem vestida, a quem olhavam, mas discretamente, porque ela caminhava a direito, olhando para o céu, como quem não ouve nada. De repente, ouviu o seu nome:
- Isabel!
Ah! Era ele, o Florêncio, que saía da Escola. Uma nuvem rosada invadiu-lhe o rosto:
- Estava precisamente a pensar em si, Florêncio. Apetecia-me ir a sua casa esta noite, mas...
A esta palavra "mas", ele respondeu com um nome de mulher:
- Estefânia? Ela compreendeu:
- Nada de novo. Anda horrivelmente nervosa. Não gosto nada da nurse.
Ele deu-lhe o braço:
- Dá licença, Liseron? Aqui ninguém repara. Ah! Foi estupendo este encontro. Também eu tinha sede de a ver.
- Gosta da Escola?.
- Sim e não. Há lá rapazes que não pensam como nós. Para eles o que conta é o prazer, o egoísmo. Eu sacudo-os. Mas não é coisa fácil.
- Eu acabo de me matricular. Gostei imenso. As raparigas têm um ar tão direito, tão puro! E fui ver também a Rosa Martin à loja. Ela anda preocupada por causa dum dos chefes a quem agrada demais. Mas com certeza que tudo se há-de arranjar.
- Oh! Vai perder o lugar, coitada da Rosa! Não conhece nada desta vida, minha Liseron... Graças a Deus! Sabe, irrita-me pensar que o serviço social a vai iniciar em coisas tristes, feias. Gostaria de a guardar para mim, só para mim- Oh! No nosso tempo armar em proprietário egoísta!...
- Tem razão, querida. Já não temos o direito de viver como caracóis enfiados na casca. Mas, mais tarde, quando for minha mulher, fica em casa, não é verdade?
- com certeza.
E ambos se sentiram tristes, apesar da beleza do futuro que anteviam. Porque Estefânia se lhes atravessava no caminho.
Apoiou-se com mais força no braço da rapariga:
- Que havemos de fazer para estarmos mais tempo juntos? Não me atrevo a propor-lhe um terraço de café. Não é o seu gênero.
- Mas estou cheia de fome - confessou ela com um riso infantil. - Se fôssemos comer bolos a uma pastelaria?
Como ele estava contente ao vê-la saborear aquele bolo de creme! E como ela ficou radiante por o ver contente!
Puseram-se de novo a caminho. A noite descia. O céu estava incendiado pelo Outono. Florêncio quereria que aquele passeio com ela através do bairro da juventude nunca tivesse fim. Seria felicidade demais. Refugiou-se num pensamento elevado:
- Estava a falar-lhe dos meus colegas. Há lá rapazes insuportáveis de grosseria e imbecilidade. Será culpa deles? Ninguém lhes deu nada a que se agarrassem: nem a idéia religiosa, nem a idéia da pátria. Sem força espiritual poderão resistir, se chegar o momento em que seja preciso mais coragem do que de costume?
- Mas há também um escol, Florêncio.
-Sim, e estupendo. O escol conseguirá superar a massa que os maus pastores envenenaram? Todo o futuro da França está aqui, Isabel.
- Temos que nos separar. Tenho uma aula.
- E eu tenho que ir levar a sarja da minha bata à Marieta.
Separaram-se. Florêncio tornou a subir o boulevard, Isabel descia, direita ao Sena. Mas antes de se juntar à multidão dos estudantes, Florêncio deteve-se para seguir a rapariga com o olhar. E ficou assim tanto tempo quanto pôde avistar o casaco claro, linha esguia e dançante, entre tantos corpos pesadamente curvados.
Para ele, só aquela rapariguinha merecia ser olhada.
MARIETA, quando vira a sua menina vestida de enfermeira, dissera com ar rabugento:
- Pareces uma mulher. Já não és tu. E Jeanine, a rir:
- Meu Deus, as raparigas de agora sempre são muito esquisitas! Mascararem-se assim e fazer os tratamentos mais repugnantes... Enfim... fica-te bem.
Mas João, com um sentimento de respeito, beijara aquele rosto emoldurado de cambraia branca:
- É um modo de tomar véu. É grande, filhinha...
Oh! Ventura de se sentir compreendida pelo pai...
Sim, era um modo de tomar véu.
Comovido, mas inquieto, Florêncio dizia consigo:
- "Se a Fani nos separar, a Isabel dar-se-á inteiramente àquilo... Liseron, Liseron... E eu, que hei-de eu fazer? Oh! Não é preciso procurar muito: há tantos aviões cujo piloto nunca mais voltou! Guynomer... Mermoz..."
Assim, Isabel tornou-se "enfermeira aprendiza", segundo a expressão de João-Lucas. Todas as manhãs se metia na bicha do metropolitano que a levava ao hospital-escolar, onde aprendia a fazer os tratamentos.
Os primeiros dias tinham sido difíceis. O cheiro a hospital, picante e açucarado ao mesmo tempo, começara por a repugnar: um cheiro triste que fazia pensar na dor e na morte. E a disciplina rígida quebrava qualquer coisa no mais fundo de si própria. À noite, na cama, quando recapitulava o seu dia, tinha medo:
- "Não conseguirei habituar-me- Estou cansada. Tudo aquilo me mete nojo. Nunca ninguém me falou como lá. A mínima falta é notada, criticada. Que regime sufocante".
E, muitas vezes, chorava com a cabeça escondida no travesseiro.
Finalmente, num dia em que mexera, sem precaução, numa compressa esterilizada e ouvira uma voz severa repreendê-la, resolveu ir-se embora. Precisamente, Jeanine insistiu para que escolhesse um vestido para ir a determinado baile. Sim trataria disso. Para levar uma vida daquelas não valia a pena ser nova. De resto, nunca seria uma boa assistente social com aquele gosto pela fantasia, aquela repulsa pela miséria aquela angústia pelo sofrimento. Noelle, que se entregara apaixonadamente ao estudo da Medicina, era forte. Mas ela? Ora! Uma parvinha como outra qualquer!
com aquela pressa que têm sempre os seres nervosos e frágeis quando se trata de tomar uma decisão, dirigiu-se ao gabinete da enfermeira-monitora, aquela que era muito áspera.
O véu branco inclinava-se para um registo. Isabel anunciou a sua partida. Uma voz interrogou, cortante:
-E porquê, então, menina Morlainville?
Nenhuma resposta... A pergunta foi repetida, mais lentamente. E, uma terceira vez:
- Então, diga-me porquê, pequenita.
Pequenita? Aquela mulher sabia dizer "pequenita"? Qualquer coisa vibrou no coração de Isabel. Tentou suster as lágrimas, mas se ela nunca o conseguira... Então, num soluço, respondeu:
- Porque... exactamente porque sou pequena. Resposta absurda. Uma rapariga daquela idade
e tão alta! Só lhe restava fugir. Mas a enfermeira prendeu-lhe as mãos:
- Pobre criança! - disse numa voz completamente nova. - Já o esperava. A adaptação é rude para uma sensibilidade como a sua. Conte-me as suas dificuldades, Isabel.
Ah! Mas ela sabia o seu primeiro nome? Aquilo foi como que um raio de sol.
- Eu compreendo, sabe? - continuou a mesma voz. - Também chorei nos primeiros dias. Também quis partir. Olhe para mim, Isabel: tenho ar de infeliz?
Vê-se, através das lágrimas. Quanta paz naqueles olhos grandes, cor de ouro!
A voz continua, explica o porquê de certos rigores, projecta uma claridade espiritual nos pormenores materiais que cansam ou repugnam, fala de amor... Isabel sentou-se, obrigada por aquela mão enérgica e suave. Melhor, abandonou-se. Os braços estão estendidos em cima da mesa e a cabeça apoia-se neles. As palavras descem justas, claras, directas, derramando não sei que paz... Aceitar ser moída para se tornar pão: exactamente como um grão de trigo. Recusar-nos-emos a sofrer um pouco para que nos tornemos capazes de ajudar a angústia humana?
- A Isabel é livre. Dentro de oito dias comunica-me o que resolveu; antes, não. Não é em plena crise que devemos decidir. Deixo à sua meditação ardente estas palavras que me ajudaram tanto. São de Augustin Cochin: "A vida inteira depende de dois ou três "sim" e de dois ou três "não" pronunciados dos dezasseis aos vinte anos". Vá, minha filha, e pense nisto.
E o rosto já emagrecido inclinou-se para o rosto juvenil refrescado pela esperança. Beijo de mãe.
A partir de então, Isabel aceitou o trabalho. E depressa começou a amá-lo. Aqueles dois ou três "sim", aqueles dois ou três "não", não se cansava de os meditar. E, porque queria que tudo lhes fosse comum, falou deles a Florêncio.
- É estupendo - respondeu ele. - Hei-de lembrar-me disso.
Mas depois enterneceu-se:
- Liseron, tem a certeza de que se adaptará?
Sim, agora tinha a certeza. A barreira fora franqueada. Ele compreendeu-o ao ver o seu sorriso. E começou a trabalhar ainda mais, ainda melhor.
Trabalhavam todos; Noelle na escola médica, Catarina ao piano, Solange, Denise e João Lucas no liceu. Quando este não compreendia um problema, sabia a quem se dirigir: Florêncio nunca repelia o irmão da sua Isabel. Deixando o desenho ou a carta geográfica, indagava:
- Que há, meu velho? Senta-te aqui- O quê, não dás com isso? Estás então idiota por completo?
Não há nada que saiba tão bem como ouvir tratarem-nos amàvelmente de idiotas! Consola-nos de o ser.
Aquele Florêncio! Tinha a arte de se desembaraçar das coisas mais complicadas. O problema de álgebra ou de geometria acabava sempre por aparecer na sua magnífica simplicidade.
- És um gênio - declarava João-Lucas, cheio de admiração. - Não percebo como é que pudeste chumbar no Técnico.
- Não trabalhava de vontade-respondia o rapaz. - Quando não se trabalha com o coração, o espírito anda devagar como um carro de bois. Tu, miúdo, tens que fazer o liceu. Trabalha com o coração.
- Não gosto de matemática... Nem eu, nem a Isabel. Lembras-te das lições que lhe davas?
- Filhos de poeta, lunáticos! - dizia Florêncio que achava encantadores aqueles filhos de poeta, e estendia ao aluno uma caixa de bombons sempre bem recheada.
- Tem graça! Por acaso são precisamente os bombons preferidos da Isabel - dizia João-Lucas, trocista.
Então era corrido daquele quarto onde tudo lhe agradava, mesmo, principalmente, o seu perfume subtil: cigarros, água-de-colónia ambarada.
Ao fundo da escada encontrava as duas pequenas de aventais cor-de-rosa. Preferia Denise, a boazinha, mas com Solange podia brigar, o que o encantava. E Solange admirava-o em segredo. Isto adivinhara-o ele e não se envaidecera pouco...
Uma tarde em que Solange saíra, Denise abordou-o com ar trágico:
- Anda cá, tenho que te dizer umas coisas.
- Qual das bonecas está doente?
- És muito estúpido! Não se trata de bonecas, trata-se de gente grande. Ouve... Ontem discuti com a Solange. Ela está a fazer-se tão má, tão má! Ninguém sabe porquê.
- Idade ingrata - declarou João-Lucas empoleirado ao canto duma mesa. - Lamento-te, Denise. Alguns dos meus colegas disseram-me que era a coisa pior que existia, uma irmã na idade ingrata. Porque é que vocês puxaram os cabelos uma à outra?
A petiza hesitou:
- Não fazes troça de mim?
Que bonitinha que ela estava com aquele ar suplicante! Um suspiro:
- Falava-se de casamento.
- Oh! Estas catraias!
- Ora essa! Pode muito bem falar-se em casamentos. Eu disse que... que gostava muito de casar contigo. E sabes o que ela respondeu? "Bem podes pôr-te de luto, minha filha. Estás tão livre dessa... O pai nunca consentiria". Zanguei-me, disse que tu eras até muito simpático. Então Sua Excelência declarou com uns grandes ares: "O irmão duma divorciada! O paizinho já se opõe ao casamento do Florêncio com a Isabel, que nem sequer é irmã da Estefânia, quanto mais se fosse o João-Lucas. Bem podes procurar outro noivo, minha amiga". João-Lucas, não é verdade o que ela disse, pois não? A tua irmã não se vai divorciar. E o paizinho há-de deixar o Florêncio casar com a Isabel? Ele gosta tanto dela!
João-Lucas balouçava as pernas compridas e, acabando de engolir o bombom que tinha na boca:
- Tens a certeza que a Solange disse: "O paizinho opõe-se ao casamento do Florêncio e da Isabel"?
- A certeza absoluta. E ela é má, mas nunca mente, sabes muito bem. Cá em casa ninguém mente - João-Lucas voltou com um passo arrastado através do nevoeiro.
166
Que a Fani fizesse um disparate, já era para lamentar. Mas se esse disparate fosse escangalhar a vida de Isabel, que injustiça! A quem se dirigir? A mãezinha diria: "Os meninos não se metem nestes assuntos". Isabel desatava a chorar. Teresa... A Teresa era feliz demais, não compreenderia e iria contar tudo ao Sílvio que detestava a Fani e ainda era capaz de ir provocar um drama na família. Todavia, era preciso fazer alguma coisa.
Entrou em casa. Marieta olhou-o desconfiada:
- Não vens de bom humor. Mais um castigo?
- Nada disso. Os pais estão?
- A senhora saiu e só volta tarde. O senhor está a trabalhar. Não o vás interromper.
Pois foi precisamente bater à porta do gabinete de trabalho do pai. Marieta ficou pasmada, mas deixou-o. O trabalho mais belo de um homem não será conversar com o seu rapaz?
- Quem é? - perguntou uma voz impaciente.
- Eu, o João-Lucas. Queria falar-te.
Desde o Verão que o poeta se tornara ainda mais plenamente Pai. Poisou a caneta ao lado das provas tipográficas que corrigia e olhou o filho que se aproximava- Achou-o belo, mais belo do que qualquer poema. Era a juventude - João-Lucas recusou a cadeira que lhe ofereciam: um rapaz fala melhor de pé. Sem rodeios, contou a conversa das miúdas, nada acanhado com os projectos matrimoniais da Denise.
- Paizinho, - concluía - é uma tragédia toda esta história. A vida da Isabel destruída por causa da Fani? Não e não. Não quero. E mesmo eu cá também não quero ter uma irmã divorciada. É preciso impedir que isto vá por diante. A mãezinha não lhe fala como devia. És tu quem tem de fazer-lhe compreender, por uma vez, que ela tem obrigação de se reconciliar com o Paulo. Uma comédia, a viagem do velho ao Oriente! Quis apenas deixar o campo livre à Fani. Paizinho, tu conheces a Isabel: um desgosto destes mata-a...
O senhor Morlainville empalidecera. Como é que não previra a reacção dos Morot-Léandre? Afigurava-se-lhe que Collete, liberta da vida, se inclinava dizendo:
- "João, assegura a felicidade da nossa filha. Não me amaste outrora. Se soubesses o que" é um desgosto de amor para corações como os nossos! O coração de Isabel é igual ao meu, tu sabes..."
Maquinalmente fitou a folha impressa onde raiavam algumas palavras substituindo outras em caligrafia miúda. Era a sua peça, era "Patrícia".
E eis que leu as linhas em que Patrícia reclamava a "sua libertação" de um casamento em que dizia sufocar. Quando Estefânia ouvisse aquela tirada...
Ergueu os olhos:
- Fizeste bem em me contar tudo, João-Lucas. Prometo-te agir.
- Mas depressa, pai. É urgente. Vocês, os mais velhos, ficam sempre à espera, e enquanto esperam as coisas vão-se destruindo.
Patrícia, Patrícia...
- Não tinhas mais nada a dizer-me? - perguntou o homem. - Está bem, meu filho. És um rapaz às direitas. Dá-me um beijo.
A porta fechou-se. E João Morlainville, Romain Villanel, o escritor em voga, o pai de Isabel, escondeu a cabeça nas mãos.
À NOITE, depois de um dia de trabalho, Isabel estava cansada. Nos diversos hospitais sentia sempre uma luta estranha dentro de si. Diante da doença, da miséria, a sua sensibilidade vibrava. Aquela chaga purulenta... e o cheiro a morte. Isabel recordava-a por muito tempo com horror.
Mas quando uma mão suada prendia a sua, a apertava buscando coragem para sofrer, a enfermeirazita era só piedade e amor. No metropolitano que a trazia a Passy, pensava com ternura naqueles que assim se abandonavam, e nem a fantasia nem o coração a oprimiam. Pelo contrário, desenvolviam nela o gosto de curar.
No Inverno pardacento já se aproximava o Natal. O tempo decorria apressado e lentamente, repartido entre o estudo, a família e a sociedade que Jeanine exigia que freqüentasse. Já não tinha tempo para visitar a Rosa, com o pretexto de comprar perfumes para a família.
Uma noite, durante o jantar, àquela hora em que se admirava de que a gente à sua volta não tivesse
febre nem feridas, a madrasta disse-lhe:
- Fui hoje à Rosa. Imagina que perdeu o emprego. Fui buscar o meu perfume, aquele que ela escolheu com tanto gosto, não é verdade, João? e disseram-me num tom estranho: "A menina Rosa já não faz parte do pessoal da casa".
- Desde quando? Porquê? Onde é que ela trabalha? Então, não perguntaste nada?
- Estás a sonhar, Isabel? Por quem tomariam uma cliente que se preocupasse tanto com uma caixeira despedida?
- Hei-de saber. Mas já calculo: a Rosa era honesta demais.
Jeanine encolheu os ombros chamando-lhe utopista, e falou-se doutra coisa.
No domingo seguinte, antes de ir a um chá em casa dos Lesoir que se esforçavam por manter a amizade de férias, dirigiu-se ao convento onde Rosa vivia. A campainha ressoou no meio daquele silêncio de paz. Um rosto sorridente aparece à grade. Passos abafados ao longo dos corredores onde adeja uma nuvem azul de incenso. Um gato dorme enroscado junto do pedestal da estátua de S. José. Simplicidade. Calma. Inocência.
A Rosa aparece, a Rosa alta e linda, sem pintura: nunca se pinta ao domingo, dia em que nada a impede de ser ela própria. Como é natural, beijam-se. Isabel não a sente absolutamente nada "sua protegida", sente-a grande e forte, num plano independente. Todavia, Rosa julga muito superior a si aquela Isabel tão sensível. Sim, um ser maravilhoso e encantador com aquela nascente inesgotável de bondade no coração.
- Então, já não trabalha no Faubourg? Porquê, Rosinha? Nada de aborrecido?
-Oh! Aconteceu o que eu esperava. Tive de escolher: ou aceitar as propostas do patrão e passar. a ser a principal, ou sair. Não posso contar-lhe tudo. Não... Não faz a mínima idéia do que uma rapariga ouve em certos meios, Isabel. Quando penso nisto, tenho vergonha. É claro, deixei que me despedissem... Era tempo de me vir embora, pode crer.
- Encontrou outro lugar com felicidade? A rapariga teve um sorriso triste:
- Não... Para se vingar, o patrão deu-me um certificado que não inspira confiança. Estive um mês sem trabalhar. Oh! As Irmãs foram tão boas! A Irmã Paula é uma verdadeira mãezinha.
- E agora, tem trabalho?
- Tenho - respondeu Rosa.
E, bruscamente, escondeu as mãos- Rosa, não está em nenhuma perfumaria? Então o que é que faz? Diga-me. Mostre-me as suas mãos.
Ela estendeu-as; pobres mãos, vermelhas, inchadas, unhas quebradas e rentes. Teve um sorriso lindo.
- Sou mulher a dias, Isabel. Trato das casas, lavo roupa. Que quer? É preciso viver. Todos os salões de beleza se fecharam diante de mim. Mas as mulheres a dias arranjam sempre trabalho. As Irmãs recomendaram-me cá no bairro.
Isabel acariciava entre as suas, tão finamente enluvadas, aquela pobre mão marcada pelo trabalho. E ambas se calaram, ainda mais unidas pelo silêncio. Por fim, Rosa viu que Isabel chorava:
- Querida, não há razão para se afligir. Se soubesse como me sinto feliz!
- Feliz? Habituada a uma profissão de luxo e agora a lavar a roupa dos outros?
- Sim, feliz, incrivelmente feliz. Compreende, sofro pelo meu ideal de pureza, de obediência a Deus, de honestidade. E, além disso, sofro... como tantas raparigas. Sinto-me mais irmã delas- Olhe, dá-me idéia - é difícil explicar, mas você compreende sempre-dá-me idéia, quando estou a lavar a loiça ou a roupa, que a minha repulsa, o meu cansaço, vão ajudar esta ou aquela mais duramente tentada.
O seu rosto irradiava, coroado de cabelos de oiro.
Depois disto, como a reunião dos Lesoir lhe pareceu mesquinha!
No entanto, no salão de Faustina, Isabel foi recebida com verdadeira amizade. A sua distinção, o renome do pai. fazem da "menina Morlainville" uma vedeta. E Hugo não esquecera os dias passados na Saboia. Por muito que o negasse, que encolhesse os ombros, tinha um fraco por aquela rapariguinha bonita, cuja deliciosa graça a tornava tão diferente das amigas de Faustina. Ficou encantado ao vê-la, agora mais senhoril devido às peles. Foi muito amável. E também Faustina, a quem aquela cunhada não desagradaria. Mas a atmosfera de cigarros e cocktails, depois da pureza do convento, parecia-lhe irrespirável. E as palavras, todas, mesmo as inteligentes, trocadas entre aquela juventude tão sòlidamente culpada, pareciam-lhe pobres, porque dentro dela ressoava, trombeta de prata anunciadora de festa, a afirmação da Rosa:
- "Sinto-me feliz, porque sofro pelo meu Ideal". Hugo, sentindo-a distante, irritava-se:
- "O espírito está longe. Será com o seu colegial?"
Hugo detestava-o, sem mesmo o conhecer. Quando chegou a casa, a senhora Morlainville elogiou-a:
- Estás hoje engraçada como tudo. Um amor, o teu chapéu.
Mas Isabel tirou-o com um piparote, o tal amor de chapéu; e, sacudindo os caracóis escuros:
-Mãezinha, sabes a que está reduzida a pobre Rosa? A mulher a dias.
Jeanine ouviu, admirou-se, chegou mesmo a enternecer-se por alguns minutos, e depois, bocejando:
- Infelizmente nada podemos fazer. Pobre rapariga... Agora, conta-me o que se passou em casa dos Lesoir.
Mas, em casa dos Lesoir, Isabel nada tinha notado. Escutara apenas a trombeta de prata... Então Jeanine, declarou que não havia no mundo inteiro uma rapariga tão tola.
Decepcionada, Isabel foi ter com o pai. Esse compreenderia.
- Paizinho, se soubesses...
Atirou-o para o velho canapé, para se sentir protegida, poisou no ombro paternal a cabeça cansada. E falou. Ele apertava-lhe a mão nas dele. E, quando acabou:
- Paizinho, é fantástico, não achas? Nenhuma resposta. Mas um suspiro imenso. Ficou à espera. Por fim, ele murmurou lentamente:
- Queridinha, não sei dizer-te como me comoveu o que contaste. A Rosinha... A Rosinha que pescava mexilhão. Que vendia alparcatas. A caixeira da rua Saint-Honoré. Pensa isso- Vive isso. E eu...
Pela segunda vez naquele domingo, Isabel recolhia, vindo do mais fundo, o verdadeiro timbre de uma alma. Tremia.
- A Rosa. A filha da sr. a Martin. Uma garota. Órfã. Ignorante. Um nada. E tão grande, heróica. Recorda-me os seus motivos de alegria. Um por um.
Lenta, respeitosamente, Isabel repetiu:
- Ela disse-me, cruzando as mãos vermelhas: "É pelo meu ideal de pureza, de obediência a Deus que sofro. Assim torno-me igual a tantas raparigas, e sinto-me muito mais sua irmã. E dá-me a idéia de que o meu sacrifício vai ajudar esta ou aquela em tentação".
- Três temas de alegria - murmurou João Morlainvile. - Três temas de alegria. Oh! bem-aventurada dor!...
Ela lembrou-se doutro e transmitiu-o depresssa àquela alma estranhamente alterada:
- Disse-me mais: "Algumas companheiras fizeram troça de mim. Uma delas chegou mesmo a insultar-me. Mas outras compreenderam. E a Georgina, aquela de quem lhe falei há tempos, pôs-se a chorar quando soube a razão por que me ia embora. E disse-me: "Já que foste capaz de fazer isto, Rosa, juro-te que hei-de ser sempre honesta". Paizinho, os olhos da Rosinha brilhavam como estrelas.
Pai e filha calaram-se. Isabel sentia, sabia que alguma coisa se passava junto de si e que o homem lutando asperamente precisava de ajuda. Sabia como ajudar sem fazer um gesto, sem dizer uma palavra: rezar, amar... Erguer a outra alma nas suas asas.
João pôs-se finalmente de pé. Tomou o rosto da filha entre as mãos, e olhou-a, olhos nos olhos, longamente, sem que as pestanas batessem escondendo a íris azul ou o pensamento. Depois, beijou-a na testa:
- Meu tesouro - murmurou. Nunca lhe chamara assim.
Estefânia jantou lá nessa noite. Nervosa, má, queixando-se de tudo. Jeanine disse para Isabel:
- Conta à tua irmã o que se passou com a Rosa. Isabel hesitou: uma história tão pura... Mas se
pudesse fazer bem à Fani?
A irmã nada compreendeu. Declarou que a rapariga fora desastrada, que há sempre meio de nos desembaraçarmos sem tanto estardalhaço, que as tais Irmãs ainda haviam de a convencer a tomar o véu... Mas, apesar de tudo, teve um movimento de compaixão ao pensar que uma rapariga tão bonita fazia trabalhos tão pesados.
- Ouve, Isabel, vou ver se a coloco. Conheço uma pessoa que tem uma óptima situação em negócios desse gênero. Falar-lhe-ei da Rosa.
- Não, Fani - interveio uma voz cortante. Não deves fazer isso. Tu sabes porquê.
com grande espanto de Isabel, Estefânia corou e perturbou-se:
- Ah! Que botas de elástico que são todos cá em casa! Para vocês, a vida de uma mulher tem que ser um martírio? Não temos o direito de a modificar? Bem, não me ocuparei dessa idiota da Rosa. Quem cardos semeia, cardos colhe.
Marieta escutava enquanto ia servindo. E João-Lucas, que observava o seu mundo, ficou espantado:
- "É formidável. Como é que a Marieta, que é tão feia, parece às vezes uma rainha?"
É que também ela escutava a "trombeta de prata".
FAR-SE-IA árvore de Natal? Todos os anos, desde que Noelle - que nascera nesse dia - tivera idade para brincar e compreender, o pinheiro enfeitado erguia-se no salão dos Morot-Léandre. Pouco a pouco, os brinquedos cediam lugar aos livros, às estatuetas, às jóias. Mas ninguém sabia imaginar o Natal sem a árvore montanhesa engrinaldada de azevinho e de alegria. Ora, este ano, num tom desprendido, o senhor Morot-Léandre dissera:
- Vocês já estão muito grandes. De resto, é uma brincadeira sem sentido, o tal pinheiro. Vamos substituí-lo por uma ida ao teatro, todos os sete. Fica então assente?
Todos adoravam o teatro. Todavia, sentiram como que um fio. Entreolharam-se, e Noelle, a heroína da festa, declarara sem rodeios:
- Por mim, não troco uma coisa pela outra. Preferimos a árvore de Natal, paizinho.
Sinal de nervosismo do pai:
- Sê razoável... É um capricho pueril... A mãe cansa-se sempre imenso... E sai muito caro...
- Sempre é mais barato do que sete bilhetes para o teatro, hás-de concordar.
Um pouco afastado, mais alguém se enervava: Florêncio, a pensar:
- "Compreendo. Muito bem arquitectado. Querem afastar os Morlainville. Por causa da delambida da Fani".
E os dedos irrequietos tamborilavam na vidraça.
- Basta, Florêncio - ordenou o pai. - Fica então decidido. Este ano não há árvore de...
Um soluço interrompeu-o. A pequenina Denise não pudera conter o seu desgosto. Natal sem pinheiro!... Florêncio observava o pai. Denise, "o fifi", a chorar daquela maneira? Olha... O paizinho já não anda dum lado para o outro como um urso enjaulado... Pára... Inclina-se... Toma entre as mãos a cabeça loira.
- Que é que tens, pequerruchinha? Diz ao paizinho. Não chores assim, minha querida.
As outras, de olhos brilhantes, dentes cerrados, contemplavam também a cena. Mas Denise debatia-se:
- Não, tu não és bonzinho. Então não sabes que é a coisa de que mais gosto? Que estou a pensar nela desde o 14 de Julho? Que esperava ver um regalo de pele muito redondinho no meu ramo?
Os soluços redobravam. Então ele ajoelhou-se e cobrindo de beijos o rosto cheio de lágrimas da sua benjamina:
- Não chores, meu amor. Diz-me o que queres.
- Uma árvore de Natal como nos outros anos.
- Escuta... isso é estúpido... pede outra coisa. Solange disse baixinho:
- Dar-lhe-ia a Lua, se ela a pedisse.
- Pois bem, terás a tua árvore de Natal.
- Prometes?
- Sim. Agora dá-me um beijo.
- Espera... Quero que prometas outra coisa: a Isabel e o João-Lucas serão convidados?
- Isso não, Denise. A festa será só para vocês. - Então não quero a árvore para nada, e não te
dou beijo nenhum.
- É fantástica! - cochichou Catarina. - Acham que ele cede?
Continham a respiração. O senhor Morot-Léandre voltou-se:
- Vão-se todos embora -ordenou. - Estão a enervar a vossa irmãzita.
Um a um foram-se eclipsando e subiram ao quarto de Florêncio, onde sempre se reuniam as grandes assembléias.
- Flô, passa-me um cigarro - pediu Catarina.
- Que pensam desta cena, meus filhos?
- Penso - disse melancòlicamente Noelle - que o pai está furioso com os Morlainville. No entanto, eles não têm culpa de que a irmã, que nem sequer é irmã de Isabel, seja desaparafusada.
- É uma injustiça revoltante! - gritou Solange.
- Talvez não. Tem que se manter a honra da família. Meu Deus, contanto que a Denise não fale disto ao paizinho!
- Falar de quê? Do possível divórcio dos Bastien? Ela não sabe de nada. Um bebê daqueles...
- Sabe de tudo - afirmou uma voz trágica, a voz de Florêncio, que se pusera de pé, pálido, os braços cruzados. - Acuso a menina Solange, aqui presente, de escutar às portas, de ouvir coisas que não deveria ouvir, e de as ter repetido ao bebê que é a Denise e que só Deus sabe que uso fará delas.
-E tu, como é que sabes tudo isso? Sua Excelência também andou à escuta! Podes ter a certeza que casas tanto com a tua Isabel, como a Denise com o João-Lucas, com quem tem um namoro em forma.
- Invejosa! - exclamou Catarina, apontando-a com o dedo.
Mas Florêncio avançava:
- Proíbo-te que pronuncies o nome da Isabel, estás a ouvir?
- Não tenho que acatar ordens. A Isabel quer lá bem saber do miúdo que és. Vai muito a festas... Diverte-se... É uma namoradeira.
Uma bofetada no rosto da rapariga.
- Sai daqui para fora. E vocês também, quem é que vos deu licença de vir para o meu quarto? Oh! Estas raparigas!
- Vamos embora - disse Noelle. - Solange, fizeste mal em falar assim. Mas o Florêncio devia ter vergonha da sua brutalidade. Deixemo-lo. Não, não vais devolver-lhe o estalo.
Arrastou a irmã para fora. Florêncio fechou a porta à chave e, caindo no divã, abandonou-se ao seu desespero. Diante da sua felicidade fresca, pura, luminosa, erguia-se uma barreira: o egoísmo de Estefânia. Sabia perfeitamente que o pai nunca cederia. E ele não o podia achar injusto: ou se é cristão ou não se é. E Florêncio era-o do mais profundo da sua alma.
Todavia, naquele momento, revoltava-se. Casar com Isabel seria realizar uma união nobre. Assim, atiravam-no para a mediocridade. Isabel... Liseron... A sua graça cheia de cambiantes... A sua deliciosa pureza... Aquele perfume de juventude...
E tudo aquilo lhe era roubado porque uma Estefânia, depois de ter escolhido, por amor ao luxo, um marido velho e aborrecido, queria refazer a sua vida dum modo mais agradável. Impulso de cólera. Florêncio atira com as almofadas pelo quarto fora. Oh! Partir qualquer coisa... A bofetada que deu a Solange não lhe basta.
De súbito, sentiu, na algibeira interior do jaquetão, uma espessura. Hesitou... E depois meteu os dedos... e duma bolsa, depois dum papel sedoso, tirou o talismã contra a revolta, aquele nada tão grande, o laço de veludo azul. Beijou-o...
No sótão da casa, Solange sofria também. Um sofrimento atroz: julgava-se um monstro. Não conseguia compreender-se. Sentada numa cadeira, repetia sempre o mesmo porquê doloroso:
- "Porque é que estou a tornar-me tão má? Quis fazer mal à Denise, sim, quis. E ao Florêncio. Hei-de vir a ser aquilo a que chamam uma mulher nefasta. Os outros já não gostam de mim, nem as criadas. A mãezinha talvez ainda goste um bocadinho. Mas eu só a faço infeliz. Eu antes não era assim... No colégio há uma rapariga má, aquela Ghislaine que faz troça de tudo... Foi por isso que me envaideceu que ela me tomasse por amiga. Nunca mais poderei sair do grupo. A quem é que hei-de contar tudo? A Noelle? Não, é minha irmã, vemo-nos muito de perto, teria vergonha. Confessarme? Sim... Mas não sei como é que hei-de dizer... Sinto-me só. Sou uma víbora. Foi o Florêncio quem o disse".
Uma víbora... Lá em cima, a clarabóia emoldurava a Lua de Inverno, pálida e brilhante. O seu coração de adolescente quis voltar à antiga paz, à antiga dignidade. Solange ajoelhou-se, os cotovelos apoiados numa velha poltrona posta de parte, e rezou. Não por muito tempo; a crina picava-lhe os braços nus; e não a fundo porque o orgulho não lhe cedera completamente. Apesar disso serenou um pouco.
Mas, ao descer ao encontro "dos outros", teve o cuidado de cantar, em voz desafinada, aquela romança que exasperava o Florêncio. Era preciso não mostrar...
Assim, ao jantar, nenhum se sentia em paz.
E Estefânia Bastien, entregando a filha a uma criadinha sem experiência nem amor, punha os seus diamantes para ir dançar.
Eram as ondas agitadas pela revolta da sua alma que perturbavam aquelas almas.
O Natal chegava. A sua alegria iluminava o Inverno. Já ninguém falava em guerra. Tinha-se a audácia de comprar presentes, de preparar a ementa de ceia. As crianças pensavam no sapatinho na chaminé. As almas - não todas, as mais elevadas - pediam "um orvalho" para o mundo.
Decididamente, haveria árvore de Natal em casa dos Morot-Léandre, mas sem os Morlainville. Denise, que obtinha do pai tudo o que queria, não conseguira vencer a sua resistência. Resmungava ainda, o que entristecia o culpado, mas não o fazia ceder.
Por mais de cem vezes, Solange se sentiu tentada a dizer a Florêncio:
- "Escuta, fui estúpida e má, no outro dia. Desculpa, meu velho".
E Florêncio arrependia-se de ter dado a bofetada:
- "Sou um bruto!"
Mas as palavras ficavam na garganta; e as irmãs pensavam:
- "São rancorosos, aqueles dois".
E as almas procuravam-se sem se encontrarem.
Quando entramos em idade já não sabemos o que é este sofrer dos que ainda não fizeram vinte anos. Sofrer desconcertante que ninguém lamenta. Todos se contentam em dizer.
- "Que mau que este rapaz se tornou... Como ela mudou!"
Dizem-no, repetem-no, empurram-nos cada vez mais para o pântano, em lugar de estender a mão dizendo:
- "Vem, tu que estás a perder pé. Podes subir. Ainda existe em ti a tua alma de criança".
Solange, que pensara pretextar uma dor de garganta para evitar a missa da meia-noite, recuou diante da mentira: os Morot-Léandre era coisa que não faziam. Tentou pôr a consciência em ordem, mas aquilo já não vibrava...
Recordava os conselhos pérfidos de Ghislaine, o seu anjo mau:
- "Oh! Que idiota, minha querida! Tens que te desempoeirar!"
Mas que feliz que era a Denise por poder rezar tão simplesmente! E além... Solange avistava a gola de pele e o gorro de Isabel que parecia pertencer a outro mundo. Ghislaine chamava àquilo: "Ser beata". Mas Noelle dizia que era "amar verdadeiramente a Deus". Noelle também rezava com fervor, e a Catarina, e os pais, e até aquele Florêncio. Só ela, Solange...
E vendo-se só, diante dum caminho que não conhecia, teve medo.
Dia de Natal. Coros angélicos por entre as estrelas do imenso céu de pureza. Solange não os ouvia. Angustiada, dizia consigo:
- "Como eu mudei!"
Todavia, o seu vestido era igual ao da Denise e todos pensavam: "São uns amores, as petizas Morot-Léandre".
De manhã cedo, Isabel fora a casa da Fani para ver o que faria Edite diante do sapatinho. Fani dormia ainda. A criada vestia Edite e resmungava:
- É insuportável, menina Edite. Despache-se... Vai ver os brinquedos depois. Olhe, aí vem a madrinha. Ralhe com ela, menina Isabel. Parece que está a inventar motivos para me empatar. Hoje é o meu dia de saída.
- Quem é que fica com ela quando você sair?
- A criada de fora.
- Não, fico eu. Levo-a para minha casa. Eu acabo de a vestir.
Alegria de a apertar contra si, de beijar a seda daqueles cabelos.
- "O dia de Natal só é verdadeiramente belo quando se tem uma criança a quem amar" - pensou Isabel.
Como é que a Fani podia dormir até tão tarde? Finalmente, a criada de quarto veio buscar Isabel, que encontrou a irmã na cama, espreguiçando-se entre os lençóis sedosos.
- bom dia! Não posso mais. Entrei em casa eram quatro horas da manhã. A Edite gostou dos brinquedos? Cearam lá em casa? Estou a ver daqui: canja, a lareira acesa, uma chávena de chocolate. Oh! Simplicidade... Os pais ficaram em casa?
- Não - respondeu, um pouco tristemente, Isabel. - Foram cear com uns amigos. Estávamos sozinhos, o João-Lucas e eu. A que missa vais?
- A nenhuma. Não vou.
- Oh! Fani, no dia de Natal!...
- Tu não podes compreender.
- Posso, Fani. Escuta...
Pousou na cama Edite que apertava contra o peito um urso de peluche.
-Olha para este amor. Precisa de vocês dois, garanto-te. E precisa também... não te zangas? precisa que lhe dês bom exemplo.
- Que tens tu com a minha vida? Vamos, nada de lágrimas. Sou muito tua amiga. Mas queria explicar-te uma coisa. Achas divertido ser casada com um homem velho, curvado, casmurro, sempre a pensar nos seus negócios?
- Ele gosta tanto de ti!
- Gosta duma maneira insuportável.
- Porque é que casaste com ele? -Julgava-o melhor do que é. Enfim, confessa que é austero, tu, que hás-de casar com Florêncio fresco como a Primavera.
Isabel disse lentamente:
- Casarei com o Florêncio e a sua Primavera.
- Já não gostas dele? Então agora...
- Nunca gostei de mais ninguém. Mas casar, os Morot-Léandre proibirão que o filho case com a tua irmã?
- Estás doida? Completamente doida! Pois se nós nem sequer somos irmãs!
- Fazemos parte da mesma família. O senhor Morot-Léandre nunca cederá. Queres a prova? Este ano não nos convidaram para a árvore de Natal.
- Não me digas! É preciso ser-se muito bruto. Deixa lá. Não tens mais do que esperar a maioridade do Florêncio.
- O Florêncio não irá contra a vontade do pai. De resto... Não sei se ele próprio...
Isabel ajoelhou-se junto da cama, e prendendo nas suas aquelas lindas mãos inúteis:
- Fani, estás a ver o que acontecerá se deixares o Paulo? Tem pena de nós dois... da tua pequenina Edite... e do Paulo... e até de ti própria que já nem ousas festejar o Natal como dantes.
- Oh! Como tudo isto é complicado... - gemeu a mulher. - Dá-me um beijo, meu amor. E vai-te embora. Dói-me a cabeça... aquele champanhe... Então levas a minha filha? Fazes bem. Está melhor ao pé de ti. Que mãezinha tu hás-de ser um dia, Lili! O quê, o Menino Jesus também foi lá a casa? Isabel, tu és um sonho. Estou a lembrar-me dos Natais de quando eras pequenina: a Teresa e eu divertíamo-nos tanto a pôr brinquedos no teu sapatinho! Ah! Bons tempos... Vai-te embora. Se não começo a chorar. Feliz Natal, tu que tens uma alma cheia de juventude!
Na chaminé de Isabel, no lugar em que outrora a Maçã e a Fani, risonhas, preparavam a alegria da sua irmãzinha Morlainville. Edite Bastien viu a pequenina pantufa onde a madrinha pusera tudo o que pode maravilhar um coraçãozito de dois anos. Que gargalhadas!
- "Como é fácil" - pensava Isabel sentada no tapete -"dar felicidade a esta!"
Adeus, Patrícia
TERESA, - perguntou Isabel - onde é que vais meter o berço?
Teresa mediu entre as mãos um berço imaginário e, com um lindo sorriso rafaelino no rosto fresco:
- É tão pequenino? Ponho-o aqui... É o espaço certinho, certinho.
Voltou ao seu trabalho e as agulhas agitaram-se em cadência hábil na lã cor-de-rosa.
- A tua casa é muito mais bonita do que a da Fani! -declarou a rapariga.
- Não lhe vás dizer uma coisa dessas! Ela que acha as minhas "duas divisões tão mesquinhas! "Uma casa de operários", define-a a bela dama.
- Pois eu adoro as tuas duas divisões. Quando se ama não é preciso mais nada. Aqui, a gente sente-se feliz. Tudo agrada, tudo diverte. Até a vista desta janela de quadradinhos. Oh! Este Montmartre, com os seus telhados altos e baixos, os seus tufos de árvores, este céu, a basílica tão branca, é um bairro maravilhoso. Vês tu, a rua da Fani é insípida, a casa da Fani é insípida. a mobília da Fani é insípida.
- E o marido da Fani insípido é - acrescentou Teresa a rir. - De quem é a culpa? Quis dinheiro, tem-no. Por mim, quis a felicidade e tenho-a. Estou muito contente por gostares do nosso ninho de artista, irmãzinha. Diz-me cá... como vão as coisas entre ti e o Florêncio? Oh! Podes falar; ajudaste-me tanto quando precisei! Parece que não vos convidaram para a árvore de Natal. Foi por causa dos Bastien? Pobre Lili... A Estefânia já fez bastante mal na sua vida. Ainda não estará satisfeita?
- Não é tão culpada como parece. Maçã. Tem uma consciência muito elástica. Que culpa tem ela?
- A consciência deforma-se, minha querida. À força de ceder ao egoísmo. Acaba por ser ele a dominar.
- Mas pode tornar a formar-se. Ainda tenho esperança.
- Pois eu não tenho nenhuma. Quando uma mulher é tão pouco mãe, duvido do seu coração. Ter um tesouro como a Edite, abandoná-la a uma criada qualquer e preparar-se para abandonar o pai dando-Lhe como padrasto um homem que não terá esse direito: a meu ver são faltas imperdoáveis. Bem sei que isto te choca, a ti, que és toda misericórdia, mas quando fores mãe talvez penses da mesma forma.
Isabel ergueu a cortina. Diante dela, Paris vivia a sua vida intensa e complexa. Gostava de Paris.
Todavia, ao ver o céu coberto de nuvens e de fumo. pensou com saudade nos Invernos cheios de pureza da montanha.
- Teresa, - disse sem se voltar - o paizinho chega amanhã de manhã. Compreendeste por que iria sozinho para a Sabóia?
- Para descansar, com certeza. A altitude faz-Lhe muito bem. Mas a mãe não gostou. Não o achas estranho de há uns tempos para cá?
- Sim, está diferente. Desde as férias grandes... Subia todas as manhãs e quando voltava trazia uma claridade nova no olhar. Depois houve aquelas ameaças de guerra que o impressionaram profundamente. E, por fim, esta história da Fani, como é que te hei-de explicar?... A sua alma trabalha.
- Quando é que se estreia a peça? A célebre "Patrícia"?
- Brevemente. Os ensaios começam para a semana. O Cláudio Ariel ficou furioso com a partida do pai. Acho que queria que ele lhe desse o tom.
- Ainda te faz a corte, o grande actor?
- Tenta. Mas não pega. Para mim só conta o Florêncio.
Sentou-se no braço da poltrona da mais velha.
- Se não tivesses casado com o Sílvio, o que é que tinhas feito, Maçãzinha? Diz.
- Tinha morrido - respondeu rindo a Maçã. Mas casei com o Sílvio. E tu hás-de casar com o Florêncio. Tem esperança. Tem coragem. Dúvidas, tu, a nossa mercadorazinha de felicidade?
- Oh! É mais fácil vender felicidade aos outros do que a nós próprios - suspirou Isabel. - Se não casar com o Florêncio, não me caso.
- Não tens cara de solteirona...
- Já não há solteironas. Serei assistente social. Se soubesses como me comove quando me dizem: "A sua mão é tão suave... Fala tão docemente... Dá-me coragem..." Tenho algumas companheiras que gostavam de ir para as colônias; eu, não. Gostava de ir para o campo ajudar aquela gente a ser o que era antigamente. Olha, parecida com os Solignac, os quinteiros da Châtaigneraie. Gente feliz, sã, livre, crente. Dá-me a impressão de que paira um sopro de espiritualidade nos campos da França em torno de igrejas fechadas... que hão-de tornar a abrir-se.
- Se eu tivesse um filho -disse Teresa - gostava que fosse cura de aldeia.
E ambas pensaram nos campos que ninguém cultiva, nos sinos que já não repicam.
João Morlainville voltou na madrugada do dia seguinte. Isabel, já pronta para ir para o hospital, teve a alegria de ser a primeira a beijá-lo. Olhou-o:
- Deixa ver se tens boa cara.
Procurava sobretudo o reflexo da misteriosa luz. Encontrou-o. Então, pousou-lhe a cabeça no ombro para que ele se sentisse amado. Certamente aquele gesto agradou ao viajante, visto que se manteve silencioso, imóvel, enquanto a filha se apertava contra ele.
Ela, atenta às horas, depressa se desprendeu:
- vou chegar tarde. E tu sabes que lá não nos deixam passar nada.
- Têm razão. A disciplina é a tempera das almas.
- Como dizes isso...
Desceu a escada a correr. Lá, esperava-a o belo trabalho de manhã. Hoje ainda mais interessante visto que começaria o estágio num hospital de crianças. Ali nada lhe era difícil. Não receberia nenhum daqueles choques brutais que sentira em outros serviços. Junto dos pequeninos, até mesmo a doença era pura.
Quando voltou à noite, causou-lhe espanto a atmosfera da casa. Jeanine tinha os olhos vermelhos. João, embora calmo, tinha aquela grande ruga na testa. Mas nos olhos havia a claridade que trouxera da montanha. Que se passaria? Sentindo que o seu dever de amor era romper o silêncio, falou, pôs-se a contar histórias passadas no hospital. Precisamente, assistira a uma operação muito interessante. Mas João-Lucas tapou os ouvidos:
- Até nos tiras o apetite. Tenho horror à cirurgia. E a mãezinha também.
- Ora! Eu... -disse Jeanine. - Ninguém se importa de me contrariar.
Marieta fez sinal a Isabel, aquele sinal que, no código de ambas, significava: "As coisas não vão bem". De que falar, meu Deus? Lembrou-se de que o pai fora visitar Odilia à montanha: como é que a achara?
- O estado dela agrava-se - respondeu João.
- A pobre petiza sabe-o e procura atordoar-se. Tiveram que a mandar embora da casa onde estava, devido à sua atitude para com os rapazes. Mas isso não lhe serviu de nada.
- E aí tem o que são as queridas amigas da sua filha - fez notar Jeanine. - Em lugar de se prender a personagens fictícias, como um D. Quixote, fazia bem melhor em vigiar as relações de Isabel que já não me obedece em nada.
Obedecer? Isabel nunca sentira que Jeanine fosse uma pessoa a quem devesse obedecer. Corou. Mas calou-se sem tomar a defesa de Odilia. Quando Jeanine tratava o marido por "você", em casa, era muito mau sinal.
O senhor Morlainville retorquiu com calma:
- A Odilia não pode fazer mal a Isabel. Não creio que ainda viva muito tempo, pobre criança.
- Essa rapariga não me interessa nada - declarou Jeanine. - Guarde a sua piedade para quem a merece.
João-Lucas, que amava ternamente a mãe, contemplou-a com um olhar triste. Não podia impedir-se de a comparar com a mãe Morot-Léandre, tão justa, tão equilibrada, tão esquecida de si mesma. A mãezinha estivera a chorar? Porquê? Que teria acontecido mais? Do seu coração de rapaz levantava-se uma piedade tosca, incapaz de se manifestar.
E teve uma idéia: fazer-se lamentar para que a mãe esquecesse a sua mágoa. Por acaso, estava com dores de cabeça. E deixou ir o prato intacto, e, oh! se ele gosta daquele doce!
- Dói-me tanto a cabeça! Jeanine assustou-se:
- Se calhar é gripe. Toma um comprimido.
Mas ele queria lá saber do comprimido! O que era preciso era que a mãezinha. depois do jantar, se sentasse na sua grande poltrona, ele numa almofada com a cabeça nos joelhos dela, para que o acariciasse.
Assim foi. A linda mão branca refrescou a testa de João-Lucas. A outra, presa numa mão de rapaz, recebeu mais do que um beijo. E Jeanine que, na verdade, tinha razão para estar transtornada nessa noite, sentiu plenamente a doçura da maternidade. O seu filho... Belo, já grande e só seu. Ainda não disputado pelo amor, nem pela ambição, nem pelo sonho, nem pelos escrúpulos de consciência. Ah! Como é que a Fani podia amar tão pouco a filha?
Mas eis que, pensando em Fani, tornava a recordar a cena da tarde. "Patrícia" erguia-se diante dela. Ou melhor, o espectro de "Patrícia". Visto que João a matara.
Matara-a. Assim. Sem consultar Jeanine. Não haveria estreia imponente... Aquela peça que todos esperavam ansiosos, que fora anunciada, de que já se falava! Jeanine combinara até com a modista o vestido que levaria à estreia triunfal. Contava com a glória; porque não a Academia Francesa? E contava também com a fortuna.
Nada. Não haveria nada. A não ser, talvez, um processo. Visto que Romain Villanel a prometera. É claro que o contrato ainda não estava assinado. Nunca se decidira a traçar na sua caligrafia bem desenhada aquelas cinco palavras: "Lido e aprovado; João Morlainville". E Jeanine supusera que ele não achasse as condições suficientemente vantajosas: uma peça daquelas!
Mas não. Fora porque quisera fazer aquela monstruosidade: destruir o manuscrito. Levara-o para a montanha e, ao fogo ardente duma chaminé de mosteiro, reduzira a cinzas aquele trabalho tão forte, tão belo que o próprio João afirmava nunca ter imaginado um enredo tão cheio de lógica, nunca -ter retratado tão profundamente uma alma, nunca ter escrito num estilo tão perfeito.
Oh! Quando ele lho anunciara, que choque! Sem querer, gritara:
- João! Endoideceste? Diz que não é verdade!
- É verdade, Jeanine. Não podia deixar viver Patrícia.
- Porquê? Então agora queres escrever peças para os patronatos?
- Não quero que uma obra assinada por mim vá incitar uma única mulher que seja a romper as juras do casamento. Não quero que a Estefânia, minha filha adoptiva, veja a sua conduta justificada na conduta da Patrícia. Como é que eu ousaria aconselhar-lhe aquilo que tu própria desejas, que contínue a ser a mulher do Paulo Bastien, se pusesse diante dela uma revoltada?
- Podias modificar algumas cenas. Enfim, transformar a tua peça.
- Não é possível transformar uma peça verdadeiramente forte. Patrícia era perigosa mas verdadeira. Podia suprimi-la. Modificá-la, não.
- Um poeta sabe renovar-se. Faz isso por mim. Vais cobrir-te de ridículo... Meteres-te num processo ruinoso... Privar-me duma alegria tão grande... Ah! Tu não gostas de mim, João!
- Nunca te amei tanto. E tu, se me amas, é preciso que ames até ao ponto de compreender e participar do meu sacrifício. Que é rude, sabes? Ajuda-me.
Lágrimas. Lágrimas diante das quais João se endureceu. Terá medo de ceder? Ela assim o espera.
- Suplico-te, vê de novo o rascunho. - Também está destruído.
- Ah! Bárbaro! Mas quem te levou a essa selvajaria? Que influência se exerceu sobre ti mais poderosa do que a minha? Foram os monges, lá em cima?
- Já o decidira antes. Fui ao convento buscar força para obedecer à minha consciência.
- Mas quando é que te decidiste? Diz-mo. Exijo-te!
Ele guardou silêncio durante alguns instantes.
- No dia - respondeu finalmente - em que Rosa Martin, olhando as mãos gastas nos mais rudes trabalhos, disse à minha filha: "Sou tão feliz!" Quis ser feliz à maneira da Rosinha. Aqui tens.
Nova pausa no silêncio. Jeanine sente passar algo de grande, de imenso, que a quer atrair também. Não, não se deixará conduzir para o alto. Faz troça:
- com que então agora o teu modelo é a vendedeira de mexilhão! Olha, tu e a tua filha não passam duns utopistas, duns extravagantes, duns selvagens.
E depois, trêmula, contendo as lágrimas: -João, refaz a peça. Suplico-te. Cláudio Ariel copiou certas passagens... Suplico-te...
- Não tenho o direito.
E partira. Enquanto Jeanine a soluçar repetira durante uma hora:
- Detesto-o. Detesto-o. Sem reparar que o admirava.
PAZ duma manhã de domingo. Isabel olhava Marieta a andar de cá para lá com esforço.
- Estás cansada, tu. Se tivesses juízo deixavas a mãezinha tomar uma criadita para te ajudar.
Marieta tossiu, uma tosse que chiava dentro do peito.
- Agora rara é a criada que é séria. Partem tudo. Andam sempre no passeio... Antes quero fazer sozinha o meu trabalho.
Isabel repetiu, encolhendo os ombros:
- "Quero fazer sozinha o meu trabalho". Ora aí está! Achas que podes ir à praça, lavar a roupa, lavar os vidros, a tossir dessa maneira? Ainda acabo por deixar o meu curso para te ajudar, minha teimosa.
- Livra-te! Tu, a acarretares a alcofa e a cafeteira do leite? Meter as mãos na água...
- Que grande coisa! A Teresa faz isso todos os dias.
- Tu e a Teresa são muito diferentes.
Mas um ataque de tosse sacudiu-a e teve que se sentar. Isabel apoderou-se do esmagador e pôs-se a desfazer as batatas.
- Isabel, largue o meu purê.
- O teu purê. o teu purê! É de todos, o teu purê. Gosto imenso de dar à manivela. Não tomes esses ares de mártir.
Marieta, enxugando os óculos, disse com tristeza:
- Se já não presto para nada, é melhor que me vá embora.
Isabel largou tudo e apertando a velha nos braços:
- Tu, tu não hás-de morrer. És uma daquelas pessoas de que o mundo não consegue prescindir. Dou-te um beijo, sim, dou-te, minha má. Ralo-me bem com a tua constipação. Engulo mais micróbios lá no hospital.
Marieta já se pusera de pé:
- Agora já vou melhor. Dê cá isso. A menina não sabe fazer o purê depressa. E estraga as mãos todas.
- Porque é que me estás a tratar por menina? Não está aqui ninguém.
- Porque estou a pensar no meu fim - murmurou a velha criada.
Mas Isabel não a ouviu. A voz de João-Lucas ecoava argentina:
- Isabel! Onde estás tu? Tenho umas coisas a dizer-te.
Puxou a irmã pela mão e correram ao longo do corredor.
João-Lucas entreabriu a porta do seu quarto mobilado no mais puro "estilo Florêncio" e instalaram-se entre as almofadas do divã.
- Adivinha o que me contou um companheiro do liceu... "Patrícia" nunca será representada.
-O quê? Recusaram o manuscrito do paizinho? Essa é forte.
- Pior que isso: o paizinho destruiu-o com as suas próprias mãos.
- Estás a exagerar, João-Lucas. Comigo isso não pega, podes crer.
- Incrédula! O pai do meu colega faz parte do conselho de administração do teatro. A multidão urra. Querem instaurar um processo a "esse doido do Romain Villanel".
- Mas, porque é que ele fez isso?
- Escrúpulo de consciência, ao que parece. Isabel, lá estás tu verde como uma salada. Não desmaies, por favor.
- Certamente havia de quê. Pobre paizinho!
- E pobre mãezinha, diz assim. Agora compreendo por que razão tem tantas vezes os olhos vermelhos.
- Pobre paizinho - repetiu Isabel. - Uma peça em que trabalhou durante um ano... De que estava tão orgulhoso... Mas que espécie de escrúpulo?
- Imaginou que a sua Patrícia daria aso a que as mulheres achassem o marido insuportável e tivessem todo o direito de "refazer a sua vida", como se costuma dizer.
Isabel olhou para o irmão:
- Estefânia... -disse em voz surda,
Ambos em silêncio imaginaram a mesma cena: Fani erguendo-se no meio do círculo de família
- "Pretendem impor-me uma moral austera. E o meu pai no palco, glorifica uma outra, libertadora. Se eu quiser imitar a Patrícia de Romain Villanel, quem é que terá a coragem de me censurar?"
Diante deles rasgara-se uma clareira, descobrindo um novo horizonte: o mundo espiritual em que o mínimo gesto tem repercussão, destrutiva ou vivificante. Aquele mundo em que a personalidade de cada um fortifica ou gasta a personalidade de outrem. Patrícia, Fani, Rosa... De alma para alma, propagavam-se ondas...
- O que é que poderemos fazer por eles? - perguntou Isabel, baixinho, como se fala numa igreja.
O irmão compreendeu bem o que representava o pronome "eles".
- Eu, nada. Sou rapaz. Para coisas como essa. os rapazes são nulos, a tal ponto...
- Podes consolar a mãezinha.
- Lá isso é verdade. Quando ela está zangada com o pai, descobre que eu sou bastante bom rapaz. Sabes. Isabel, eu adoro consolar a mãezinha. A mãezinha, a mãezinha... é a mãezinha! Tu, encarrega-te do pai. Tens um jeito especial para o pores a direito.
-Há também a Fani. A Faní, sobretudo. Achas que compreenderá?
- Não há-de querer compreender. É teimosa como uma burra. E seca como um cavaco.
- Não é tanto assim. Ninguém é tão mau como os outros o imaginam, convence-te. No fundo, no fundo de todos, esconde-se uma semente que daria flor se o sol a aquecesse um pouco.
João-Lucas ia dizer alguma coisa, mas a voz enrolou-se-lhe na garganta, e, como não queria chorar diante duma rapariga, pôs o gramofone a tocar. Isabel, que não gostava daquilo, foi-se embora levando consigo o seu segredo de família.
João-Lucas ia dizer alguma coisa mas a voz não saía. Para o abordar serviu-se de um estratagema. Foi pedir-lhe um livro. Ele gostava tanto de livros que aquilo pegava sempre.
Lia. Teria decidido não voltar a escrever? Isabel expôs-lhe o seu desejo: "Um bom romance". Ele deu-lho. Depois ela olhou-o e pousou-lhe a cabeça no ombro.
Assim ele compreendeu que ela "sabia".
- Não tinha outra coisa a fazer - disse com simplicidade. - Compreendes-me tu, minha filha?
- Sim. E amo-te ainda mais. Estás triste, muito triste.
- Muito. Queima. Mas... sou feliz.
- Foi na montanha, este Verão, que começaste a pensar nisso?
- Sim. Tudo era tão puro! Mas talvez nunca tivesse tido a coragem suficiente se não fosse a Rosa.
- É verdade? Foi por causa da Rosa? Oh! paizinho, ela é tão pequenina e tu tão"grande!
- Troca os termos: ela é tão grande e eu tão pequeno. Isabel... posso pedir-te uma coisa?
- Tudo o que quiseres, querido. Seria capaz de ir ao fim do mundo por ti.
- Vai somente a casa da tua irmã Estefânia. E diz-lhe...
- Sim, paizinho.
Ternura. Compreensão maravilhosa... Ah! Como era bem filha do melhor da sua alma aquela Isabel!
Entretanto, João-Lucas entrara no quarto da mãe e em voz dolente:
- Estava com medo que tivesse saído. Mãezinha, estou tão aborrecido! Imagina que um dos meus colegas copiou a minha composição. Assim já não recebo o primeiro prêmio.
A história era verdadeira e bastante vexante para enternecer Jeanine. Foi apenas mãe. A sua mão suave e bonita, com diamantes, acariciava a cabeça que se refugiara no seu ombro. Escutava aquela voz ora aguda ora grave:
- Mãezinha, minha mãezinha pequenina. E consolando-o, esquecia a sua angústia.
Isabel sabia a hora a que a irmã estava em casa: a hora em que se vestia para a noite. De facto, foi encontrar Fani diante do toucador.
- Tu, por aqui? Então tem paciência, penteia-me. Tens muito mais jeito do que a minha criada de quarto.
- Esta noite sou eu a tua criada de quarto para tudo.
- Se te diverte... Olha o meu vestido. Um amor.
- Um amor - repetiu Isabel enviando um beijo na ponta dos dedos àquela maravilha de seda sussurrante.
Penteou-a, vestiu-a, com uma emoção estranha. Quando o colar de pérolas ficou colocado em torno do pescoço tão fresco e tão branco, Estefânia achou-se linda. Todavia, não sorriu à sua imagem. Um pensamento torturava-a.
-Já que estamos sozinhas, Isabel, explica-me o que têm os pais. Houve algum drama na Rua Nicole?
Chegara o momento. A alma de Isabel num vôo ergueu-se em busca de socorro. E depois, voltando para junto da irmã que tão ostensivamente bonita lhe inspirava piedade, falou.
Fani fez-se branca sob a pintura.
- Ele fez isso?... Uma peça tão ansiosamente esperada, que todos admiravam antecipadamente... Um êxito garantido... Ele foi capaz de fazer isso?... isso?...
As pérolas do colar rolavam sob os seus dedos.
- Isabel, o que é que havia de tão perigoso na peça? Mas tu com certeza que o ignoras, irmãzita branca...
- Sei o bastante para te dizer, Fani. Escuta: Patrícia, linda, nova, brilhante, acha que a sua personalidade sufoca junto de um marido que todavia a ama. Pretende libertar-se, engrandecer-se, deixando-o e procurando longe a felicidade.
Duas lágrimas redondas correram pelas faces de Fani, lágrimas lentas, pesadas, difíceis. Isabel ajoelhou-se entre os folhos sumptuosos.
- Minha querida - disse.
Então as palavras vieram, aquelas palavras verdadeiras que foram correndo, mas que libertam.
-É a minha história, a história de Patrícia... Disseram-me: "Você tão nova, tão bonita, viver amarrada a um marido tão velho? Tem direito à felicidade". Diziam-me isto, mas eu não conseguia ser feliz. Enquanto uns me atraíam para este lado, o Paulo e a pequenina puxavam-me para o outro. E tu... Mas houve outra coisa. Não podes compreender. És demasiado pura.
- Ah! Eu compreendo.
- O Paulo é bom, sempre foi bom. Olha, ele não se devia ter ido embora, talvez que me tivesse salvo apenas com a sua presença.
-E se ele voltasse? Se tu o chamasses, Fani?
- Nunca! Tenho o meu orgulho. E, além disso... amam-me. Mas serei eu uma maldita, para destruir tudo? O lar do Paulo e da Edite, a glória do paizinho, o teu casamento... Da outra vez, a felicidade da Teresa?...
- Refloresceu, a felicidade da Teresa. Fani. o que fizeste então, fá-lo esta noite. Por todos. E... por ti!
Egipto. Paulo Bastien recebe o correio no vestíbulo dum paláce. Cartas de negócios. Mais cartas. Esta, que é isto então? Aquela letra não lhe é desconhecida, comprida, leve, com traços e acentos aéreos. Por que razão lhe terá escrito a cunhada mais nova? Teria havido alguma coisa? Edite?
Torna-se muito vermelho, e com a ponta dos dedos abre o envelope que chegou por via aérea. Lá dentro há apenas uma folha de papel. Mas ninguém escreve assim, com letras enormes! Lê.
"Paizinho. Volta depressa. A tua filhinha está à tua espera. Edite".
E, mais abaixo, pálidas, estas palavras:
"Perdão. Estefânia".
No ar ligeiro passam andorinhas em grandes preparativos para o regresso à França. Não vão muito depressa as andorinhas. Ele há-de conseguir umas asas maiores. Edite, Estefânia, aquelas duas cabeças louras, o céu pálido da França, a casa: somente o avião pode tomar o ritmo da sua impaciência.
Já não é o "velho Paulo" carrancudo, grisalho. É um homem ardente que vai ao encontro da sua felicidade. Durante o vôo, como mascote, na algibeira interior do jaquetão, a folhinha transparente onde passou, guiada por outra, a mão gordinha da sua filha de caracóis de ouro... E a mão de uma mulher linda, linda, com que sonha...
Bourget, Florêncio e Isabel, batidos pelo vento, no terraço. Diante deles, o imenso terreno onde, daqui a pouco, pousará o pássaro gigante que traz da África aquele a quem chamam o "velho Paulo".
Estefânia quis que a irmãzita a acompanhasse.
- Tu dás felicidade. E gostaria que o Florêncio fosse também. Não poderia suportar a presença do motorista, e nem o Paulo nem eu teremos vontade de guiar. com o Florêncio ao volante seria tão bom... tão família.
- Família? - repetiu Isabel.
- Sim, minha tolinha. Nada te impede de casares com o teu Florêncio, feliz entre os felizes.
O senhor Morot-Léandre, a quem Isabel pediu timidamente Florêncio como motorista, olhou-a sem responder logo. E a pobre Isabel passou por todos os tons do arco-íris. Por fim, ele disse muito lentamente:
- Sim, pequenina de coração grande.
E fora tão belo, tão inesperado, o seu sorriso!
Partiram os três. Muito cedo, mas a Fani estava nervosa. Florêncio tomou o volante. Que prazer guiar um carro bonito, obediente e ligeiro! Sentia uma alma de piloto. Pensava no carro aéreo que um dia faria correr através das estradas lá de cima.
Atrás, as duas irmãs iam de mãos dadas.
- "A tua mão acalma" -dissera a mulher.
Uma vez no Bourget, Fani empalidecera. Declarou que queria esperar no automóvel a chegada do avião.
- Vocês vão para o terraço, meninos. Voltem só quando os passageiros tiverem descido todos.
Compreenderam que ela precisava de estar só. E que queria afastar as testemunhas.
- Por aqui, Isabel - disse, alegremente, Florêncio. - É preciso trepar. Não se importa? Estou tão contente por ver os aviões consigo!
Escada a pique. Ri-se porque se é novo. De súbito, um golpe de vento em pleno rosto. De frente a vasta pradaria orlada de telheiros abobadados. Como papoilas, poisam aqui e ali corpos brancos de grandes asas. Florêncio dá o braço a Isabel. Precisa de sentir perto, muito perto de si, a rapariguinha que ama. Meu Deus, como a ama!
No céu de Março em que a Primavera e o Inverno se disputam, passam nuvens desfiadas pelo vento, aquele vento que já começa a ter um certo gosto a erva e a folha.
- O meu chapéu vai voar - gemeu Isabel.
- Tire-o. Ponha antes o lenço.
com gestos delicados, ajuda-a a atar a seda multicolor sob os caracóis escuros. Que bonita carinha assim emoldurada!
- Já está bem? Agora atenção: uma partida para Inglaterra.
Um avião que se destacou dos outros corre pela relva, procura a pista. Um fumo indica-lhe a direcção do vento. Rola ainda, depois abranda, eleva-se um pouco, tão poucochinho!... Sobe mais depressa, muito depressa. E ei-lo nos ares, rumo ao Norte, seguindo entre estradas misteriosas que nenhum marco, nenhum sinaleiro indica, mas que o piloto sabe escolher e seguir como outros seguiram a grande estrada provinciana orlada de macieiras.
- Daqui a 55 minutos está em Croydon - disse Florêncio olhando para o relógio de pulso.
Já nem se consegue ver... Mas, lá em cima, novo vôo. Um pássaro amarelo vivo, mais pequeno do que os outros, desce, corre no terraço e pára.
- Avião de turismo - anuncia Florêncio. Um só lugar, descoberto. Apanha-se vento de todos os lados. Oh! Ter uma coisa daquelas!...
Seus olhos têm um golpe de águia. Intimida Isabel. Todavia, nunca o amou tanto como neste momento. É plenamente "ele".
E eis que se põe a recitar, como um garoto recita a lição:
- Oiça o que escreveu Saint-Exupéry. Sei isto de cor: "Se trabalharmos apenas para o nosso bem-estar material, construímos a nossa própria prisão. Fechamo-nos, solitários, com a nossa moeda de cinza que não proporciona nada que valha uma vida. Se procurar nas minhas recordações - aquelas que me deixaram um gosto durável, encontro as que nenhuma fortuna me poderia proporcionar... Aquela noite de vôo e as suas cem mil estrelas, aquela serenidade, aquela soberania de algumas horas, o dinheiro não as compra... Este aspecto novo do mundo depois de uma crise difícil, as árvores, as flores, as mulheres, os sorrisos coloridos de frescura pela vida que cada manhã se renova, aquele concerto das coisas pequeninas que nos recompensam: o dinheiro não as compra".
Que memória! O rosto meigo, emoldurado pelo lenço, ergue-se para o piloto do futuro:
- Florêncio, o velho Paulo, coitado, pensou que poderia comprar o amor da Fani.
- E a sua "moeda de cinza" não lhe proporcionou nada que valesse a pena. Não se compra o amor. Merecemo-lo.
- E é por isso que eu gosto de si, Florêncio.
- Ainda não fiz nada. Mais tarde, sim, quero que tenha orgulho do seu marido. Porque recomeço a ter esperança de que virá a ser a minha mulher. E tenho também esperança, tenho esperança de que hei-de voar. Mas escute o locutor... Está a anunciar a chegada do Egipto.
Procuraram no céu: por entre belas nuvens mates desenhou-se um ponto, aproximou-se, aumentou. Ouviu-se o roncar. Viram-se as asas. O avião volteou, desceu, aterrou, finalmente. E do seu flanco saíram os passageiros, malas na mão, andar pacífico.
- Ali vem o senhor Bastien - disse Florêncio.
- Vamos depressa.
-Tem tempo, deixe estar. Ele ainda tem que ir buscar a bagagem. E a Fani deve ter alguma coisa a dizer-lhe.
- Vamos ajudar a Fani a dizer as coisas murmurou Isabel.
Florêncio compreendeu. com uma simplicidade de crianças, com uma emoção de juventude ardente, rezaram, pedindo para aqueles dois ricos, Paulo e Fani, o amor que não só compra com uma "moeda de cinza". Eles, os noivozinhos, tinham-no sem dinheiro.
- Agora vamos - ordenou Florêncio. - Desçamos, que tenho que ir ver o meu carro. Sou motorista.
Lá em baixo, ele ajudou-a a pôr o chapéu lamentando ter que tirar o lenço, o mesmo lenço admirado seis meses atrás por Hugo Lesoir. Mas não disse como Hugo: "Que lindo lenço. Que bem que lhe fica".
com o coração a bater, Isabel esperou cá fora que os Bastien aparecessem. Demoravam-se. Por fim, reconheceu o feltro da Fani e o seu cabelo loiro. Envelhecido, pálido, Paulo seguia-a. Ao ver os dois petizes, o rosto dele desanuviou-se:
- Que amabilidade virem esperar-me!
Beijou Isabel, que o ouviu murmurar a palavra "obrigado".
E depois, olhando o rapaz de pele fresca, de olhos brilhantes:
- Um abraço!
- com todo o gosto - respondeu Florêncio, que pensava:
- "A carcassa de cunhado que eu vou ter!"
- Deixas-me ir ao lado do Florêncio, Fani? perguntou Isabel alegremente. - Diverte-me tanto!
Fani, com os olhos vermelhos, disse que sim com a cabeça. Florêncio, encantado, instalou a sua Liseron junto de si. E através dos pobres bairros cinzentos, voltaram ao Paris elegante onde Fani, se o merecer, encontrará, finalmente, em sua casa, aquilo que se compra sem dinheiro: a paz, o amor, a sabedoria.
ISABEL regava um jacinto cor-de-rosa: presente de Marieta, que sabia como a sua menina gostava de ver crescer as plantas. Mas Marieta, na sua simplicidade, ignorava que aquele perfume fresco e alegre era para ela o próprio perfume da Primavera, proporcionando-lhe um prazer, não supunha todas as tonalidades poéticas desse prazer.
- "Lembra Mozart" - pensava Isabel inclinada sobre o cacho trêmulo onde cantava a alegria da Primavera.
Ela própria era uma Primavera. Quantas alegrias! Paulo e Fani reconciliados, Edite voltando a pronunciar a palavra "paizinho", Rosa colocada, graças a Paulo, numa perfumaria dirigida por um patrão de valor, e a casa Morot-Léandre abrindo as portas de par em par diante dela.
Sombras também, certamente. Romain Villanel criticado, censurado, acusado de faltar à sua palavra. Jeanine nervosa, repartida entre o despeito e a admiração. Odília cada vez pior e mais revoltada, enviando cartas onde gritava o desejo de gozar sem freio os seus últimos tempos de vida. E, além de tudo, a saúde de Marieta que se via estar chegando ao fim, mas que recusava que a ajudassem ou tratassem.
Era principalmente isso que perturbava a alegria de Isabel. Mas Jeanine não julgava Marieta doente:
- A gente do campo é rija como carvalhos. Naquela manhã, Isabel, ao cuidar do jacinto,
notou que uma nova flor despontava. Quis anunciar a feliz nova a Marieta e correu para a cozinha:
- Marieta, - gritou correndo tão depressa quanto lho permitia a saia comprida do roupão sedoso - o jacinto refloriu.
Nada de Marieta. Já teria saído para as compras? Não. Os fechos ainda estavam corridos. Marieta... Assustou-se e foi bater à porta do quartinho. Uma débil resposta. Entrou, inquieta, e viu a cabeça grisalha no travesseiro.
- És tu, minha jóia? Sou uma preguiçosa. Não tive coragem para me levantar apesar do despertador já ter tocado.
Isabel vira muita coisa no hospital. Aquele rosto enrugado adquiria a estranha máscara que a doença imprime.
- Vou-me levantar - repetia Marieta. - Fazer o teu chocolate. E o café do senhor. O leiteiro já veio?
Soerguia-se. Meu Deus, como estava descarnada sob a camisa do pano grosseiro! Isabel obrigou-a a deitar-se, tapou-a, beijou-a, e sabendo que Jeanine dormia ainda, telefonou ao médico para que viesse imediatamente.
- Um coração gasto até à última - declarou ele. - Um repouso absoluto pode prolongar-lhe a vida. Mas a gente desta tempera não sobrevive muito à sua inactividade.
Falou em hospital.
- Nunca - gritou Isabel. - Isso nunca. Quando ele se foi embora, a senhora Morlainville interveio:
- Não estás a ser razoável, minha filha. A Marieta seria melhor tratada e estaria mais tranqüila. Aqui, quem é que se há-de ocupar dela?
- Eu.
- E o teu curso?
- Quero lá saber do curso. Acima de tudo está a Marieta.
E as lágrimas correram...
- Isabel, não chores dessa maneira. A Marieta é tão velha... era de esperar.
Então a rapariga cruzou os braços sobre o peito num gesto trágico.
- A Marieta? Foi a primeira pessoa que amei. Já não tinha mãe. A Marieta deu-me tudo: o seu coração, as suas forças, a sua vida. E eu ia deixá-la morrer sozinha? Não. Há-de morrer nos meus braços... Mas diz-me que não é possível, mãezinha. Ela não vai morrer, pois não?
Jeanine era boa a seu modo; cedeu.
- Fica connosco, já que tanto insistes. Mas é preciso tomar uma enfermeira.
- Ela não há-de querer que uma estranha lhe toque. Conheço-a bem.
Enfiou a bata do hospital, enquanto Jeanine, pondo o quarto em ordem, pensava uma vez mais:
- "Decididamente, tão quimérico é o pai como a filha".
E que aborrecimento ver a casa tão desorganizada! Tomar nova criada... Talvez uma enfermeira... E sentir a morte rondar a porta. Jeanine arrepiava-se só de o pensar. No entanto, havia hospitais que recolhiam moribundos. Quantas contrariedades em tão pouco tempo!
Procurando alguém com quem desabafar, telefonou à Fani.
- Como? O quê? - disse do outro lado do fio uma voz mudada. - A Marieta está muito doente? Oh! Coitadinha! A Isabel quer que ela fique aí em casa? Quer tratá-la? Eu vou já.
Quando chegou, Fani disse:
- Seremos duas a tratar da Marieta. Pensaste que te ia deixar sozinha, querida? Além disso, a Marieta salvou-me quando tive a febre tifóide. Agora é a minha vez.
- Mas... tu sabes? - perguntou timidamente Isabel.
- Obedecer-te-ei.
Obedecer... aquela palavra na boca da orgulhosa!
Graças a Fani, Isabel pôde continuar o curso.
Estudava com desespero e ardor. Aprender a arte de curar, era trabalhar por Marieta, a sua grande doente, a sua querida doente, cuja vida fugia pouco a pouco.
Ansiedade no decorrer do dia. Quando o telefone da escola tocava:
- Será para ir para casa?
Quando chamavam: "Isabel Morlainville", o seu coração batia com mais força. "Vão-me dizer que..." O metropolitano parecia-lhe lento, a escada de casa, muito alta. Corria ao quarto cujo ambiente adquirira o cambiante próprio dos lugares onde a morte espreita.
Cada dia mais amarelo, mais ossudo, o rosto envelhecido sorria-lhe dèbilmente. Coisa estranha: em repouso, as mãos de Marieta tinham-se tornado brancas e lindas: mãos de senhora.
Noelle, estudante de medicina, vinha todas as tardes. Pelas três raparigas, Estefânia, Noelle e Isabel, Marieta deixava-se cuidar, murmurando:
- São todas tão boas para mim! E estou a dar tanto incômodo!
Mas para ter alegria, para repousar, precisava de sentir a sua mão na de Isabel.
- A tua mão, a tua mão - dizia - faz-me tanto bem...
- "Oh! Como as coisas se inverteram!" pensava a rapariga. - "Dantes era eu que pedia a mão de Marieta".
E, recordando a impressão de segurança que então sentia, apetecia-lhe transmitir a sua vida jovem e forte às pobres veias salientes, como cordões azulados, na mão que readquiria toda a sua nobreza depois de tanto ter servido.
Jeanine pasmava ao ver, não Isabel, mas Estefânia. Dir-se-ia que o seu coração estivera adormecido até àquele momento. Jeanine sentia bem que existia um laço entre a destruição de Patrícia, fantasma nefasto, e o regenerar de Estefânia. Mas não compreendia bem toda aquela complicação...
Abril... O jacinto já não tinha flores, mas o lilás do jardim vergava ao peso dos cachos. O seu perfume subia, até à janela de Isabel. Era então que as lágrimas corriam... Marieta ainda veria as rosas?
- Está perdida... Está perdida - dizia o médico.
Jeanine não podia impedir-se de pensar: "Que doença tão demorada", mas mostrava-se calma e boa, embora lhe custasse tocar no velho corpo doente.
João, estranhamente, imaginava que a sua primeira mulher, Colette, devia estar à espera de Marieta no limiar do Paraíso.
- "Vai-se embora... Vai-se embora... Deus queira que eu esteja ao pé dela!"
Sim... Marieta esperou até domingo...
Para receber Deus no seu quarto, onde nada havia de belo, desdobrou-se a preciosa toalha de rendas, feita por Colette nas suas horas de ócio e tristeza. E os Morot-Léandre trouxeram os lilases brancos do seu jardim.
Marieta, que sempre obedecera, respondeu "sim", quando compreendeu que Deus a chamava. E achou que era grande a honra que lhe fazia em vir primeiro até ela. "Non sum dignus": as três pancadas soaram no peito magro. Vós, tão grande. Eu...
Seria simples morrer. Somente, somente, deixar Isabel! Quando acabou de rezar, chamou-a. Ela ajoelhou-se no tapete usado, para que as mãos, aquelas mãos que sempre haviam servido um coração nobre, lhe pousassem sobre a cabeça.
- Meu amor... não te hei-de ver casada - murmurou. - E não tratarei dos teus filhos.
Uma lágrima abriu caminho entre as rugas e banhou os cílios secos.
- Gostarias de ver o Florêncio? - perguntou Isabel.
Um clarão de alegria por detrás das ralas pestanas cinzentas.
-Vou chamá-lo - disse a rapariga. - Ele é muito teu amigo, sabes?
- Ouve... Primeiro quero dizer-te uma coisa. Para a tua Odília... Escreve-lhe que, quando se viveu como deve ser, não custa morrer... Agora, vai buscar o menino Florêncio.
Telefonemas. Florêncio acorre. Ajoelha-se também junto da cama estreita de ferro. Então, Marieta, que já não vê bem, procura no lençol a mão dele, a de Isabel, e reunindo-as na sua:
- Confio-lhe a petiza menino Florêncio. É preciso que nunca a faça chorar.
E os lábios do rapaz pousaram na velha mão; jura... homenagem... adeus.
À tarde, num raio de sol, passou a primeira andorinha. Isabel, atenta a esse sinal de Primavera, quis dizer como nos outros anos:
- Marieta, voltaram as andorinhas!
Mas, ao voltar-se, viu-a sufocada. Passou-lhe o braço sob o corpo que se tornara tão leve, beijou a fronte perlada de suor. Um olhar filtrava-se por entre as pálpebras pesadas, os lábios violáceos moveram-se ao de leve.
E a alma foi-se como a andorinha.
Isabel quis que se abrisse o túmulo de Colette, sem que Jeanine ousasse dizer: "Exageras". E quando avistou lá no fundo da cova o caixão reluzente que acabava de ser descido pelas cordas, Isabel sentiu que a sua infância terminara.
Oh! Lágrimas... lágrimas... Luto do coração... Trazer vestidos de todas as cores num momento em que tanto desejaria vestir-se de preto... Mas Jeanine opõe-se. O mundo acharia ridículo. O luto por uma criada antiga não é um luto oficial, que coisa! Portanto é preciso vestir, viver, como se nada se tivesse passado.
Não, não irei àquele chá dançante.
Meu Deus, onde está Marieta? Poderá sentir-se feliz sem a sua petiza? Como é que a sua alma tão atenta ao cozer dos alimentos, ao brilho da baixela, se pode tornar contemplativa? Não se aborrecerá no meio dos anjos e dos santos?
Não quero que deitem fora o chapéu das uvas.
Ah! Arrumar as suas coisas, humildes e asseadas! Encontrar as magras economias que lhe legou, produto do trabalho duma vida inteira... Nascente inesgotável de lágrimas. Como estava pálida, na cama, à luz das tochas! Meu Deus, como continuar a viver, depois disto?
Nos braços da senhora Morot-Léandre, de preferência aos de Jeanine, ousou enfim soluçar, Era apenas uma garotinha que repetia indefinidamente aquele grito que a morte arranca:
- Não a amei como devia... Não a amei como devia...
MEU filho - disse Teresa a sorrir. - O meu primeiro filho, sim, porque eu quero uma dúzia. Que tal o achas, Isabel?
Uma das mãos sustendo a cabecinha calva, a outra sob as pernitas moles do bebê, contemplava com delícia o seu rebento.
- Um amor. Tão cor-de-rosa, uma boca muito pequenina, um nariz tão cômico! E os olhos, são os teus olhos. Parece-se contigo, Maçã.
- Ora o idiota! Devia parecer-se era com o pai.
- Posso dar-lhe um beijinho? - perguntou a rapariga. - No hospital dizem que nunca se deve beijar. Mas esta bochechinha faz-me crescer água na boca.
- Beija-o as vezes que quiseres. São bênçãos, os teus beijos. Não é assim, Francisco?
- Gosto que ele se chame Francisco. Francisco, lembra França.
- Não é? Põe-no no berço e vem ter comigo. Morro de pasmo nesta clínica. Apetece-me ir para casa... Sobretudo por causa do Sílvio. Nem sei como pode passar sem a mulher, pobre rapazinho.
- Às vezes, os maridos têm que passar sem a mulher, Maçã. Supõe um que... Não faço idéia, em suma, que tenha que fazer manobras militares, viagens. De que estás tu a rir?
- É que esse dito marido se chama Florêncio Morot-Léandre, oficial aviador. Está a corar, Lili querida? com que então adoras o teu Florêncio. Conta-me cá essas coisas.
- Cada dia o amo mais. Desde a morte de Marieta que sinto um vazio dentro de mim... Sabes, é tão difícil esperar! O senhor Morot-Léandre tem sido muito amável comigo, mas o Florêncio não se atreve a falar-lhe. O senhor está sempre a dizer: "É uma loucura casar cedo, num tempo destes, em que a guerra pode rebentar de um momento para o outro". Se as coisas se conservarem assim durante cem anos, estás a ver...
- Vês - disse Teresa sonhadora - os pais são inteligentes, têm bom-senso. Mas não têm o nosso dinamismo. Julgam que precisamos de tranqüilidade para sermos felizes. E nós... sabemos perfeitamente que quem ama consegue tudo. Olha tenho que te explicar uma coisa. Queríamos que fosses tu a madrinha do Francisco. Oh! Sim, minha querida: o lugar era teu. Fizeste-me tanto bem! Mas achei que havia uma maneira melhor e mais segura de te provar a minha gratidão: mostrar ao mundo inteiro principalmente aos Morot-Léandre - que o Paulo faz parte sólida da família. Por isso, convidei-o para padrinho e o Sílvio propôs como madrinha a sua tia Marta, que o amimou muito em petiz. compreendes, Lili? Todos hão-de dizer: "O casal Bastien reconciliou-se finalmente". Eu não me importava nada que a Fani fosse a madrinha, mas o Sílvio não a suporta.
- Acho a tua idéia maravilhosa, Maçã. E fica descansada, para ser amiga do teu Francisco não preciso de ser a madrinha.
-Vamos brincar às fadas. Acreditavas tanto nelas quando eras pequena! Que desejas ao meu filho?
Isabel vestida de Verão podia de facto passar por fada. Pôs um dedo no ar:
- Que este menino tenha sempre no coração a alegria do seu patrono, S. Francisco de Assis.
Da casa em frente vinha uma voz de locutor. Nomes geográficos davam uma nota metálica ao noticiário. Paz ou guerra? Isabel desejara "alegria" à criança que nascera nessa hora de ansiedade. Teresa, quando ficou só, pôs-se a pensar, de mãos cruzadas sobre o lençol.
O tempo estava óptimo. Em Paris, evolavam-se perfumes. Uma Primavera que Marieta não veria. Isabel não podia pensar nisto sem que os olhos se lhe enchessem de lágrimas. Mas não se chora na rua. Recalcou os seus pensamentos e desviou a atenção para aquele pequenino ser novo: Francisco, que vinha preencher, no círculo de família, o lugar vazio que a morte de Marieta deixara. Amar-se-ão os que chegam como se amam os amigos de sempre? Perguntava-o a si própria sem encontrar resposta: o seu coração não tinha ainda bastante passado...
Na Rua de Passy, de casas velhas, lojas novas, avistou Solange. De cara, Solange parecia-se com Florêncio. Mas quando Isabel sorriu àquele rosto duplamente amigo, surpreendeu-a a expressão perturbada, dolorosa, do seu olhar. Solange depressa readquiriu a máscara trocista que lhe era habitual. Mas Isabel captara a verdade. Que fazer por aquela rapariga em crise?
- Vem comigo até casa - pediu Isabel.
- com todo o gosto - respondeu Solange. Não tenho pressa de chegar. A minha casa é tão insípida!
- Oh! E eu que gosto tanto da tua casa!
- São todos uns cretinos. Isabel deu o braço à amiga:
- Parece-me que estás aborrecida. Podes confiar em mim. Não digo nada a ninguém.
-Eu sei. Tu és uma rapariga às direitas. Eu não estou propriamente triste. Mas... A alma abrir-se-ia?
- Enfim, tu talvez possas compreender porque... como dizer? porque vives numa família agitada. A nossa é tão vulgar! Além disso, fazes versos e versos fantásticos, minha amiga. Não sei... a gente sente que amas a valer as pessoas que amas. Não apenas porque te disseram que devias amar... Olha, que blusa tão engraçada.
Admirou-se a blusa. E as confidencias continuaram, hesitantes.
- Isabel... Não compreendo nada de nada. O que me ensinaram em moral, em religião, está-se a ir abaixo. Oh! Como é que te hei-de explicar? Queria aprender tudo de novo. Ver as coisas como se fossem novas. Assim, talvez pudesse voltar a amá-las. De momento, Isabel, revoltam-me.
- Quem foi que te levou a duvidar assim, Solange? Foi a tua amiga Ghislaine?
- De princípio, sim... Depois, li uma antologia de versos do teu pai, um livro já antigo. Agitou-me... E, acreditas? Quando se falou do divórcio da Fani, achei... que ela tinha razão.
O coração de Isabel batia com força. Procurando as palavras, murmurou:
- Mas repara: a Fani arrependeu-se. E o paizinho sacrificou uma obra magnífica porque a achou falsa e perigosa.
- Sei perfeitamente: todos os aprovaram, os admiram, lá em casa. Eu, tenho vergonha de o confessar, tão absurdo acho um como o outro. Isabel, é horrível não pensar como a família. Ser obrigada a seguir as irmãs quando se sonha com novos caminhos... Dizem: "As quatro Morot-Léandre são tão simpáticas!" Por mim, já não sou simpática à maneira das minhas irmãs. Trabalho, brinco, danço com elas. Durmo e como às mesmas horas. Mas cá dentro há uma revoltada. Compreendes-me, tu, que tens pena de todos os gatos pelados que encontras na rua?
- Oh! Sim, compreendo-te... Mas não sei dar-te paz... Vem comigo ter com alguém que a possui em plenitude. Vamos até casa da Sr.a D. Inês.
- A mestra de classe? A Ghislaine diz que...
- Diz tolices. A Sr.a D. Inês é uma alma. Subiram à sala que cheirava a violeta. Inês
corrigia uma pilha de cadernos. Solange recebeu em pleno rosto a claridade do outro olhar. Aproximou-se...
E a amiga foi-se embora, deixando-a entre as mãos da mulher que compreenderia a sua alma de adolescente, onde se fermentava uma personalidade complexa e que confundia a dúvida espiritual com o desejo de liberdade e prazer.
- "Uma Morot-Léandre!" - pensava Isabel ao voltar para casa. - "Se os outros soubessem! Mas não o sabem. Deve ser difícil esconder tudo cá dentro. Meu Deus, como se sofre quando se é novo!"
NOITE azul. Noite doce. Noite grande. Noite deslumbrante de estrelas. Noite de Agosto de 1939.
O dia foi quente. Os animais e as coisas dormem. Não as pessoas. Não a gente da Châtaigneraie.
Amanhã, o noivado de Florêncio e Isabel. Sim, amanhã.
Os pais pensam:
- "Os tempos são duros. As suas almas terão força para a luta?"
A avòzinha recorda o seu vestido de folhos e o ramo de noivado. Há perto de meio século. E parece ter sido ontem... O perfume das flores está ainda no seu coração.
Nas suas camisas de noite cor-de-rosa as raparigas esperam que o sono venha.
- Estás a dormir, Noelle? - cochichou Catarina, levantando do travesseiro a cabeça morena.
- Não, não sou capaz.
E Noelle espreguiçou-se. A outra senta-se aos pés da cama da irmã, uma cama alta, à moda da região, e balança os chinelos vermelhos:
- Quando é a tua vez? Quando "ele" for doutor?
- Essa é forte. Que sabes tu da minha vida?
- Sou cigana - declarou Catarina com um dedo no ar. - Conheço o presente, o passado e o futuro. Leio nos astros, nas linhas da mão, nas cartas.
Uma linda gargalhada que ela abafa.
- Até leio nos olhos das meninas. Os teus, criança, dizem: "Roland, Roland, Roland".
- Ela até sabe o nome próprio. É formidável. Não digas a ninguém, por favor. Não há necessidade de que os miúdos o fiquem sabendo.
- Adora-lo?
- És tolinha, Cigana. Na minha idade "gosta-se", simplesmente.
- Na idade dela... dir-se-ia que tens quarenta anos.
- E tu, Catarina, tens vontade de casar? Ela sacode os caracóis escuros:
-Não, minha querida. Acima de tudo, a música. O meu coração está cheio e canta. Escuta: esta noite as estrelas dizem o "largo" de Haendel.
A voz quente rompe o silêncio da noite.
- Chiu... Vais acordar as miúdas.
- Se julgas que estão a dormir... A Denise andava a saltar como um cabritinho. E a Solange...
- É tão esquisita a Solange! Que será ela mais tarde? O que é que tu achas? Tu que lês nos olhos das raparigas.
- Um anjo ou um demônio. Há uma batalha dentro dela.
Noelle boceja.
- Parece-me que vou adormecer. Boa noite. Cigana, deixa lá o concerto das estrelas.
- Boa noite, Sr. a Doutora. Sonha com o Roland.
O quarto das petizas. Denise volta e torna a voltar a cabeça loira no travesseiro. Comeu tantos bolos na cozinha: está um bocadinho enjoada. Deus queira que o vestido que vai estrear amanhã não seja muito curto! O João-Lucas vai pôr calças compridas. Celebrar-se-á algum dia o noivado de João-Lucas e Denise?
- "Não tenho esperança nenhuma. Ele está sempre a fazer troça do meu nariz arrebitado. Gostava tanto de ser bonita..."
Solange tem os braços cruzados sob a nuca e os grandes olhos abertos. Pensa. O romance de Isabel-Florêncio acabará amanhã? Ou as almas continuam o seu romance até à morte? O paizinho e a mãezinha, o senhor e a senhora Morlainville, os Bastien, os Sílvio Delorme, a avòzinha, a cozinheira: todos teriam cessado de evoluir? Os livros nada explicam. Os livros dizem tão pouca coisa! Será preciso descobrir tudo por nós próprios? É extenuante, procurar. Isabel também procurou, outrora. Terá conseguido compreender tudo? Encontrado a "paz", como diz a Sr.a D. Inês? E o mundo? Quando a encontrará? Ainda se falará de guerra em Setembro?
Isabel levantou-se. Apoiou os cotovelos na janela. Tantas estrelas, tantas estrelas! São mundos, mundos longínquos. Será lá que estão as almas queridas? Sua mãe... Marieta... O amigo Pedro?... Marieta não poderá beijar a sua menina, amanhã, no dia do seu noivado com o "menino Florêncio".
- "Marieta estás longe? Ainda gostas de mim?"
- "Não chores" - murmura a alma. - "Estou aqui. Amo-te mais ainda. Sou só alma..."
Florêncio saltou pela janela da sala porque o ferrolho da porta faz muito barulho. Penetra na sombra azul. Anda depressa. Quer ver muito céu. A plenos pulmões bebe o ar, que tem um gosto a madressilva. Recorda a madressílva que um dia colheu para uma Liseron criança. Perfume, perfume delicioso! Liseron, pequenina querida! O anel espera sobre o cetim branco do estojo. É uma sátira da cor dos olhos dela. Irá tornar pesada aquela mão tão esguia?
Chega à pradaria. Todo o céu! Enfim! Estende-se, rosto voltado para a Via Láctea, que espalha a sua claridade na noite. Será algum dia como que uma estrela entre outras estrelas? Voar... Mas será preciso deixar a mulher. Tentará prendê-lo? Não, ela sabe amá-lo. A sua sensibilidade fremente soube captar o tom e unir-se às canções e às lágrimas do mundo moderno. Não suplicará: "Fica ao pé de mim". Dirá, olhos nos olhos: "Vai. Segue o apelo".
Os olhos dela nos seus... Os dela são azuis. A noite chegou. Os olhos dela são de uma noite de Verão.
Levantou-se vento, um vento magnífico que embala os campos. Florêncio põe-se de pé. Sabe bem que a guerra os espreita. Será preciso deixar tudo. tão cedo? A mulher que ama? A felicidade? O lar? Cruzando os braços sobre o peito onde pulsa um coração quente de amor por Liseron, aceita, porque é Francês, que a sua felicidade seja batida pelos ventos.
Noite de Junho... Noite de Junho de 1940.
Sentado à beira dum fosso, um soldado medita na sua dor. Quebrados de cansaço, os companheiros dormem ali por terra. Tanto melhor, se dormem. Enquanto dormem não pensam. Mas este, que se mantém rígido e direito enquanto o sono os liberta, quer pensar. Pensar duramente, mas com verdade e clareza.
Pensar em quem, em quê? Na França, certamente. Florêncio ama-a tanto, à sua França! Ah! Sufoca de dor ao vê-la assim esmagada. Lágrimas lentas, difíceis, correm-lhe pelas faces sujas e barbadas. Limpa-as nas costas da mão. Chorar? De nada serve. Oferecer-se ainda mais, ainda melhor.
- "Minha França. Tenho 20 anos. Não sei para onde vamos. Mas juro que consagrarei as minhas forças, a minha juventude, tudo o que sou, ao teu ressurgir. Porque creio em ti".
Longe, numa ambulância, um véu branco marcado com uma cruz vermelha inclina-se sobre um bebê soluçante que alguém apanhou na rua. Um olhar terno contempla-o:
- Pobre França - murmura Isabel, como se a criança que embala fosse a própria França. - Sofres tanto. -Mas nós erguer-te-emos...
Naquela noite de Verão, naquela noite feita para se ser feliz, mas em que troa o rumor seco da artilharia, as suas almas encontram-se. Isabel pensa em Florêncio. Florêncio pensa em Isabel. Ambos perguntam a si próprios:
- "Ainda será deste mundo?"
Mas, acima de tudo, pensam na França.
Berthe Bernage
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