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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


KAFKA À BEIRA-MAR - P.2 / Haruki Murakami
KAFKA À BEIRA-MAR - P.2 / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os olhos de Nakata estreitaram-se até se reduzirem a uma fenda, num nítido esforço para se concentrar, e certificou-se de que tinha os dois, polegares onde os queria. Assim que sentiu que atingira o ponto certo, começou aos poucos a aumentar a intensidade, auscultando a reação de Hoshino. Depois inspirou profundamente, soltou um grito curto e rouco, que mais parecia o grasnido de uma ave de Inverno, e pressionou com toda a força na zona entre a espinha e o músculo. A dor que Hoshino sentiu naquele momento foi terrível, e apoderou-se irracionalmente dos seus sentidos. Foi atingido na cabeça por um lampejo violento e começou a ver tudo branco. Deixou de respirar. Parecia-lhe que alguém lhe dera uma pancada e que tinha sido atirado do alto de uma torre para as profundezas do inferno. Nem força para Millar um grito tinha, de tão brutal que era a dor. Todos os seus pensamentos haviam sido como que fulminados e aniquilados. Era como se o seu corpo tivesse ficado em estilhaços. Nem mesmo a morte poderia ser tão atroz. Tentou abriros olhos mas não conseguiu. Limitou-se a ficar ali deitado, impotente, com a cara encostada ao tatami, sentindo a baba a sair-lhe da boca e as lágrimas a escorrem-lhe pela cara a baixo. Isto deve ter durado uns trinta segundos ou assim.

 

 

 

 

Às lautas recuperou o fôlego e, sempre a cambalear, lá se pôs de pé Debaixo dele o tatami agitava-se como o mar em dias de tempestade.

Fez-lhe doer muito, não foi?

Hoshino abanou a cabeça devagar várias vezes, como se quisesse ter a certeza de que ainda estava vivo.

Doer é dizer pouco. E como se tivesse sido esfolado vivo, enfiado num espeto, moído num almofariz, isto antes de ser esmagado por uma manada de búfalos enfurecidos. Que raio de coisa é que tu me fizeste?

Voltei a pôr as costas direitas. Agora já deve estar tudo no sítio. As costas vão deixar de lhe doer. E vai poder ir à casa de banho sem problemas.

Conforme o velhote dissera, mal a dor abrandou, o jovem começou a sentir as costas menos rígidas, e pôde respirar melhor. E, verdade seja dita, dera-lhe vontade de ir à casa de banho.

De facto, tudo indica que me sinto melhor.

Os problemas estavam todos na espinha.

Mas essa merda doeu a valer - queixou-se Hoshino, com um suspiro de alívio.

Na estação de Tokushima apanharam os dois o comboio expres­so para Takamatsu. Nakata insistiu em ser ele a pagar tudo com o seu dinheiro, tanto a estalagem como o bilhete de comboio, mas Hoshino não deixou.

Desta vez pago eu, da próxima pagas tu. Homens adultos como nós não devem discutir por questões de dinheiro, não te pa­rece?

Nesse caso está bem. Nakata não percebe nada de dinheiros. Por isso, fica tudo nas suas mãos.

Deixa-me que te diga uma coisa. Sinto-me lindamente, graças à massagem shiatsu que me deste. Por isso, o mínimo que posso fazer é pagar a despesa, em jeito de agradecimento. Há muito que não me sentia tão bem. Pareço um homem novo.

Isso é uma bênção. Nakata não compreende lá muito bem o que é isso da massagem shiatsu, mas sabe que as costas são muito importantes.

Chama-lhe como quiseres, massagem shiatsu, pôr os ossos deslocados no seu lugar ou tratamento quiropático, por mim tanto faz. Mas uma coisa é certa: tu és realmente bom nisso. Podias ganhar bom dinheiro. Podias fazer uma pipa de massa só a fazeres isso a lodos os camionistas que eu conheço.

Bastou Nakata olhar para as suas costas para ver logo que tinha os ossos todos fora do sítio. Quando Nakata vê coisas que estejam desalinhadas, gosta de as endireitar. Durante muitos anos fiz móveis com as minhas mãos e sempre que alguma coisa estava retorcida (ratava de a pôr direita. Nakata é assim. Mas ossos, foi a primeira vez que endireitou.

Palpita-me que deves ser um talento natural - afirmou Hoshino, impressionado.

Antigamente Nakata costumava ser capaz de falar com gatos.     

Estás a gozar?

Mas há coisa de pouco tempo isso deixou de ser possível. Deve ter sido por causa de Johnnie Walker.

Estou a ver.

Nakata é burro, não entende dessas coisas complicadas. H têm acontecido tantas coisas difíceis de explicar nos últimos tempos. Por exemplo, os peixes e as sanguessugas que caíram do céu aos trambolhões.

Palavra de honra?

Mas Nakata fica contente por ter posto as suas costas boas.

Também eu, não podia estar mais contente.

Isso é bom.

Agora que falas na história das sanguessugas...

Sim, Nakata lembra-se muito bem disso.

Tiveste alguma coisa que ver com isso? Nakata, coisa rara, ficou a matutar naquilo.

Para dizer a verdade, Nakata não sabe. Aquilo que Nakata libe foi que abriu o guarda-chuva e começaram a chover sanguessugas…

Sim Quem diria...

O pior é matar pessoas - disse Nakata e acenou veementemente com a cabeça.

Toda a razão. Matar pessoas é uma coisa má, disso não haja

dúvida.

Isso mesmo - tornou Nakata, voltando a acenar vigorosamente com a cabeça.

Chegados à estação de Takamatsu saíram os dois, enfiaram-se num restaurante que servia massas e almoçaram udon. Através da janela, que dava para as docas, via-se uma série de gigantescas gruas, enxameadas de gaivotas.

Nakata saboreava religiosamente cada garfada que levava à boca. - Esta massa está muito paladosa afirmou ele.

Ainda bem que gostas - replicou Hoshino. - Isso quer dizer que este sítio está aprovado?

Sim. Aqui está-se bem.

Então quer dizer que acertámos com o sítio. E agora, o que se segue?

Nakata tem de achar a Pedra de Entrada.

Pedra de Entrada?

Isso mesmo.

Hmm - murmurou Hoshino. - Palpita-me que vem aí mais uma daquelas histórias compridas.

Nakata inclinou a tigela e apanhou com a colher o resto da sopa.

Sim, é uma longa história. Mas é tão longa que o próprio Nakata tem dificuldade em seguir o fio à meada. Mas pode ser que compreenda tudo quando lá chegar.

Regra geral, só atinas com as coisas quando chegas aos sítios, não é?

Assim é.

E até lá chegarmos não há maneira de entender o que se passa.

Sim, Até lá chegar, Nakata não tem maneira de entender.

Para mim é quanto basta. Não gosto de histórias que nunca mais acabam. Em todo o caso, temos mesmo de encontrar essa coisa da Pedra de Entrada.

Pois é.

E onde é que isso fica?

Nakata não tem ideia.

Mas quem me mandou a mim perguntar?

 

Deixo-me dormir durante muito tempo, acordo, volto a adormecer, acordo, e isto repetidas vezes. Não quero por nada deste mundo perder o momento em que ela vai aparecer. Mas é precisamente liso que acontece. Quando olho, já se encontra sentada à escrivani­nha, como na noite anterior. Vejo as horas no relógio da mesinha-de-cabeceira. Pouco passa das três. As cortinas, que corri de certeza absoluta antes de me deitar, estão todas abertas. A única diferença é que hoje não se vê a Lua. O céu mostra-se carregado de nuvens, e .iic é possível que esteja a chover. O quarto está muito mais escuro do que na noite passada. Apenas as lâmpadas no jardim deixam entrever uma luz ténue que se esgueira por entre as árvores. Os meus olhos demoram um certo tempo a habituarem-se à escuridão.

A rapariga está sentada à escrivaninha, com a cabeça nas mãos, a olhar fixamente para o quadro. Tem o mesmo vestido da véspera. foi mais que me esforce e faça por abrir mais os olhos, desta vez a luz não chega para distinguir as feições dela. Contudo, por estranho que pareça, o corpo e a silhueta recortam-se perfeitamente, flutuando na penumbra. A rapariga é a Saeki-san quando era nova - disso não lenho a mínima dúvida.

Ela parece mergulhada nos seus pensamentos. Ou no meio de um longo e profundo sonho. Não, ela própria é um longo e profundo Minho. Seja como for, esforço-me por respirar de mansinho para não perturbar a harmonia (la cena que se oferece diante dos meus olhos. Não me mexo um milímetro. De voz em quanto, deito uma olhadela ao relógio para ver as horas. O tempo passa devagar mas inexo­ravelmente.

De repente, o meu coração começa a pulsar com mais força. Um som seco, como alguém a bater à porta. Na calada da noite, o som ecoa no quarto e o sobressalto que me provoca quase me leva a saltar da cama.

A silhueta negra da rapariga move-se ligeiramente. Envolta na escuridão, levanta a cabeça e apura o ouvido. Ouviu o meu coração a bater. Inclina a cabeça um nadinha, como fazem os animais selvagens no meio da floresta, ao escutarem inesperadamente um som que não conhecem. Depois volta o rosto e olha para a cama. Mas continua sem me ver, isso é evidente para mim. Não faço parte dos sonhos dela. Ela e eu movimentamo-nos em dois mundos separados, divididos por uma fronteira invisível.

Da mesma forma que começou a bater desalmadamente, o meu coração regressa ao compasso normal. A minha respiração torna-se mais lenta e profunda. Voltei a ficar invisível, e a Saeki-san deixou de me prestar atenção. O olhar dela recai em Kafka à Beira-Mar. Como antes, tem a cabeça nas mãos, e o seu coração é uma vez mais atraído pelo rapaz naquela paisagem estival.

E assim se passam vinte minutos, com ela sempre naquela posição, até se desvanecer. Tal como aconteceu na noite passada, levanta-se, descalça, desliza em silêncio na direcção da porta e desaparece, sem que tivesse feito menção de a abrir. Deixo passar algum tempo até me decidir a pôr de pé. Sem acender a luz, vou até à cadeira que ela ocupou e fico ali sentado no escuro. Tenho as mãos em cima da secretária e absorvo os resquícios da sua aura. Fecho os olhos e tento penetrar no seu trémulo coração, deixando-o embeber--se do meu. Sem nunca abrir os olhos.

Descubro que há uma coisa que eu e a rapariga temos em comum: estamos ambos apaixonados por alguém que já não é deste mundo.

Não tardo a cair num sono inquieto. O meu corpo pede descanso, mas o meu espírito luta contra isso. Oscilo como um pêndulo, para trás e para diante, entre uma coisa e outra. Mais tarde, porém - nem sequer tenho a certeza se ainda é de noite -, os pássaros começam a fazer uma chinfrineira desgraçada no jardim e acordam--me de uma vez por todas.

Enfio as calças de ganga e uma camisa de manga comprida por uma T-shirt e vou lá para fora. Passam cinco minutos das cinco da manhã e as ruas estão vazias. Abandono a parte velha da cidade e deixo para trás a floresta de pinheiros que forma como que uma barreira contra o vento, ultrapasso o molhe e alcanço o mar. Uma leve brisa toca-me no rosto. Uma camada de nuvens cinzentas cobre o céu, mas não está com aspeto de chuva. É uma daquelas manhãs calmas e silenciosas. Como uma barreira à prova de som, as nuvens absorvem todos os sons da terra.

Sigo por um carreiro que corre paralelo ao mar, imaginando o rapaz do quadro a percorrer o mesmo caminho, de cadeira de lona na mão, até se sentar à beira-mar. Agora exatamente onde, isso é que eu não sei dizer. O quadro só mostra a praia, o horizonte, o céu c as nuvens. E uma ilha. Mas ilhas há muitas, e eu não me consigo lembrar exatamente de como era a do quadro. Sento-me na areia, de frente para o mar e faço uma espécie de enquadramento cinematográfico com as mãos. Imagino o rapaz aqui sentado. No céu sem vento voa sem destino uma solitária gaivota branca. Pequenas ondas lutem na areia a um ritmo regular, deixando na areia uma curva suave c pequeninas bolhas.

De repente tomo consciência de que tenho ciúmes do rapaz do quadro.

«Tens ciúmes do rapaz do quadro», sussurra o rapaz chamado Corvo ao meu ouvido.

Com que então, tens ciúmes daquele rapaz de vinte anos? Confundido com outra pessoa qualquer e desnecessariamente morto aos vinte anos - isto o quê, há coisa de trinta anos? Os ciúmes são putos que até mete dó. É a primeira vez na vida que experimentas

O que é o ciúme. Agora já sabes qual é a sensação. Assemelha-se a uni fogo ardente que te consome por dentro.

Nunca na vida tiveste inveja de mais ninguém, nem desejaste alguma vez ser outra pessoa - mas agora deu-te forte. Mais do que tudo, gostarias de trocar com aquele rapaz. Mesmo sabendo que aos vinte anos ele estava condenado a ficar com o crânio esmagado por un tubo de metal, ainda assim gostarias de te meter na pele dele.

Estavas disposto a isso, só para saberes o que significava amar incondicionalmente a Saeki-san, nem que fosse só durante cinco anos.

E para poderes ser amado por ela do fundo do coração. Para poderes tê-la nos teus braços sempre que desejasses, para passares a vida a fazer amor com ela. Para deixares os teus dedos explorarem todos os recantos do corpo dela, e permitir que ela te fizesse o mesmo a ti. E, depois de morto, saberes que a vossa história de amor ficaria para sempre gravada no coração dela. E que não passará uma só noite sem que ela se lembre de ti.

   Não há dúvida, meu rapaz, estás no meio de um dilema. Apaixonaste-te por uma rapariga que já não existe e tens ciúmes de um rapaz que desapareceu para sempre. O que não impede que a emoção que sentes não seja mais real, e bem mais dolorosa, do que qualquer outra coisa que tenhas alguma vez experimentado na realidade. E não há maneira de fugir a isso. Andas perdido no labirinto de tempo. E o problema é que não tens o mínimo desejo de sair de lá. Verdade ou mentira?

Oshima vem um bocadinho mais tarde do que ontem. Antes de ele chegar aspiro o rés-do-chão e o primeiro andar, limpo o pó a todas as mesas e cadeiras, abro as janelas, lavo a casa de banho, despejo os caixotes do lixo, deito água nos vasos com plantas. Depois acendo as luzes todas e ligo os computadores de catálogos em linha. Só falta abrir a porta.

Oshima verifica o meu trabalho e faz um aceno de cabeça para mostrar que está tudo bem.

   Sim senhor, aprendes depressa, tu. Estou a ver que não te escapa nada.

Ponho água a ferver e preparo-lhe uma chávena de café. Tal como ontem, tomo uma chávena de Earl Grey. Lá fora começou a cair uma chuva forte. Dá para ouvir os trovões ao longe. Ainda nem sequer é meio-dia, mas está tão escuro que parece quase noite.

Oshima, tenho um pedido a fazer-te.

   Qual é?

Consegues arranjar-me a partitura de Kafka à Beira-Mar?

Oshima pensa um bocadinho.

Desde que esteja disponível num website, acho que se pode descarregar, pagando, se necessário. Vou informar-me e depois logo te digo alguma coisa.

Obrigado.

Oshima senta-se ao canto do balcão, deita o quadradinho de nada de açúcar na chávena e põe-se a mexer devagarinho o café com a colher.

Com que então gostas da cantiga?

Muito.

Também gosto imenso. Tem uma música lindíssima, muito fora do vulgar. É simples e intensa, ao mesmo tempo. Diz muito acerca da pessoa que a compôs.

Mas a letra é francamente simbólica - insinuo eu.

Desde tempos imemoriais que não se pode separar a poesia do simbolismo. Andam sempre juntos, como o pirata e a sua garrafa de rum.

Acreditas que a senhora Saeki sabia o significado das pala­vrinhas todas?

Oshima levanta a cabeça, atento ao barulho do trovão, como se quisesse calcular a que distância a trovoada estava. Vira-se para mim e abana a cabeça.

Não forçosamente. Simbolismo e significado são duas coisas diferentes. Penso que ela encontrou as palavras certas subvertendo processos que se prendem com o significado e a lógica. Apanhou as palavras num sonho, como quem deita delicadamente a mão às asas de uma borboleta que anda por ali a esvoaçar. Os verdadeiros artistas são aqueles que se conseguem furtar à tentação da verborreia.

Estás a querer dizer que, se calhar, a senhora Saeki encon­trou essas palavras num outro espaço - em sonhos, por exemplo?

É o que acontece quase sempre na boa poesia. Se as pala­vras não logram criar uma espécie de túnel profético que lhes permita chegar até ao leitor, o conjunto deixa de funcionar como poema.

   Mas há muito boa poesia que vive disso.

Exato. É uma espécie de estratagema, mas desde que se saiba isso de antemão, não é difícil. Agora, não deixa de ser triste que se tenha de recorrer à linguagem simbólica para produzir um efeito poético.

Sinto que existe algo de urgente e misterioso em Kafka à Hfii.i Mar.

também eu - afirma Oshima. - As palavras não estão ali à superfície, apenas para enfeitar. como se o texto e a música fossem Inseparáveis na minha mente. Não consigo olhar para as letras como se tratasse de pura poesia e determinar até que ponto são impres­sionantes em si mesmas. - Neste momento, inclina ligeiramente a cabeça. - De qualquer forma, ela foi abençoada com um talento natural, isso é indiscutível, e tinha um belo ouvido para a música. Sem esquecer que deu mostras de grande sentido prático e soube agarrar a oportunidade quando esta apareceu. Se aquele trágico incidente não a tivesse posto fora da circulação, tenho a certeza de que ela teria desenvolvido ainda mais o seu talento. Foi uma pena, por todas as razões e mais alguma...

Pressinto no poema algo de urgente e misterioso. No entanto, palavras e melodia estão tão ligadas na minha cabeça que não consigo olhar para a composição enquanto poesia pura e decidir se são ou não convincentes em si mesmas

Nesse caso, o que é feito de todo esse talento? Oshima olha-me nos olhos.

Estás a querer saber o que foi feito do talento da senhora Saeki depois da morte do namorado?

Aceno afirmativamente com a cabeça.

Se o talento é uma espécie de energia natural, tem forçosamente de encontrar um escape, ou não?

Não sei responder a isso. Ninguém sabe até onde é que o talento pode chegar. Às vezes, pura e simplesmente desaparece, apa­ga-se. Outras vezes afunda-se e entranha-se como uma corrente subterrânea nas profundezas da terra, correndo sabe-se lá para onde.

Pode ser que a senhora Saeki tenha orientado o seu talento para outros campos, para além da música - aventuro-me a dizer.

Outros campos? - Visivelmente interessado, Oshima une as sobrancelhas, formando com elas uma linha intensa. Onde é que queres chegar?

Faltam-me as palavras.

Não sei bem... Tenho a sensação de que foi isso que aconteceu. Talvez tenha encontrado saída em qualquer coisa de intangível.

Intangível?

Uma coisa que as outras pessoas não consigam ver, algo que uma pessoa faz por si só. Que é como quem diz, um processo inte­rior.

Oshima lira o cabelo que lhe cai sobre a testa, as madeixas a aparei erem entre os dedos esguios.

É uma ideia interessante. Tanto quanto sabemos, é provável que a senhora Saeki tenha dirigido os seus talentos quando aqui chegou, ainda que sem dar nas vistas, como disseste, para levar por diante algo de intangível. Mas não te podes esquecer de que ela esteve desaparecida durante vinte e cinco anos. Por isso, se estás mesmo in-leressado em saber, vais ter de lhe perguntar.

Hesito um bocadinho, antes de ganhar coragem para avançar.

Posso fazer uma pergunta muito estúpida?

Mesmo muito estúpida? Sinto-me corar.

Perfeitamente estapafúrdia.

Por mim, tudo bem. Não tenho nada contra as perguntas estúpidas e estapafúrdias.

Nem acredito que esteja a perguntar isto a alguém. Oshima está à espera de que eu avance.

É possível que a senhora Saeki... seja minha mãe? Oshima encosta-se ao balcão, enquanto tenta ganhar   tempo

para encontrar as palavras certas. Só se ouve o tiquetaque do relógio de parede. Por fim, Oshima decide-se.

Aquilo que me estás a querer dizer é que a senhora Saeki, quando tinha vinte anos, terá deixado Takamatsu numa situação desesperada e estava a viver sozinha algures quando conheceu o teu pai, Koichi Tamura, com quem se casou. Foram abençoados com o leu nascimento, mas, passados quatro anos, aconteceu qualquer coisa que a levou a fugir dali, deixando-te ficar para trás. Depois existe um misterioso vazio temporal, até que ela reaparece em Shikoku. Será que percebi bem?

Sim.

Bom, impossível não é. Isto para dizer que, até aqui, não há provas que contrariem a tua hipótese. Vendo bem, a vida dela é um perfeito mistério. Diz-se que terá vivido em Tóquio. Ainda por cima, tem a mesma idade do teu pai. Uma coisa é certa, quando aqui chegou vinha sozinha. Que idade é que dizes que a tua irmã tem?

Vinte e um.

É a minha idade - diz ele. - Eu não posso ser a tua irmã, disso não há a menor dúvida. Tenho pais e irmão, são os lais elos de sangue. Uma família chega e sobra. Oshima cruza os braços e fica a olhar de frente para mim. Agora sou eu que lenho uma pergunta para ti. Alguma vez olhaste, com olhos de ver, para a tua certidão de nascimento? Deve lá estar o nome e a idade da tua mãe.

Claro que já verifiquei.

E o que é que diz?

Não aparece nenhum nome - respondo. Ele parece ficar surpreendido.

Nenhum nome? Isso não pode ser!

Não pode ser, mas é. Fora de gozo. Não me perguntes porquê. De acordo com a minha certidão de nascimento, não tenho mãe. Nem irmã mais velha. Só lá aparece escrito o nome do meu pai e o meu. Legalmente, sou um bastardo. Um filho ilegítimo.

Mas em tempos chegaste a conhecer a tua mãe e a tua irmã.

Concordo com a cabeça.

Até aos meus quatro anos, vivemos todos juntos na mesma casa, em família. Lembro-me perfeitamente. As duas saíram de casa pouco depois de eu ter feito quatro anos. Saco da carteira e mostro a Oshima a fotografia em que eu e a minha irmã estamos a brincar à beira-mar. Ele fica a olhar para ela durante um bocado, esboça um sorriso e depois devolve-ma.

Kafka à beira-mar - diz.

Faço que sim com a cabeça e volto a guardar a fotografia. Lá fora o vento rodopia, arremessando a chuva contra as vidraças. As luzes de cima projetavam no chão as nossas sombras, a minha e a de Oshima, criando a ilusão de estarmos a manter uma conversa sinis­tra num mundo às avessas.

Não te recordas das feições da tua mãe? - pergunta Oshima. -Vendo bem, viveste com ela até aos quatro anos, não me digas que não te lembras nem um bocadinho dela.

Digo que não com a cabeça.

Não me lembro de nada. Não sei porquê, mas nas minhas recordações a face dela não passa de uma zona negra, pintada por cima, vazia.

Oshima fica a matutar naquilo durante um bocado.

Explica-me lá melhor as razões que te levam a pensar que a senhora Saeki pode ser a tua mãe.

Ficamos por aqui - digo eu. - Vamos esquecer isso. Estou a dar demasiada importância ao assunto.

Por mim tudo bem, desabafa, diz o que te vai na alma. -replica Oshima. - E depois logo decidimos os dois se estás ou não a fazer uma tempestade num copo de água.

A sombra de Oshima move-se ao menor dos seus gestos.

0 movimento da sua sombra adquire, porém, um contorno quase des­mesurado.

Eu e a senhora Saeki partilhamos um número espantoso de coincidências - digo eu. - São tudo coisas que encaixam umas nas outras, como peças de um quebra-cabeças. Apercebi-me disto ao ouvir pela primeira vez Kafka à Beira-Mar. A primeira coisa é o facto de ter vindo parar a esta biblioteca por obra e graça do destino. Direitinho de Nakano até Takamatsu. Não deixa de ser muito estranho, quando se pensa nisso.

À boa maneira de uma tragédia grega - atalha Oshima.

Mais - acrescento eu -, provavelmente estou apaixonado por ela.

Pela Saeki-san?

Se calhar.

Se calhar? - repete Oshima, franzindo o sobrolho. - Estás a querer dizer que é, se calhar, pela Saeki-san que estás apaixonado? e que, se calhar, estás apaixonado por ela?

Volto a corar.

A verdade é que não sei explicar bem - replico eu. - E com­plicado e ainda há muita coisa com que eu próprio não consigo atinar.

Mas, se calhar, estás apaixonado e, se calhar, pela Saeki-san?

É isso - respondo. - Muito.

Não só se calhar, como muito. Aceno que sim com a cabeça.

Apesar de existir a possibilidade de ela ser tua mãe? Outro dos meus acenos do costume.

Para um rapazinho de quinze anos que ainda nem sequer la/ a barba, carregas um fardo muito grande. - Oshima bebe um gole de café e pousa cuidadosamente a chávena no pires. - Não quero com isto dizer que estejas errado. Apenas me parece que tudo tem o seu ponto crítico.

Fico calado.

Oshirna poe a mão na testa e perde-se nos seus pensamentos. Cruza os dedos magros à frente do peito.

Vou tentar arranjar a partitura o mais depressa possível. Por­que não vais descansar para o teu quarto? Eu encarrego-me do que falta pôr em ordem aqui.

A hora do almoço tomo o lugar de Oshima no balcão de aten­dimento. Há menos visitantes do que é costume, provavelmente por causa da chuva forte que se faz sentir. Quando ele regressa da pausa para almoço, entrega-me um grande sobrescrito com a impressão da partitura de Kafka à Beira-Mar tirada do computador.

Dá jeito, este mundo prático em que vivemos - diz ele.

Obrigado.

Não te importas de levar uma chávena de café lá a cima? Sem açúcar, sem natas. Fazes um café realmente bom.

Preparo uma chávena do café acabado de fazer e levo-o num tabuleiro ao primeiro andar. Simples, sem açúcar, sem natas. Como sempre, a porta do escritório da Sr.a Saeki está aberta e ela sentada à secretária, a escrever. Quando pouso a chávena, ela levanta a cabeça e sorri, depois coloca a tampa na caneta de tinta permanente e pousa--a em cima do papel.

Então, já estás mais ambientado?

Sim, aos poucos começo a ficar - respondo.

Tens tempo, agora?

Tenho, claro que sim - digo.

Não te queres sentar? - A Sr.a Saeki aponta para a cadeira de madeira ao lado da secretária. - Vamos conversar um bocadi­nho.

Começa novamente a trovejar. Os relâmpagos ainda estão longe, mas a trovoada parece aproximar-se. Faço como ela manda e sento--me na cadeira.

Que idade tens? Dezasseis?

Quinze. Acabados de fazer - respondo eu.

E fugiste de casa, não foi?

Sim, fugi.

Houve alguma razão de peso que te tenha levado a isso?

Abano a cabeça. O que é que havia de responder?

A Sr.ª Saeki levanta a chávena e bebe o café aos golinhos enquanto a minha resposta não chega.

Se continuasse lá em casa, pressinto que os danos seriam irreparáveis - digo eu.

Danos? - pergunta a Sr.a Saeki, semicerrando os olhos.

Sim - confirmo.

Depois de uma pausa, ela diz:

É estranho ouvir um rapaz da tua idade falar em danos e confesso que isso me deixa intrigada. O que queres dizer exatamente com danos?

Procuro as palavras certas. Primeiro que tudo, olho à minha volta para ver se anda por ali o rapaz chamado Corvo, mas não o vejo em parte nenhuma. Posso dar-me ao luxo de ser eu a escolhê-las, e isso é uma coisa que leva o seu tempo. A Sr.a Saeki, contudo, espera pacientemente. Lá fora viu-se o clarão de um relâmpago, e algum tempo depois o trovão ressoou ao longe.

Tornar-me naquilo que não quero ser.

A Sr.a Saeki olha para mim com vivo interesse.

Desde que o mundo existe, toda a gente acaba por ficar a sentir na pele eventuais danos e por conhecer transformações. É uma i oisa que acontece sempre, mais cedo ou mais tarde.

Mas no caso de isso acontecer, é sempre preciso ter um lugar .Um que se possa chamar seu e aonde se possa regressar.

Um lugar aonde se possa regressar?

Um lugar aonde se tenha vontade de regressar. A Sr.a Saeki olha-me bem nos olhos.

Fico todo vermelho, mas lá arranjo coragem e devolvo-lhe o olhar. Traz um vestido azul-marinho de Houve alguma razão de peso que te tenha levado a isso? Abano a cabeça. O que é que havia de responder?

A Sr.a Saeki levanta a chávena e bebe o café aos golinhos enquanto a minha resposta não chega.

manga curta. Deve ter um guarda-roupa cheio de vestidos em diferentes tons de azul. Para além de um fio de prata fininho ao pescoço e de um pequeníssimo relógio de pulso com uma correia de couro preta, não usa mais nenhum acessório. Procuro nela a rapariga de quinze anos e não tenho dificuldade em encontrá-la. Está escondida, adormecida, como uma mugem em três dimensões, nas profundezas do seu coração. Olhando Com atenção, porém, torna-se visível. O meu peito começa a bater outra vez violentamente, como se alguém estivesse a espetar um prego com força nas suas paredes. - Para um rapaz de quinze anos, exprimes-te de uma forma muito adulta.

Fico sem saber que resposta dar. Por isso, calo-me.

Quando eu tinha quinze anos - refere a Sr.a Saeki com um sorriso -, só queria desaparecer daqui e viajar para um outro mundo. Um lugar tão distante que mais ninguém lá pudesse chegar, um lugar onde não se desse pela passagem do tempo.

Mas neste mundo esse lugar não existe.

Exactamente. E essa a razão por que vivo aqui, neste mundo onde as pessoas passam a vida a sofrer, onde os corações se revelam inconstantes, onde o tempo passa inexoravelmente. - A seguir fica em silêncio durante um bocado, como que para acentuar a passagem do tempo. - Mas, sabes - continua ela -, quando eu tinha quinze anos pensava que deveria existir algures no mundo um lugar assim. Estava certa de que acabaria por descobrir a entrada que me per­mitiria aceder a esse outro mundo.

Sentia-se sozinha? Quer dizer, quando tinha quinze anos?

Num certo sentido, talvez. Não estava sozinha, mas sentia--me terrivelmente só. Porque sabia que nunca mais voltaria a ser assim tão feliz. Tinha a perfeita consciência disso. Por isso é que sentia o desejo único de viajar para um lugar onde o tempo não existisse e tudo ficasse eternamente igual.

Pela parte que me toca, só quero crescer depressa.

A Sr.a Saeki dá um passo atrás para conseguir ler melhor na minha expressão.

Tenho a certeza de que és muito mais forte e mais independente do que eu. Na tua idade, tinha a alma cheia de ilusões que me ajudavam a fugir da realidade, mas tu não. Tu orgulhas-te de ser quem és e fazes frente ao mundo. Essa é a grande diferença.

Forte e independente? Não sou nem uma coisa nem outra. Vou onde a realidade me leva, quer me agrade quer não, mais nada.

Sabes que me fazes lembrar um rapaz de quinze anos que conheci há muitos anos?

Era parecido comigo? - pergunto.

Tu és mais alto e mais robusto, mas, sim, encontro algumas parecenças. Ele não gostava de falar com os outros rapazes da idade dele - dizia que estavam em comprimentos de onda diferentes -, por isso passava a vida enfiado no quarto, a ler ou a ouvir música. Quando o assunto da conversa era difícil, também ficava com essas rugas na testa. E tu, lai como elo, lambem és muito amigo de ler.

Aceno afirmativamente com a cabeça. A Sr.a Saeki vê as horas no relógio.

         Obrigada pelo café.

Interpretando aquilo como a minha deixa para sair, levanto-me e dirijo-me para a porta. A Sr.a Saeki pega na caneta de tinta per­manente, desenrosca a tampa com gestos calmos e precisos e continua a escrever. Lá fora, o clarão de um relâmpago envolve por escassos segundos o escritório numa estranha luminosidade. Pouco depois ouve-se o som do trovão. A tempestade aproxima-se.

Kafka? - diz a Sr.a Saeki. Fico parado à porta e viro-me.

Acabei de me lembrar de uma coisa. Em tempos, escrevi um livro sobre a trovoada.

Um livro sobre a trovoada?

Andei pelo Japão inteiro a entrevistar pessoas que haviam sobrevivido às descargas de relâmpagos. Foi um trabalho que demorou vários anos. A maior parte das entrevistas revelou-se bastante interessante. O livro foi publicado por uma pequena editora, mas não vendeu quase nada, pois não apresentava grandes conclusões, e um livro que não chega a nenhuma conclusão é coisa que ninguém quer ler. Aos meus olhos, porém, o facto de dali não sair nenhuma confusão era perfeitamente natural.

Há uma coisa que não para de martelar numa das gavetas da minha cabeça. Tento lembrar-me do que poderá ser, essa coisa muito importante, mas a verdade é que não me ocorre. Por esta altura já a Sr.ª Saeki retomou a escrita e eu não tenho outro remédio senão regressar ao meu quarto.

Durante cerca de uma hora a trovoada continua a fazer-se sentir. A violência dos trovões faz-me recear que as janelas da biblioteca possam ficar reduzidas a estilhaços. De cada vez que o clarão de um relâmpago rasga o céu, a janela de vitral no patamar projeta, na parede branca à sua frente, uma imagem parecida com um velho miasma. Quando são duas da tarde, contudo, a tempestade afasta-se e uma luz amarelada começa a aparecer por entre as nuvens, como se os elementos se tivessem finalmente reconciliado. À luz suave do fim de larde, continua a pingar.

Com o aproximar da noite, começo a preparar as coisas para encerrar a biblioteca. A Sr.a Saeki despede-se de mim e de Oshima e vai para casa. Oiço o motor do Golf e imagino-a sentada ao volante, a rodar a chave na ignição. Digo a Oshima que não se preocupe, que trato do que falta. A assobiar uma ária, ele lava as mãos e a cara na casa de banho, antes de se ir embora. Depois liga o seu Mazda Miata e arranca, o som do motor a desaparecer na distância. Agora, tenho a biblioteca só para mim. Nunca o silêncio foi tão profundo.

Vou para o meu quarto e estudo a partitura de Kafka à Beira--Mar. Tal como suspeitava, a maior parte dos acordes são simples. O refrão, contudo, tem um ou outro acorde mais complicado. Expe­rimento tocá-los no piano vertical da sala de leitura. O dedilhado é extremamente difícil, por isso pratico vezes sem conta, tentando colocar bem as mãos a fim de captar os acordes e, não sei como, acabo por conseguir tocá-los. Será um erro de impressão da partitura? O piano estará desafinado? Pela cabeça passam-me todas as suposições. Mas quanto mais escuto aqueles dois acordes, a forma como soam, um a seguir ao outro, mais me convenço de que é neles que assenta toda a canção. Estes dois acordes são o que impede Kafka à Beira-Mar de se transformar numa dessas ligeiras canções pop que se ouvem para aí, conferindo-lhe peso e significado. Mas interrogo-me. Onde diabo é que a Sae-kisan os terá ido desencantar?

Regresso ao meu quarto, aqueço água na chaleira elétrica e faço chá. Pego nos velhos discos que encontrámos na arrecadação e ponho-os a tocar no gira-discos, um a seguir ao outro. Blonde on Blonde, de Bob Dy Ian, o Álbum Branco, dos Beatles, Dock ofthe Bay por Otis Redding, Getz/'Gilberto, de Stan Getz - tudo álbuns que foram êxito nos anos sessenta. Neste mesmo quarto, o rapaz - com a Sae-kisan ao lado dele - deve ter feito os mesmíssimos gestos, ao pôr os discos a tocar, baixando a agulha, ficando ali a escutar a música que sai dos altifalantes. Deixo-me arrebatar pela música e sinto-me transportado, dentro daquele quarto, para um outro tempo, para um mundo que existiu ainda eu não era nascido. À medida que oiço a música, rebobino a conversa dessa tarde, esforçando-me por captar as palavrinhas todas.

«Quando eu tinha quinze anos pensava que deveria existir algures no mundo um lugar assim. Tinha a certeza de que acabaria por descobrir a entrada que me permitiria aceder ao outro mundo.»

Ainda tenho a voz dela nos ouvidos. Mas dentro da minha cabeça há qualquer outra coisa que bate à porta de uma forma insistente.

Uma entrada?

Levanto a agulha do álbum de Stan Getz, tiro o single de Kafka à Beira Mar para fora, e coloco-o no prato e baixo a agulha. E ela começa a cantar.

Os dedos da rapariga à beira de se afogar

Procuram a pedra da entrada, e vao mais longe.

Ela levanta a bainha do seu vestido azul-celeste,

E segue com o olhar Kafka à beira-mar.

Provavelmente a rapariga que aparece neste quarto terá descoberto a Pedra de Entrada. Vive num outro mundo, onde continuou sempre a ter quinze anos, e quando a noite chega visita este quarto, no seu vestido azul-claro, para olhar para Kafka à Beira-Mar.

De súbito, saído do nada, lembro-me de ouvir o meu pai contar que uma vez tinha sido atingido por um raio. Não foi por ele que eu soube da história – li numa revista. Foi no tempo em que ele era estudante de belas-artes e trabalhava em tempo parcial como caddy num campo de golfe. Um belo dia seguia atrás do jogador quando o céu mudou subitamente de cor e uma tempestade das antigas se abateu sobre eles. Procuraram ambos refúgio debaixo de uma árvore no exato momento em que ela era atingida por um raio. A árvore, enorme, ficou dividida em duas. O jogador de golfe morreu, mas o meu pai, movido por um pressentimento, desatou a correr e saiui debaixo da árvore mesmo a tempo. Ficou com ligeiras queimaduras e com o cabelo chamuscado, e o choque causado pelo relâmpago fê-lo bater com a cabeça numa pedra e perder a consciência. Ficou com uma pequena cicatriz na testa e mais nada. Era disso que me queria lembrar naquela tarde quando ouvi o trovão, ali pi nado à entrada da porta do escritório da Sr.a Saeki. Foi depois de ter recuperado dos ferimentos que o meu pai começou a pensar seriamente na sua carreira de escultor.

Se calhar, quando andava a entrevistar pessoas para o seu livro, a Sr.ª Saeki chegou à fala com o meu pai. Podia perfeitamente ter acontecido. Não deve haver assim tanta gente atingida por um raio que tenha ficado cá para contar, pois não?

Respiro lentamente e espero que a madrugada chegue. O céu começa a limpar e o brilho da Lua reflete-se sobre as árvores do jardim. As coincidências são mais do que muitas. Tudo parece

estar a precipitar-se, convergindo para um certo ponto.

 

Começava já a ficar tarde e eles ainda tinham de encontrar um sítio para passar a noite. Hoshino dirigiu-se ao posto de atendimento turístico que havia na estação de Takamatsu e a partir de lá reservou alojamento numa ryokan Situava-se muito perto da estação, o que oi.1 o ideal. Tirando isso, era um sítio perfeitamente igual aos outros, mas nem o jovem nem Nakata fizeram caso disso. Desde que tivesse um liiton onde dormir, para eles servia às mil maravilhas. Tal como interiormente, o pequeno-almoço estava incluído no preço, mas o jantar ficava por conta deles. Para Nakata, que a qualquer altura podia cair redondo a dormir, não podia ser melhor.

Assim que se apanharam no quarto, Nakata mandou Hoshino deitar-se de barriga para baixo no futon, sentou-se em cima dele e Ir à pressão com os polegares sobre a coluna, só ficando descansado depois de apurar o estado de cada articulação e de cada músculo. Desta vez, empregou muito menos força, limitando-se a percorrer a coluna vertebral de alto a baixo, a fim de registar o grau de tensão dos músculos.

Há algum problema? - quis saber Hoshino, ansioso.

Não, tudo em ordem. Nakata não encontra nada de errado. A sua coluna vertebral parece em bom estado.

Não sabes o alívio que é - retorquiu Hoshino. - A coisa que menos me estava a apetecer era ter de me submeter a outra sessão de tortura.

Pois é, desculpe. Mas o senhor disse que aguentava bem a dor, por isso Nakata empregou quanta força tinha.

É certo, fui eu que disse que podia ser a doer. Mas a verdade, avozinho, é que limites. Às vezes, mandam as regras que usemos o senso comum. Não que eu tenha qualquer razão de queixa, uma vez que fiquei com as costas em bom estado. Mas, Deus do céu, nunca na vida senti tamanha dor. Uma coisa brutal. Parecia que aquilo estava dar cabo de mim. Como se tivesse morrido e voltado à vida, ou coisa que o valha.

Uma vez Nakata esteve três semanas morto.

Não brinques comigo! - exclamou Hoshino. Sempre de barriga para baixo, bebeu um gole de chá e mastigou umas bolachinhas de arroz que tinha comprado. - Com que então, foste dado como morto.

Sim, senhor.

Onde é que estiveste esse tempo todo?

Nakata não se lembra bem. Ficou com a sensação de ter estado longe, a fazer outra coisa qualquer. Mas tinha a cabeça a flutuar e não se lembra de mais nada. Depois regressou a este mundo para descobrir que tinha ficado estúpido. Deixou de saber ler e escre­ver.

Deves ter deixado a capacidade de saber ler e escrever lá do outro lado.

Se calhar foi isso.

Mantiveram-se os dois calados durante um bocado. Hoshino achou por bem acreditar na história do velhote, por mais excêntrica que lhe soasse aos ouvidos. Ao mesmo tempo, sentia-se mal na sua pele, como se, ao alinhar nessa ideia de Nakata ter-estado-morto-durante-três-semanas, corresse o perigo de se encontrar numa situação caótica, impossível de controlar. O melhor era virar o bico ao prego e mudar de assunto, puxando a conversa para questões mais comezi­nhas.

Então e agora, que chegámos a Takamatsu? O que é que se segue?

Nakata não faz ideia do que nos espera.

Não havia uma Pedra de Entrada algures?

É verdade, tem razão. Nakata esquecera-se disso por com­pleto. Temos de encontrar a pedra. Agora, onde, isso é que Nakata não faz ideia. Tem a cabeça a flutuar e não há maneira de desanuviar. Nakata já não era lá muito brilhante e agora, com tudo isto, ainda ficou pior.

Nesse caso, estamos metidos numa alhada, não te parece?

Sim, metidos numa alhada.

E não se pode dizer que estar aqui enfiados, a olhar um para o outro, seja propriamente a coisa mais divertida do mundo. Assim não vamos a lado nenhum...

Tem toda a razão, senhor Hoshino.

Parece-me que o que temos a fazer é sair daqui e perguntar a alguém se essa tal pedra fica por estas bandas. Que te parece?

Se o senhor o diz, Nakata está disposto a isso. Como Nakata é um bocadinho burro, passa o tempo a fazer perguntas às pessoas.

Já o meu avô costumava dizer que mais vale perguntar do que ficar ignorante a vida inteira.

É isso mesmo. Quando a gente morre, tudo o que sabemos desaparece connosco.

Não foi exatamente isso que eu disse - acrescentou Hoshino, coçando a cabeça. - Bom, assim como assim, fazes alguma ideia de qual é o aspeto da pedra? Que género de pedra é? De que tamanho êi Que forma e que cor é que tem? Para que serve? Pergunto isto porque, se não soubermos esse tipo de pormenores, não vamos longe. Ninguém vai saber do que é que estamos a falar quando perguntarmos: Por acaso sabe se existe alguma Pedra de Entrada aqui por perto?» Vão mas é pensar que somos tontinhos da cabeça. Estás a ver a cena?

Sim. Nakata pode ser burro, mas não é tonto. Ora aí tens.

A pedra de que Nakata anda à procura é muito especial. Não assim ião grande como isso. É branca e não tem cheiro. Para que vivo, isso é coisa que Nakata não sabe. É redonda e tem a forma de um bolinho de arroz. - Neste ponto, o ancião ergueu as mãos e dese­nhou no ar um cilindro com o formato de um disco de vinil.

Ah. Nesse caso, quer dizer que, se a visses, saberias reconhê-la? Estas a ver o tipo apontar e dizer: «Aqui está ela.»

Nakata ficaria a saber isso só de olhar.       

Deve haver uma lenda ou uma história qualquer por detrás dessa pedra mítica, estou enganado?

Talvez seja famosa e esteja em exposição nalgum santuário ou assim...

Se calhar.

Ou talvez se dê o caso de alguém a ter lá em casa, a fim de servir de tampa ao frasco de picles em conserva.

Não, isso não pode ser.

Como é que sabes?

Porque ninguém consegue mover a pedra.

Ninguém a não seres tu.

Sim, provavelmente Nakata consegue.

E depois, o que é que acontece?

Então, coisa que não era habitual nele, Nakata demorou o seu tempo a matutar na resposta. Pelo menos era isso que dava a ideia de estar a fazer, sem nunca deixar de passar a mão pelo cabelo sal-e-pimenta, cortado muito rente.

Isso Nakata não sabe - disse ele por fim. - Só sabe que está na altura de alguém a mover.

Foi a vez de Hoshino dar um ar de entendido.

E esse alguém és tu, não é verdade? Aqui e agora?

Sim - respondeu Nakata -, está correto.

Essa tal pedra só pode ser encontrada em Takamatsu?    

Não, senhor. A pedra está em toda a parte, não importa onde. Acontece que neste momento é aqui que pode ser encontrada. Seria muito mais fácil se estivesse em Nakano.

Mas não é arriscado? Quero dizer, mexer essa pedra do sítio?

Pois é. Mais valia Nakata ficar calado, mas é muito perigoso.

Desisto - confessou Hoshino, abanando a cabeça. Voltou a enfiar o boné dos Chunichi Dragons e puxou o rabo-de-cavalo pela abertura do boné.

Isto já começa mas é a parecer um filme do Indiana Jones ou coisa do género.

Na manhã seguinte, dirigiram-se ao posto de turismo que havia na estação e perguntaram se havia alguma pedra famosa que valesse a pena conhecer, ali em Takamatsu ou nos arredores.

Uma pedra? - repetiu a menina do balcão, franzindo ligeiramente a testa. Sabia apregoar de cor e salteado a cartilha toda no que dizia respeito aos locais turísticos a visitar, mas pouco mais, além de que a pergunta tivera o condão de a deixar visivelmente desorientada.

Anda à procura de alguma pedra em especial?

Uma pedra redonda deste tamanho - explicou Hoshino, formando com as mãos um círculo em forma de disco, à imagem do que Nakata havia feito. - Chama-se a Pedra de Entrada.

Pedra de Entrada?

Aí tem o nome. Palpita-me que deve ser muito famosa.

Entrada para onde, não me quer dizer?

Se eu soubesse não estava aqui a dar-lhe todo este trabalho, não acha?

Aquilo deu que pensar à rapariga. Hoshino nunca tirou os olhos da cara dela. Não era feia de todo, apesar de achar que os olhos, ligeiramente afastados, lhe davam o ar de um belo animal de pasto um tanto ou quanto assustadiço. A rapariga fez algumas i hamadas para se informar, mas que não a levaram a lado ne­nhum.

Tenho muita pena - desculpou-se ela, às tantas. - Mas parece que ninguém ouviu falar numa pedra com esse nome.

Ninguém?

Ela disse que não com a cabeça.

Desculpe eu perguntar isto, mas vieram de propósito de longe |té aqui só para encontrar essa pedra?

Pode crer. Agora não sei se é para ver a pedra. Seja como for, eu sou de Nagoya. E aqui o avozinho veio de Nakano, em Tóquio.

Sim, Nakata veio de Nakano. - Neste ponto Nakata achou poi bem meter-se na conversa. - Fartou-se de andar de camião, e houve uma vez em que até lhe ofereceram enguias... Chegou até aqui, e sem gastar dinheiro nenhum!

Estou a ver - disse a rapariga.

Não se preocupe. Se ninguém sabe onde é que fica a tal pedra, o que é que se há-de fazer? A culpa não é sua. Se calhar tem Outro nome. Não existem pedras históricas aqui na região? Sabe, um sitio qualquer que lenha unia lenda por Irás, ou coisa que o valha?

Uma pedra santa onde as pessoas costumem ir rezar? Qualquer coisa desse género?

A rapariga de olhos ligeiramente afastados lançou um olhar tímido a Hoshino, com o seu boné dos Chunichi Dragons, o seu cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo, os seus óculos de sol com lentes verdes, a sua orelha furada e a sua camisa havaiana.

Terei muito gosto em dizer-lhe como é que vai ter à biblioteca municipal. Aí, poderá investigar mais coisas acerca da tal pedra. Pela parte que me toca, lamento, mas confesso que não sei grande coisa sobre pedras.

   Mas também não tiveram sorte nenhuma na biblioteca. Naquele sítio não existia um único livro que se debruçasse sobre pedras existentes na região deTakamatsu ou arredores. «Pode ser que encon­tre aqui alguma referência», dissera o bibliotecário de serviço, indicando a Hoshino uma estante mesmo à frente deles: Lendas e Costume da Prefeitura de Kawaga, Os Ensinamentos de Kobo Daishi em Shikoku, um volume da História de Takamatsu e outros calhamaços do género.

Com um profundo suspiro, Hoshino atirou-se à árdua tarefa de passar os livros a pente fino. Quanto a Nakata, entreteve-se a folhear, página atrás de página, um livro de fotografias que dava pelo título de Pedras Famosas do Japão.

Nakata não sabe ler - disse ele -, por isso nunca tinha entrado numa biblioteca.

Não é que me orgulhe disso - disse Hoshino -, mas no meu caso também é a primeira vez. Isto apesar de eu saber ler.

Temos muito gosto em estar aqui.

         Folgo em sabê-lo.

         Em Nakano também existe uma biblioteca. A partir de agora Nakata vai passar a ir até lá de vez em quando. E a melhor coisa é que não se paga nada. Nakata não fazia ideia que deixavam entrar pessoas que não sabem ler.

Tenho um primo que nasceu cego e que gosta muito de ir ao cinema - acrescentou Hoshino. - Não sei qual é o gozo.

Estou a ver... Mas Nakata nunca pôs os pés no cinema.

EsTàs a gozar? Nesse caso, lenho de le levar lá um dia.

O bibliotecário chegou junto deles e recomendou-lhes que falassem mais baixo, por isso eles calaram-se e regressaram às suas leituras. Quando acabou de ver Pedras Famosas do Japão, Nakata tornou a guardá-lo na estante e começou a folhear Gatos do Mundo.

Sempre a resmungar, Hoshino lá conseguiu despachar os livros lodos da pilha que tinha junto de si. Infelizmente, não conseguiu encontrar nada do que andava à procura. Havia várias referências às paredes de pedra do castelo de Takamatsu, mas as pedras desses muros eram de tal forma maciças que Nakata nunca seria capaz de pegar nelas. Aparecia também uma referência à lenda de Kobo Daishi, um l.imoso monge erudito do período Heian2. Corria a lenda que uma vez, tendo ele colocado uma pedra no meio de um ermo, naquele mesmo lugar jorrara uma nascente e a terra tornara-se fértil, mas a história acabava aí. Hoshino também leu qualquer coisa acerca de um santuário chamado Pedra Tumular da Criança Abençoada, mas linha cerca de um metro de altura e a forma de um gigantesco falo. Nao, decididamente não podia ser aquilo de que Nakata andava à procura.

Dando-se por vencidos, saíram os dois da biblioteca e foram jantar a um restaurantezinho que havia ali perto. Comeram ambos massa com tempura3. Hoshino mandou vir mais uma malga de massa i' de caldo.

Foi muito interessante, a ida à biblioteca - disse Nakata. -Nakata não fazia ideia de que houvesse tantas raças de gatos no mundo.

Não tivemos sorte nenhuma com a história da pedra, é um lacto - acrescentou Hoshino -, mas ainda a procissão vai no adro. Vamos mas é tratar de dormir bem esta noite e logo veremos o que o dia de amanhã nos reserva.

Na manhã seguinte regressaram à biblioteca. Tal como acontecera na véspera. Hoshino mergulhou na leitura de uma pilha de livros que se debruçavam sobre pedras, consultando um volume a seguir ao outro e voltando depois a colocá-los no sítio. Verdade seja dita que ele nunca vira tantos livros em toda a sua vida. Por aquela altura já conhecia de cor e salteado a história de Shikoku, e ficara a saber que, ao longo dos tempos, as pessoas tinham adorado diferentes tipos de pedras. Mas aquilo que mais lhe interessava - a descrição da Pedra de Entrada -, isso não aparecia em nenhum livro. À tarde, de tanto ler, começou a sentir dores de cabeça, e os dois abandonaram então a biblioteca e deixaram-se ficar um grande bocado deitados na relva de um parque, a ver as nuvens passar. Hoshino fumou um cigarro. Nakata bebeu chá quente da garrafa-termo.

Amanhã vai ser outro dia de trovoada - afirmou Nakata.

Estás a querer dizer que amanhã tu vais fazer trovejar?

         Não. Nakata não sabe fazer isso. Não tem esse poder. A trovoada aparece por si mesma.

         Fico mais descansado! - exclamou o jovem.

Depois de regressarem à pensão e tomarem banho, Nakata deitou-se e adormeceu logo. Hoshino ficou a ver basebol na televisão com o som baixinho, mas como os Giants estavam a dar uma tareia na equipa de Hiroxima não tardou a desinteressar-se do jogo e a desligar o aparelho. Ainda não tinha sono e estava com sede, por isso saiu, foi até uma cervejaria e mandou vir uma caneca e um prato de rodelas de cebola fritas. Sentiu-se tentado a meter conversa com a jovem sentada ao seu lado, mas depois ocorreu-lhe que talvez não fosse nem o local certo nem uma boa altura para se atirar a ela. Vendo bem, na manhã seguinte, sem falta, era tempo de voltar à demanda da pedra inatingível.

Acabou de beber a cerveja, ajustou o boné dos Chunichi Dragons, saiu porta fora e foi dar uma volta. Não se podia dizer que fosse pro­priamente uma cidade muito interessante, mas sabia-lhe bem andar a deambular por um lugar onde antes nunca tinha posto os pés. Afinal de contas, sempre gostara de andar. Com um Marlboro nos lábios, mãos enfiadas nos bolsos, atravessou avenidas e meteu por várias ruelas. Quando não estava a fumar, assobiava.

Ao passar por uma ruazinha estreita cheia de bares de karaoke e de clubes nocturnos, daqueles que pareciam mudar de nome de seis em seis meses, foi ter a um sítio escuro e deserto e então ouviu alguém aos gritos Hoshino! Hoshino!, a chamar por ele.

A princípio não ligou, pensando que não era nada com ele. Não conhecia ninguém em Takamatsu; só podia tratar-se de outro I loshino qualquer. Não sendo um nome assim tão vulgar, também não era assim tão raro. Não se virou e continuou sempre a andar. Fosse quem fosse, porém, essa pessoa seguiu-o e continuou a chamá-lo pelo nome.

Hoshino parou e deu meia volta. À sua frente estava um homem baixo e já de uma certa idade, vestido de branco. Também o cabelo era branco e tinha óculos à séria, bigode branco e pêra. Estava de i amisa branca e laço preto. Parecia ter feições orientais, mas, no Conjunto, dir-se-ia um perfeito cavalheiro dos estados do Sul da América. Não devia ter mais de metro e meio, mas o aspecto era mais d de uma pessoa em miniatura, uma espécie de homem em versão reduzida, e não o de uma pessoa apenas baixa. Tinha os braços esticados à sua frente, como se estivesse a segurar um tabuleiro.

Senhor Hoshino - exclamou o velhote, numa voz clara e penetrante, em que se notava um ligeiro sotaque. I loshino olhava para ele, mudo de espanto.

É isso mesmo! Sou o Coronel Sanders.

O mesmo tipo da FRiend Chiken?

O velho respondeu que sim com a cabeça, veementemente.

O próprio.

Isso está tudo muito bem, mas como é que sabe o meu nome?

Tenho por hábito chamar Hoshino aos adeptos dos Chunichi Dragons. Se os fãs dos Giants são Nagashimas, nesse caso os dos Dragons só podem ser Hoshino, certo?

Tudo isso é muito bonito, mas o meu verdadeiro nome é Hoshino.

Pura coincidência - observou o ancião em tom desdenhoso.

Não tenho culpa disso.

E o que deseja o senhor?

Tenho uma rapariga do caraças para ti!

Ah, já estou a ver o filme todo - afirmou Hoshino. - O se­nhor é um chulo. Por isso é que anda vestido com essa fatiota.

Senhor Hoshino, não sei quantas vezes mais é que tenho de lhe dizer isto, mas não estou vestido como mais ninguém. Eu sou o Coronel Sanders. Vamos lá acabar de vez com a confusão!

OK... Mas, nesse caso, se é mesmo o Coronel Sanders, por que diabo é que anda a fazer de chulo numa rua de má nota em Takamatsu? Fama não lhe falta, e deve nadar em dinheiro! Só com a massa dos direitos de exploração. Devia mas era estar a viver dos rendimentos, sentadinho à beira da piscina, algures nos States. Qual é a tua, meu?

Neste mundo assiste-se a uma espécie de cabala.

Uma cabala?

Se calhar não sabe, mas é por isso que temos três dimensões. Existe uma espécie de distorção em actividade nestes mundos. Quem quiser viver num mundo onde tudo seja sempre agradável e certi­nho, então vai para um mundo arquitectado e traçado a régua e esquadro.

O senhor é uma personagem deveras estranha, sabia disso?

perguntou Hoshino. - Mas, por estes dias que correm, andar na companhia de velhos excêntricos parece ser o meu destino. Se isto continua assim, às tantas deixo de saber a quantas ando.

Tudo isso pode ser muito bonito, senhor Hoshino, mas vamos lá voltar à vaca fria. Que tal uma franguinha deliciosa?

Está a referir-se a uma dessas casas de massagens?

Casas de massagens? O que é isso?

Tu sabes... Aqueles lugares onde não deixam fazer o servici­nho todo, mas onde sempre se arranja um broche ou uma punheta? Podes vir-te assim, mas nada de truca-truca.

Não, não - exclamou o Coronel Sanders exasperado, aba­nando a cabeça em sinal de indignação. - Não é nada do que estás a pensar. As minhas raparigas fazem tudo - punheta, broche, tudo o que quiseres, incluindo o velho truca-truca.

Ah, então estamos a falar de uma casa de passe?

Casa de quê?

         Deixa-te de te armares em ingénuo, Okay? Tenho uma pessoa comigo e seguimos viagem amanhã de manhã cedinho. Por isso não lenho tempo para essas coisas esta noite.

         Nesse caso, não queres menina nenhuma?

         Nada de meninas. Nada de Fried Chicken. Nada de galinha frita. Vou mas é ver se ainda durmo qualquer coisinha.

Vê lá se não consegues dormir direito... - atirou-lhe o Coronel Sanders, com ar de quem sabia do que estava a falar. - Quando uma pessoa anda à procura de uma coisa e não a encontra, regra geral não consegue dormir muito bem, meu rapaz.

Hoshino deixou-se ficar ali especado, literalmente de boca aberta, a olhar fixamente para o homem.

À procura de uma coisa? Como diabo é que sabe que eu ando à procura de uma coisa?

Está escrito na tua cara. És um tipo sério, Hoshino. As pessoas como tu são como um livro aberto. Para alguém que tenha olho, és como uma cavala seca e aberta ao meio. Que é como quem diz, não leus segredos para ninguém.

Instintivamente, Hoshino levantou os braços e esfregou as faces. Depois abriu as mãos e fitou-as intensamente, mas não havia nada para ver. Escrito na cara?

Dar-se-á o caso - disse o Coronel Sanders, erguendo um dedo para dar mais ênfase à frase - de aquilo que procuras ser porventura redondo e duro?

Hoshino franziu o sobrolho e disse:

Vá lá, de uma vez por todas! Quem é o senhor? Como sabe isso?

Já te disse e volto a dizer, está escarrapachado na cara. Não atinas, pois não? - exclamou o Coronel Sanders, agitando o dedo à frente do outro. - Não ando neste negócio há uma data de anos só para ver passar as modas, não sei se sabes! De certeza que não queres uma rapariga das minhas?

Ando à procura da tal pedra. Uma coisa chamada Pedra de Entrada.

Sei tudo acerca disso.

Ai sabe?

Não te vou mentir ou pôr-me para aqui a dizer piadas. Sou um tipo sério, uma pessoa pouco dada à piada fácil e ao trocadi­lho.

E sabe onde está a pedra?

O sítio exacto.

Nesse caso, será que me poderia... dizer onde é? O Coronel Sanders tocou na armação dos óculos e aclarou a

garganta.

Tens a certeza de que não estás interessado numa rapariga?

Se me disser onde se encontra a pedra, talvez se arranje qualquer coisa - respondeu Hoshino, num tom que deixava algumas dúvidas.

Óptimo. Vem comigo. - E, sem esperar pela resposta, começou a afastar-se rapidamente pela viela.

Hoshino teve de apressar o passo para acompanhar o anda­mento.

Ei, velhote. Coronel. Só tenho vinte e cinco mil ienes co­migo.

O Coronel Sanders deu um estalo com a língua enquanlo trotava rua a baixo.

Chega e sobra. Por esse preço, arranjo-te uma beldade dezanove anos, a respirar saúde. Ela faz-te o serviço completo - b che, punheta, penetração, é só dizeres. E depois, sem pedir nada troca, conto-te tudo acerca da pedra.

Céus! - soltou Hoshino, em tom de desabafo.

 

São duas e quarenta e sete quando dou pela presença da rapariga. É um bocadinho mais cedo do que na noite passada. Desta vez fico acordado, à espera que ela apareça. Volta e meia pestanejo momen­taneamente, mas nem uma vez fecho os olhos. Pensava que estava com atenção, mas, sem saber como, a verdade é que deixo passar o momento exacto em que ela aparece.

Tem o vestido azul-claro do costume e está sentada no mesmo sítio, com a cabeça nas mãos, a fitar em silêncio o quadro Kafka à Beira-Mar. Deixo-me ficar ali a olhar para ela, mal ousando respirar. O quadro, a rapariga e eu - estes três pontos formam um triângulo imóvel no quarto. Ela nunca se cansa de olhar para o quadro, e eu nunca me canso de olhar fixamente para ela. O triângulo permanece fixo, estático. E é então que algo de absolutamente inesperado acon­tece.

«Saeki-san.» Oiço-me dizer o nome dela, sem querer. De tão cheio, o meu coração transborda e derrama as palavras. Digo-o baixi­nho, mas ela ouve-me. E é então que um dos lados do triângulo se que­bra. No fundo, talvez eu desejasse que isso acontecesse, mas não sei.

Ela olha na minha direcção, mas é como se não me estivesse a ver. Vira ligeiramente o rosto, mantendo sempre a cabeça entre as mãos. Como se qualquer coisa - o quê, não parece saber - tivesse feito estremecer ao de leve o ar.

Continuo sem saber se ela me consegue ver. Mas quero que ela me veja, que saiba que eu existo e que estou aqui. Rezo para que isso aconteça. «Saeki-san», repito. Não consigo reprimir o desejo de dizer o nome dela. Pode acontecer que a minha voz a assuste e que ela abandone o quarto para nunca mais voltar. Não, isso seria terrível. Não, terrível não é bem a expressão. Ficaria devastado, assim é melhor. Caso ela nunca mais regressasse tudo o mais deixaria de fazer sentido para mim, agora e para todo o sempre. Tudo perderia o sentido, o rumo. Tudo. Sei disso, mas mesmo assim arrisco e chamo-a pelo nome. Como se não me pertencessem, a minha língua e os meus lábios unem-se para formar o nome dela, repetindo-o vezes sem conta.

Ela deixou de fitar o quadro e olha para mim. Ou, pelo menos, lança o seu olhar na minha direcção. Do sítio onde me encontro não consigo descortinar as suas feições. Lá fora as nuvens dispersam-se e deixam entrever a luz da Lua. Deve estar vento, mas não se ouve nada.

«Saeki-san», volto eu a repetir, movido por um desejo intenso o profundo. Ela levanta a cabeça e coloca a mão direita na boca, como que a dizer-me «não fales». Mas será realmente isso que ela quer dizer? Se ao menos pudesse aproximar-me e olhá-la de frente, ler nos seus olhos o que pensa e o que sente. Está a tentar dizer-me alguma coisa, transmitir-me alguma mensagem, mas o quê? Diabos me levem se sei o que é! Mas esta treva profunda que se faz sentir por volta das três da manhã abafou toda a minha clarividência. Sinto diliculdade em respirar, fecho os olhos. Tenho uma massa de ar que me faz doer o peito, como se tivesse engolido uma nuvem de chuva Inleira. Alguns segundos mais tarde, quando abro os olhos, já ela desapareceu. Só ficou uma cadeira vazia. A sombra de uma nuvem desliza ao longo da parede por cima da escrivaninha.

Saio da cama, vou até à janela e olho para o céu da noite.

E penso no tempo que passou. Penso em rios, em marés. Em florestas e água a jorrar. Chuva e trovoada. Pedras e sombras. Tudo isto faz parte de mim.

No dia seguinte, à tarde, aparece na biblioteca um detective da Polícia. Na altura estava lá dentro a descansar e não dei por nada. O Investigador demora-se cerca de vinte minutos, faz uma quantidade de perguntas a Oshima e depois vai-se embora. Mais tarde, Oshima aparei e no quarto para me pôr ao corrente.

Apareceu um detective da Polícia local a perguntar por ti -começa ele por dizer. Depois tira uma garrafa de Perrier do frigorífico, abre a tampa, deita a água num copo e bebe um golinho.

Como sabia ele onde eu estava?

Porque usaste um telemóvel. O telemóvel do teu pai. Vasculho a memória e confirmo com a cabeça. Foi naquela noite em que dei por mim todo coberto de sangue, na mata que ficava nas traseiras do santuário. Liguei a Sakura do telemóvel.

Foi só uma vez - desculpo-me eu.

A Polícia examinou o registo das chamadas e seguiu o teu rasto até Takamatsu. Normalmente os agentes policiais não entram em grandes pormenores, mas enquanto estávamos à conversa lá o convenci a contar-me a história toda. Quando quero, consigo usar todo o meu encanto, não sei se sabes. O polícia deixou ainda escapar que eles não conseguiram chegar à pessoa a quem ligaste, por isso imagino que ela estivesse a falar de um telefone pré-pago. Isto para dizer que eles sabem que estiveste em Takamatsu, e a polícia local tem andado a investigar junto de todos os hotéis. Descobriram que um rapaz chamado Kafka Tamura, correspondendo à tua descrição, pernoitou num hotel de negócios da cidade, através de um acordo feito com a YMCA. Isto até 28 de Maio. O dia em que o teu pai foi assassinado.

Por sorte o polícia não fez perguntas acerca de Sakura. Do mal o menos. Pela parte que me toca, já lhe dei chatices que chegas­sem.

O gerente do hotel lembra-se de teres feito perguntas acerca da biblioteca. Lembras-te de a assistente dele ter ligado para saber se sempre tinhas aparecido por aqui?

Faço sinal que sim.

Foi assim que a Polícia aqui veio ter. - Oshima bebe mais um gole de Perrier. - Claro está que eu menti. Disse ao detective que não te tinha voltado a ver desde o dia 28 de Maio. Que até essa data tinhas aparecido por cá diariamente, mas que depois disso não te tornara a pôr a vista em cima.

Vê mas é se arranjas problemas por minha causa - digo eu.

Se não tivesse mentido, por esta altura estarias em muito maus lençóis.

Mas não quem que te melas em sarilhos poi minha causa.

Oshima sorri, estreitando os olhos até se reduzirem a duas fendas.

Vê lá se acordas! Já fizeste com que eu me metesse em sari­lhos!

Bem sei, mas...

Não vamos discutir, está bem? O que está feito, feito está. Ficarmos agora para aqui a falar disto não nos leva a parte algu­ma.

Sem dizer palavra, concordo com a cabeça.

De qualquer maneira, o polícia deixou ficar o cartão e pediu-me que lhe telefonasse caso voltasses a aparecer por aqui.

         Isso quer dizer que suspeitam de mim? Oshima abana a cabeça.

Tenho as minhas dúvidas. Mas o certo é que eles pensam que tu lhes poderás dar uma ajuda. Tenho andado a seguir o caso e a ler umas coisas nos jornais. Parece que a investigação não conduziu a lado nenhum, e os polícias começam a mostrar sinais de impaciência. Não encontraram impressões digitais nem testemunhas. Tu és a única pista que eles têm. Além disso, sendo o teu pai uma pessoa famosa, o crime tem sido amplamente noticiado na televisão e nos jornais.

Daí que a Polícia não possa ficar de mãos a abanar.

         Mas se eles descobrirem que lhes andaste a mentir, deixam de te considerar uma testemunha fidedigna, e lá se vai o meu álibi. Até podem pensar que fui eu que cometi o crime.

Oshima abana outra vez a cabeça.

Os polícias japoneses não são tão estúpidos como isso, meu caro Kafka. Pode-lhes faltar imaginação, é certo, mas não são propriamente incompetentes. De certeza que já verificaram todas as listas de passageiros dos aviões que aterraram aqui vindos de Tóquio e Snikoku. Não sei se sabes, mas têm câmaras de vídeo instaladas em todas as portas nos aeroportos, a fim de registarem a imagem de todo e qualquer passageiro. A esta hora já sabem que não regressaste a Tóquio de avião logo a seguir ao incidente. No Japão, esse género de informação é rigorosamente controlada, acredita em mim. Por isso e que digo que a Polícia não te considera suspeito. Caso suspeitassem de ti, leriam enviado detetives da Agência Nacional de Polícia em voz dos agentes da polícia local. Se fosse esse o caso, teriam apertado comigo e eu não em não encontraria maneira de lhes dar a volta. Na realidade, eles só querem ouvir o que tens a dizer sobre o caso e conhecer os teus passos antes e depois do incidente. Faz perfeito sentido o que diz Oshima.

De qualquer forma, o melhor que tens a fazer é não dares muito nas vistas nos tempos mais próximos - diz ele. - A Polícia pode manter esta zona debaixo de vigilância, na mira de te apa­nharem. O agente trazia uma fotografia tua. Uma cópia da tua foto­grafia oficial dos tempos da escola. Não se pode dizer que estejas muito parecido, estás com um ar perfeitamente alucinado.

Foi a única fotografia que deixei para trás. Sempre consegui evitar que me fotografassem, mas aos retratos da praxe tirados na escola não tive maneira de me escapar.

O polícia disse que eras um miúdo que se fartava de dar pro­blemas na escola. Que houve até alguns incidentes violentos em que tu e os teus colegas se viram envolvidos. E foste suspenso por três vezes.

Duas vezes, e não três. E não fui suspenso, mas sim mandado de castigo para casa - explico eu. Inspiro fundo e expiro lentamente. - E, sim, há alturas em que isso me acontece.

Não te consegues controlar - acrescenta Oshima. Faço que sim com a cabeça.

E magoas as outras pessoas?

Não é por querer, mas é como se tivesse outra pessoa a viver dentro de mim. E quando dou por mim descubro que fiz mal a alguém.

Fizeste mal até que ponto? - pergunta Oshima. Suspiro.

Nada de muito grave. Até agora ainda não houve dentes nem ossos partidos, nem nada parecido.

Oshima senta-se na cama, cruza as pernas e afasta o cabelo da testa. Veste umas calças de sarja azul-marinho, uma camisa polo preta e ténis brancos Adidas.

Quer-me parecer que tens uma data de assuntos inacabados por resolver.

Uma data de assuntos? Levanto os olhos para ele.

E tu, não tens nenhuns?

Oshima ergue as mãos.

Não tantos como isso. Mas há uma coisa. Para mim, dentro deste meu corpo, este invólucro defeituoso, o mais importante consiste em sobreviver um dia e outro dia. Uma tarefa que tanto pode ser sim­ples, como revelar-se extremamente difícil. Depende do modo como a encaramos. De qualquer forma, mesmo quando as coisas correm bem, nunca se fica com a sensação de uma grande conquista. Não há ninguém para se pôr de pé e desatar a aplaudir-me, nem nada do género.

Mordo o lábio e depois pergunto:

Nunca pensaste sair de dentro desse invólucro?

Referes-te a abandonar o meu próprio corpo? Abano afirmativamente com a cabeça.

Em sentido figurado? Ou literalmente?

Ambos.

Oshima endireita o cabelo com a mão. Quase consigo aperceber-me da engrenagem dos mecanismos do seu pensamento a girarem a toda a velocidade por trás da sua pálida testa.

Em vez de responder, Oshima devolve-me a questão.

Gostarias de fazer isso? Respiro fundo.

Oshima, para te dizer a verdade, nua e crua, também eu não gosto deste invólucro a que estou confinado. Nunca gostei. Para ser tranco, odeio-o. A minha cara, as minhas mãos, o meu sangue, os meus genes...tudo aquilo que herdei dos meus pais, detesto. Se pudesse, tugia e deixava tudo para trás, como quando se abandona a casa.

Oshima olha para mim com um sorriso.

Tens um bonito corpo, musculado, não interessa agora de quem o herdaste. E houve alguém que também te deu um rosto bonito. Bem, vendo melhor talvez tenhas as feições demasiado vincadas para te poder falar em bonito, mas não se pode dizer que sejas malparecido de lodo. Pela parte que me toca, o teu aspeto agrada-me. És elegante esperto. E estás bem fornecido. Invejo-te. Vais ter montes de raparigas atrás de ti, é garantido. Por isso não vejo razões para estares insatisfeito com o invólucro que te coube em sorte.

Fico vermelho que nem um tomate.

Pronto, não interessa - continua Oshima. - Uma coisa é certa. Pessoalmente, o invólucro em que vivo não me satisfaz grandemente. Como o que podia agradar? Por mais voltas que lhe dê, não passa de uma poça desconjuntada. E muito pouco prática, posso garantir-te. Mesmo assim, aqui metido, é isto que eu penso: se trocarmos a parte exterior pelo interior ou, posto de outro modo, se considerarmos a parte exterior a essência e a essência apenas a concha, as nossas vidas seriam muito mais fáceis de entender, não te parece?

Ponho-me a olhar para as minhas mãos e a pensar. Ainda me lembro perfeitamente daquela sensação pegajosa, ao dar por mim coberto de sangue. Penso na minha própria essência, na minha pró­pria concha. A essência daquilo que eu sou, envolvida pela concha que represento. Mas estes pensamentos desaparecem, ofuscados por uma imagem indelével. Na minha mente não há lugar para mais nada, a não ser para todo aquele sangue.

E no caso da senhora Saeki?

O que queres dizer com isso?

Achas que e/a tem assuntos por resolver?

Acho que é melhor seres tu a perguntar-lhe - responde Oshima.

Às duas da tarde, levo uma chávena de café, num tabuleiro, à Sr.a Saeki. Ela está no escritório do primeiro andar, sentada à escrivani­nha, onde, como de costume, há papel de carta, bem como uma caneta de tinta permanente, mas com a tampa colocada. Ela tem as duas mãos em cima da secretária e o olhar perdido no vazio. Parece não estar a olhar para alguma coisa de concreto, mas sim para um lugar que não existe. Tem um ar cansado. Por detrás dela, através da janela aberta, a brisa do princípio de Verão agita as rendas brancas do cortinado. A cena, em toda a sua beleza, parece tirada de um qua­dro alegórico.

Obrigada - diz ela, quando eu coloco o tabuleiro em cima da secretária.

Está com um aspeto cansado.

Ela acena afirmativamente com a cabeça.

Estou, não estou? Quando me sinto cansada sei que pareço mais velha.

Isso não é verdade. Está muito bonita, como sempre. Ela sorri.

Para alguém com a tua idade, sabes como agradar a uma mulher.

Fico vermelho como um tomate.

A Sr.a Saeki aponta para a cadeira. Aquela em que estive no dia anterior, colocada exatamente na mesma posição. Sento-me.

O cansaço é uma sensação que conheço muito bem. Pelos vistos, não é o teu caso.

Não.

Escusado será dizer que, quando eu tinha quinze anos, também não sabia o que isso era. - Ela leva a chávena de café à boca e bebe um golinho. - Kafka, olha pela janela e diz-me o que vês lá fora.

Olho pela janela que fica por detrás dela. -Vejo árvores, o céu e algumas nuvens. E alguns pássaros nos ramos das árvores.

Uma paisagem igual a tantas outras, não te parece?

Sim.

E não achas que, sabendo que podias nunca mais voltar a ver essa paisagem, tudo se tornaria diferente e o quadro ganharia contornos diversos e passaria a ter um significado especial para ti?

Provavelmente.

Alguma vez pensaste nisso? -Já.

Ela fez um ar surpreendido.

Quando?

Quando estou apaixonado - digo-lhe eu.

Ela sorri ligeiramente. O sorriso permanece durante algum tempo nos seus lábios. Faz-me pensar na frescura da água num dia de Verão, quando alguém mergulha as mãos numa poça e nos salpica.

Estás apaixonado? - pergunta-me.

Estou.

E, sempre que a vês, o rosto e a figura dela são-te queridos e ganham aos teus olhos especial valor?

Sim, e ao mesmo tempo sinto que em qualquer altura posso perdê-la.

A Sr.a Saeki fita-me durante um momento. O sorriso desvaneceu-se.

Imagina um pássaro pousado num ramo delgado - diz ela. -( ) ramo baloiça ao sabor do vento, e de cada vez que isso acontece muda lambem o campo de visão do pássaro. Percebes o que eu quero dizer?

Faço que sim com a cabeça.

Sempre que isso acontece, como é que imaginas que o pássaro recupera a estabilidade do olhar?

Abano a cabeça.

Não faço ideia.

Levantando e baixando a cabeça, para tentar compensar a oscilação do galho. Observa bem os pássaros da próxima vez que estiver vento. Eu passo muito do meu tempo a olhar por aquela janela. Não achas que viver assim, todos os dias, cansa? Sempre a ter de mexer a cabeça de cada vez que o ramo em que se pousa oscila?

Acho.

Os pássaros estão habituados a isso. Para eles, é a ordem natural das coisas. Não têm de refletir sobre isso, como nós, limitam--se a fazê-lo instintivamente. Daí que não seja tão cansativo como parece. Mas a verdade é que eu sou um ser humano, e não um pássaro. Por isso, às vezes a coisa pode tornar-se cansativa.

A senhora está pousada num ramo?

Sim, podemos pôr a questão nesses termos - explica ela. -E por vezes o vento sopra com muita força. Volta a pousar a chávena em cima do pires e tira a tampa da caneta.

É o sinal para eu me ir embora, por isso levanto-me.

Senhora Saeki, há uma coisa que gostaria de lhe perguntar.

Uma coisa pessoal?

Sim. Se calhar, estou a ser muito indiscreto. - Mas é importante?

Para mim, é.

Ela volta a pousar a caneta em cima da escrivaninha. Reparo que os seus olhos adquirem um brilho indefinido.

Muito bem. Diz lá.

A senhora tem filhos?

Ela retém a respiração por alguns segundos. A expressão na sua face afasta-se no tempo e depois volta a regressar. À imagem e seme­lhança de uma parada que desaparece rua a baixo para depois reapa­recer passado um certo tempo, sempre a marchar, rua a cima, na nossa direção.

Para que queres saber isso?

É uma coisa pessoal. Não pergunto apenas por perguntar.

Ela ergue a grossa Mont Blanc, como se estivesse a avaliar a quantidade de tinta que ainda tem, sopesa-a e revira-a na mão, antes de voltar a pousá-la e de levantar os olhos para mim.

Desculpa, mas não te posso responder sim ou não. Pelo menos agora. Estou cansada, e o vento sopra forte.

Abano a cabeça.

Eu é que peço desculpa, não lhe devia ter perguntado isso.

Não tem importância. Não fizeste nada de mal - disse ela suavemente. - Obrigada pelo café. Fazes um café excelente.

Fecho a porta, desço as escadas e regresso ao meu quarto. Sento-me na cama e tento ler, mas as frases que leio não fazem sentido. Sinto-me como se estivesse a olhar fixamente para uma tabela de números aleatórios, limitando-me a seguir com os olhos, linha após linha, as palavras. Pouso o livro, vou até à janela e fico a olhar para o jardim. Vêem-se algumas aves pousadas nas árvores, mas nem sinal de vento. Estarei apaixonado pela Sae-kisan, aquela rapariguinha que tinha quinze anos? Ou pela atual Sr.a Saeki, que está na casa dos seus cinquenta? Só sei que nada sei. Cada vez mais ténue, a linha divisória entre as duas começou a desvanecer-se, e já não consigo distinguir as formas. O que me deixa confuso. Fecho os olhos e procuro encontrar no meu íntimo algo a que me agarrar.

Mas querem saber uma coisa? Ela tem razão. Não há um único dia em que ver o seu rosto não se revele uma verdadeira dádiva.

cada vez lhe dou mais valor.

 

Para um homem da sua idade, o Coronel Sanders mexia-se bem e andava ligeiro. Parecia um corredor veterano. Além de que parecia conhecer a cidade como as suas próprias mãos. Enfiou--se por atalhos escuros, subiu escadas estreitas, meteu-se de lado para conseguir esgueirar-se por entre as casas. Saltou um fosso, mandando um berro para fazer calar um cão que ladrava atrás de uma vedação. Como um espírito inquieto em busca de um porto seguro, a sua figurinha toda vestida de branco percorreu todos os becos e vielas da cidade. Hoshino parecia prestes a deitar os bofes pela boca, só de o acompanhar. Não tardou a ficar sem fôlego e completamente alagado em suor. Nem por uma vez o Coronel Sanders se dignou virar-se para trás para ver se o outro o seguia.

Ei, Coronel, ainda falta muito ou quê? - quis saber Hoshino, impaciente, quando já não aguentava mais.

O quê, um rapaz jovem como tu? Não me digas que não podes com uma gata pelo rabo? Se um pequeno passeio destes te mata o desejo, então é caso para dizer que ele já não era grande coisa! - replicou o Coronel Sanders, sempre sem se virar para trás.

Sim, mas lembre-se de que eu sou um potencial cliente, certo?... O que vai acontecer às minhas necessidades sexuais se ficar esgotado?

Saíste-me cá um atraso de vida! É a isso que tu chamas um homem? Se um passeizito destes é quanto basta para matar o teu desejo, não és homem não és nada.

Céus! – resmoneou Hoshino.

O Coronel Sanders cortou para outra rua transversal, passou para o outro lado da artéria principal, sem fazer caso dos semáforos, e continuou sempre a andar. Atravessou uma ponte e penetrou no interior de um santuário. Um santuário enorme, a julgar pelo imponente aspeto arquitetotonico, mas, atendendo ao adiantado da hora, sem vivalma. O Coronel Sanders apontou para um banco em frente ao escritório do santuário, indicando a Hoshino que era ali que ele se devia sentar. Ao lado do banco via-se uma lanterna vermelha, que iluminava o espaço em redor como se fosse dia. Hoshino obedeceu, e o Coronel Sanders sentou-se ao lado dele.

Não me vai obrogar a fazê-lo aqui, pois não? – indagou Hoshino, hesitante

Não digas disparates. Nós não somos propriamente como aquela carneirada que não tem mais que fazer senão andar a rondar os santuários famosos. Claro está que não te vou obrigar a fazê-lo num santuário! Afinal de contas, quem é que pensas que eu sou? - Dito isto, o Coronel Sanders tirou então um telamovel prateado do bolso e marcou um número de três dígitos. – Sim, sou eu – disse ele quando a outra pessoa lhe respondeu do lado de lá. – No sítio do costume. No santuário. Tenho aqui comigo um jovem chamado Hoshino. Isso mesmo… O costume. Sim, compreendido. Vem o mais depressa possivel. – Depois desligou o telemóvel e voltou a guardá-lo no bolso da sua fatiota branca.

Vem sempre aqui até ao para mandar vir as raparigas? – perguntou Hoshino.

Porquê? Tem algum mal?

Não, não tem mal nenhum. So estava a pensar que deve haver um sitio melhor. Sei lá, um local mais apropriado… como, por exemplo, um café ou um quarto de hotel?

Num santuário é mais calmo. E sempre se respira melhor ar.

Lá isso é verdade, mas, por outro lado, não deixa de ser ingrato, estar aqui a meio da noite sentado em frente de um escritório, à espera de uma rapariga… Assim, uma pessoa não consegue descontrarair. Pela parte que me toca, sinto-me como se estivesse à beira de ficar possuído pelo espírito de uma raposa selvagem ou coisa que o valha.

Mas o que estás para aí a dizer? Por acaso não estarás a que­rer armar-te em engraçadinho e a fazer troça de Shikoku, pois não? Takamatsu é uma grande cidade! De resto, não é por acaso que é a capital da Prefeitura de Kagawa. Não estamos propriamente a falar de uma qualquer cidadezeca estagnada. Aqui não há raposas nenhu­mas!

Tudo bem, já cá não está quem falou... Era só uma brinca­deira. Mas, uma vez que o senhor está na indústria de serviços, talvez devesse preocupar-se mais em criar uma certa e determinada atmos­fera, percebe onde quero chegar? Uma coisa um bocadinho mais luxuriosa, a fim de convidar aos prazeres da carne. Não sei, se calhar não tenho nada que me meter nisso.

Ora aí está! Não é da tua conta - cortou o Coronel Sanders, secamente. - Agora, no que diz respeito à pedra...

Pois, é verdade! A pedra... Diga-me lá o que sabe.

Depois de tu fazeres o que tens a fazer. Então falamos.

Fazer o que tenho a fazer é importante, não é?

O Coronel Sanders acenou com a cabeça, solenemente, ao mesmo tempo que fazia festas na barbicha.

É isso mesmo. Encara isso como uma formalidade. Depois logo passamos à história da pedra. Tenho a certeza de que vais engraçar com esta rapariga. Não quero parecer exagerado, mas melhor do que ela não há. Mamas firmes, pele como seda. As curvas todas no sítio, quente e húmida onde tu gostas, uma verdadeira máquina de sexo. Comparando com um carro, porta-se como um motor de tracção às quatro rodas na cama. É um modelo capaz de ganhar velocidade turbo em matéria de desejo, prego a fundo no acelerador, a alavanca de velocidades nas suas mãos, tu ali ao virar da esquina, ela muda de velocidade e entra em êxtase, tu vais por aí fora na faixa de rodagem mais rápida, perdes o controlo e pronto! - o pequeno Hoshino morre e vai direitinho para o paraíso.

O senhor saiu-me cá uma personagem, sabia? - exclamou Hoshino, não sem admiração.

Já te disse, não ando aqui para ver andar os outros. Quinze minutos mais tarde chegou a rapariga, e o Coronel Sanders não andara longe da verdade. Era realmente um espanto. Minissaia justa, saltos altos pretos, uma malinha de verniz ao ombro. Poderia perfeitamente ser modelo. Seios generosos, também, a es­preitarem por baixo do top minúsculo.

Então, agrada-te? - perguntou o Coronel Sanders.

Como se tivesse sido atingido por um relâmpago, Hoshino limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça. Ficara sem pala­vras.

Uma verdadeira máquina de sexo, meu caro Hoshino. Espero que te dê prazer - disse o Coronel Sanders, sorrindo pela primeira vez, ao mesmo tempo que dava a Hoshino um beliscão no traseiro.

A rapariga levou Hoshino para um hotel do amor nas imedia­ções do santuário. Aí, encheu a banheira de água quente, libertou-se da roupa com gestos desinibidos e depois tratou de despir Hoshino. Lavou-o todo lascivamente e depois começou a lambê-lo, levando-o a mergulhar nos prazeres de uma sessão de sexo oral verdadeiramente artística, fazendo-lhe coisas que ele nunca vira nem imaginara nos dias da sua vida. Ele só pensava numa coisa, e foi assim que se veio demoradamente.

Céus, foi fantástico! Nunca me senti assim - confessou Hoshino, deixando-se afundar languidamente na banheira cheia de água quente.

E isto foi só o princípio - disse a rapariga. - Espera até veres o que aí vem.

Pois sim, mas só isso já me encheu as medidas.

Bom até que ponto?

Nunca me senti no passado e nunca me voltarei a sentir no futuro.

O presente puro é o progresso contínuo do passado que morde no futuro. Na verdade, todas as sensações são já memória.

Hoshino levantou a cabeça e olhou para a cara dela, de boca meio aberta.

Henry Bergson - acrescentou ela, lambendo o sémen com a ponta da língua. - Matéria e Memória. Alguma vez leste?

Acho que não - respondeu Hoshino, depois de pensar um momento. Tirando o Manual de Condução Especial dos Veículos Militares que havia sido obrigado a estudar - e os livros sobre a história de Shikoku que acabara de consultar na biblioteca -, não se lem­brava de ter lido mais nada a não ser literatura manga.

E tu, já o leste?

A rapariga fez que sim com a cabeça.

Teve de ser. Estou a estudar filosofia na universidade e os exames estão à porta.

A sério? - exclamou Hoshino, espantado. - Isso quer dizer que fazes este trabalho em tempo parcial?

Sim, para me ajudar a pagar as propinas.

Posto isto, ela conduziu-o até à cama e explorou simultaneamente com a ponta dos dedos e com a língua todo o seu corpo, provocando-Ihe outra gloriosa ereção. Uma bem tesa, como a Torre de Pisa em época carnavalesca.

Estás a ver, conseguiste pô-lo outra vez de pé, estás pronto para outra - observou a rapariga, prosseguindo calmamente as carí­cias manuais. - Tens algum pedido especial que eu possa satisfazer? O senhor Sanders disse-me para te proporcionar tudo aquilo que desejares.

Não estou assim a ver nada em especial, mas tu bem que podias citar mais um bocadinho daquela ladainha filosófica. Não sei porquê, mas palpita-me que sempre evita que me venha antes de tempo. Caso contrário, não sei se aguento muito.

Pode ser... O homem está um bocado ultrapassado, mas que me dizes a Hegel?

Tanto faz.

Nesse caso, recomendo Hegel. As suas teorias estão um tanto ou quanto fora de prazo, mas, lá diz o povo, velhos são os trapos!

Parece-me perfeito.

Ao mesmo tempo que «eu» sou objeto de uma relação, o «eu» é o objeto da relação e a própria relação.

Ah...

Hegel acreditava que uma pessoa não é apenas meramente consciente de si própria e objeto, enquanto entidades separadas, mas que através da projeção do eu por intermédio da mediação do objeto é capaz de adquirir um conhecimento mais profundo do pró­prio eu. Tudo isto constitui a autoconsciência.

Não entendo uma palavra do que estás para aí a arengar.

Ouve, pensa naquilo que eu te estou a fazer neste preciso momento. Aos meus olhos, eu sou o eu, e tu és o objeto. Para ti, como não podia deixar de ser, é exatamente ao contrário - tu és o eu e eu sou o objeto. E é assim que, do intercâmbio entre eu e objeto, podemos projetar-nos nos outros e adquirir consciência. Voluntaria­mente.

Continuo sem perceber patavina, mas que é estimulante, lá isso é.

É exatamente mesmo essa a ideia.

Terminada a sessão, Hoshino despediu-se da rapariga e regressou ao santuário, onde o Coronel Sanders continuava à espera, sentado no banco, tal como quando ele se fora embora.

Ficou aqui sentado todo este tempo? – perguntou Hoshino.

O Coronel Sanders abanou a cabeça, manifestando assim a sua irritação.

Não sejas parvo. Achas-me com cara de quê? Parece-te que tenho assim tempo para dar e vender? Pois fica sabendo que enquanto tu estavas na cama a aprender o caminho do céu, andava eu metido outra vez nos becos e vielas a trabalhar. O que acontece é que a rapariga me ligou quando se despacharam e eu apressei-me a regressar aqui. Então, conta-me lá, que tal a nossa maquinazinha de sexo? Imparável, aposto.

 


Sim, fantástica. Não tenho razão de queixa. Vim-me por três vezes. Isto voluntariamente falando. Devo ter perdido para aí uns dois quilos.

Isso é o principal. Agora, em relação à pedra...

Pois, foi isso que me trouxe até cá.

Na verdade, a pedra encontra-se na mata que pertence a este santuário.

Estamos a falar da mesma coisa? Da Pedra de Entrada?

Isso mesmo. A Pedra de Entrada.

De certeza que não está para aí a inventar?

O Coronel Sanders levantou a cabeça com energia.

Que disparate é que estás para aí a dizer, meu alucinado? Alguma vez porventura te menti? Já me viste inventar alguma história? Disse que te arranjava uma miúda que era uma máquina de fazer sexo e cumpri a minha promessa. Ainda por cima, a preço de saldo e por apenas doze mil ienes. E tu vieste-te três vezes, nada mais, nada menos. E dizes tu que ainda duvidas da minha palavra?

Não fique irritado. Claro que acredito em si. O que acontece é que fico sempre um bocadinho desconfiado quando vejo que as coisas acontecem com demasiada facilidade. Só isso. Quer dizer, vendo bem - ando a passear sozinho e aparece-me à frente um tipo todo pipi que conhece o meu nome e que me diz que sabe onde encontrar a tal pedra, a seguir vou atrás dele e, antes que dê por mim, aparece uma mulher de estalo com quem tenho sexo.

Por três vezes.

Para o caso não interessa. E é então que me venho três vezes, e depois o senhor diz-me que a pedra de que ando à procura se encontra aqui mesmo ao pé? Desculpe lá, mas isso deixaria qualquer pessoa confusa.

Ainda não atinaste, pois não? Estamos a falar aqui de uma revelação, sem tirar nem pôr - atirou o Coronel Sanders, dando um estalo com a língua. - E as revelações extravasam as fronteiras do admissível no quotidiano. O que seria da vida sem as revelações? O que tens a fazer é transpor o domínio da razão que observa e passares para o campo da razão que age. Esse é o ponto crítico! Fazes alguma ideia do que eu estou a falar, ó tu, meu cabeçudodourado? Não pescas nada disto!

A projeção e troca entre o eu e o outro...? - arriscou dizer Hoshino timidamente.

Exato. Fico contente por teres ficado a saber ao menos isso. Agora é que tocaste no ponto! Vem comigo e poderás prestar as tuas homenagens a essa preciosa pedra. Escusado será dizer que se trata de uma pechincha, só por ser para ti.

 

Ligo a Sakura do telefone público que há na biblioteca. Dou-me conta de que nunca mais entrei em contacto com ela desde aquela noite em sua casa - deixei-lhe um bilhetinho e foi tudo. Sinto--me um bocadinho envergonhado por me ter despedido assim. Logo que abandonei o apartamento dela vim direitinho para a biblioteca, e depois Oshima conduziu-me de carro até à cabana nas montanhas, onde passei alguns dias, sem qualquer ligação com o mundo exterior. Depois acabei por vir viver e trabalhar para a biblioteca, e aqui começou a deparar-se-me o espírito vivo da Sae-kisan - ou coisa que o valha - todas as noites. E acontece que me tomei de amores por aquela menina de quinze anos. Foram tantas as coisas que aconteceram desde essa altura, todas umas a seguir às outras, que não tenho tido mãos a medir. Muito embora isso não sirva de desculpa.

São nove da noite quando faço a ligação. Ela responde ao sexto toque.

Por onde tens andado? - pergunta Sakura, numa voz áspera e zangada.

Continuo em Takamatsu.

Durante um bocado ela não diz nada. Oiço o som de um pro­grama musical na televisão como pano de fundo sonoro.

Não sei como, mas sobrevivi - acrescento. Silêncio, seguido de uma espécie de suspiro resignado.

O que te deu para desapareceres daquela maneira? Esta­va preocupada até dizer chega e nesse dia consegui vir para

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casa mais cedo e tudo. Até fui de propósito fazer compras para nós.

Bem sei que fiz mal. A sério, tenho consciência disso. Mas não podia ficar aí. Sentia a cabeça feita num oito e sentia necessidade de me afastar para poder pensar nas coisas com mais calma, à distância. Para ver se voltava a ter os pés bem assentes no chão. Estar contigo foi... faltam-me as palavras.

Por de mais estimulante?

Isso. Nunca antes tinha estado com uma mulher.

Não me digas.

Tu sabes, numa cena assim e tudo isso...

Não é fácil ser-se jovem, pois não?

Pelos vistos - digo eu. - E o teu trabalho, está tudo a andar bem?

Tem sido uma loucura. Mas como preciso de trabalhar para ver se poupo algum dinheiro, não me posso queixar.

Faço uma pausa. A seguir conto-lhe de a Polícia andar à minha procura.

Ela fica calada durante um bocado e depois pergunta, como quem não quer a coisa:

Aquela história do sangue?

Por enquanto, decido adiar a verdade.

Não, não é isso. O sangue não é para aqui chamado. Eles andam à minha procura porque eu ando fugido de casa. Querem deitar-me a mão a fim de me recambiarem para Tóquio, só isso. Por isso, não te admires se entrarem em contacto contigo. Naquela noite em que fiquei aí, liguei para ti do meu telemóvel e através do registo das chamadas eles conseguiram seguir o meu rasto e dar comigo aqui em Takamatsu.

Não te preocupes - replicou ela. - O meu é um telefone pré-pago, de modo que eles não têm maneira de chegar até mim.

Ainda bem - confesso. - Não queria de maneira alguma causar-te mais complicações do que aquelas que já dei.

Estou quase a chorar, tal é a preocupação.

Estou a falar sinceramente.

Bem sei diz ela, como quem não quer a coisa. - E então poi onde é que; para o nosso fugitivozinho por estes dias?

Uma pessoa minha conhecida deixou-me ficar em casa dela.

Desde quando é que conheces alguém aqui?

Como podia eu alguma vez resumir tudo o que me havia acontecido nos últimos dias?

E uma longa história - digo.

Contigo são sempre longas, as histórias.

Também não sei porquê, mas é um facto. -Terás nascido predestinado para isso?

Pelos vistos - respondo eu. - Um dia destes conto-te tudo, quando tivermos tempo para isso. Vais ver que não me estou a esconder nem nada. Não consigo é explicar-te isso bem ao telefone.

Tudo bem. Só espero que não estejas metido em nenhuma embrulhada.

Não te preocupes, não é nada disso. Estou bem, a sério. Novo suspiro.

Já te conheço o suficiente para perceber perfeitamente que queres ficar entregue a ti próprio, mas agora vê lá se não te envolves em nenhuma ilegalidade, estás a ouvir? Não merece a pena. Não quero que acabes como um pobre adolescente qualquer, armado em Billy the Kid!

Billy the Kid não morreu jovem - corrijo-a eu. - Matou vinte e uma pessoas e morreu aos vinte e um anos.

Se tu o dizes... Enfim, este telefonema deve-se a alguma razão especial?

Só queria agradecer-te. Ajudaste-me imenso e desapareci de circulação sem dizer nada.

Estás perdoado. Pela parte que me toca, escusas de te preocupar mais com isso.

Além do mais, também queria ouvir a tua voz - acrescento.

Fico contente, mas em que é isso ajuda alguma coisa?

Não sei como é que hei-de dizer... Isto pode parecer estranho, mas tu vives no mundo real, respiras verdadeiro ar, falas uma linguagem verdadeira. Conversar contigo, aqui e agora, faz-me sentir de algum modo ligado à realidade. E isso é extremamente importante para mim.

E isso não é assim com as pessoas à tua volta?

Não tenho bem a certeza - digo-lhe.

Não percebo muito bem. Aquilo que estás a querer dizer é que te encontras num lugar fora da realidade, rodeado de pessoas desligadas da realidade?

Aquilo dá-me que pensar.

Sim, podes pôr a questão nesses termos.

Kafka - alvitra Sakura. - Bem sei que se trata da tua vida e que não é nada comigo, mas parece-me que o melhor que tens a fazer é bazar daí. Não imagino sequer onde possas estar, mas tenho a sensação de que essa é a única coisa inteligente a fazer. Chama--Ihe um pressentimento, se quiseres. Porque não vens até cá? Podes ficar o tempo que quiseres.

O que te leva a seres tão simpática para mim?

Estás armado em abeçudo ou quê?

O que queres dizer com isso?

Que gosto de ti. Não pescas mesmo nada disto! Pode dizer-se que sou uma pessoa curiosa por natureza, mas garanto-te que não

faria isto por qualquer um. Tudo o que fiz, fi-lo por ti, porque gosto de ti, está bem? Não sei como dizer isto, mas para mim é como se fosses o meu irmão mais novo.

Continuo agarrado ao telefone sem dizer uma palavra. Por um segundo, fico perfeitamente baralhado, se não mesmo atordoado. Nunca na vida ninguém me disse nada do género. Nunca.

Ainda aí estás? - pergunta Sakura.

Sim, estou a ouvir-te - oiço-me dizer.

Então diz qualquer coisa. Ponho-me direito e respiro fundo.

Quem me dera poder, Sakura. Palavra de honra. Mas neste momento é completamente impossível. Como te disse, não posso sair daqui. Estou apaixonado.

Queres tu dizer, apaixonado por uma pessoa complicada, que não é deste mundo?

Podes dizê-lo.

Oiço-a suspirar de novo - um suspiro profundo, prolonga­do.

Ouve uma coisa, na tua idade, é normal que um puto se apaixone sem ter os pés na terra. Agora, se a pessoa por quem estás apaixonado não for deste mundo, o caso muda de figura. Isso torna tudo mais complicado. Estás a seguir-me?

Estou.

Kafka?

Sim.

Se acontecer alguma coisa, telefona-me, Okay? Seja a que hora for. Não penses duas vezes. Pega no telefone e liga-me.

Obrigado.

Desligo e volto para o quarto. Ponho o single de Kafka à Beira--Mar no gira-discos e baixo a agulha. E, uma vez mais, indepen­dentemente da minha vontade, sou arrastado até àquele lugar. Até àquele tempo.

Sinto uma presença a meu lado e abro os olhos. Está escuro. Os números fosforescentes no relógio digital dizem-me que já passa das três. Devo ter adormecido. À luz ténue do poste do candeeiro que há no jardim, dou por ela ali sentada. Como de costume, está na escrivaninha, de olhos fixos no quadro da parede. Com a cabeça nas mãos, imóvel. E eu deitado na cama, fazendo os possíveis por não respirar, os olhos semicerrados, até se resumirem a uma pequena fenda, postos na sua silhueta. Lá fora, a brisa que sopra do mar faz estremecer os ramos de corniso.

Contudo, passado um bocado, pressinto algo de diferente naquele quadro. Há qualquer coisa no ar que perturba a perfeita harmonia do nosso pequeno mundo. Esforço-me por ver na escuridão. O que poderá ser? Subitamente levanta-se vento, e o sangue que corre nas minhas veias adquire uma estranha espessura e torna-se pesado. Os ramos de corniso desenham um padrão obscuro no vidro da janela. E, de repente, a evidência atinge-me em cheio. A aura não é a da rapariguinha. Parece-se em tudo com ela, dir-se-ia quase uma cópia perfeita, mas não é exatamente igual. É mais como se fosse a cópia de um desenho colocado por cima do padrão original, quando alguns pormenores ficam distorcidos. O penteado é diferente, para começar, e as roupas são outras. Toda a sua postura mudou. Inconscientemente, abano a cabeça. Não é a rapariguinha que ali está sentada - é outra pessoa qualquer. Algo está a acontecer, algo de muito importante. Aperto as mãos com força por baixo da roupa de cama e o meu coração, incapaz de se conter por mais tempo, desata a bater desenfreadamente, num outro tempo, incerto e errante.

Como se esse som fosse uma espécie de sinal, a silhueta na cadeira começa a mexer-se muito devagarinho, como quando um navio enorme muda de rumo. Deixa de apoiar a cabeça nas mãos e vira-se na minha direção. Com um baque, apercebo-me de que se trata da Sr.a Saeki. Engulo em seco e fico sem conseguir respirar. Estou a falar da atual Sae-kisan. Da verdadeira Saeki-san. Ela deixa-se ficar a olhar para mim durante um bocado, visivelmente concentrada, como quando está a contemplar o quadro, e é então que uma ideia me passa pela cabeça. O eixo do tempo. Algures, em parte incerta, o tempo conhece uma mudança estranha e inquietante, em que realidade e sonho se confundem. Como acontece quando a água do mar se mistura com a do rio. Esforço-me por encontrar o significado oculto por detrás das aparências, mas nada parece fazer sentido.

Por fim, ela levanta-se e vem até junto de mim, costas direitas e passo firme, como é seu costume. Está descalça, e a madeira do soalho range levemente à medida que ela caminha. Em silêncio, senta--se na beirinha da cama e permanece calada durante um tempo. O seu corpo tem substância e peso, sem sombra de dúvida. Veste uma blusa de seda branca e uma saia pelos joelhos azul-marinho. Aproxima-se e toca-me na cabeça. Os seus dedos brincam com o meu cabelo. Torna a levantar-se e, sob a claridade da luz que espreita lá de fora, começa a despir-se. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não dá mostras de ter pressa, mas também não hesita. Com movimentos suaves, desabotoa naturalmente a blusa, despe a saia e tira as cuequinhas. Uma a uma, as peças de roupa macia vão deslizando para o chão sem fazer barulho. Só então me apercebo de que dorme. Tem os olhos abertos, mas é como se fosse sonâmbula, lodos os movimentos são feitos a dormir.

Uma vez nua, mete-se dentro da cama estreita e põe o seu pálido braço à minha volta. Sinto a respiração quente dela no pescoço, os pelos púbicos a roçarem a minha coxa. Deve pensar que eu sou o sou namorado de outros tempos e procura repetir os gestos que eles costumavam fazer neste mesmo quarto. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. A dormir profundamente. A sonhar.

Penso que o melhor é acordá-la. Era bom que acordasse Está a cometer um erro terrível e cabe-me alertá-la para isso. Não estamos no domínio do sonho, mas sim na vida real. Mas acontece tudo tão depressa que eu não tenho força para lutar contra o curso natural das coisas. completamente despojado do sentido de equilíbrio, sinto-me como se estivesse a ser sugado para dentro de um buraco negro.

Com que então, foste sugado para dentro de um buraco ne­gro.

Sem seres tido nem achado, o sonho dela envolveu a tua mente. Suave e quente, como líquido amniótico. A Saeki-san despe a tua T--shirt, puxa as tuas boxers para baixo. Beija-te o pescoço uma e outra vez e depois estende a mão e agarra-te no pénis, que por esta altura já está duro como porcelana. Envolve suavemente os testículos com as mãos e, sem dizer palavra, guia os teus dedos para a sua região púbica. Tem a vagina quente e húmida. Beija o teu peito, chupa os teus mamilos. Sentes os teus dedos serem lentamente sugados para dentro dela.

Onde é que começa a tua responsabilidade, não me dizes? Afastando a névoa turva que embota o teu olhar, esforças-te por saber em que pé te encontras. Procuras descobrir para onde vai a corrente, tentando sempre manter-te firme no eixo do tempo. Mas não consegues dar com a fronteira que separa o sonho da realidade. Nem sequer com a linha que divide o que é real e o que é possível. Só sabes que estás numa posição difícil. Numa posição delicada - e perigosa. Sentes-te a ser arrastado para o fundo, e vês-te impotente, incapaz de absorver os princípios da profecia, ou sequer da lógica. Como um rio que inunda as margens e tudo arrasta à sua volta, inundando a cidade, deixando todos os sinais da estrada submersos pela água. E tudo o que consegues ver são os telhados escuros das casas afundadas.

Estás virado para cima e tens a Saeki-san por cima de ti. Ela guia o teu pénis duro para dentro dela.

Sentes-te impotente. É ela quem manobra a situação. De uma forma quase gráfica, desenha círculos com o corpo. Como os ramos de um salgueiro, o seu cabelo liso toca nos teus ombros e estremece sem rumor. Pouco a pouco, tens a sensação de ir sendo sugado para dentro da lama quente de um lago de lama quente. Tudo no mundo em redor fica quente, húmido e adquire contornos indistintos, apenas o teu pénis se mantém duro e reluzente. Fechas os olhos e começas a sonhar. Perdes a noção do tempo. A maré sobe, a Lua nasce. E tu vens-te rapidamente, sem que possas fazer o que quer que seja para o impedir. Vens-te uma vez e outra e outra dentro dela. As paredes quentes da vagina dela contraem-se, recebendo o teu sémen. E durante todo este tempo ela continua sempre a dormir, de olhos bem abertos. Está num mundo diferente, é para lá que a tua semente se encaminha - engolida por esse mundo à parte.

Deixo passar muito tempo sem me mexer. Estou como que paralisado. Paralisado, ou então nunca mais me decido a mexer-me. Ela sai de cima de mim e deita-se a meu lado. Passado um bocado, levanta-se, veste as cuecas, enfia a saia e abotoa a blusa. Devaga­rinho, estica uma vez mais a mão e despenteia-me. Tudo isso acontece sem trocarmos palavra. Desde que entrou no quarto que ela ainda não disse nada. O único som que chega aos meus ouvidos é o ranger do soalho e o vento, que não para de soprar lá fora. A respiração do quarto, o estremecimento da janela. É esse o coro em pano de fundo, por trás de mim.

Sempre a dormir, ela atravessa o quarto e vai-se embora. Abre apenas uma fresta da porta e esgueira-se lá para fora, com a delicadeza de um peixe sonhador. A porta fecha-se sem fazer ruído. Vejo-a sair da cama, incapaz de me mexer. Sinto os dedos rígidos e os lábios selados. As palavras dormem o seu sono profundo num recanto do tempo.

Incapaz de mexer um músculo que seja, fico ali deitado, de ouvido à escuta. Imagino que oiço o som do seu Golf no parque de estacionamento, mas só se ouve silêncio. O vento dispersa as nuvens e leva-as para longe. Os ramos de corniso tremem e agitam-se e estremecem na escuridão como inúmeras pequenas facas. A janela é a janela para o meu coração, a porta, a porta para a minha alma. Permaneço acordado até de manhã, contemplando a cadeira vazia.

 

Saltaram os dois por cima de uma sebe baixa e mergulharam no bosque. O Coronel Sanders tirou do bolso uma pequena lanterna e alumiou o trilho estreito. O bosque não era muito cerrado, mas estava repleto de árvores muito, muito antigas, cujos ramos se agitavam ameaçadoramente lá em cima, formando uma espécie de telheiro sobre as cabeças dos dois homens. A medida que caminhavam, chegava-lhes ao nariz um forte odor a ervas.

O Coronel Sanders ia à frente, mostrando-se por uma vez capaz de imprimir ao seu andamento um ritmo vagaroso. Colocava cautelosamente um pé à frente do outro, enquanto com a lanterna ia alumiando o caminho. Hoshino seguia mesmo atrás dele.

Ei, Coronel, isto é alguma espécie de desafio ou quê? - per­guntou ele ao homem das costas brancas que ia à sua frente. - Uau, um fantasma! Que medo!

Porque não ficas calado, para variar? - retorquiu o Coronel Sanders, sem se virar.

Tudo bem... - De repente Hoshino deu por si a pensar em Nakata. Provavelmente continuava ferrado no sono. Era como se o termo «ferrado no sono» tivesse sido inventado só para ele. Mal ferrava a dormir, não havia nada a fazer. Que tipo de sonhos é que o homem teria durante aqueles sonos dignos de entrarem para o livro dos recordes? Hoshino não fazia a mínima ideia. - Ainda estamos muito longe?

Estamos quase a chegar - replicou o Coronel Sanders.

Diga-me uma coisa - começou Hoshino.

O quê?

O senhor é realmente o Coronel Sanders? O Coronel Sanders aclarou a garganta.

Para dizer a verdade, não. Limitei-me a pedir-lhe a imagem emprestada durante um tempo.

Era o que eu pensava - afirmou Hoshino. - Nesse caso, quem é o senhor realmente?

Não tenho nome.

Como se orienta sem ter nome?

Sem problema. No fundo, é a mesma coisa que não ter forma.

Nesse caso é o mesmo que ser um peido?

Podes dizê-lo. Uma vez que não tenho forma, posso ser tudo e mais alguma coisa.

Ah.

Desta vez, alimentei o desejo de adotar um modelo familiar, de um famoso ícone do capitalismo. Ainda brinquei com a possibilidade de me transformar no Rato Mickey, mas a Disney é muito rigorosa no que respeita aos direitos reservados das suas personagens.

No meu caso, não me parece que gostasse de ter o Rato Mickey a fazer o papel de chulo.

Percebo o teu ponto de vista.

Além do mais, deixe-me que lhe diga outra coisa. Andar vcslido como o Coronel Sanders fica-lhe a matar e assenta que nem uma luva à sua personalidade.

Mas se eu não tenho personalidade. Nem isso nem coração. «E, não sendo por natureza deus ou buda, sou apenas uma coisa Insensível. Assim sendo, não tenho de julgar as virtudes ou os vícios nos humanos, não entro nesse terreno.» Mas que...?

Uma deixa dos Contos da Chuva e da Lua, de Ueda Akinari. Duvido de que conheças.

Agora é que me apanhou. É certo que nunca li, mas não posso dizer que me orgulhe disso.

Apareço aos teus olhos com a forma humana, mas não sou nenhum deus nem Buda. Como não tenho sentimentos, não sou como os comuns mortais e oriento-me por outras regras. Essa é que é essa.

Hmm - disse Hoshino. - Não estou bem certo de ter seguido o seu raciocínio, mas o que me está a querer dizer é que não é uma pessoa de carne e osso, mas também não é nenhum Deus nem nenhum Buda. É isso?

«Nem Deus nem Buda, apenas uma coisa insensível. Como tal, não tenho de julgar as virtudes ou os vícios dos humanos, não entro nesse terreno.»

E isso quer dizer o quê?

Que uma vez que não sou Deus nem Buda, não preciso de fazer juízos de valor a fim de decidir se as pessoas são boas ou más. Assim como não tenho de me reger pelos conceitos do bem e do mal.

Por outras palavras, existe para além do bem e do mal?

Lisonjeias-me, meu rapaz. Não se pode propriamente dizer que esteja para além do bem e do mal - o que acontece é que isso pouco ou nada me importa. O bem e o mal não me dizem nada. Sou um homem muito pragmático. Dêem-me um objetivo neutro e tudo o que me interessa é realizar a função para a qual fui programado.

Realizar a função? O que é que isso quer dizer?

Não andaste na escola?

Sim, andei, mas era uma escola comercial. Passei o tempo todo a mexer em motos e a curtir uma de motoqueiro.

Pois eu, a minha especialidade é mais supervisionar. Cabe-me apenas levar a bom porto as missões de que me incumbiram. Verificar a relação de forças entre os vários mundos e certificar-me de que está tudo em ordem, por forma a garantir que a relação entre causa e efeito funcione e que as coisas desempenhem o seu papel original. Só assim é que se consegue que os vários significados não andem todos misturados. Por forma a que o passado venha depois do presente, e só depois o futuro. E certo que às vezes as coisas se descontrolam um bocadinho. Acontece. Nada é perfeito. Por mim, desde que o livro do deve-e-haver apresente um balanço positivo, não há crise. Para te dizer a verdade, não sou uma pessoa que ligue muito às questões de pormenor. O termo técnico para isso é «processamento sensorial abreviado de informação em tempo real», mas esta conversa levar-nos-ia muito longe, além de que eu bem sei que isto é muita areia para a tua camioneta. Por isso, vamos ao que interessa. Isto para dizer que não sou picuinhas e que não posso dar-me ao luxo de passar a vida a queixar-me disto e daquilo. Claro está que, se as contas não derem certas, então nesse caso, sim, temos um problema. E aí sou obrigado a prestar contas, ou não fosse eu o responsável.

Tenho uma questão para si. Se é assim tão importante, como é que anda armado em chulo nas ruas de má fama de Takamatsu?

Não sou uma pessoal Quantas vezes é que tenho de repetir isto?

Por mim é igual ao litro...

A minha função, na qualidade de chulo, consiste em trazer--te até aqui. Preciso que me dês uma mãozinha aí num negócio, por isso podes considerar o bom tempo que te proporcionei como uma espécie de recompensa antecipada. Para celebrar em beleza.

Dar uma mãozinha?

Como já te expliquei, não tenho forma. Sou um ser conceptual, metafísico. Seja qual for a forma que adote, falta-lhe sempre o conteúdo. Mas para levar por diante uma ação real preciso de ter ao meu lado alguém com substância.

E é nessa altura que eu entro em cena? Sou eu a tal substância?

Exatamente – retorquiu

Coronel Sanders.

Durante mais algum tempo continuaram os dois a percorrer o carreiro que entrava pela mata dentro, até que foram ter a um pequeno santuário que ficava por baixo de um imponente carvalho. O santuário eslava velho e delapidado, sem oferendas nem decorações de espécie alguma.

O Coronel Sanders fez incidir a luz da lanterna sobre o santuário.

A pedra está lá dentro. Abre a porta.

E melhor não! - replicou Hoshino. - Não devemos abrir a porta que dá acesso a um santuário assim como quem não quer a coisa. Ou então corremos o risco de ser amaldiçoados. Não vá cair o nariz a uma pessoa, ou as orelhas, ou uma coisa do género.

Não digas disparates. Se disse que podias, é porque podes, lula mas é de fazer o que te digo. Vais ver que não cairá sobre ti nenhuma maldição. Não tenhas medo, que nem o nariz nem as ore­lhas le vão cair. Meu deus, consegues ser mesmo bola de elástico!

Nesse caso, porque não abre você a porta? Eu não me quero meter nisso.

Quantas vezes preciso de te explicar?! Já te disse que não tenho corpo. Sou um conceito abstrato. Sozinho, não consigo fazer nada. Por isso é que te meti ao barulho e me dei a toda esta traba­lheira para te trazer até aqui. E te deixei gozar três vezes pelo preço de uma.

Sim, meu, e pode crer que ela foi espantosa... mas arrombar um santuário. Nem pensar. O meu avô sempre me disse que os santuários não eram locais para brincadeiras. E ele levava essas coisas muito a sério.

Deixa lá o teu avô em paz! Não me venhas agora com toda essa treta das superstições típicas da Prefeitura de Gifu e essa moral provinciana de pacotilha, estás a ouvir? Não temos tempo para essas coisas!

Sempre a protestar, Hoshino lá abriu a porta do santuário e o Coronel Sanders iluminou o seu interior com a ajuda da lâmpada. E não querem lá ver que existia mesmo uma antiga pedra, redonda, lá dentro? Tal como Nakata tinha dito, era do tamanho de um grande bolo de arroz, branca e lisa.

É esta a pedra? - perguntou Hoshino.

Esta mesmo - confirmou o Coronel Sanders. -Trá-la cá para fora.

Espere aí. Isso seria roubar.

Não interessa. Ninguém vai dar pelo desaparecimento de uma pedra destas. E mesmo que deem, ninguém quer saber disso para nada.

Sim, mas a pedra é propriedade de Deus, certo? Ele não vai gostar de saber que nós a levámos daqui.

O Coronel Sanders cruzou os braços e fitou Hoshino nos olhos. - Quem é Deus?

A questão obrigou Hoshino a pensar. O Coronel Sanders não lhe deu tréguas.

Sim, qual é o aspeto Dele? O que é que Ele faz?

Não me pergunte a mim. Deus é Deus. Está em toda a parte, vê tudo o que fazemos, distingue o bem do mal.

Mais parece um árbitro de futebol.

Sim, não anda longe disso.

Isso quer dizer que Deus usa calções, corre de apito na boca e sempre de olho no relógio?

O senhor bem sabe que não é isso que eu quero dizer -replicou Hoshino.

E os deuses japoneses são da família dos deuses estrangeiros? Ou serão antes inimigos?

Como é que eu hei-de saber?

Escuta uma coisa que te vou dizer, meu caro Hoshino. Deus só existe na cabeça das pessoas. Aqui no Japão, o conceito de Deus sempre foi entendido de uma maneira aberta. Vê só o que aconteceu a seguir à guerra. Douglas Mac Arthur ordenou ao divino imperador que deixasse de ser Deus, e ele obedeceu, fazendo um discurso em que se dizia um homem vulgar, igual a todos os outros. E foi assim que depois de 1946 ele deixou de ser Deus. São assim os deuses japoneses - adaptam-se e ajustam-se à realidade. Aparece um militar americano qualquer pendurado num cachimbo barato, altera a ordem e pronto, muda tudo - não há Deus para ninguém. Uma atitude muito pós-moderna. Quando dá jeito que Deus esteja aqui, Ele está. Quando não dá, Ele deixa de estar. Se é isso que é ser Deus, vou ali e já venho.

Tudo bem...

Pronto, vamos lá, trata mas é de pôr a pedra cá para fora. Assumo inteira responsabilidade. Posso não ser Deus nem Buda, mas ainda tenho os meus conhecimentos. Não deixarei que sobre ti recaia nenhuma maldição.

De certeza?

Tens a minha palavra de honra.

Com todo o cuidado, como se estivesse a levantar uma mina, I loshino estendeu o braço e pegou na pedra.

Pesa que eu sei lá.

Não estamos propriamente a falar de tofu. Que eu saiba, as pedras costumam ser pesadas.

Quando eu digo que é pesada, quero dizer que é pesada mesmo para uma pedra - afirmou Hoshino. - E agora, o que é que faço com isto?

Leva-a para casa e arranja espaço para ela ao pé da cama. Deixa o resto comigo.

Quer que eu a leve comigo para a pensão?

Se é assim tão pesada, podes sempre apanhar um táxi -retorquiu o Coronel Sanders.

Sim, mas será que posso transportá-la para longe?

Escuta uma coisa. Todos os bens materiais se encontram em circulação. A terra, o tempo, os conceitos, o amor, a vida, a fé, a justiça, o mal - são tudo coisas fluidas e em transição. Não cristalizam eternamente num mesmo lugar e debaixo de uma mesma forma. No fundo, o próprio universo não passa de uma espécie de monumental serviço de transporte e logística, tipo Fedex.

Hmm...

Esta pedra encontra-se aqui sob a forma de pedra apenas temporariamente. Transportá-la para outro sítio não vai mudar nada.

Tudo isso é muito bonito, mas, afinal de contas, o que tem esta pedra assim de tão especial? Na verdade, não me parece nada do outro mundo.

A pedra em si não tem nenhum significado oculto. Mas as circunstâncias exigem que se faça alguma coisa e, nesta altura do campeonato, acontece que essa coisa é a pedra. Anton Tchekhov colocou a questão melhor do que ninguém ao dizer que, se aparece uma pistola numa história, ela acaba por ter de ser disparada. Sabes o que ele queria dizer com isto?

Não.

OCoronelSanderssuspirou

Também não me parecia. Só perguntei por uma questão de boa educação...

Muito agradecido.

O que Tchekhov quer dizer é o seguinte: a necessidade é, em si mesma, um conceito, e possui uma estrutura que é diferente da da lógica, da moral ou do significado. A sua função assenta inteiramente no papel que desempenha. Todas as coisas que não desempenham uma função, não têm razão de existir. O que a necessidade pede tem forçosamente de existir. É aquilo a que se chama dramaturgia. A lógica, a moral ou o significado não são para aqui chamados. Tem tudo que ver com as relações que se estabelecem. Tchekhov entendia muito bem o que era a dramaturgia.

Isso é muita areia para a minha camioneta.

A pedra que carregas contigo é como a pistola de Tchekhov. Tem de ser disparada. E, é esse sentido, que lhe dá importância. Trata-se de uma pedra especial, mas não tem nada de sagrado. Por isso não precisas de temer seja que maldição for.

Hoshino enrugou a testa.

Esta pedra é uma pistola?

Apenas num sentido metafórico. Não te preocupes, que daí não vão começar a voar balas nenhumas. - O Coronel Sanders tirou do bolso um enorme pedaço de tecido furoshiki e entregou-o a Hoshino. - É melhor embrulhares a pedra nisto. Não queremos que ninguém a veja.

Bem me parecia que estávamos a cometer um roubo!

És surdo, ou fazes-te? Qual roubo, qual carapuça? Precisamos dela por uma razão importante, e levamos a pedra emprestada, é só isso.

Pronto, pronto, já percebi. Pelas regras da dramaturgia, cabe-nos proceder obrigatoriamente à transferência do material.

Precisamente - afirmou o Coronel Sanders. - Vês, afinal sem­pre percebes aquilo que eu estou a dizer.

Hoshino carregou a pedra embrulhada no tecido azul-marinho, percorrendo de novo o trilho através da mata, com o Coronel Sanders a alumiar o caminho com a sua lanterna. A pedra era muito mais pesada do que parecia e ele viu-se obrigado a parar umas poucas de vezes para recuperar o fôlego. Deram rapidamente a volta por trás do santuário para evitar serem vistos e foram dar à rua principal. O Coronel Sanders fez sinal a um táxi para parar e ajudou Hoshino a meter a pedra lá dentro.

Quer então dizer que tenho de a colocar junto à minha almofada? - quis saber Hoshino.

Exato - respondeu o Coronel Sanders. - É quanto basta. E não te ponhas com ideias. O importante é teres a pedra contigo.

Não sei como lhe hei-de agradecer. Quer dizer, ter-me levado alô ao lugar onde se encontrava a pedra.

O Coronel Sanders fez um esgar de desdém.

Não tens nada que agradecer. Não fiz mais do que a minha obrigação. E agora, confessa, meu rapaz, que tal a gaja?

Incrível.

Isso é que importa.

Mas ela era verdadeira, não era? Não se tratava do espírito de nenhuma raposa nem de uma abstração nem de uma coisa com­plicada desse género, pois não?

Nem espírito nem abstração. Uma verdadeira máquina de fazer exo. Capaz de garantir o mais puro prazer e sempre a acelerar. Não foi fácil descobri-la. Por isso, podes ficar descansado.

É bom saber isso - deixou escapar Hoshino.

Quando Hoshino depositou a pedra envolta no pano ao lado da almofada de Nakata já passava da uma da tarde. Ele achou que era melhor deixá-la ficar ao lado da cabeceira do velho, a fim de afastar de si uma eventual maldição. Como seria de esperar, Nakata continuava a dormir como uma pedra. Hoshino desatou o pano por forma a deixar a pedra bem à vista. Vestiu o pijama, arrastou-se para o outro futon e no minuto seguinte estava a dormir. Teve um sonho breve - sonhou com um deus de calções e pernas peludas, a correr no meio de um recinto desportivo e a tocar flauta.

Às cinco da manhã, Nakata acordou e viu a pedra à cabeceira.

Pouco passa da uma quando levo uma chávena de café ao escritório do primeiro andar. A porta, como sempre, está aberta. A Sr.a Saeki está à janela, a olhar lá para fora, uma mão pousada no caixilho. Pensará em quê? Com a outra mão, brinca com os botões da blusa. Vejo que não há nem caneta nem papel em cima da secretária e é lá que pouso a chávena de café. Um fino véu de nuvens escurece o céu e, por uma vez, não se ouve o canto dos pássaros.

Quando ela finalmente dá por mim, afasta-se da janela, senta-se à secretária e bebe um gole de café. Com a mão faz-me sinal para me sentar na mesma cadeira de sempre. Obedeço e fico ali a olhar para ela, a vê-la beber o café. Será que se lembra minimamente do que aconteceu a noite passada? Não sei dizer. Olhando-a, dir-se-ia que sabe tudo e, no entanto, não sabe nada. Vem-me à memória a imagem da sua nudez, a sensação de tocar diferentes partes do seu corpo. Não tenho a certeza de ser o corpo da mulher que tenho diante de mim. Na altura, porém, lembro-me de ter a certeza absoluta.

Veste uma blusa verde-clara que parece seda e uma saia justa de cor bege. Usa uma fina gargantilha de prata à volta do pescoço, que lhe dá um ar muito chique. Os seus dedos esguios entrelaçados sobre a secretária dão forma à imagem de um objeto de arte primorosamente cinzelado.

Que tal? Como é que te dás por esta parte do mundo?

Estás a referir-te a Takamatsu?

Sim.

Não sei dizer ao certo. Ainda não vi grande coisa, tirando um ou dois sítios que ficam em caminho. Esta biblioteca, claro está, o ginásio, a estação, o hotel... e pouco mais.

Achas a cidade monótona? Abano a cabeça.

Ainda é cedo para dizer. Não tenho tido tempo para me aborrecer, além de que, vendo bem, as cidades são todas parecidas. Porque é que pergunta? Acha a cidade aborrecida?

Ela encolhe ligeiramente os ombros.

Achava, quando era nova. Estava mortinha por me ir embora. Por sair daqui e ir para outro lugar, onde tivesse à minha espera algo de especial, onde pudesse encontrar pessoas interessantes.

Pessoas interessantes?

A Sr.a Saeki abana ligeiramente a cabeça.

Era muito nova - acrescenta ela. - E é normal a gente nova pensar assim. Tu não?

Não, nunca pensei que, se escolhesse outro caminho, iria encontrar alguma coisa especial à minha espera. Tudo o que queria era estar num outro lugar, mais nada. Em toda a parte menos ali.

Nogata, em Nakano. Onde eu nasci e cresci. Ao ouvir aquele nome, fica com um brilhozinho nos olhos. Pelo menos é essa a impressão que me dá.

Desde que saísses de lá, era-te indiferente o local do teu destino? - interroga ela.

Exatamente - assevero eu. - Tanto me fazia ir para um sítio ou para outro. Só sei que tinha de sair de lá, ou ficaria com a vida estragada. Por isso, vim-me embora.

Ela olha para baixo, para as mãos pousadas na secretária. O seu olhar traduz uma grande convicção. Depois, muito baixinho, diz:

Senti precisamente a mesma coisa, quando me fui embora daqui, com vinte anos. Pensava que não conseguiria sobreviver, caso ficasse a viver nesta cidade. E estava convencida de que nunca mais tornaria a pôr os pés neste sítio enquanto fosse viva. Nunca na minha vida pensei voltar, mas as coisas tomaram outro rumo e aqui me tens. Pode dizer-se que estou a recomeçar tudo outra vez.

As nuvens que cobrem o céu continuam a ser as mesmas e não há sombra de vento. A paisagem ao fundo parece o cenário pintado num estúdio de cinema.

Na vida acontecem as coisas mais incríveis - alvitra ela.

Isso quer dizer que ainda posso um dia ir parar ao sítio de onde vim?

Não sei. Tudo depende de ti, do que o futuro te reservar lá mais para diante. Mas estou em crer que os lugares onde uma pessoa nasce e morre são importantes na vida de uma pessoa. O sítio onde se nasce, esse ninguém pode escolher, mas o sítio onde se quer morrer pode, até certo ponto, ser escolhido. - Ela diz-me tudo isto com toda a serenidade, sempre a olhar pela janela, como se estivesse a falar com um amigo imaginário lá fora. Depois, parecendo lembrar-se de mim, vira-se. - Gostaria de saber o que me deu para me pôr para aqui a entrar em confidências contigo.

Talvez por eu não ser de cá e por termos uma diferença de idade tão grande.

Tens razão, deve ser por isso.

Durante para aí vinte ou trinta segundos, ficamos em silêncio, mergulhados nos nossos pensamentos. Ela pega na chávena e bebe mais um gole de café.

Decido que chegou o momento de abrir o meu coração.

Senhora Saeki, também eu tenho uma confissão a fazer. Ela olha para mim e sorri.

Com que então, agora trocamos segredos só nossos.

O meu não é propriamente um segredo. É mais uma teoria.

Uma teoria? - repete ela. - Tens uma teoria que me queres confidenciar?

Sim.

Parece interessante.

Vem no seguimento da conversa que tivemos - adianto eu. Quer então dizer que a senhora regressou a esta cidade para morrer?

Um ténue sorriso aparece nos seus lábios, como uma lua pálida ao nascer.

Se calhar. Mas isso é apenas um pormenor de somenos. Quer se venha para um sítio para viver ou morrer, as coisas que se fazem lodos os dias não mudam.

Tem vontade de morrer?

É uma boa pergunta... - confessa ela. - Nem eu própria sei. O meu pai tinha vontade de morrer.

O teu pai morreu?

Há pouco tempo - digo. - Há muito pouco tempo.

E o que levava o teu pai a querer morrer? Respiro fundo.

Durante muito tempo, não consegui perceber. Mas agora acho que já sei. Depois de aqui estar, percebi finalmente porquê.

Porquê?

Creio que o meu pai estava apaixonado por si, mas não podia, de maneira alguma, tê-la de volta. Ou talvez, desde o princípio, ele não tenha conseguido fazê-la realmente sua. No fundo, ele tinha cons­ciência disso e era por isso que desejava morrer. E também era por isso que ele queria que o filho dele, e também seu filho, acabasse com ele. Por outras palavras, eu. E também queria que eu ficasse consigo e com a minha irmã mais velha. Era essa a sua profecia, a sua maldição. E programou tudo isso para mim.

A Sr.a Saeki volta a colocar a chávena que tinha na mão em cima do pires, com um som forte mas, a um tempo, neutro. Ela olha--me nos olhos, mas é como se não me estivesse verdadeiramente a ver. Tem o olhar fixo perdido algures, no vazio.

E eu conheço o teu pai? Abano a cabeça.

Como disse, não passa de uma teoria.

Ela deixa cair as mãos em cima da secretária, uma em cima da outra. Ainda não se apagaram os vestígios do ténue sorriso.

De acordo com a tua teoria, nesse caso eu sou a tua mãe.

Exatamente - digo eu. - Viveu com o meu pai, teve-me e depois partiu, deixando-me para trás. No Verão em que eu fiz qua­tro anos.

E essa é que é a tua teoria? Digo que sim com a cabeça.

O que explica por que razão ontem me perguntaste se eu tinha filhos.

Volto a acenar afirmativamente.

E eu disse que não te podia responder. Que não te podia dizer nem que sim nem que não.

Bem sei.

Nesse caso, a tua teoria continua no campo das hipóteses.

Volto a fazer que sinal que sim.

Exato.

E, diz-me uma coisa... como é que o teu pai morreu.

Foi assassinado.

Não foste tu que o mataste, pois não?

Não, não fui. Até porque eu tenho um álibi.

Mas não tens a certeza? Abano a cabeça.

Não, não tenho a certeza.

Ela leva a chávena à boca uma vez mais e bebe um golinho, como se o café não soubesse a nada.

E por que razão o teu pai te lançou essa maldição?

Deve ter querido que eu acatasse a vontade dele - alvitro eu.

De me desejar, é isso que queres dizer?

Exato.

A Sr.a Saeki fica a olhar um bocado para a chávena que tem na mão. Em seguida, torna a olhar-me de frente.

E então, desejas-me?

Faço que sim com a cabeça, uma única vez e com toda a certeza do mundo. Ela fecha os olhos. Deixo-me ficar durante muito tempo a observar as suas pálpebras e através delas vejo a escuridão com que ela se confronta. Mostram várias formas estranhas que pairam um instante antes de desaparecer.

Por fim, abre os olhos.

Em teoria, desejas-me? E isso?

Não, é mais do que uma teoria. Desejo-a, e isso é mais forte do que qualquer teoria.

Queres dormir comigo? Faço que sim com a cabeça.

Nota-se um brilho por entre os seus olhos semicerrados.

Alguma vez dormiste com uma mulher?

Digo outra vez que sim com a cabeça. A noite passada, contigo, penso. Mas não o digo. Ela não se lembra de nada.

Dos seus lábios solta-se uma espécie de leve suspiro.

Kafka, como sabes, tu só tens quinze anos, e eu mais de cin­quenta.

Não é assim tão simples. Não estamos aqui a falar do tempo nessa dimensão. Eu conheço-a com quinze anos. Apaixonei-me por si quando a senhora tinha quinze anos. Estou profundamente apaixo­nado por essa rapariga. E é através dela que a amo. A rapariguinha

dentro de si, adormecida em si. A rapariga que acorda em si enquanto a senhora dorme. Falo do que sei e vi.

Ela volta a fechar os olhos, e as pálpebras tremem ligeiramente.

Estou apaixonado por si, e isso é o que interessa. Quero que saiba isso, Saeki-san.

Como alguém sem fôlego que sobe do fundo do mar à tona de água para respirar, ela procura as palavras sem as encontrar.

Kafka, importas-te de sair? Gostaria de ficar algum tempo sozinha - diz ela. - E fecha a porta atrás de ti.

Aceno com a cabeça e levanto-me para me ir embora. Mas há qualquer coisa que me impede de sair. Paro ao pé à porta, viro-me e regresso para junto dela. Estendo o braço e toco-lhe no cabelo. Os meus dedos afagam a pequena orelha que se esconde por baixo do cabelo. E mais forte do que eu.

A Sr.a Saeki levanta a cabeça, mostra-se surpreendida e, após um momento de hesitação, põe a sua mão em cima da minha.

Deixa-me que te diga que estás a ir demasiado longe com a tua teoria. Tens consciência disso?

Faço sinal que sim.

Bem sei. Mas as metáforas ajudam a reduzir a distância.

Mas nem tu nem eu somos metáforas.

Claro que não - defendo-me eu. - Mas as metáforas ajudam a eliminar aquilo que nos separa.

Ela esboça um leve sorriso ao olhar para mim.

Essa deve ser a frase de engate mais rebuscada que alguma vez ouvi na minha vida.

Toda esta história é profundamente bizarra, mas o certo é que sinto que, aos poucos, me vou aproximando da verdade.

Referes-te a uma verdade metafórica? Ou a uma verdade real no sentido metafórico? Ou acreditas que estas duas verdades se completam?

Independentemente da resposta, o que sei é que não aguento mais esta tristeza que me invade - confesso-lhe.

Comigo passa-se o mesmo.

Nesse caso, sempre voltou a esta cidade para morrer. Ela abana a cabeça.

Para ser franca, não ando propriamente a ver se morro. Espe­ro só que a morte venha ao meu encontro. Como pelo comboio na estação.

E esse comboio, acaso sabe quando ele chega?

Ela tira a mão de cima da minha e toca a ponta dos dedos nas pálpebras.

Kafka, gastei tanto da minha vida que dei cabo da minha cabeça. A determinada altura devia ter posto fim à vida, mas não o fiz. Sabia que não fazia sentido continuar a viver, mas, ao mesmo tempo, não tinha forças para acabar com tudo. E foi assim que acabei a marcar passo, desperdiçando muito do meu tempo e da minha energia em demandas vãs. Acabei por me prejudicar a mim própria e isso levou-me a magoar os outros que estavam à minha volta. Pode dizer-se que estou agora a pagar por isso, debaixo de uma espécie de maldição. Em tempos que já lá vão, tive qualquer coisa de muito completo, de demasiado perfeito. Depois disso, só me restava refugiar--me no desprezo que sentia por mim própria. Enquanto viver, estou condenada a essa maldição. Por esse motivo não receio a morte. E, em resposta à tua pergunta, sim, sei perfeitamente quando a morte virá.

Volto a pegar-lhe na mão. Está tudo em equilíbrio. Ao mínimo peso, os pratos da balança tanto podem pender para um lado como para o outro. Tenho de refletir. Tenho de tomar uma decisão.

Sae-kisan, quer dormir comigo? - pergunto.

Mesmo que se confirme a tal teoria de eu poder eventualmente ser tua mãe?

E como se eu me visse no meio de um turbilhão, e tudo à minha volta tivesse um duplo significado.

E a vez de ela ficar a refletir.

Comigo as coisas não se passam assim. No meu caso, as coisas não se apresentam com tantos matizes. Não há meio termo, ou é tudo ou nada.

E sabe qual dos dois é. Ela confirma com a cabeça.

Importa-se que lhe faça uma pergunta?

O que é?

Como é que se lembrou desses dois acordes?

Acordes?

Os acordes em Kafka à Beira-Mar. Ela fixa o olhar em mim.

Agradam-te?

Faço que sim com a cabeça.

Descobri esses acordes num velho quarto, há muito, muito tempo. Na altura, a porta do quarto estava aberta - conta ela, baixi­nho. - Um quarto que ficava muito, muito longe. - Então, fechando os olhos, mergulha nas recordações de infância.

Kafka, quando saíres fecha a porta atrás de ti - diz ela. E eu faço o que ela diz.

Depois de a biblioteca fechar, metemo-nos no carro e Oshima leva-me a jantar a um restaurante cuja especialidade é peixe fresco e marisco. Através da imensa janela, vê-se o mar noturno, e eu dou por mim a pensar em todas as criaturas que vivem debaixo de água.

De vez em quando convém saíres para comer qualquer coisa de jeito - alvitra ele. - Fica descansado. Não creio que a Polícia te traga debaixo de vigilância. Uma mudança de ambiente só nos faz bem.

Comemos uma salada enorme e dividimos uma dose de paella.

Um dia gostava de ir a Espanha - afirma Oshima.

Porquê Espanha?

Para lutar na Guerra Civil Espanhola.

Mas essa guerra já acabou há uma data de tempo.

Bem sei. Lorca morreu, Hemingway sobreviveu - diz Oshima. - Mas continuo a sentir-me no meu direito de ir até Espanha e tomar parte na Guerra Civil Espanhola.

Metaforicamente falando?

Com certeza - diz ele, olhando para mim de lado. - Não estou a ver um hemofílico de sexo indeterminado, que praticamente nunca pôs os pés fora de Shikoku, a ir combater na guerra em Espa­nha.

Atacamos a segunda pratada de paella, regada com Perrier.

Houve alguns desenvolvimentos no caso do meu pai? - per­gunto.

Nada que valha a pena referir, para dizer a verdade. Fora um ou outro artigo da praxe publicado na página cultural, os jornais não trouxeram nada. A investigação deve estar parada. O mais triste nesta história toda é que a hipótese de os polícias efetuarem alguma prisão tem vindo a diminuir em cada dia que passa. É como o mercado de ações. Isto para dizer que a Polícia japonesa nem sequer consegue dar com o paradeiro do filho desaparecido.

O tal miúdo de quinze anos.

Quinze, e com um passado de comportamento violento -acrescenta Oshima. - O tal jovem obsessivo que anda fugido.

E o que se sabe mais daquela história que metia coisas caídas do céu?

Oshima abana a cabeça.

Até isso parece estar no segredo dos deuses. Aparentemente, nada de estranho terá caído do céu, a não ser que se conte com aquela trovoada de pôr os cabelos em pé que rebentou para aí há dois dias.

É caso para dizer então que as coisas estão mais calmas. -Assim parece. Ou então isso pode querer dizer que nos encon­tramos no olho da tempestade.

Aceno com a cabeça, pego numa amêijoa, tiro o interior com o garfo, depois volto a pôr a concha numa travessa cheia de cascas vazias.

Continuas apaixonado? - pergunta Oshima.

E o senhor?

Se estou apaixonado, é isso? Aceno afirmativamente com a cabeça.

Por outras palavras, atreves-te a entrar num terreno pessoal e queres saber como é que vai isso de romance anti-social e se isso dá cor à minha pervertida vida privada, marcada pela falta de identidade sexual e pela homossexualidade?

Faço que sim com a cabeça e ele continua a desenrolar o fio à meada.

Sim, tenho parceiro, se é isso que queres saber - admite. Põe uma cara séria e come uma amêijoa. - Não é propriamente o tipo de amor arrebatado e dramático que se encontra numa ópera de Puccini nem nada que se pareça. Mantemos uma distância segura entre nós. Não estamos nem dependentes nem distantes um do outro e só nos encontramos de quando em quando. Mas acredito que entre nós existe um entendimento profundo e verdadeiro.

Um entendimento?

Quando Haydn compunha, fazia questão de se vestir a preceito, indo ao ponto de usar peruca empoada e tudo.

Apanhado de surpresa, olho para ele. O que tem Haydn que ver com Indo o resto?

Só assim ele conseguia compor.

Mas porquê?

Não faço ideia. Isso é entre Haydn e a peruca dele. Trata-se de uma coisa que mais ninguém iria entender. Inexplicável, imagino.

Diga-me uma coisa, quando está sozinho, acontece-lhe pensar no seu companheiro e ficar triste?

É claro - exclama ele. - Às vezes acontece. Quando a Lua fica azul[1], quando os pássaros voam para sul, quando...

Porque diz que é c/aro? - interessa-me saber.

Porque todo aquele que se apaixona está à procura da metade que lhe falta. Daí que toda e qualquer apaixonado se sinta triste ao pensar na pessoa amada. É como regressar passado muito tempo a um quarto onde se viveu bons momentos. É um sentimento per­feitamente natural. Não foste tu a descobrir esse sentimento, por isso não te deixes cair na tentação de querer registar a patente.

Pouso o garfo e olho para ele.

Um quarto velho, distante no tempo?

Exatamente - replica Oshima, com o garfo no ar, para dar mais ênfase à afirmação. - É apenas uma metáfora, como não podia deixar de ser.

Já passa das nove quando a Sr.a Saeki aparece no meu quarto. Estou sentado à secretária a ler um livro quando oiço o seu Golf a chegar ao parque de estacionamento. Ouve-se uma porta a bater. Sapatos de sola de borracha fazem ruído a esmagar o cascalho, aproximando-se devagar. E, por fim, ouve-se bater. Abro a porta e vejo-a ali. Por uma vez, completamente desperta. Veste uma blusa de seda às riscas, calças de ganga justas, mocassins brancos. Nunca a tinha visto de calças.

Este quarto traz-me muitas recordações - diz ela. Deixa-se ficar diante do quadro, a olhar para ele. - E este quadro também.

A praia que se vê no quadro fica aqui perto? - pergunto.

Gostas?

Faço sinal que sim.

Foi pintado por quem?

Um jovem artista que ficou hospedado nesse Verão em casa dos Komura - conta ela. - Não era nenhum pintor famoso, pelo menos nessa altura. Já me esqueci do nome dele. Mas era uma pessoa muito afetiva e, na minha opinião, fez um belo trabalho. E, contudo, há qualquer coisa neste quadro que... não sei definir ao certo - poderoso. Fiquei sentada ao lado dele o tempo todo e segui atentamente o seu trabalho. À medida que ele pintava, fartei-me de fazer sugestões, qual delas a mais estrambólica. Ficámos bons amigos, os dois, nesse Verão que já lá vai. Eu andava pelos meus doze anos. E o rapaz que aparece no quadro também tinha doze anos.

Parece o mar aqui perto.

Vamos dar uma volta - diz ela. - Vou mostrar-te o sítio.

Vou com ela até à beira-mar. Atravessamos um pinhal2 e per­corremos o estendal de areia. As nuvens estão a querer romper e a meia-lua brilha sobre as ondas. Pequenas ondas que mal chegam à beira-mar, mal chegam a enrolar na areia. Ela senta-se, e eu deixo--me ficar ali ao lado dela. A areia conserva ainda restos de calor.

Como se quisesse confirmar o ângulo, ela aponta com o dedo para um ponto na linha da costa.

Era exatamente ali - afirma ela. - Ele pintava aquele sítio aqui sentado. Colocava a cadeira de dobrar além, mandava o rapaz posar ali e punha o cavalete aqui mesmo. Lembro-me como se fosse hoje. Não vês como a posição da ilha é igual à que aparece no qua­dro?

Sigo com os olhos a ponta do seu dedo. E sim, os contornos da ilha são os mesmos. Contudo, por mais que eu fixe o olhar naquele ponto, o lugar não me parece ser o do quadro. Digo-lhe isso mesmo.

Está completamente mudado - replica a Sr.a Saeki. - Vendo bem, não te esqueças de que estamos a falar de algo que aconteceu há quarenta anos. As coisas mudam. Tens de contar com uma quantidade de coisas que desde então afetaram a linha costeira – as marés, o vento, os tufões. Mas estamos no sítio certo. Lembro-me per­feitamente de como tudo se passou. Além do mais, foi nesse Verão que me apareceu pela primeira vez o período.

Deixamo-nos ficar ali sentados a contemplar a paisagem. As nuvens mudam de forma e a luz da Lua projeta sombras sobre o mar. O vento sopra por entre os pinheiros, soando como uma infinidade de pessoas a varrerem o chão, todas ao mesmo tempo. Pego numa mão-cheia de areia e deixo-a escorrer por entre os dedos. Cai e, tal como acontece com o tempo perdido, torna-se parte do que já lá existe. Faço e torno a fazer este gesto vezes sem conta.

Em que pensas? - pergunta-me a Sr.a Saeki.

Em ir até Espanha - respondo eu.

O que é que lá vais fazer?

Comer paella.

E lutar na Guerra Civil Espanhola.

Isso foi há mais de sessenta anos.

Bem sei - replico eu. - Lorca morreu, Hemingway continuou vivo.

Mas gostarias de fazer parte disso? Aceno afirmativamente com a cabeça.

Sim. Fazer ir pelo ar pontes e coisas do género.

E apaixonares-te pela Ingrid Bergman.

Mas o que é certo é que estou aqui em Takamatsu, e é por si que estou apaixonado.

Azar o teu.

Ponho o meu braço à volta dos ombros dela. Pões o teu braço á volta dos ombros dela.

Ela encosta-se a mim. E ficamos assim durante muito tempo.

Sabes uma coisa? Há muito, muito tempo, fiz precisamente isto. Precisamente neste sítio.

Bem sei - digo-lhe.

Como sabes? - pergunta-me ela, olhos nos olhos.

Porque também eu aqui estava.

A fazer ir pelo ar pontes.

Metaforicamente falando

É evidente.

Apertaste-a nos teus braços, abraçaste-a, beijaste-a. Consegues sentir a resistência a abandonar o seu corpo.

Estamos todos a sonhar, não estamos? - pergunta ela. Estamos todos a sonhar.

Porque tiveste de morrer?

Não consegui impedi-lo - dizes tu.

Juntos, fazem o caminho que vos leva de volta à biblioteca. Apagam a luz do teu quarto, fecham as cortinas, caem abraçados na cama e fazem amor. Repetem os mesmos gestos feitos na noite anterior, da mesma maneira. Com duas diferenças, porém. Depois de terem feito sexo, ela começa a chorar. Esta é uma. Ela enterra o rosto na almofada e chora durante um tempo, em silêncio. Tu ficas sem saber o que fazer. Pousas suavemente a mão sobre o ombro dela. Queres dizer alguma coisa, mas não sabes o quê. As palavras morreram no vazio do tempo, caindo sem um som nas profundezas de um lago vulcânico. E quando ela desta vez se vai embora ouves o motor do seu carro. Esta é a segunda diferença. Ela liga o motor, desliga-o e fica assim durante algum tempo, como se estivesse a pensar em qualquer coisa, depois volta a rodar a chave e abandona o parque de estacionamento. O silêncio e o nada entre um gesto e outro deixa--te triste, terrivelmente triste. Como o nevoeiro que vem do mar, esse vazio abre caminho até ao teu coração, onde se instala durante muito, muito tempo. Até que finalmente se torna parte de ti.

Para trás ela deixa apenas uma almofada molhada de lágrimas. Com a mão sobre a tepidez da almofada húmida, vês o céu pela janela ficar pouco a pouco mais claro. Ao longe, ouve-se o crocitar de um corvo. A terra continua a mover-se lentamente. Mas, para além desses pormenores do quotidiano, existem os sonhos. E toda a gente vive nos seus sonhos.

 

Quando Nakata acordou, por volta das cinco da manhã, viu a enorme pedra à cabeceira. No futon mesmo ao lado, Hoshino continuava ferrado no sono com a boca meio aberta e o cabelo todo despenteado, o boné dos Chunichi Dragons atirado de qualquer maneira para cima da cama. A sua expressão a dormir transmitia uma mensagem inequívoca, tipo não-se-atrevam-a-acordar-me-aconteça-o-que-acontecer.

Nakata não se mostrou particularmente surpreendido ao ver a pedra ali. Num abrir e fechar de olhos, a sua mente adaptou-se à nova realidade e aceitou-a, sem questionar sequer o que teria acontecido pelo meio para ela agora lhe aparecer ali. Descortinar a relação entre causa e efeito nunca fora o seu forte.

Deixou-se ficar muito direito aos pés da cama, sentado sobre os calcanhares, com as pernas dobradas, e entreteve-se durante um bom bocado a inspeccionar atentamente a pedra. Depois estendeu a mão e tocou nela, como se estivesse a fazer festas a um gato adormecido. A princípio muito devagarinho, só com a ponta dos dedos, e em seguida, quando lhe pareceu seguro, atrevendo-se a passar cuidadosamente a mão por toda a superfície. Enquanto acariciava a pedra dava a impressão de estar longe dali, perdido nos seus pensamentos. Como se estivesse a ler um mapa, percorreu com a mão espalmada toda a superfície da pedra, memorizando cada relevo e cada fenda, tentando apreender a sua solidez. Depois levou a mão ã cabeça e esfregou o cabelo cortado rente, como se estivesse a tentai descobrir alguma correlação entre a pedra e a sua própria cabeça.

Por fim deixou escapar aquilo que parecia ser um suspiro, levantou-se, abriu a janela e pôs a cabeça de fora. A única coisa que se via eram as traseiras do prédio ao lado. Por sinal um edifício miserável e triste, do género onde as pessoas tristes passam a sua triste vidinha, um dia após o outro, a cumprirem o seu triste dever. O tipo de edifício a cair aos bocados, abaixo de toda a classificação, que se pode encontrar em toda e qualquer cidade e que inspiraria a Charles Dickens dez páginas da sua melhor prosa. As nuvens por cima do prédio tinham o aspecto de grandes bocados de lixo saídos de um aspirador que nunca havia sido limpo. Ou, então, poderia ser-se levado a pensar no conjunto de todas as contradições da Terceira Revolução Industrial que andam no ar, ali condensadas e a flutuar à deriva nos céus. Para o caso, ia tudo dar ao mesmo: vinha aí chuva. Nakata vis­lumbrou um gatinho preto escanzelado, de cauda em riste, que andava lá por baixo a patrulhar uma parede estreita entre dois edifícios. «Vamos ter trovoada», avançou ele. Mas as suas palavras não parece­ram ter eco junto do gato, que nem se dignou olhar para trás. Em vez disso, continuou paulatinamente a sua ronda e esgueirou-se por entre as sombras do prédio.

Nakata desceu até à entrada, de estojo com artigos de higiene pessoal na mão, e encaminhou-se para os banhos mistos1. Lavou a cara, escovou e fez a barba com lâmina. Cada operação levou o seu tempo. Lavou escrupulosamente a cara, nas calmas, escovou os dentes, nas calmas, fez a barba, sempre nas calmas. Aparou os pêlos do nariz com uma tesoura, endireitou as sobrancelhas, limpou os ouvidos. Se bem que fosse o tipo de pessoa que precisava de todo o tempo do mundo para fazer o que quer que fosse, nessa manhã demorou ainda mais do que era seu costume. Não havia mais ninguém a fazer as suas abluções matinais àquela hora tão matutina, e ainda faltava muito para o pequeno-almoço. Hoshino não tinha aspecto de se ir levantar nos tempos mais próximos. Com aquele espaço todo para ele, Nakata demorou o tempo que quis a fazer pachorrentamente a sua higiene pessoal ao espelho, enquanto pela cabeça lhe passavam as caras dos gatos que vira no livro que havia na biblioteca. Como não sabia ler, ficara na ignorância no que dizia respeito à raça a que pertenciam, mas isso não impedia que guardasse na memória uma imagem nítida de cada gato.

«O que há mais são gatos espalhados por esse mundo fora, disso não restam dúvidas», murmurou ele, limpando o ouvido com uma cotonete. Aquela que fora a sua primeira visita a uma biblioteca, acordara nele a dolorosa consciência do pouco que sabia. A quantidade de coisas que desconhecia sobre o mundo à sua volta era infinita. O infinito, por definição, não tem limites, e só de pensar nisso ficou com uma ligeira dor de cabeça. Desistiu e voltou a concentrar os seus pensamentos nos Gatos do Mundo. Como seria bom, pensou ele com os seus botões, chegar à fala com todo e cada um dos gatos que ali apareciam. Devia haver toda a espécie de gatos no mundo, todos com diferentes maneiras de pensar e de se expressar. Nakata interrogou-se: falariam os gatos estrangeiros outra língua diferente? Mas essa era mais uma questão difícil, e a cabeça de Nakata começou logo a doer-lhe.

Terminadas as abluções, fechou-se na casa de banho e tratou de fazer as suas necessidades. Para isso não precisava assim de tanto tempo. Finalmente, pegou no saco de plástico com as coisas de casa de banho e voltou para o quarto. Hoshino não se tinha mexido e continuava a dormir como uma pedra. Nakata apanhou a camisa havaiana e as calças de ganga do chão e dobrou a roupa toda direiti­nha. Em seguida depositou-a aos pés do futon, colocando o boné dos Chunichi Dragons no cimo da pilha, em jeito de título conferido a um aglomerado de ideias. Despiu o yukata e enfiou as calças e a camisa do costume. Depois esfregou as mãos e respirou profundamente.

Voltou a sentar-se diante da pedra, deixando-se ficar a olhar fixamente para ela antes de se atrever a tocar-lhe. «Hoje vão ser às centenas», pronunciou ele, para ninguém em particular. Podia muito bem dar-se o caso de se estar a dirigir à pedra. Pontuou a frase com dois ou três acenos de cabeça.

Nakata estava à janela, procedendo aos seus habituais exercícios de ginástica, quando Hoshino finalmente acordou. Assobiando entredentes a música que estava a tocar na rádio, Nakata movia o corpo para cima e para baixo ao ritmo da melodia.

Hoshino abriu um olho e deitou uma olhadela ao relógio. Passava pouco das oito. Estendeu o pescoço para ter a certeza de que a pedra estava onde a deixara. À luz do dia ela parecia muito maior e mais tosca.

Então não estava a sonhar, disse ele.

Desculpe, o que disse? - inquiriu Nakata.

A pedra - continuou Hoshino. - A pedra está aqui mesmo. Não sonhei.

Já temos a pedra - limitou-se Nakata a dizer, ainda embre­nhado nos seus exercícios, conferindo à frase o tom grave de uma tese central da filosofia alemã do século XIX.

Agora, como é que a pedra veio aqui parar, isso é uma longa história, avozinho.

Sim, Nakata pensou logo isso.

E igual ao litro - rematou Hoshino, sentando-se na cama e soltando um enorme suspiro. - Não interessa. O que importa é que já cá canta. Isto para abreviar a história.

A pedra está aqui - repetiu Nakata. - Isso é que interes­sa.

Hoshino preparava-se para responder, mas de repente apercebeu-se de que estava esganado de fome.

Ei, que tal irmos tomar o pequeno-almoço?

Nakata também já trincava qualquer coisa.

Depois do pequeno-almoço, quando já ia no chá, Hoshino quis saber:

Então, o que vais fazer com a pedra?

O que vamos fazer com a pedra, é isso que quer saber? -Tem santa paciência - replicou Hoshino, abanando a cabeça.

Trouxe-te a pedra até aqui ontem à noite porque tu disseste que tinhas de a encontrar sem falta, não foi? Por isso não me venhas agora com essa do «o que vamos fazer com a pedra», está bem?

Certo. Tem toda a razão. Mas, para dizer a verdade, Nakata ainda não sabe o que há-de fazer com ela.

Isso é um problema.

Um problema, bem pode dizê-lo - replicou Nakata, apesar de a sua expressão dar a entender que nunca ouvira tal coisa.

achas que, se tiveres mais algum tempo para pensar no assunto, vais acabar por saber mais sobre esta história?

Correto. Nakata precisa de muito mais tempo do que as outras pessoas para fazer as coisas.

Tudo bem. Mas presta atenção, Nakata.

Sim, senhor Hoshino?

Não sei quem foi que lhe deu semelhante nome, mas, uma vez que se chama a Pedra de Entrada, palpita-me que antigamente devia ser a entrada para qualquer coisa, não te parece? Deve existir para aí uma lenda ou uma pista qualquer para isso.

Sim, tudo aponta para isso.

Mas tu não fazes ideia de que tipo de entrada é que estamos a falar?

Não, ainda não. Nakata costumava conversar muito com gatos, mas nunca chegou à fala com uma pedra.

Palpita-me que deve ser coisa bem mais difícil.

É muito diferente de falar com um gato.

Ainda assim, só pelo facto de termos surripiado a pedra de um santuário, tens a certeza de que não vamos ser amaldiçoados ou coisa que o valha? É que isso anda a dar-me cabo da cabeça. Fanar a pedra é uma coisa, agora ter de decidir o que fazer com ela, isso é que vai ser uma chatice dos diabos. O Coronel Sanders garantiu-me que uma maldição estava fora de causa, mas aquele tipo não me merece uma confiança por aí além, se é que me enten­des.

O Coronel Sanders?

Há um sujeito com esse nome. Aquele tipo que aparece nos anúncios da Kentucky Fried Chicken. Aquele, de fatinho branco, barba, óculos ridículos. Estás a ver quem é?

Nakata tem muita pena, mas não conhece semelhante personagem.

Não sabes o que é a Kentucky Fried Chicken? Coisa rara...Bom, é igual ao litro. Afinal de contas, o velhote não passa de uma abs­tracção. Não é humano nem nada que se pareça, nem sequer um Deus ou um Buda. Como não tem forma, teve de escolher e calhou aparecer metido na pele do tal coronel.

Nakata fez uma cara de espanto e pôs-se a esfregar o cabelo sal-e-pimenta.

Nakata não percebe patavina.

Bom, para ser franco, também eu não, isto apesar de estar para aqui com este paleio todo - confessou Hoshino. - De qualquer maneira, a verdade é que este tal velhote pândego apareceu no meu caminho vindo não se sabe de onde e desatou a desbobinar esta treta toda. Resumindo e concluindo, o velhote ajudou-me a encontrar a pedra, e eu alombei com ela até aqui. Não estou com isto a querer fazer-me de vítima nem nada parecido, mas podes crer que foi uma noite longa e difícil. O que neste momento me apetecia fazer era passar tudo para ti e lavar daí as minhas mãos.

Pode ser. Nakata fica com a pedra.

Ena, foi rápido.

Senhor Hoshino? - inquiriu Nakata.

Diz lá?

Vem aí uma trovoada valente. Vamos esperar.

Estás a querer dizer que a trovoada vai de alguma maneira ajudar-nos com a história da pedra?

Nakata não tem bem a certeza, mas o palpite é que assim acontecerá.

Com que então, trovoada? Parece-me fixe. Tudo bem, vamos esperar para ver o que acontece.

De regresso ao quarto, Hoshino deitou-se no futon de barriga para baixo e ligou a televisão. Por mais que mudasse de canal, só estavam a dar programas destinados às donas de casa. Mas como não havia mais nada para matar o tempo, ele não teve outro remédio senão continuar ligado ao pequeno ecrã, entretendo-se a fazer comentários demolidores acerca das imagens que iam desfilando diante dos seus olhos.

Enquanto isto, Nakata estava sentado diante da pedra, sem tirar os olhos dela, passando a mão pela sua superfície. Volta e meia mastigava qualquer coisa em voz baixa. Não que Hoshino pescasse alguma coisa do que o velho estava para ali a dizer. Tanto quanto sabia, até podia estar a falar com a pedra.

Passado duas horas, Hoshino foi até à loja da esquina e regressou com um saco cheio de pãezinhos de sementes e pacotes de leite para os dois. Enquanto estavam a almoçar, apareceu a empregada para arrumar o quarto, mas Hoshino disse-lhe que não era preciso, que eslava tudo em ordem.

Hoje não vão sair? - inquiriu ela.

Não - respondeu ele. - Temos um assunto para resolver aqui.

Porque vai haver trovoada - acrescentou Nakata.

Trovoada. Estou a ver... - disse a empregada com uma expressão desconfiada antes de sair, com todo o ar de quem não queria ter nada que ver com aquela estranha parelha.

Por volta do meio-dia, ouviu-se ao longe o rebentar da trovoada, e, como se fosse esse o sinal, começou a pingar. Não se podia dizer que fosse uma trovoada de meter medo, mais parecia um anão indolente a bater num tambor. Contudo, pouco depois, os pingos de água eram cada vez mais grossos e não tardou que se transformassem numa chuva regular que envolveu o mundo num doce odor de terra molhada.

Assim que a tempestade começou, sentaram-se em frente um do outro, com a pedra no meio, como dois índios a fumarem o seu cachimbo da paz. Nakata continuava a murmurar em surdina, ora coçando a cabeça, ora afagando a pedra. Hoshino, esse puxou de um cigarro e estava ali a observar a cena.

Senhor Hoshino? - indagou Nakata.

Diz lá.

Não se importa de ficar aqui mais um bocado?

Claro que não. Com este tempo não vou a lado nenhum.

Isto para o caso de acontecer uma coisa estranha.

Deves estar a gozar comigo! - retorquiu Hoshino. - Como se tudo o que até agora aconteceu não fosse já suficientemente estra­nho.

Senhor Hoshino?

Diz.

Uma coisa. Quem é Nakata? Quer dizer, que tipo de pessoa? Aquilo deu a Hoshino que pensar.

Essa é das difíceis. O que queres que te responda, assim do pé para a mão? Quero dizer, se nem sequer sei quem eu sou! Não é a mim que deves perguntar isso. Além do mais, pensar não é a bem a minha área, percebes? Mas sei que tu és um tipo fixe e basicamente um homem honesto. Não regulas lá muito bem dos pirolitos, mas és uma pessoa em quem se pode confiar. Por isso é que percorri este caminho todo contigo, desde Shikoku. Posso também não ser nenhuma inteligência, mas se há coisa que tenho é olho clínico para avaliar as pessoas.

Senhor Hoshino?

Sim.

Não é só a questão de Nakata ser burro. Nakata também é vazio por dentro. Só agora é que deu conta. Nakata é como uma biblioteca sem um único livro. Antes não era assim. Dentro dele Nakata costumava ter livros. Durante muito tempo não soube isso, mas agora voltou tudo à memória. Nakata costumava ser normal, igual às outras pessoas. Mas aconteceu uma coisa que o transformou numa espécie de invólucro sem nada lá dentro.

Pode ser que sim. Mas a verdade é que, se olhares em redor, vais ver que pessoas vazias é o que para aí há mais. Não te parece? Comemos, damos a nossa cagadinha, fazemos o nosso trabalho, recebemos uma miséria e, se temos sorte, de vez em quando damos uma queca. O que existe para além disto? Ainda assim, ele há coisas curiosas na vida das pessoas por esse mundo fora - como acontece agora connosco. Ainda estou para saber porquê. O meu avô costumava dizer que as coisas nunca são como nós gostaríamos, mas que é isso o sal que dá gosto à vida, e não deixa de ser uma grande verdade. Se os Chunichi Dragons ganhassem os jogos todos, quem ia ao base­bol?

O senhor gostava muito do seu avô, não gostava?

Sim, gostava. Se não fosse ele, não sei o que teria sido de mim. Foi ele quem me incentivou e quem me fez ver que eu podia ser alguém na vida. Ele fez-me sentir - não sei - ligado. Foi ele quem me levou a desistir da vida de motoqueiro e a alistar-me nas Forças de Autodefesa. Num abrir e fechar de olhos, deixei de andar metido em sarilhos.

Mas sabe uma coisa, senhor Hoshino, Nakata não tem ninguém. Nada de nada. Não tem ligação nenhuma. Não sabe ler. E a sombra dele é metade do tamanho normal.

Toda a gente tem os seus defeitos. Senhor Hoshino?

O que é?

Se Nakata não tivesse perdido o seu eu natural, teria levado uma vida muito diferente. Como a dos seus dois irmãos. Teria feito os seus estudos, trabalhado numa empresa, casado e tido filhos, conduzido um grande carro e jogado golfe nos dias livres. Mas porque Nakata não é o Nakata normal, tornou-se o Nakata que é hoje.

Ora bem, explica-me lá por que razão é que esta pedra te diz respeito - interpelou Hoshino numa altura em que o trovejar diminuíra de intensidade. - E porquê concretamente tu?

Porque Nakata é o único que entrou e tornou a sair.

Não te estou a seguir.

Em tempos Nakata saiu daqui e voltou a regressar. Aconteceu tudo quando o Japão esteve envolvido numa Grande Guerra. Houve um momento em que a tampa saiu, e Nakata escapou. Por sorte conseguiu voltar. Por isso é que Nakata não é normal, e a sua som­bra é apenas metade do que era. Mas, por outro lado, sabe falar com gatos, coisa que agora já não acontece com tanta facilidade. Pelos vistos, também consegue fazer cair coisas do céu.

Como as sanguessugas da ultima vez?

Sim.

Não é qualquer um que se pode orgulhar desse talento. -Tem razão, não é para qualquer um.

E tudo isso deve-se ao facto de teres saído e voltado a entrar? Nesse caso há que reconhecer que tu és mesmo extraordinário.

Depois de regressar, Nakata deixou de ser normal. Deixou de saber ler. E nunca tocou numa mulher.

Mal posso acreditar.

Senhor Hoshino?

O que é?

Nakata tem medo. Como Nakata disse, sente-se completamente vazio. Sabe o que isso quer dizer, uma pessoa sentir-se completamente vazia?

Hoshino abanou a cabeça. Acho que não.

Ser uma pessoa vazia é o mesmo que viver dentro de uma casa sem vivalma. Uma casa desabitada e sem

fechaduras. Onde a qualquer altura pode chegar alguém, onde pode entrar toda a gente. Isso é o que mete mais medo a Nakata. Ele pode fazer chover coisas, mas, nas mais das vezes, não sabe o que vai cair do céu a seguir. E se acaso fossem dez mil facas, ou uma enorme bomba ou gás venenoso? Nakata não sabe o que faria... Podia pedir desculpa a toda a gente, mas isso não bastaria.

Tens razão. Pedir desculpa, só por si, não resolve nada. Se as sanguessugas já são o que são, Iodas essas outras coisas são ainda piores.

Johnnie Walker apoderou-se de Nakata e fê-lo fazer coisas que ele não queria. Johnnie Walker usou Nakata. E Nakata não teve forças para lutar contra ele. Pelo facto de não ter nada dentro dele.

O que explica por que razão gostarias de voltar a ser o Nakata normal. Que é como quem diz, tu próprio, mas com algum conteúdo.

É exatamente isso. Nakata não é lá muito brilhante, mas sabe construir móveis e foi o que fez, ano após ano. Gostava muito de fazer secretárias, cadeiras, cómodas. É bom uma pessoa poder dar forma às coisas. Durante os anos em que fazia peças de mobiliário, nunca passou pela cabeça de Nakata querer ser outra vez normal. Assim como também nunca houve ninguém a querer penetrar no seu íntimo. Nakata nunca soube o que era ter medo. Mas depois de conhecer Johnnie Walker passou a ter medo, muito medo.

E o que é que esse tal Johnnie Walker te obrigou a fazer, depois de ter penetrado no teu interior?

Um forte trovão rasgou subitamente o céu. Pelo som, o re­lâmpago devia estar a rebentar. Hoshino ficou com os tímpanos a zunir.

Nakata inclinou a cabeça para um lado, de ouvido atentamente à escuta, enquanto esfregava devagarinho a superfície da pe­dra.

Obrigou Nakata a sujar as mãos de sangue.

Sangue?

Sim, mas não era sangue das mãos de Nakata. Intrigado, Hoshino demorou o seu tempo a digerir aquilo.

Assim como assim, logo que abra a Pedra de Entrada todas as coisas voltarão ao seu lugar, não é? Como acontece quando a água corre lá do alto para um lugar mais abaixo?

Nakata pôs-se a pensar.

Pode não ser assim tão simples. A função de Nakata consiste em encontrar a Pedra de Entrada e abri-la. O que vem depois, Nakata não tem meio de saber.

Até aí, tudo bem. Mas por que razão é que a pedra se encon­tra em Shikoku?

A pedra está em toda a parte, não só em Shikoku. E não tem de ser uma pedra.

Não estou a perceber... Se está em toda a parte, nesse caso não podias ter tratado do assunto em Nakano? Olha só o tempo e as chatices que não poupávamos!

Nakata passou a palma da mão pelo cabelo cortado curto.

Essa é das difíceis. Nakata tem estado este tempo todo a escutar a pedra, mas ainda não conseguiu atinar com ela. Mas uma coisa sabe: tanto Nakata como o senhor Hoshino tinham de chegar até aqui. Era preciso atravessar a grande ponte. Em Nakano as coisas não teriam funcionado.

Posso fazer mais uma pergunta?

Sim.

Se conseguires abrir a tal Pedra de Entrada aqui, acontece alguma coisa de assombroso? Como aquele, ai, qual é o nome dele?, aquele génio que salta de dentro lâmpada na história de Aladino? Ou será que aparece de repente algum príncipe transformado em sapo para me beijar na boca? Ou, ainda, dar-se-á o caso de sermos comidos vivos por marcianos?

Pode acontecer qualquer coisa do género e, vai daí, é muito possível que nada suceda. Como ainda não abri a pedra, não sei. Só se fica a saber uma vez aberta.

Mas pode revelar-se perigoso?

Sim, é isso mesmo.

Credo! - Hoshino tirou um Marlboro do bolso e acendeu-o. O meu avozinho costumava dizer-me que o meu calcanhar de

Aquiles era deixar-me envolver irrefletidamente com pessoas sem as conhecer. Já em miúdo era a mesma coisa. Tenho a quem sair, como se costuma dizer. De qualquer maneira, já não há nada a fazer. Percorro todo este caminho e tive todo este trabalho para localizar a pedra, não é agora que vou virar as costas e regressar a casa sem ver ale onde é que isto me leva. Estamos conscientes do perigo que nos espera, mas que se lixe! Porque não abrimos a pedra de uma vez para ver o que acontece? Pelos menos sempre ficamos com uma história do caraças para contar aos nossos netos.

Nakata tem um favor a pedir, senhor Hoshino.

Desembucha.

Importa-se de pegar na pedra? Não há problema.

Olhe que está um bocado mais pesada.

Bem sei que, não sendo nenhum Schwarzenegger, sou mais forte do que parece. Nas Forças de Autodefesa[2] fiquei em segundo num concurso de braço-de-ferro que se realizou na nossa unidade. Além disso, agora que me livrei dos problemas nas costas, posso dar tudo por tudo.

Hoshino pôs-se de pé, agarrou na pedra com ambas as mãos e tentou levantá-la. A pedra não se moveu nem um milímetro.

Tens razão, ficou muito mais pesada - disse o jovem, arquejante. - Antes não tive problema em pegar nela. Agora parece que está pregada ao chão.

Estamos na presença da famosa Pedra de Entrada, por isso não se pense que é tarefa fácil fazê-la mexer. Se assim fosse, isso sim, é que seria um problema.

Talvez tenhas razão.

Nessa altura alguns raios esporádicos rasgaram o céu e o som atroador do trovão fez tremer o coração da terra. Era como se alguém tivesse aberto a porta do Inferno, pensou Hoshino. Ouviu-se um derradeiro ribombar do trovão mesmo por cima deles e de repente fez-se silêncio, um silêncio espesso e sufocante. O ar estava húmido e abafado. Um forte perfume a suspeita e conspiração impregnava a atmosfera, como se um número infinito de ouvidos flutuassem no ar, à escuta. Os dois homens estavam parados no tempo, envoltos na escuridão do meio da tarde. E foi então que o vento voltou a soprar com força, atirando a chuva de encontro à janela. Recomeçou a trovejar, mas não com tanta violência como antes. O centro da tempestade afastara-se da cidade.

Hoshino levantou a cabeça e varreu o quarto com os olhos. Tudo parecia estranhamente frio e distante, as quatro paredes ainda mais brancas do que anteriormente. No cinzeiro, a beata do Marlboro ficara reduzida a cinza. O jovem engoliu em seco e afastou o sufocante silêncio dos seus ouvidos.

Ouve lá, Nakata?

O que é, senhor Hoshino?

Tenho a sensação de ter vivido um sonho mau.

Bom, pelo menos tivemos os dois o mesmo sonho.

Tens razão - disse Hoshino, coçando o lóbulo da orelha com um ar resignado. - Tens razão, razão como a chuva, «chuva, chuva, vai-te embora, volta um outro dia ...».3 Sabe-se lá porquê, faz-me sentir melhor. Dito isto, pôs-se de pé e tentou uma vez mais levantar a pedra. Respirou fundo, agarrou nela e concentrou nas mãos toda a força de que foi capaz. Com um gemido abafado lá conseguiu movê-la dois ou três centímetros.

Mexeu-se um bocadinho - disse Nakata.

Pelo menos sempre ficámos a saber que não está pregada ao chão. Mas isso ainda não chega.

Temos de conseguir virá-la ao contrário.

Como uma panqueca. Nakata concordou com a cabeça.

Isso, isso. Panquecas são um dos pratos preferidos de Nakata.

Boa. Com que então, paz, alegria e panquecas no Inferno! Enfim, vamos lá fazer outra tentativa. Palpita-me que agora é que vou ser capaz de dar a volta a esta coisa.

Hoshino fechou os olhos, concentrou-se e chamou a si todas as suas forças. «Desta é que é!», disse ele para consigo mesmo. «Ou vai ou racha!»

Agarrou a pedra com ambas as mãos, fez força, depois respirou profundamente e, arrancando das entranhas um uivo conseguiu por fim erguer a pedra, levantando-a no ar num ângulo de quarenta e cinco graus. Até ao limite das suas forças. Sem saber muito bem como, conseguiu mantê-la naquela posição. Da garganta saiu-lhe um arquejo, linha o corpo todo a doer, ossos e nervos gritavam de dor, mas nem assim desistiu. Respirando fundo

uma derradeira vez, soltou o seu grito de guerra, mas não conseguiu ouvir-se a si próprio. Não fazia ideia do que eslava a dizer. De olhos cerrados, logrou chamar a si uma energia do que não se julgava capaz, uma força que devia estar guardada nu mais fundo de si. Devido à falta de oxigénio, começou a ver tudo branco em seu redor. Um atrás do outro, os seus nervos dispararam como fusíveis rebentados.

O impulso obrigou Hoshino a cair para trás. Ficou deitado no chão de barriga para o ar em cima do tatami sem conseguir respirar, a cabeça num turbilhão feito de lama espapaçada. «Por mais anos que viva, nunca na minha vida serei capaz de levantar nada assim tão pesado», pensou ele.

Senhor Hoshino?

O que... é?

A entrada está aberta, graças a si.

Sabes o que te digo, avozinho? Quero dizer, senhor Nakata?

O quê?

Levantando-se, sempre de olhos fechados, Hoshino tornou a inspirar fundo e a expirar.

É melhor que isso aconteça. Caso contrário, andei a esforçar--me para nada.

 

Antes que Oshima chegue preparo tudo para a abertura da biblioteca. Aspiro o chao, dou com limpa-vidros nas janelas, lavo a casa de banho, limpo o pó à secretária e às cadeiras. Uso spray para móveis no corrimão e ponho-o a brilhar. Dou com o espanador no vitral que existe no patamar. Varro o jardim, ligo o ar condicionado na sala de leitura e o desumificador na arrecadação. Faço cafá e afio os lápis. Uma biblioteca deserta, de manhã – aí está uma coisa que mexe com a minha imaginação. Todas as palavras possíveis e imagináveis, todos os pensamentos do mundo descansam ali, tranquilamente. Procuro fazer tudo o que estiver ao meu alcanca para preservar este lugar, mantê-lo limpo e em ordem. Volta e meia interrompo a minha tarefa, deixo-me ficar a olhar para todos aqueles livros silenciosos que povoam as estantes e chego mesmo a esticar a mao para tocar na lombada de um ou outro. Às dez e meia, como sempre, oiço o barulho do motor do Mazda Miata no parque de estacionamento, e Oshima aparece com ar meio ensonado. Trocamos dois dedos de conversa antes de abrir a biblioteca.

Se não se importar, gostaria de sair por um bocado – digo-lhe eu, assim que abrimos.

Onde vais?

Preciso de ir até ao ginásio fazer exercício. Estou parado há muito tempo.

Claro que não era só por isso. A Sr.ª Saeki deve aparecer mais tarde e não quero cruzar-me com ela. Preciso de algum tempo para pôr a cabeça em ordem antes de voltar a encontrá-la.

Oshima olha para mim e, passado algum tempo, acena afirmativamente com a cabeça.

Mantém os olhos bem abertos. Não quero armar-me em pai--galinha mas na situação em que te encontras toda o cuidado é pouco.

Não se preocupe. Estarei atento - prometo-lhe eu.

De mochila ao ombro, apanho o comboio. Na estação de Takamatsu tomo o autocarro para o clube de fitness. Enfio o equipamento de ginástica e guardo a roupa no cacifo antes de dar início ao meu programa de treinos, sempre ligado ao meu discman, com a música de Prince a entrar-me pelos ouvidos. Já passou muito tempo desde a última vez e os músculos queixam-se. Mas lá acabo por apanhar o ritmo. Os músculos gemem e gritam, em protesto contra o esforço desusado a que os obrigo, é essa a reacção normal do corpo. Ao som de Little Red Corvette, esforço-me por acalmar os ânimos, sintonizar essa reacção com movimentos regulares. Ins­piro fundo, retenho a respiração, expiro. Inspiro, pausa, expiro. Respiro fundo. Mais fundo. Um a um, levo os meus músculos ao limite. Estou a suar que nem um porco, tenho a T-shirt pesada, empapada em suor. Por mais de uma vez vejo-me obrigado a ir buscar água ao reservatório.

Vou passando de um aparelho para outro pela ordem do costume, sempre a pensar na Saeki-san. Na noite de sexo que tivemos. Tento desanuviar a cabeça, ficar sem pensar em nada, mas não é pro­priamente um exercício fácil. Concentro-me nos músculos, deixo-me absorver pela rotina. As mesmos aparelhos de sempre, os mesmos pesos, o mesmo número de abdominais. Sexy Motherfucker, canta Prince aos meus ouvidos. A ponta do pénis ainda está dorida e arde--me um bocadinho quando tenho de urinar. A glande está vermelha. A minha picha liberta do prepúcio para trás ainda é jovem e macia. Ao som da voz sensual de Prince, misturadas com citações de todos os livros possíveis e imagináveis, rodopiam no meu cérebro as mais variadas fantasias sexuais, tudo num perpétuo movimento de exaltação, e a minha cabeça parece que vai explodir a qualquer momento.

Tomo duche, mudo de roupa interior e apanho o autocarro de volta para a estação. Como estou com fome, como qualquer coisa num barzinho ali ao pé. Só então me dou conta de que se trata do mesmo sítio onde parei no meu primeiro dia em Takamatsu. O que me leva a fazer a conta ao tempo que passou. Já decorreu uma semana ou mais desde que comecei a trabalhar na biblioteca, o que significa que devo ter chegado a Shikoku para aí há três semanas.

Quando acabo de comer bebo um chá e entretenho-me a ver as pessoas, que andam numa azáfama doida para trás e para diante na estação. É tudo gente com um destino certo. Se quisesse, engrossava o rol. Apanhar o comboio para outras paragens. Largar tudo aqui e partir para longe, rumo a uma cidade desconhecida, começar do nada. Virar uma nova página num caderno de apontamentos. Podia seguir viagem até Hiroxima, Fukuoka e por aí fora. Nada me prende a este lugar. Sou cem por cento livre. Tenho tudo o que preciso no interior da minha mochila. Roupa, produtos de higiene, saco-cama. Quase não toquei no dinheiro que tirei do estúdio do meu pai.

Mas sei que não posso continuar.

«Mas estás farto de saber que não podes continuar», diz o rapaz chamado Corvo.

tiveste a saeki-san nos braços, vieste-te dentro dela uma vez e outra e outra. e ela recolheu o teu sémen todo. ainda tens o pénis dorido, ainda tens a sensação de ter estado dentro dela. um lugar feito à tua medida. pensa na biblioteca. nos livros silenciosos, alinhados nas estantes. pensa em oshima. no teu quarto. na rapariga de quinze anos que aparece no teu quarto para contemplar kafka à biera mar, o quadro pendurado na +parede. vejo que abanas a cabeça. não tens maneira de sair daqui. não és livre. mas é realmente isso que queres? ser livre?

Na estação torno a passar pelos polícias que fazem a ronda, mas para eles é como se eu não existisse. O que há mais para aí são rapazes da minha idade, bronzeados e de mochila às costas. Sou apenas mais um no meio da multidão. Não há razão para estar nervoso. Se quero que ninguém dê (e ninguém há-de dar) por mim, basta-me agir com naturalidade

Apanho o comboio de duas carruagens e regresso à biblioteca.

Olha quem está de volta - exclama Oshima, deitando um olhar resignado à minha mochila. Palavra de honra, tens de andar sempre assim tão carregado? Nunca vi ninguém que andasse sempre de um lado para o outro, de armas e bagagens. Fazes-me lembrar o Linus.

Ponho água a ferver e preparo uma chávena de chá. Para não variar Oshima entretém-se a fazer rodopiar o seu lápis comprido e acabado de afiar. Muito gostaria de saber o que faz ele aos lápis, quando ficam reduzidos a um toco.

Quer-me parecer que essa mochila funciona assim como uma espécie de símbolo da tua liberdade.

Se calhar.

Ter um objecto que simbolize a liberdade pode muito bem dar mais gozo do que a própria liberdade que ele representa.

Às vezes.

Às vezes - repete ele. - Aposto que, se houvesse um concurso para as respostas mais lacónicas do mundo, ganhavas aquilo com uma perna às costas.

Se calhar.

Se calhar - repete Oshima, com ar de caso. - Se calhar, Kafka, o que acontece é que a maioria das pessoas que andam neste mundo não estão empenhadas em ser livres. Limitam-se a pensar que o são. Tudo não passa de uma ilusão. Se fossem realmente livres, a maior parte dessa gente ver-se-ia em palpos de aranha. É bom que tenhas isto em mente. A verdade é que escolhemos não ser livres.

O senhor também?

Sim. Até certo ponto pode dizer-se que também eu prefiro não ser livre. Até certo ponto, Jean-Jacques Rousseau definiu civilização como sendo o estádio em que as pessoas constroem vedações à sua volta. Uma observação muito pertinente. E verdadeira. Toda a civilização é produto de uma falta de liberdade imposta pelas vedações cons­truídas pela sociedade. À excepção dos aborígenes da Austrália, claro. Esses conseguiram manter uma civilização sem barreiras até meados do século XVII. Eram livres até dizer chega. Iam para onde queriam, faziam o que queriam. A sua vida era literalmente uma viagem per­manente. Passavam a vida a deambular, aí tens uma metáfora perfeita para definir a vida que eles levavam. E quando apareceram os ingleses e desataram a construir cercas para o gado, isso foi algo que estava para além do que os aborígenes podiam abarcar. E foi assim que, completamente ignorantes do princípio em causa, foram classificados como perigosos e anti-sociais e empurrados para o limite da fronteira.

Por isso é que me parece que deves ter cuidado. As pessoas que cons­troem barreiras altas e sólidas são as que melhor sobrevivem. Só se luta contra esta selvajaria quando se corre o risco de se transpor os limites da própria barbárie.

Regresso ao meu quarto e tiro a mochila. Depois vou até à cozi­nha, faço café e levo uma chávena à Sr.a Saeki. Com o tabuleiro de metal nas duas mãos, subo a escada com cuidado, degrau a degrau. Por baixo dos meus pés as velhas tábuas do soalho rangem. Chegado ao patamar, atravesso o arco-íris de cores brilhantes projectado pelo vitral.

A Sr.a Saeki está sehtada à secretária, a escrever. Quando pouso a chávena de café ela levanta a cabeça, olha para mim e manda-me sentar na cadeira do costume. Hoje tem vestida uma camisa cor de café com leite por cima de uma T-shirt preta. Tem o cabelo apanhado atrás e pequenos brincos de pérolas nas orelhas.

Durante um tempo não diz nada. Limita-se a olhar para o que acabou de escrever. A sua expressão não revela nada de especial. I nrosca a tampa da caneta de tinta permanente e deixa-a ficar em (ima do papel. Afasta os dedos, à procura de manchas de tinta. A claridade própria das tardes de domingos entra pela janela. Lá fora, no jardim, ouve-se alguém a falar.

O senhor Oshima disse-me que foste até ao ginásio - diz ela, sempre a estudar a minha cara.

           Pois foi.

           Que tipo de exercícios é que costumas fazer?

           Uso as máquinas de musculação e os pesos livres – respondo eu.

           Mais nada? Abano a cabeça.

           É um desporto um bocado para o solitário, não te parece? Dou-lhe a entender que sim com a cabeça.

           Estás a ver se ficas mais forte?

Temos de ser fortes se queremos sobreviver. Especialmente no meu caso.

Por estares sozinho, queres tu dizer.

Não conto com ninguém para me ajudar. Pelo menos até agora nunca ninguém me ajudou. Por isso, lenho de me desenvenciIhar sozinho. Tenho de me tornar mais forte - como um corvo que anda perdido. Por isso é que escolhi chamar-me Kafka. Não sei se sabes, mas é isso que Kafka quer dizer, em checo: corvo.

Hmm - faz ela, vagamente impressionada. - Com que então, tu és o Corvo?

Isso mesmo.

«Isso mesmo», diz o rapaz chamado Corvo.

Mesmo assim, imagino que esse estilo de vida tenha as suas limitações. Digo isto uma vez que não podes usar toda essa força como se ela fosse uma barreira defensiva à tua volta. Vai aparecer sempre algo mais forte que em qualquer altura pode quebrar a tua barreira. Pelo menos em teoria.

A própria força transforma-se em moral. A Sr.a Saeki sorri.

Aprendes depressa.

A força que me interessa não me serve para ganhar ou per­der pontos. Não procuro criar uma barreira para repelir as agressões que vêm de fora. Quero arranjar força por forma a ser capaz de absorver esse poder exterior e fazer-lhe frente. Estamos a falar de uma força que me permita enfrentar tudo e mais alguma coisa - injustiças, desventuras, tristezas, erros, equívocos.

Essa é a força mais difícil de conquistar...

Bem sei.

O sorriso dela abre-se.

Pareces saber tudo. Abano a cabeça.

Não, isso não é verdade. Só tenho quinze anos, e há muitas coisas que não sei. Que devia saber, mas não sei. Não sei nada acerca de ti, para começar.

Ela segura na chávena e bebe um golinho de café.

Não há nada para saber. Nada tenho dentro de mim que te faça falta saber.

Lembras-te da minha teoria?

É evidente que sim - volta ela à carga. - Mas é a tua teoria, e não a minha. Por isso não posso responder por ela, não te parece?

Exacto. A pessoa que avança com a teoria é que tem de apresentar provas - digo eu. - O que me leva a fazer uma pergunta.

Sobre?

Disseste-me que tinhas publicado um livro sobre as pessoas que tinham sido atingidas por um raio.

Exactamente.

Ainda se consegue arranjar esse livro? Ela faz que não com a cabeça.

Para começar, não foram postos à venda assim tantos exem­plares quanto isso. A edição esgotou-se há muito tempo e imagino que os livros que ficaram tenham sido destruídos. Nem sequer eu fiquei com um exemplar. Tal como já disse, ninguém mostrou um interesse por aí além pelo livro.

Que te levou a interessares-te por esse tema?

Não tenho bem a certeza. Talvez por causa do carácter simbólico da coisa. Ou porque, se calhar, queria estar entretida, daí que me tenha proposto um objectivo capaz de me fazer andar de um lado para o outro e com a mente ocupada. Para ser franca, já não me lembro do que me terá inicialmente levado a isso. Tive a ideia e, pronto, comecei logo a pôr-me em campo e a investigar a fundo. Nessa fase da minha vida era escritora2, sem preocupações de dinheiro e tempo livre para dar e vender, por isso podia dar-me ao luxo de só fazer o que despertasse a minha curiosidade. Mas confesso que, depois de mergulhar de cabeça, o assunto se revelou fascinante. Encontrei pela frente todo o género de pessoas, ouvi das suas bocas todo o tipo de histórias. Se não fosse esse projecto, o mais provável era ter-me afastado ainda mais da realidade e acabado completamente sozinha.

Em tempos, quando o meu pai era novo, trabalhou como caddy e foi atingido por um raio. Teve a sorte de sobreviver. O homem ( mu quem ele estava morreu.

É frequente as pessoas serem atingidas por relâmpagos nos campos de golfe - vendo bem, trata-se de enormes espaços ao ar livre, onde ninguém tem onde se abrigar. Daí que os relâmpagos lenham uma predilecção por esses locais. O apelido do teu pai também era Tamura?

Era, e parece-me que ele tinha mais ou menos a tua idade.

Ela abana a cabeça.

Não me lembro de ninguém chamado Tamura. Não entrevistei ninguém com esse nome.

Não digo nada.

Isso também faz parte da tua teoria, não é? Que eu e o teu pai nos conhecemos quando eu andava a pesquisar o livro e que tu nasceste em resultado desse encontro.

Sim.

Bom, lá se vai a tua teoria por água a baixo. Isso nunca acon­teceu. Logo, a tua teoria não tem pernas para andar.

Não necessariamente - replico eu.

Que queres dizer com isso?

Não acredito em tudo o que me estás a dizer.

E porque não acreditas?

Bem, para começar, disseste logo que nunca tinhas entrevis­tado ninguém com o apelido Tamura, e isso sem pensares duas vezes. Vinte anos é muito tempo e deves ter entrevistado dezenas, centenas de pessoas. Não me parece que consigas lembrar-te assim do pé para a mão que entre essa gente toda não existia uma pessoa chamada Tamura.

Ela abana a cabeça e bebe mais um gole de café. A sombra de um sorriso desenha-se nos lábios.

Kafka, eu... - diz ela antes de interromper o que ia a dizer, enquanto procura as palavras certas.

Fico à espera até que as encontre.

Tenho a sensação de que à minha volta as coisas começam a mudar - afirma ela.

De que maneira?

Não o sei dizer, mas alguma coisa está a acontecer. A pressão do ar, a luz reflectida, o movimento dos corpos, a passagem do tempo - tudo se transforma, aos poucos. É como se cada pequena mudança fosse uma gota que não tarda a dar forma a uma corrente. - Nesse ponto, ela pega na Mont Blanc preta, olha para a caneta e volta pô-la no mesmo sítio, antes de olhar para mim. - O que aconteceu entre nós os dois naquele quarto insere-se nessa corrente. Não sei bem se o que fizemos na noite passada foi certo ou errado. Mas sei que naquela altura optei por pôr de lado juízos de valor como esse. Se a corrente existe, então que me arraste no seu curso.

Posso dizer o que penso?

Se é isso que queres, avança.

Na minha opinião, estás a ver se recuperas o tempo perdido. Ela fica a pensar naquilo durante um bocado.

Pode ser que tenhas razão - diz. - Mas como sabes isso?

Porque é precisamente a mesma coisa que eu estou a fazer.

A recuperar o tempo perdido?

Sim - respondo. - Roubaram-me grande parte da minha juventude. Muitas coisas importantes. E agora sinto que chegou a hora de as recuperar.

A fim de poderes seguir com a tua vida. Faço que sim com a cabeça.

Tem de ser. Toda a gente precisa de um lugar para onde ir. Acho que ainda há tempo. Para mim e para ti.

Ela fecha os olhos e junta os dedos em cima da secretária. Depois, como que resignada, abre os olhos.

Quem és tu? - pergunta. - E como sabes tanto acerca de tudo?

Dizes-lhe que ela deve saber quem tu és. Sou Kafka à Beira--Mar, dizes tu. Teu amante, teu filho. O rapaz chamado Corvo. E ne­nhum de nós consegue libertar-se. Fomos apanhados no meio de um luibilhão e sugados para fora do tempo. Algures no caminho, um lelâmpago atingiu-nos. Um relâmpago daqueles que não se consegue ver nem ouvir.

Nessa noite voltámos a fazer amor. Ouves o vazio dentro dela a ser preenchido. É um som fraco, quase imperceptível, como areia fina numa praia, a ser pisada ao luar. Quase deixas de respirar, para ouvir. Estás a viver a tua teoria, por dentro da tua teoria. Depois ficas por fora. Outra vez por dentro. Por fora. Inspiras, reténs a respiração, expiras, inspiras, pausa, expiras. Dentro da tua cabeça Prince continua a jantar, como um molusco. A Lua nasce, a maré sobe. A água do mar mistura-se com o rio. Fora da janela os ramos do corniso contorcem-se num sono agitado. Tu apertas essa mulher nos teus braços, ela enterra o rosto no teu peito. Sentes a respiração dela na tua pele nua. Com o dedo, ela traça os contornos dos teus músculos, um a um. E depois lambe suavemente o teu pénis encolhido, como se o quisesse curar de todos os males. E tu vens-te uma outra vez na sua boca. Ela engole ludo, como se cada gota fosse preciosa. Tu beijas-lhe a vagina, tocas aquele lugar quente e macio com a tua língua. Transformas-te noutra pessoa ali, noutra coisa qualquer. Estás noutro lugar qualquer.

Dentro de mim não há nada que precises de saber - diz ela.

Até chegar a manhã de segunda-feira ficam nos braços um do outro, sentindo o tempo que passa.

 

O espesso banco de nuvens carregadas de trovoada atravessou a cidade a um ritmo letárgico, emitindo uma saraivada de raios, como que a procurar em todos os buracos e fendas uma moralidade há muito perdida, acabando por se reduzir a um leve e raivoso eco vindo do céu, a oriente. E nesse preciso instante a chuva violenta parou, seguida de um silêncio fantasmagórico.

Hoshino rodou o pescoço de um lado para o outro uma vez I outra, num esforço para verificar se ainda tinha a coluna inteira. Esticou-se todo, sentou-se à janela e deixou-se ficar a olhar lá para fora. Depois, sacou do maço de Marlboro e acendeu um cigar­ro.

Bom, meu caro Nakata, demo-nos a este trabalho para arredar a pedra e abrir a entrada e, vendo bem, não aconteceu nada de trans­cendente. Foi o que se viu. Nem um sapo, nem um demónio, nem nada do outro mundo. Por mim, vou ali e já venho... Mas, atendendo a que montámos todo este arsenal, e o diabo e sete, e depois nicles, devo confessar que apanhei uma decepção.

Como não teve resposta, virou-se para trás. Nakata encontrava-e de olhos fechados, todo estirado de bruços e com as mãos apoiadas no (hão. O velhote mais parecia um insecto moribundo.

Que se passa? Estás bem? - quis saber Hoshino. Desculpe. Nakata sente-se um nadinha cansado. Na verdade,

Nakata não se sente lá muito bem e gostaria de se deitar para ver se dorme um bocado.

O rosto de Nakata estava terrivelmente pálido. Tinha os olhos encovados, os dedos a tremer. No decorrer das últimas horas enve­lhecera a olhos vistos.

Tudo bem. Deixa-te estar que vou buscar o futon. Vê mas é se dormes tudo aquilo que tiveres na vontade. - aconselhou Hoshino. - Mas de certeza que estás bem? Não te dói o estômago nem nada? Não tens vontade de vomitar? Zumbidos nos ouvidos? Pode ser que precises de arrear o calhau. Queres que chame o médico? Tens seguro de saúde?

Sim, o governador deu a Nakata o cartão do seguro. Anda sempre guardado dentro do saco.

Isso é bom - exclamou Hoshino, tirando o futon de dentro do armário e estendendo-o ao comprido no chão. - Bem sei que não é altura para nos perdermos com pormenores deste género, mas deixa--me que te diga que não foi o governador que te deu o cartão. Estamos a falar de um cartão nacional de saúde, certo? Logo, emitido pelo governo japonês. Não que eu também esteja muito por dentro da matéria, mas creio que é assim que as coisas se passam. Não é o governador quem se ocupa de tudo, por isso vê lá se o deixas em paz durante algum tempo.Entendido. Não foi o governador que deu a Nakata o cartão de saúde. Deixar o governador em paz. Mas, Senhor Hoshino, a verdade é que Nakata não quer médico nenhum. Tudo o que precisa é de dormir um bocado para se recompor.

Aguenta aí. Não me digas que vais entrar numa das tuas maratonas de sono, daquelas que duram trinta e seis horas... Vais?

Nakata não sabe ao certo. Não é eie quem decide durante quantas horas é que dorme.

Bom, suponho que faz sentido - admitiu Hoshino. - Afinal de contas, ninguém consegue fazer isso. Tudo bem, dorme até te apetecer. Tivemos um dia de cão. Toda aquela trovoada tremenda, sem esquecer o tempo que passaste a falar com a pedra...E aquela cena de abrir a entrada, algures. Não é coisa que se veja todos os dias, lá isso é verdade. Fartaste-te de usar a cabeça, por isso deves estar cansado. Não te preocupes com mais nada, descontrai-te e vê mas é se descansas. Deixa que seja o velho Hoshino a tratar de tudo o resto.

Muito obrigado. Sempre a dar-lhe trabalho, não é? Nakata nunca poderá agradecer-lhe o suficiente por tudo o que tem feito. Se não tivesse sido o senhor, Nakata não saberia para que lado se virar. Como se ainda por cima não tivesse as suas próprias coisas com que se preocupar!

Pois, está bem - retorquiu Hoshino com uma nota de per­turbação na voz. Acontecera tanta coisa que se tinha esquecido por completo do emprego. - Agora que falas nisso, a verdade é que eu devia começar a pensar no regresso ao trabalho. Quase aposto que, neste preciso momento, o meu patrão está a rogar-me uma praga. Quando lhe telefonei, disse que ia precisar de alguns dias para tratar de uns assuntos, mais nada. Quando voltar é que vou ver como elas me mordem.

Hoshino acendeu um Marlboro, soltando o fumo devagar pelas narinas. Pôs-se a olhar fixamente para o corvo que estava pousado no cimo do poste telefónico e desatou a fazer carantonhas parvas.

Quero lá saber, é para o lado que durmo melhor! Ele que diga o que quiser, até deitar fumo pelas orelhas. Vendo bem, há uma quantidade de anos que ando a trabalhar, e bem, para os outros, sempre aqui a dar no couro. «Ei, Hoshino, 'tamos com falta de pessoal, não te importas de seguir ainda hoje à noite para Hiroxima?»

«Okay, palrão, conte comigo...» Passei a vida a fazer o que me mandavam, sem uma única queixa. Graças a isso, fiquei com as costas feitas num oito e, se não fosses tu a dar um jeito, ainda estaria pior. Ora essa, só tenho vinte e tal anos, por que razão havia de dar cabo da minha saúde por causa de um emprego merdoso? Qual é o galho de tirar uns diazitos de vez em quando? Mas sabes uma coisa, Nakata, eu...

De repente Hoshino deu-se conta de que o ancião estava a dormir profundamente. De olhos bem fechados, o rosto a apontar para o lecto, os lábios firmemente cerrados, Nakata respirava na paz dos deuses. À sua cabeceira jazia a pedra, já depois de ter sido arredada.

Hau, nunca vi ninguém cair assim no sono tão depressa, pensou Hoshino, não sem admiração.

Com tempo para dar e vender, deu-se ao luxo de se espreguiçar e ficou por ali a ver o que estava a dar na televisão, mas os programas da larde eram Ião désintéressâmes que adiou melhor ir dar uma volta.

Precisava de ir às compras, até porque estava a ficar sem roupa de baixo lavada. Se havia coisa que detestava era lavar roupa. Mais vale comprar uns pares de meias baratos, costumava ele pensar, do que ter de lavar os velhos, todos nojentos. Dirigiu-se à recepção da estalagem e pagou adiantado mais um dia. Aproveitou para dizer que o seu companheiro de viagem se encontrava a dormir e que não devia ser incomodado.

- Ainda que duvide de que o conseguissem - acrescentou.

Deambulou pelas ruas da cidade, cheirando o cheiro a chuva no ar, com o boné dos Chunichi Dragons da praxe, os Ray-Ban verdes do costume e a eterna camisa havaiana. Parou num quiosque para comprar um jornal e dar uma olhadela à carreira dos Dragões - haviam perdido frente à equipa de Hiroxima num jogo fora de casa. Em seguida, verificou o cartaz dos cinemas e decidiu ir ver o novo filme de Jackie Chan. Era mesmo à tangente. Informou-se no posto de Polícia e ficou a saber que o cinema era perto e que podia ir a pé. Comprou o bilhete, entrou e assistiu à sessão a mastigar amendoins.

Quando saiu do cinema já era noite. Não estava com tanta fome quanto isso, mas, à falta de melhor programa, acabou por decidir ir à procura de um sítio para jantar. No primeiro restaurante que encontrou, mandou vir sushi e uma cerveja. Estava mais cansado do que imaginara, e deixou ficar metade da bebida no copo.

Vendo bem, tudo isto faz sentido, pensou ele. Como podia ser de outra maneira, depois de ter levantado aquela pedra tão pesada. Até parece que sou como a casa do mais velho dos Três Porquinhos. Basta o Lobo Mau desatar a soprar que saio daqui disparado e vou a voar até Okayama.

Abandonou o restaurante de sushi e entrou no salão de pachinko ao virar da esquina. Quando deu por isso, já tinha perdido dois mil ienes. Decididamente, não estava num dos seus dias de sorte. Desistiu da ideia de jogar e deu mais uma volta. Lembrou-se então de que ainda não havia comprado a roupa interior. Que diabo!, disse com os seus botões, afinal de contas fora isso que o levara a pôr o pé na rua. Foi até uma loja que vendia artigos em promoção na zona comercial e comprou T-shirts brancas e meias. Agora podia finalmente livrar-se da roupa suja. Decidiu que era chegada a hora de arranjar uma nova camisa havaiana e ainda meteu o nariz em meia dúzia de lojas à procura de uma ao seu gosto, mas deu-se conta de que o leque de escolha em Takamatsu deixava muito a desejar. Fosse Verão ou Inverno, usava sempre camisas havaianas, mas isso não queria dizer que qualquer uma lhe servisse.

Parou numa padaria e comprou pão, para o caso de Nakata acordar a meio da noite e sentir fome; para o mesmo efeito, levou também uma embalagem pequena de sumo de laranja. Em seguida, dirigiu-se ao multibanco mais próximo e usou o cartão para levantar cinquenta mil ienes. Aproveitou para verificar o saldo. Ainda tinha bastante dinheiro na conta. Andara tão atarefado nas últimas semanas que nem tempo para gastar dinheiro lhe sobrara. (...)

Entretanto escurecera por completo e Hoshino sentiu de repente vontade de beber uma chávena de café. Olhou em volta, à procura de um letreiro que indicasse haver por ali algum café, e descobriu um daqueles que havia antigamente e que já não se encontrava com muita frequência. Entrou, instalou-se numa poltrona de aspecto confortável e mandou vir uma chávena de café. As colunas de som, daquelas inglesas feitas de sólida madeira de nogueira, transmitiam música de câmara. Hoshino era o único cliente. Sentando-se melhor na poltrona, sentiu-se, pela primeira vez desde há muito tempo, tão descontraído como se estivesse em casa. Tudo naquele espaço apelava à calma e à naturalidade, levando-o a identificar-se com o lugar. O café, servido numa elegante chávena, era forte e delicioso. Hoshino fehou os olhos, respirou calmamente e deixou-se ficar ali a apreciar a harmonia a duas vozes, transmitida pelo diálogo entre as cordas e o piano. Não se podia dizer que tivesse por hábito escutar música clássica, mas que era repousante, lá isso era, tendo o condão de o fazer virar-se para dentro de si.

Deixando-se afundar na poltrona macia, de olhos fechados e entregue à música, passaram-lhe pela cabeça uma quantidade de pensamentos - a maioria dos quais, diga-se de passagem, se prendiam com a sua pessoa. Porém, quanto mais pensava em si próprio, menos palpável a sua existência parecia ser. Começou mesmo a sentir-se como um insignificante apêndice, ali sentado.

Sempre fui um grande adepto dos Chunichi Dragons, pensou til com os seus botões, mas, vendo bem, que representam eles paia mim? Sim, vamos supor que batem os Giants aos pontos. De que maneira isso faz de mim uma pessoa melhor? Como podia ser?

Nesse caso, porque passei este tempo todo numa exaltação pegada, como se a equipa fosse um prolongamento da minha pessoa?

O senhor Nakata afirmou ser uma pessoa vazia. Até talvez seja verdade, quem sou eu para dizer o contrário? Mas então o que isso faz de m/m? Diz ele que teve um acidente em criança que o deixou naquele estado, que é como quem diz, vazio. Enquanto eu, pela parte que me toca, nunca tive acidente nenhum. Se o Nakata é um homem vazio, isso faz com que eu seja pior do que vazio! Ele, pelo menos, tem qualquer coisa que se lhe diga, qualquer coisa que me fez largar tudo e segui-lo até aqui, a Shikoku. Agora, o que essa «qualquer coisa» poderá eventualmente ser, isso não me perguntem...

O jovem Hoshino pediu uma segunda chávena de café.

Estou a ver que o café é do seu agrado - observou o dono da casa, um homem de cabelo sal-e-pimenta, que entretanto se acercara dele. Hoshino não sabia isso, como é evidente, mas tratava-se de um antigo funcionário do Ministério da Educação. Depois de reformado, tinha regressado à cidade natal de Takamatsu para aí abrir este estabelecimento, que servia aos seus clientes bom café e música clássica.[3]

Muito. Gosto sobretudo do aroma.

Somos nós que moemos o café. Sou eu próprio que selecciono os grãos, um por um.

Não admira que seja tão bom.

A música não o incomoda?

A música? - replicou Hoshino. - Não, acho óptimo. Não me incomoda nada. Nem um bocadinho. Quem está a tocar?

O trio composto por Rubinstein, Heifetz e Feuermann. O Million Dollar Trio, como era conhecido. Uns artistas consumados. Esta é uma gravação de 1941, mas o brilho mantém-se intacto.

É um facto. Tudo o que é bom nunca envelhece, pois não?

Há quem prefira uma versão mais estruturada, mais clássica, do Trio Arquiduque. Como a versão do Trio Oistrach.

Nem pensar, a mim esta parece-me bem - alvitrou Hoshino. -Tem um não-sei-quê... um toque de elegância.

Muito obrigado - disse o proprietário, como que agradecendo em nome do Million Dollar Trio, antes de se retirar para trás do balcão.

Enquanto saboreava a segunda chávena de café, Hoshino voltou a mergulhar nas suas reflexões.

Mas a verdade é que pelo menos eu estou a ajudar o Sr. Nakata a desenvencilhar-se. Leio o que é preciso ler para ele, isto sem esquecer que fui eu que encontrei a pedra. Curioso, nunca me tinha dado conta disto, mas tenho de reconhecer que é uma sensação agradável poder ser útil a alguém... Não lamento nada do que fiz - nem ter-me baldado ao trabalho, nem ter vindo parar aqui a Shikoku. Vendo bem, tanta coisa louca que tem vindo a acontecer, e dizer que eu vivi tudo isso na primeira pessoa.

Sinto que me encontro exactamente onde devia. Quando estou na companhia do Nakata, aquela história do quem-sou-eu-afinal? deixa de fazer sentido. Talvez esteja a exagerar, mas aposto que os seguidores de Buda e os apóstolos de Jesus se devem ter sentido da mesma maneira. Quando me encontro na presença de Buda, sinto que estou onde devia - ou coisa que o valha. Esqueçam a cultura, a verdade e essa treta toda. Não é deste tipo de inspiração que se trata.

Quando eu era miúdo, o meu avô contou-me histórias acerca dos seguidores de Buda. Um deles dava pelo nome de Myoga. O sujeito era um perfeito imbecil e nem o Sutra[4] mais simples de lodos se mostrava capaz de decorar. Os outros seguidores passavam a vida a gozar com ele. Um dia, o Buda disse-lhe: «Olha Myoga, visto que não és muito brilhante, ficas dispensado de aprender mais Sutras. Em vez disso, gostaria que ficasses sentado à entrada a engraxar os sapatos de toda a gente.» E Myoga, como tipo obediente que era, não mandou o mestre àquela parte. Durante dez ou vinte anos, passou a vida a dar graxa aos sapatos dos outros. Então, um belo dia, recebeu a inspiração e tornou-se o mais importante seguidor de Buda. Esta história mantivera-se sempre bem presente, pois aos seus olhos andar a engraxar sapatos durante décadas a fio representava a vida mais merdosa que se podia imaginar. Devem estar a brincar, pensava. Porém, à luz dos acontecimentos, a história começava a revelar novos matizes. A vida é lixada, dê por onde der. Eu é que não tinha per­cebido isso quando era pequeno.

Foi com estes pensamentos que se entreteve até que a música, que ajudara a alimentar a sua meditação, deixou de se fazer ouvir.

Ei - interpelou ele o dono. - Como se chama isto? Diga-me lá outra vez, que já me esqueci.

Trio Arquiduque, de Beethoven.

Arqui do quê?

O Trio Arquiduque. Beethoven compôs esta peça para o arquiduque austríaco Rodolfo. Não é o nome oficial, mas é assim que é conhecida. Rodolfo era filho do imperador Leopoldo II, e revelou--se um músico muito dotado, que estudou piano e música com Beethoven a partir dos dezasseis anos. Para ele, Beethoven era o maior. O arquiduque Rodolfo não conquistou a fama enquanto pianista ou compositor, mas deu, por assim dizer, uma ajuda preciosa em questões de natureza mais prática a Beethoven, que não era lá muito expedito nas coisas do mundo. Se não fosse ele, Beethoven teria visto a sua vida tornar-se ainda mais difícil.

Na vida, fazem sempre falta pessoas dessas.

Tem toda a razão.

Se todos fossem génios, o mundo seria um verdadeiro bico--de-obra. Tem sempre de existir alguém para estar de olho aberto e ocupar-se das coisas mais comezinhas.

É como o meu amigo diz. Se neste mundo fossem todos génios, estaríamos metidos num grande problema.

Gosto mesmo desta peça, deixe-me que lhe diga.

É lindíssima. Nunca nos cansamos de a ouvir. Atrever-me-ia até a dizer que é o mais sofisticado de todos os trios para piano de Beethoven. Foi composta tinha ele quarenta anos, e nunca mais voltou a escrever outra. Ele deve ter chegado à conclusão de que atingira o apogeu do género.

Julgo perceber o que me está a dizer. Chegar ao ponto mais alto é importante em tudo na vida - retorquiu Hoshino.

Volte sempre.

Pode contar com isso.

Quando chegou ao quarto, e como já esperava, Hoshino foi encontrar Nakata ferrado. Como já conhecia o filme, não estranhou por aí além. E achou por bem deixá-lo dormir até quando lhe apetecesse. A pedra permanecia ali, junto à cabeceira, e Hoshino depositou o saco com o pão mesmo ao lado. Tomou banho e mudou de roupa interior, depois atirou o conjunto que despira para dentro de um saco de papel e meteu tudo dentro do cesto. Deitou-se em cima do futon e não tardou a adormecer.

Acordou na manhã seguinte ainda não eram nove. Nakata continuava a dormir e respirava calma e regularmente.

Hoshino foi tomar o pequeno-almoço sozinho, mas antes pediu à empregada que não acordasse o companheiro.

Pode deixar ficar o futon como está - disse ele.

Faz-lhe bem dormir assim tanto? - quis saber ela.

Deixe estar que ele não nos vai morrer nas mãos. A verdade é que ele precisa de dormir para recuperar as forças. Não se preocupe que eu sei o que é melhor para ele. Hoshino comprou um jornal na estação e sentou-se num banco a olhar para a lista dos filmes em cartaz. Num cinema junto à estação estava a passar uma retrospectiva do cineasta François Truffaut. Hoshino não fazia a mínima ideia de quem era Truffaut, nem tão-pouco sabia o que a palavra cineasta queria dizer, mas um programa duplo sempre era uma boa maneira de matar o tempo, por isso decidiu com­prar bilhete. Os filmes anunciados eram Os Quatrocentos Golpes e Disparem sobre o Pianista. Na sala havia apenas meia dúzia de espei ladores. Escusado será dizer que Hoshino não era um cinéfilo, nem pouco mais ou menos. De vez em quando lá ia ver o seu filmito de ktinf-fu ou a sua fita de acção, mas as primeiras obras de Truffaut eram muita areia para o seu camião. Houve diálogos e detalhes da história que teve dificuldade em entender, e achou o ritmo, próprio daquele género de filmes, um bocado parado para o seu gosto. Ainda assim, agradou-lhe a atmosfera original, e deixou-se tocar pela forma como o mundo interior das personagens era caracterizado. Pelo menos não se aborreceu. Quando a sessão chegou ao fim, deu por si a pensar que não se importaria rigorosamente nada de voltar a ver mais filmes assinados por aquele realizador.

Depois de sair do cinema, vagueou pela zona comercial o acabou por ir ter ao mesmo café da noite anterior. O proprietário lembrava-se dele. Hoshino sentou-me na mesma poltrona e mandou vir café. Uma vez mais, era ele o único cliente. Através das colunas ouvia que estava a tocar qualquer coisa que metia instrumentos de cordas.

O concerto para violoncelo, número um, de Haydn. O solista é Pierre Fournier - explicou o dono quando lhe foi levar pessoalmente o café.

E um som verdadeiramente natural - comentou Hoshino.

É, não é? - concordou o dono. - Entre os meus músicos preferidos, Pierre Fournier ocupa um lugar de eleição. Tal como um vinho fino, a sua maneira de tocar tem um aroma e um corpo que aquecem o sangue e enternecem o coração. Trato-o sempre por «mestre Fournier», com todo o respeito que me merece. Claro que não conheço pessoalmente, mas sempre olhei para ele na qualidade de meu mentor.

Ao escutar o violoncelo fluido e sóbrio de Fournier, Hoshino sentiu-se transportado até à sua infância. Costumava ir até ao rio apa­nhar peixe todos os dias. Nessa altura, não tinha de se preocupar com nada. Vivia um dia de cada vez. Só o simples facto de estar vivo, já era qualquer coisa. Era assim que as coisas se passavam, e ainda bem. Mas algures pelo caminho algo tinha começado a mudar. A vida levara-o a transformar-se em nada. Esquisito... As pessoas vêm ao mundo para viver, não é verdade? Mas, no caso dele, quanto mais vivia mais sentia que estava a perder o que tinha dentro de si - até acabar por se tornar vazio. Quase apostava que, quanto mais anos vivesse, mais vazio e destituído de valor corria o risco de se tornar. Nem pensar, passava-se algo de errado com aquele filme. A vida não podia de maneira alguma conhecer tamanha reviravolta dramática! Será que ainda ia a tempo de mudar de rumo, de inverter a marcha dos acontecimentos? Isso era o que gostaria, e muito, de saber.

Desculpe... - interpelou Hoshino o dono do bar, que estava junto da caixa registadora.

Posso ajudá-lo?

Estava aqui a pensar se não seria uma grande maçada o meu amigo vir até aqui para dois dedos de conversa? Sabe, gostaria imenso de ficar a saber coisas acerca desse tal Haydn.

O dono do café teve todo o gosto em fazer uma minipalestra acerca de Haydn, o homem e a sua música. À partida era uma pessoa reservada, mas, tratando-se de música clássica, deixava-se contagiar e tornava-se eloquente. Ele explicou como Haydn se tornou um músico ( oniratado, servindo diversos patronos ao longo da sua vida, criando sabe-se lá quantas composições por encomenda. No dizer do dono do café, Haydn era, por natureza, um homem pragmático, bem como uma pessoa afável, humilde e generosa. Ao mesmo tempo, contudo, na lambem senhor dc uma personalidade complexa, que albergava secretamente no seu interior um lado negro e reservado.

Haydn era uma figura enigmática. Ninguém conhecia a vee­mência, o fulgor e a intensidade que lhe iam na alma. Porém, filho que era dos tempos dominados pela aristocracia, foi obrigado a rodear--se de Iodas as cautelas e a esconder o seu verdadeiro eu numa postura de submissão, exibindo uma faceta exterior caracterizada pela bonomia. De outro modo, teria sido a morte do artista. Há muito boa gente que d compara desfavoravelmente a Bach e a Mozart - tanto no que diz respeito à música, como à sua forma de viver. Ao longo da vida, revelou-se inovador, é certo, mas sempre só até determinado ponto, raras vezes se atrevendo a pisar o risco. Prestando atenção à música e apurando o ouvido, é possível detectar uma veneração que se es- onde por detrás do «eu» moderno. Como um eco distante pleno de contradições, está lá tudo isso, na música de Haydn, pulsando em silencio. Oiça bem este acorde - está a ouvir? Não é de uma absoluta lianquilidade? - mas, ao mesmo tempo, possui uma característica persistente o é atravessado por um espírito flexível imbuído da típica curiosidade de um jovem.

Como os filmes de François Truffaut.

É precisamente esse o espírito que anima os fiçmes de Truffaut. Um espírito persistente e entusiasmado, muito proprio, eivado de uma curiosidade eternamente insatisfeita – repetiu ele.

Exactamente! - exclamou o dono, dando uma pancadinha no ombro de Hoshima sem querer. – Acertou. Quando o concerto de Haydan chegou ao fim, Hoshimo pediu ao homem que pusesse a tocar a versao de Rubinstein-Heifetz-Feuermann do Trio Arquiduque. Enquanto escutáva a música, tornou a ficar imerso nas suas congeminaçoes. Que diabo, pensou ele, estou-me nas tintas para o que possa acontecer. Vou seguir o Nakata, enquanto viver. Que se lixe o emprego!

 

Quando o telefone toca às sete da manhã, continuo mergu­lhado num sono profundo. No meu sonho, encontrava-me no interior de uma caverna, de lanterna na mão, todo curvado no meio do escuro, à procura de qualquer coisa. Da entrada da caverna chega aos meus ouvidos uma voz que chama por um nome, ao longe. É o meu nome, repetido vezes sem conta. Grito uma resposta, alto e bom som, mas seja quem for não dá sinal de ter ouvido. Contrariado, ponho-me de pé e começo a dirigir-me para a entrada. Mais um bocadinho e já lá estou, penso para comigo. Mas, no fundo, sinto--me aliviado por não encontrar ninguém. É então que acordo. Olho em volta e recolho os pedaços fragmentados da minha consciência. Apercebo-me do telefone a tocar, o telefone que existe à entrada da biblioteca. A claridade brilhante da luz do sol penetra através das cortinas e a Saeki-san já não se encontra a meu lado. Estou sozinho na cama.

Saio da cama de T-shirt e boxers e vou atender o telefone. Ainda demoro algum tempo a lá chegar, mas o telefone continua sempre a tocar.

Sim?

Estavas a dormir? - pergunta Oshima.

Estava.

Desculpa obrigar-te a sair da cama tão cedo num dia de folga, mas temos um problema.

Um problema?

Conto-te tudo mais tarde, mas o melhor é desapareceres durante um tempo. Vou para aí, por isso pega nas tuas coisas e prepara-te. Quando me vires chegar, dirige-te ao parque de estacionamento e entra no carro sem dizeres nada. Entendido?

Okay.

Volto para o quarto e preparo-me. Sem pressas, uma vez que fauco ou nada para arrumar. Pego na roupa que estava a secar na (asa de banho, enfio o saco com os produtos de higiene, livros e o meu diário dentro da mochila, depois visto-me e faço a cama. Estico inuilo bem os lençóis, sacudo as almofadas e aliso a colcha. Elimino lodos os vestígios. Sento-me na cadeira e penso na Saeki-san, que até ha poucas horas ainda ali estava a meu lado.

Sobra-me tempo para um prato de flocos de milho. Lavo a tigela

e       a colher e volto a guardar tudo no sítio. Escovo os dentes, lavo a cara. Estou a ver-me ao espelho quando oiço o Miata a imobilizar-se no parque de estacionamento.

Apesar de estar um tempo óptimo, Oshima pôs a capota para cima. De mochila ao ombro, encaminho-me para o carro e sento-me no lugar do passageiro. Tal como da outra vez, Oshima conseguiu arrumar na perfeição a minha bagagem no porta-bagagens. Tem uns óculos de sol tipo Armani, uma camisa de linho às riscas por cima de uma T-shirt de decote em V, calças de ganga brancas e uns ténis All-Stars azul-escuros nos nos pés. Roupa informal própria para um dia de folga.

Ele passa-me para a mão um boné azul-marinho com o logótipo da North Face.

Nao me disseste que tinhas deixado ficar o boné em qualquer lado? Podes ficar com este. Se for caso disso, sempre ajuda a esconder um bocado a cara.

Agradeço e enfio o boné.

Oshima olha para mim e faz um ar de aprovação.

Tens os óculos escuros contigo, não tens?

Respondo que sim com a cabeça, tiro os meus Revo azul-metálico do bolso e ponho-os.

Fixe, muito fixe - comenta ele. - Experimenta pôr o boné com a pala para trás.

Faço como ele e viro o boné ao contrário.

Osihima volta a fazer sinal de aprovação. Liga o motor, mete a primeira e tira devagarinho o pé da embraiagem.

Para onde vamos? - pergunto.

Para o mesmo sítio da outra vez.

As montanhas na região de Kochi? Oshima acena afirmativamente.

Isso mesmo. Mais uma viagem ionga. - Liga a aparelhagem. Ouve-se uma bonita peça para orquestra de Mozart que reconheço. A Serenata «Posthorn», será?

Estás farto da montanha?

Não, gosto de lá estar. É sossegado, e posso ler.

Ainda bem - replica Oshima.

Qual é o problema?

Oshima deita um olhar apreensivo ao espelho retrovisor, olha de esguelha para mim e vira-se outra vez para a frente.

Primeiro que tudo, a Polícia voltou a entrar em contacto comigo. Ligaram para mim a noite passada. Parece que estão seriamente empenhados em dar com o teu paradeiro. De resto, devo dizer que os vejo muito dispostos a esclarecer toda esta história.

Mas eu tenho um álibi, certo?

Sim, tens. E por sinal um álibi sólido. No dia do crime estavas em Shikoku. Eles não têm dúvidas acerca disso. Agora, quer-me parecer que estão inclinados a pensar que talvez possas ter conspirado com alguém.

Conspirado?

Sim, consideram a possibilidade de teres um cúmplice. Um cúmplice. Abano a cabeça.

Onde foram eles buscar essa ideia?

Não se descoseram. Fartam-se de fazer perguntas, mas, quando uma pessoa começa a tentar tirar nabos da púcara, fecham-se em copas. Foi isso que me levou a passar a noite inteira acordado, a descarregar informação. Sabias que até já existem dois ou três sítios na Internet com referências ao caso? És famoso, e tudo. O príncipe errante que tem na sua mão a chave para resolver o quebra-cabeças.

Encolho os ombros. O príncipe errante?

Com a informação disponível na Internet, torna-se difícil separar os factos das conjecturas. Mas, resumindo, dá qualquer coisa como isto: a policia anda atrás de um homem na casa dos sessenta e muitos. Acontece que no dia do crime ele apareceu na esquadra perlo da zona comercial do bairro de Nogata e confessou ter matado alguém nas redondezas. Disse que tinha acabado de esfaquear um homem. Mas como na altura despejou um chorrilho de disparates, o jovem polícia que estava de serviço colou-lhe o rótulo de maluqui­nho e mandou-o embora sem lhe sacar os pormenores todos. Resultado: quando o crime veio à luz do dia, o agente teve consciência da asneira feita. Não ficara sequer com os dados do velho e, caso os seus supe­riores viessem a saber disso, ficava metido numa camisa-de-onze-varas, e vai daí calou-se muito caladinho. Mas aconteceu qualquer coisa o quê, não sei ao certo - e saiu tudo cá para fora. Escusado será dizer que o agente cumpriu um castigo disciplinar. Coitado, provavelmente ficou com a sua carreira na força policial comprometida. Oshima mete outra mudança para ultrapassar um Toyota Tercel branco, após o que regressa à sua faixa.

A Polícia pôs-se em campo e conseguiu identificar o tal velhote. Não conhecem os seus antecedentes, mas tudo indica tratar-se de uma pessoa mentalmente desequilibrada. Não é propriamente um deficiente mental, pode dizer-se. Recebe ajuda da assistênciasocial e algum apoio por parte de familiares. Vive sozinho mas desapareceu de sua casa. A Polícia conseguiu seguir o rasto dele e pensa que terá partido à boleia na direcção de Shikoku. Um camionista que faz trajecto intercidades julga que ele terá viajado no seu camião até Kobe. Lembrava-se dele por causa da maneira esquisita de falar, e também pela estranheza das coisas que ele disse. Segundo parece, fazie-se acompanhar de um rapaz dos seus vinte e tal anos. Os dois aperam-se na estação deTokushima. Localizaram a estalagem onde eles pernoitaram e, segundo diz uma empregada, terão apanhado o comboio para Takamatsu. Os movimentos do velhote e os teus são perfeitamente coincidentes. Ambos saíram de Nogata e dirigiram-se para Takamatsu. As coincidências são mais do que muitas, e foi isso que terá levado a Polícia a tirar as suas ilações - pensando naturalmente que vocês os dois planearam a coisa juntos. A Agência Nacional de Policia foi chamada a meter-se ao barulho e agora até a cidade está a ser passada pente fino. Pode não ser possível continuarmos a dar-te guarida na biblioteca, por isso achei que o melhor era voltares a refugiar-te nas montanhas.

Um homem com perturbações mentais, que vem de Nakano?

Diz-te alguma coisa?

Abano a cabeça. - Rigorosamente nada.

A morada dele não é longe da tua casa. Ao que tudo indica, fica a cerca de quinze minutos a pé.

Mas em Nakano vivem montes de pessoas. Nem sequer conheço o meu vizinho do lado.

Há mais - continua Oshima, lançando-me um olhar de soslaio. - Foi ele quem fez chover cavalas e sardinhas do céu, em plena baixa da cidade. Pelo menos foi ele que disse ao polícia que iria cair uma quantidade de peixe do céu, isto um dia antes de ter acontecido.

Espantoso.

Isso é dizer pouco - replicou Oshima. - Nesse mesmo dia, do céu caiu uma batelada de sanguessugas ali na zona da área de serviço de Fujigawa, quando se vai na auto-estrada de Tomei. Passámos por lá, lembras-te?

Sim, lembro.

Escusado será dizer que nada disto escapou à Polícia. Eles têm a impressão de que existe uma ligação qualquer entre esses dois acontecimentos e o homem de quem andam à procura. E a verdade é que os movimentos dele são paralelos e tudo o mais.

A peça de Mozart chega ao fim e tem início outra. Sem tirar as mãos do volante, Oshima abana a cabeça.

Um encadeamento de factos verdadeiramente bizarro. De resto, a história é toda ela estranha desde o início, e vai-se tornando cada vez mais estranha à medida que os dados vão sendo conhecidos. É impossível prever o que acontecerá a seguir. Uma coisa é certa, porém. Tudo parece estar a convergir para aqui. O caminho do velho e o teu estão condenados a cruzar-se.

Fecho os olhos e deixo-me embalar pelo barulho do motor.

Talvez fosse melhor seguir para outra cidade - alvitro eu. -Para além do mais, não quero causar problemas a ninguém, nem a si nem à senhora Saeki.

E para onde irias?

Não sei. Logo decidia quando chegasse à estação. Tanto faz.

Oshima suspira.

Não me parece uma ideia lá muito brilhante. A estação deve estar a abarrotar de polícias, todos eles à procura de um rapaz de quinze anos, alto e desportivo, de mochila às costas e uma caterva de obsessões na bagagem.

Nesse caso, porque não me leva até uma estação qualquer longe daqui que não esteja debaixo de vigilância?

Vai tudo dar ao mesmo. No fim iam acabar sempre por te |ni ontrar.

Deixo-me ficar calado.

Olha, pelo menos ainda não emitiram nenhum mandado de l ípliira para a tua prisão. Que eu saiba, ainda não fazes parte da lista dos mais procurados nem nada que se pareça, pois não?

Aceno com a cabeça em sinal de concordância.

Além disso, ainda és livre. O que significa que não precisas de autorização de ninguém para te deslocares. No que me diz respeito, não estou a infringir a lei. Quer dizer, nem sequer sei o teu primeiro nome. Por isso, não te preocupes comigo. Sou uma pessoa muito cautelosa. Ninguém me vai apanhar com as calças na mão.

Oshima?

Sim?

Não planeei nada em conluio com ninguém. Se quisesse matar o meu pai, não pediria a ninguém que o fizesse por mim.

Bem sei.

Oshima pára o carro num sinal vermelho e endireita o espelho retrovisor. Depois mete uma pastilha de limão na boca e oferece-me outra.

Aceito e ponho-a na boca.

E agora?

O que queres dizer com isso?

O senhor afirmou «primeiro que tudo», quando estava a dizer ii linha de me esconder nas montanhas. Se existe uma primeira razão, tem de haver uma segunda.

Oshima não tira os olhos do sinal vermelho, que nunca mais muda de cor.

Comparado com a primeira, a segunda não tem importância.

Mesmo assim, gostaria de saber qual é.

Trata-se da senhora Saeki - afirma ele. Finalmente o sinal fica verde e acelera. - Andas a dormir com ela, não andas?

Fico sem saber que resposta lhe dar.

Não te preocupes. Não pergunto isto com intenção de te criticar, nem nada disso. Acontece que tenho um sexto sentido para pressentir essas coisas. Ela é uma pessoa maravilhosa, e uma senhora muito atraente. É, como hei-de dizer?, especial em todos os sentidos. Muito mais velha do que tu, é certo, mas que diferença faz isso? Per­cebo perfeitamente que se sintas atraído por ela. Se queres ir para a cama com ela, por mim tudo bem. Quer dormir contigo? Melhor para ela. A mim, tanto se me dá como se me deu. Se é isso que querem, por mim podem estar à vontade. - Oshima faz rolar o rebuçado de limão na boca. - Mas, nesta altura do campeonato, parece-me melhor que os dois mantenham as distâncias. E não estou a dizer isto por causa daquela história sangrenta que aconteceu em Nakano.

Então porquê?

Porque ela se encontra numa posição muito delicada neste momento.

Delicada?

A senhora Saeki...- começa ele, à procura do resto das pala­vras. - O que quero dizer é que ela está a morrer. Há muito que tenho esse pressentimento.

Tiro os óculos escuros e encaro-o fixamente. Ele continua a olhar para a frente enquanto conduz. Entrámos na auto-estrada para Kochi. Desta vez, espantosamente, mantém-se abaixo do limite de velocidade. Somos ultrapassados a grande velocidade por um Toyota Supra.

Quando diz que ela está a morrer... - começo eu. - Quer dizer que tem uma doença incurável? Tipo cancro, leucemia ou assim?

Oshima abana a cabeça.

Se calhar. Mas a verdade é que não faço ideia do estado de saúde dela. Tanto quanto sei, pode muito bem estar a braços com qualquer um desses males. Aos meus olhos, trata-se, antes do mais, de uma questão psicológica, que se prende com a vontade de viver, qualquer coisa desse género.

Acha então que ela perdeu a vontade de viver?

Acho que sim. Não quer continuar a viver.

Nesse caso, pensa que ela se poderá matar?

Não, não creio que isso aconteça - afirma Oshima. - É mais como se tivesse a sensação de que ela caminha muito devagar, e ao mesmo tempo muito paulatinamente, para a morte. Ou, se quiseres, que a morte vem ao seu encontro.

Como um comboio que segue rumo à estação.

Qualquer coisa desse género. - Nesse ponto Oshima interrompe o que ia a dizer e aperta os lábios. - Mas entretanto apareceste tu, Kafka. Fresco que nem um pepino, misterioso como o próprio Kafka. Os dois sentiram-se atraídos e, para usar uma expressão clássica, envolveram-se numa relação.

E depois?

Por um breve momento, Oshima tira as duas mãos do volante.

Só isso, mais nada. Abano a cabeça lentamente.

Aposto que o senhor pensa que eu sou esse comboio. Oshima permanece calado durante um bom bocado.

Exactamente - acaba ele por dizer. - É como dizes, sem tirar nem pôr.

Que sou eu que trago a morte para a Saeki-san? Alenção, longe de mim recriminar-te - diz ele. - Pelo con-

trario. Muda bem que assim acontece. Porquê?

A esla pergunta não dá ele resposta. Tens de ser tu próprio a encontrar a resposta a isso, diz-me o seu silêncio. Ou talvez esteja antes a querer dizer: É tão óbvio que nem vale a pena pensar nisso.

Recosto-me no assento e fecho os olhos. Abandono o meu corpo.

Oshima?

O que é?

já não sei o que fazer. Nem sequer sei a quantas ando. O que está errado, se devo continuar em frente ou voltar para trás.

Oshima teima em não dizer nada.

Tem de me ajudar. O que acha que devo fazer? – pergunto eu.

Não tens de fazer nada - limita-se ele a dizer.

Nada?

Ele confirma com um gesto de cabeça.

Por isso e que le levo para as montanhas.

Mas o que hei de fazer quando lá chegar?

Limita-te a ouvir o vento, mais nada - diz ele. - É o que eu faço sempre.

As suas palavras fazem-me pensar.

Ele põe a mão dele em cima da minha, suavemente.

Há muitas coisas que não são culpa tua. Nem minha. Nem acontecem por culpa das profecias, das maldições, do ADN, ou do absurdo da vida. Não se pode culpar o estruturalismo nem a Terceira Revolução Industrial por tudo o que de mau existe. Todos nós temos de morrer, mas isso deve-se ao facto de o próprio mecanismo do mundo estar assente na destruição e na perda. As nossas vidas não são mais do que sombras desse princípio norteador. Por exemplo, o vento que sopra. Pode ser um vento forte, violento, ou uma leve brisa. Mas sopre ele como soprar, acaba sempre por desvanecer-se e morrer. O vento não tem forma. Não passa do ar em movimento. Se escutares com atenção, vais ver que entendes a metáfora.

Correspondo à pressão da mão dele. Uma mão macia, quente. Lisa, virginal, de uma elegância primorosa.

Isso quer dizer que, na sua opinião, devo manter-me afastado da Saeki-san nestes tempos mais próximos?

Isso mesmo, meu caro Kafka. Por agora, é o melhor que tens a fazer. Devemos deixá-la em paz. Ela é uma mulher inteligente e forte. Conviveu durante muito tempo com uma terrível solidão, cercada de recordações particularmente dolorosas. Todas as decisões que precisa de tomar tem capacidade para ser ela a adoptá-las sozinha.

Resumindo, não passo de um miúdo que se atravessou no caminho dela?

Não é isso - esclarece Oshima, com brandura. - Não foi isso que eu disse. Fizeste o que tinhas a fazer. O que fazia sentido, tanto para ti como para ela. Agora, deixa o resto com ela. Dito assim desta maneira, pode parecer-te frio, mas neste momento nada há que possas fazer por ela. Precisas de te afastar e procurar refúgio nas montanhas, de te preocupares com as tuas próprias coisas. Também para ti, é chegada a altura.

Preocupar-me com as minhas coisas?

Apura o ouvido, Kafka - insistiu Oshima. - Limita-te a escutar. Imagina que és uma amêijoa.

 

Ao regressar à estalagem, Hoshino foi dar com Nakata - o que não foi surpresa nenhuma - ainda nos braços de Morfeu. O saco que ele deixara ficar à cabeceira com pão e sumo de laranja não havia sido tocado. O ancião não se mexera um centímetro; o mais provável era nem sequer ter acordado uma única vez durante todo aquele tempo. Hoshino deitou a conta às horas. Nakata tinha-se ido deitar às duas da tarde anterior, o que queria dizer que dormia há trinta horas consecutivas. Em que dia de semana é que estariam?, interrogou-i Inshino. Começava a perder a noção do tempo. Tirou o bloco de apontamentos do saco e conferiu a data. Vamos lá ver, disse ele com os seus botoes, chegámos a Tokushima de autocarro num sábado, na quinta aconteceu daquela salgalhada toda com a história da pedra, e foi nesse dia que ele se deitou a dormir. Assim sendo, acrescenta-se mais um dia e temos que hoje é... sexta-feira. Até parecia que o velhote viera de propósito para Shikoku a fim de participar num Festival do sono.

Tal como na noite anterior, Hoshino tomou banho e viu televisão durante um bocado, antes de se deitar em cima do futon. Nakata continuava tranquilamente a respirar, mergulhado num sono profundo. Deixá-lo, pensou Hoshino. O que tem de ser tem muita força. Nakata que dormisse tudo o que lhe desse na gana. Não valia a pena queimar as pestanas com isso. E o melhor que ele próprio tinha a fazer era imitá-lo. Isto eram dez e meia da noite.

Às cinco da manhã foi acordado pelo toque do telemóvel que tinha dentro do saco. Nakata continuava com o sono pesado.

Hoshino estendeu o braço e pegou no telefone.

Está lá?

Senhor Hoshino? - ouviu-se uma voz de homem perguntar.

Coronel Sanders? - quis confirmar Hoshino.

O próprio. Como vão as coisas, meu rapaz?

Tudo bem, acho eu... Mas que diabo, como arranjou este número? Não fui eu que lho dei, e o telefone tem estado sempre desligado para os palhaços lá do emprego não me chatearem a cabeça. Como conseguiu ligação? Já me começa a assustar.

Já te disse por mais de uma vez, rapaz, que não sou nem um Deus nem um Buda, mas também não sou nenhum ser humano igual aos outros. Sou um ser à parte - uma abstracção. Por isso, fazer tocar o teu telefone é canja. Uma brincadeira de crianças. Esteja ele ligado ou desligado, para mim vai tudo dar ao mesmo, meu caro amigo. Não sejas tão sensível, credo, nem deixes que essas bagatelas te moam o juízo. Se eu tivesse aparecido à tua cabeceira quando acordaste, isso é que seria motivo de susto, não te parece?

Pode crer.

O que explica o telefonema. Afinal de contas, sou uma pessoa que se orgulha dos seus pergaminhos.

Muito agradecido pela amabilidade - replicou Hoshino. A propósito, e agora o que se faz com a pedra? Nakata e eu conse­guimos arrostar com ela de forma a abrirmos aquela tanga da entrada. Lá fora caía uma trovoada das antigas e a pedra pesava uma tonelada. Ah, agora me lembro, ainda não lhe contei nada acerca de Nakata, pois não? É o tipo com quem me meti à estrada.

Sei tudo o que há para saber acerca do senhor Nakata -retorquiu o Coronel Sanders. - Escusas de gastar o teu latim.

Sabe tudo acerca dele? - estranhou Hoshino. - Okay, por mim tudo bem... Resumindo, depois disso Nakata entrou em período de hibernação e a verdade é que a pedra continua no mesmo sítio.

Não lhe parece que deveríamos levá-la de volta para o santuário? Olhe que podemos muito bem ser amaldiçoados por tê-la removido de lá sem licença...

Tu não desistes, pois não? Quantas vezes tenho de dizer que não há maldição nenhuma?! - impacientou-se o Coronel Sanders. -Podem ficar aí com a pedra durante mais algum tempo. Uma vez que a conseguiram abrir, às tantas podem ter de a fechar, e só depois é que a levam de novo para o mesmo sítio. Mas, por enquanto, ainda é cedo. Percebeste? Estamos entendidos neste capítulo?

Ok, já percebi - respondeu Hoshino. - As coisas, uma vez abertas, devem ser novamente fechadas. E há que devolver tudo exactamente como se recebeu. Sabe uma coisa, Coronel? Assim como assim tomei a decisão de falar menos e fazer mais. Tudo por causa de uma revelação que tive a noite passada. Levar a sério coisas à partida disparatadas não passa de uma pura perda de tempo.

Sábia conclusão, essa, meu rapaz. Lá diz o ditado: «A pensar morreu um burro.»

Aí está um belo ditado.

Sugestivo, não te parece?

E aqueloutro que reza assim: «A pedra na pedreira espera por quem lhe há-de pegar?»

Que raio isso quer dizer? - E um trava-línguas2. Acabei de o inventar.

E isso vem a propósito de?...

A propósito de nada. Apeteceu-me dizer isto, mais nada.

Hoshino, vê lá se te deixas de comentários estúpidos, está lienir Se ele há coisa para a qual não tenho a mínima pachorra é para futilidades e conversas ocas. Vais dar comigo em doido, se continuares nesse tom.

Desculpe - disse Hoshino. - Mas vamos lá então saber. Porque me ligou tão cedo? Sim, alguma razão deve existir.

De facto, já quase me tinha esquecido - retorquiu o Coronel Sanders. - Vamos ao que importa. Tens de abandonar a estalagem o mais depressa possível. Não há cá tempo para pequenos-almoços nem nada. Limita-te a acordar o senhor Nakata, agarra na pedra e desapa­rece. Apanha um táxi, mas não peças que to chamem na estalagem, vai à rua e manda parar o primeiro que vires. A seguir dá este endereço ao motorista. Tens onde escrever?

-Tenho, espere aí um bocadinho - respondeu Hoshino, tirando a caneta e o canhenho do saco. - Pinça e bisturi, a postos.

Deixa-te de piadas parvas! - gritou o Coronel Sanders do outro lado do telefone. - Fora de brincadeiras. Não há um minuto a perder.

Pronto, pronto. Diga lá.

O Coronel Sanders ditou a morada e Hoshino escreveu tudo direitinho e repetiu para ficar com a certeza:

Apartamento trezentos e oito, Takamatsu Park Heights, dezas-seis-treze, três-chome.

Certo - confirmou o Coronel Sanders. - À porta, metida den­tro de um chapéu-de-chuva preto, encontras uma chave. Abre a porta e entra. Podem ficar ali o tempo que quiserem. Têm tudo o que precisam, comida, bebidas e outras coisas, por isso não precisam de sair de lá.

A casa é sua?

Sim. Pode dizer-se que sou eu o dono, apesar de não ser essa a palavra certa, uma vez que é alugada. Mas instala-te como se estivesses em tua casa. Há lugar para os dois.

Coronel?

Sim?

Disse-me que não era nem um Deus nem um Buda nem um ser humano. Estou correcto?

Correcto.

Posso então partir do princípio de que o seu reino não é deste mundo?

Acertaste em cheio.

Nesse caso, explique-me como pode alugar um apartamento? Se não é humano, isso quer dizer que não tem documentos nem nenhuma dessas coisas que são precisas, certo? Tipo cédula pessoal, bilhete de identidade, prova do rendimento familiar, selo oficial, carimbo e essa trapalhada toda. Sem isso, ninguém lhe aluga uma casa. Conte-me lá, fez alguma falcatrua ou coisa que o valha? Do género de transformar a folha de uma árvore num selo oficial por magia? Devo confessar que já tenho a minha conta de encrencas desse género e não estou com vontade de repetir a dose.

Não percebes mesmo nada, pois não? - impacientou-se o Coronel Sanders, dando estalos com a língua. - Um atraso de vida, co que tu és. Tens pedras nessa cabeça em vez de cérebro? Ou pensas que sou algum texugo? Não passo de um conceito, quantas vezes é preciso repetir? Conceito! E conceitos e texugos não são propriamente a mesma coisa, que eu saiba. Os disparates que tu me fazes dizer... Achas então que eu me dava ao trabalho de ir a um agente imobiliário, preenchia os formulários da praxe e me punha a regatear para ver se baixava a renda? Que história mais ridícula! A minha secretária é quem preenche toda a documentação necessária e trata de tudo.

Do que estavas à espera?

Ah, com que então tem uma secretária?

Podes crer! Quem é que pensas que eu sou? Estás a passar das marcas, rapazinho. Sou um homem muito ocupado, porque havia de seu motivo de espanto o facto de ter uma secretária?

Pronto, pronto, não se enerve tanto! Estava só a entrar consigo. A serio, diga-me lá: porque temos de sair daqui assim à pressa? Não podemos ao menos trincar qualquer coisa? Estou com uma fome de lobo, além de que o Nakata continua ferrado no sono. Não estou a

que consiga acordá-lo...

Ouve. Isto não é uma brincadeira, Hoshino. A Polícia anda à vossa procura por toda a cidade. Esta manhã, preparam-se para fazer a ronda dos hotéis e estalagens e vão desatar a fazer perguntas a torto e a direito. Já têm uma descrição dos dois. Por isso, a partir do momento em que começarem a bisbilhotar, é só uma questão de tempo. E há que reconhecer que vocês dão nas vistas. Não temos um minuto a perder.

A Polícia? - gritou Hoshino. - Não me lixem! Não fizemos nada de mal. É certo que na minha juventude deitei a mão a uma ou outra motoreta, mas foi só para dar uma voltinha - e não para fazer negocio, juro. Além de que as devolvi sempre. Desde essa altura, nunca mais me meti em nada ilegal. Trazer aquela pedra do santuário foi a pior coisa que fiz, e isso porque o senhor me mandou.

Isto não tem nada que ver com a pedra - cortou o Coronel Sanders, ríspido. - Às vezes pareces mesmo ignorante. Deixa lá a pedra. A Polícia ainda não descobriu nada acerca disso, e mesmo que descobrisse estava-se nas tintas. Com certeza que não estás a vê-los a andarem a bater às portas de madrugada por causa de uma pedra? Não, trata-se de um assunto bem mais sério.

Sério a que ponto?

A Polícia anda atrás do senhor Nakata por causa de um crime.

Não estou a perceber. Ele é a última pessoa do mundo que eu acharia capaz de um crime. Que género de crime? E como aparece ele metido numa coisa dessas?

Agora não temos tempo para isso. Tens de o tirar daí. Tudo depende de ti. Estamos entendidos?

Continuo sem perceber - repetiu Hoshino, abanando a cabeça. - Nada disto faz sentido. Quer isso dizer que eles se preparam para me acusar de ser cúmplice dele?

Não, mas de certeza que vão querer interrogar-te. Além do mais, o tempo está a passar. Deixa lá isso e vê mas é se fazes o que te disse.

Calma aí, há uma coisa que tenho de lhe dizer. Detesto a bófia. Os polícias são piores do que os yakuza - piores do que os tipos do exército. São pavorosos, capazes de tudo e mais alguma coisa. Dão-se ares de desprezo e utilizam os métodos mais baixos só para atormentar quem é mais fraco. Tive a minha dose de encontros com a bófia quando andava a estudar, e até mesmo quando comecei a andar ao volante de camiões, por isso a última coisa que me faz falta é meter-me ao barulho com eles. Não há quem tenha hipótese de lhes ganhar, e depois nunca mais nos largam, está a ver o filme? Céus, como me fui meter no meio desta história toda? Vendo bem, aquilo que...

A chamada caiu.

Deus do céu! - exclamou Hoshino. Com um suspiro enorme, atirou o telemóvel para dentro do saco e depois pôs-se a ver se conseguia acordar Nakata.

Ei, Nakata, velho companheiro. Avozinho. Há fogo! Um tre­mor de terra! Chegou a revolução! O Codzilla escapou da jaula e anda por aí à solta! Acorda! Vamos lá, levanta-te!

Nakata demorou o seu tempo a dar acordo de si.

Nakata já acabou de biselar as arestas todas. O resto da madeira foi para fazer fogo. Não, os gatos não tomam banho. Só Nakata é que toma banho. - Era óbvio que ainda estava no seu mundo.

Hoshino abanou o ombro do velho, beliscou-lhe o nariz, brincou com as orelhas, até que finalmente conseguiu trazê-lo de volta para a terra dos vivos.

Ah, é você, senhor Hoshino? - perguntou ele.

Sou eu, em pessoa - respondeu Hoshino. - Desculpa lá ter--te acordado.

Não tem problema. Nakata tinha mesmo de se levantar. Não se preocupe. Nakata já acabou de acender o fogo.

Qptimo. Aconteceu uma coisa, uma coisa que não é lá muito boa, e temos de sair daqui o mais depressa possível.

Tem que ver com Johnnie Walker?

A isso não te sei responder. Tenho as minhas fontes, e tudo o que elas me disseram foi que tínhamos de nos pôr a milhas. A Polícia anda atrás de nós.

Ai sim?

Pelo menos foi isso que eles disseram. Mas, afinal de contas, o que é que houve entre ti e esse tal Johnnie Walker?

Nakata não lhe chegou a contar?

Não, contar não contaste.

Nakata tinha a impressão de ter contado.

Não, pelo menos não chegaste à parte mais importante.

Bom, o que aconteceu foi que Nakata matou Johnnie Walker.

Deves estar a gozar comigo!

Não, Nakata matou Johnnie Walker.

Céus! - murmurou Hoshino.

Hoshino enfiou os seus pertences no saco e embrulhou a pedra fio pedaço de tecido azul-índigo. Não estavamais pesada. Nem mais leve, diga-se de passagem, mas pelo menos sempre dava para carregar com ela.Nakata guardou as suas coisas dentro do saco de lona.

Hoshino foi à recepção e inventou uma história qualquer sobre ter acontecido algo de repente para justificar o facto de terem de se ir embora à pressa. Uma vez que pagam adiantado, foi rápido. Não se

podia dizer que Nakata se aguentasse lá muito bem nas canetas, mas conseguia andar.

Quanto tempo esteve Nakata a dormir? - quis ele saber.

Deixa-me cá ver - disse Hoshino, fazendo as contas de cabeça. - À roda de quarenta horas, mais minuto menos minuto.

Nakata sente-se bem dormido.

Não admira. Só podia ser. Se uma pessoa não se sente re­frescada depois de ter batido o recorde do tempo passado a dormir, para que serviria dormir tanto? Diz-me uma coisa, tens fome?

Sim. Nakata sente-se capaz de comer um boi.

Dá para aguentares mais um bocadinho? Primeiro temos de sair daqui, e depressa, depois logo se pensa em comida.

Tudo bem. Nakata pode esperar.

Hoshino empurrou Nakata para a frente e, já na rua principal, tratou de mandar parar um táxi. Deu a morada ao motorista, este, com a cabeça fez sinal que conhecia o sítio e lá arrancaram. O táxi saiu da cidade, atravessou uma grande estrada e não parou até chegar aos subúrbios. A vizinhança era calma e chique, em

perfeito con­traste com a zona barulhenta nas imediações da estação onde haviam ficado instalados até à data. A viagem demorou qualquer coisa como vinte e cinco minutos.

Pararam em frente de um típico edifício de cinco andares, um prédio de elegantes apartamentos. Takamatsu Park Heights, estava escrito no letreiro, isto apesar de se situar ao nível do terreno e de não haver parque nenhum à vista (desarmada). Tomaram o elevador para o segundo andar, onde Hoshino, como seria de esperar, encon­trou a chave dentro do guarda-chuva. O apartamento era um clássico T 2, um quarto e uma sala, balcão de cozinha e casa de banho. Estava por estrear, pelo menos era esse o aspecto que dava, recheado com móveis acabados de sair da loja. Na sala de estar, havia um televisor de ecrã largo, uma aparelhagem pequena, um sofá e uma poltrona de assento duplo, e cada um dos quartos tinha a cama feita. A cozi­nha estava equipada com os utensílios do costume, as prateleiras com um bom sortido de pratos, chávenas e tigelas. Nas paredes viam--se gravuras em bonitas molduras, e o apartamento tinha todo o ar de funcionar como uma espécie de andar-modelo que o construtor conservasse nesse estado a fim de mostrar aos potenciais compra­dores.

Nada mau - observou Hoshino. - Não se pode dizer que seja muito original, mas ao menos está limpo.

Bonita casa - acrescentou Nakata.

O frigorífico, que era dos grandes, estava a abarrotar de comida. Murmurando para consigo mesmo, Nakata olhava para tudo e fazia os seus comentários a propósito disto e daquilo, acabando por tirar para fora alguns ovos, um pimento verde e manteiga. Lavou o pimento, (orlou-o em tirinhas e fritou-o. A seguir partiu os ovos para dentro de uma tigela e bateu-os com a ajuda de dois pauzinhos. Foi buscar uma frigideira e num instante preparou ali duas omeletas de pimento verde com mestria. Completou o prato com duas torradas e levou a refeição para cima da mesa de jantar, juntamente com chá acabado de fazer.

Saíste-me um cozinheiro e peras - disse Hoshino. - Estou impressionado.

Como Nakata viveu sempre sozinho, habituou-se a fazer de tudo.

Olha, também eu vivi sozinho e não me venhas pedir para para fazer seja o que for, porque sou uma nulidade na cozinha.

Nakata tem tempo de sobra e mais nada que fazer. Os dois banquetearam-se com as omeletas e as torradas. No final, ainda ficaram com fome, por isso Nakata enfiou-se outra vez na cozinha e tratou de saltear uns espinafres com bacon. Só depois disso é que começaram a sentir-se outra vez humanos. Esparramados o sofá, beberam então uma segunda chávena de chá.

Com que então - atirou Hoshino - o meu amigo matou uma pessoa?

Sim, Nakata matou um homem - respondeu Nakata, passando a relatar ao pormenor como apunhalara Johnnie Walker.

Céus - exclamou Hoshino quando o outro chegou ao fim.

Que episódio mais horripilante. Nunca a Polícia iria acreditar nisso, por mais verdadeira que a história possa ser. Quero dizer, eu acredito em ti, mas, se me tivesses vindo com isso há uma semana, mandar-te-ia dar uma curva.

O próprio Nakata não entende bem.

O que interessa é que temos uma pessoa morta, e um assassínio não é propriamente uma coisa que se possa deitar para trás das costas. Neste caso a Polícia não anda a dormir na forma, além de que já seguiram a tua pista até Shikoku.

Nakata lamenta tê-lo envolvido nesta história toda.

Quer isso dizer que não fazes tenções te entregar?

Não - respondeu Nakata com uma firmeza invulgar nele.

Nakata já tentou fazê-lo, mas agora é tarde. Nakata tem outras coisas para fazer. Senão, que sentido faria ter vindo de tão longe para nada?

Tens de voltar a fechar a entrada.

Precisamente, senhor Hoshino. Tudo o que for aberto, tem de ser fechado. E só então Nakata voltará à normalidade. Mas ainda há coisas pelo meio que têm de ser feitas, coisas de que Nakata precisa se ocupar primeiro do que tudo.

O Coronel Sanders, aquele fulano que me disse onde estava a pedra, continua a dar-nos cobertura. Muito gostaria eu de saber o que o leva a fazer isso. Querem lá ver que existe uma ligação entre ele e Johnnie Walker?

Quanto mais Hoshino dava voltas à cabeça para ver se deci­frava o enigma, mais confuso ficava. O melhor era não tentar encon­trar um sentido, decidiu ele, onde não existia sentido algum.

Pior do que ter pensamentos à toa é não ter pensamentos nenhuns - concluiu ele alto e bom som, cruzando os braços.

Senhor Hoshino? - indagou Nakata.

O que é?

Cheira a mar.

Hoshino foi até à janela, abriu-a, saiu para a varandinha e ins­pirou profundamente. Não lhe cheirou a mar nem nada parecido. Ao longe, brancas nuvens estivais pairavam sobre um pinhal.

Não me cheira a nada.

Nakata apareceu ao seu lado e começou, também ele, a aspirar o ar, franzindo o nariz como fazem os esquilos.

Cheira, cheira.-O mar fica mesmo ali adiante. Com o dedo, apontou na direcção da floresta.

Tens cá um faro - atalhou Hoshino. - Pela parte que me toca, tenho um problema de sinusite, por isso ando sempre um bocado entupido.

Senhor Hoshino, porque não vamos até à beira-mar? Hoshino reflectiu. Que mal faria dar uma voltinha pela

praia?

Okay, vamos lá embora.

Mas primeiro Nakata tem de fazer a sua cagadinha, se não se importar.

À vontade, pressa é coisa que não temos.

Enquanto Nakata estava no quarto de banho, Hoshino aproveitou para dar uma vista de olhos pelo apartamento, verificando tudo ao pormenor. Tal como o Coronel havia dito, havia ali de tudo, como na botica. Creme de barbear na casa de banho, duas escovas de dentes novas, bolas de algodão, adesivos, corta-unhas. Todos os objectos essenciais. Até um ferro de engomar e uma tábua de passar a ferro. Muito atencioso da parte dele, pensou Hoshino, apesar de imaginar que tudo aquilo seria obra da secretária. De qualquer maneira, a ver­dade é que não faltava ali nada.

Ao abrir um armário, encontrou roupa interior lavada e outras peças de vestuário. Nem uma camisa havaiana, infelizmente, apenas camisas de riscas e pólos ainda por estrear, da marca Tommy Hilfger.

E eu a pensar que o Coronel Sanders tinha o olho vivo deixou escapar Hoshino em tom lamurioso. - Era obrigação dele ter visto logo que eu só visto camisas havaianas. Uma vez que se deu a todo este trabalho, não lhe custava nada ter-me comprado ao menos uma. - Reparou então que a camisa que trazia vestida começava a cheirar um bocadinho mal e tratou de a despir e de enfiar um pólo pela cabeça. Assentava-lhe que nem uma luva.

Durante o passeio atravessaram o pinhal, passaram por cima de um quebra-mar e desceram até ao areal. Sentaram-se lado a lado i ficaram ali calados durante uma quantidade de tempo, vendo as fendas erguerem-se no ar como lençóis enfunados para depois se afundarem, com um som ténue. Ao largo vislumbravam-se pequenas Ilhas, dispersas.

Senhor Hoshino? - perguntou Nakata, quebrando o silêncio.

O que é?

O mar é bonito.

Também acho. Enche-nos de calma. Porque será?

Provavelmente por ser tão grande e vazio - respondeu Hoshino, apontando com a mão a imensa superfície.- De certeza que já não

4 Seiyu é um termo japonês que significa actor/actriz de voz para rádio, televisão (animação e anúncios comerciais) e jogos de computador. Extraordinariamente famosos, aparecem nas revistas, editam CD e têm clubes de fãs. (N. </a I.)


 te sentirias assim tão calmo se tivesses ali um Seven-Eleven, ou uma loja Seiyu, pois não? Ou uma casa de pachinko além ou um restaurante de camarão Yoshikawa acolá. Mas até onde a vista abarca, não existe nada. O que, temos de reconhecer, dá uma sensação porreira.

Pode ser que sim - assentiu Nakata, depois de pensar um bocadinho. - Senhor Hoshino?

O que é agora?

Nakata tem uma pergunta para lhe fazer acerca de outra coisa.

Diz.

O que existe no fundo do mar?

Aquilo lá em baixo é um mundo à parte, com todos os tipos de peixe, marisco, algas e assim. Alguma vez visitaste um aquário?

Não, nunca na vida. No sítio onde Nakata morou durante muito tempo, em Matsumoto, isso era coisa que não existia.

Pois, também me parece - considerou Hoshino. - Vendo bem, estamos a falar de uma cidade que fica no cu de Judas, no meio da montanha - o mais que se poderia esperar era encontrar por lá um museu de cogumelos ou coisa do género. Assim como assim, no fundo do mar vê-se toda a espécie de coisas. Os animais que o habitam não são como nós - retiram oxigénio da água e não precisam de ar para respirar. Existem por lá coisas lindíssimas, outras deliciosas, isto sem esquecer as espécies perigosas. E outras coisas que te poriam os cabelos em pés. Se nunca viste nada disso, torna-se difícil explicar, mas sempre te digo que é diferente de tudo aquilo a que estamos habituados. Nas profundezas do mar está muito escuro e andam por lá a rondar algumas das maiores criaturas que alguma vez se viu. Que tal irmos visitar um aquário quando toda esta trapalhada acabar? São lugares muito engraçados e há muito que não ponho os pés num. De certezinha que por aqui deve existir algum.

Sim, gostaria muito de ir a um sítio assim.

Agora sou eu que tenho uma pergunta para ti.

Diga.

No outro dia conseguimos erguer a pedra e abrir a entrada, não foi?

Sim, a entrada abriu-se graças aos dois. Depois Nakata caiu ferrado no sono.

Aquilo que eu quero saber é se aconteceu alguma coisa pelo facto de termos aberto a entrada?

Nakata assentiu com a cabeça.

Sim. Aconteceu.

Mas tu ainda não sabes o quê? Nakata abanou a cabeça com veemência.

Não, Nakata ainda não sabe.

Mas pode muito bem ser que esteja a acontecer qualquer coisa, neste preciso momento?

Sim, Nakata pensa que sim. Como diz, a coisa está a acontecer. Nakata está à espera de que chegue ao fim.

E quando o que quer que seja chegue ao fim, tudo se resolverá, certo?

Novo aceno negativo, e veemente, de cabeça.

Isso Nakata não sabe. Nakata só está a fazer o que deve. Mas não faz ideia do que acontecerá depois disso. Nakata não é muito brilhante, por isso sente dificuldade em entender o porquê de coisas complicadas. Nakata não sabe o que está para vir.

De qualquer maneira, ainda demora? Quer dizer, até que seja I-i n que for que está a acontecer chegue a bom porto?

Exactamente.

E enquanto esperamos que isso aconteça temos de ter cuidado para não sermos apanhados pela Polícia. Porque ainda há coisas que têm de ser feitas?

Exacto. Nakata não tem nada contra ir à Polícia. Ele faz tudo o que governador lhe disser. Agora não é boa altura, só isso.

Sabes que mais? Se a tua bizarra história chegasse aos ouvidos dos chuis, o que eles fariam logo era descartá-la e, em sua substituição, engendrar uma confissão decente, uma coisa em que toda a gente acreditasse. Dizendo, por exemplo, que entraras em casa para roubar e que, ouvindo alguém aproximar-se, foste à cozinha buscar uma faca e esfaqueaste essa pessoa. Eles estão-se marimbando para os fatos reais, ou para o que está certo. O que lhes interessa é arranjar quem encaiaixe no perfil de culpado, a fim de manterem um alto índice de detenções, não vêem mais nada à frente dos olhos. Quando dás por ti estás metido na prisão ou numa instituição psiquiátrica de alta segurança. Prendem-te lá e deitam fora a chave. Como não tens dinheiro para contratar um advogado daqueles mediáticos, que andam nas bocas do mundo, atiram-te à cara um advogadozeco qualquer, nomeado pelo tribunal, que se está nas tintas para o processo, e é assim que as coisas se passam.

Nakata não conseguiu apanhar tudo...

Só te estou a dizer como é que a Polícia funciona. Acredita--me, sei por experiência própria - afirmou Hoshino. - Por essas e por outras é que quero evitar que te deitem a mão. A bófia e eu não se pode dizer que sejamos unha com carne.

Nakata lamenta ter-lhe causado tantos problemas. Hoshino soltou um enorme suspiro.

Como se costuma dizer, «com o prato vem o veneno».

O que é que isso quer dizer?

Se uma pessoa vai tomar veneno, já agora pode muito bem comer o prato.

Mas, se comer o prato, morre. Além de que não faz nada bem aos dentes. E faz doer a garganta.

Sou obrigado a concordar contigo - reconheceu Hoshino, espantado com o raciocínio. - Sim, vendo bem, por que carga de água é que temos de comer o prato?

Nakata não é lá muito esperto, por isso não lhe posso responder a isso. Mas, sem contar o veneno, só o prato já é difícil de engolir.

Hum. Podes crer. Eu próprio começo a sentir-me confuso. Não se pode dizer que também eu seja muito dado a usar a cabeça. O que estou a tentar dizer é que, visto que cheguei até aqui, faço tenções de ficar ao teu lado e de garantir que te safas. Não acredito nem por um minuto que tenhas feito algo de mal, de modo que não te vou abandonar para aí. Tenho a minha honra, não sei se sabes?

Muito obrigado. Nakata não sabe como agradecer. E correndo o risco de abusar da sua bondade, tem mais um favor a pedir.

Força.

Vamos precisar de um carro.

Pode ser um carro alugado?

Nakata não sabe o que isso é, mas qualquer carro serve. Grande ou pequeno, tanto faz desde que ande.

Não há problema. Esse, sim, é o meu ramo. Daqui a nada já vou ver o que se arranja. Quer então dizer que vamos seguir um deter­minado rumo?

Parece que sim. Provavelmente vamos seguir um determinado rumo.

Sabes uma coisa, meu bom Nakata?

Sim?

Ao teu lado nunca corro o risco de me chatear. Não há nada que não aconteça, algumas coisas bem estapafúrdias, por sinal, mas de shato não têm nada.

Ainda bem que diz isso. Nakata fica muito mais aliviado. Mas, senhor Hoshino, diga lá uma coisa.

O que é?

Nakata não tem a certeza de saber o que «chato» quer dizer. Nunca estiveste chateado?

Não, nem uma única vez.

Sabes uma coisa? Palpitava-me que contigo isso podia

 

De caminho paramos numa cidade para comer qualquer coisa e comprar mercearias e água mineral no supermercado, depois metemos pela estradinha de terra batida que atravessa as montanhas e vai dar à cabana. Por dentro, está exactamente como me lembro de a ter deixado. Antes de tirar para fora a comida, abro a janela para arejar a casa.

Vou dormir uma sesta antes de regressar - diz Oshima, escon­dendo praticamente a cara com as mãos ao mesmo tempo que deixa escapar um enorme bocejo. - A noite passada quase não preguei olho.

Deve estar exausto, porque adormece automaticamente, mal cai na cama, virado para a parede. Faço café e encho a garrafa-termo para ele levar na viagem de volta. Em seguida meto-me a caminho do riacho e levo comigo o jarro de alumínio para encher de água. A floresta não mudou nada - o mesmo cheiro a ervas, o grito dos pássaros, o murmúrio da água no ribeiro, o sussurro do vento que faz estremecer as folhas nas árvores. Por cima de mim, as nuvens parecem ao alcance da mão. Aquilo provoca-me uma espécie de nostalgia, como se sentisse que se tornaram parte de mim.

Enquanto Oshima dorme aproveito para me sentar no alpen­dre, bebo chá e leio um livro sobre a invasão da Rússia, levada a cabo por Napoleão, em 1812. No decorrer de uma campanha em massa e sem sentido, contaram-se em cerca de quatrocentos mil os soldados franceses que perderam a vida nesse país longínquo e imenso. Como não podia deixar de ser, as batalhas foram brutais e pavorosas, mas o que é um facto é que também não havia médicos nem medica­mentos em quantidade suficiente, o que levou a que muitos dos soldados gravemente feridos fossem abandonados, em quantidade suficiente, o que levou a que muitos dos soldados gravemente feridos fossem abandonados, condenados a morrer numa agonia terrível. A maioria morreu de frio ou de fome, o que não deixa de ser uma maneira igualmente tenebrosa de encontrar a morte. Ali sentado no alpendre, a beber chá de ervas em pequenos goles, com os pássaros a chilrear à minha volta, atento a todos os ruídos em redor, deixei que a minha mente vagueasse até os campos de batalha na distante Rússia, para junto daqueles homens enterrados até aos joelhos no meio da neve.

Avanço até mais de meio do livro. Nessa altura, levanto-me e vou ver se está tudo bem com Oshima. Bem sei que ele deve estar exausto, mas até mesmo para uma pessoa a dormir está sossegado de mais. E isso deixa-me inquieto. Mas afinal está tudo bem com ele; embrulhado na colcha, dorme tranquilamente. Fico à cabeceira da cama, a ver os seus ombros que se erguem e baixam muito ao de leve. Ali de pé, lembro-me de repente de que ele é uma mulher. Na maior parte do tempo esqueço isso e penso nele como um homem. O que é, obviamente, o que ele deseja. Agora que o vejo a dormir, porém, é como se tivesse voltado a ser mulher.

Regresso ao alpendre e retomo a leitura. Imagino-me outra vez em Smolensk, onde corpos gelados se alinham à beira da estrada.

Em quantidade suficiente, o que levou a que muitos dos soldados gravemente feridos fossem abandonados, condenados a morrer numa agonia terrível. A maioria morreu de frio ou de fome, o que não deixa de ser uma maneira igualmente tenebrosa de encontrar a morte. Ali sentado no alpendre, a beber chá de ervas em pequenos goles, com os pássaros a chilrear à minha volta, atento a todos os ruídos em redor, deixei que a minha mente vagueasse até os campos de batalha na distante Rússia, para junto daqueles homens enterrados até aos joelhos no meio da neve.

Avanço até mais de meio do livro. Nessa altura, levanto-me e vou ver se está tudo bem com Oshima. Bem sei que ele deve estar exausto, mas até mesmo para uma pessoa a dormir está sossegado de mais. E isso deixa-me inquieto. Mas afinal está tudo bem com ele; embrulhado na colcha, dorme tranquilamente. Fico à cabeceira da cama, a ver os seus ombros que se erguem e baixam muito ao de leve. Ali de pé, lembro-me de repente de que ele é uma mulher. Na maior parte do tempo esqueço isso e penso nele como um homem. O que é, obviamente, o que ele deseja. Agora que o vejo a dormir, porém, é como se tivesse voltado a ser mulher.

Regresso ao alpendre e retomo a leitura. Imagino-me outra vez em Smolensk, onde corpos gelados se alinham à beira da estrada.

Oshima dorme durante mais duas horas. Quando finalmente acorda, vai até ao alpendre e fica a olhar para o carro. O caminho, não alcatroado e poeirento, quase transformou o Miata verde num carro branco. No meio de grandes espreguiçamentos, vem sentar-se junto a mim.

Estamos na estação das chuvas - diz, esfregando os olhos -, mas este ano quase não choveu. Se isso não acontecer dentro de pouco tempo vamos ter falta de água em Takamatsu.

Alrevo-me a fazer uma pergunta.

A senhora Saeki sabe onde eu estou?

Ele abana a cabeça.

Nao, achei que era melhor não lhe dizer nada. Ela nem sequer sabe que eu tenho uma cabana para estas bandas. É melhor deixá-la no escuro, para não se envolver nesta trapalhada toda. Quanto menos souber menos precisa de esconder.

Concordo com a cabeça. Era precisamente isso que eu queria ouvir.

É preciso ver que ela já teve a sua conta - diz Oshima.

Contei-lhe que o meu pai tinha morrido há pouco - digo eu.

Que foi assassinado por alguém. Deixei de parte a história de a Polícia andar à minha procura

É uma mulher muito inteligente. Mesmo que nenhum de nós desse a entender grande coisa, tenho toda a certeza de que ela já se apercebeu do que está a acontecer. Por isso, se eu amanhã lhe disser que tinhas uma coisa que precisavas de fazer e que tiveste de te ausentar durante um tempo, e que pediste para eu me despedir dela por ti, duvido de que faça muitas perguntas. Mesmo que não lhe diga mais nada, de certeza que aceita tudo sem mais explicações.

Faço um sinal de assentimento.

Mas queres mesmo vê-la, não é?

Não respondo porque não sei como explicar. Mas a resposta não é difícil de adivinhar.

Tenho muita pena - prossegue Oshima -, mas, tal como disse, acho melhor não se encontrarem durante um tempo.

Mas posso nunca mais voltar a vê-la.

É provável - admite Oshima, depois de reflectir um momento.

O que vou dizer pode parecer-te muito óbvio, mas a verdade é que só sabemos se as coisas acontecem ou não depois de terem sucedido. Além disso, muitas vezes as coisas não são o que pare­cem.

Como se sentirá a Saeki-san?

Oshima semicerra os olhos e olha para mim.

Acerca do quê?

Quero dizer, sabendo ela que nunca mais me irá ver, será que sente o mesmo que eu agora sinto?

Oshima faz uma careta.

Porque me perguntas isso?

Não faço ideia, por isso mesmo é que estou a perguntar. Até à data não sabia o que era amar alguém, desejar uma pessoa mais do que tudo. Nem sabia o que é ter alguém que me desejasse.

Imagino que te sintas confuso e sem saber o que fazer. Aceno com a cabeça, em sinal de concordância.

É isso mesmo.

Não sabes se ela corresponde a esses sentimentos tão fortes e puros que tens por ela - diz Oshima.

Abano a cabeça.

Fico com o coração nas mãos só de pensar nisso. Oshima remete-se ao silêncio durante algum tempo, percorrendo

com os olhos semicerrados a floresta. Os pássaros saltitam de árvore em árvore. Ele cruza os braços atrás da cabeça.

Sei como te sentes - diz, por fim. - Mas isto é uma coisa que tens de ser tu a avaliar e a decidir. Ninguém te pode ajudar. O amor é isso mesmo, meu caro Kafka. Tu é que andas nas nuvens e experimentas todos esses sentimentos maravilhosos, do mesmo modo que só tu é que desces ao abismo mais profundo da angústia. E o teu corpo e a tua alma têm de suportar. Estás entregue a ti próprio.

Passa das duas quando ele finalmente se prepara para seguir viagem.

Se tiveres atenção ao que comes - diz-me ele -, tens que chegue para uma semana. Nessa altura já devo estar de volta. Se ai tililecer alguma coisa que me impeça de vir, peço ao meu irmão |yt ie traga algumas provisões. Ele vive a cerca de uma hora de distância. Já lhe contei que estavas aqui. Por isso, não fiques preocupado, está bem?

tudo bem.

E não te esqueças, todo o cuidado é pouco. Abre-me bem os   olhos caso te aventures pelo bosque dentro. Se te perderes, o mais certo é nunca encontrares o caminho de volta.

Terei cuidado.

Antes de a Segunda Guerra Mundial começar, uma grande unidade de tropas ao serviço do imperador foi destacada para executar manobras neste local, tendo por objectivo simular batalhas com o exercito soviético nas florestas da Sibéria. Já te falei neste episódio?

Nao.

Parece que me esqueci do mais importante - confessa Oshima com ar de menino apanhado em falta, batendo com o dedo na testa.

Mas este sítio não se parece em nada com a floresta siberiana - replico eu.

Tens razão. Aqui as árvores são todas de folha caduca, ao passo que na Sibéria são de folha persistente, mas não creio que os se preoc upassem com pormenores desse género. O objectivo deles era avançar floresta dentro em posição de combate e levar por diante os seus jogos de guerra.

Oshima serve-se de uma chávena de café feito por mim e guardado no termo, deita-lhe um torrão de açúcar e parece ficar satisfeito com o resultado.

Os militares perguntaram ao meu pai se podiam usar a monta­nha para os seus treinos, e ele disse-lhes que estivessem à vontade. Afinal de contas, não havia mais ninguém por estas paragens. A unidade percorreu o trecho de caminho que nós fizemos para chegar aqui e depois embrenhou-se na floresta. No entanto, quando terminaram os exercícios, verificaram que dois soldados haviam faltado à chamada. Pura e simplesmente tinham-se evaporado, com equipamento de combate completo e tudo, por sinal dois acabados de alistar. O exército procedeu a uma busca intensiva, mas os dois soldados nunca chegaram a aparecer. - Oshima bebe mais um gole de café. - Até hoje ninguém conseguiu saber se eles se perderam ou se desertaram. A floresta aqui à volta é incrivelmente densa, e não estou muito bem a ver onde é que eles iriam arranjar alguma coisa de comer.

Aceno em sinal de concordância.

Existe um outro mundo, paralelo ao nosso e, até certo ponto, conseguimos penetrar nesse mundo e depois regressar sãos e salvos. Desde que se tenha cuidado. Mas, passando para além de um certo limite, corre-se o risco de perder o norte. Sabes onde o conceito de labirinto apareceu pela primeira vez?

Respondo que não com a cabeça.

Foi na Antiga Mesopotâmia. Extraíam as entranhas dos animais, e de seres humanos também, possivelmente, e baseavam-se na forma que tinham para prever o futuro. Apreciavam a forma complexa dos intestinos. Daí que se pode dizer que o protótipo dos labirintos reside, numa palavra, nos intestinos. O que significa que o princípio que presidiu à invenção do labirinto reside dentro de ti. E isso está de alguma forma relacionado com a noção de labirinto fora de ti.

Mais uma metáfora - alvitro eu.

Exactamente. Uma recíproca metáfora. As coisas no exterior são projecções do que tens dentro de ti, e o que tens dentro de ti é uma projecção do que te rodeia. Por isso, quando entras no labirinto exterior que te cerca, estás ao mesmo tempo a penetrar no teu labirinto interior. Uma odisseia perigosa, sem sombra de dúvida.

Como Hansel e Gretel.

Exactamente como eles. A floresta constitui uma armadilha e faça uma pessoa o que fizer, por mais cuidado que tenha, paira Itmpre a ameaça de aparecerem os pássaros de olhos agudos, que comem as migalhas de pão todas que deixáramos para assinalar o caminho.

Prometo que vou ter cuidado.

Oshima baixa a capota do Miata e entra no carro. Põe os óculos escuros e pousa a mão na alavanca das mudanças. O som familiar do motor a arrancar ecoa pela floresta. Ele afasta o cabelo da cara, faz um breve aceno com a mão, em jeito de despedida, e desaparece. No sitio onde esteve levanta-se uma nuvem de poeira, mas o vento não tarda a dissipá-la.

Regresso à cabana. Deito-me de barriga para baixo em cima da cama o fecho os olhos. Agora que penso nisso, dou-me conta de não ter dormido a noite passada. A almofada e a colcha ainda conseravam as marcas do corpo de Oshima. Melhor dizendo, não tanto as marcas dele, mas as marcas deixadas pelo sono dele. Afundo-me mais e deixo-me envolver por eles. Devo ter dormido para aí uma meia hora quando sou acordado por um estrondo fora, como se um tronco de árvore se tivesse quebrado e caído por terra. Não consigo voltar a adormecer. Levanto-me e vou até ao alpendre investigar o misterioso barulho, mas tudo parece estar na mesma. Talvez se trate de um dos misteriosos que a floresta produz de vez em quando. Ou talvez nao tivesse passado de um sonho. Não consigo distinguir uma coisa da outra.

Sento-me no alpendre e fico ali a ler o meu livro até o Sol se afundar no ocaso.

Preparo uma refeição simples e como em silêncio. Depois de lavar os pratos volto a refastelar-me no velho sofá e ponho-me a pensar na Saeki-san.

«Tal como Oshima disse, a Saeki-san é uma pessoa inteligente. Além disso, sabe fazer as coisas», diz o rapaz chamado Corvo. Encontra-se sentado a meu lado no sofá, tal como costumava acontecer estavamos no escritório do meu pai. «Ela é muito diferente de t» continua ele a dizer-me.

Ela é muito diferente de ti. Ultrapassou todo o tipo de obs­táculos - e, diga-se de passagem, alguns não eram propriamente obs­táculos normais, daqueles que se encontram na vida de todos os dias. Ela está a par de todo o tipo de coisas que tu desconheces, experi­mentou toda uma variedade de emoções que nunca sentiste. Quanto mais tempo as pessoas vivem, melhor aprendem a distinguir o que é importante do que não é. Ela já se viu obrigada a tomar uma série de decisões e sofreu o confronto com o que daí resultou. Volto à carga. Muito diferente do teu caso. Não passas de uma criança que viveu sempre confinada ao seu pequeno mundo e pouco ou nada conhece da vida. Trabalhaste no duro para te tornares mais forte, e nalgumas áreas conseguiste o teu objectivo. Isso é um facto. Mas agora encontras-te num mundo novo, a pisar terreno desconhecido, numa situação em que nunca te viste antes. Aos teus olhos, é tudo novo, por isso não admira que estejas confuso e te sintas algo desamparado.

Não admira que estejas confuso. Uma coisa que não entendes lá muito bem é se as mulheres têm desejo sexual. Teoricamente, claro que isso acontece. Até aí, ainda chegas. Mas quando se trata de saber como é que a libido se manifesta, de que formas se reveste - aí, ficas perdido. No que toca ao teu próprio desejo sexual, sem espinhas. Mas o desejo feminino, particularmente o desejo da Saeki-san, per­manece um mistério. Quando te apertou nos seus braços, terá conhe­cido, também ela, o êxtase físico? Ou estaremos a falar de uma coisa completamente diferente?

Quanto mais pensas no assunto, mais detestas o facto de teres quinze anos. Sentes-te impotente. Se ao menos tivesses vinte - não, até mesmo dezoito já serviria, tudo menos quinze -, nessa altura poderias entender melhor o significado das suas palavras e dos seus actos. O que equivale a dizer que poderias responder-lhe à letra. De momento estás a atravessar uma fase maravilhosa, uma coisa tão fantástica que podes nunca mais voltar a experimentar nada parecido. Mas não consegues entender até que ponto tudo isso é, de facto, maravilhoso. E isso torna-te impaciente. E a impaciência, é certo e sabido, conduz ao desespero.

Esforças-te por imaginar o que poderá ela estar a fazer neste momento. É segunda-feira e a biblioteca está fechada. Que fará ela neses dias? Pões-te a imaginá-la sozinha, no apartamento. Lava a roupa, cozinha, sai para fazer as compras da casa - pela tua cabeça I ittHsam te de fugida todos os cenários possíveis e imagináveis. Quanto mais coisas imaginas, mais dificuldade tens em ficar aqui quieto. Só te apetece é transformares-te num corvo audaz e voares daqui para fora, para longe desta cabana. Tens vontade de rasgar os céus e perscutares o horizonte para além das montanhas, só parando quando tiveres do lado de fora do seu apartamento e puderes ficar ali a olhar eternamente para ela.

Pode muito bem acontecer que ela se meta no carro, vá até à biblioteca e entre no teu quarto. Bate à porta, mas não obtém resposta, porta não está fechada à chave. Ela descobre que te foste embora, ima ficou feita. As tuas coisas desapareceram todas. Ela interroga-se sobre o teu paradeiro. Talvez se deixe ficar ali à espera de que regresses, sentada à secretária, com a cabeça nas mãos, a contemplar Kafka à Beira-Mar. A pensar sobre o passado que se esconde por detrás daquele quadro. Ela espera durante muito tempo, mas tu não voltas que desiste, dirige-se ao Golf que está parado no parque de estacionamento e põe o motor a trabalhar. A última coisa que tu e que ela se vá embora assim. Queres abraçá-la e descobrir slgiiific a cada movimento do seu corpo. Mas a verdade é que não estás lá. Estás aqui, sozinho, longe de tudo e de todos.

Vais para a cama e apagas a luz, na esperança de que ela te apareça neste quarto. Não tem sequer de ser a verdadeira Sr.a Saeki – a rapariguinha de quinze anos também servia. Pouco importa a forma que ela possa ter - um espírito vivo, uma ilusão -, o que sabes é que tens de vê-la, de estar com ela. Tens o cérebro tão cheio dela que quase rebenta. Sentes o corpo prestes a explodir e a ficar em pedaços. Contudo, por mais que queiras que ela esteja aqui contigo, por mais que esperes, ela nunca aparece. Tudo o que ouves é o suave sussurro do vento lá fora, o monocórdico arrulhar dos pássaros na noite. Susténs a respiração ao mesmo tempo que perscrutas intensamente as trevas. Ouves o vento, tentando ler nele algum sinal, esforçando-te por detetar alguma mensagem no ar. Mas, em volta, apenas a escuridão persiste nos seus vários matizes. Por fim, desistes, fechas os olhos e adormeces.

 

Hoshino procurou agências de aluguer de carros nas Páginas Amarelas, escolheu uma ao acaso e telefonou para lá.

Só preciso de um carro para andar durante dois ou três dias - explicou ele -, por isso qualquer coisa que não seja muito grande e não dê muito nas vistas serve.

Talvez eu não devesse dizer isto referiu o empregado da agência -, mas uma vez que alugamos apenas Mazdas não se pode dizer que tenhamos um único veículo que se distinga dos outros. Se é por isso, pode ficar descansado.

Porreiro.

Que tal um Familia? Trata-se de um carro muito seguro, e ga­ranto-lhe que ninguém dará por ele.

Nesse caso, parece-me perfeito. Levo então o Família.

A agência não ficava longe da estação. Hoshino ficou de ir levantar o carro dali a uma hora.

Apanhou um táxi até lá, mostrou ao empregado o cartão de crédito e a carta de condução e alugou o carro por dois dias. Tal como anunciado, o Familia branco estacionado à entrada não podia ser mais cinzento. Bastava tirar os olhos dele por um minuto para já não se ser capaz de o descrever. Um feito notável, acrescente-se, em matéria de anonimato.

Na viagem de regresso ao apartamento, Hoshino parou numa livraria e comprou um mapa da cidade de Takamatsu e outro que tinha o sistema rodoviário abrangendo a auto-estrada de Shikoku. Deu uma saltada a uma loja de CD para ver se encontrava algum exem­plar do Frio Arquiduque, de Beethoven, mas a lojeca possuía apenas uma modesta secção de música clássica e só viu por uma versão diquelas modestas a um preço muito simpático. Nada que se comparasse com o Million DollarTrio, mas Hoshino não se fez rogado e lá desembolsou os mil ienes da ordem.

Quando chegou, um aroma reconfortante enchia a casa toda. Enfiado na cozinha, Nakata afadigava-se a preparar daikon cozido ao vapor acompanhado de tofu frito.

Como Nakata não tinha nada para fazer, entreteve-se a cozi­nhai meia dúzia de coisas - explicou ele.

Porreiro - exclamou Hoshino. - Tenho andado a comer di muladas vezes fora e sempre sabe bem uma refeiçãozinha caseira, para variar. A propósito, tenho o carro comigo. Está estacionado lá fora. Precisas dele para já?

Não, amanhã é bom dia. Hoje, Nakata ainda precisa de ter uma conversinha com a pedra.

Boa ideia. Conversar é importante. Seja com as pessoas, com as coisasa ou seja com o que for, conversar é sempre o melhor a fazer. Sabes, quando estou ao volante do meu camião eu próprio falo muitas vezes com o motor. Se uma pessoa aguçar o ouvido e prestar atenção, capta toda a espécie de coisas.

Tem razão. Nakata não sabe falar com motores, mas sabe que Impértanle discutir as questões.

E com a pedra, como vão as coisas? conseguiste comunicar com ela?

Estamos a dar os primeiros passos.

Isso é que é importante. Estava aqui a pensar - será que a pedra ficou chateada por a termos trazido até aqui?

Nada disso. Por aquilo que Nakata percebe, a pedra não se importa com o sítio.

Ainda bem, que alívio! - suspirou Hoshino. - Depois de tudo aquilo por que passámos, se a pedra se virasse contra nós, então é que ia ser o bom e o bonito.

Hoshino passou a tarde a escutar o CD. A interpretação não era espontânea nem tão memorável como aquela que ele tinha ouvido no café. Era mais controlada e mais sóbria, mas não se podia dizer que fosse propriamente má. Refaslelado no sofá, oshino deixou-se invadir pela sonoridade do piano e das cordas. A bonita melodia apoderou-se dele, as subtis convoluções despertando algo no mais profundo dos seus sentidos.

Acaso lhe tivesse sido dado escutar esta música há urna semana, disse ele de si para si, não teria sido capaz de sentir a mínima emoção - nem tão-pouco teria sentido vontade de o fazer. Mas um feliz acaso levara-o até àquele cafezinho onde se sentara numa poltrona e saboreara o seu café ao som de música. E agora, continuou ele a pensar, eis--me aqui a apreciar Beethovenl Quem diria? Uma evolução digna de registo, sem sombra de dúvida.

Pôs a tocar o disco vezes sem conta, saboreando a sua recente condição de melómano de trazer por casa. O CD apresentava ainda, sob o signo de Beethoven, O Fantasma. Não se podia dizer que fosse uma peça fraca, isto apesar de O Arquiduque ser indiscutivelmente a sua preferida. Possuía mais profundidade, diria ele.

Enquanto isto, Nakata permanecia a um canto da sala, de frente para a pedra e a resmonear qualquer coisa. Volta e meia, acenava ou coçava a cabeça. Dois homens, cada qual fechado no seu pequeno mundo.

A música incomoda-te? - perguntou Hoshino.

Não, mesmo nada. A música não incomoda Nakata. A música é como o vento.

Com que então, o vento?

Às seis, Nakata foi tratar do jantar - salmão grelhado e uma salada, mais seis pequenos pratos de acompanhamento, todos confeccionados por ele. Hoshino ligou a televisão e acompanhou de perto as notícias para ver se havia novos desenvolvimentos no caso do assassínio. Mas nem uma palavra sobre isso. As novidades eram outras - o rapto de uma criança, as represálias do costume entre israelitas e palestinianos, um acidente de viação em cadeia numa auto--estrada no Oeste do Japão, a actuação de uma quadrilha de ladrões liderada por estrangeiros, mais um daqueles comentários estúpidos e discriminatórios proferido por um senhor ministro, despedimentos em massa nas empresas do setor das comunicaçoes. Nem uma única boa noticia para amostra.

Sentaram-se à mesa e jantaram.

Está tudo muito bom - elogiou Hoshino. - És um cozinheiro de truz.

Muito obrigado. Mas o senhor é a primeira pessoa para quem Nakata alguma vez cozinhou.

Estás a dizer-me que não tens amigos e familiares com quem tenhas por hábito comer à refeição?

Nakata conhece muitos gatos, mas o que eles comem e o que Nakata come não é bem a mesma coisa.

Sim, de facto - reconheceu Hoshino. - Bom, mas o que eu queria dizer é que isto está tudo delicioso. Sobretudo os legumes.

Ainda bem que acha. Nakata não sabe ler, por isso às vezes iimele os erros mais inacreditáveis na cozinha. Daí que use sempre os mesmos ingredientes e cozinhe sempre tudo da mesma maneira. Se Nakata soubesse ler, prepararia uma enorme variedade de pratos.

Por mim, acho que está tudo óptimo.

Senhor Hoshino? - perguntou Nakata com uma voz séria, sentando-se direito.

Sim?

O facto de não saber ler torna a vida mais difícil.

Imagino que sim - afirmou Hoshino. - O texto que acompanha este CD diz que Beethoven era surdo. Tratava-se de um compositor famoso, o maior pianista em toda a Europa quando era novo. Mas um dia, possivelmente devido à doença, começou a ficar surdo. Para o fim da vida já não ouvia nada. Deve ser muito duro para um compositor, não poder ouvir. Dá para entenderes?

Nakata entende.

Um compositor surdo é como um cozinheiro que perdeu o paladar. Um sapo que perdeu a sua membrana. Um camionista com a carta apreendida. Isso é uma coisa que deixa qualquer sem saber ine lazer. Mas Beethoven não se foi a baixo. Claro que deve ter tido os seus momentos de depressão, ao ser apanhado de surpresa, mas não deixou que o infortúnio se atravessasse no seu caminho. «Um problema?», deve ter ele pensado. «Que problema?» Começou a compor ainda mais e saiu-se ainda com melhores composições. Tenho uma grande admiração pelo sujeito. Olha, como esle Trio Arquiduque. Estava quase surdo quando o compôs - dá para acreditar? O que estou a tentar dizer é que, por mais difícil que seja para ti não saberes ler, não é o fim do mundo. Podes não ser capaz de ler, mas existem outras coisas que só tu sabes fazer. E é nisso que tens de te aplicar - nos teus pontos fortes. Como, por exemplo, seres capaz de falar com a pedra.

Sim, Nakata agora já consegue falar um bocadinho com ela. Antigamente Nakata costumava ser capaz de falar com gatos.

Mais ninguém se pode orgulhar disso, certo? As outras pessoas podem ler os livros todos que quiserem e nem mesmo assim ficarão alguma vez a saber como se chega à fala com pedras ou com gatos.

Mas, senhor Hoshino, por estes dias Nakata teve muitos sonhos. E nesses sonhos, vá lá saber-se porquê, Nakata sabe ler. Não é tão burro como agora. Anda feliz da vida, vai à biblioteca e farta--se de ler livros. E começa a pensar como seria maravilhoso se conseguisse ler. E ele está ali a devorar um livro atrás do outro, mas é então que as luzes se apagam e fica escuro. Alguém desligou a luz. Ele não vê nada. E deixa de poder ler. E é nessa altura que Nakata acorda. Nem que seja pelo tempo de um sonho, sabe maravilhosa­mente bem saber ler.

Interessante - advoga Hoshino. - E aqui estou eu, capaz de ler e que mal peguei num livro. O mundo não deixa de ser um lugar tramado, tão certo como eu me chamar Hoshino.

Senhor Hoshino? - perguntou Nakata.

Diz.

Que dia da semana é hoje?

Sábado.

Nesse caso amanhã é domingo?

Normalmente é assim.

Podemos sair amanhã com o carro?

Claro que sim. Mas para onde vamos?

Nakata não sabe. Logo se vê quando estivermos dentro do carro.

Acredites ou não - rematou Hoshino -, palpitava-me que ia sair uma coisa do género.

Quando na manhã seguinte Hoshino acordou, pouco passava das sete e Nakata já estava a tratar do pequeno-almoço. Hoshino fechou-se na casa de banho, lavou energicamente a cara com água

fria e fez a barba com a máquina eléctrica. O pequeno-almoço constou de arroz, sopa de miso com beringela, cavala fumada e picles. Hoshino serviu-se duas vezes de arroz.

Enquanto Nakata lavava a loiça, Hoshino ficou a ver as notícias na televisão. Desta vez foi para o ar uma pequena peça sobre o crime ocorrido em Nakano. «Já passaram dez dias desde o trágico incidente, mas a Polícia continua sem ter pistas», anunciou o apresentador da NHK. No ecrã passaram imagens do imponente portão de uma casa protegida por um cordão de segurança e com um agente fardado de plantão. «Prosseguem as buscas no sentido de encontrar o jovem desaparecido de quinze anos, mas o seu paradeiro continua por apurar. Prossegue igualmente a tentativa de encontrar um homem, na casa dos setenta anos, que vive nas redondezas e que se apresentou de livre vontade na esquadra pouco depois do incidente a fim de se proceder à recolha de mais informações sobre o crime. À falta de noticias conclusivas, só se pode especular acerca da possível ligação entre estas duas pessoas. Atendendo ao facto de a casa não ter sido vandalizada, a Polícia acredita que se tratou de um acto de vingança pessoal e não de um roubo que tenha corrido mal, encontrando-se presentemente a investigar os amigos de Koichi Tamura, bem como aqueles que com ele estavam de alguma forma relacionados. No Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio, onde decorre uma honagem à obra artística do escultor...»

Anda ouvir isto, avozinho - chamou Hoshino na direcção da cozinha, onde se encontrava Nakata.

Sim que é?

Por acaso conheces o filho daquele tipo que foi assassinado em Nakano? Um rapaz de quinze anos?

Não, esse filho não é conhecido de Nakata. Como disse, só conhece Johnnie Walker e o seu cão.

Hmm - murmurou Hoshino. - A Polícia também anda à procura do rapaz. Filho único, segundo parece, e da sua mãe ninguém ouviu falar. Se calhar fugiu de casa antes do crime e continua desarecido.

Ai sim?...

Um caso bicudo, este assassínio - afirmou Hoshino. – Mas a bófia muitas vezes está bem informada, só não abre é a boca cá para fora. Sabem sempre mais do que fazem crer, aqueles tipos. Diz o Coronel Sanders que eles andam atrás de ti, e que sabem que estás em Takamatsu. Mas não é tudo. Sabem também que andas na compa­nhia de um tipo novo e bem-afiambrado como eu. Agora, passaram essa informação para os órgãos de informação? Tá quieto, ó meu! Receiam que, se divulgarem o nosso paradeiro, nós tratemos de bater a asa. Por isso é que publicamente insistem em dizer que não sabem onde estamos. São frescos, estes polícias.

Eram oito e meia quando entraram no carro alugado e se prepararam para seguir viagem. Ao sentar-se, como era seu costume, no banco do passageiro, Nakata levava consigo o seu termo com chá quente, isto sem esquecer o seu fiel gorro deformado, o guarda-chuva e o saco de lona. Iam a sair do apartamento quando Hoshino, que se preparava para enfiar o seu boné dos Chunichi Dragons olhou para o espelho e imobilizou-se bruscamente. A Polícia devia saber que o tal jovem de que andava à procura costumava andar com um boné dos Dragons, óculos Ray-Ban verdes e camisa havaiana. Não devia haver assim tanta gente ali em Takamatsu com bonés dos «dragões», isto para não dizer que, com os Ray-Ban e a camisa, dava nas vistas como um dedo ferido. Devia ter sido por isso que o Coronel Sanders enchera a gaveta de discretos pólos azul-marinho - devia ter previsto o que ia acontecer. Não lhe escapa nada, pensou Hoshino, atirando os óculos e o boné para o lado.

Então, para onde é que o meu amigo manda? - indagou ele. -Tanto faz - respondeu Nakata. - Se puder dar uma voltinha

pela cidade, melhor.

De certeza?

Para onde quiser, senhor Hoshino. Nakata entretém-se a ver as vistas.

Esta é boa - exclamou Hoshino. - Já me fartei de conduzir, quer no exército quer na empresa de camionagem, e orgulho-me de ser um condutor com provas dadas, se me é permitida a imodéstia. Mas nunca me aconteceu pegar no volante sem saber para onde vou nem qual é o meu destino. É assim que estou acostumado, o que se há-de fazer? A mim, nunca houve ninguém que me dissesse: Olha, é indiferente, segue viagem para onde quiseres. Estás a deixar-me desnorteado.

Queira desculpar.

Tudo bem, não precisas de te desculpar. Vou empenhar-me a fundo afirmou Hoshino. Dito isto, pôs a tocar no leitor o CD do Trio Arquiduque. - Vou começar a percorrer as ruas da cidade o mais devagar que puder enquanto tu aprecias a vista, pode ser?

Sim, isso seria o ideal.

Paro o carro assim que tu encontrares aquilo de que estamos à procura. E nessa altura a história encaminha-se numa outra direcção. Está bem visto?

Sim, pode muito bem acontecer.

Oxalá - disse Hoshino, e desdobrou o mapa da cidade no colo.

Andaram às volta pela cidade, Hoshino tomando nota de todas as ruas num bloco, para ter a certeza de não falhar nenhuma, antes de passar para a seguinte. Volta e meia faziam uma pausa para Nakata beber a sua chávena de chá e Hoshino fumar o Marlboro da ordem. Ouviram o trio de Beethoven uma vez e outra e outra. À hora do almoço pararam num restaurantezinho e mandaram vir caril.

Mas, afinal de contas, de que andas à procura?

Nakata não sabe. Mas pensa...

…que vai saber quando a vir. E até que vejas o que é não sabes do que se trata.

Sim, está correcto.

Hoshino abanou a cabeça, descoroçoado. Bem sabia que só podia ser isso, mas quis ter a certeza.

Senhor Hoshino?

Sim?

A coisa ainda pode demorar o seu tempo.

Tudo bem. Pela parte que nos toca, vamos fazer o melhor que podemos. Vendo bem, o barco fez-se ao mar e nós a bordo.

Vamos andar de barco? - quis saber Nakata.

Não. Por enquanto, ficamos em terra.

Às três entraram num café, onde Hoshino tomou uma chávena de café. Nakata estranhou o pedido do amigo, acabando por se decidir por um copo de leite frio. Chegados a esle ponto, Hoshino já deitava

o volante pelos olhos e não sentia a mínima a vontade de conversar. Até de Beethoven já tinha a sua conta. Não, decididamente, andar às voltas metido dentro de um carro, sem destino, não era para ele. Precisava de conduzir a velocidade reduzida, de ter sempre o pé no travão e de prestar atenção ao que estava a fazer, e começava a ficar farto. Sempre que passava por eles um carro-patrulha, Hoshino fazia os possíveis por evitar o contacto visual. Além disso, evitava passar em frente das esquadras de Polícia. O Mazda Família podia muito bem ser o veículo mais insignificante que andava na estrada, mas, se os polícias começassem a reparar que o mesmo carro circulava sem­pre por ali às voltas, o mais certo era mandarem-no parar. Guiava devagarinho, com cuidado para não bater em ninguém. Um acidente só serviria para pôr tudo em causa.

Enquanto Hoshino andava para ali em círculos, sempre atento ao mapa, Nakata deixava-se ir sentado, com as duas mãos coladas na janela, a observar a paisagem circundante, procurando atentamente com os olhos qualquer coisa, tal qual uma criança ou um cão bem-ensinado. Concentrados nas suas missões, assim se passou a tarde e veio a noite sem que tivessem trocado mais de duas ou três pala­vras.

Andas à procura de quê? - Movido pelo desespero, Hoshino deu por si a trautear uma cantiga de Youi. Não se lembrava do resto da letra, por isso ia inventando à medida que cantava.

Andas à procura mas não encontras

O Sol não tarda a desaparecer

O estômago de Hoshino começa a dar horas

E andar às voltas de carro põe-me a cabeça a doer...

As seis estavam de volta ao apartamento.

Amanhã logo continuamos - disse Nakata.

Hoje já corremos grande parte do terreno. Amanhã devemos acabar de percorrer a cidade - referiu Hoshino. - Mas tenho uma pergunta para ti.

Venha ela. O que é?

Se não encontrarmos aquilo de que andamos à procura, o que acontece?

Nakata esfregou a cabeça.

Se não encontrarmos em Takamatsu, nesse caso teremos de ir à procura noutras paragens.

E se nem mesmo assim dermos com isso, o que fazemos?

Se assim for, teremos de continuar sempre a procurar.

Lá teremos de ir alargando o nosso círculo até encontrarmos. Como diz o povo: «Quando um cão anda a passear, o mais certo é apanhar com um pau.»

Sim, pode muito bem acontecer - retorquiu Nakata. - Mas há uma coisa que Nakata não entende. Porque tem um cão de ir contra o pau quando anda a passear? Se houver algum pau, o cão pode sempre dar a volta.

Aquilo deu que pensar a Hoshino.

Bem visto, sim senhor. Nunca tinha olhado para a questão desse prisma...

Venha ela. O que é?

Se não encontrarmos aquilo de que andamos à procura, o que acontece?

É muito estranho.

Bom, por agora vamos deixar o cão sossegado, está bem? Isso só vem tornar as coisas ainda mais complicadas. O que me interessa saber é onde nos pode levar a nossa busca. Se não nos pomos a pau, quando dermos por nós já estamos com o pé noutra prefeitura – Ehime ou Kochi ou assim. Pelo andar da carruagem, acaba o Verão e começa o Outouno e nós na estrada.

Pode ser que sim. Mas a verdade é que Nakata tem de encontrar aquilo de que anda à procura, dê lá por onde der, mesmo que seja Outouno ou Inverno. É certo que não pode contar com a sua ajuda eternamente.

Nesse caso, Nakata continuará sozinho a sua busca.

Bom, não vale a pena pensar nisso agora – tartamudeou Hoshino. - Mas será que a pedra não podia dar-nos uma ajudinha e indicar-nos uma pista ou coisa que o valha? Nem que fosse uma localização aproximada?

Nakata tem muita pena, mas a pedra não diz grande coisa.

De facto, não tem aspecto de ser muito faladora - confirmou Hoshino. - E também não me parece que seja grande coisa em natação. Mas deixemos isso... Não precisamos de nos preocupar com o assunto agora. Vamos mas é descansar bem esta noite e esperar para ver o que o amanhã nos reserva.

No dia seguinte a cena repetiu-se, desta vez com Hoshino a andar às voltas pela parte ocidental da cidade. Por esta altura já o mapa estava coberto de linhas amarelas. Quando muito, este dia ficou marcado por um número ainda maior de bocejos por parte do condutor. Nakata, esse manteve os olhos sempre bem abertos. Nem por um minuto deixou de perscrutar atentamente a paisagem. Os dois mal trocaram palavra. O que quer que fosse que eles procuravam, não havia meio de aparecer.

Hoje é segunda-feira, não é? - perguntou Nakata às tantas.

Sim. Ontem foi domingo, por isso hoje é segunda - replicou Hoshino. Depois, quase em desespero de causa, inventou uma melodia para embalar umas palavrinhas que lhe andavam a martelar a cabeça.

Hoje é segunda-feira

E amanhã é terça.

Trabalham bem, as formigas

As andorinhas vestem-se a preceito.

A chaminé é alta

E o pôr do Sol vermelho.

Senhor Hoshino? - perguntou Nakata daí a um bocado.

Sim?

Uma pessoa pode ficar a olhar para as formigas durante muito tempo que nunca se cansa.

Se tu o dizes.

À hora do almoço pararam junto a um restaurante especializado em enguias e mandaram vir o prato especial, uma tigela de arroz com enguias. Eram três da tarde quando entraram um café, onde Hoshino bebeu café e Nakata, uma chávena de uma bebida feita a partir do chá fermentado.

Por volta das seis, depois de os pneus do Família terem per-i oi rido todos os metros quadrados de rua na cidade, já o mapa não passava de uma gigantesca mancha amarela. Sem sorte nenhuma, diga se de passagem.

Andas à procura de quê? - cantarolava Hoshino numa voz monótona. - Ainda não encontraste nada? Andámos por todos os cantos da cidade/já tenho o rabo a doer, não podemos regressar a casa?

Depois de acabar com a cantoria, disse ele:

Se isto não acaba depressa, ainda dou em baladeiro.

O que poderá isso ser? - inquiriu Nakata.

Não interessa. Foi só uma piada foleira.

Dando o dia por terminado, deixaram para trás a cidade, Itieleram-se na auto-estrada e regressaram ao apartamento. Perdido nos seus pensamentos, Hoshino esqueceu-se de virar à esquerda no sítio do costume. Ainda tentou fazer inversão de marcha, mas a estrada curvava num estranho ângulo e entrava por um labirinto de ruas de sentido único. Resultado: daí a nada estava perdido. Enquanto o diabo esfregava um olho, viram-se no meio de um subúrbio por onde nunca Tinham passado antes, uma zona residencial elegante e cheia de casas antigas rodeadas de muros altos. A estrada mostrava-se misteriosamente calma e sem vivalma por perto.

Pode até acontecer que o apartamento fique mesmo aqui ao virar da esquina, mas a verdade é que não sei onde estamos – admitiu Hoshino. Parou o carro num parque de estacionamento vazio desligou o motor, puxou o travão de mão e abriu o mapa à sua frente. Procurou o nome do quarteirão e o número da rua no candeeiro de rua mais próximo e depois procurou no mapa. Mas a verdade é que os seus olhos cansados não conseguiram encontrar rigorosamente nada.

Senhor Hoshino? - perguntou Nakata.

Sim?

Desculpe maçá-lo, mas o que está escrito naquele letreiro ali adiante, ao pé daquele portão?

Hoshino levantou os olhos do mapa, lançou uma olhadela e viu que Nakata estava a apontar para um muro alto com um portão antigo, ao lado do qual se via uma placa de madeira. O portão preto estava fechado a cadeado.

Biblioteca Memorial Komura - leu Hoshino. - Humm, uma biblioteca nesta parte isolada da cidade? Nem se pode dizer que tenha aspecto de biblioteca. Mais parece uma velha mansão.

Bi-blio-te-ca-Me-mo-ri-al-Ko-mu-ral

Isso mesmo. Deve ser em homenagem a alguém que se chama Komura. Agora, quem é que esse tal Komura possa ser, isso já não sei.

Senhor Hoshino?

Sim?

È aqui mesmo.

Aqui mesmo o quê?

O lugar de que Nakata andava à procura.

Hoshino tirou os olhos do mapa e encarou Nakata. Com a testa enrugada, olhou para o letreiro e voltou a ler pausadamente. Tirou um Marlboro do bolso, pô-lo nos lábios e acendeu-o com o isqueiro de plástico. Deu uma fumaça e depois soprou o fumo pela janela aberta.

Tens a certeza?

Sim, é este o local.

O destino é uma coisa estranha, não achas? - exclamou Hoshino.

Pode crer que é.

 

O meu segundo dia nas montanhas passa como sempre, calmo e sem surpresas. A única coisa que distingue um dia do outro é o do tempo. Se o tempo se mantiver igual, acabarei por perder a noção do tempo. Ontem, hoje, amanhã - os dias parecem-me todos iguais. Como um barco à deriva, o tempo flui sem destino sobre o imenso mar a perder de vista.

Faço as contas e chego à conclusão de que hoje é terça-feira. O dia em que a Saeki-san orienta a visita guiada da biblioteca, caso haja alguém interessado em visitá-la. Que foi precisamente o que aconteceu no dia em que eu transpus o portão e apareci por lá... Os saltos altos a ressoarem nos degraus, ela sobe ao primeiro andar, quebrando o silêncio. As suas meias de vidro com brilho, a blusa branca acetinada, os pequenos brincos de pérolas, a Mont Blanc em cima da secretária. O seu sorriso suave, sobre o qual incide a longa sombra da resignação. Tudo isso está agora distante, a ponto de já não não me parecer real.

Na cabana, sentado no sofá, cercado pelo cheiro do tecido no fio, passo em revista as recordações do nosso amor. A Saeki-san a despir a roupa com gestos lentos, a meter-se na cama. O meu pénis, como seria de esperar, fica duro como uma rocha à medida que semelhantes pensamentos desfilam pela minha cabeça, mas a ponta já não está vermelha nem dorida e acabou-se o ardor.

Quando me farto dessas fantasias sexuais, vagueio lá por fora e faço os meus exercícios do costume. Pendurado na trave do alpendre trabalho os abdominais. Depois faço umas elevações rápidas, seguidas de uma série de alongamentos, a doer. Por esta altura já estou ensopado, por isso molho a toalha no riacho e enxugo o suor. A água fresca ajuda a acalmar-me os nervos. Sento-me cá fora e oiço os Radiohead no meu discman. Desde que fugi de casa que tenho andado sempre a ouvir as mesmas músicas vezes sem conta - o tema Kid-A, dos Radiohead, os Greatest Hits, de Prince. Volta e meia, My Favorite Things, na versão de Coltrane.

São duas da tarde - precisamente à hora a que deve estar a começar a visita guiada à biblioteca - quando penetro na floresta. Sigo o mesmo trilho e ando durante um bom bocado até chegar à clareira. Sento-me na relva, encostado ao tronco de uma árvore e deixo-me ali ficar a olhar o círculo de luz para além dos ramos. Os contornos das brancas nuvens de Verão recortam-se com nitidez con­tra o azul do céu. Até agora, safei-me. Consigo encontrar o caminho de volta até à cabana. Uma encruzilhada para iniciados. Se isto fosse um jogo de vídeo, nesse caso teria passado o nível 1. Mas, ao avançar mais, arrisco-me a entrar num labirinto mais elaborado e a enfrentar um desafio maior. O caminho torna-se mais estreito e posso ser engolido por um mar de fetos.

Ignoro isto e decido avançar.

Estou apostado em descobrir quão profunda é esta floresta. Perigosa, sei que é, mas quero ver com os meus próprios olhos - e sentir na pele - que tipo de perigos me espreitam, qual a natureza da ameaça que representam. Tenho de o fazer. Algo me impele a isso.

Cautelosamente, começo a seguir aquilo que me parece ser um carreiro. As árvores erguem-se à minha passagem, cada vez mais altas, o ar mais pesado a cada minuto que passa. Lá no alto, a massa de ramos quase não deixa ver o céu. Todos os sinais de Verão se dissiparam, é como se as estações do ano nunca tivessem existido. Passado um bocado deixo de saber se estou a seguir por um caminho ou não. Aquilo que tenho diante de mim parece um caminho, desenha-se como um caminho, para logo a seguir deixar de o parecer. No meio desta sufocante profusão de verde todas as definições ameaçam desaparecer. O que faz sentido e o que não faz está tudo misturado.

Por cima de mim, um corvo lança um lancinante grasnido que soa como um aviso, de tão áspero. Faço uma paragem e olho em redor, hesitante. Sem o devido equipamento torna-se demasiado perigoso leguir em frente. Está na hora de voltar para trás.

O que, diga-se de passagem, não é fácil. Tal como aconteceu com a retirada do exército napoleónico, também eu descubro que regressar a casa é mais difícil do que avançar. Não só se torna com-plicado reconhecer o caminho que ficou para trás, como diante de num a densa vegetação forma uma espécie de muro sombrio. Oiço a minha própria respiração a latejar com força nos ouvidos. Mais parece o vento a soprar no fim do mundo. Uma enorme borboleta negra, quase do tamanho da minha mão, atravessa o meu ângulo de visão. A sua forma lembra-me a mancha de sangue na minha T-shirt. Esvoaça vagarosamente antes de se esconder por entre a sombra das árvores. Quando desaparece, tudo fica de repente mais opressivo e o ar arrefece. Sinto-me dominado pelo pânico - sem saber como sair dali. Volta a ouvir-se o grasnido do corvo - a mesma ave de antes, a enviar a mesma mensagem. Continuo dé pé e olho para cima, mas não consigo ver. De vez em quando sopra uma brisa, um verdadeiro sopro de vento, que faz agitar de forma sinistra as folhas negras a meus pés. Todas as sombras possíveis e imagináveis parecem deslizar por trás de mim, mas quando me viro já se esconderam.

Sem saber como, consigo atingir o meu perímetro de segurança - a pequena clareira no meio da floresta. Sento-me nas ervas e respiro fundo. Olho para a nesga de verdadeiro céu por cima de mim por mais de uma vez, como que para ter a certeza de que consegui regressar ao meu mundo de origem. Os sinais de Verão - agora tão preciosos - envolvem-me no seu abraço. O medo que senti, porém, agarra-se a mim como um pedaço de neve por derreter num canto de jardim. Volta e meia o meu coração bate descompassadamente, e a minha pele continua a ser percorrida por ligeiros arrepios.

Nessa noite deixo-me ficar deitado, a respirar sem fazer baru-tle olhos bem abertos, na esperança de vislumbrar uma figura recortada no escuro. Rezo para que ela apareça. Se as minhas preces serão atendidas, isso já não depende de mim. Sei que apelo a todos os meus sentimentos e desejo com todas as minhas forças que isso aconteça. Na esperança de que o meu desejo se torne realida­de.

Mas a minha vontade não se concretiza. O meu desejo não se torna realidade. Tal como na noite anterior, a Saeki-san não aparece. Nem a verdadeira nem uma ilusão, tão-pouco a raparigui­nha quando tinha quinze anos. A escuridão não passa disso mesmo - escuridão. Antes de dormir, fico com uma erecção monumental, a maior de sempre, mas não me masturbo. Estou decidido a manter intocável a recordação de ter feito amor com a Saeki-san, pelo menos por agora. Aperto as mãos com força e adormeço, à espera de sonhar com ela.

Em vez disso, sonho com Sakura.

Ou não será um sonho? É tudo tão vívido, tão nítido e consistente, que não sei que nome lhe hei-de dar, por isso «sonho» ainda me parece o melhor rótulo. Estou no seu apartamento e ela está a dormir na cama. Eu estou enfiado no meu saco-cama, tal como na noite que passei lá em casa. O tempo andou para trás, deixando-me num ponto de viragem.

Acordo a meio da noite a morrer de sede, saio de dentro do saco-cama e vou beber água. Bebo cinco ou seis copos, de uma vez. A minha pele está coberta por uma fina camada de suor, e tenho a parte da frente das boxers espetada com outra erecção valente. O meu sexo é como um animal com vontade própria, funciona num comprimento de onda diferente do resto de mim. Sinto cada gole de água ser automaticamente absorvido pela minha picha. Consigo ouvir o débil som que faz a sugar a água. Arrumo o copo ao pé do lava-loiça e encosto-me à parede. Gostaria de saber as horas, mas não vejo o relógio. Talvez esta hora seja um tempo em que até as horas desaparecem nas profundezas da noite. Estou de pé ao lado da cama de Sakura. A luz dos candeeiros da rua pene­tra no quarto, filtrada pela cortina. Ela está virada de costas para mim, profundamente adormecida, e por baixo da colcha vê-se o contorno dos pequenos pés bem feitos. Atrás de mim ouve-se um som breve e forte, como se alguém tivesse acabado de ligar um interruptor. Ramos espessos prejudicam o meu campo de visão. Não existe uma estação definida. Tomo a decisão de me deitar ao lado de Sakura. A cama individual range com o peso. Respiro o odor da sua nuca levemente transpirada. Ao de leve, envolvo-a nos meus braços. Ela produz um som ténue mas continua a dormir. Um corvo grasna. Olho para cima, mas não vejo pássaro nenhum. Nem sequer consigo distinguir o céu.

Levanto a camisola de Sakura e acaricio os seios macios. Afago-lho os mamilos como se estivesse a ajustar um aparelho de rádio. O meu pénis erecto bate com força na parte de trás das suas coxas, mas ela não reage, nem um som, e a sua respiração não conhece alteração. Deve estar mergulhada num sonho profundo, penso eu. O corvo volta grasnar. Está a querer dizer-me alguma coisa, mas não consigo per­ceber o quê.

O corpo de Sakura é quente e está húmido de transpiração tomo o meu. Decido virá-la de frente para mim, empurrando-a suavemente até que fique de barriga para cima. Respira profundamente, mas continua sem acordar. Encosto a minha orelha ao estômago dela, liso como uma folha de papel, tentando descobrir o eco dos seus sonhos no interior desse labirinto.

A minha erecção não diminui e o sexo está tão rijo como se fpim ficar assim para sempre. Dispo-lhe as cuequinhas de algodão, demorando-me o tempo que é preciso a puxar-lhas pelas pernas a baixo até as conseguir tirar. Encosto a palma da mão aos seus pêlos púbicos, deixando que o meu dedo a vá penetrando com suavidade. Está moIhada, convidativamente molhada. Mexo devagar o dedo. Ela continua sem acordar. Perdida no seu sonho, continua a respirar profundamente.

Ao mesmo tempo, no vazio dentro de mim, algo luta para se libertar da concha. Ainda antes de tomar consciência do que está a acontecer, um par de olhos virados para dentro de mim fazem-me observar toda a cena. Ainda não tenho maneira de saber se esta coisa dentr de mim é boa ou má. Seja o que for, sei que nada posso fazer para a evitar ou impedir. Por enquanto, não passa de de um ser viscoso, desprovido de rosto, mas não tardará a sair da sua concha, a mostrar a sua face e a libertar-se da camada pegajosa que o envolve. Só então poderei conhecer o seu verdadeiro rosto. Por enquanto, não é mais do que uma coisa disforme em forma de símbolo. Estende aquilo que me parecem ser as mãos, quebrando a concha no seu ponto mais frágil. E eu sou testemunha de todos os seus movimentos.

Tomo uma decisão.

Não, mentira. A verdade é que não decido nada de nada. Para se tomar uma decisão é preciso fazer uma escolha, e eu não fiz esco­lha nenhuma. Tiro as boxers, libertando o meu sexo. Agarro Sakura, afasto-lhe as pernas e deslizo para dentro dela. Não é difícil. Ela está toda molhada, e eu teso como um pau. A picha deixou de me fazer doer. Nos últimos dias, a ponta ficou até mais dura. Sakura continua mergulhada nos seus sonhos e eu afundo-me no sonho dela.

De repente ela desperta e apercebe-se do que está a aconte­cer.

Kafka, o que fazes?

Estou dentro de ti, Sakura - digo eu.

Mas porquê? - pergunta ela numa voz seca e áspera. - Não te disse expressamente que não queria?

É mais forte do que eu.       . .

Pára com isso. Sai de dentro de mim.

Não posso - digo eu, abanando a cabeça com veemên­cia.

Ouve o que te digo. Primeiro que tudo, tenho namorado. Depois, entraste no meu sonho sem pedir licença. Isso não está certo.

Bem sei.

Ainda não é tarde de mais. Estás dentro de mim, mas ainda não começaste a mexer-te, ainda não te vieste. Estás dentro de mim, como quem não quer a coisa, é só isso. Não é verdade?

Faço que sim com a cabeça.

Tira-o - insiste ela. - E vamos fazer de conta que isto nunca aconteceu. Pela parte que me toca, estou disposta a esquecer tudo, e aconselho-te a fazer o mesmo. Sou tua irmã, e tu és o meu irmãozi­nho. Ainda que não estivéssemos ligados por laços de sangue, somos irmão e irmã. Percebes o que estou a dizer? Somos família. Não devíamos fazer isto.

É demasiado tarde - digo-lhe eu.

Porquê?

Porque eu assim o decidi.

Porque tu assim o decidiste - diz o rapaz chamado Corvo.

Não queres estar à mercê dos outros, não queres ser atirado para o meio das coisas que não controlas. Já mataste o teu pai e dormiste com a tua mãe - e agora estás dentro da lua irmã. Se em tudo isto existe uma maldição, fazes questão de agarrar o toiro pelos cornos e cumprir o desígnio para que foste programado. Tira esse peso dos ombros e vive - sem seres apanhado no meio dos esquemas dos outros. Vive a tua vida. Não é isso que queres?

Ela esconde o rosto nas mãos e chora. Tens pena, mas sair de dentro dela está fora de questão. Sentes o teu sexo ficar maior e mais duro, como se quisesse ganhar raízes.

«Compreendo», diz ela. «Não digo mais nada. Mas quero que não te esqueças de uma coisa: estás a violar-me. Gosto de ti, mas nao queria que as coisas acontecessem assim. Podemos nunca mais nos voltar a encontrar, mesmo que seja esse mais tarde o nosso desejo. Estás disposto a isso?

Não lhe dás resposta. A tua mente está desligada. Chegas o corpo dela para ti e começas a mexer as ancas. Devagar e de mansi­nho, a princípio, depois violentamente. Procuras lembrar-te da forma das árvores para te conteres, mas elas parecem-se todas umas com •••• outras e não tardam a ser engolidas pelo mar anónimo. Sakura fecha os olhos e abandona-se aos movimentos do corpo. Não diz •nua palavra nem resiste. Tem o rosto sem expressão, virado de lado. Mas tu sentes o prazer a crescer dentro dela no prolongamento do teu prazer. Agora compreendes. As árvores entrelaçadas erguem-se como um muro alto que te impede de ver. A ave deixou de te enviar mensagens. E vens-te.

Venho-me.

E é então que acordo. Estou na cama, sozinho, a meio da noite. Reina a escuridão, uma escuridão em que não existem horas. Levanto-me, dispo a roupa interior, vou até à cozinha e lavo o esperma com água. Peganhento, branco e espesso, como um filho ilegítimo nascido das trevas. Bebo não sei quantos copos de água, mas não consigo apaziguar a minha sede. Sinto-me tão sozinho que até faz dó. Na escuridão, a meio da noite, no meio de uma floresta cerrada, descubro que não podia estar mais só. Aqui as estações não fazem sentido, a luz não existe. Volto para a cama, sento-me e solto um enorme suspiro. Deixo-me envolver pela escuridão.

A coisa dentro de ti revelou o seu verdadeiro rosto. A concha desapareceu, feita em pedaços, e ela aí está, uma sombra negra, adormecida. As tuas mãos estão pegajosas com aquilo que parece ser sangue humano. Ergues as mãos diante dos teus olhos, mas não tens luz suficiente para ver. Está demasiado escuro. Tanto dentro como fora de ti.

 

A seguir à placa onde se lia «Biblioteca Memorial Komura» havia um cartaz a informar que o horário da biblioteca era das onze às cinco, excepto à segunda-feira, dia em que estava fechada, que a entrada era livre e que as visitas guiadas se realizavam todas as terças, às duas da tarde. Hoshino leu tudo isto em voz alta a Nakata.

Hoje é segunda, por isso está fechada - afirmou Hoshino, deitando uma olhadela ao relógio de pulso. - Não que faça grande diferença, uma vez que, em todo o caso, já passa muito da hora de fecho. É igual ao litro.

Senhor Hoshino?

Sim?

Este lugar não se parece nada com aquela biblioteca em que estivemos antes - disse Nakata.

Essa era uma grande biblioteca pública e esta é privada. Estamos falar de outro campeonato.

Quando fala em biblioteca privada, quer dizer o quê?

Quer dizer que um homem de posses qualquer que gostava de livros arranja um edifício e expõe aos olhos do público todos os que coleccionou. E este tipo deve ter sido realmente alguém importante na vida. Só de olharmos para este portão dá para ficar com uma ideia da importância do gajo.

O que é um homem de posses?

Um homem rico.

Qual é a diferença entre os dois?

Acho que sim. Amanhã é terça

Será que deixam entrar Nakata na biblioteca?

O letreiro diz que está aberta a todos. Claro que te deixam entrar.

Mesmo não sabendo ler?

Não tenhas problema - afirmou Hoshino. - Não interrogam as pessoas à entrada para ver se sabem ler ou não.Nesse caso, Nakata quer ir lá dentro.

Amanhã vimos os dois, logo de manhãzinha, e entramos juntos - disse Hoshino. - Mas primeiro tenho uma perguntinha para ti. É este o lugar que procuravas, certo? E aquilo que te interesssa está dentro da biblioteca?

Nakata tirou o gorro da cabeça e esfregou vigorosamente o seu cabelo cortado rente.

Sim. Nakata pensa que assim é.

Então quer dizer que podemos abandonar a busca?

Isso mesmo. A busca chegou ao fim.

Graças a Deus - exclamou Hoshino. - Começava a pensar que íamos andar às voltas de carro até chegar o Outono.

Regressaram os dois ao apartamento do Coronel Sanders, dormiram um sono reparador e saíram de casa na manhã seguinte às onze, rumo à biblioteca. Ficava apenas a doze minutos de caminho, por isso decidiram ir a pé. Hoshino já tinha devolvido o carro alu­gado.

Quando chegaram, viram o portão da biblioteca todo aberto paia Irás. O dia parecia que ia estar quente e húmido, e alguém se lembrara de regar o pavimento a fim de impedir a poeira de levantar. Paia lá do portão ficava um jardim bonito e bem cuidado.

Nakata, meu amigo? - inquiriu Hoshino defronte do portão.

Sim, diga, que posso fazer por si?

O que fazemos quando estivermos no interior da biblioteca? Receio sempre de que te ponhas com uma das tuas ideias do arco-da velha, por isso acho melhor saber o que aí vem. Tenho de estar preparado.

Nakata ficou a matutar naquilo. Nakata não faz ideia do que vai acontecer uma vez lá den-liu lrala-se de uma biblioteca, por isso o melhor é começarmos por ler alguns livros. De certeza que Nakata encontrará um com fotografias ou quadros, e o senhor é livre de deitar a mão ao que entender.

Entendido. Começar por ler. Faz todo o sentido.

Depois logo se vê o que havemos de fazer a seguir.

Okay - replicou Hoshino. - Logo se vê o que fazer, mais tarde. Ora aí está aquilo a que eu chamo um belo plano.

Atravessaram o bonito jardim e entraram no edifício através do átrio antigo. Mesmo à entrada existia uma zona de recepção, vendo-se, sentado atrás do balcão de atendimento, um jovem elegante e bem-parecido. Vestia uma camisa branca abotoada de alto a baixo e óculos pequenos. O cabelo comprido e fino caía-lhe sobre a testa. Parecia um tipo saído de um filme a preto e branco de FrançoisTruffaut, pensou Hoshino.

O jovem olhou para eles e recebeu-os com brilho radioso no olhar.

Bom dia - disse Hoshino, alegremente.

Bom dia - retorquiu o jovem. - Bem-vindos à biblioteca.

Gostaríamos, hã... de qualquer coisa para ler.

Naturalmente - concordou Oshima. - Fiquem à vontade e escolham o que quiserem. Estamos abertos ao público. As estantes encontram-se à vossa inteira disposição, podem pegar nos livros que pretenderem ler ou escolhê-los através das fichas catalográficas ou do catálogo on-line. E, se tiverem alguma dúvida para esclarecer, não hesitem. Terei todo o gosto em ajudá-los.

É muito simpático da sua parte.

Estão à procura de algum tema específico ou de algum livro em particular?

Hoshino abanou a cabeça.

De momento, não. Para dizer a verdade, estamos mais interessados na biblioteca em si do que nos livros. Passámos neste sítio por acaso e o lugar despertou a nossa curiosidade. O edifício é espectacular.

Oshima fez um sorriso simpático e pegou num lápis bem afiado.

Há muito boa gente que aparece por aqui pelas mesmas razões.

Ainda bem - comentou Hoshino.

Se tiverem tempo, aconselho-os a fazerem a pequena visita guiada que se realiza hoje, por volta das duas da tarde. É sempre às terças, desde que haja pessoas interessadas em número suficiente. A directora da biblioteca traça o historial da instituição. E hoje calha ser terça-feira.

Parece divertido. Ei, que me dizes, Nakata?

Durante todo o tempo que Hoshino e Oshima haviam estado a falar junto ao balcão, Nakata pusera-se à margem, de gorro na mão e olhar perdido no cenário que o rodeava. Ao ouvir o seu nome, saiu do seu ensimesmamento.

Sim, o que foi?

Há uma visita guiada da biblioteca às duas. Estás interessado?

Sim, senhor Hoshino, muito obrigado. Nakata gostaria muito. Oshima seguiu esta troca de impressões entre os seus dois interlocutores com grande interesse. Com que então Hoshino e Nakata, que género de relação existiria entre eles? Família, não pareciam ser. Uma estranha parelha, aqueles dois - com uma abissal diferença de idade e de aspecto. Que poderiam eles ter em comum? Além de que aquele mais velho, o tal senhor Nakata, falava de uma maneira estra­nha. Havia qualquer coisa acerca dele que Oshima não conseguia precisar. Mas não se tratava forçosamente de uma coisa má.

Vieram de muito longe até chegar aqui? - perguntou.

Viemos de Nagoya - apressou-se Hoshino a responder antes que Nakata pudesse abrir a boca. Se ele se lembrasse de dizer que era de Nakano, as coisas podiam dar para o torto. Os telejornais tinham espalhado a noticia de um velhote como Nakata que poderia estar envolvido na morte violenta. Felizmente, pelo menos tanto quanto Hoshino julgava saber, a fotografia dele ainda não fora tornada publica.

Ainda foi uma grande viagem –observou Hoshime.

Sim, atravessamos uma ponte para aqui chegar – acrescentou Nakata. – Uma grande, não é? – replicou Oshima. – Digo isto apesar de nunca lá ter passado.

Nakata nunca na vida tinha visto uma ponte tao grande.

Demorou muito tempo a ser construída e custou uma soma fabulosa – prosseguiu Hoshima. –

Segundo os jornais, todos os anos a empresa publica que é responsável pela ponte e pela auto-estrada desembolsa cem mil milhões de ienes e fecham o ano no vermelho. Os nossos impostos cobrem a diferença.

Nakata não faz ideia do que poderão ser cem mil milhões.

Nem eu, para ser honesto – atalhou Hoshino. Acima de um certo valor, quantias como essa deixam de ser reais. Seja como for, não deixa de ser dinheiro.

Muito obrigado – atalhou Hoshino. Nunca se sabia o que poderia sair da boca de Nakata a seguir, e cabia-lhe a ele cortar o mal pela raiz. – Cá estaremos então às duas para a visita guiada, não é verdade?

Sim, às duas horas está bem – disse Oshima. – A diretora da biblioteca terá todo o gosto em mostrar-lhes o que há para ver.

Até lá ficamos por aqui a ler – retoequiu Hoshino.

Fazendo girar o lápis na mao, Oshima observou as figuras que se afastavam e regressou ao trabalho.

Ambos trataram de ir buscar às estantes. Hoshino decidiu-se por Beethoven e o Seu Tempo. Nakata pegou em meia dúzia de fotografias e espalhou-as em cima da mesa. Em seguida, tal qual um cao, deu a volta à sala, estudando tudo ao pormenor, tocando nas coisas e cheirando-as, parando em determinados sítios e pondo-se a olhar fixamente para tudo e mais alguma coisa. Ficaram com a sala de leitura por sua conta até perto do meio-dia, por isso mais ninguém teve oportunidade de reparar no comportamento excên­trico do ancião.

Ei, avozinho? - sussurrou Hoshino.

Sim, que posso fazer por si?

Bem sei que isto te pode parecer estranho, assim do pé para a mão, mas gostaria que não dissesses a ninguém que és de Nakano.

Então porquê?

É uma longa história, vai por mim. Se as pessoas ficarem a saber que vens de lá, podemos causar transtorno a alguém.

Nakata percebe - disse Nakata, acenando com a cabeça gravemente. - Não é bom causar transtorno a ninguém.

Nakata não diz uma palavra a ninguém acerca de ter vindo de Nakano.

Isso era ouro sobre azul - disse Hoshino. - Ah, já agora, sem­pre encontraste aquilo que procuras?

Não, por enquanto nada.

Mas tens a certeza de que estamos no sítio certo? Nakata fez que sim a cabeça.

Sim, na noite passada Nakata teve uma longa conversa com a pedra antes de se deitar. Não há dúvida, é o sítio certo.

Graças a Deus.

Hoshino acenou com a cabeça e regressou à sua biografia. Ficou a saber que Beethoven era um homem orgulhoso que acreditava piamente no seu talento e não se rebaixava a ponto de procurar agradar à nobreza. Acreditando que a própria arte, enquanto forma de expres­são perfeita das emoções, era a coisa mais sublime do mundo, sustentava a opinião de que o poder político e a riqueza apenas serviam um fim: tornar possível a arte. Tinha uma posição contrária à de Haydn, que, alojado em casa de uma família nobre durante a maior parte da sua existência, comia com os criados - aliás os músicos da sua geração eram considerados meros serviçais. (O despretensioso e jovial Haydn, porém, preferia mil vezes este estado de coisas às refeições formais servidas à mesa da nobreza.)

Beethoven, em contraste, ficava à beira de um ataque de nervos ao ser confrontado com tratamento tão indigno, chegando em certas ocasiões a atirar coisas à parede num dos seus acessos de fúria. No que às refeições dizia respeito, defendia que não devia ser tratado com menos respeito do que a nobreza que ostensivamente servia.

o se contam pelos dedos as vezes em que perdeu as estribeiras e, convenhamos, uma vez fora de si era difícil acalmar os seus ânimos. Isto sem esquecer as suas ideias políticas, que, de resto, não se esforçava minimamente por disfarçar. À medida que a sua audição piorava, estas tendências tornaram-se ainda vincadas. Com a idade, a sua musica tornou-se a um tempo mais expansiva e mais virada para dentro de si mesmo. Ninguém, a não ser Beethoven, poderia ter conciliado essas duas tendências, mas o esforço que isso exigiu dele teve um efeito altamente destruidor na sua vida, uma vez que todos os seres

Humanos têm condicionalismos físicos e emocionais, e por esta altura já o compositor atingira o seu limite.

Génios desses são pessoas difíceis, pensou Hoshino, impressionado, pondo o livro de lado. Lembrava-se do busto de bronze que existia na sala de música da sua escola, e que mostrava um Beethoven carrancudo, mas até à data não fazia ideia das agruras que o homem tivera de penar. Não admirava que ele estivesse com um ar tão ameaçador. Livra, pela parte que me toca, eu nunca hei-de ser um genio, pensou Hoshino.

Olhou na direcção de Nakata, que estava mergulhado no conjunto de fotografias de mobiliário rústico tradicional. Possivelmente essas imagens teriam acordado nele as recordações do tempo em que executava o seu ofício. E Nakata - quem sabe? - talvez ainda pudesse vir a tornar-se uma pessoa importante, no futuro. Havia muita gente que não sabia fazer o género de coisas que ele fazia. Decididamente, o sujeito joga mesmo num campeonato à parte.

Depois do meio-dia, dois outros leitores (duas senhoras de meia-idade) fizeram a sua entrada na sala de leitura, o que levou Hoshino e Nakata a aproveitarem a oportunidade para irem até lá fora apanhar ar. Hoshino trouxera pão para o almoço, e Nakata bebeu como de costume o chá quente do seu termo. Antes, porém, Hoshino dirigiu-se ao balcão a fim de perguntar a Oshima se podiam comer no espaço da biblioteca.

Claro que sim - respondeu Oshima. - É muito agradável ficar sentado na varanda de frente para o jardim. Depois, se quiserem, apareçam para tomar um café. Já está feito, é só servirem-se.

Obrigado - disse Hoshino. - Têm aqui um sítio muito familiar.

Oshima sorriu e afaslou o cabelo da cara.

É um tanto ou quanto diferente de uma biblioteca normal. Familiar é uma boa maneira de a descrever. A nossa intenção é criar um espaço aprazível onde as pessoas tenham oportunidade de se descontrair e ler à vontade.

Aos olhos de Hoshino, Oshima era um jovem muito cativante. Inteligente, bem-educado, saltava à vista que era de boas famílias. E bastante simpático. Só podia ser gay. Não que Hoshino se ralasse com isso. Cada um sabe de si, era assim que via as coisas. Há homens que falam com pedras, e há os que dormem com outros homens.

Depois do almoço Hoshino levantou-se, espreguiçou-se e esticou-se todo, e depois foi até à recepção tomar o tal café oferecido por Oshima. Visto que não bebia café, Nakata deixou-se ficar na varanda a saborear o seu chá e a seguir com o olhar os pássaros a saltitarem de ramo em ramo no jardim.

Então, sempre encontrou alguma coisa interessante para ler? - perguntou Oshima a Hoshino.

Sim, tenho estado a ler a biografia de Beethoven - respondeu Hoshino. - Estou a gostar. A sua vida dá-nos realmente muito em que pensar.

Oshima mostrou estar de acordo com ele.

Teve uma existência tempestuosa, e isto é dizer pouco.

Passou por muito, é um facto, - replicou Hoshino -, mas no meu entender teve grandes culpas no cartório. Quero com isto dizer que ele era pouco sociável e só pensava em si e na sua música, não se importando de sacrificar fosse o que fosse à sua arte. E naqueles tempos não devia ser fácil lidar com «Ei, Ludwig, deixa-me em paz». Era o que eu diria caso ele me aparecesse à frente. Não admira que o sobrinho se tivesse passado dos carretos. Mas tenho de reconhecer que a sua música é maravilhosa. Toca-nos mesmo cá dentro. Esquisito, não é?

Absolutamente - concordou Oshima.

Mas por que carga de água é que ele teve de viver assim, uma vida tão difícil e atribulada? Teria sido bem melhor caso tivesse levado uma vida mais normal.

Oshima fez o girar o lápis entre os dedos.

Percebo o seu ponto de vista, mas no tempo em que Beethoven viveu era importante que as pessoas dessem largas ao seu ego. Anteriormente, no tempo da monarquia absoluta, essa teria sido considerada uma conduta imprópria, contra todas as regras e social­mente inaceitável, e, como tal, severamente reprimida. Mas com a chegada da burguesia ao poder, no século dezanove, essa regra foi abolida e o ego individual foi libertado e convidado a expressar-se. Nessa altura, liberdade e emancipação do ego eram sinónimos. E a arte, sobretudo a música, tornou-se a expressão máxima dessa visão do mundo. Os que apareceram depois de Beethoven e viveram na sua sombra, por assim dizer, Berlioz, Wagner, Liszt, Schumann, levaram, todos eles, vidas excêntricas e desregradas. Quase se pode dizer que a excentricidade era considerada o estilo de vida ideal. A era do romantismo, como lhe chamaram. Em todo o caso, e na minha modesta Opinião, nem sempre deve ter sido fácil a essa gente viver assim. Com que então gosta da música de Beethoven?

Para ser franco não posso dizer que sim nem que não, uma Vtv que ainda não a ouvi suficientemente - reconheceu Hoshino. - Não ouvi quase nada, verdade seja dita. Caiu-me no goto aquela peça chamada Trio Arquiduque.

Sim, de facto é bonita.

Aquele Million Dollar Trio é fantástico - acrescentou ainda Hoshino.

Pessoalmente, confesso que prefiro a interpretação pelos cos do Trio Suk - afirmou Oshima. - Tocam maravilhosamente bem.   Parece que uma pessoa consegue sentir o vento a varrer um imenso prado verde. Mas também conheço a versão do Million Dollar Trio - Rubinstein, Heifetz e Feuermann. Considero-a acima de tudo uma interpretação elegante.

Hum, senhor... Oshima? - perguntou Hoshino, olhando para o nome escrito na placa em cima do balcão. Estou a ver que percebe muito de música.

Oshima sorriu.

Muito é um exagero. Digamos que gosto de música e passo bastante lempo a ouvi-la.

Acredita que a música tem o poder de mudar as pessoas? Que uma pessoa pode ouvir uma certa e determinada peça de música e conhecer uma grande mudança dentro de si?

Oshima acenou afirmativamente.

Claro que sim. Passamos por uma experiência, que funciona como uma espécie de reacção química, capaz de transformar algo que temos dentro de nós. Quando, mais tarde, reflectimos sobre isso, descobrimos que todos os padrões por que nos regemos se alargam mais um furo e que o mundo se abriu diante de nós de forma ines­perada. Sim, já passei por isso. Não tantas vezes como isso, mas já me aconteceu. É como estar apaixonado.

Não se podia dizer que Hoshino alguma vez tivesse estado per­didamente apaixonado, mas fez que sim com a cabeça e manifestou a sua concordância.

É caso para dizer que é uma coisa muito importante, certo? Quer dizer, para as nossas vidas?

De facto, assim é - respondeu Oshima. - Sem essas expe­riências que nos transportam ao limite a nossa vida seria bem mais monótona e desinteressante. Berlioz colocou a questão desta maneira: «Uma vida sem se ter lido o Hamlet é como a vida passada numa mina de carvão.»

Uma mina de carvão?

É um exemplo acabado das hipérboles em voga no século dezanove.

Bem, muito obrigado pelo café - disse Hoshino. - Ainda bem que tivemos esta conversa.

Em jeito de resposta, Oshima sorriu cordialmente.

Hoshino e Nakata estiveram entretidos a ler até às duas, com Nakata a sentir-se reviver na sua experiência de carpinteiro ao folhear as fotografias dos móveis. Tirando as duas senhoras de meia-idade, haviam chegado entretanto a seguir ao almoço três novos leitores. Mas Hoshino e Nakata foram os únicos que mostraram interesse em visitar a biblioteca.

Não se importa se formos só nós os dois? - inquiriu Hoshino. - Sinto-me mal por saber que se vai dar a todo este trabalho só por nossa causa.

Não é trabalho nenhum - retorquiu Oshima. - A directora da biblioteca tem muito gosto em conduzir a visita, nem que seja para uma única pessoa.

Às duas em ponto uma senhora bonita de uma certa idade desceu as escadas. De costas muito direitas, tinha um andar aprumado, que impressionava à primeira vista. Envergava um falo azul-escuro de bom corte. Calçava sapatos de saltos altos, usava uma gargantilha fina ile prata no pescoço e o cabelo apanhado atrás. Nada de mais, mas certo é que, no seu conjunto, primava pelo ar sofisticado, de muito bom gosto.

Bom dia. O meu nome é Saeki e sou a directora desta biblio­teca - disse a mulher, arvorando um sorriso plácido.

Chamo-me Hoshino.

Nakata vem de Nakano - disse o velhote, a torcer o gorro na mão.

Ficamos muito contentes por nos terem vindo visitar de tão longe - afirmou a Sr.a Saeki.

Hoshino sentiu um arrepio pela espinha a baixo ao ouvir as palavras de Nakata, mas a Sr.a Saeki não deu mostras de quaisquer ninais de desconfiança.

Nakata estava esquecido de todo, saltava à vista.

Pois foi. Atravessámos uma grande ponte - continuou ele na sua.

Uma ponte espectacular - atalhou Hoshino, para ver se a conversa sobre pontes ficava por ali.

Este edifício foi construído no princípio do período Meiji e foi pensado para funcionar ao mesmo tempo como biblioteca e iii lencia da família Komura - começou a Sr.a Saeki. - Muitos foram os literatos que visitaram este local e aqui pernoitaram. É considerado iilrlinónio histórico da cidade.

Litro quê? - quis saber Nakata. A Sr.a Saeki esboçou um sorriso.

Artistas, que é como quem diz, poetas, romancistas e outros i" lais. Antigamente, os homens de posses tinham por hábito ajudar irlisias um pouco por toda a parte. Nesses tempos, o panorama da arte era diferente, não era considerada uma maneira de ganhar a vida. Nesta região, sendo os Komura gente de posses, eram eles os mecenas que apoiavam a cultura e as artes. Esta biblioteca foi cons-truída, e continua a funcionar como tal, a fim de passar esse legado a gerações vindouras.

Gente de posses? Nakata sabe o que isso quer dizer - disse Nakata. - É preciso muito tempo para se chegar lá.

Sorrindo sempre, a Sr.a Saeki anuiu.

Tem muita razão. Por mais dinheiro que se tenha, tempo é uma coisa que não se pode comprar. Bem, vamos lá então subir ao primeiro andar e dar início à nossa visita.

Visitaram, um a um, os quartos no andar de cima. A Sr.a Saeki fez o seu habitual discurso acerca dos vários homens de letras que ali tinham ficado, e mostrou aos dois visitantes uma amostra da cali­grafia e dos quadros que esses artistas haviam deixado ficar para trás. No decorrer da visita Nakata pareceu fazer ouvidos de mercador ao que ela ia dizendo, preferindo examinar com irresistível curiosidade todos os objectos que apanhava à mão. No estúdio que a Sr.a Saeki usava como escritório, via-se uma caneta de tinta permanente em cima do tampo da secretária. Era Hoshino quem fazia as honras da visita, seguindo-a de perto, respondendo por monossílabos às expli­cações e não regateando a dose de acenos de cabeça e «ahas» da praxe. Isto sempre com o coração aos saltos, não fosse o velho abrir a boca para mais uma das suas afirmações bizarras. Mas Nakata limitou-se a andar por ali, muito atento a todo e qualquer objecto. A Sr.a Saeki não parecia importar-se com isso. Sempre com um sorriso estampado no rosto, mostrou-lhes tudo o que havia para ver na biblioteca. Hoshino estava impressionado com a calma e serenidade de que ela dava mostras.

A visita demorou cerca de vinte minutos, altura em que os dois homens fizeram os seus agradecimentos. Durante todo esse tempo, nunca o sorriso da Sr.a Saeki se desvaneceu uma única vez. Quanto mais a observava, mais confuso Hoshino ficava. Ela sorri e olha para nós, pensava ele para consigo mesmo, mas é como se não estivéssemos aqui. Olha para nós, mas está a ver outra coisa. Durante todo o tempo que durou a visita, mesmo que tivesse a cabeça nou­tro lado, ela mostrou-se extraordinariamente simpática e educada. Sempre que ele lhe colocara uma questão, ela tinha dado uma resposta cordial e de fácil entendimento. Por isso, não se trata aqui de fazer uma coisa contra a sua vontade nem nada que se pareça. Em parte, ela tem gosto em desempenhar a sua tarefa, tornando-a um trabalho meticuloso. Mas nota-se que o seu pensamento está noutro sítio.

Os dois homens regressaram à sala de leitura e instalaram-se no sofá com os seus livros. Mas nem mesmo a virar as páginas Hoshino conseguiu tirar a Sr.a Saeki da cabeça. Havia qualquer coisa de muito invulgar que rodeava aquela mulher bonita, ainda que ele não conseguisse traduzir isso em palavras. Às tantas desistiu e recomeçou a ler.

Às três da tarde, sem qualquer espécie de aviso prévio, Nakata pós se de pé. Contra o que era seu costume, os movimentos eram dei ididos. Continuava sem largar o gorro.

Ei, meu amigo, que temos? Onde vais com essa pressa? - susurrou Hoshino.

Mas não obteve resposta. De lábios selados e expressão deter­minada, Nakata dirigiu-se para a porta, deixando ficar as suas coisas esquecidas no chão.

Hoshino fechou o livro e levantou-se. Aquilo não lhe estava a cheirar bem.

Espera aí! - chamou ele e, apercebendo-se de que o velhote não fazia tenções de esperar, apressou-se a ir no seu encalço. Os outros leitores levantaram a cabeça e viram-nos ir embora.

Antes de chegar à entrada, Nakata virou à esquerda e, sem hesitação de espécie alguma, começou a subir as escadas que levavam ao primeiro andar. Um letreiro ao fundo das escadas onde se lia «Só para pessoal autorizado» não o impediu de continuar, visto que não sabia ler. Os seus ténis gastos chiaram ao pisar as tábuas.

Desculpe-me - disse Oshima, inclinando-se por cima do balcão na tentativa de interpelar a figura que esgueirava escada a cima - Essa zona está de momento encerrada.

Mas Nakata não deu mostras de o ouvir. Quem subiu a escadaria a correr foi Hoshino.

Avozinho. Está fechado. Não podes entrar aí.

Oshima saiu de detrás do balcão e foi atrás deles até lá a cima.

Audaz, Nakata percorreu o corredor e entrou no estúdio. A porta estava aberta. De costas para a janela, a Sr.a Saeki, sentada – à secretária, lia um livro. Ao ouvir os passos, levantou a cabeça e olhou para cima. Quando chegou junto da secretária, Nakata parou e ficou a olhar para ela. Nenhum dos dois disse uma palavra. Um momento mais tarde apareceu Hoshino, logo seguido de Oshima.

Nakata, onde andas com a cabeça? - inquiriu Hoshino, dando palmadinhas no ombro do velhote. Não podes estar aqui. Regras da casa, meu velho. Vamos lá embora.

Nakata tem qualquer coisa a dizer - disse ele à Sr.ª Saeki.

O que é? - perguntou a Sr.a Saeki calmamente.

Quer conversar com a senhora acerca da pedra. A Pedra de Entrada.

A Sr.a Saeki estudou em silêncio o rosto do velho durante algum tempo. Nos seus olhos notava-se um brilho intenso e, ao mesmo tempo, reservado. Pestanejou várias vezes, antes de fechar o livro. Pousando as duas mãos no tampo da secretária, ergueu de novo o olhar para Nakata. Parecia indecisa quanto à atitude a tomar, mas acabou por assentir com a cabeça.

Olhou para Hoshino, primeiro, depois para Oshima.

Importam-se de nos deixar a sós um momento? - perguntou, dirigindo-se a Oshima. - Preciso de ter uma conversa com este senhor. Por favor, fechem a porta quando saírem.

Oshima hesitou, depois anuiu. Pegou delicadamente no braço de Hoshino, levou-o consigo para o corredor e fechou a porta.

Tem a certeza de que está tudo em ordem?

A senhora Saeki sabe o que está fazer - esclareceu Oshima, ao mesmo tempo que desciam as escadas. - Se ela diz que está tudo bem, é porque está. Não precisamos de nos preocupar com ela. Venha comigo, senhor Hoshino, vamos os dois tomar um café.

Bom, a verdade é que não serve de muito uma pessoa preocupar-se com o velho Nakata - afirmou Hoshino. - Isso posso eu garantir.

 

Desta vez, antes de me embrenhar na mata, faço questão de estar munido de tudo o que possa vir a precisar: bússola, faca, cantil, provisões, luvas de trabalho, uma lata de spray de cor amarela e a machadinha que já me foi útil. Enfio tudo isto dentro de um pequeno daco de náilon que ponho a tiracolo, e ponho-me a caminho da floresta. Tenho vestida uma camisola de manga comprida, uma toalha enrolada ao pescoço e o boné que Oshima me deu, isto para além de ter espalhado anti-repelente por todas as partes do corpo las ao ar. O céu mostra-se carregado, e está um tempo tão e húmido que ameaça chuva, por isso junto uma capa impermeável às coisas dentro do saco, para o que der e vier. Um bando de pássaros rasga o céu coberto de nuvens cinzentas no meio de uma chinfrineira desgraçada.

Como de costume não demoro muito a chegar à clareira. Antes de mergulhar na floresta, verifico a bússola para ter a certeza de que me dirijo para norte. Desta vez, marco as árvores com o spray amarelo para assinalar o caminho. Ao contrário do que aconteceu migalhas de pão espalhadas por Hansel e Gretei, a tinta amarela do spray está a salvo dos pássaros esfomeados.

Estou mais bem preparado, por isso não há que ter medo. Claro que me sinto inquieto, mas não tenho o coração aos saltos nem nada que se pareça. O que me faz seguir em frente é a curiosidade.

Quero ficar a saber o que se esconde para lá deste caminho. Mesmo que não haja nada, quero ficar a sabê-lo. Tenho de saber. Procurando memorizar a paisagem que atravesso, avanço passo a passo, com cuidado e determinação.

Volta e meia ouve-se um som estranho. Um estrondo, como se alguma coisa tivesse embatido no chão, um estalido como tábuas de madeiras a rangerem sob um peso, entre outros ruídos que nem sou capaz de descrever. Não faço ideia do que podem querer dizer, visto que não tenho maneira de saber o que são. Umas vezes soam longe, outras, de muito perto - a noção de distância varia, ora aumentando ora diminuindo, como o ritmo da respiração. Por cima de mim oiço o bater das asas dos pássaros estranhamente alto, mais alto do que na realidade. De cada vez que isso acontece, paro e escuto, retendo a respiração, à espera que aconteça alguma coisa. Mas não sucede nada, e eu continuo sempre a caminhar.

Para além destes sons repentinos e inesperados, reina o silêncio. Não há vento, no cimo das árvores as folhas não se mexem, apenas se ouvem os meus próprios passos sobre a erva. Sempre que tropeço num ramo caído, o estalido seco reverbera no ar.

Pego na machadinha, que entretanto afiei, e sinto o gume cortante nas minhas mãos sem luvas. Até agora não se pode dizer que me tenha servido de muito, mas o contacto com o cabo, para além de reconfortante, faz-me sentir protegido. Mas de quê? Não existem ursos nem lobos nesta floresta. Alguma cobra venenosa, quando muito. A criatura mais perigosa aqui devo ser eu. Por isso, talvez esteja apenas com medo da minha própria sombra.

Mesmo assim, continuo a avançar sempre com o pressentimento de que algures, longe daqui, existe algo à escuta de todos os sons que produzo, tentando descobrir para onde vou e porquê. Retém a respiração e confunde-se com a vegetação, atenta a todos os meus movimentos. Tento não pensar nisso. Quando mais se pensa nas ilusões, mais elas crescem dentro de nós e ganham forma. E deixam de per­tencer ao reino das ilusões.

Experimento assobiar para preencher o silêncio. O sax-soprano de John Coltrane em My Favorite Things, isto apesar de o meu assobio desafinado não se aproximar nem de perto nem de longe da com­plexidade e brilhantismo do improviso original. Assim, limito-me a acrescentar aqui e ali para que aquilo que oiço na minha cabeça se aproxime do som que conheço. É melhor do que nada, tenho de reco­nhecer. Dou uma olhadela ao relógio - são dez e meia. Oshima deve estar a fazer os preparativos para abrir a biblioteca. Hoje é... quarta-feira. Imagino-o a regar o jardim, a limpar as mesas com um pano, a ferver água e a fazer café. Tudo tarefas de que normalmente me ocupo. Mas agora, aqui estou, mergulhado no coração da floresta, embrenhando-me cada vez mais. Ninguém sabe onde me encontro. Só eu, e eles.

Desço por um carreiro. Um carreiro não será bem o termo. É mais um canal que a água esculpiu no terreno ao longo dos tempos. Quando os aguaceiros se abatem sobre a floresta, a água arrasta tudo à sua frente, arrancando as ervas, deixando as raízes das árvores à mostra. Depois, ao encontrar pela frente um pedregulho, faz um desvio. Quando pára de chover, o que fica é um leito seco que forma Uma espécie de trilho. Este pseudocarreiro está coberto de fetos e ervas verdes e, se uma pessoa não se põe a pau, está perdida. De vez em quando torna-se mais profundo, e eu lá consigo trepar agarrando-me aos troncos de árvore.

Algures a meio do caminho, o sax-soprano de Coltrane perde o gás. Agora é a vez de se fazer ouvir o piano solo de McCoy Tyner, a mão esquerda a martelar repetidamente o ritmo, enquanto a direita insiste em acordes densos, mais complexos. A peça parece recriar uma cena mítica, com a música a descrever o passado sombrio de alguém - um alguém sem nome, sem rosto -, com todos os pormenores vívidos como as entranhas a serem arrastadas para fora da escuridão, pelo menos é assim que a entendo. Através da repetição contínua, peça a peça, a música estilhaça o real, dando outra configuração ao todo. Tal como a floresta, tem um vago cheiro hipnótico a perigo.

Continuo a minha caminhada, assinalando as árvores com a ajuda do spray e virando-me de vez em quando para ver se as marcas amarelas ainda estão visíveis. Bate tudo certo - as marcas que me hão-de levar de volta a casa formam como que uma linha incerta de de salvação à tona de água. Por uma questão de segurança, volta e meia desfiro um golpe com a machadinha nos troncos de árvores. O instrumento não é tão cortante como eu gostaria, por isso escolho golpear os troncos mais tenros e finos. Ás árvores recebem golpes em silêncio.

Enormes mosquitos pretos zumbem à minha volta como patrulhas de reconhocimento, voando direitos à zona dos olhos, que não portegida. Quando oiço o seu zumbido afasto-os com as mãos ou esmago-os. Alguns já me picaram e estão cheios do sangue que me sugaram. Sempre que acerto num, esguicha. Só depois é que sinto a comichão. Limpo o sangue das mãos com a toalha que trago enrolada ao pescoço.

O exército em marcha por aqueles bosques deve ter tido o mesmo problema com os mosquitos, pelo menos se a história aconteceu no Verão. Com o equipamento de combate completo - quantos quilos levariam em cima? Aquelas espingardas antiquadas que pareciam um bloco de ferro, cinto de munições, baioneta, capacete de aço, duas ou três granadas, alimentos e rações, como não podia deixar de ser, ferramenta para cavar trincheiras, estojo de primeiros socorros... Toda essa tralha devia pesar mais de vinte quilos. Um peso dos diabos, muito mais do que a minha pequena mochila. Tenho a sensação de que a qualquer momento vou encontrar pela frente um desses soldados, mas a verdade é que eles desapareceram do mapa há mais de sessenta anos.

Lembro-me de ter lido acerca da invasão da Rússia pelas tropas de Napoleão, no Verão de 1812. Também eles devem ter levado com a sua dose de mosquitos, na longa caminhada sobre Moscovo. Claro que os mosquitos não eram os únicos problemas. Tiveram de iutar tenazmente para sobreviver a toda a espécie de coisas - fome, sede, estradas cobertas de lama, doenças infecciosas, calor sufocante, ataques de cossacos às escassas colunas de abastecimento, falta de medicamentos, isto já para não falar nas duras batalhas contra os exércitos russos. Quando finalmente as forças francesas deram entrada numa Moscovo deserta, o número dos seus soldados apresentava-se dramaticamente reduzido de quinhentos mil para cem mil.

Faço uma paragem e mato a sede com a água do cantil. No meu relógio são exactamente onze horas. A biblioteca deve estar a abrir. Imagino Oshima a abrir a porta, a tomar o seu lugar atrás do balcão de atendimento, um punhado de lápis perfeitamente afiados em cima da mesa. Pega num e fá-lo rodar, pressionando a ponta de borracha contra a testa. A cena desenrola-se com perfeita nitidez diante dos meus olhos, apesar da distância a que me encon­tro.

Nunca tive período, diz Oshima. Pratico sexo anal e jamais usei a vagina para fazer sexo. O meu clitóris é sensível, mas isso não acontece com os meus seios.

Vem-me à memória a imagem de Oshima na cabana, deitado ii.i tama, virado para a parede, e evoco os sinais da sua presença. Deitei-me na mesma cama, deixei-me envolver pelos sinais da sua presença.

Desisto. Em vez disso, penso antes na guerra. Nas guerras napoleónicas, na guerra em que os soldados japoneses tiveram de lutar. Sinto o cabo da machadinha nas minhas mãos. A pálida lâmina acabada de afiar cintila. Sem querer, desvio os olhos. O que levará as pessoas a fazer a guerra? O que fará centenas de milhares, milhões fie pessoas reunirem-se para se aniquilar umas às outras? Será a ceva que conduz as pessoas à guerra? Ou antes o medo? Ou serão a raiva e o medo apenas dois aspectos da mesma realidade?

Dou mais um golpe numa árvore. A árvore lamenta-se em silêncio, escorre sangue invisível. Continuo a minha marcha. Coltrane volta a pegar no sax-soprano. Uma vez mais a repetição torna a subs-llfliii o real, dispondo as peças de outra maneira.

De um momento para o outro a minha mente começa a vaguear pelo reino dos sonhos. Aconteceu sem dar por isso. Estou a agarrar Sakura. Tenho-a nos meus braços e penetro-a. Não quero continuar à mercê das coisas, lançado para o meio de um turbilhão de algo que me ullrapassa. Já matei o meu pai e dormi com a minha mãe, (ora estou dentro da minha irmã. Se existe uma maldição em luiln Islo, faço questão de agarrar o toiro pelos cornos e executar a lo para que fui programado. Só quero tirar este peso dos ombros illai a viver a minha vida - sem ser apanhado nos esquemas de outra pessoa qualquer. É só isso o que quero. E venho-me dentro dela.

Mesmo que não passe de um sonho, não devias ter feito isso», alerta-me o rapaz chamado Corvo. Encontra-se mesmo atrás de mim, seguiu-me até à floresta. «Fiz os possíveis por te impedir. Esforcei-me por te explicar. Tu bem ouviste, mas em vez de ligares, não, continuaste com o que estavas a fazer.

Não respondo nem me viro, continuo a percorrer o meu camino em silencio.

«Pensavas que era assim que te ias safar da maldição, certo? liln foi, pois não?», insiste o Corvo.

Mas não foi, pois não? Mataste a pessoa que era o teu pai, violaste a tua mãe e agora a tua irmã. Julgaste que porias fim à maldição que o teu pai te lançou e por isso fizeste tudo o que tinha sido predito a teu respeito. Mas nada acabou realmente. Não ultrapassaste nada. A maldição ficou gravada a fogo na tua alma, com mais nitidez do que nunca. Já devias tê-lo percebido. Essa maldição está inscrita nos teus genes. Respiras a maldição, o vento espalha-a pelos quatro cantos da Terra, mas a negra confusão den­tro de ti mantém-se. Sentes medo, zanga, desconforto - nada desa­pareceu. Tudo isso ainda está dentro de ti, ainda te tortura.

«Ouve, não há nenhuma guerra que acabe com todas as guer­ras», diz-me o Corvo. «A guerra gera mais guerra. Lambuza-se com o sangue violentamente derramado, alimentando-se de carne morta. A guerra é em si mesma uma forma de vida perfeita e acabada. Tens de ter consciência disso.»

«Sakura, minha irmã», digo eu. Não a devia ter violado. Mesmo que tenha sido num sonho. «O que devo fazer?», pergunto, de olhos postos no chão diante de mim.

«Tens de ultrapassar o medo e a raiva que te dominam», diz o rapaz chamado Corvo. «Deixa entrar a luz capaz de derreter a frieza que envolve o teu coração. É isso que significa ser forte. Faz isso e passarás verdadeiramente a ser o rapaz de quinze anos mais forte do mundo. Estás a ver onde quero chegar? Ainda vais a tempo. Ainda podes recuperar o teu verdadeiro eu. Usa a cabeça. Pensa no que tens a fazer. Não és estúpido nenhum. Vais ver que descobres uma maneira.»

«Matei realmente o meu pai?», pergunto eu.

Não obtenho resposta. Volto-me, mas o rapaz chamado Corvo desapareceu, e a minha pergunta é engolida pelo silêncio.

Sozinho no meio da floresta cerrada, a pessoa que eu sou sente--se vazia, terrivelmente vazia. Oshima costumava chamar-lhes «homens vazios». Pois bem, foi nisso em que me transformei. Existe um vazio dentro de mim, um espaço em branco que se expande lentamente e ameaça devorar o que resta de mim. Consigo ouvir o barulho que faz. Estou completamente a leste, sinto a minha identidade a desmoronar-se. Perdi o norte, não sei dizer onde fica o céu nem a terra. Penso na Saeki-san, em Sakura, em Oshima. Mas estou a anos luz de todos eles. É como se olhasse por um binóculo ao contrário: poi mais que estique a mão, não os consigo alcançar. Estou isolado nu meio de um labirinto mal iluminado. Aprende a escutar o vento, ensinou-me Oshima. Apuro o ouvido, mas não há vento. Até mesmo o rapapaz chamado Corvo desapareceu.

Usa a cabeça. Pensa no que tens a fazer.

Mas não consigo pensar. Por mais que me esforce por usar a cabeça, acabo sempre por ir parar a um beco sem saída. Mas o que tenho eu dentro de mim que me faz ser eu? É com isto que devo fazer frente ao vazio?

Se ao menos fosse capaz de acabar com a minha existência, aqui e agora. Penso seriamente nessa hipótese. No meio desta espessa muralha de árvores, neste caminho que é um caminho, se deixasse de respirar a minha consciência enterrar-se-ia em silêncio no meio das trevas, cada gota do meu sangue negro e violento derramado, deixando o meu ADN a apodrecer no meio das ervas daninhas. E então a minha batalha chegaria ao fim. Caso contrário, passarei a assassinar (matar) o meu pai, a violar a minha mãe e a minha a irmã, a castigar o mundo inteiro eternamente. Fecho os olhos e dirijo o meu olhar para dentro de mim. A escuridão é total, dentada e talhada em bisel. Quando há uma aberta nas nuvens escuras fica-se com a sensação de olhar por uma janela e ver as folhas dos cornisos a reluzirem como mil lâminas à luz da Lua.

A sensação que tenho é de que está algo a reorganizar-se dentro da minha pele. E, de repente, há um clique na minha cabeça. Abro os olhos e respiro fundo. Deito fora a lata de spray, a machadinha, a bússola. O som que fazem a cair por terra, chega-me muito ao longe. Sinto-me mais leve. Liberto-me do saco que trago a tiracolo e ponho-o de lado. O meu tato fica subitamente mais apurado. Em redor, o ar tornou-se mais transparente. A noção da floresta, mais intensa. O solo labiríntico de Coltrane ecoa nos meus ouvidos... Ainda e sempre.

Pensando melhor, vasculho o saco, tiro para fora a faca de mato e enfio-a no bolso das calças. A faca que roubei da secretária do meu pai. Em ultimo caso, posso usá-la para cortar os pulsos e esvair-me até que a ultima gota de sangue tenha sido absorvida pela terra. Isso serviria para dar cabo do mecanismo.

Dirijo-me ao coração da floresta. Sou um homem oco. Personifico o vazio que devora tudo o que tem substância. Por isso, nada há a temer. Absolutamente nada.

E dirijo-me ao coração da floresta.

 

Assim que ficaram os dois sozinhos, a Sr.a Saeki ofereceu uma i ideira a Nakata. Ele pensou duas vezes antes de se sentar. Ficaram sentados durante um bocado sem falar, a olhar um para o outro, cada um do seu lado da secretária. Nakata pôs o gorro no colo e, como era seu costume, esfregou energicamente com a palma da mão o cabelo cortado rente. A Sr.a Saeki pousou as mãos em cima da mesa e libervou-o no seu ritual.

Se não estou em erro, é do senhor que tenho estado à espera disse ela.

Nakata acredita que sim - respondeu Nakata. - Mas demorou Mil do que pensava. A espera foi muito longa? Nakata fez os possíveis por chegar aqui quanto antes.

A Sr.ª Saeki abanou a cabeça. Não, de forma alguma. Caso tivesse chegado mais cedo, ou tarde, o transtorno teria sido maior. Para mim, este é o momento certo.

Sc o senhor Hoshino, que tem sido muito prestável, não ajudasse, Nakata ainda teria demorado muito mais. Afinal, Nakata não sabe ler.

Quer então dizer que o senhor Hoshino é seu amigo?

Sim replicou Nakata, acenando afirmativamente com a cabeça. - Assim parece. Mas, para lhe dizer a verdade, Nakata não tem bem a certeza. Tirando os gatos, Nakata nunca teve aquilo a que pudesse chamar um amigo em toda a sua vida.

Também eu há muito que não sei o que é ter um amigo -confessou a senhora Saeki. - A não ser nas minhas recordações.

Saeki-san?

Sim? - respondeu ela.

Para ser franco, Nakata também não tem recordações. Nakata é estúpido, não sei está a ver. O que são recordações?

A Sr.a Saeki fitou as suas mãos pousadas na secretária, depois levantou os olhos para Nakata.

As recordações são aquilo que nos aquece a alma. Mas tam­bém despedaçam o nosso coração.

Nakata abanou a cabeça.

Essa é das difíceis. Nakata não compreende o que são recordações. A única coisa que compreende é o tempo presente.

Comigo passa-se exactamente o contrário - disse a Sr.a Saeki. Um profundo silêncio instalou-se na salinha.

Nakata foi o primeiro a quebrá-lo, após ter pigarreado ligei­ramente.

Saeki-san?

Sim?

Conhece a Pedra de Entrada, não conhece?

Sim, conheço - respondeu ela. Com os dedos acariciou a Mont Blanc pousada em cima do tampo da secretária. - Vim dar com ela há muito tempo. Se calhar teria sido bem melhor se nunca tivesse sabido da sua existência. Mas o certo é que não tive escolha.

Nakata abriu a pedra há coisa de alguns dias. Naquela tarde em que fez trovoada e a tempestade se abateu sobre toda a cidade. O senhor Hoshino ajudou. Sozinho, Nakata nunca teria conseguido. Lembra-se qual foi o dia?

A Sr.a Saeki fez que sim com a cabeça.

Lembro.

Nakata abriu a pedra porque tinha de ser.

Bem sei. Fez isso para que as coisas pudessem voltar ao que eram.

Foi a vez de Nakata anuir.

Exactamente.

E estava no seu direito de o fazer.

Isso já Nakata não sabe. Em todo o caso, não teve escolha. Nakata tem de lhe confessar uma coisa - Nakata matou alguém em Nakano. Não queria matar ninguém, mas era Johnnie Walker que mandava e Nakata tomou o lugar de um rapaz de quinze anos que devia lá estar e matou uma pessoa. Nakata foi obrigado a isso.

A Sr.a Saeki fechou os olhos, para depois os abrir novamente e fitar o homem.

Tudo isso aconteceu por causa de eu ter aberto a pedra há muito tempo? Ainda continua a ter efeito, mesmo agora, contribuindo para distorcer as coisas?

Nakata abanou a cabeça.

Saeki-san?

Sim?

Nakata não tem maneira de saber isso. O papel dele é endireitar as coisas, aqui e agora, e pô-las como deve ser. Por isso abandonou Nakano, atravessou uma grande ponte e veio até Shikoku. E a senhora, como por certo deve saber, já não pode ficar mais aqui.

A Sr.a Saeki sorriu.

Sei - disse ela. - Tenho ansiado por isso desde há muito, senhor Nakata. No entanto, por mais que tentasse, nunca consegui obter aquilo que desejava. Fui obrigada a esperar pacientemente até que que chegasse a altura certa - que é como quem diz, agora. Reconheço que nem sempre foi fácil, mas o sofrimento foi uma coisa que me habituei a aceitar.

Saeki-san - disse Nakata -, Nakata só tem metade da sombra. Tal como acontece consigo.

Bem sei.

Nakata perdeu a dele durante a guerra. Não sabe por que motivo isso aconteceu, nem tão-pouco porque lhe aconteceu a ele... De qualquer modo, isso agora já pertence ao passado, além de que está na hora de nos irmos embora daqui.

Compreendo.

Nakata já viveu muito tempo, mas, como disse, não guarda recordações. Por isso, não compreende esse tal

«sofrimento» de que falou. Mas talvez isso queira dizer que a senhora, por muito sofrimento que tenha passado, nunca se quis libertar dessas recordações. Será?

É verdade confessou a Sr.a Saeki. - Custou-me imenso a viver com elas, mas nunca me quis libertar delas, enquanto vivi. Eram a única razão que me fazia viver, a única prova de que estava viva.

Nakata acenou em silencio.

Nakata não sabe nada acerca do desejo sexual. Assim como não tem memória, também não tem desejo. Por isso não compreende a diferença entre o desejo sexual certo e o desejo sexual errado. Nakata aprendeu a aceitar tudo o que acontece, e foi assim que se tornou a pessoa que é.

Senhor Nakata?

Sim?

Tenho um favor a pedir-lhe. - A Sr.a Saeki pegou na mala que estava a seus pés, tirou uma pequena chave e abriu uma gaveta da secretária, de onde retirou uma série de pastas grossas, que colocou sobre a mesa. - Desde que cheguei a esta cidade - relatou ela -, comecei a escrever o que aqui vê nestes manuscritos. A história da minha vida. Nasci não muito longe daqui e apaixonei-me loucamente por um rapaz que vivia nesta casa. Não o podia ter amado mais, e também ele estava apaixonadíssimo por mim. Vivemos num círculo perfeito. Tudo no interior desse círculo se completava. Como seria de esperar, a situação não podia durar para sempre. Crescemos, e as coisas mudaram. Algumas partes do círculo começaram a dar de si, o mundo exterior infiltrou-se no nosso pequeno paraíso privado e as coisas que estavam cá dentro foram sugadas para fora. Tudo muito natural, é bom de ver, mas na altura confesso que não fui capaz de aceitar a situação de ânimo leve. Foi então que abri a Pedra de Entrada - a fim de impedir o nosso pequeno mundo de se desmoronar. Como na altura o consegui, não me lembro. Sabia apenas que tinha de o fazer, custasse o que custasse - de forma a não o perder, a evitar que as coisas do exterior destruíssem o nosso mundo. Confesso que não me apercebi então do que isso implicava. E, claro, tive o castigo que merecia.

Neste ponto ela interrompeu o seu relato, pegou na caneta de tinta permanente e fechou os olhos.

Pelo facto de ter vivido mais tempo que estava previsto, fiz mal a muitas pessoas e a muitas coisas - continuou ela. - Ainda há muito pouco tempo mantive uma relação sexual com esse rapaz de quinze anos que o senhor mencionou. Naquele quarto voltei a ser uma rapariguinha de

A minha vida acabou quando eu tinha vinte anos. Desde essa altura não tem passado de uma série de reminiscências, um corredor longo e sombrio que não leva a lado algum. Contudo, não tive outro icmédio senão continuar a viver, sobrevivendo a cada dia vazio que passava, sabendo que vinha aí mais um dia vazio por preencher. Durante todos esses dias cometi uma quantidade de erros. Não, isso não é correcto - às vezes tenho a impressão de ter cometido erros. Senlia-me como se estivesse a viver no fundo de um poço fundo, completamente fechada dentro de mim, amaldiçoando o meu destino, detestando tudo à minha volta. De quando em quando, ganhava coragem e atrevia-me a sair de dentro da minha casca, encenando dos olhos dos outros uma existência digna desse nome e celebrando o fato de estar viva. Aceitando o que me aparecia à frente, arrastando-me penosamente, amorfa, pelo mundo, sem sentimentos e fazendo pela vida. Dormi com muitos homens. Cheguei mesmo a viver uma relação que era uma espécie de casamento, mas sem nenhum significado para mim. Acabou tudo num instante, sem nada para contar a não ser as cicatrizes deixadas por tudo o que deitei a perder e des­prezei.

Ela pousou as mãos sobre as três pastas em cima da secretária.

Encontrará aqui todos os pormenores. Escrevi tudo a fim de deixar ficar as coisas em ordem, de ordenar os meus pensamentos acerca da vida que levei. A única culpada sou eu, mas a tarefa revelou-se partic ularmente difícil e dolorosa. E agora cheguei ao fim. Passei para o papel tudo aquilo que precisava de deixar dito. Aquilo que escrevi apenas para os seus olhos e não gostaria que mais ninguém o lesse. Caso isso aconteça, este relato poderia causar uma vez mais danos incalculáveis. Por isso desejaria que depois fosse tudo queimado e reduzido a cinzas, até à última página, para que das minhas palavras nada ficasse. Se não se importa, conto consigo para executar essa tarefa. É a única pessoa em quem posso confiar, senhor Nakata. Sei que é egoísta da minha parte e tenho pena de lhe estar a dar toda esta maçada, mas está disposto a encarregar-se disso? Nakata compreende - disse ele, assentindo gravemente com a cabeça. - Se é essa a sua vontade, Saeki-san, Nakata terá todo o gosto em queimar tudo por si. Pode ficar descansada.

Obrigada - disse a Sr.,n Saeki.

Escrever foi uma coisa importante, não foi? - perguntou Nakata.

Sim. O processo de escrita foi importante. Apesar de o produto final não ter assim tanta importância.

Nakata não sabe ler nem escrever, por isso não pode passar as coisas para o papel. Nesse aspecto, Nakata é como os gatos.

Senhor Nakata?

Posso fazer alguma coisa por si?

Tenho a sensação de que nos conhecemos desde sempre -disse a Sr.a Saeki. - Acaso não é o senhor que aparece naquele qua­dro! Uma figura recortada na praia, ao fundo? Com as calças brancas enroladas para cima, com os pés metidos dentro de água?

Nakata pôs-se de pé e aproximou-se da Sr.a Saeki. Colocou as suas mãos calejadas, queimadas do sol, em cima das dela, por sobre as pastas. E, assim inclinado como se estivesse a escutar atentamente algo, sentiu o calor que a mão dela transmitia.

Saeki-san?

Sim?

Agora Nakata percebe um bocadinho.

O quê?

O que são recordações. Através das suas mãos, Nakata consegue senti-las.

Ela sorriu.

Fico contente.

Nakata deixou ficar as suas mãos em cima das dela durante muito tempo. Às tantas, a Sr.a Saeki fechou os olhos, mergulhando nas suas lembranças. Agora, a dor já não existia, uma vez que alguém se encarregara de a sugar dali para fora.'O círculo voltava a estar completo. Ela abre a porta de um quarto longínquo e encontra dois bonitos acordes, sob a forma de lagartos, adormecidos na parede. Toca-lhes de mansinho com o dedo e consegue sentir o seu sono tranquilo. Sopra uma brisa ligeira que faz estremecer as cortinas de vez em quando. Um estremecimento cheio de significado, como uma alegoria. Ela enverga um longo vestido azul. Um vestido que usou em tempos, algures. A bainha ondula ao sabor dos seus movimentos. Da janela vê-se a praia. E ouve-se o som das ondas, e a voz de alguém. A brisa transporta no ar o cheiro a maresia. Pequenas nuvens brancas recortam-se no azul do céu. E é Verão. É Verão, ainda e sem­pre.

Nakata levou consigo as três pastas e desceu as escadas. Oshima estava ao balcão a falar com um dos visitantes. Quando viu Nakata, lançou-lhe um sorriso amável. Por seu turno, Nakata fez uma vénia educada, e Oshima voltou à sua conversa. Hoshino permanecera na sala de leitura, mergulhado no seu livro.

Senhor Hoshino?

Hoshino pôs o livro de lado e levantou os olhos.

Ei, demoraste uma eternidade. Já estás despachado?

Sim, Nakata já está despachado. Se estiver de acordo, talvez pudéssemos ir embora rapidamente.

Por mim tudo bem. Estou quase a acabar o livro. Beethoven acabou de morrer e já vou na parte do funeral. E que funeral, meu! Estiveram presentes vinte e cinco mil vienenses e até as escolas não abriram nesse dia.

Senhor Hoshino?

Sim, que é? Que se passa?

Tenho mais um favor a pedir-lhe.

Diz.

Nakata precisa de queimar isto em qualquer sítio.

Hoshino lançou uma olhadela às pastas que o velho trazia na mão.

Hmm, ainda é muita coisa. Não podemos queimar esse papel todo em qualquer parte. Precisávamos de encontrar o leito de um rio ou coisa do género.

Senhor Hoshino?

Sim?

Vamos à procura, está bem?

A pergunta pode parecer-te estúpida, mas é assim tão importante? Não podemos pura e simplesmente deitar fora essa papelada e livrarmo-nos do lixo?

Sim, é muito importante e tem de arder tudo, até se transformar em fumo e desaparecer no céu. E nós temos de ficar a ver, para ficarmos com a certeza de que ardeu realmente.

Hoshino levantou-se e esticou-se todo.

Okay, vamos lá ver se damos com a beira-rio. Não sei bem onde poderá ficar, mas tenho a certeza de que em Shikoku devemos encontrar pelo menos um sítio assim.

A tarde revelou-se mais movimentada do que nunca. Apareceu imensa gente na biblioteca, algumas pessoas com perguntas muito concretas e específicas. Oshima não teve mãos a medir com o traba­lho, vendo-se obrigado a andar sempre de um lado para o outro a fim de poder responder às solicitações e de recolher o material pe­dido. Em certos casos, teve de proceder a uma busca no computador. Numa situação normal teria pedido ajuda à Sr.a Saeki, mas naquele dia não era possível contar com ela. Por mais de uma vez teve de se ausentar do balcão e nem sequer deu pela saída de Nakata. Quando as coisas acalmaram um bocado, olhou em redor, mas já não viu a estranha parelha em parte alguma. Subiu a escada e foi até ao escritório da Sr.a Saeki. Por estranho que parecesse, a porta estava fechada. Bateu duas vezes mas não obteve resposta. Voltou a bater.

Senhora Saeki? - perguntou ele do lado de fora da porta. - Está tudo bem consigo?

Devagarinho, girou o puxador. A porta não estava fechada à chave. Oshima abriu uma fresta e espreitou lá para dentro. Foi então que viu a Sr.a Saeki debruçada sobre a secretária. Tinha o cabelo caído para a frente, tapando-lhe o rosto. Ficou sem saber o que fazer. Talvez se sentisse apenas cansada e tivesse adormecido. Mas a verdade é que nunca a vira dormir a sesta. Não era do tipo de passar pelas brasas durante as horas de trabalho. Entrou no quartinho e acercou-se da secretária. Inclinando-se, sussurrou o nome dela, mas não obteve resposta. Tocou-lhe no ombro, depois pegou-lhe no pulso e fez pressão com os dedos. Não tinha pulso. A sua pele conservava ainda uma réstia de calor, mas começava já a perdê-lo.

Oshima levantou o cabelo e examinou-lhe o rosto. Tinha os olhos ligeiramente abertos. Parecia que mergulhara num sonho feliz. Mas não estava a dormir. Estava morta. Nos seus lábios pairava o resto de um sorriso. Até na morte mantinha a sua postura incomparável de graça e dignidade, pensou Oshima. Deixou o cabelo caído e pegou no telefone.

Procurou resignar-se, pensando que era apenas uma questão de tempo até aquele dia chegar. Mas agora que isso acontecera, e que se encontrava sozinho naquele quarto onde jazia o corpo da Saeki-san sem vida, sentia-se perdido. Era como se tivesse o coração ressequido pela dor. Precisava dela, pensava Oshima. Precisava de alguém como ela para preencher o meu vazio interior. Mas ninguém

foi capaz de ocupar o que ela tinha dentro de si. Até ao fim, foi sem­pre essa a sua tragédia.

Ao fundo das escadas ouviu uma voz a chamar o nome dele. Pelo menos parecia-lhe que tinha ouvido uma voz. Deixou a porta aberta para trás e ouviu distintamente o rumor de pessoas que iam e vinham. No rés-do-chão um telefone tocou. Ignorou tudo aquilo. Sentou-se e fitou-a. Se queres, pensou ele, chama por mim. Se queres, telefona-me. Por fim, ouviu a sirene da ambulância. Parecia cada vez mais próxima. Dentro de pouco tempo aparecerá alguém para levar daqui a Saeki-san - para sempre. Levantou o braço esquerdo e olhou para o relógio. Eram quatro e trinta e cinco de uma tarde de terça-ieira. Tenho de gravar esta data na minha memória, pensou para consigo. Tenho de recordar este dia, esta tarde, para sempre.

Kafka Tamura - murmurou ele, de frente para uma parede vazia. - Tenho de te contar o que acontecer. Se é que ainda o não sabes.

 

Depois de me ter desembaraçado da bagagem, fico mais leve e consigo penetrar mais na floresta. Só tenho uma ideia fixa, em avançar. Deixei de marcar as árvores, de me preocupar com o cami­nho de regresso. Nem sequer perco tempo a olhar para o que está à minha volta. Para quê, se a paisagem que me cerca é sempre a mesma. Uma abóbada de árvores que se erguem por cima do matagal de fetos, gavinhas que pendem até ao solo penduradas, raízes nodosas e retorcidas, camadas de folhas caídas por tudo quanto é sítio, resquícios secos da pele de vários insectos. Teias de aranha, duras e pegajosas. Uma infinidade de ramos. Vendo bem, um verdadeiro mundo de ramos de árvores. Ramos ameaçadores, que lutam por mais espaço, ramos que se escondem sorrateiramente, ramos tortuosos e retorcidos, ramos contemplativos, ramos secos, ramos mortos. O cenário repete-se, a perder de vista, para onde quer que se olhe. A única diferença é que a floresta se torna, a cada repetição, mais cerrada.

Sem abrir a boca, sigo por aquilo que se poderá considerar um carreiro. Continua sempre a subir, ainda que de momento conheça um troço não tão íngreme. Decididamente, não é uma encosta assim que me vai deixar sem fôlego. Volta e meia o caminho ameaça per­der-se num mar de fetos ou de arbustos espinhosos, mas basta-me ultrapassar o obstáculo e chegar mais à frente que logo torno a dar com o pseudocarreiro. A floresta deixou de me meter medo. Tem as suas regras e os seus padrões, é certo, mas basta que se deixe de ter medo para se ficar a conhecer o terreno. A partir do momento em que entendo a lógica da duplicação, passam a fazer parte de mim.

Caminho agora de mãos a abanar. A lata de spray de tinta amarela, a machadinha - são coisas do passado. A mochila também foi à vida. O mesmo aconteceu ao cantil e às provisões. Nem sequer uma bússola tenho comigo. Uma a uma, fui-me libertando de todas essas coisas. Ao fazer isso, sinto que estou a passar uma mensagem clara à floresta: «Deixei de ter medo. Daí que escolha apresentar-me lolalmente desarmado e indefeso.» Menos a minha carapaça, apenas carne e ossos, rumo ao centro do labirinto, decidido a abraçar o vazio.

A música que até agora estivera a tocar na minha cabeça desapareceu, deixando ficar uma espécie de leve rumor branco, branco e macio como um lençol estendido numa cama enorme. Toco no lençol e traço os seus contornos com a ponta dos dedos. Sinto a trans-plração debaixo dos braços. De vez em quando, consigo entrever o i eu airavés do cimo das árvores. Está coberto por uma camada cerrada de nuvens cinzentas, mas não ameaça chuva. As nuvens não se mexem; a cena nunca muda, parece sempre a mesma. Nos ramos mais altos das árvores, os pássaros lançam uns aos outros os seus gritos curtos e cheios de significado. Por entre as ervas daninhas, os insectos zumbem em tom de profecia.

Penso na casa de Nogata sem ninguém. O mais provável é estar fechada. Tudo bem. Por mim, podem deixar ficar as manchas de sangue tambem. Tanto me faz. Não faço tenções de lá voltar a pôr os pés. Ainda antes de aquele sangrento incidente ter ocorrido, já aquela casa era para mim um lugar onde todas as coisas estavam mortas. Uma correeção - tinham sido assassinadas.

Às vezes por cima de mim, outras por baixo, a floresta tenta meter-me medo. Ora lança sobre o meu pescoço um sopro gélido, espora na minha carne agulhas que parecem ter mil olhos. Tudo faz para se livrar deste intruso. Mas, pouco a pouco, aprendo a lidar com essas ameaças. Vendo bem, a floresta faz acima de tudo parte de mim. Até certo ponto, agarro-me a este pensamento. Estou a fazer uma viagem por dentro de mim mesmo. Tal como o sangue percorre as veias, o que estou a ver é o meu próprio eu, e tudo o que parece ameaçador é apenas o eco do medo no meu coração. As teias de aranha na floresta são as teias de aranha no meu coração. O grito dos pássaros que oiço por cima de mim, quem o solta são os pássaros que fazem ninho dentro de mim. Estas imagens agarram-se ao meu espírito e ganham raízes.

Impulsionado por um poderoso bater do coração, embrenho-me cada vez mais na floresta. O caminho conduz a um sítio especial, uma fonte de luz que jorra no meio das trevas, o lugar de onde provêm os ecos sem voz. Preciso de ver com os meus próprios olhos o que esse lugar me reserva. Transporto comigo uma importante carta, selada e escrita na minha própria caligrafia, uma mensagem secreta destinada a mim próprio.

Uma pergunta. Por que razão não foi ela capaz de me amar? Não mereço que a minha mãe goste de mim?

Durante anos essa pergunta tem sido como uma chama a arder no meu coração, a devorar a minha alma. Deve ter havido à partida algo de fundamentalmente errado em mim que fez com que a minha mãe não me amasse. Terei eu nascido com alguma mácula? Vim a este mundo para só encontrar pela frente pessoas que desviam os olhos de mim?

A minha mãe nem sequer me apertou nos seus braços antes de partir. Virou a cara, pegou na minha irmã e saiu de casa, sem dizer uma palavra. Pura e simplesmente dissipou-se no ar como fumo. E agora a cara dela desapareceu para sempre.

Por cima de mim oiço o chilrear dos pássaros e levanto a cabeça para olhar o céu. Não vejo nada, a não ser uma camada indistinta e uniforme de nuvens cinzentas. Sigo a corrente da minha consciência, ondas que vão e vêm, deixando ficar qualquer coisa escrito, até que, acto contínuo, chegam outras ondas e apagam a mensagem. Tento ler rapidamente o que lá está escrito, entre uma onda e a seguinte, mas torna-se difícil. Antes de eu ter conseguido ler o que está escrito, já a onda seguinte apagou todas as palavras. Só sobram fragmentos que dão forma a um quebra-cabeças.

A minha mente volta-se de novo para a casa, para o dia em que a minha mãe se foi embora, levando a minha irmã com ela. Estou sentado no alpendre, a olhar para o jardim. É a hora do lusco-fusco no início de Verão, e as sombras das árvores são cada vez mais longas. Estou sozinho em casa. Não sei explicar porquê, mas mesmo antes de o saber já sabia que tinha sido abandonado. E percebi desde logo que isso iria mudar o meu mundo para sempre. Ninguém me disse nada - soube-o, só isso. A casa está vazia, deserta, mais parece um posto fronteiriço abandonado numa região distante. A oeste, o Sol põe-se e eu contemplo o mundo a afundar-se lentamente sob um manto de sombras. Num mundo dominado pelo tempo, nada pode voltar ao que era dantes. Palmo a palmo, as sombras conquistam terreno, apagando do mapa do chão ponto atrás de ponto, até que o rosto de minha mãe, que num momento ainda era visível, desaparece, engolido por este pesadelo frio e real. Aquela face severa, afastada de mim, é automaticamente apagada da minha memória.

À medida que vou avançando pela floresta dentro, penso na Saeki-san. Vem-me à memória o seu rosto, aquela calma que dela transparecia, o sorriso vago, o calor da mão. Tento imaginá-la como minha mãe, a abandonar-me quando eu tinha quatro anos. Sem querer, abano a cabeça. O quadro está todo errado. O que levaria a Saeki-san a fazer uma coisa dessas? A magoar-me daquela maneira, a dar cabo da minha vida para sempre? Devia ter uma importante razão, uma razão secreta que me escapa.

Tento sentir o que ela deve ter sentido e perceber o seu ponto de vista. Não é fácil. Afinal, quem foi abandonado fui eu, e foi ela quem me abandonou. Mas com o passar do tempo despeço-me de mim próprio. A minha alma liberta-se do invólucro duro que encerra a minha consciência e transforma-se num corvo negro pousado num ramo, no cimo de um pinheiro que há no jardim, a olhar cá para baixo, para o rapazinho de quatro anos sentado no alpendre.

Transformo-me num corvo negro que gosta de dar a sua opinião a torto e a direito.

«Não é verdade que a tua mãe não te amasse», lança o rapaz lança o rapaz chamado Corvo atrás de mim. «Ela amava-te, e muito. A primeira coisa que tens de fazer é acreditar nisto que te digo. Tens de partir daí.

«Mas ela abandonou-me. Desapareceu, deixando-me só no sítio errado, onde não devia estar. Só agora começo a dar-me conta do sofrimento que isso implicou. Explica-me lá como foi ela capaz disso, se gostava assim tanto de mim?»

«É a realidade. Aconteceu», diz o rapaz chamado Corvo. «Ficaste profundamente magoado, e essas cicatrizes marcar-te-ão para sempre. Tenho pena de ti, acredita. Mas ouve o que te digo: ainda estás a tempo de recuperar. És jovem e forte. És flexível. Podes pôr um penso nas tuas feridas, levantar a cabeça e seguir em frente. No caso dela, essa opção não existe. Está condenada a ficar perdida para sempre. Se isto é uma coisa boa ou má - tanto faz, a pergunta não é para aqui chamada. És tu que estás em vantagem. Devias pensar melhor nisso.»

Fico calado.

«O que aconteceu, aconteceu, não podes voltar atrás e desfazer o que foi feito», continua o Corvo a arengar-me aos ouvidos. «Ela não te devia ter abandonado então, e tu não devias ter sido abandonado. Mas as coisas que pertencem ao passado são como um prato partido em pedaços. Nunca se consegue fazê-lo voltar à forma que tinha dantes, certo?»

Concordo com a cabeça. Nunca se consegue voltar ao que era dantes. Agora é que ele acertou em cheio.

«A tua mãe», continua o rapaz chamado Corvo, «sentiu um medo terrível e uma indescritível fúria dentro dela, entendes? Tal como acontece contigo agora. E foi por isso que ela teve de te abandonar».

«Mesmo gostando de mim?»

«Mesmo gostando de ti, foi obrigada a abandonar-te. Tens de entender como ela então se sentiu e aprender a aceitar isso. A per­ceber o medo avassalador, a fúria dela, e fazê-los teus a fim de não os herdares e de não repetires a história. Agora, o principal. Tens de lhe perdoar. Não vai ser fácil, bem sei, mas tens de o fazer. É a tua única salvação. Não há outra maneira!»

Penso no que ele me disse. Quanto mais penso nisso, mais confuso fico. Sinto-me perdido por dentro e a minha pele parece estar a ser arrancada.

«A Saeki-san é realmente a minha mãe?», pergunto.

«Ela não te disse já que é uma hipótese?», atira o rapaz chamado Corvo. «Aí tens a tua resposta: tudo é possível. Mais não te digo.»

«Uma hipótese para a qual ela ainda não encontrou nenhuma confirmação válida.»

«Exacto.»

«E eu tenho de perseguir essa hipótese até às suas últimas consequências?»

«É isso mesmo», replica o Corvo, sem rodeios. «Só uma hipótese sem comprovação é que merece o nosso esforço. Além disso, neste momento, não tens outra safa. Mesmo que isso signifique o teu pró­prio sacrifício, tens de ir até ao fim, doa a quem doer.»

«O meu sacrifício?» As palavras soam-me estranhas, não consigo perceber bem porquê.

Não obtenho resposta. Angustiado, viro-me. O rapaz chamado Corvo ainda lá está. Mesmo atrás de mim, a acompanhar o meu ritmo.

«Que género de medo e que género de fúria conheceu a Saeki-s.in, na altura?», pergunto-lhe eu, ao mesmo tempo que me volto Outra vez para a frente e sigo o meu caminho. «E qual era a sua razão de ser?»

«Que género de medo e que género de fúria é que pensas que poderia ser?» A uma pergunta, responde o rapaz chamado Corvo com outra pergunta. «Pensa nisso. Tens de chegar lá sozinho. É para isso que serve a cabeça.»

E é o que eu faço. Tenho de compreender e aceitar, antes que seja demasiado tarde. Mas continuo sem conseguir decifrar aquela delicada caligrafia inscrita na margem da minha consciência. O tempo entre uma onda e outra é demasiado breve.

«Estou apaixonado pela Saeki-san», digo eu. As palavras saem-me naturalmente da boca.

«Bem sei», responde o rapaz chamado Corvo, secamente.

«Nunca me senti assim antes», continuo. «E isso é mais Iinporlante para mim do que tudo o mais.»

«Claro que é», replica o Corvo. «Não era preciso dizeres. Por por é que chegaste onde chegaste.»

«Mas continuo sem entender. Estou desorientado. Dizes-me tu que a minha mãe gostava de mim, e muito. Quero acreditar em ti. Mas nesse caso não percebo. Como se pode gostar muito de uma pessoa e causar-lhe tanto sofrimento? Quero dizer, se assim é, de que eive .miar alguém? Porque raio tem isso de ser assim?»

Fico à espera da resposta. Calo-me bem calado durante um grande bocado, mas a resposta continua sem chegar, por isso viro-­me. O rapaz chamado Corvo desapareceu. Por cima de mim oiço um bater de asas.

Estás completamente desorientado.

Passado pouco tempo aparecem os dois soldados.

Envergam o uniforme da velha guarda imperial. Fardas de Verão, de manga curta, polainas e mochila às costas. Não usam capacete, apenas um boné com pala, e têm uma espécie de pintura preta na cara. São ambos jovens. Um é alto e magro, e usa óculos com armações metálicas redondas. O outro é baixo, de ombros largos e mais encorpado. Estão sentados numa pedra lisa. Qualquer deles não tem aspecto de ir entrar em combate. Puseram as espingardas de modelo trinta e oito aos pés. O soldado alto parece entediado e mastiga um raminho de árvore. Têm os dois um ar perfeitamente à vontade, como se estivessem no seu elemento natural. Imperturbáveis, vêem-me aproximar.

Existe uma pequena clareira no sítio onde se encontram, como se fosse o patamar de uma escada.

Ei - lança o soldado alto, em tom amigável.

Como passa? - diz o corpulento com um imperceptível franzir de testa.

Como estão? - pergunto eu em jeito de resposta. Sei que deveria ficar espantado pelo facto de os encontrar no meu caminho, mas a verdade é que me encontro a viajar pelo reino das possibilidades. A coisa não me parece assim tão estranha quanto isso.

Estávamos à tua espera - diz o mais alto.

De mim? - indago eu.

Claro - responde ele. - Quem mais se lembraria de aparecer por aqui?

Estamos à espera há muito tempo - diz o encorpado.

Não que o tempo tenha grande importância para estas bandas - acrescenta o mais alto. - Ainda assim, demoraste mais do que seria de esperar.

Vocês são aqueles dois soldados que desapareceram nesta floresta há uma eternidade? - pergunto eu. - Quando andavam em manobras?

O soldado encorpado faz um sinal de assentimento.

Somos nós. Os próprios.

Fartaram-se de vos procurar, correram tudo quanto era sítio - digo.

Sim, nós sabemos disso - responde o mais corpulento. -Sabemos que nos procuraram. Sabemos tudo o que acontece nesta floresta. Mas bem podiam andar, que não havia maneira de darem connosco.

Para dizer a verdade, não nos perdermos -, avança o mais alto. - Fugimos.

Não foi tanto fugir - contrapõe o encorpado -, o que aconteceu foi que viemos ter a este lugar e decidimos ficar por cá. Não é pro­priamente a mesma coisa que andarmos perdidos.

Ninguém consegue dar com este lugar - diz o soldado alto. - Mas nós conseguimos, e agora parece que tu também. Uma sorte para nós.

Se não tivesses vindo ter a este sítio, mandavam-nos para o ultramar - explica o encorpado. - E, uma vez lá chegados, era matar ou ser morto. E isso não é para nós. Pela parte que me diz respeito, sou um homem do campo, e aqui o meu companheiro concluiu a licenciatura. Nenhum de nós está interessado em matar ninguém. E muito menos em ser morto. Isso parece-me óbvio.

E tu? - pergunta-me o mais alto. - Gostavas de matar alguém ou de ser morto?

Digo que não com a cabeça.

Não, nenhuma das coisas. Não quero matar ninguém. E não quero que ninguém me mate.

Toda a gente pensa assim - diz o alto. - Ou, pelo menos, a maioria das pessoas. Mas se disseres: «Olhem, não quero ir para a guerra», a pátria não aceita isso de bom grado, com um sorriso nos lábios. Não se pode fugir. O Japão é um país pequeno, para onde há de uma pessoa fugir? Encontravam-te enquanto o diabo esfrega um olho e tratavam-te logo da saúde. Foi por isso que escolhemos ficar por aqui. Este é o único sítio onde podemos estar escondidos. - Abana a cabeça, antes de prosseguir. - E aqui permanecemos desde essa altura. Como tu muito bem disseste, «há uma eternidade». Não que o tempo seja aqui um factor primordial. A bem dizer, entre o hoje e o ontem quase não existe diferença.

Diferença nenhuma - diz o mais encorpado, fazendo um gesto largo com a mão.

Sabiam que eu vinha a caminho? - pergunto.

Claro que sim responde o encorpado.

Estamos aqui de plantão há uma data de tempo, por isso sabíamos que havia de aparecer alguém - replica o outro. - A modos que fazemos parte da floresta.

Esta é a entrada - diz o encorpado. - E nós estamos a guar­dá-la.

E agora acontece que está aberta - explica o alto. - Mas daqui a nada fecha. Se queres entrar, é agora. Não abre assim tantas vez quanto isso.

Vem atrás de nós - diz o encorpado. - O caminho é difícil, precisas de ter alguém que te guie.

Se não queres entrar, então o melhor é fazeres meia volta e regressar - diz o alto. - Não é difícil encontrar o caminho de regresso. Vais ver que consegues. E poderás voltar ao mundo de onde vieste, à vida que então vivias. A escolha depende única e exclusivamente de ti. Ninguém te vai obrigar a escolher uma coisa ou outra. Mas depois de aqui entrares, torna-se mais difícil voltar a sair.

Ajudem-me a entrar - respondo sem hesitação.

Tens a certeza? - pergunta o encorpado.

Lá dentro encontra-se uma pessoa que quero ver - digo. -Espero eu...

Sem pressas, os dois homens saem de cima da pedra e põem as espingardas às costas. Trocam entre si um olhar e perfilam-se à minha frente.

Deves estranhar que ainda andemos com estes blocos de aço às costas - diz o alto, virando-se. - Apesar de não servirem para nada. Afinal, nem munições temos.

Mas funcionam como uma espécie de símbolo - avança o encorpado, sem se virar nem olhar para mim - um símbolo do que deixámos para trás.

Os símbolos são importantes - acrescenta o mais alto. - Uma vez que temos estas armas e estamos vestidos com o uniforme de soldados, actuamos como sentinelas. É esse o nosso papel. Os símbolos ajudam-nos a desempenhar as nossas funções.

Trazes alguma coisa do género contigo que se pareça com isso? - pergunta o mais encorpado. - Algo que possa fazer as vezes de símbolo?

Faço que não com a cabeça.

Não, não tenho nada desse género. Apenas as minhas recordações.

Hmm... - faz o encorpado. - Com que então, recordações?

Deixa lá. Não faz mal - diz o alto. - As recordações também podem ser um bom símbolo. Isto apesar de ninguém fazer ideia até que ponto têm valor ou quanto tempo duram.

Uma coisa que tenha uma forma concreta ainda é o melhor, se for possível - diz o encorpado. - É mais fácil de compreender.

Como uma espingarda - diz o alto. - A propósito, qual é o teu nome?

Kafka Tamura - respondo eu.

Kafka Tamura - repetem eles a uma só voz.

Estranho nome - comenta o alto.

Bem podes dizê-lo - acrescenta o encorpado. Depois percorremos o resto do caminho em silêncio.

 

Levaram as três pastas para a beira-rio, não muito longe da linha férrea, e queimaram-nas. Hoshino tinha comprado combustível para isqueiro e ensopou as pastas antes de lhes deitar fogo. Em seguida ele e Nakata deixaram-se ficar ali em silêncio, a ver como as chamas consumiam o manuscrito página atrás de página. O vento quase não se fazia sentir, e o fumo subiu a direito, perdendo-se de vista por entre as nuvens baixas e cinzentas.

Quer então dizer que não podemos ler nada do que lá estava

escrito? - perguntou Hoshino.

Não, não se deve ler - respondeu Nakata. - Nakata prometeu à Saeki-san que isso não iria acontecer, e tem obrigação de cumprir a promessa.

Pois, de facto as promessas são para se cumprir - afirmou Hoshino, limpando o suor da testa. - Mas sempre te digo que seria bem mais fácil se tivéssemos uma máquina de destruir papel. Isso sim, simplificava tudo. As lojas de fotocópias têm enormes máquinas dessas que uma pessoa pode alugar por tuta-e-meia. Não me leves a mal. Não é que me esteja propriamente a queixar, mas quer-me parecer que está um dia demasiado quente para andar a fazer fogueiras. Se fosse Inverno, já era outra história.

Desculpe, mas Nakata prometeu à Saeki-san que queimava tudo, de fio a pavio. E é isso que tem de ser feito.

Pronto, já cá não está quem falou. Verdade seja dita que não temos mais nada que fazer. E um bocadinho de calor também não mata ninguém. Era só uma sugestão, como tu tanto gostas de dizer. Mais nada.

Um gato que ia a passar parou e sentou-se a observar a cena. Era um bicho magricela, com listas castanhas e a ponta da cauda ligeiramente dobrada. Um gato com personalidade, pelo aspecto. Bem que Nakata gostaria de ter metido conversa com o bichano, mas com Hoshino ali por perto, achou melhor não. O gato só se sentiria descontraído se estivessem sozinhos. Além disso, Nakata já não tinha assim tanto a certeza de ser capaz de falar com gatos como dantes. A última coisa que queria era dizer o que quer que fosse que pudesse assustar a pobre criatura. Mas passado pouco tempo o gato fartou-se de olhar para a fogueira e, levantando-se nas quatro patas, seguiu o seu caminho.

Quando finalmente as pastas acabaram de arder, Hoshino calcou as cinzas e reduziu-as a pó. A próxima rabanada de vento encarregar-se ia de espalhar os restos. Faltava pouco para cair a noite e os corvos esiavam de regresso aos ninhos.

Agora, velho amigo, é que já ninguém pode ler rigorosamente nada afirmou Hoshino. - Não sei o que lá vinha escrito, mas depois di-.In não há nada para ninguém. Uma coisa com forma e volume a menos neste mundo, contribuindo para aumentar o nada.

Senhor Hoshino?

Que é?

Tenho uma pergunta para lhe fazer. Dispara.

Como pode o nada aumentar?

A questão deu a Hoshino muito que pensar. Essa é das difíceis - admitiu. - Se uma coisa volta ao nada llunsloi ina-se em zero, mas mesmo que se acrescente zero ao zero, continua a ser zero.

Nakata não percebe.

Para ser franco, também eu não. Além do mais, pensar demasiado nestas coisa dá-me dores de cabeça.

Nesse caso, o melhor é não pensarmos. Por mim, tudo bem - replicou Hoshino. - Afinal de contas, os papéis estão queimados, as palavras dissiparam-se todas.

Nakala tambem tirou um peso da cabeça.

Queres então dizer que estamos despachados da nossa missão, mais coisa menos coisa? - indagou Hoshino.

Sim, já quase acabámos de fazer o que aqui nos trouxe -afirmou Nakata. - Agora, só falta fechar outra vez a Pedra de Entrada.

Isso é muito importante, não é verdade?

É. Tudo o que for aberto, tem de ser fechado.

Bom, vamos a isso. Há que malhar enquanto o ferro está quente e essas tretas todas.

Senhor Hoshino?

Sim?

Agora não pode ser.

Porquê?

Ainda não é tempo - respondeu Nakata. - Temos de esperar pela altura certa para fechar a entrada. Antes disso, Nakata precisa de dormir um bocado. Nakata sente-se deveras cansado.

Hoshino olhou para o velho.

Calma aí. Não vais cair na cama e ficar ferrado no sono durante dias a fio, ou vais?

Nakata não sabe dizer, mas pode muito bem acontecer.

Não podemos tratar do assunto antes de caíres na cama como se fosses uma pedra? Não sei se já te deste conta, mas a partir do momento em que engrenas no sono, as coisas acalmam um bocado.

Senhor Hoshino?

Que é?

Nakata gostaria muito que fosse possível fechar primeiro a Pedra de Entrada. Isso seria ouro sobre azul. Mas precisa mesmo de dormir antes disso. Nakata já mal consegue ter os olhos abertos.

Estás a ficar sem bateria, não é?

Parece que sim. Demorou mais tempo a fazer aquilo que era preciso fazer. Nakata perdeu a energia toda. Importa-se de levar Nakata para um sítio onde ele possa dormir um bocado?

Sem espinhas. Apanhamos um táxi de volta para o apartamento. E então podes dormir como um cepo.

Mal entraram no táxi Nakata começou a cabecear com sono,

Podes dormir o que tiveres na vontade assim que estivermos instalados no apartamento - advertiu Nakata -, mas espera até chegarmos a casa, pode ser?

Senhor Hoshino?

Diz.

Nakata lamenta ter-lhe dado toda esta chatice - mastigou Nakata .

Não andas longe da verdade...- admitiu Hoshino. - Mas, lambem, ninguém me obrigou a fazer nada...Alinhei contigo porque queria. Foi como se estivesse a oferecer-me voluntariamente para tirar neve do caminho às pazadas. Nesse aspecto, podes dormir descan­sado.

Se não fosse a sua ajuda, Nakata não saberia que passos dar. Nem sequer teria conseguido fazer metade do que fez.

Bem, uma vez que pões as coisas nesse pé, tenho de concordar que valeu a pena o esforço.

Nakata está muito agradecido. Mas sabes que mais?

O quê?

Tambem eu te estou muito agradecido, meu velho Nakata.

Ai sim?

Há coisa de dez dias que esta aventura começou a ganhar fornia prosseguiu Hoshino. - Durante todo esse tempo, não pus os pés no trabalho. No princípio ainda lhes liguei a pedir que me dessem dias do folga, mas agora pode dizer-se que desertei. O mais provável é não me darem o emprego de volta. Ou se calhar até dão, para isso teria de me pôr de joelhos e pedir encarecidamente perdão. Nesta fase do campeonato, tanto se me dá como se me deu. Não é para me gabar nem nada, mas não creio que seja difícil arranjar outro emprego. Afinal, sou bom motorista e sempre trabalhei no duro. Por isso, não estou preocupado, e tu também não deves estar. Aquilo que tento dizer é que não lamento nem um bocadinho o tempo que passei contigo.

Nestes últimos dez dias têm acontecido as coisas mais estranhas do mundo. Sanguessugas que caem do céu aos trambolhões. O Coronel Sanders a surgir vindo do nada, sexo escaldante com uma estudante de filosofia, por sinal uma beldade de cair para o lado, fanar a Pedra de Entrada de um santuário... Uma data de coisas bizarras que chegavam e sobravam para uma vida inteira, e isto tudo em dez dias. Sinto-me como se tivesse andado a viajar de borla numa gigantesca montanha-russa. - Neste ponto, Hoshino parou, pensando qual seria a melhor maneira de continuar. - Mas queres saber uma coisa, avozinho?

Sim?

A coisa mais espantosa, no meio de tudo isto, tens sido tu, Nakata. Tu mudaste a minha vida. Nestes últimos dez dias, não sei - tudo parece diferentes aos meus olhos. Coisas para as quais nunca teria olhado duas vezes, vejo-as de outra maneira. A música, por exemplo. A música que eu costumava achar tão monótona, agora toca-me fundo. Sinto que preciso mesmo de desabafar e contar isto a alguém ou rebento. Sobretudo a uma pessoa que compreenda aquilo por que passei. Nunca me aconteceu nada que se compare. E tudo isto por causa de ti. O que sucede é que comecei a ver o mundo pelos teus olhos. Atenção, tudo não. Por essas e por outras é que fiquei sempre a teu lado, para o que desse e viesse. Foi por isso que nunca consegui separar-me de ti. Foi uma das épocas mais significativas da minha vida. Por isso, não percas o teu latim a agradecer-me. Atenção, não que a coisa não me toque as cordas sensíveis. Mas a verdade é que sou eu que tenho de íe agradecer a ti. O que pretendo dizer, e era aqui que queria chegar, é que me puseste no bom cami­nho, meu caro Nakata. Entendes-me?

Mas Nakata já não o ouvia. Tinha os olhos fechados, a respiração regular, e estava a dormir.

Mas que tipo mais despreocupado que este Nakata me saiu - exclamou Hoshino com um suspiro.

Hoshino pegou no velhote pelos braços, carregou com ele até ao apartamento e pô-lo na cama. Descalçou-lhe os sapatos, mas deixou-o ficar vestido, tapando-o com uma mantinha. Nakata mexeu--se um bocado, depois, como de costume, acomodou-se de costas, virado para o tecto, começou a respirar regularmente e não se moveu mais.

Aposto que vem aí mais uma maratona de sono de três dias, pensou ele com os seus botões.

Mas as coisas não se passaram bem como o jovem pensara. Antes da hora do almoço do dia seguinte, quarta-feira, Nakata tinha morrido. O seu rosto conservava a serenidade de sempre, e parecia estar apenas a dormir - só que não respirava. Hoshino abanou o velhote pelos ombros e chamou-o pelo nome, mas não havia engano possível - estava morto. Hoshino verificou-lhe o pulso - nada - e até colocou um espelho à frente da boca dele, mas não ficou embaciado. Nakata deixara de respirar. Neste mundo, pelo menos, nunca tornaria a acordar.

Sozinho no quarto com o corpo, Hoshino reparou então como, aos poucos, os sons foram desaparecendo. Como os sons do mundo à sua volta foram deixando de ser reais. Sons cheios de significado, reduzidos ao silêncio. Um silêncio que se foi tornando cada vez mais profundo, como lama no fundo do mar. Acumulado primeiro a seus pés, depois chegando à cintura, depois cobrindo-lhe o peito. Sentado no sofá, não tirando os olhos de Nakata, o jovem Hoshino reparou como as camadas de silêncio se foram instalando, cada vez mais altas. Levou muito tempo a aceitar o facto de Nakata ter desaparecido. Ali lentado, apercebeu-se de que o ar se tornara estranhamente pesado e que já não sabia se os seus pensamentos eram realmente seus, se os eus sentimentos eram verdadeiros. Mas houve umas quantas coisas que se tornaram claras.

Podia ser que a morte transportasse Nakata de volta a um mundo onde pudesse ser o Nakata normal. Quando estava vivo, mostrava-se sempre o bom e velho Nakata, o homem não-tão-brilhante-quanto-Isso que-sabia-falar-com-os-gatos. Talvez fosse preciso ter morrido para voltar a ser o «Nakata normal» de que ele costumava falar.

Ei, avozinho - disse Hoshino -, talvez não devesse dizer isto, mas, se tinhas de partir, esta não é uma maneira propriamente má de morrer.

Nakata guardava uma expressão serena no rosto, sem traços de dor, sofrimento ou confusão. Muito ao estilo de Nakata, reconheu Hoshino. Agora, qual tinha sido o significado da vida dele, Hoshino não fazia ideia. Não que a vida de uma pessoa tivesse um significado mais definido do que isso. Para as pessoas, o que importa verdadeiramente, o que tem realmente dignidade, é a maneira como morrem.

Comparado com isso, pensou ele, a maneira como se vive não interessa assim tanto e, contudo, determina como se morre. Eram pensamentos deste género que lhe passavam pela cabeça enquanto para ali estava, a fitar a face do velhote morto.

Porem, ainda havia um problema a resolver. Alguém tinha de fechar a Pedra de Entrada. Nakata fizera tudo o que estava nos seus planos, menos isso. A pedra estava mesmo ali, aos seus pés, e ele sabia que, quando chegasse a hora, teria de ser ele a rolá-la e a fechar a dita entrada. Mas estava avisado, Nakata encarregara-se disso, de que, se as coisas fossem mal feitas, a pedra poderia revelar-se muito perigosa. Pelos vistos, devia haver uma maneira correcta de a revirar - mas também uma maneira errada. E, se uma pessoa usasse de demasiada força, isso poderia dar cabo do mundo inteiro.

Não posso nada contra o facto de teres morrido, avozinho, mas que me deixaste metido em maus lençóis, isso deixaste - disse Hoshino, dirigindo-se ao morto, que naturalmente não lhe deu resposta.

Havia ainda a questão do corpo de Nakata. A coisa óbvia a fazer seria telefonar à Polícia ou para o hospital e nesse caso seriam eles a encarregar-se do assunto. Noventa e nove por cento das pessoas em todo o mundo teriam procedido assim, e Hoshino sentiu-se tentado. Mas a Polícia andava à procura de Nakata, isto em ligação com o tal crime que eles tinham em mãos, e entrar em contacto com as autoridades neste ponto só serviria para colocar Hoshino, que andara na companhia do ancião nos últimos dez dias, numa situação incómoda. Os polícias iriam decerto levá-lo para a esquadra e interrogá-lo durante horas. E explicar tudo o que até então acontecera era a última coisa que lhe apetecia, isto para já não referir o facto de Hoshino não ser propriamente um defensor das forças da lei e da ordem. Se não tivesse nada que ver com a bófia, tanto melhor.

Sim, e como é que lhes explico este apartamento?, interrogou-se ele.

«Um senhor de idade vestido como o Coronel Sanders emprestou--nos a casa. Disse que era perfeita para nós e que podíamos cá ficar o tempo que quiséssemos.» Será que os polícias iam nessa? «Coronel Sanders? Um militar do exército norte-americano?» «Não, você sabe», aquele tipo do Kentucky Fried Chicken. De certeza que viu os cartazes, senhor agente? Sim, esse mesmo, óculos, barbicha branca... Um chulo que andava a angariar serviço nas ruelas de má fama de Takamatsu. Foi ele que me arranjou uma miúda.» Contasse ele semelhante história, e os chuis iriam pensar que ele estava mas era a gozar com eles, e o mais certo era tratarem-lhe da saúde. A bófia, concluiu Hoshino, e diga-se de passagem que não era a primeira vez que tal lhe ocorria, não passava de um punhado de yakuzas pagos pelo Estado.

Soltou um suspiro enorme.

O que tenho a fazer, pensou ele, é sair daqui o mais depressa possível, e ir para longe. Posso sempre ligar, anonimamente, para a

esquadra de uma cabina telefónica. Dou-lhes a morada daqui, digo que morreu alguém. Depois meto-me no comboio para Nagoya e eles nunca terão hipótese de me associar a este caso. O velho morreu de morte natural, por isso a Polícia não deve investigar grande coisa. Quando muito, entregam o corpo aos familiares, realizam um funeral modesto e pronto, fim da história. Quanto a mim, regresso à empresa, desato a fazer vénias ao presidente e a dizer: «Nunca mais acontece, juro. A partir de agora, vou ser um trabalhador exemplar.» Enfim, faço o que for preciso para recuperar o meu antigo posto de trabalho.

Hoshino tratou de começar a fazer as malas, enfiando uma muda de roupa dentro do saco. Pôs os óculos escuros e o boné dos Chunichi Dragons, puxando o rabo-de-cavalo pelo orifício. Cheio de sede, foi buscar uma Pepsi Diet. Encostado ao frigorífico a beber, pousou os olhos na pedra que estava mesmo ao lado do sofá. Dirigiu-se ao quarto, a fim de olhar uma derradeira vez para Nakata. Continuava sem parecer que tinha morrido. Parecia que estava a respirar calmamente, e Hoshino quase esperou que ele se sentasse de repente e dissesse qualquer coisa como: «Senhor Hoshino, não passa tudo de um engano, Nakata não morreu!» Mas não foi isso que aconteceu. Nakata estava morto. Não havia milagres para ninguém. O velhote já tinha passado para o lado de lá.

De lata de Pepsi na mão, deixou-se ficar ali, a abanar a cabeça. Não posso pura e simplesmente ir-me embora e deixar ficar a pedra, pensou ele. Se o fizesse, o senhor Nakata não poderia descansar em paz. Era um sujeito tão consciencioso, sempre apostado em fazer as coisas como deve ser. E teria levado por diante a última tarefa, não se desse o caso de as baterias terem falhado. Hoshino esmagou a lata de alumínio e deitou-a no caixote do lixo. Como ainda continuava com sede, foi à cozinha e abriu mais uma Pepsi.

Antes de morrer, Nakata disse-me que gostaria muito, nem que uma só vez, de voltar a ler, para poder entrar numa biblioteca e ler todos os livros que lhe apetecesse. Infelizmente, morreu antes de poder concretizar esse desejo. Pode ser que agora, depois de morto, tenha passado para um outro mundo onde voltou a ser o «Nakata normal», aquele que sabe ler. Porque, verdade seja dita, enquanto andou por este mundo, nunca conseguiu aprender. De facto, o seu último gesto sobre a Terra foi quase o contrário - queimar os manuscritos. Atirar todas aquelas palavras escritas para o vazio. Irónico, quando se pensa a sério nisso. E, a ser assim, tenho obrigação de cumprir o seu último desejo. Tenho de fechar a entrada. Uma vez que não tive oportunidade de o levar nem ao cinema nem ao aquário - é o mínimo que posso fazer por ele, agora que nos deixou.

Depois de ter bebido a segunda Pepsi, Hoshino aproximou-se do sofá, pôs-se de cócoras e tentou levantar a pedra. Não era tão pesada quanto parecia. Não que fosse propriamente leve, mas também não custava assim tanto a erguer. Pesava mais ou menos a mesma coisa do que quando ele e o Coronel Sanders a tinham roubado do santuário. Que é como quem diz, o peso de uma daquelas pedras que se usam para tapar os frascos de picles de vegetais em salmoura. Vendo bem, apenas uma pedra normal, pensou Hoshino. Quando está a servir para tapar a entrada, é tão pesada que uma pessoa quase se mata para conseguir levantá-la. Mas depois, quando fica assim leve, não passa de uma pedra igual a tantas outras. Quer dizer que tem de haver qualquer coisa primeiro para a pedra ficar assim tão pesada e passar a ser a Pedra de Entrada. É preciso que se abata sobre a cidade uma trovoada, ou uma coisa do género...

Hoshino foi até à janela, abriu o cortinado e ficou na varanda a olhar para o céu, que estava igualzinho ao dia anterior, carregado de nuvens cinzentas e espessas. Não lhe pareceu que fosse chover, e muito menos que se aproximasse alguma tempestade. Apurou o ouvido e cheirou o ar, mas não detectou nada de anormal. «Tudo no lugar», parecia ser esse o lema para mais um dia sobre a Terra.

Ei, avozinho -, disse ele em voz alta para o velhote. - Quer--me parecer que não tenho outro remédio senão ficar aqui contigo, à espera de que aconteça qualquer coisa de invulgar. Que diabo de coisa será essa, isso já não faço ideia. Nem tão-pouco quando poderá ocorrer. Além disso, estamos em Junho e não tarda muito o teu corpo começará a decompor-se e a deitar cheiro. Bem sei que não era isto que gostarias de ouvir, mas é a lei da natureza. Quanto mais tempo deixarmos passar, e quanto mais tarde entrar em contacto com a Polícia, pior será para mim. Quer dizer, pela parte que me toca, vou fazer os possíveis, mas não quis deixar de te pôr ao corrente da

situação, certo?

Como seria de esperar, não teve resposta.

O jovem pôs-se a deambular pelo quarto. Era isso! Podia ser que o Coronel Sanders ligasse! Se havia alguém que soubesse o que fazer com a pedra, era ele. Da parte dele, uma pessoa podia sempre contar com conselhos práticos e desinteressados. Mas de nada lhe valeu ficar ali a olhar fixamente para o telefone, que o aparelho não passava disso mesmo, um objecto supérfluo, mudo e quedo. Ninguém bateu à porta nem chegou correio nenhum. E não aconteceu nada de extraordinário. O tempo manteve-se e a falta de ideias brilhantes também. O tempo continuou a passar, sem história. A hora do almoço chegou e passou, a tarde foi-se convertendo paulatinamente em crepúsculo. Os ponteiros do relógio eléctrico na parede deslizavam suavemente sobre a superfície do tempo como um besouro-de-água sobre a superfície do mar, enquanto Nakata continuava morto na cama. Hoshino parecia ter perdido o apetite. Bebeu, isso sim, uma terceira lata de Pepsi e mastigou meia dúzia de bolachas.

Às seis da tarde sentou-se no sofá, pegou no controlo remoto e ligou o televisor. Assistiu ao telejornal da noite da NHK, mas não ouve nada que lhe despertasse a atenção. Tinha sido um dia normal, fraco em matéria de notícias. Além disso, a voz do pivô começava a bulir com o seu sistema nervoso e, quando o programa acabou, des­ligou o aparelho. Lá fora começou a escurecer, até que por fim caiu a noite e uma calma maior e mais profunda envolveu a casa.

Ei, velho amigo - disse Hoshino a Nakata. - lmportas-te de te levantar, nem que seja por uns minutinhos? Não sei o que raio hei-de la/or. Mais a mais, tenho saudades de te ouvir.

Obviamente que Nakata não lhe deu resposta. Pelos vistos, continuava do lado de lá. Calado, mantinha-se como estava, que é limo quem diz, morto. O silêncio tornou-se mais profundo, tão i li - muiido que, se apurasse o ouvido, podia muito bem acontecer que fiasse para ouvir o som da Terra a rodar no seu eixo.

Hoshino foi até à sala e pôs a tocar o Trio ao Arquiduque. Ao ouvir o tema do primeiro andamento, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Depois rompeu num pranto. Céus, pensou ele, quando teria chorado ultima vez? Não conseguiu lembrar-se.

 

Conforme seria de esperar, a partir da «entrada» espera-me um caminho difícil. Na verdade, de caminho pouco ou nada tem. Quanto mais avançamos, mais profunda e gigantesca a floresta. A encosta, cada vez mais íngreme, torna-se difícil de subir, com o terreno cada vez mais coberto de arbustos e vegetação. O céu quase nem se vê, e está tão escuro debaixo da abóbada formada pelas árvores que mais parece noite. As espessas teias de aranha existem um pouco por toda a parte, e um intenso cheiro a plantas invade o ar. Reina um profundo silêncio. É como se a floresta rejeitasse dessa forma esta invasão do seu território por parte dos seres humanos. Os soldados, de espingarda às costas, parecem nem dar por isso, penetrando por entre as abertas que se vêem no meio da folhagem. São extraordinariamente rápidos. Esgueiram-se por baixo dos ramos mais baixos, trepam às rochas, saltam por cima dos buracos, evitando todos os obstáculos que se lhes deparam.

Vejo-me em palpos de aranha para continuar a trepar sem lhes perder o rasto, visto que nem uma única vez se dignam olhar para trás a fim de verem se continuo a segui-los. É como se me estivessem a pôr à prova, a ver até onde consigo ir. Não sei porquê, mas até parece que estão zangados comigo. Não trocam uma palavra, nem comigo nem entre si. Marcham sempre em frente, sem descanso, e vão-se revezando no comando. Mesmo diante de mim, os canos pretos das espingardas que levam a tiracolo oscilam para trás e para a frente, regulares como metrónomos. Passado um tempo, quase tenho a sensação de estar a ser hipnotizado. Como se estivesse a deslizar no gelo, a minha mente começa a vaguear, rumo a outras paragens. Mas tenho de me concentrar em não perder o andamento imposto, por isso continuo sempre em passo de marcha acelerada, o suor a escorrer por mim a baixo.

Vamos demasiado depressa para ti? - pergunta finalmente o entroncado, voltando-se para trás. Não aparenta qualquer dificuldade em respirar.

Não - digo-lhe eu. - Estou a aguentar-me.

És novo e pareces em boa forma - comenta o mais alto sem nunca se virar.

Conhecemos este caminho como a palma das mãos, por isso vamos tão depressa - explica o entroncado. - Mas não te acanhes. Hasta dizeres, que nós abrandamos. Tens é de compreender que não c Dslumamos ir mais devagar. Estás a seguir-me?

Logo digo caso não consiga acompanhar-vos - replico eu, mais preocupado em não arfar demasiado para eles não perceberem alô que ponto estou sem fôlego. - Ainda falta muito?

Não, já não estamos longe - responde o alto.

Estamos quase a chegar - acrescenta o outro.

Não consigo explicar bem porquê, mas palpita-me que não devo acreditar no que eles dizem. Como eles próprios se encarregaram de informar, aqui o tempo não é um factor decisivo.

E assim continuamos durante mais um bocado sem falar, a um mimo menos puxado. Parece que o teste à minha pessoa chegou ao fim.

Existem serpentes venenosas nesta floresta? - A pergunta perseguia-me desde há muito, confesso.

Com que então serpentes venenosas? - diz o mais alto com "' i di is, sempre de costas para mim. Nunca se vira quando fala, olhando

empre em frente como se estivesse à espera que algo de absolutamente l i iiii o nos fosse saltar ao caminho a todo o momento. - Nunca pensei nisso.

Se calhar - diz o mais entroncado, voltando-se e olhando para mim de frente. - Nunca vi nenhuma, mas deve haver. Não que isso desempenhe um papel muito importante aqui.

O que queremos dizer - acrescenta o alto, como quem não quer a coisa é que a floresta não tem intenção de causar transtorno a ninguém.

Sim - digo eu.

Nenhuma outra coisa, seja ela serpente venenosa, cogumelo venenoso, aranha venenosa ou insecto venenoso, te fará mal - afirma o soldado alto, continuando sem se virar.

Nenhuma outra! - pergunto eu. - Não consigo ficar com uma imagem mental clara do que ele pretende dizer. Devo estar a ficar cansado.

Nem uma outra, nem nenhuma - diz ele. - Nada nem ninguém te quer fazer mal. Vendo bem, estás no coração da floresta. E ninguém, nem sequer tu próprio, te poderá magoar.

Esforço-me por entender o que ele está para ali a dizer. Mas qual quê? Sob o efeito do cansaço, do suor e do efeito hipnótico desta monótona travessia através do bosque, o meu cérebro recusa-se a formar um pensamento coerente.

Quando éramos soldados costumavam obrigar-nos a rasgar o peito do inimigo com uma baioneta - afirmou o entroncado. - Sabes qual é a melhor maneira de matar alguém com uma baioneta?

Não - respondo eu.

Bom , primeiro espetas a barriga e depois fazes girar a baioneta. Isso rasga as entranhas até às costelas. E assim o sujeito tem uma morte horrível, lenta e dolorosa. Mas se te limitares a esfaqueá-lo sem torcer a arma, o inimigo pode levantar-se de um salto e ser ele a arrancar as tuas entranhas. E este o mundo em que vivemos.

Entranhas. Uma metáfora para o labirinto, disse-me uma vez Oshima. Tenho a cabeça povoada de pensamentos, todos eles sobrepostos e misturados. Já não consigo distinguir uma coisa da outra.

Sabes o que leva as pessoas a serem tão cruéis umas para as outras? - pergunta o soldado alto.

Não faço ideia - respondo eu.

Nem eu - diz ele. - Não interessa quem possa ser o inimigo - soldados chineses, russos, americanos. Nunca quis arrancar-lhes as entranhas. Mas é esse o mundo em que vivemos, e foi por isso que desertámos. Não me interpretes mal, não somos cobardes nenhuns. De fado, pode alé dizer se que éramos excelentes soldados. Só não

Por isso não precisas de te preocupar com serpentes veneno­sas nem outras coisas desse género - diz o entroncado. - Mais sosse­gado?

estávamos dispostos a aceitar essa corrida à violência. Imagino que lambem tu não sejas cobarde.

Isso já não sei - respondo eu, com sinceridade. - Mas sem­pre me esforcei por ficar mais forte.

Isso é muito importante - diz o entroncado, tornando a virar-se na minha direcção. - É muito importante uma pessoa esforçar-se

por ficar mais forte.

Vê-se que és bastante rijo - diz o alto. - A maioria dos rapazes da lua idade não chegavam até aqui.

Sim, de facto é impressionante - opina o entroncado, com ar de entendido na matéria.

Tens sede? - pergunta o alto.

Um bocadinho - respondo. - Para dizer a verdade, estou a morrer de sede, uma vez que deitei fora o cantil juntamente com a mochila.

Ele tira o cantil de alumínio que traz à cintura e passa-mo para a mão. Bebo alguns goles da bebida tépida. O líquido sacia a sede de lodos os poros do meu corpo. Limpo a boca do cantil e devolvo-o.

Obrigado - digo. O soldado alto faz um gesto de assentimento com a cabeça, em silêncio.

Sigo-os atentamente ao longo da encosta escorregadia e traiçoeira. Descemos quase até meio, depois viramos e seguimos por um atalho no meio das árvores, até que de repente um mundo novo se abre diante dos nossos olhos. Os dois soldados param, voltam-se e olham para mim. Não dizem nada, mas os seus olhos falam bem alto. É este o tal lugar», estão eles a dizer-me. «O lugar onde vais entrar.»

Deixo-me ficar ali ao lado deles e contemplo o mundo que me apontam.

Vejo uma depressão de terreno nitidamente recortada e encra-id,i no vale. Quantas pessoas poderão estar ali a viver, não faço a mínima ideia, mas não serão assim tantas, uma vez que o espaço não é muito grande. Avistam-se duas ou três estradinhas, algumas casas talhadas aqui e ali, de um lado e de outro. As ruas são pequenas, e as habitações também. Não se vê ninguém. As casas não se distinguem umas das outras, construídas mais para resistirem à fúria dos elementos do que por motivos estéticos. O lugar é demasiado pequeno para receber o nome de cidade. Não existem lojas, até onde me é dado ver. Nem placas indicativas nem tabuletas. Dá a ideia de que um punhado de edifícios, todos do mesmo tamanho e feitio, acabaram por ficar juntos e formar urria pequena comunidade. Nenhuma das casas tem jardim, e nao se ve uma única árvore nas ruas. É como se, com a floresta em redor, as plantas e árvores tivessem deixado de fazer sentido.

Uma ligejra brisa atravessa o bosque, fazendo estremecer as Tomas nas árvores à minha volta, Aquele restolhar misterioso, que rorma uma espécie de padrão, mexe com as profundezas do meu cereoro. Ap0j0 a mão num tronco de árvore e fecho os olhos. Esse padrão pode muito bem ser um sinal de alguma espécie, mas não possuo um código que mo permita decifrar. Desisto, abro os olhos e volto a observar este novo mundo que se abre diante de mim. Ali parado, a meio da encosta, contemplo aquele lugar na companhia dos dois soldados e reconheço o padrão, os sinais ajustam-se e a metáfora transforma-se. Afasto-me de mim próprio e passo a ser uma borboleta a esvoaçar ao longo das fronteiras da criação. Para lá do limiar do mundo existe um espaço onde forma e conteúdo quase se encontram, onde passado e futuro formam um interminável arco continuo. ^ pairando lá por cima, existem sinais que nunca ninguém decifrou, acordes que nunca chegaram aos ouvidos de ninguém.

Tento acalmar a minha respiração cortante e rápida. O meu coração ainda não se recompôs, mas pelo menos consegui afugentar o medo.

Sem uma palavra os soldados retomam a marcha, e eu sigo-os em silêncio. À medida que descemos a encosta, a cidadezinha fica mais próxima. Vejo um pequeno regato que corre ao longo da estrada, com um muro de pedra a fazer as vezes de represa. Ouve-se um murmúrio agradável. A água é bela e límpida. Tudo aqui é simples, mas acolhedor. Aqui e ali, veem-se postes estreitos ligados através de fios, o que signjfjca que devem ter electricidade. Electricidade? Donde será que vem?

O local está rodeado de uma série de cumes montanhosos cobertos de verde. O céu mostra uma massa de nuvens cinzentas. Os soldados e eu percorrermos a estradinha, mas não encontramos ninguém pelo caminho. Está tudo muito sossegado, não se ouve um som. Talvez esteja toda a gente fechada dentro de casa, sem respirar, à espera de que viremos as costas e nos vamos embora.

Os meus companheiros levam-me até uma das moradias. Que estranho, dir-se-ia a cabana de Oshima, em tamanho e traçado.

Como se uma tivesse servido de modelo à outra. Tem um alpendre à entrada onde se vê uma cadeira. A casa tem um único piso e um fogão de sala com saída de fumo pelo telhado de duas águas. No quarto existe uma única cama, impecavelmente feita. As únicas diferenças são que o quarto e a sala de estar são separados, mas tem uma casa de banho interior e há electricidade. Até existe um frigorífico na cozinha, um modelo não muito grande e antigo de uma marca conhecida. Do tecto está pendurado um candeeiro. E há um televisor. Televisão?

Por enquanto, enquanto não estiveres instalado, ficas assim diz o soldado entroncado. - Não deverá ser por muito tempo. Porenquanto.

Como já afirmei, para estas bandas o tempo não é desempe­nha um papel muito importante - diz o soldado alto.

O outro faz um sinal de assentimento.

Não desempenha papel nenhum.

Donde vem a electricidade? Eles trocam um olhar.

Existe uma pequena estação eólica no interior da floresta -explica o alto. - Vento é coisa que ali não falta. A electricidade faz muita falta, certo?

Sem electricidade não se pode usar frigorífico e sem o frigorífico a comida estraga-se passado pouco tempo.

Mas consegue-se passar sem ele - diz o alto. - Isto apesar de ser uma coisa bonita para se ter em casa.

Quando tiveres fome - acrescenta o encorpado -, podes ir ao frigorífico e servires-te. Receio bem que não tenha nada do outro mundo.

Não temos carne nem peixe, café ou bebidas espirituosas. – diz o mais alto. - A princípio custa um bocado, mas depois uma pessoa habitua-se, vais ver.

Mas há ovos, queijo e leite - acrescenta o mais encorpado, temos de comer proteínas, certo?

Como não arranjam esses mantimentos aqui, têm de ir buscá-los a outro lado - explica o mais alto -, e dar também alguma coisa em troca.

A outro lado?

O mais alio acena com a cabeça.

Isso mesmo. Não estamos propriamente desligados do mundo, aqui. O outro lado existe. Pode demorar o seu tempo, mas vais acabar por entender.

À noite há-de aparecer alguém para te preparar o jantar - diz o soldado encorpado. - Se entretanto te aborreceres, podes sempre ligar a televisão.

O que se pode ver?

Bom, não queres com certeza que te diga quais são os pro­gramas - replica o alto, um tanto ou quanto agastado. Ao mesmo tempo, inclina a cabeça e lança um olhar ao companheiro.

O amigo encorpado inclina, também ele, a cabeça, com um ar duvidoso estampado na cara.

Para ser franco, percebo pouco de televisão. Se queres que te diga, foi coisa que nunca vi.

Eles põem televisão aqui para os recém-chegados - diz o alto.

Mas alguma coisa se há-de conseguir ver - afirma o encorpado.

Agora vê se descansas um bocado - aconselha o alto. - Está na hora de regressarmos ao nosso posto.

Obrigado por me terem trazido até aqui.

Sem espinhas - diz o encorpado. - Tens mais pedalada do que os outros que aqui trouxemos antes de ti. Há muito boa gente que não consegue acompanhar o ritmo. Até tivemos de trazer alguns às costas. Por isso tu, que tens boas pernas, até foste dos mais fáceis.

Se bem me lembro - diz o soldado alto -, disseste que havia alguém que querias ver aqui.

Pois foi.

Tenho a certeza de que não tardarás a encontrar essa pessoa - diz ele, acenando repetidas vezes com a cabeça para dar mais ênfase à afirmação. - É pequeno, este nosso mundo.

Espero que te adaptes rapidamente - acrescenta o soldado alto.

Estou muito agradecido a ambos.

Põem-se ambos em sentido e fazem continência, antes de meterem as espingardas ao ombro e partirem, caminhando a bom ritmo pela estrada fora, a caminho do seu posto. Devem guardar a entrada noite e dia.

Vou até à cozinha e dou uma espreitadela ao frigorífico. Tomate, um pedaço de queijo, ovos, cenouras e até nabos, sem esquecer um grande jarro de loiça cheio de leite. E manteiga, também. Numa prateleira está um pão caseiro. Parto um bocado e ponho-o à boca. Um bocadinho duro, mas come-se.

A cozinha está equipada com um lava-loiça e uma torneira. Abro a torneira e a água sai, límpida e fria. Uma vez que existe electricidade, devem ir buscar água a um poço. Encho um copo e bebo.

Vou até à janela e olho lá para fora. O céu continua coberto de nuvens cinzentas, apesar de não ter aspecto de ir começar a chover. Deixo-me ficar ali durante muito tempo, mas continuo sem ver ninguém. Como se fosse uma cidade-fantasma. Ou isso, ou por qualquer razão anda toda a gente a evitar-me.

Afasto-me da janela e sento-me numa cadeira de madeira, de (tostas direitas e assento duro. Ao todo, existem três cadeiras, e uma mesa de jantar com aspecto de ter sido envernizada uma quantidade de vezes. Nas paredes estucadas não há nada pendurado, nem qua­dros, nem fotografias, nem sequer um calendário. Apenas as paredes bi,nicas. No tecto vê-se uma única lâmpada protegida por um sim­ples quebra-luz de vidro a que o calor roubou a cor.

O quarto encontra-se muito limpo. Passo o dedo pelo tampo da mesa e pelo caixilho da janela e não descubro vestígios de pó. Tambem as vidraças da janela brilham. As panelas, pratos e demais utensílios de cozinha não são novos, mas estão bem conservados e muito bem lavados. Ao lado da bancada da cozinha vêem-se dois antigos bicos de fogão. Ligo um deles e a resistência começa logo a ficar vermelha.

Calculo que o velho aparelho de televisão, daqueles com uma caixa de madeira sólida à volta, tenha para aí quinze ou vinte anos. Controlo remoto é coisa que não existe. Aparenta ter ido parar ao lixo antes de ser reciclado. O que, de resto, se pode dizer dos outros aparelhos eléctricos, todos eles com aspecto de terem sido deitados fora e depois recuperados - não é que estejam sujos nem nada, ou que não funcionem, mas vê-se que são modelos que já têm uns anos, nitidamente fora de moda.

Quando ligo o televisor está a dar um filme antigo, Música no Coração. O meu professor da primária levou a turma inteira a vê-lo num cinema com ecrã gigante. Na altura, não tinha à minha volta muitos adultos que me levassem ao cinema, por isso é um dos poucos filmes que vi em miúdo. Apanho o filme a meio, na parte em que o capitão Von Trapp, que aparece no filme no papel de um pai rígido e com feitio difícil, foi a Viena em viagem de negócios, e Maria, que é a preceptora dos filhos, leva as crianças a dar um passeio pelas montanhas. Sentam-se todos na relva, ela pega na guitarra e cantam em coro duas ou três cantigas inocentes. É uma cena que toda a gente conhece. Planto-me em frente da televisão, colado ao filme. Tal como aconteceu no tempo em que o vi pela primeira vez, interrogo-me como teria sido a minha vida se pudesse ter contado com uma pessoa como Maria ao meu lado. Escusado será dizer que não soube o que era ter alguém assim em toda a minha vida.

De volta à realidade. Porque diabo estou eu a ver Música no Coração, aqui e agora? Porquê aquele filme? Se calhar acontece que as pessoas daqui têm uma espécie de antena parabólica e conseguem apanhar o sinal de uma estação de televisão qualquer. Ou tratar-se-á de uma gravação que está a passar algures e foi captada por este aparelho? Deve ser uma gravação, visto que os outros canais estão todos a dar «chuva». Uma chuva castigadora, é exactamente essa a imagem que me ocorre ao ser espectador daquele ecrã de um branco cru e tremeluzente com um ruído de estática inorgânica.

Desligo o aparelho na parte em que estão eles a cantar o tema Edelweiss. Na divisão volta a instalar-se o silêncio. Tenho sede. Vou à cozinha e bebo leite, que tiro do jarro. O leite é espesso e fresco, e sabe mil vezes melhor do que essa beberagem que vem nas embalagens de cartão que se compram nas lojas de conveniência. À medida que emborco copo atrás de copo, lembro-me de repente daquela cena no filme Os Quatrocentos Golpes, de François Truffaut, em que a personagem de Antoine foge de casa e, uma manhã cedo, fica com fome e rouba uma garrafa de leite depositada no passeio à frente da casa de alguém e depois desata a beber o leite à medida que prossegue a sua fuga. É urna garrafa enorme, por isso demora o seu tempo até ter bebido tudo. Um momento de cinema pungente e perturbador - custa a crer que o simples gesto de beber leite possa resultar numa cena assim tão triste. Esse é outro dos poucos filmes da minha infância. Andava no primeiro ano do secundário, e o título captou a minha atenção, por isso meti-me sozinho no comboio até Ikebukuro, vi o filme, depois apanhei o comboio de volta. Mal saí do cinema, lembro-me de ter ido a correr comprar leite e de o ter bebido logo ali. Foi mais forte do que eu.

 


Depois de ter ingerido aquela quantidade toda de leite, dá-me sono. Apodera-se de mim uma sonolência imensa, avassaladora, quase enjoativa. Os meus pensamentos tornam-se mais espaçados até que param de vez, como um comboio ao imobilizar-se na estação, e deixo de conseguir pensar como deve ser. É como se sentisse o centro do meu corpo a ficar entorpecido. Vou até ao quarto de dormir, liberto-me atabalhoadamente das calças e dos sapatos, meto-me dentro da lama e, enterrando a cara na almofada, fecho os olhos. A almofada cheira a sol, um odor que desperta em mim sentimentos que me fazem lentir bem. Inspiro, expiro, inspiro, expiro, e passado um minuto estou a dormir.

Quando acordo está escuro. Abro os olhos e tento lembrar-me onde me encontro. Dois soldados conduziram-me através da floresta ale uma cidadezinha ao pé de um regato, não foi? Aos poucos recupero a memória. A cena deixa de estar desfocada e oiço uma melodia fflmiliar. Edelweiss. Da cozinha chega-me ao longe o barulho familiar dos lachos e panelas a bater. A claridade penetra no quatro por uma Iresla na porta, formando no chão uma linha amarela no soalho. Uma luz amarelada e mortiça, como já não se usa.

Tento sair da cama, mas o meu corpo, todo entorpecido, não me obedece. Respiro fundo e olho para o tecto. Oiço o som dos pratos, de alguém que se afadiga de um lado para o outro na cozi- Plhfl A preparar-me qualquer coisa para comer, imagino eu. Finalmente reúno forças para me levantar. Mas ainda demora algum tempo a enfiar as calças, as meias e a calçar os sapatos. Agarro a maçaneta de mansinho e abro a porta.

Na cozinha está uma rapariga. De costas viradas para mim, debruça-se sobre uma panela e prova a comida com uma colher, mas ao ouvir a porta a abrir-se dá meia volta e fica de frente para mim.

É ela. A mesma rapariguinha que costumava aparecer no meu quarto da biblioteca e quedar-se a contemplar o quadro na parede. A Saeki-san, quando tinha quinze anos. Tem a mesma roupa, um vestido azul-claro de manga comprida. A única coisa diferente é que agora tem o cabelo apanhado atrás. Lança-me um sorrisinho afável. Uma profunda emoção apodera-se de mim, como se o mundo inteiro tivesse ficado de pernas para o ar, como se tudo o que até então existia de palpável se tivesse desmoronado para agora voltar a recuperar a forma primi­tiva. Mas esta rapariga não é uma ilusão e muito menos um fantasma. É de carne e osso, alguém ao alcance da mão, ali de pé numa cozi­nha a sério à luz do crepúsculo, a preparar uma refeição para mim. Vejo os seus pequenos seios retesados contra o tecido, o seu pescoço de porcelana branca acabada de sair do forno. Real, numa palavra.

Com que então já acordaste - diz ela.

A voz não me sai. Ainda estou a tentar absorver a realidade.

Pareces ter dormido bem - diz. Em seguida vira-se para tornar a provar o cozinhado. - Caso não acordasses, preparava-me para deixar ficar a comida em cima da mesa e ir-me embora.

Não fazia tenções de me deixar dormir durante tanto tempo - consigo finalmente dizer.

Vieste de longe e percorreste um longo caminho através da floresta - diz ela. - Deves ter fome.

Não sei ao certo. Se calhar. - Tenho vontade de estender a mão para ver se consigo tocar mesmo nela. Mas isso não acontece. Limito-me a ficar ali de pé, a bebê-la com os olhos. A ouvir os sons que faz, a seguir o movimento do seu corpo às voltas na cozinha.

Serve um estufado ainda quente da panela para um prato branco sem decoração e pousa-o em cima da mesa. Há ainda uma taça com salada de tomate e alface e um pão caseiro. O estufado tem batatas e cenouras. O cheiro da comida evoca em mim ternas recordações de infância. Aspiro o aroma e só então me dou conta da fome que tenho. Preciso de comer qualquer coisa. Pego num garfo e na colher, ambos gastos pelo uso, e começo. A rapariga senta-se numa cadeira, de lado, e observa-me com uma expressão séria estampada no rosto, como se estar ali a ver-me comer fizesse parte integrante das suas obrigações. Volta e meia afasta o cabelo para trás.

Disseram-me que tinhas quinze anos - diz ela.

Exactamente - respondo eu, pondo manteiga numa fatia de pão. - Fiz há pouco os quinze.

Também tenho quinze anos - afirma ela.

Aceno com a cabeça. Bem sei, apetece-me dizer, mas é dema­siado cedo para isso. Como mais uma garfada.

Estou encarregada das refeições neste tempos mais próximos - explica ela. - E também de tudo o que for limpezas e lavagens. Tens roupa lavada na gaveta da cómoda, no quarto, tira a que quiseres. Depois, podes pôr a que sujares no cesto que eu trato disso.

Quem te destinou essas tarefas?

Ela olha fixamente para mim, mas não responde. É como se a minha pergunta tivesse virado para onde não devia e sido sugada, indo parar a um espaço perdido.

Qual é o teu nome? - Experimento uma táctica diferente. Ela abana a cabeça.

Não tenho nome. Aqui não temos nomes.

Mas, se não tens nome, como faço para chamar por ti?

Não precisas de chamar por mim - diz ela. - Se precisares de mim, eu apareço.

Nesse caso, se calhar também eu não preciso de nome. Ela faz um gesto de assentimento.

Tu és tu e mais ninguém. Tu és tu, não é verdade?

Acho que sim - digo eu, apesar de não ter assim tanto a l erteza. Serei realmente eu?

Durante todo aquele tempo, ela fita-me intensamente.

Lembras-te, na biblioteca? - lanço-lhe, de rompante.

A biblioteca? - Abana a cabeça. - Não...Sei que existe uma biblioteca que fica num sítio longe, mas não aqui.

Uma biblioteca?

Sim, mas não tem livros.

Se não tem livros, então o que lá há? Ela inclina a cabeça, mas não responde. Uma vez mais, a minha

pergunta foi por um sítio errado e desapareceu.

Alguma vez lá foste?

Há muito tempo - diz ela.

Mas não para ler livros? I az que não com a cabeça.

Ali não há livros, torno em silêncio durante um bocado. O estufado, a salada, o pao. Ela tambem não diz nada, limita-se a observar-me com umaiiessão séria.

Que tal estava? - pergunta, quando acabo de comer.

Bom. Muito bom.

Mesmo sem peixe nem carne a acompanhar? Aponto para o prato vazio.

Não deixei nada, pois não?

Fui eu que fiz.

Estava mesmo muito bom -, repito, e estou a ser sincero. Estar com ela é como sentir uma dor fininha, uma faca gelada espetada no meu peito, mas o mais engraçado de tudo é que me sinto grato por isso. Sinto que aquela dor fria e a minha existência são uma e a mesma coisa. A dor é a âncora que me prende aqui. A rapariga levanta-se para ir pôr a água a ferver e fazer chá. Enquanto me deixo ficar sentado à mesa a beber, ela leva os pratos para a cozinha e começa a lavar a loiça. Durante o tempo todo fico a observá-la, de costas para mim. Quero dizer alguma coisa, mas ao pé dela as pala­vras não funcionam como deve ser. Se calhar, o significado que as une umas às outras deixou de fazer sentido. Será que desapareceu? Olho para as minhas mãos e penso no corniso do lado de fora da janela, a cintilar à luz da Lua. E aí que jaz a faca que tenho cravada no coração.

Posso voltar a ver-te? - pergunto.

Claro que sim - responde ela. - Tal como te disse, sempre que precisares de mim, cá estarei.

Não vais desaparecer de repente?

Ela não diz nada, limita-se a fitar-me com um olhar estranho, como quem diz para-onde-é-que-querias-que-eu-fosse?

Já te encontrei antes - atrevo-me a dizer. - Noutro sítio, numa outra biblioteca.

Se tu o dizes - replica ela, tocando com a mão no cabelo para ver se ainda estava no sítio. Diz aquilo numa voz desprovida de sentimento, como se estivesse a tentar mostrar-me que o assunto não lhe interessa por aí além.

Acredito que vim ter aqui para te ver uma vez mais. A ti e a uma outra mulher.

Ela levanta a cabeça e põe um ar sério.

Atravessaste os bosques profundos para aqui chegar.

Exactamente. Tinha de te encontrar, e à outra mulher também.

E agora encontraste-me.

Digo que sim com a cabeça.

Repito - diz ela. - Se precisares de mim, estou aqui.

Depois de ter lavado a loiça, volta a guardar as panelas e os pratos na prateleira. A seguir põe um saco de lona a tiracolo.

Volto amanhã de manhã - informa-me. - Espero que te habitues a isto aqui.

Fico à porta e vejo-a desaparecer por entre as trevas da noite. Torno a ficar sozinho na pequena cabana, no meio de um círculo fechado. Aqui, o tempo não é um factor importante. Aqui, ninguém tem nome. Ela aparecerá quando eu precisar dela. Aqui, tem quinze anos. Se calhar, para sempre quinze anos. E eu, continuarei a ter quinze anos aqui? Neste lugar, a idade também não desempenha um papel importante?

Continuo no limiar da porta muito tempo depois de ela ter desaparecido, percorrendo com o olhar a paisagem que me rodeia. Não há estrelas nem Lua no céu. Vêem-se algumas casas iluminadas, através das janelas. A mesma luz antiga, amarelada, que ilumina este quarto. Mas não consigo distinguir nenhuma pessoa. Apenas as luzes. As sombras negras cravam as suas garras no mundo lá fora. Ao longe, mais escuro do que a própria escuridão, ergue-se a cumeeira, e a floresta cerca esta cidade como uma muralha.

 

Depois da morte de Nakata, Hoshino nunca mais conseguiu pôr um pé fora de casa. Com a Pedra de Entrada ali, podia acontecer tudo e mais alguma coisa, e quando assim fosse e a tal coisa ocor­resse, ele queria estar ali por perto a fim de reagir a tempo. Tomar conta da pedra tinha sido incumbência de Nakata, e agora passara a ser sua. Ligou o ar condicionado no quarto de Nakata para a temperatura mais baixa possível e pô-lo a funcionar no máximo, depois de se certificar de que as janelas estavam bem fechadas. O ar na divisão possuía aquela estranha consistência que só se verifica num quarto com um defunto lá dentro.

Espero que não esteja demasiado frio para ti, meu velho -lançou ele na direcção de Nakata que, como seria de esperar, não tinha opinião sobre a matéria.

Hoshino repimpou-se no sofá da sala e ficou sentado a ver passar as horas. Não lhe apetecia ouvir música nem ler. Chegou a noitinha, no quarto foi ficando gradualmente mais escuro, mas ele nem se deu ao trabalho de carregar no interruptor para acender a luz. Sentia-se completamente esgotado. Uma vez aninhado no sofá, não havia nada que o fizesse arredar pé dali. E assim o tempo foi passando. Tão devagarinho, tão devagarinho que às tantas Hoshino quase juraria

que voltara para trás.

Quando o seu avô morrera, tinha sido duro para ele, mas nada que se comparasse. O avô estivera muito tempo doente, e todos sabiam que era apenas uma questão de tempo. Por isso, quando chegara a hora, estava toda a gente preparada para isso. Sem essa fase de preparação teria sido tudo diferente. Mas Hoshino concluiu que, no caso presente, havia mais qualquer coisa. Decididamente, a morte de Nakata tocara-o mais profundamente e obrigara-o a reflectir mais.

De repente ficou com fome, foi até à cozinha, descongelou arroz frito no microndas e comeu metade, com uma cerveja a acompa­nhar. Em seguida foi espreitar Nakata, na esperança de que talvez ele tivesse voltado à vida. Mas não, o velhote continuava morto. O quarto parecia uma câmara frigorífica. Estava tanto frio que dava para fazer gelo lá dentro.

Passar a noite na companhia de um defunto era a primeira vez que tal lhe acontecia, e não se podia dizer que Hoshino se sentisse muito à vontade com a situação. Não que tivesse medo nem nada do género, disse ele para consigo mesmo. Não era isso que lhe causava pele-de-galinha. O que acontecia era que não fazia ideia de como se comportar com um morto ali mesmo ao lado. O íluxo do tempo é tão diferente quando se trata de vivos e quando se trata de mortos. Já com os sons, a mesma coisa. Por isso não admirava que não se conseguisse acalmar, continuou ele a pensar. Mas o que havia de fazer? O Nakata já pertence ao mundo dos mortos e eu cá continuo, vivinho da silva. Entre nós só pode existir um abismo. Levantando-se do sofá, Hoshino foi sentar-se ao lado da pedra. Começou a afagá-la com a palma das mãos, como se estivesse a fazer festas a um gato.

Que diabo devo fazer? - perguntou ele à pedra. - Quero en-Iregar o senhor Nakata a quem tome bem conta dele, mas, como tenho de lomar conta de ti, não posso. Não quererás dar-me umas luzes?

Mas não teve resposta. Pelos vistos, a pedra continuava a ser apenas uma pedra, e Hoshino não teve outro remédio senão acomodar-16 com a situação. Podia estar ali a fazer perguntas até ficar roxo, que o caso não mudava de figura, e a resposta continuava por chegar. Mesmo assim, sentou-se junto à pedra, sempre a esfregá-la. Lançou-lhe duas ou três perguntinhas, fez um apelo à lógica e esforçou-se ao máximo por conquistar a simpatia da dita. Ainda que sabendo que de pouco ou nada lhe valia, a verdade é que também não via outra saida. Vendo bem, se Nakata ficara agarrado à pedra o tempo todo, senpre a falar com ela, porque carga de água não havia ele de fazer o mesmo?

Se calhar, ponderou ele, falar com uma pedra, tentar que ela partilhe da nossa dor, tem o seu quê de patético. Quer dizer, não é daí que vem a expressão? Insensível como uma pedra?

Considerou a hipótese de ir ver o noticiário na televisão e chegou a pôr-se de pé, mas depois pensou melhor e voltou a sentar--se ao lado da pedra. Palpitava-lhe que, por ora, o melhor era per­manecer em silêncio. Era preciso escutar atentamente para ver o que dali saía. Agora que penso nisso, a paciência nunca foi o meu forte e, fogo, se paguei por isso! Passei a vida a atirar-me de cabeça e a lixar sempre tudo. Nervoso como um gato sobre brasas, já lá dizia o meu avô. Mas agora, não, agora tenho de ficar sentado e esperar calmamente. Aguenta!

Tirando o ruído do ar condicionado, ligado no máximo ali mesmo ao lado, não se ouvia mais nada. O relógio marcou as nove, depois as dez, e nada. O tempo continuou a passar, a noite instalou--se, e foi tudo. Hoshino arrastou a coberta para a sala de estar, deitou--se no sofá e tapou-se. Mesmo que estivesse a dormir, sempre era melhor ficar perto da pedra para o caso de acontecer alguma coisa. Apagou a luz e fechou os olhos.

Ei, pedra! Agora vou dormir um bocado - avisou ele. - Ama­nhã logo falamos. Tem sigo um longo dia e bem que preciso de pregar olho.

Céus, pensou ele, mas que falta de jeito com as palavras. Longo não era propriamente a melhor maneira de descrever aquele dia.

Ei, avozinho! - bradou ele, alto e bom som. - Nakata, meu velho, estás a ouvir-me?

A resposta não se fez ouvir. Hoshino suspirou, fechou os olhos, ajeitou a almofada e deixou-se dormir. Dormiu a noite toda sem nunca acordar e não teve um único sonho. No quarto ao lado, Nakafa dormia o seu sono eterno, sem sonhos, um sono pesado como uma pedra.

Quando Hoshino acordou, passava já das sete da manhã, foi direitinho espreitar Nakata. Tal como antes, o aparelho de ar condicionado roncava desalmadamente, despejando ar frio. E, no meio daquele quarto gélido, Nakata continuava morto. Em comparação com a noite anterior, a morte parecia ter-lhe conferido uma aura mais carregada. A pele começava a mostrar-se pálida, quase acinzentada, e até a maneira como os olhos estavam fechados causava impressão. Não, decididamente ele não ia sentar-se de um momento para o outro e dizer: «Desculpe, senhor Hoshino. Nakata adormeceu, mil e uma desculpas. Mas não se preocupe, a partir de agora Nakata toma conta do assunto», e depois encarregar-se-ia da pedra. Isso não ia acontecer nunca. Nakata partira de vez, pensou Hoshino, e não havia nada a fazer.

Assim que começou a tremer de frio, abandonou o quarto e fechou a porta atrás de si. Depois dirigiu-se para a cozinha, pôs a máquina de café a trabalhar e bebeu duas chávenas, fez torradas e comeu-as com manteiga e doce. A seguir ao pequeno-almoço, sentou--se na cozinha, fumou dois ou três cigarros e deixou-se ficar ali a olhar pela janela. As nuvens tinham dispersado durante a noite e via--se uma bonita manhã de Verão, de sol brilhante e céu azul. A pedra continuava ao pé do sofá, no lugar do costume. Ficara toda a noite sem se mexer, ali plantada, sem saber o que era dormir e acordar. Ele tentou levantá-la e conseguiu-o sem qualquer esforço.

Olha, olha - disse Hoshino com alegria na voz -, sou eu. Teu velho compincha Hoshino, estás lembrada? Parece que hoje somos só nós dois.

Como seria de esperar, a pedra continuou calada.

Ah, tudo bem. Se não te lembras, isso não tem importância, lemos montes de tempo para nos ficarmos a conhecer melhor, não c preciso apressar as coisas.

Sentou-se ao lado da pedra e começou a afagá-la, ao mesmo tempo que se esforçava por encontrar assuntos que pudesse abordar com uma pedra. Era a primeira vez que se via à conversa com uma e eslava com alguma dificuldade em achar tópicos apropriados. O melhor é evitar temas complicados a esta hora da manhã, pensou ele. O dia tinha muitas horas, e podia muito bem ir dizendo o que lhe passava pela cabeça.

Depois de reflectir um bocadinho, decidiu-se por um dos seus lemas preferidos: miúdas. Melhor dizendo, passou em revista todas as raparigas com quem tinha ido para a cama. Começando por aquelas que conhecia pelo nome, não se podia dizer que fossem assim tantas quanlo isso. Contou pelos dedos. Seis, ao todo. Agora, se juntar aquelas cujos nomes não sei, aí já o caso muda de figura, mas o melhor era deixar essas para segundas núpcias.

Se calhar estás-te marimbando para as garinas com quem dormi começou ele. - Afinal de contas, ainda é cedo para falar de proezas sexuais, por isso não me admira nada se não estiveres para aí virada. Mas a verdade é que não me ocorre mais nada. Quem sabe, pode ser que te faça bem abordar um assunto assim terra a terra, para variar. Sempre ficas a saber umas coisas.

Hoshino passou então a contar alguns episódios recheados de saborosos pormenores. O primeiro remontava aos seus dias de estudante, quando ainda andava às voltas com as motos e passava a vida metido em sarilhos. A rapariga tinha mais três anos do que ele e trabalhava num barzinho na cidade costeira de Gifu. Podia dizer-se que tinham estado juntos durante algum tempo. A rapariga, pela parte que lhe tocava, levava a relação a sério e dizia que não podia viver sem ele. Telefonou aos meus pais, recordou ele, mas eles não se mostraram agradados por aí além, e como a coisa começava a ficar demasiado séria para meu gosto, assim que acabei a secundária alistei-me nas Forças de Autodefesa. Pouco depois fui destacado para uma base na Prefeitura de Yamanashi e o relacionamento esfriou. Nunca mais lhe voltei a pôr a vista em cima.

Chama-me preguiçoso, se quiseres - interpelou ele a pedra. - Quando as coisas dão para o torto, a minha primeira reacção é desaparecer de cena. Não é para me gabar nem nada, mas sou muito bom a baldar-me. Nunca levei nada até ao fim. O que, como imaginas, já me causou uma quantidade de problemas...

A segunda rapariga conhecera-a perto da base de Yamanashi. Um dia, estava ele de folga e ajudara-a a mudar o pneu do seu Suzuki Alto. Era um ano mais velha e andava a fazer o curso de enfermagem.

Era uma gaja porreira - confessou Hoshino à pedra. - Mamas grandes e bom coração. E, minha, se ela gostava de passar a vida naquilo! Na altura eu só tinha dezanove anos, e quando nos encon­trávamos, passávamos o dia entre os lençóis. O único defeito era ela ser incrivelmente ciumenta. Se não passasse com ela o dia de licença, fazia-me um interrogatório completo para ficar a saber onde tinha eu ido, o que fizera, com quem estivera. Mesmo que lhe contasse a verdade, não ficava satisfeita. Foi por isso que acabámos. Ainda chegámos a andar juntos coisa de um ano... Não sei como se passam as coisas contigo, mas não suporto ter alguém em cima de mim. Fico sem poder respirar e entro em depressão. Daí a baldar-me é um passo. O bom das Forças de Autodefesa é que um gajo pode encontrar refúgio na base, se as coisas aquecerem. E ficar por lá até a situação esfriar.

Se alguma vez precisares de dar com os pés a uma miúda, lembra--te disto, o exército é o teu passaporte. Nem tudo são rosas, claro. O reverso da medalha é teres de andar a escavar buracos que parecem verdadeiras tocas de raposa, a empilhar sacos de areia e coisas do género.

Quanto mais falava, mais Hoshino se dava conta da inutilidade que fora a sua vida até à data. Quatro das seis raparigas com quem andara eram simpáticas. (Vendo bem, as outras duas tinham nítidos problemas de personalidade, concluiu ele.) De uma forma geral, tinham-no tratado decentemente. Nenhuma delas era uma beldade de cair para o lado, mas cada uma era gira à sua maneira, e não linham problemas em ir para a cama com ele... Não costumavam queixar-se caso ele passasse por cima dos preliminares e fosse direito ao assunto. Todas elas lhe preparavam as refeições nos seus dias de licença, compravam presentes quando ele fazia anos, lhe emprestavam dinheiro quando andava curto de massas, antes de receber (não que ele se lembrasse de alguma vez as ter reembolsado) e nunca pediam Piada em troca. Tudo isto somado faz com que eu seja um sacana de um ingrato, concluiu ele. Tomei sempre tudo por garantido.

Em abono dele, o facto de nunca ter enganado nenhuma delas. Agora, bastava que desatassem a queixar-se um bocadinho, a fazer cenas de ciúmes, a aparecer com argumentos razoáveis e a ganhar as discussões, a falar na necessidade de poupar dinheiro para o futuro, E passarem das marcas ou a expressarem a mínima preocupação com o futuro, e ele fazia as malas e punha-se logo a cavar. Sempre lhe parecera que o mais importante no tocante às miúdas era saber evitar lltuações comprometedoras, por isso ao mínimo sinal de perigo, abandonava o barco. Arranjava uma miúda nova e começava de novo. Linha a certeza de que era isso que a maior parte das pessoas fazia.

Se eu fosse rapariga - disse ele à pedra -, e andasse metida com um safado egoísta como eu, partia a loiça toda. Agora, olhando para trás, palavra que não sei como é que elas me aturavam. Fico nspanlado, a sério. - Acendeu um Marlboro e, exalando lentamente fumo, esfregou a pedra com uma mão.-Tenho ou não tenho razão?

Não tenho um aspecto por ali além, não sou nada de especial na cama Não tenho pé-de-meia. Não tenho uma personalidade forte e não se pode dizer que seja brilhante. São negativas a mais, não te parece? Filho de um lavrador remediado, um ex-soldado sem ter onde nunca ser muito popular, nunca me faltaram namoradas. Arranjei sempre alguma que me deixasse dormir com ela, que me preparava petiscos, que me emprestava dinheiro. Mas sabes uma coisa? As coisas boas não duram para sempre. A cada dia que passa, cada vez me dou mais conta disso. É como se alguém estivesse a dizer: «Ei, Hoshino, algum dia vais ter de pagar a factura, e com juros...»

Passou a manhã naquilo, a contar as suas aventuras amorosas e a afagar a pedra. Já se habituara de tal forma àquele gesto que nem lhe passava pela cabeça parar de o fazer. Por volta da hora do almoço soou a campainha de uma escola e ele foi para a cozinha preparar uma tigela de udon, a que juntou cebolinhas novas e um ovo semicozido. Depois da refeição voltou a escutar o Trio ao Arquidu­que.

Ouve lá, ó pedra - lançou ele quando o primeiro movimento chegou ao fim. - É uma bela música, ou quê? Não te faz sentir vontade de abrir o coração?

A pedra permaneceu em silêncio.

Claro que Hoshino não fazia ideia se a pedra estava ou não a ouvir alguma coisa, quer a música quer a conversa dele, mas nem por isso deixou de continuar.

Como estava a dizer esta manhã, já fiz muita merda na minha vida. Para começar, era egoísta até dizer chega. E agora é demasiado tarde para apagar as culpas do cartório. Mas quando oiço esta música é como se Beethoven estivesse aqui mesmo ao meu lado, a falar comigo, a dizer-me ao ouvido qualquer coisa como. «Deixa estar, Hoshino, não te preocupes. É a vida. As coisas são como são. Também eu fiz muita porcaria. Nada a fazer. É o destino. Tens de viver com isso. Abre-me bem esses ouvidos e aguenta-te à bronca.» Claro que Beethoven, sendo quem era, não se punha a dizer asneiras destas a torto e a direito. Mas parece que ainda estou a sentir os acordes da música dele, e a impressão é tão forte que quase me parece ouvi-lo dizer isso aos meus ouvidos. Tu não?

A pedra continuou calada.

Como queiras - continuou Hoshino. - Só estou a dar-te a minha opinião. E agora calo-me para ouvirmos a música.

Por volta das duas, quando olhou lá para fora, viu um grande e gordo gato preto sentado no parapeito da varanda, a olhar lá para dentro. Hoshino abriu a janela e disse, alto e bom som:

Ora viva, bichano. Que me dizes a este belo dia?

Sim, de facto, está um belo dia, senhor Hoshino - retorquiu o gato.

Não me lixes - murmurou Hoshino, abanando a cabeça.

 

O rapaz chamado Corvo

O rapaz chamado Corvo voou lentamente em grandes círculos por sobre a floresta. Uma vez completado um círculo, voava para outro lado e aí começava, cuidadosamente, a dar forma a outro círculo idêntico no ar, um círculo invisível a seguir ao outro, até desaparecer. Como um avião de reconhecimento, varreu com o olhar a floresta lá em baixo, à procura de alguém que parecia difícil de encontrar. Como um imenso oceano, a floresta ondulava e estendia-se até ao horizonte, a perder de vista, formando um densa muralha opaca feita de ramos entrelaçados. O céu estava carregado de nuvens cinzentas, e não havia vento. O Sol estava encoberto. Naquele momento o rapaz chamado Corvo devia ser a ave mais solitária do mundo. Mas a verdade é que naquele momento estava demasiado ocupado para pensar sequer nisso.

Finalmente avistou uma aberta no mar de árvores lá em baixo e voou disparado em direcção a terra. A luz incidia sobre uma pequena parcela de terreno e a erva verde destacava-se como uma espécie de sinal. A um canto da clareira via-se uma grande rocha arredondada e um homem com um berrante fato de treino vermelho vestido e um chapéu alto de seda sentado em cima dela. Calçava botas de monta­nha de sola grossa. A seus pés estava uma sacola de lona em tons de caqui. Era uma estranha visão, mas o rapaz chamado Corvo não pareceu importar-se com isso. Era deste homem que andava à procura. O que ele trazia vestido pouca importância tinha.

O homem olhou para cima, alertado pelo rápido bater de asas e viu o Corvo aterrar num ramo largo.

Ei - bradou ele, alegremente.

O rapaz chamado Corvo não lhe deu resposta. Pousado no ramo, olhava para o homem fixamente, sem expressão e sem pestanejar uma única vez. Volta e meia inclinava ligeiramente a cabeça para um lado.

Sei quem és - disse o homem, levantando o chapéu e voltando a baixá-lo. - Palpitava-me que não tardarias a aparecer por aqui. Limpou a garganta, franziu a testa e cuspiu para o chão, depois pisou o escarro com a sola da bota. - Estava só a descansar um bocado, mas isto de não ter ninguém com quem falar também chateia. E que lai se te aproximasses? Sempre podemos ter uma conversa decente. Que me dizes? Nunca te pus a vista em cima, mas isso não quer dizer que sejamos dois perfeitos estranhos.

O rapaz chamado Corvo continuava de boca fechada, com as asas cerradas contra o corpo.

O homem com o chapéu de seda abanou ligeiramente a cabeça.

Ah, estou a ver o filme. Não sabes falar, é isso? Não faz mal. Faço eu as honras da conversa, se estiveres de acordo. Não queres que eu vá mais longe do que isto, certo? É tão óbvio que nem preciso que me digas nada. Já estou a prever a cena. Não queres que me que me aventure mais, mas é precisamente isso o que eu quero fazer. Trata-se de uma oportunidade de ouro que não posso deixar escapar por entre os dedos, não sei se estás a ver? Uma-daquelas-oportunidades-aparece-uma-vez-na-vida.

Com a mão deu uma palmada valente no calcanhar das botas.

Isto para dizer que não tens maneira de me fazer parar. Não tens meios para isso. Esta distância daqui até aí é o mais próximo que que te conseguirás aproximar de mim. É esse o poder da minha flauta. Podes não saber, mas trata-se de uma flauta única, e não de um desses instrumentos vulgares como há por aí aos pontapés. E, deixa-me desde já que te diga, ando com uma porção delas dentro da minha sacola

O homem estendeu a mão e deu uma palmadinha protectora no saco, antes de levantar a cabeça e olhar para o rapaz chamado Corvo, pendurado no seu ramo.

Fiz estas flautas a partir das almas dos gatos. Extirpa-se a alma liou galos ainda vivos e transforma-se cada alma numa flauta. Tenho pena dos bichos, como não podia deixar de ser, coitados dos bichanos, ceifados daquela maneira, mas é mais forte do que eu. Esta flauta que aqui vês está para além de todas as noções do bem e do mal, de amor e de ódio. Dar forma a estas flautas tem sido, desde sempre, a minha vocação, e posso dizer que me orgulho de ter feito um bom trabalho e de estar, assim, a cumprir o meu dever. Não tenho nada de que me envergonhar. Fui casado, tive filhos e fartei-me de fazer flautas. Agora, chegou a hora de me deixar disso. Só aqui entre os dois, que ninguém nos está a ouvir, estou a pensar seriamente em pegar nestas flautas todas e fabricar uma flauta maior, porventura a mais poderosa de todas - uma flauta gigante, capaz de se transformar num verdadeiro sistema. Assim sendo, aqui me vês, a caminho de um local onde possa criar essa tal flauta. Não me cabe a mim decidir se a flauta serve para o bem ou para o mal, nem tão-pouco a ti. Tudo depende do tempo e do lugar onde estiver. Nesse aspecto, pode dizer--se que sou um homem inteiramente despido de preconceitos, como a história ou o tempo que faz. Não tomo partido. E uma vez que assim é, também me posso transformar numa espécie de sistema.

O homem tirou o chapéu, esfregou o pouco cabelo no cimo da cabeça, voltou a pôr o chapéu e apressou-se a ajeitar a aba.

Mal toque a minha flauta, vejo-me livre de ti enquanto o diabo esfrega um olho. A questão é que agora não estou para aí virado. É uma tarefa que exige muito de mim, e não me está a apetecer desperdiçar energia. Bem vou precisar dela mais tarde. Mas uma coisa é certa: quer eu toque a flauta quer não, nada poderás fazer para o impedir. Espero ter deixado isto claro.

O homem voltou a pigarrear e, acto contínuo, ajeitou várias vezes por cima da malha de jérsei o ligeiro enchumaço nas partes baixas.

Sabes o que é o limbo? Chama-se limbo ao ponto neutral que fica a meio caminho entre a vida e a morte. A bem dizer, um lugar triste e sombrio. Por outras palavras, aquele onde me encontro. Neste momento, calha ser esta floresta. Morri, que é como quem diz, mataram-me a meu pedido, mas não passei para o próximo mundo. Sou uma alma em transição, e uma alma em transição não tem forma. Aquele que tu aqui vês não passa de uma personagem, uma forma passageira que adoptei provisoriamente. É por isso que não me podes fazer mal. Estás a seguir-me? Nem que eu me esvaísse em sangue, o sangue não seria verdadeiro. Nem que eu sofresse horrores, não seria um sofrimento real. A única pessoa que podia acabar comigo é alguém que está qualificado para isso. E, é com muita pena que o digo, tu não encaixas nesse perfil. Não passas de uma ilusão precoce e medío­cre. Por maior e mais intenso que seja o teu desejo, dar cabo da minha pessoa é impossível para os da tua laia. - O homem fitava o rapaz chamado Corvo, impante, com ar todo enfatuado. - Que tal? Queres experimentar?

Como se fosse esse o sinal por que esperava, o rapaz chamado Corvo abriu as asas, lançou-se do ramo e voou direito a ele. Agarrou o homem com ambas as garras, atirou a cabeça para trás e espetou violentamente o bico no olho direito dele, como se estivesse a cravar uma picareta, as suas asas pretas como azeviche sempre a adejarem ruidosamente. O homem não opôs resistência, não levantou um dedo para se proteger. Nem sequer gritou. Ao invés, começou a rir, alto e bom som. O chapéu caiu ao chão e o globo ocular cedo se des­prendeu da órbita e ficou pendurado. Sem perder tempo, o rapaz chamado Corvo atacou, determinado, o outro olho. Mal viu que as orbitas não passavam de cavidades vazias, virou-se para o rosto do homem, bicando-o e rasgando-o todo. A cara dele não demorou a ficar toda esquartejada, vendo-se bocados de carne arrancados, o sangue a jorrar das inúmeras feridas. A seguir o corvo atacou o cimo da cabeça, onde o cabelo era mais ralo, e nem mesmo assim o homem deixava de rir. Quanto mais sanguinário se tornava o ataque, mais alio ele ria, como se toda a situação fosse de tal forma hilariante que nao se conseguia controlar.

O homem nunca tirou os olhos - que agora não passavam de orbitas vazias - do Corvo e, entre uma gargalhada e outra, lá conseguiu uni tilar algumas frases estranguladas.

Estás a ver o que te dizia? Não me faças rir. Podes tentar de mil maneiras, não conseguirás nunca ferir-me de morte. Não tens poder para tal. Não passas de uma ilusão barata, de um eco indecifrável. É inútil, por mais que tentes. Não entendes?

O rapaz chamado Corvo ferrou o bico na boca que acabara de pronunciar aquelas palavras. As suas asas enorme agitando o ar nu essanlemente, algumas penas, pretas e brilhantes, desprendendo-se e rodopiando no ar como fragmentos de alma. O Corvo dilacerou a língua do homem, agarrando-a com o seu bico e bicando com toda a sua força. Era comprida, imensamente espessa, e assim que foi arrancada da garganta dele, desatou a contorcer-se como um molusco gigante, soltando palavras das trevas. Agora sem língua, nem mesmo assim aquele homem deixava de rir. Ao mesmo tempo, parecia também não conseguir respirar. E, contudo, apertava a barriga, rebolava de riso e sufocava com gargalhadas surdas. O rapaz chamado Corvo apurou o ouvido, e aquele riso calado - tão vazio e sinistro como o vento que sopra num deserto distante - não havia meio de acabar. Verdade seja dita, parecia em tudo o som tirado de uma flauta trans­cendental.

 

Quando acordo já nasceu o dia. Fervo água na placa eléctrica e faço chá. Sento-me ao pé da janela para ver o que acontece lá fora, se é que acontece alguma coisa. Reina uma calma de morte. Não se vê vivalma, não se ouve um pio. Até mesmo os pássaros parecem relutantes em dar início ao coro matinal do costume. A leste, a claridade Iraça o contorno suave das colinas. O lugar está cercado de monta­nhas altas, o que explica por que motivo amanhece tão tarde e anoitece tão cedo. A fim de ver as horas vou até à mesa-de-cabeceira, onde deixei ficar o relógio, mas o ecrã digital é um vazio total. Quando carrego nalguns botões ao acaso, não acontece nada. As pilhas ainda deviam funcionar, mas por qualquer razão misteriosa o mecanismo parou enquanto eu dormia. Volto a pôr o relógio em cima da almofada e, com a mão direita, esfrego o pulso esquerdo, onde costumo usá-li Não que o tempo desempenhe um papel muito importante aqui.

Ali plantado a olhar para o vazio lá fora, naquele cenário dl ipido de aves, fico subitamente com vontade de pegar num livro qualquer livro. Desde que tenha essa forma e esteja impresso, por mim tudo serve. Só quero ter a sensação de pegar num livro, virar as páginas, devorar com os olhos as palavras. Só há um problema - não ha um único à vista. De facto, é como se por estas bandas a impressão nem sequer tivesse sido inventada. Varro o quarto com os olhas e certifico-me - ali não existe nada que tenha palavras escritas.

Abro as gavetas da cómoda para ver que género de roupas ali existe. Encontro tudo arrumado e dobrado na perfeição. Nenhuma das peças é nova. As cores estão desbotadas, o tecido mole de muitas lavagens. O que não impede que a roupa tenha, toda ela, um aspecto limpo. Encontro camisas de colarinho redondo, roupa interior, meias, pólos com colarinho e calças de algodão. Tudo coisas que me servem, mais ou menos do meu tamanho. Nenhuma das peças apresenta qualquer sinal distintivo, como se a o próprio conceito de roupa de marca nunca tivesse sequer existido. Nenhuma peça ostenta o nome do seu criador - também neste campo a palavra escrita não é importante. Troco a minha T-shirt suada por uma outra cinzenta que cheira a sol e a sabão natural.

Um pouco mais tarde - se muito se pouco não saberia dizer -aparece a rapariga. Bate ao de leve e, sem esperar resposta, abre a porta, que não está trancada. Traz o saco de lona a tiracolo. Por detrás dela, o céu mostra-se agora claro e de um límpido azul.

Vai direita à cozinha e prepara ovos numa pequena frigideira preta. Ouve-se o agradável barulho ao terem contacto com o óleo quente, e o cheiro dos ovos acabados de estrelar enche a casa. Ao mesmo tempo, ela põe o pão a torrar numa pequena torradeira que mais parece um adereço de um filme antigo. Veste a mesma roupa e tem o mesmo penteado que na noite anterior - um vestido azul-claro, cabelo apanhado. A pele é lisa e luminosa e os seus braços esguios parecem porcelana à luz da manhã. Para tornar o quadro um bocadi­nho mais completo, entra pela janela uma abelha a zumbir. A rapariga põe a refeição em cima da mesa, senta-se na cadeira e vê-me comer a omeleta de legumes e as torradas com manteiga, tudo acompanhado de chá de ervas. Pela parte que lhe toca, não bebe nem come nada. A cena parece a repetição da noite passada.

Por estas bandas as pessoas não preparam as suas próprias refeições? - indago. - Pergunto isto porque tens sido sempre tu a cozi­nhar para mim.

Algumas são elas próprias que cozinham, outras têm quem lhes faça as refeições - responde ela. Na sua maioria, contudo, as pessoas daqui não comem muito.

A sério?

Ela acena com a cabeça.

Comem de tempos a tempos. Quando lhes apetece.

Estás a querer dizer que ninguém come alarvemente como eu?

Consegues estar um dia inteiro sem comer? Abano a cabeça.

Aqui as pessoas ficam muitas vezes todo o dia sem comer nada, e não têm qualquer problema com isso. Para dizer a verdade, às vezes passam dias sem comer.

Ainda não estou habituado à forma como as coisas aqui acontecem, de maneira que sinto necessidade de comer.

Bem vejo - replica ela. - Por isso é que me tens a cozinhar para ti.

Olho-a de frente.

Quanto tempo vai demorar até eu me habituar a este sítio?

Quanto tempo? - repete ela, ao mesmo tempo que inclina a cabeça. - Não faço ideia. Não é uma questão de tempo. Quando chegar a altura, já estarás habituado.

Estamos sentados um em frente do outro, e ela tem ambas as mãos apoiadas no tampo da mesa, com as palmas para baixo. Vejo os seus dez pequenos dedos ali, direitos, objectos perfeitamente palpáveis. Olhando-a nos olhos, capto o mais leve estremecimento das suas pestanas, conto um a um cada pestanejar, sigo o movimento pendular da franja sobre a testa. Não consigo tirar os olhos dela.

A altura? - pergunto.

Não estou a dizer que seja preciso livrares-te de alguma coisa e deitá-la fora - diz ela. - Aqui, não deitamos nada fora - aceitamos as coisas, guardamo-las dentro de nós.

E também eu serei capaz de guardar isso dentro de mim?

Exactamente.

E então? - indago eu. - Depois de aceitar isso, o que acon­tece?

Ela põe a cabeça ligeiramente à banda, a pensar. Vejo isso como um gesto perfeitamente natural. As madeixas de cabelo tornam a oscilar.

E então serás verdadeiramente tu - diz ela.

Estás a querer dizer que agora ainda não sou completamente

eu?

Mesmo agora és completamente tu - alvitra ela, parando para pensar no que vai dizer a seguir. - O que estou a querer dizer é um bocadinho diferente. Mas não consigo explicar lá muito bem.

Não se entende enquanto não se passa por isso, é o que estás a querer dizer?

Ela faz um gesto de assentimento com a cabeça.

Quando se torna demasiado doloroso continuar ali a olhá-la fecho os olhos. Mas volto a abri-los logo, para ter a certeza de que ela ainda ali está.

As pessoas daqui vivem em comunidade? Ela reflecte novamente sobre o assunto.

Vivemos todos juntos e partilhamos certas coisas. Os chuveiros, por exemplo, a estação eléctrica, o mercado. Existem algumas regras básicas que aceitamos tacitamente, mas nada de muito complicado. Nada que nos possa dar que pensar ou que precisemos de expressar verbalmente. Por isso, não tenho nada a ensinar-te sobre a maneira como as coisas aqui são feitas. O mais importante, no que diz respeito à vida por estas bandas, é o facto de as pessoas se deixarem absorver pelas coisas.

Absorver pelas coisas? Que quer isso dizer?

Acontece o mesmo quando estás na floresta. Tornas-te parte da floresta. Quando estás à chuva, tornas-te parte da chuva. Quando é manhã, tornas-te parte da manhã. Quando estás comigo, tornas-te parte de mim.

E quando tu estás comigo, tornas-te parte integrante de mim?

É a pura verdade.

Qual é a sensação? Seres tu própria e parte de mim ao mesmo tempo?

Ela olha de frente para mim e toca no alfinete de cabelo.

É um sentimento muito natural. Quando se está habituado, é muito simples. É como voar.

Consegues voar?

Foi só um exemplo, mais nada - diz ela a sorrir. É um sorriso sem qualquer significado profundo ou obscuro. Ela sorri pelo puro prazer de sorrir. - Não podes saber qual é a sensação de voar no céu a não ser quando voas. Aqui é a mesma coisa.

Nesse caso é uma coisa tão natural que nem sequer é preciso pensar nisso?

Ela concorda com a cabeça.

Sim, passa-se tudo de uma maneira calma, simples, espontânea. As pessoas nem sequer têm de pensar nisso. É perfeitamente natural.

Estou a fazer demasiadas perguntas?

Não penses nisso - responde ela. - Quem me dera poder responder melhor.

Tens recordações?

Ela torna a abanar a cabeça e encosta as mãos ao tampo da mesa, desta vez com as palmas para cima. Fita-as sem qualquer tipo de expressão.

Não, não tenho. Num lugar como este, onde o tempo não é importante, o mesmo acontece com a memória. É evidente que me lembro da noite passada, de aqui ter estado, de ter preparado legumes estufados para o teu jantar. E até me lembro de teres comido tudo, até à última garfada, não foi? Também me lembro de algumas coisas que aconteceram no dia anterior ao de ontem. Mas antes disso já não te sei dizer. O tempo foi absorvido por mim, e não sou capaz de dis­tinguir entre uma coisa e a coisa que está ao lado.

Quer então dizer que a memória não tem assim tanta impor­tância aqui?

Ela lança-me um sorriso luminoso.

Isso mesmo. Aqui a memória não tem assim tanta importância. A biblioteca, esse sim, é o lugar onde se guardam as recorda­ções.

Depois de a rapariga se ter ido embora, sento-me à janela e deixo o sol aquecer a minha mão. A sua sombra recai sobre o peitoril da janela, traçando o perfeito contorno dos cinco dedos. A abelha deixou de zumbir e pousa delicadamente na vidraça. Parece estar a pensar em qualquer coisa de muito sério. E eu também.

Quando o Sol passa ligeiramente do zénite, ela aparece no sítio onde me encontro, bate devagarinho à porta e entra. Por momentos não consigo dizer para quem estou a olhar - para a rapariga ou para ela. Uma ligeira mudança na inclinação da luz, ou o modo como o vento sopra, tudo e mais alguma coisa contribui para que ela apareça aos meus olhos de maneira diferente. É como se num determinado momento estivesse a olhar para a rapariga e no momento seguinte se tivesse transformado na Saeki-san. Não que nada isto esteja realmente a acontecer. A pessoa que tenho diante de mim é, sem sombra de dúvida, a Saeki-san e mais ninguém.

Olá - diz ela num tom perfeitamente natural, como acontecia quando nos cruzávamos no corredor da biblioteca.

Veste uma blusa azul-marinho de manga comprida e uma saia pelo joelho a condizer, uma fina gargantilha de prata à volta do pescoço e pequenos brincos de pérolas. Tudo exactamente como era costume nela. Os saltos altos dos sapatos fazem um barulho seco ao bater no chão do alpendre, um som que destoa levemente num sítio destes. Fica parada à porta a olhar fixamente para mim, como se quisesse ter a certeza de que sou mesmo eu. Claro que aquele sou mesmo eu. Assim como ela é a verdadeira Saeki-san.

Que tal entrares para beber uma chávena de chá? – digo eu.

Obrigada, aceito - responde ela. E, como se finalmente tivesse tomado uma decisão, entra em casa.

Vou até à cozinha e ligo o fogão a fim de ferver água para o chá. Ao mesmo tempo, esforço-me por respirar naturalmente.

Ela senta-se à mesa de jantar na mesma cadeira onde a rapariga costuma ficar sentada.

Parece que voltámos aos tempos da biblioteca, não parece? - comenta ela.

Pois parece - concordo eu. - Só que não há café, e não temos a companhia do senhor Oshima.

E também não temos nem um livro para amostra. Preparo duas chávenas de chá de ervas e levo-as até à mesa.

Lá fora os pássaros cantam. A abelhinha continua a fazer a sesta, pousada na vidraça.

A Saeki-san é a primeira a falar.

Quero que saibas que não foi fácil para mim vir até aqui. Mas a verdade é que tinha de te ver e de falar contigo.

Aceno com a cabeça.

Ainda bem que vieste.

O seu proverbial sorriso dança-lhe nos lábios.

Há uma coisa que tenho de te dizer.

O sorriso dela é quase igual ao da rapariguinha, apenas um tudo-nada mais intenso, e essa pequena diferença toca-me fundo.

Ela envolve a chávena com ambas as mãos. Observo os brincos de pérolas que usa nas orelhas furadas. Está a pensar, e demora mais tempo que é costume.

Queimei todas as minhas recordações - diz ela, escolhendo cuidadosamente cada palavra. - Desfizeram-se em fumo e dissiparam--se no ar. O que significa que não vou poder lembrar-me das coisas durante muito tempo. De todo o género de coisas - incluindo o tempo que passei contigo. Por isso queria tanto voltar a ver-te e falar-te quanto antes. Enquanto ainda me consigo lembrar.

Estico o pescoço e olho para a abelha no alto da vidraça, a sua sombra negra reduzida a um pontinho no peitoril da janela.

O mais importante - diz ela calmamente - é que tens de sair daqui, antes que seja demasiado tarde. Sai daqui, atravessa o bosque e regressa à vida que deixaste para trás. Não tardam a fechar a entrada. Promete-me isso.

Abano a cabeça.

Não estás a entender. Não tenho um mundo, a que possa regressar. Em toda a minha vida nunca tive ninguém que me amasse, que gostasse de mim. Não sei o que é contar com outra pessoa que não eu. Para mim, a ideia de uma vida que deixei para trás não faz qualquer sentido.

Ainda assim, tens de voltar para trás.

Mesmo que não exista nada à minha espera? Ninguém que se importe comigo?

Isso não interessa. É aquilo que eu quero. E eu quero que voltes para lá.

Mas tu não estás lá, pois não?

Ela baixa a cabeça e o olha para as mãos que agarram a Chávena.

Não, infelizmente já lá não estou.

E que queres tu que eu lá vá fazer?

Apenas uma coisa - diz ela, levantando a cabeça e fitando-me nos olhos. - Gostaria que não te esquecesses de mim. Se te lem­brares de mim, então não me importo que todos me esqueçam.

O silêncio cai sobre nós e ali permanece durante muito tempo. Uni silêncio profundo.

Uma pergunta começa a crescer dentro do meu peito, uma per­gunta tão grande que asfixia a minha garganta e quase me impede de respirar. Sem saber muito bem como, lá consigo engolir a questão e escolher outra.

As recordações são assim tão importantes?

Depende - responde ela, e fecha os olhos por um momento.

Em muitos casos são o mais importante de tudo o resto.

E, no entanto, tu própria queimaste as tuas?

Deixaram de me servir para o que quer que fosse. - A Saeki-san junta as duas mãos em cima da mesa, com as palmas para baixo, deixando-as ficar tal qual as da rapariguinha na primeira vez.

Kafka, tenho um favor a pedir-te. Quero que fiques com aquele quadro.

O quadro que havia no meu quarto da biblioteca? A paisagem à beira-mar?

A Saeki-san diz que sim com a cabeça.

Sim. Kafka à Beira-Mar. Quero que o leves contigo. Para onde, não interessa. Desde que o leves contigo.

Mas o quadro não pertence a alguém? Ela abana a cabeça.

É meu. Ele ofereceu-mo quando foi estudar para a universidade, em Tóquio. Desde essa altura, ficou sempre comigo. Por onde quer que passei, tive-o sempre na parede do meu quarto. Quando comecei a trabalhar na Biblioteca Komura, ficou naquele quarto, no sítio onde esteve pendurado pela primeira vez, mas foi uma coisa temporária. Deixei uma carta para o senhor Oshima em cima da minha secretária, dizendo-lhe que gostaria que o quadro ficasse para ti. Afinal, per­tence-te a ti.

A mim?

Ela acena com a cabeça.

Tu estavas lá. E eu estava a teu lado, a ver-te. À beira-mar, há muito, muito tempo. O vento soprava, viam-se nuvens brancas e fofas no céu e era sempre Verão.

Fecho os olhos. E Verão e estou à beira-mar, sentado numa cadeira de praia. Sinto a lona áspera de encontro à minha pele. Aspiro profundamente o cheiro da maresia. Mesmo de olhos fechados a luz do Sol penetra através das pálpebras. Oiço o som das ondas que batem na areia. O som afasta-se, depois aproxima-se, ao sabor do tempo. Algures ali perto alguém pinta o meu retrato. E ao lado dele está sentada uma rapariga com um vestido azul-claro que olha na minha direcção. Tem o cabelo pelos ombros, um chapéu de palha com uma fita branca e entretém-se a deixar escorrer a areia por entre os dedos. Os seus dedos são firmes e longos - dedos de pianista. Os seus braços lisos como porcelana brilham à luz do Sol. Um sorriso natural desenha-se nos seus lábios. Estou apaixonado por ela. E está apaixonada por mim. E essa a recordação.

Quero que fiques com o quadro para sempre - diz a Saeki--san. Depois levanta-se, vai até à janela e olha lá para fora. O Sol ainda está alto no céu. A abelha continua a dormir. A Saeki-san levanta a mão para proteger os olhos da luz e olha para longe, antes de virar a cara na minha direcção. - Tens de partir - diz ela.

Vou ter com ela. A sua orelha roça no meu pescoço. Sinto o brinco rijo contra a minha pele. Pouso as mãos nas suas costas, como se quisesse decifrar algum sinal. O cabelo dela afaga a minha face. Ela aperta-me contra si, enterrando os dedos com força nas minhas costas, como dedos enclavinhados na muralha do tempo. O cheiro do mar, o som das ondas que se quebram na areia. Alguém que grita o meu nome ao longe, de muito longe.

És a minha mãe? - ouso por fim perguntar.

Já sabes a resposta a isso - diz a Saeki-san.

Tem razão - já sei a resposta. Mas nenhum de nós consegue lraduzi-la em palavras, temendo que isso possa destruir todo e qualquer significado.

Há muito tempo abandonei uma coisa e não devia - confessa ela. - Uma coisa que amava acima de tudo. Receava vir a ficar sem ela, um dia. Então, tomei a decisão de ser eu a afastá-la, uma vez que corria o risco que ma roubassem, ou de a perder num acidente.

Depois, como seria de esperar, senti uma raiva que nunca chegou a desaparecer. Mas a verdade é que tudo não passou de um clamoroso eu o. Nunca devia ter aberto mão disso.

Escuto em silêncio.

Foste posto de lado pela única pessoa que nunca o devia ter feito diz a Saeki-san. - Kafka, perdoas-me?

Está na minha mão, perdoar-te? Ela olha para o meu ombro e faz que sim com a cabeça várias vezes.

Desde que a raiva e o medo não te impeçam.

Saeki-san, se está realmente no meu poder, então a resposta e sim, perdoo-te - digo-lhe eu.

Mãe, dizes tu, perdoo-te. E com estas palavras, perfeitamente ludfvels, quebra-se a camada de gelo que envolvia o teu coração.

Dispo a camisola e torno a vestir a minha velha T-shirt suada. Aperto o relógio parado no pulso esquerdo. Depois volto a enfiar o boné que Oshima me deu, de trás para a frente, assim como os óculos escuros azuis. Finalmente, por cima visto a minha camisa de manga comprida. Vou até ao lava-loiça e bebo um copo de água da torneira, deixo o copo a escorrer e dou uma última olhadela à sala. A mesa de jantar, as cadeiras. Aquela onde a rapariga e a Saeki-san estiveram sentadas. A chávena de chá em cima da mesa. Fecho os olhos e respiro fundo. Já sabes a resposta a isso.

Abro a porta, saio e fecho-a. Desço os degraus do alpendre, a minha sombra projectando-se clara e distintamente no chão. Quase parece estar agarrada aos meus pés. O Sol continua alto no céu.

À entrada para a floresta vejo os dois soldados encostados a um tronco de árvore, como se estivessem à minha espera. Quando me vêem não fazem uma única pergunta. É como se já soubessem o que me vai na cabeça. Trazem as armas ao ombro.

O soldado alto está a mordiscar um raminho de árvore.

A entrada ainda está aberta - diz ele. - Pelo menos estava, quando verifiquei há coisa de um minuto.

Não te importas de nos acompanhar no mesmo andamento de antes? - pergunta o entroncado. - Achas que consegues?

Não há problema. Vamos embora.

Problema vai ser se chegarmos lá e a entrada já estiver fechada - acrescenta o companheiro.

Bem sei - replico eu.

Não te vais arrepender de deixar isto? - pergunta o mais alio.

Não.

Então vamos lá embora.

O melhor é não olhares para trás - alvitra o encorpado.

Ora aí está uma boa ideia - diz o alto.

E percorro uma vez mais o caminho da floresta.

Uma única vez, à medida que nos esforçamos por chegar rapidamente ao cimo da encosta, cedo à tentação e olho para trás. Os soldados avisaram-me para não o lazer, mas é mais forte do que eu. Este é o último ponto de onde consigo avistar a cidade. Mais adiante ficará por completo escondida por detrás de uma muralha de árvores, na aquelo pequeno mundo desaparecerá da minha vista para sempre.

Não se vê uma única alma ao longo do caminho. Um bonito regato atravessa o vale, no caminho vêem-se as casinhas todas ali­nhadas e a sombra dos postes de electricidade colocados a intervalos regulares sobre o terreno. Por um momento fico ali, como que pregado ao chão. Tenho de voltar, dê lá por onde der. Ao menos podia ficar até à noitinha, esperar pela rapariga com o saco de lona que me vem visitar. «Se precisares de mim, cá estarei.» Sinto um aperto no coração, parece uma coisa quente, um íman poderoso que me puxa na direcção da cidadezinha. Os meus pés são de chumbo e não se mexem. Se seguir em frente nunca mais a verei. Estou numa encruzilhada. Perdi toda e qualquer noção de tempo. Quero chamar os soldados que vão à minha frente e dizer-lhes que não volto com eles, que fico ali. Mas há qualquer coisa que me estrangula a voz. As palavras não têm vida própria.

Estou preso entre dois vazios. Não faço ideia do que é o bem e o mal. Nem sequer já sei o que quero. Estou parado no meio de uma tempestade terrível. Não me consigo mexer e nem as pontas dos dedos à frente dos olhos vejo. Só sei que não me consigo mexer. A areia, de uma brancura que faz lembrar ossos pulverizados, envolve--me nas suas garras. E é então que a oiço - a Saeki-san - dizer-me algo. «Afinal tens de voltar atrás», diz ela, num tom decidido. «É isso que eu quero. Quero que estejas lá.»

O feitiço quebra-se. Volto a ser eu, de corpo inteiro. O sangue quente volta a correr pelo meu corpo. O que ela me deu, as últimas gotas de sangue dela. No momento seguinte, retomo a marcha e corro atrás dos soldados. Basta uma curva e o pequeno mundo no meio das colinas desvanece-se, como uma fresta cavada entre dois sonhos.

Concentro-me apenas em avançar pela floresta dentro sem per­der o norte, para não me afastar do trilho. Agora, é só isso que importa. Acima de tudo, é isso que tenho de fazer.

A entrada ainda está aberta. Ainda tenho tempo, até cair a noite. Agradeço aos dois soldados. Eles depositam as armas por terra, como antes, e sentam-se em cima da pedra, enorme e lisa. O andamento apressado imposto à caminhada não lhes fez perder o fôlego. O sol­dado mais alto continua a trincar o seu raminho verde.

Não te esqueças daquilo que te contei acerca das baionetas - diz o soldado alto. - Quando atacares o inimigo, tens de enterrar a lâmina e rodá-la bem, a fim de lhe estraçalhar as entranhas. Se não o fizeres, acontece-te o mesmo a ti. É assim o mundo lá fora.

Mas não é só isso - diz o encorpado.

Não, claro está - replica o mais alto, pigarreando. - Estou só a referir-me ao lado negro das coisas.

Outra coisa muito difícil é distinguir o certo do errado -afirma o mais entroncado.

No entanto, é preciso saber fazê-lo - acrescenta o alto.

Sem dúvida - diz o encorpado.

Mais uma coisa - diz o alto. - Quando saíres daqui, não olhes para trás até alcançares o teu destino. Nem uma única vez, estás a ouvir?

Presta atenção, que isto é importante - acrescenta o encorpado.

Afinal de contas, conseguiste chegar até aqui - diz o alto -, mas a partir daqui é que a coisa começa a sério. Não deves olhar para trás até lá chegares, nunca.

Entendido - digo-lhes eu.

Volto a agradecer e despeço-me. Os dois põem-se em sentido e fazem a continência. Nunca mais os verei. Sei disso, e eles também o sabem. E, sabendo isso, separamo-nos.

Não me lembro muito bem como, mas lá consegui chegar à ' abana de Oshima, depois de os soldados terem ficado para trás.

Enquanto atravessei a densa floresta, devo ter deixado a minha mente vaguear por outras paragens.

Espantosamente, consegui não me perder. Tenho a vaga impressão de ter avistado a mochila de que entretanto me libertara e de ter voltado a pegar nela, sem pensar no que estava a fazer. Com a bússola, a machadinha, a lata de spray, a cena repetiu-se. Lembro-me de ver as marcas amarelas postas por mim nos troncos de árvores, como III amas gigantes de alguma borboleta nocturna.

Estou de pé, parado na clareira em frente da cabana e levanto a ( aboça para olhar o céu. De repente, o mundo à minha volta enche-.0 do sons brilhantes - o canto dos pássaros, o sussurro das águas no riacho, o sopro das folhas ao sabor do vento. Ainda que muito ao

de leve, são tudo sons que reconheço. É como se me tivessem tirado uma rolha de cera e agora, de um momento para o outro, tudo em redor ganha vida e soa aos meus ouvidos de uma forma que é a um tempo nova e familiar. Os sons estão ainda misturados, mas consigo separá-los e identificá-los. Dou uma espreitadela ao meu relógio de pulso e vejo que voltou a trabalhar. No mostrador verde, os números digitais piscam, mudando a cada minuto que passa, como se nada tivesse acontecido. São quatro e dezasseis.

Entro na cabana e deito-me em cima da cama, vestido. Estou exausto. Fico ali, de costas, e fecho os olhos. Está uma abelha pousada na janela. Os braços da rapariga brilham como porcelana à luz do Sol. «Foi só um exemplo», diz ela.

«Olha para o quadro», disse a Saeki-san. «Como eu sempre fiz.»

As areias brancas do tempo escapam por entre os dedos esguios da rapariga. As ondas batem na areia. Crescem, rebentam e desmo­ronam-se ao chegar à beira-mar. E a minha consciência é sugada para dentro de um corredor escuro e sombrio.

 

Não me lixes - repetiu Hoshino.

Aqui não existe nada que precise de ser lixado, senhor Hoshino , disse o gato preto com ar agastado. O gato

tinha um focinho largo e parecia já entradote na idade. - Quis-me foi parecer que o senhor estava aborrecido,para aí sozinho, a falar com uma pedra todo o santo dia.

Mas como aprendeste a falar a linguagem dos homens?

Não aprendi.

Não estou a entender. Nesse caso como explicas que estejamos paia aqui os dois «tu-cá-tu-lá» ? Um gato e um homem?

Isso é porque estamos na fronteira deste mundo e falamos uma linguagem comum.

O jovem Hoshino não cabia em si de espanto.

A fronteira do mundo? Uma linguagem comum?

Estou a ver que não pescas nada, mas não faz mal. Podia ixpllcar-te tudo, tintim por tintim, mas é uma história muito com-prlda disse o gato, dando duas ou três abanadelas com a cauda, como quem não quer a coisa.

Espera aí! - exclamou Hoshino. - Tu és o Coronel Sanders, ii.ic i és?

Coronel quem? - repetiu o gato com ar de poucos amigos. Nao sei do que estás para aí a falar. Eu sou eu, e mais ninguém. Um gato de estimação, ao teu serviço. Tens nome?

Claro que tenho nome.

E qual é?

Toro - respondeu o gato, hesitante.-Toro[5]? - replicou Hoshino. - Como aquela parte cara do atum?

Exacto - retorquiu o gato. - O meu dono é o chef do restaurante do bairro especializado em sushi. Que, por sinal, também tem um cão. Esse dá pelo nome de Tekka[6].

E como sabes como eu me chamo?

Ora, és muito conhecido por estas bandas, Hoshino - exclamou Toro, com um sorriso rasgado.

Hoshino nunca antes tinha visto um gato sorrir. O sorriso, contudo, não tardou a apagar-se, e o gato voltou a adoptar a expressão dócil do costume.

Os gatos sabem tudo - disse Toro. - Eu, por exemplo, sei que o senhor Nakata morreu ontem, e que aí dentro tens uma valiosa pedra. Já tenho muitos anos em cima do pêlo e sei tudo o que se passa aqui à volta.

Hmm - murmurou Hoshino, impressionado. - Em vez de estarmos aqui ao relento, que me dizes a entrar para continuarmos a nossa conversa cá dentro, Toro?

Refastelado em cima do gradeamento, o gato fez que não com a cabeça.

Não, sinto-me muito bem aqui. Em espaços fechados tenho dificuldade em me descontrair. Além disso, está um belo dia. Não me digas que não ficamos melhor os dois a conversar aqui fora?

Por mim, tudo bem - disse Hoshino. - Olha lá, por acaso tens fome? Tenho a certeza de que se arranja por aí qualquer coisa para petiscar.

O gato tornou a abanar a cabeça.

Obrigado, mas já tive a minha dose. Para dizer a verdade, estou mas é com dificuldade para manter o peso. Quando o nosso dono é dono de um restaurante de sushi, o mais certo é ficarmos com problemas de colesterol. E quando estou assim gordo confesso que tenho uma certa dificuldade em saltar para cima e para baixo.

Bom, não achas que está na altura de me dizeres qual a razão que te trouxe aqui?

Aha - fez o gato preto. - Pareceu-me que estavas com difi­culdade em lidar com a pedra. Para mais agora que ficaste sozinho.

Podes crer. Estou metido numa salgalhada das antigas.

Por isso achei que precisavas de uma ajuda

Isso era porreiro - disse Hoshino. - Com que então, estás disposto a dar-me uma «pata»?

O grande problema é a pedra - afirmou Toro, sacudindo a cabeça para se ver livre de uma mosca que andava por ali a zumbir. - Uma vez que a devolvas à procedência, ficas despachado e podes ir à tua vida, certo?

Certo! Assim que fechar a pedra, acabou-se a história. Como dizia o Nakata, tudo o que for aberto tem de ser fechado. É a regra.

Foi por isso que achei melhor aparecer por cá e dizer-te o que deves fazer.

E tu sabes o que é? - perguntou Hoshino, visivelmente entusiasmado.

Claro - respondeu o gato. - Que é que já te disse? Os gatos sabem tudo. Não se comparam com os cães.

Nesse caso, o que tenho de fazer?

Tens de matar a coisa - disse o gato, paulatinamente.

Matar a coisa? - espantou-se Hoshino.

Isso mesmo. Tens de acabar com ela.

E o que poderá essa coisa ser?

Logo verás, quando lhe puseres a vista em cima – explicou o gato preto. - Mas já aviso que até que isso aconteça não saberás a que me refiro. Para começar, não tem uma forma definida. Muda de aspecto, consoante a situação.

Estamos a falar de uma pessoa?

Não, não é uma pessoa, isso é garantido Nesse caso, como sei o que é?

Ainda não percebeste?! - exclamou Toro. - Quantas vezes é pus iso explicar-te que saberás quando a vires e que, se não a vires, chapéu? Que dificuldade é que tem perceber isto?

Hoshino suspirou.

Posso saber ao menos qual é a verdadeira identidade dessa tal coisa?

Não precisas de saber isso para nada - afirmou o gato. -É muito difícil de explicar. Ou talvez deva antes dizer que o melhor é não saberes. Seja como for, neste momento espera a sua hora. Enfiada nalgum lugar escuro, a respirar calmamente, emboscada e à espreita. Mas a espera está a acabar. Mais cedo ou mais tarde terá de fazer a sua jogada. O meu palpite é que isso vai acontecer hoje. E mesmo à frente do teu nariz, sem sombra de dúvida. Uma oportunidade em mil.

Oportunidade em quê?

Uma oportunidade-em-mil-milhões-de-vezes, que é como quem diz, uma hipótese única. Tudo o que precisas de fazer é ficar à espera e matá-la. Isso acabará com o assunto de uma vez por todas. Depois, podes ir à tua vida.

E isso não é contra a lei?

Com a lei posso eu bem - sentenciou o gato - ou não fosse gato. Visto que não sou uma pessoa de carne e osso, duvido de que a lei seja para aqui chamada. Seja como for, alguém tem de acabar com ela. Até mesmo um vulgar bichano de estimação como eu vê isso.

Tudo bem. Vamos partir do princípio de que eu estou disposto a matar. Como ponho esse plano em prática? Não faço ideia do tama­nho da coisa nem do aspecto que tem... É difícil planear um assassínio quando não se têm os dados básicos acerca da vítima.

É contigo. Por mim, podes dar-lhe com martelo, e acabou--se. Mata-a com uma faca de cozinha. Estrangula-a. Queima-a. Mata-a à dentada. O que achares melhor, desde que acabes com ela. Extermina-a com requintes de malvadez. Estiveste nas Forças de Autodefesa, certo? Beneficiaste do dinheiro dos contribuintes para aprender a manejar uma arma, não foi? A usar uma baioneta afiada? És um soldado, por isso vê mas é se utilizas a cabeça e engendras a melhor maneira de a matar.

O que me ensinaram no exército era para usar em caso de guerra - protestou débilmente Hoshino. - Nunca me deram treino para fazer emboscadas nem para matar alguém cujo tamanho e forma nem sequer conheço - e muito menos com um martelo.

Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para te fazer passar a entrada - prosseguiu Toro, não ligando aos protestos de Hoshino. - Mas a partir daí é contigo - não podes deixar escapar a oportunidade, dê lá por onde der. Tens de arranjar maneira de a malai antes de ela entrar lá para dentro. Percebeste? Isto é muito importante. Se a deixares escapar com vida, é o fim.

Uma oportunidade em mil?

Exactamente - disse Toro. - Apesar de isso ser apenas uma força de expressão.

Mas não estamos a falar de uma coisa perigosa? - perguntou Hoshino, temeroso. - Se ela se vira contra mim?

Provavelmente não é tão perigosa quando está em movimento - disse o gato. - Mas quando a apanhares quieta, toma cuidado. Aí sim, pode tornar-se um verdadeiro perigo. Por isso, não a deixes escapar enquanto estiver em fuga. É nessa altura que tens de desferir o golpe.

Provavelmente? - reagiu Hoshino.

O gato preto não se dignou responder. Semicerrou os olhos, espreguiçou-se e desceu paulatinamente do varandim.

Até qualquer dia, meu caro Hoshino. Não te esqueças de a matar. Se não fizeres isso, o senhor Nakata nunca descansará em paz. E tu gostavas do velhote, não gostavas?

Sim. Era um bom homem.

Nesse caso tens mesmo de passar à acção e matá-la. Extermina--a com requintes de malvadez, digo e repito. Era como o senhor Nakata gostaria que agisses. Por isso, trata de o fazer. Agora, ficaste a desempenhar o papel dele. Sempre foste um tipo despreocupado, nunca quiseste assumir responsabilidades, pois não? Pois bem, agora é tempo de remediares isso. Vê lá, não deites tudo a perder, okay? Vou fazer figas por ti.

Isso é muito encorajador - replicou Hoshino. - Mas lembrei--me agora mesmo de uma coisa.

O quê?

Se calhar a Pedra de Entrada ainda está aberta e assim podia atraí-la?

Pode ser que sim - disse Toro com indiferença. - Mais uma recomendação. Ela só actua pela noite dentro, a altas horas da madrugada. Deves aproveitar para dormir durante o dia, para depois não adormeceres quando chegar a noite e correres o risco de a deixar escapar. Isso seria uma catástrofe.

O gato preto saltou com agilidade para o telhado do prédio ao lado, endireitou a cauda e desapareceu. Para um animal do seu tamanho, era leve como uma pena. Hoshino ficou a vê-lo da varandinha à medida que se afastava. Toro não se virou para trás nem uma única vez.

Céus - exclamou Hoshino, antes de regressar à cozinha a fim de desencantar potenciais armas. Encontrou uma faca de trinchar extremamente afiada, bem como outra, resistente e com a forma de uma machadinha. Em matéria de panelas e tachos, só havia o trivial, mas, em contrapartida, o arsenal de facas era impressionante. Além do mais, descobriu ainda um martelo, enorme e pesado, e um bocado de corda de náilon. Um picador de gelo completava o arsenal.

Era aqui que uma bela espingarda automática teria dado jeito, pensou ele enquanto passava revista à cozinha. Aprendera a manejar esse tipo de armamento no exército, e podia dizer-se que até era razoável atirador. Não que estivesse propriamente à espera de dar de caras com uma espingarda dentro do aparador. Se alguém disparasse uma arma num bairro tranquilo como aquele, de certeza que o tiro faria um barulho dos diabos.

Pousou o armamento todo em cima da bancada da cozinha - as duas facas, o picador de gelo, o martelo e a corda. Ao lado, pôs uma lanterna, depois foi sentar-se ao lado da pedra e começou a afagá-la.

Imagina só - disse ele para a pedra - um martelo e facas para lutar contra algo, e nem sequer sei do que se trata? E quem dá as ordens é um gato preto do bairro? Agora põe-te no meu lugar e vê lá se tudo isto não é um perfeito disparate?

A pedra, como seria de esperar, coibiu-se de fazer qualquer comentário.

Toro disse que provavelmente aquilo não era perigoso. Prova­velmente? Mas uma pessoa tem de pensar em todas as hipóteses, que diabo. E se me salta ao caminho uma besta como aquelas do Parque Jurássico? Era uma vez o Hoshino...

Silêncio.

Hoshino pegou no martelo e ergueu-o umas quantas vezes.

Se pensarmos bem, é o destino. Desde o momento em que dei boleia ao Nakata na área de serviço até agora é como se o destino ficasse encarregado de tudo. O único que tem estado a leste de tudo sou eu. O destino é uma coisa estranha, minha amiga - proferiu Hoshino. - Certo? Qual é a tua opinião?

A pedra manteve um silêncio sepulcral.

Bem, o que há-de um homem fazer? Fui eu que escolhi este caminho, tenho de ser eu a arrostar com as consequências. É um bocado duro pensar que nos vai saltar uma coisa ao caminho, mas o que tem de ser tem muita força. O que é preciso é dar o meu melhor. A vida é curta, mas foi bom enquanto durou. Toro disse que esta é uma oportunidade em mil. Talvez até não seja mau de todo ir--me desta para melhor com um gesto heróico. Em memória de Nakata. O velho merece!

A pedra continuou o seu voto de silêncio.

Hoshino seguiu à letra as instruções do gato e fez uma sesta no sofá, preparando-se para a noite que se avizinhava. Era uma sensação estranha, obedecer a um gato, mas assim que se deitou, adormeceu e dormiu quase uma hora. Ao cair do dia foi, ao congelador, tirou para fora o que queria e comeu caril de gambás com arroz. Quando começou a ficar escuro, sentou-se junto à pedra, as facas e o martelo ao alcance da mão.

Apagou as luzes todas menos um pequeno candeeiro de mesa. Assim era melhor, pensou ele. Se a coisa só se movimentava de noite, mais valia que estivesse o mais escuro possível. Quero ver se acabo com isto rapidamente - por isso, se estás aí escondida, aparece! Quanto mais depressa terminarmos com esta história, melhor. Depois posso voltar para Nagoya, para a minha casinha, mandar vir uma miúda e passar à acção.

Até que deixou de falar com a pedra. Limitou-se a ficar ali parado, à espera, em silêncio, lançando de tempos a tempos uma olhadela ao relógio. Quando ficava farto punha-se a fazer girar ora a laca ora o martelo. Se é que algo vai acontecer, pensou ele, deve ser lá mais para o meio da noite. Mas, claro está, também podia ser antes, c nesse caso queria estar preparado para não perder a sua oportunidade urna oportunidade em mil. Agora não era altura para recuar. Volta e meia trincava uma bolacha e bebia um gole de água mineral.

Ei, pedra - sussurrou Hoshino. - Já passa da meia-noite, a hora de aparecerem os fantasmas. O momento da verdade. Que tal se tu e eu abríssemos bem os olhos para ver o que acontece? - Inclinou-se para esfregar a pedra. Talvez fosse só a sua imaginação, mas a superfície parecia ligeiramente mais quente do que era costume. Voltou a esfregar uma vez e oulra, para ganhar coragem. - Tens de torcer por mim, estás a ouvir? - disse ele à pedra. - Dava-me jeito um certo apoio moral.

Pouco passava das três quando um ligeiro roçagar começou a ouvir-se, vindo do quarto onde jazia o corpo de Nakata. Era como se alguma coisa estivesse a rastejar em cima do tatami. Mas o certo é que não havia ali qualquer tatami, visto que o quarto era alcatifado.

Hoshino levantou a cabeça e pôs-se à escuta. Não há dúvida, pensou ele, não sei bem do que se trata, mas que anda ali alguma coisa, isso anda. O coração começou a bater com força. Tratou de enfiar o martelo no cinto, pegou na faca mais afiada com a mão direita, pôs a lanterna na esquerda, e levantou-se.

Vamos lá tratar disso, antes que se faça tarde... - disse ele para ninguém em particular.

Rastejou até à porta que dava para o quarto de Nakata e abriu--a. Acendeu a lanterna e varreu com ela o sítio onde se encontrava o corpo. Não havia dúvida, era mesmo dali que provinha o tal som roçagante. O foco de luz amarelada incidiu sobre uma coisa que rastejava para fora da boca de Nakata. Fez lembrar a Hoshino uma cabaça. Era da grossura do braço de um homem e, apesar de não a conseguir ver toda, Hoshino calculou que tivesse metade do corpo de fora. Um corpo húmido que brilhava como muco. A boca de Nakata toda aberta como uma jibóia, para deixar sair a tal coisa.

Hoshino engoliu em seco, alto e bom som. A mão que segurava a lanterna tremia um pouco, fazendo a luz vacilar. Meu Deus, e agora como é que mato esta coisa?, interrogou-se ele. Parecia não ter braços nem pernas, nem olhos ou nariz. Era tão escorregadia que não sabia onde assestar o golpe. E agora como faço para exterminar esta coisa? E que espécie de criatura diabólica é esta, afinal de contas?

Seria uma espécie de parasita que tivesse ficado aquele tempo todo alojado dentro de Nakata? Ou estaria na presença da alma do velhote? Não, isso não pode ser. Dizia-lhe a sua intuição que aquela coisa repugnante e asquerosa não podia de maneira nenhuma vir de dentro de Nakata. Até ele sabia isso. Provinha certamente de outro sítio qualquer e passou através do Nakata para ter acesso à entrada. Apareceu quando lhe deu na bolha, usando o corpo do velho Nakata como uma espécie de passagem a fim de atingir os seus intentos.

E eu não posso deixar que isso aconteça. Daí que tenha de a matar. Como disse o gato, «extermina-a com requintes de malvadez».

Hoshino aproximou-se de Nakata e espetou a faca naquilo que parecia ser a cabeça da criatura. Retirou a faca e voltou a desferir novo golpe, e outro e outro. Mas a lâmina encontrava pouca ou nenhuma resistência, apenas aquela sensação que se tem ao espetar uma faca num legume espapaçado. Por baixo da superfície exterior não havia carne firme, nem ossos. Nem órgãos, nem cérebro. Quando ele tirava a lâmina, o muco cobria de imediato a ferida. Dali não saía nem sangue nem líquido de espécie alguma. Não se sente nada, pensou Nakata. Podia espetar a faca as vezes que quisesse, com a raiva que quisesse, que aquela coisa continuava a sair de dentro da boca de Nakata, insensível aos golpes desferidos.

Hoshino atirou a faca para o chão e regressou à sala para ir buscar a outra faca, mais pesada e em forma de machado. Abateu-a contra aquela coisa branca vezes sem conta, procurando separar a cabeça do corpo, mas, tal como ele pensava, lá dentro não havia nada - a não ser a mesma substância mole e espapaçada que cobria o exterior. Investiu contra a pele exterior várias vezes, até conseguir finalmente danificar parte da cabeça, que se arrastou como um verme pelo chão durante um momento, antes de parar de se mexer, como se estivesse morta. Isso não teve, no entanto, qualquer efeito no resto do corpo, que continuou a gotejar e a avançar. O muco não tardava a cobrir a ferida, fazendo com que a coisa voltasse a ficar com o mesmo aspecto que tinha anteriormente. Sem nunca abrandar, impassível, continuava a sair de dentro do corpo do ancião.

Por fim, a criatura conseguiu ficar toda cá fora, dando a co­nhecer a sua verdadeira natureza. Media cerca de um metro, e tinha uma cauda, o que permitiu finalmente a Hoshino distinguir uma extremidade da outra. A cauda era como a da salamandra, curta e grossa, a ponta terminando abruptamente. Não possuía olhos, nem boca ou nariz. O que não havia dúvida é de que tinha vontade pró­pria. Não, pensou Hoshino, é mais como se a vontade própria fosse a essência da própria coisa. Nem precisou de se pôr para ali com grandes filosofias, soube-o instintivamente. Quando decide pôr as garras de fora, pensou ele, assume esta forma, mais nada. Sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha. Aconteça o que acontecer, tenho de matar esta coisa.

Em seguida experimentou com a machadinha, mas não surtiu efeito. Mal abria um golpe numa parte da criatura, logo a carne e o muco voltavam a cobrir a ferida por ele infligida. Foi buscar uma mesinha e desatou a bater com uma das pernas de madeira, mas nada fazia parar o inexorável avanço da criatura. Como uma espécie de serpente desajeitada, continuava a progredir, lenta e firmemente, em direcção ao quarto seguinte e à Pedra de Entrada.

Nunca na minha vida vi uma criatura deste género, foi obrigado a reconhecer Hoshino. Não existe arma que possa travar o seu avanço. Não tem um coração que possa ser esfaqueado, nem uma garganta que possa ser degolada. Toro disse que eu saberia reconhecê-la quando a visse, e diabos me levem se não tinha razão. Não posso deixar esta coisa com vida.

Hoshino regressou à cozinha a fim de procurar outro instrumento que pudesse usar como arma, mas em vão. E foi nesse momento que olhou para a pedra que jazia a seus pés. A Pedra de Entrada. É isso! Posso usá-la para esmagar a besta. À claridade fraca que se fazia sentir a pedra apresentava uma tonalidade mais avermelhada do que era costume. Inclinou-se e tentou levantá-la. Era terrivelmente pesada, e ele não foi capaz de a arredar um milímetro.

Estou a ver, é como se tivesses voltado outra vez a ser a Pedra de Entrada - alvitrou ele. - O que significa que, se eu acabar contigo antes de aquela coisa aqui chegar, ela não conseguirá os seus intentos.

Hoshino apelou a todas as suas forças para levantar a pedra, mas não foi capaz.

Não te mexes - disse ele, a arfar e respirando às golfadas. - Quer-me parecer que estás ainda mais pesada do que antes. Dás--me cabo dos tomates, sabias?

Atrás de si continuava o mesmo movimento rasteiro e roçagante. Sem apelo nem agravo, a coisa branca estava cada vez mais próxima. Já não tinha muito tempo.

Mais uma tentativa - exclamou Hoshino. Pousou as mãos na pedra, inspirou uma vez profundamente, enchendo os pulmões, e reteve o fôlego. Concentrou toda a sua energia num ponto e colocou ambas as mãos num dos lados da pedra. Se desta vez não a conseguisse erguer, não lhe seria dada nova oportunidade. - É agora, Hoshino! Ou vai ou racha! Nem que me mate, hei-de conseguir!

Fazendo uso de toda a força de que foi capaz, soltou um profundo gemido ao mesmo tempo que ganhava balanço. A pedra mexeu-se alguns centímetros. Então, ele chamou a si a energia que lhe restava e deitou mãos à obra, conseguindo levantá-la do chão.

Sentia a cabeça fraca e os músculos dos braços todos doridos. Parecia que alguém lhe havia dado um pontapé nos tomates. Mais alto é que ele não conseguia levantá-la. Hoshino pensou em Nakata. Como o velhote dera a vida a fim de abrir e fechar a pedra. Doesse a quem doesse, fosse de que maneira fosse, encarregar-se-ia de levar a missão até ao fim. Toro dissera-lhe que ele tinha de continuar o que o velho Nakata começara. Os seus músculos gritavam por sangue novo, os seus pulmões morriam com falta de ar, o ar que era vital para produzir esse sangue, mas a verdade é que não conseguia respirar. Sabia que estava tão próximo da morte quanto isso era possível, o abismo do nada abria-se diante dos seus olhos. Mas, ignorando tudo isto, reuniu todas as suas forças por uma última vez e aproximou a pedra de si. Ergueu-a mais, deixou-a cair e, com um estrondo violento, a pedra foi embater no chão virada ao contrário. O choque fez tremer o soalho e tinir a porta de vidro, tamanho era o seu peso.

Hoshino deixou-se ficar sentado, ofegante. «Conseguiste, Hoshino, fizeste um trabalho bem feito», disse ele para consigo mesmo, passados momentos.

Mal acabou de fechar a entrada, livrar-se da coisa branca revelou-se surpreendentemente simples. Tinha sido mortalmente atingida, e sabia disso. Interrompeu o avanço e começou a arrastar-se pelo quarto, à procura de um sítio onde se esconder, quem sabe se na esperança de deslizar novamente para dentro da boca de Nakata. Mas a verdade é que já não tinha forças para escapar. Hoshino perseguiu-a, cortando-a aos bocados com a machadinha. Os pedaços daí resultantes, cortou-os ele, por seu turno, em bocados mais pequenos. Esses restinhos ficaram a contorcer-se durante um tempo ali no chão, mas não tardaram a perder a força e a morrer, deixando a carpete coberta de um muco viscoso e brilhante. Hoshino tratou de reunir todos os bocados com a ajuda de um pano do pó, deitou tudo num saco do lixo, que fechou muito bem com um atilho, e depois colocou o saco dentro de outro saco, que também fechou muito bem. A seguir pôs tudo dentro de um saco de pano que em encontrou no armário da cozinha.

Completamente esgotado, deixou-se cair para o lado, levantando e baixando os ombros à medida que respirava fundo. Tinha as mãos a tremer. Queria abrir a boca e dizer qualquer coisa, mas não conseguia formar palavras.

Fizeste um trabalho bem feito, Hoshino - lá conseguiu ele articular minutos mais tarde.

Com todo o barulho produzido durante o ataque à criatura branca, e depois de ter arremessado a pedra daquela maneira, preo­cupava-o a ideia de as pessoas que viviam naquele prédio de apartamentos terem acordado e estarem naquele preciso momento a ligar o cento e doze. Felizmente, não se ouviam as sirenes da Polícia, nem havia ninguém a bater à porta. A última coisa que lhe fazia falta era ter a bófia a entrar por ali dentro.

Hoshino sabia que todos os pedaços e resquícios da criatura branca que enchiam os sacos de plástico muito bem fechados não voltariam a ganhar vida. Daqui já não saem mais, pensou ele. Ainda assim, não era má ideia tomar as suas precauções. Vai daí, decidiu que, mal o dia nascesse, iria até à praia e aí reduziria tudo a cinzas.

E assim que acabasse de fazer isso, regressaria a Nagoya. Voltaria para casa.

Por esta altura eram quase quatro da manhã, e o dia começava a clarear. Era tempo de se fazer à estrada. Hoshino enfiou a roupa dentro do saco, incluindo os óculos escuros e o boné dos Chunichi Dragons, não fosse o diabo tecê-las. Se a bófia lhe deitasse a mão antes de ele ter chegado ao fim da sua missão, deitaria tudo a per­der. Levou consigo uma garrafa de óleo de cozinha para fazer lume. Sem esquecer o seu CD do Trio Arquiduque, também ele atirado para dentro do saco.

Finalmente, dirigiu-se ao quarto onde Nakata jazia na cama. O ar condicionado continuava ligado no máximo, e o aposento estava um gelo.

Viva, meu velho amigo - disse ele -, estou quase a ir-me embora. Tenho muita pena, mas não posso ficar aqui eternamente. Quando chegar à estação telefono à Polícia e eles logo aparecem por aqui para se ocuparem do teu corpo. Resta-nos esperar que o assunto vá parar às mãos de um agente simpático, não é verdade? Nunca mais nos iremos ver, mas palavra que nunca te esquecerei. Mesmo que quisesse, não me parece que isso fosse possível.

Com um solavanco que fez um barulho enorme, o ar condi­cionado deixou de funcionar.

Sabes uma coisa, avozinho? - continuou ele. - A partir de agora, sempre que de futuro me acontecer alguma coisa, hei-de pensar sempre: «O que diria o Nakata nestas circunstâncias? O que faria o Nakata?» O que significa que terei sempre para quem me virar. E olha que isso não é coisa de somenos, se pensarmos bem. É como se uma parte de ti continuasse sempre viva em mim. Não que eu seja o melhor invólucro que pudesses escolher, mas sempre é melhor do que nada, não achas?

Mas a pessoa a quem ele assim se dirigia não era mais do que a carapaça de Nakata. A parte importante dele há muito partira rumo a outras paragens. E Hoshino compreendeu isso.

Viva, pedra! - exclamou ele, estendendo o braço para tocar na sua superfície. Voltara a ser uma pedra vulgar, igual a tantas outras, fresca e rugosa ao contacto com a mão. - Vou-me embora. Regresso a Nagoya e deixo-te a ti e a Nakata entregues à Polícia. Bem sei que deveria levar-te de volta para o santuário de onde vieste, mas a minha memória já não é o que era e confesso que não sei onde fica o santuário ao certo. Terás de me perdoar. Agora vê lá, não me lances nenhuma maldição nem coisa que o valha, está bem? Só fiz aquilo que o Coronel Sanders me mandou. Por isso, se tiveres de lançar uma maldição a alguém, que seja a ele. Assim como assim, fiquei contente por ter travado conhecimento contigo. Também a ti, nunca te esquecerei.

Hoshino calçou os seus ténis Nike com sola grossa e abandonou I apartamento, deixando a porta fechada apenas no trinco. Numa mão levava o saco com todos os seus pertences, na outra o saco com < orpo daquela coisa branca.

Meus senhores - disse ele, olhando fixamente para o Sol, que nascia a oriente. - É tempo de acender o meu fogo!

 

Na manhã seguinte, pouco depois das nove, oiço um carro a aproximar-se e vou até lá fora. É uma carrinha Datsun com tracção às quatro rodas, daquelas que têm uns pneus gigantescos e o habitáculo lá no cimo. Pelo aspecto, não deve ser lavada para aí há seis meses. Nas traseiras vêem-se duas compridas pranchas de surfe, bastante usadas. A carrinha pára defronte da cabana. Quando o motor é desligado, volta o silêncio. A porta abre-se e de lá de dentro desce um rapaz alto, com uma T-shirt branca dois tamanhos acima do dele e manchada de óleo que diz «No Fear», calções de caqui e ténis que já viram melhores dias. O tipo, que deve ter os seus trinta anos, é largo de ombros, está todo bronzeado por igual e tem uma barba de três dias. O cabelo, comprido, não deixa ver as orelhas. Imagino que seja o irmão mais velho de Oshima, o tal que é dono de uma loja de surfe em Kochi.

Viva - diz ele.

B'dia - respondo eu.

Ele estende-me a mão e cumprimentamo-nos no alpendre. Tem um aperto de mão vigoroso. Acertei. Trata-se, de facto, do irmão de Oshima.

Toda a gente me chama Sada - confidencia-me ele. Fala pausamente, pesando com cuidado cada palavra, como se a pressa não fosse nada com ele. Como se tivesse todo o tempo do mundo. -Recebi uma chamada de Takamatsu. Venho buscar-te para te levar de volta - explica. - Parece que aconteceu um negócio qualquer importante.

Um negócio qualquer importante?

Isso. Mas não sei nada do assunto.

Desculpe o trabalho todo que lhe dei.

Não tens nada que pedir desculpa - diz ele. - Consegues arrumar as coisas para irmos rapidamente embora?

Dê-me cinco minutos.

Enquanto trato de arrumar as minhas coisas na mochila, ele ajuda-me a deixar tudo em ordem dentro de casa, sempre a assobiar. Fecha a janela, corre as cortinas, verifica se o gás está desligado, reúne a comida que sobrou, dá um jeito, no lava-loiça. Só de olhar para ele, tenho a sensação de que a cabana representa um prolon­gamento da sua pessoa.

Parece que o meu irmão gosta de ti - disse Sada. - E olha que ele não gosta assim de tanta gente. Tem um feitio bastante difícil.

Comigo tem sido sempre impecável. Sada acena com a cabeça.

Quando quer, Oshima consegue ser muito simpático. Subo para o banco do passageiro e ponho a mochila aos pés. Sada liga a ignição, mete a mudança, debruça-se na janela para

deitar uma última espreitadela à cabana e arranca.

Esta cabana é uma das poucas coisas que nós os dois parti­lhamos como irmãos - diz ele enquanto conduz a viatura com muita habilidade e técnica pela montanha a baixo. - Quando nos dá na bolha, volta e meia vimos passar aqui uma temporada, os dois sozi­nhos. - Fica a pensar naquilo durante um bocado, depois continua. - Foi sempre um lugar importante nas nossas vidas, e ainda é. Como se aqui existisse alguma coisa que tivesse o condão de nos fazer recarregar baterias. Estás a seguir-me?

Acho que sim - respondo.

O meu irmão bem me disse que tu ias perceber - replica Sada. - As pessoas que não entendem à primeira, nunca lá chegam.

Os estofos desbotados dos assentos estão cobertos de pêlo branco de cão. O cheiro a cão mistura-se com o odor a maresia, mais a fragrância da cera para pranchas de surfe e o aroma dos cigarros. O botão para ligar o ar condicionado está estragado, o cinzeiro está cheio de beatas, a bolsa lateral da porta atulhada de cassetes, todas sem as respectivas caixas.

Fui uma ou duas vezes até à floresta - digo eu.

Afastaste-te muito?

Sim - respondo. - Oshima avisou-me para não o fazer.

Mas tu decidiste que querias ir na mesma.

Sim - digo.

Fiz precisamente o mesmo, em tempos. Há coisa de, sei lá, dez anos. - Fica calado durante um bocado, concentrado na condução. Estamos a fazer uma curva larga, os grossos pneus atirando a gravi­lha em todas as direcções. Volta e meia vê-se um ou outro corvo à beira da estrada. Não fogem de nós, limitam-se a olhar fixamente à nossa passagem, com se sentissem curiosidade.

Cruzaste-te com os soldados? - pergunta-me Sada despreo­cupadamente, como se quisesse saber as horas.

Refere-se aos dois soldados?

Esses mesmo - responde Sada, olhando de relance para mim. - Estou a ver que deves ter ido mesmo muito longe.

Pois foi.

Com as mãos pousadas ao de leve sobre o volante enquanto manobra a carrinha, não me dá troco, e a sua expressão também não me diz nada.

Sada? - pergunto eu.

Sim? - responde ele.

Quando encontrou os soldados, há dez anos, fez o quê?

Queres saber o que fiz quando encontrei os soldados? – repete ele.

Digo que sim com a cabeça e fico à espera da resposta. Ele olha de relance pelo espelho retrovisor, depois volta a olhar em frente.

Nunca contei isso a ninguém - confessa. - Nem sequer ao meu irmão. Irmão, irmã, chama-lhe o que quiseres. Por mim, pode ser irmão. Ele não sabe dos soldados.

Aceno com a cabeça e fico calado.

E duvido de que venha a falar disso a alguém. Nem sequer a ti. E também não acredito que consigas tocar no assunto com outra pessoa qualquer. Nem sequer comigo. Percebes o que quero dizer?

Acho que sim.

Explica-te.

Não é uma coisa que se possa traduzir em palavras. A verdadeira resposta é algo que está para lá de todas elas.

Aí tens - replica Sada. - Exactamente. Se não conseguimos exprimir uma coisa através de palavras, o melhor é nem sequer tentar.

Nem sequer connosco próprios?

Acho que sim - diz Sada. - Acho que o melhor é nem sequer tentar explicá-la, nem a nós próprios.

Oferece-me uma tira de pastilha com sabor a mentol. Aceito uma e começo a mastigar.

Alguma vez fizeste surfe? - pergunta ele.

Não.

Quando tiveres tempo, ensino-te - diz ele. - Quer dizer, isto se estiveres interessado em aprender. Há umas ondas porreiras ao longo da costa de Kochi, e a praia não está cheia de surfistas. O surfe é um género de desporto mais profundo do que parece. Quando fazes surfe aprendes a não lutar contra as forças da natureza, por mais violentas que seja e mesmo que se virem contra ti.

Tira um cigarro do bolso da T-shirt, põe-o na boca e acende-o com o isqueiro do carro.

Essa é outra coisa que as palavras não conseguem explicar. Uma daquelas coisas a que não consegues responder com um sim­ples «sim» ou «não». - Semicerra os olhos, até se reduzirem a duas fendas, e sopra o fumo pela janela. - No Havai - prossegue -, existe um local chamada o Toilet Bowl.1 Aí é possível encontrar ondas gigantescas porque é nesse ponto que as marés se encontram e chocam umas contra as outras. As águas formam uma espécie de turbilhão, como acontece quando puxas o autoclismo. Se fores apanhado no meio desse turbilhão, és arrastado para debaixo de água e torna-se difícil vires ao de cima. Dependendo das ondas, podes nunca conseguir voltar à superfície. E não tens outro remédio senão ficar ali, debaixo de água. Não te serve de nada debateres-te nem desatares a dar aos braços. Pelo contrário. Tens é de reunir toda a tua energia. Nunca liveste tanto medo em toda a tua vida. Mas, se não o conseguires ultrapassar, nunca serás um verdadeiro surfista. Tens de encarar a morte de frente, saber qual é o aspecto dela, antes de conseguires vencer o teu medo. Quando estás lá no fundo, apanhado no meio do vórlice, começas a pensar em todas as coisas possíveis e imagináveis.

Em última instância, é como se fizesses amizade com a morte e, por assim dizer, tivesses uma conversa franca com ela.

Ao chegar ao portão, Sada sai da carrinha e vai fechá-lo, dando duas ou três voltas à corrente para se certificar de que aguenta.

Depois disto não continuamos a conversa. Ele liga o rádio numa estação FM, mas não sei dizer se está ou não a ouvir. Ter o rádio ligado é apenas um gesto meramente simbólico. Mesmo quando atravessamos o túnel e só conseguimos ouvir o ruído da estática, isso não parece incomodá-lo. Com o ar condicionado ava­riado, ele deixa as janelas abertas mesmo quando entramos na auto--estrada.

Se alguma vez tiveres vontade de aprender a surfar, já sabes, vem ter comigo - diz Sada quando o Mar Interior fica à vista. - Tenho um quarto a mais, podes ficar o tempo que quiseres.

Obrigado - digo eu. - Qualquer dia apareço. Só não sei bem quando.

Estás muito ocupado?

Tenho uns quantos assuntos para pôr em ordem.

Também eu. Nem me fales nisso - diz Sada.

Durante um grande bocado seguimos os dois calados. Ele a pensar nos seus problemas. Eu a pensar nos meus. Ele não tira os olhos da estrada e a mão esquerda do volante. De vez em quando fuma um cigarro. Ao contrário de Oshima, não anda a duzentos à hora. Com o cotovelo apoiado na janela aberta, conduz a uma velocidade média. As únicas vezes em que ultrapassa outros carros é quando eles vão devagar de mais. Nessa altura, acelera, ultrapassa quase por favor, e depois volta à sua faixa.

É surfista há muito tempo? - pergunto-lhe eu.

Hmm - murmura ele - e depois remete-se ao silêncio. - Por fim, quando eu já quase me tinha esquecido da pergunta, volta à carga. - Ando metido no surfe desde os tempos da escola secundária. Nessa altura era só pelo gozo. Só comecei nisto a sério há para aí uns seis anos. Na altura trabalhava numa grande agência de publicidade em Tóquio. Estava tão farto daquilo que resolvi desistir, mudei-me para aqui e comecei a surfar. Fiz um empréstimo, pedi algum aos meus pais e abri uma loja de surfe. Como sou só eu, posso dar-me ao luxo de fazer o que quero.

Estava com vontade de regressar a Shikoku?

Também - diz ele. - Não sei explicar, mas só me sinto no meu elemento quando tenho o mar e as montanhas por perto. Em certa medida, as pessoas são um produto do sítio onde nascem e são criadas. A maneira de pensar e de sentir fica para sempre ligada ao traçado da terra, à temperatura que se faz sentir. Até mesmo aos ventos dominantes. Onde nasceste?

Tóquio. Em Nogata, no bairro de Nakano.

E é para lá que queres voltar? Abano a cabeça.

Não.

Porque não?

Não existe nenhuma razão que me faça querer regressar.

Estou a ver - diz ele.

Não estou muito a par do traçado da terra, dos ventos dominantes e assim - digo eu.

Entendo - diz ele. Voltamos a ficar os dois calados.

O silêncio não parece incomodá-lo minimamente. A mim também não. A mente vazia, limito-me a ficar ali sentado, a escutar a música do rádio. No que lhe diz respeito, Sada olha o tempo todo para a estrada. Às tantas, lá saímos da auto-estrada e viramos para norte, rumo à periferia de Takamatsu.

Falta pouco para a uma da tarde quando chegamos à Biblioteca Komura. Sada deixa-me ficar em frente ao portão, mas não sai do carro. Com o motor sempre a trabalhar, prepara-se para regressar de imediato a Kochi.

Obrigado por tudo - digo eu.

Espero que nos voltemos a encontrar em breve - diz ele. Põe a mão de fora da janela, faz um breve adeus e depois faz guinchar OS grossos pneus. De volta às suas grandes ondas, ao seu próprio mundo, aos seus próprios problemas.

Ponho a mochila às costas e passo o portão. Respiro o cheiro ila leiva acabada de cortar no jardim. Parece que estive vários meses loi.i, mas afinal de contas foram só quatro dias.

Oshima está sentado atrás do balcão, de gravata, coisa que nunca lhe vi anlos. Vesle uma camisa branca abotoada de cima a baixo, e uma gravata amarelo-mostarda com riscas verdes. Tem as mangas arregaçadas até aos cotovelos e está sem casaco. À frente dele, para não variar, vê-se uma chávena de café e dois lápis com­pridos e afiados.

Viva - lança Oshima, com o sorriso do costume.

Viva - cumprimento-o eu.

Devo concluir que apanhaste boleia do meu irmão?

Acertou.

Aposto que ele não se mostrou muito falador - diz Oshima.

Para ser franco, até conversámos um bocado.

Tiveste sorte. Depende das pessoas com quem está, naturalmente, mas às vezes mal abre a boca.

E por aqui aconteceu alguma coisa? - pergunto. - Ele disse--me que era uma coisa urgente.

Oshima acena com a cabeça.

Há duas ou três coisas que precisas de ficar a saber. Primeiro que tudo, a Saeki-san teve um ataque de coração e morreu. Fui dar com ela sem vida, sentada à secretária, na terça-feira à tarde. Foi de repente, e não me parece que tenha sofrido.

Pouso as minhas coisas no chão e sento-me numa cadeira.

Terça-feira à tarde? - pergunto. - Hoje é sexta, não é?

Exactamente. Ela morreu logo a seguir à visita guiada. Se calhar eu devia ter entrado em contacto contigo mais cedo, mas a verdade é que na altura fiquei sem conseguir pensar como deve ser.

Afundado na cadeira, parece que não me consigo mexer. Ficamos ambos em silêncio durante muito tempo. Donde estou vejo as escadas que levam ao primeiro andar, o corrimão preto polido na perfeição, o vitral no patamar. Aquelas escadas sempre tiveram um significado especial para mim, uma vez que me conduziam até junto dela, à Saeki-san. Mas agora não passam de escadas vazias, sem significado algum. Ela já não lá não está.

Como te disse antes, penso que isto tinha de acontecer -afirma Oshima. - Eu sabia disso, e ela também. O que não impede, claro está, que seja muito difícil lidar com a situação quando as coisas acontecem.

Quando ele faz uma pausa no seu discurso, sinto-me na obrigação de dizer qualquer coisa, mas as palavras não me saem.

Respeitando as suas últimas vontades, não houve funeral -prossegue Oshima. - Foi cremada, num ambiente de grande tran­quilidade, sem grandes alaridos. Deixou ficar o testamento numa gaveta da secretária, lá em cima no escritório. Legou todos os seus bens à fundação que administra a biblioteca. A Mont Blanc ficou para mim, em jeito de recordação. Para ti é um quadro. Aquele com o rapaz à beira-mar. Vais levá-lo contigo, não é verdade?

Faço um gesto de assentimento. -Já está embrulhado, é só levá-lo.

Obrigado - digo, quando finalmente consigo falar.

Diz-me uma coisa, Kafka Tamura - pede Oshima. Pega num lápis e fá-lo girar entre os dedos, como é seu costume. - lmportas-te que te faça uma pergunta?

Aceno com a cabeça.

Não foi preciso eu dizer-te que ela tinha morrido, pois não? Já sabias.

Volto a acenar afirmativamente.

Creio que sim.

Bem me pareceu - diz Oshima, soltando um profundo suspiro. - Queres água ou assim? Para dizer a verdade, pareces seco como um deserto.

Obrigado, sabia-me bem. - Estou a morrer de sede, mas só me dei conta disso quando ele mencionou o facto.

Bebo a água gelada que ele me foi buscar de um trago, tão depressa que fico com a cabeça a latejar. Pouso o copo vazio em cima do balcão.

Mais?

Digo que não com a cabeça.

E agora, quais são os teus planos? - quer saber Oshima.

Vou voltar para Tóquio - anuncio eu.

Para fazer o quê?

Primeiro que tudo, vou à Polícia e digo-lhes tudo o que sei. Se não o fizer, vão andar a vida inteira atrás de mim. A seguir, o mais provável é voltar à escola. Não que me esteja a apetecer assim muito, mas pelo menos tenho de ver se acabo o secundário. São só mais uns meses, até às provas finais, depois já posso fazer o que quiser.

Faz sentido - diz Oshima. Semicerra os olhos e olha para mim. - É o melhor que tens a fazer.

583


Cada vez me convenço mais de que é este o caminho que devo tomar.

Podes fugir mas não te podes esconder?

Acho que é mais ou menos isso - digo eu.

Cresceste.

Abano a cabeça. Não consigo dizer uma palavra.

Oshima bate ao de leve com a ponta da borracha do lápis na testa, uma vez e outra vez e outra vez. O telefone toca, mas ele ignora o toque.

Todos nós perdemos coisas a que damos valor - diz ele depois de o telefone ter parado de tocar. - Oportunidades perdidas, possibilidades goradas, sentimentos que nunca mais voltaremos a viver. Faz parte da vida. Mas dentro da nossa cabeça, pelo menos é aí que eu imagino que tudo aconteça, existe um quartinho onde arma­zenamos todas essas recordações. E a fim de compreendermos os mecanismos do nosso próprio coração temos de ir sempre dando entrada a novas fichas, como aqui fazemos. Volta e meia precisamos de limpar o pó às coisas, deixar entrar o ar, mudar a água das plantas. Por outras palavras, cada um vive para sempre fechado dentro da sua própria biblioteca.

Fico a olhar para o lápis na mão de Oshima. E ao olhar para ele invade-me uma profunda tristeza. Mas tenho de continuar a ser o rapaz de quinze anos mais forte, nem que seja só durante mais algum tempo. Ou, pelo menos, fingir que sou. Respiro fundo, encho os pulmões de ar o mais que posso e esforço-me por deitar cá para fora os sentimentos em ebulição.

Posso voltar qualquer dia? - pergunto.

Claro que podes. - Oshima pousa o lápis em cima do balcão, cruza as mãos atrás da cabeça e olha de frente para mim. - Dizem que sou eu que vou ficar à frente da biblioteca nestes tempos mais próximos. Se calhar precisarei de um assistente. Assim que estiveres despachado dos assuntos que tens a tratar com a Polícia, na escola e o diabo a sete, quando ficares livre e se tiveres prazer nisso, gostaria muito que voltasses. Por enquanto, nem a cidade nem eu vamos a parte alguma. Todas as pessoas precisam de um lugar onde possam pertencer.

Obrigado - digo eu.

Não tens de quê - diz ele.

O seu irmão disse que me ensinava a fazer surfe. -Acho óptimo. Ele não engraça com todas as pessoas   aíirmu

ele. - Tem um feitio um bocado difícil.

Aceno com a cabeça e sorrio. No fundo, são muito parecidos, estes dois irmãos.

Kafka - diz Oshima, olhando-me bem nos olhos. - Corrige--me se estiver enganado, mas creio que esta foi a primeira vez que te vi sorrir.

Se calhar tem razão - digo eu. Estou realmente a sorrir, é um facto. E a corar.

Quando regressas a Tóquio?

Agora mesmo, acho eu.

Não queres esperar até à noite? Posso levar-te de carro até à estação depois de fecharmos.

Considero essa hipótese.

Obrigado. Mas penso que o melhor a fazer é ir-me já embora.

Oshima concorda com a cabeça. Vai lá dentro e vem carre­gado com um quadro muito bem empacotado. Traz também uma cópia do disco Kafka à Beira-Mar dentro de um saco e passa-mo para a mão.

Um presentinho meu.

Obrigado - digo. - Não há problema se eu subir até lá acima e for espreitar o escritório da Saeki-san uma vez mais?

Naturalmente. Vai à vontade.

Quer vir comigo?

Claro que sim.

Subimos até ao gabinete dela. Fico de pé, diante da secretária, toco ao de leve no tampo e penso em todas as coisas que deve ter absorvido ao longo do tempo. Imagino o rosto dela debruçado sobre a secretária. Como costumava ficar ali sentada, com a janela por trás, sempre ocupada a escrever. Revejo-me a mim, com o café na mão e ela a olhar para mim quando eu abria a porta e perguntava se podia entrar. Como ela tinha sempre um sorriso para mim.

O que costumava a Saeki-san escrever aqui?

Não sei - responde Oshima. - A única coisa que sei de certeza absoluta é que levou com ela todos os segredos ao partir deste mundo.

E uma quantidade de teorias, também, digo para comigo mesmo.

A janela está aberta, a brisa de Junho agita a bainha das brancas cortinas de renda. No ar paira o leve perfume do mar. Lembro-me de sentir a areia na minha mão, na praia. Afasto-me da secretária, aproximo-me de Oshima e abraço-o com força. O seu corpo magro traz-me à memória toda a espécie de recordações nostálgicas.

Ele acaricia suavemente o meu cabelo.

O mundo é uma metáfora, Kafka Tamura - diz-me ao ouvido. - Mas, tanto para ti como para mim, esta biblioteca não representa uma metáfora. É, será sempre, a biblioteca. Quero deixar isso bem claro entre nós.

Claro que sim - digo eu.

É uma biblioteca única, um sítio diferente, especial. E nunca nada poderá ocupar o lugar dela.

Concordo com a cabeça.

Adeus, Kafka - diz Oshima.

Adeus, Oshima - digo eu. - Sabes uma coisa, ficas muito elegante com essa gravata.

Ele despede-se de mim, olha-me nos olhos e sorri.

Tenho estado à espera que dissesses isso.

Ponho a mochila às costas, vou até à estação e apanho o comboio de volta para Takamatsu, onde compro um bilhete para Tóquio. O comboio só lá chega à noite, quando já for muito tarde, por isso a primeira coisa a fazer é arranjar um sítio para passar a noite, antes de regressar à minha casa, em Nogata. Voltarei a ficar sozinho naquela grande casarão vazio, onde não está ninguém à minha espera. Mas a verdade é que não tenho outro lugar para onde possa ir.

Uso um telefone público e ligo para o telemóvel de Sakura. Está cheia de trabalho, mas diz que arranja uns minutinhos para falarmos. Pela parte que me toca, não preciso de mais.

Volto para Tóquio - digo-lhe eu. - Estou na estação de Takamatsu. Queria que soubesses.

Então quer dizer que já desististe de fugir de casa?

Acho que sim.

Afinal de contas, quinze anos é um bocado cedo para fugir, não? - diz ela. - E agora, que vais fazer em Tóquio?

Regressar às aulas.

Assim à partida, não me parece má ideia - diz ela.

Também voltas para Tóquio?

Sim, o mais tardar em Setembro. Se calhar no Verão vou dar uma volta por aí.

Podemos encontrar-nos em Tóquio?

Claro que sim - diz ela. - Não me queres dar o teu telefone? Dou-lhe o número de minha casa, e ela toma nota.

No outro dia sonhei contigo - diz ela.

Eu também sonhei contigo.

Um daqueles sonhos escaldantes, com muito sexo, quase aposto.

Se calhar - admito. - Vendo bem, era apenas um sonho. E o teu, já agora?

O meu não era nada disso. Estavas numa casa enorme, que parecia um labirinto, e andavas por ali às voltas, a tentar encontrar um quarto que tinha um significado especial, mas não davas com ele. Havia mais alguém em casa, à tua procura. Tentei avisar-te, mas a minha voz não chegou aos teus ouvidos. Um sonho verdadeiramente assustador. Quando acordei estava cansada de tanto gritar. Desde esse dia que ando preocupada contigo.

Obrigado pela preocupação - digo eu. - Mas também não passou de um sonho.

Não te aconteceu nada de mal?

Não, nada de mal.

Não, nada de mal, oiço-me dizer.

Adeus, Kafka - despede-se ela. - Tenho de voltar ao traba­lho. Se quiseres, já sabes, liga-me, está bem?

Adeus - digo eu. - Minha irmã - acrescento.

 

Atravessamos a ponte sobre as águas e eu apanho o comboio--balana estação de Okayama. Afundo-me no assento e fecho os olhos. Deixo o meu corpo adaptar-se aos poucos à vibração do comboio. A meus pés viaja, muito bem empacotado, Kafka à Beira--Mar. Sinto o quadro durante todo o tempo que dura a viagem.

«Gostaria que não te esquecesses de mim», disse a Saeki-san, olhando-me nos olhos. «Se te lembrares sempre de mim, não me importo que toda a gente me esqueça.»

Sentes o peso do tempo como um velho sonho ambíguo. Continuas sempre em movimento, tentando arranjar maneira de te esquivares. Porém, mesmo que vás até aos confins do mundo não lograrás escapar-lhe. Mesmo assim, não tens outro remédio senão seguir sempre em frente, até esse fim do mundo. Há algo que não se consegue fazer, sem lá chegar.

Começa a chover quando saímos de Nagoya. Contemplo as gotas de chuva, que deixam uma linha ao baterem de encontro ao vidro escuro. Também chovia no dia em que saí de Tóquio. Imagino a chuva a cair em todos os lugares possíveis e imagináveis - numa floresta, no mar, na auto-estrada, numa biblioteca. Imagino a chuva a cair no fim do mundo.

Fecho os olhos e sinto os músculos a descontraírem-se e o corpo a relaxar-se. Apuro o ouvido e escuto o monocórdico som do comboio. Sem querer, solto uma lágrima quente. Escapa-se através das pálpe­bras, escorre pela cara a baixo até chegar à boca, depois seca, pas­sado um bocadinho de nada. Não interessa, digo para comigo mesmo. É só uma lágrima. Nem sequer cai como se fosse minha, mais parece uma gota da chuva que cai lá fora.

Será que fiz o que estava certo?

«Fizeste o que estava certo», diz o rapaz chamado Corvo. «Fizeste o que era melhor. Ninguém o poderia ter feito tão bem como tu. Afinal de contas, és tu o verdadeiro artigo, o artigo genuíno: o rapaz de quinze anos mais forte do mundo.»

«Mas ainda não sei nada da vida», protesto eu.

«Olha para o quadro», diz ele. «E escuta o vento.»

Faço que sim com a cabeça.

«Sei que vais conseguir.»

Volto a dizer que sim com a cabeça.

588

«É melhor dormires um bocadinho», diz-me o rapaz chamado Corvo. «Quando acordares, já farás parte de um mundo novo em folha.

As tantas, acabas por adormecer. E, quando acordas, tornou-se realidade.

Fazes parte de um mundo novo. 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

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