Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
K A L K I
Por onde começar?
Já faz uma semana que escrevi essa primeira frase.
Estou sentada à grande mesa da Sala do Gabinete, na Casa Branca. Pediram-me para apresentar minha versão do que ocorreu. Além disso, solicitaram-me também que abrisse mão do melhor e mais íntimo amigo do historiador: a percepção posterior dos fatos. Isso não vai ser fácil.
Faz alguns minutos que estou olhando pela janela. Estamos no final do outono. As folhas castanhas caem das árvores. Um ano atrás eu me encontrava em Los Angeles, totalmente falida. Dura. Agora, trabalho na Casa Branca. Será a história de um sucesso?
Tentemos novamente...
Ao lado da máquina de escrever está um diário. Na verdade, uma caderneta de anotações. Levo-a comigo em todos os vôos, desde que recebi o Troféu Internacional Harmon por minhas contribuições em favor da aviação mundial. A primeira mulher agraciada com o troféu foi Jacqueline Cochran, na década de 50. Era casada com um milionário que financiava seu entusiasmo pela aviação. Eu não tinha apoio financeiro.
Nas páginas finais da caderneta, costumo escrever frases, opiniões que me chamam a atenção. Embora seja formada em engenharia pela Universidade do Sul da Califórnia, turma de 64, sempre me interessei muito pelo que costumavam chamar de "humanidades", as ciências humanas — em contraposição às desumanidades da ciência e das máquinas. Há um ano, em setembro, decidi recomeçar a vida. Voltar à universidade. Escrever minha tese de doutoramento — sobre Pascal. Muitas mulheres da minha idade estão passando pelo mesmo tipo de crises.
Operação Última Oportunidade. Certa tarde, fui à use e fiquei por algum tempo numa comprida fila para fazer a inscrição. Embora não aparentasse meus trinta e quatro anos, também não parecia uma adolescente. Quando me encontrava a pouco mais de um metro do balcão de atendimento, fugi correndo. Meu nariz começara a sangrar.
Sempre desejei saber tudo. Ser tudo. Doutora não apenas em uma, mas em ambas as culturas. À vontade com Ronsard. À vontade com Heisenberg. Não obstante, quando "escrevi" meu livro, este foi redigido por Herman V. Weiss, um escritor assalariado. Na opinião do editor, eu não estava à vontade com a musa. E ainda não estou.
Eis uma citação de Horácio: "Nascido sob a influência maligna da mudança".
Gosto da frase. Não sei a quem ou a quê Horácio se referia, mas a frase certamente define o estado do mundo nestes últimos doze meses.
Outra citação. Desta feita, de Diderot. Prefiro-o a Voltaire. "O primeiro passo em direção à filosofia é a incredulidade." Sob a citação, escrevi: "Últimas palavras". De quem? De Diderot? Já me esqueci. Entretanto, tais palavras — primeiras ou últimas — descrevem meu estado de espírito no decorrer desses doze meses. Na verdade, se a incredulidade pode ser medida em termos de passos, eu estava usando botas de sete léguas naquela tarde de fevereiro, quando encontrei Morgan Davies à beira da piscina do Beverly Hills Hotel.
Pronto! Consegui. Encontrei um ponto por onde começar.
Todavia, antes de mais nada, quem é Morgan Davies? Depois, quem sou eu? Como costumava dizer-me H. V. Weiss, estruturalista e mestre em clichês: "É preciso inserir o leitor no contexto, Teddy. Colocá-lo no lugar do autor".
Para colocar-se em meu lugar ou usar minhas botas de sete léguas no ano passado, é preciso ser Theodora Hecht Ottinger, conhecida por Teddy, com trinta e quatro anos de idade, pilota de prova, nascida em San Diego, formada em engenharia pela Universidade do Sul da Califórnia, detentora do Troféu Internacional Harmon, quebradora de recordes e destruidora da vaidade dos homens (se alguém der ouvidos a algum de meus invejosos colegas do sexo oposto), e autora — de parceria com H. V. W. — do best seller Além da maternidade (título nojento), um relato franco de minha vida e atribulações como aviadora, mulher, mãe e pretensa sabe-tudo. A despeito do estilo superexcitado de H. V. W., o livro causou grande impacto. Muitas mulheres admiraram a maneira pela qual eu me afastara deliberadamente do rumo ou cilada bio-reprodutiva que a natureza criara para mim e a que eu servira fielmente dando à luz duas crianças. Gozando de perfeita saúde e com o máximo de publicidade, eu me submetera, na Clínica Marie Stopes, de Daly City, a uma salpingectomia parcial bilateral, mais conhecida como "cirurgia band-aid". Fizeram-me duas pequenas incisões na região pélvica, cauterizando-me as trompas, e fiquei literalmente "além da maternidade". Tornei-me membro de uma nova categoria. Pelo menos para mim. Infelizmente, continuei a ser uma mulher num mundo de homens e a batalha prosseguiu.
Durante dois anos fui uma celebridade. Apareci em todos os programas importantes de rádio e televisão nos Estados Unidos e no Canadá. Jamais discutia moda, cardápios ou a Sra. Onassis. Falava de superpopulação, do orçamento do Ministério da Defesa, de aviação. Da magia da aviação. (Eu desejava intitular o livro Desafio à gravidade, mas Morgan Davies, meu editor, recusou a idéia.) Só me sinto viva em frente aos controles de um avião. Mas gosto de desenho, de engenharia. Em 1968, testei o Lockheed 1 011. Persuadi a Boeing a abandonar o avião de geometria variável (ou de asas de ângulo variável) em favor do aeroplano de asas e leme fixos, em forma de delta. Então, veio o Troféu Internacional Harmon. As feministas detestam a palavra "aviadora". Eu a adoro.
Há dezoito meses, o pano baixou, como diria H. V. W., marcando o final de minha representação. Apareci no programa Merv Griffin Show. Alguém mencionou Indira Gandhi. Declarei que a julgava a mulher mais importante de nossos tempos. Recebi inúmeras cartas indignadas. Os exemplares de Além da maternidade ficaram encalhados. Deixei de ser convidada para programas de televisão e até mesmo de rádio. Mas não me arrependi. Achava que a campanha desenvolvida pela Sra. Gandhi a fim de esterilizar os homens da índia era o ato mais corajoso e extraordinário de qualquer figura política — até o aparecimento em cena da pessoa para a qual estou trabalhando aqui na Casa Branca.
Estarei conseguindo comunicar-me através destas linhas? Será que o leitor consegue ver e escutar Teddy Ottinger? Espero que sim, pois não consigo ver o leitor, por mais que deseje fazê-lo. Por razões que em breve se tornarão bastante óbvias.
Mais uma frase tirada da caderneta: "Qui veut faire l'ange fait la bête". Pascal. Será correto? Espero que não. Afinal, não pretendia fazer de mim — ou de qualquer outra pessoa — um anjo e, muito menos ainda, um animal. Desejava apenas existir. Atuar. Ser aceita da mesma forma que um homem com a minha capacidade é aceito. A julgar pela minha caderneta, li muito Pascal na década de 60. Suponho que ler Pascal foi uma medida profilática em relação à contracultura. A propósito, é estranho que a filha de dois cientistas-cristãos praticantes pudesse sentir- se tão atraída por um místico cristão.
Sou considerada bonita. A despeito dos cabelos e olhos escuros, pareço-me com Amélia Earhart, meu ídolo. Meu pai estudou com Amélia na use. Apaixonou-se por ela. Acompanhou-a até Boston, quando ela se dedicava a obras assistenciais na Denison House. Amélia o rejeitou delicadamente. Tornou-se famosa no mundo inteiro. Desapareceu quando sobrevoava o Pacífico, em 1937, sete anos antes de meu nascimento. Sempre desejei ser como ela. Amélia usava roupas masculinas. Eu também uso. Após ter ganho o Troféu Internacional Harmon (é a terceira vez que menciono o prêmio — será que sou tão vaidosa, como um homem?), começou a correr nos círculos da aviação o boato de que eu era lésbica. Minha resposta ao boato foi Além da maternidade. Em doze páginas furiosas, tomei o rumo bissexual, tal como Joan Baez, Kate Millett, Susan Sontag e outras celebridades da época. De maneira discreta, contei tudo. Em conseqüência, meu marido, Earl Ottinger Jr., não só se divorciou de mim como também conseguiu a posse e guarda das crianças. Descobri que muitos homens me detestavam. A maioria das mulheres me admirava, mas guardava distância.
Por que estou criando uma falsa impressão?
A verdade é que desde os tempos de ginásio resolvi tornar-me a maior aviadora do mundo. Sentia-me fascinada por Amélia Earhart. Colecionava fotografias dela. Lia tudo o que conseguia encontrar a seu respeito. Depois de muito esforço num mundo essencialmente masculino, realizei meu desejo. Era a melhor pilota do mundo. Além disso, era um osso duro de roer. Mas eu era um anacronismo. Numa era de automatização quase total, uma pilota como Amélia, como eu (até mesmo como a rica Sra. Odlum), é supérflua. Não obstante, por haver algo tão arcaico no fato de ser aviadora nas décadas de 60 e 70, muita gente se interessava por mim, especialmente homens que me admiravam mas se mantinham a distância e mulheres que me detestavam.
Enquanto escrevo, estou usando um cinto que Amélia deu a meu pai há quarenta anos. É estreito, quadriculado em azul e branco. Eu poderia ter amado Amélia, mas o destino nos pregou uma peça. Quando nasci ela já estava morta. Estranhamente, julgo que Amélia morreu naquele acidente de avião por nós duas. Creio que é por esse motivo que jamais tive medo de morrer num avião.
A mudança não é algo necessariamente maléfico. Apesar disso, ao caminhar para a piscina do Beverly Hills Hotel, estava consciente de que as coisas pareciam estar mudando para mim, para pior. Estava na lona. Devia dois meses de pensão alimentícia. Sim, era eu quem pagava a pensão alimentícia das crianças. Num impulso de nobreza, insistira em exercer esse altivo direito. Conseqüentemente me transformaram em heroína nacional por mais de uma semana — para os homens. As mulheres me escreveram cartas horríveis. Aparentemente, eu não era uma gatinha.
Quem era Morgan Davies? Morgan Davies trabalhava para Clay Felker. Quem era Clay Felker? Publicava várias revistas em Nova York e Los Angeles. Vários trechos de Além da ma¬ternidade foram publicados numa dessas revistas. Morgan era também aquele que introduzira H. V. Weiss em minha vida. Quando Clay Felker perdeu o controle acionário de suas publicações para um australiano (um assunto de infindável interesse apenas para a imprensa), Morgan Davies tornou-se editor-gerente do National Sun, um pasquim sensacionalista destinado a corromper moralmente as pessoas de QI mais baixo. Encontrei-me com Morgan algumas vezes, mas nada mais que isso. Ele era gordo demais. Além disso, tinha dificuldades respiratórias. Dizia que era asma, mas era obviamente um caso de enfisema causado por excesso de fumo. Detesto a proximidade de fumantes. Durante o período em que Morgan e eu precisamos um do outro, demo-nos muito bem. Agora, tudo indicava que ele estava novamente precisando de mim. Pedira-me que fosse encontrá-lo "imediatamente".
Ao estilo de H. V. W., pensei com meus botões que "a cavalo dado não se olham os dentes". Verifiquei que me ressentia contra o pessoal que tomava banho de sol à beira da piscina do Beverly Hills Hotel. Todos pareciam muito satisfeitos por estarem ali. Merv Griffin se encontrava sob uma das barracas. Saudou-me:
— Olá, Teddy!
Refleti que sua cortesia era realmente de espantar. Afinal, toda aquela encrenca a respeito de Indira Gandhi não devia ter agradado a seus diversos patrocinadores.
Sentei-me numa espreguiçadeira ao lado de Morgan, que usava calções de banho de tecido estampado com flores. Estava falando ao telefone — algo que sabia fazer muito bem. O louro sueco ou norueguês que tomava conta da piscina cumprimentou-me:
— Como vai, Sra. Ottinger? Faz tempo que não aparece por aqui!
— Estava testando aviões — respondi.
Em Hollywood, era sempre necessário mostrar às pessoas que ainda éramos solicitados para a atividade pela qual nos havíamos tornado famosos. Ninguém podia fracassar num raio de dois quilômetros da piscina do Beverly Hills Hotel. Se alguém fracassasse, o maremoto resultante afogaria os convidados.
— A Califórnia está tão chata! — comentou Morgan.
Em seguida, meneou a cabeça em sinal de aprovação. Eu estava usando meu blusão de pilota de prova com a inscrição "TEDDY OTTINGER", em tecido fluorescente, nas costas. Pouco elegante, mas muito útil para fornecer um logotipo prontamente reconhecível. Eu era uma mercadoria. Estava à venda. Estava também na prateleira.
Morgan tirou do colo o Sunday New York Times (o que significa que nos encontramos numa tarde de domingo. Tenho de estabelecer a data exata daquele que se transformaria, literalmente, num encontro histórico). Deixou o jornal cair no chão, ao lado da cadeira — plop... plop... plop... —, caderno por caderno.
— O que esteve fazendo, Teddy?
Então, interrompeu-se e — num velho costume irritante — repetiu s quilo que me ouvira dizer ao encarregado da piscina:
— Você disse que estava testando aviões.
— Exato, Morgan.
O sol estava quente e tirei o blusão. Fiquei satisfeita ao perceber que ele tentava não olhar para minha blusa. Meus seios eram... ou melhor, são... famosos. Após três anos de ioga, remodelei meu corpo. À imagem de...? Quem sabe? Cada um de nós é muitas pessoas fundidas em... ninguém?
— Acho que testar aviões ainda é um bom negócio — disse Morgan. — As novas verbas para fins militares...
— Está enganado — interrompi, dizendo a verdade, embora a contragosto. — No que diz respeito ao Ministério da Defesa, tudo continua sem homens — e sem mulheres — no comando. Controle remoto. Temos os MIRV. Temos os MARV. Temos os mísseis CRUISE e, agora, os M-X. Excetuando o B-l, não existe coisa alguma que requeira carne e osso, cérebro... enfim, eu. Portanto, tudo o que posso fazer é testar os aviões velhos de todas essas companhias aéreas que estão às portas da falência.
Sem querer dizer coisa alguma, eu falara demais.
Por cima das esguias e pouco viçosas palmeiras que orlavam a piscina, avistei as trilhas deixadas por meia dúzia de aviões a jato no céu pardacento de Los Angeles. Sabia que os motores a jato queimavam o ozônio das alturas. Não obstante, gostava deles.
— É uma pena — disse Morgan, evidentemente satisfeito por saber que as coisas não andavam muito bem para mim.
Observei o suor escorrer-lhe pelo peito gordo, coberto de cabelos ralos e grisalhos. Os bicos das mamas eram voltados para dentro, como se fossem tímidos. Começou a ofegar asmaticamente e, à guisa de remédio, inalou uma nuvem de fumaça do cigarro. Tossiu e disse:
— O que houve com aquele filme que você ia estrelar, a respeito da tal... como é mesmo o nome dela?
— Amélia Earhart. Foi adiado. Houve um problema com o roteiro.
O problema com o roteiro se chamava Shirley MacLaine, a qual afirmara que ela iria fazer seu próprio filme sobre a vida de Amélia. Minha amiga e produtora Arlene Wagstaff tentara dissuadi-la em troca de uma compensação financeira, mas Shirley recusara.
— Você era uma boa escritora — comentou Morgan, cobrindo o peito e o estômago com o Caderno de Turismo do NY Times.
— Não escrevi coisa alguma — repliquei. — Foi tudo "relatado" àquele merda, Herman V. Weiss, que você me arranjou.
— A idéia não foi de Clay? De qualquer modo, o velho
Herman fez um bom trabalho. Contudo, se você não quiser trabalhar novamente com ele, não será obrigada.
Uma mensagem em tom bem alto e claro.
— Quer que eu escreva outro livro? Além de Além da maternidade?
— Será uma beleza! — exclamou Morgan, dando-me uma palmadinha no braço, com a mão pegajosa de óleo para a pele de bebês. — Você poderá contar ao mundo inteiro a respeito daquelas garotas com quem anda se roçando!
Os homens são obcecados por mulheres que não necessitam deles. Antes que eu conseguisse encontrar uma resposta elegante, o telefone tornou a tocar e Morgan falou por um tempo que me pareceu interminável sobre o empolgante assunto da conveniência, ou não, de o presidente renegar o vice-presidente na próxima eleição. Ou seria o contrário? Os assim chamados "traficantes de influência" daquela época jamais sabiam o que era importante.
De qualquer forma, eu captara parte da mensagem: Morgan não estava interessado numa continuação do livro. Comecei a me sentir deprimida. E com bons motivos: era uma aviadora desempregada, cujas dívidas atingiam o montante aproximado de cem mil dólares, com duas crianças, uma de nove e outra de onze anos de idade, tendo que pagar uma pensão alimentícia de mil dólares mensais, sem mencionar as várias despesas extras com as crianças, inclusive a operação plástica do lábio leporino de Tessa, que não era coberta pelo seguro de saúde, embora o corretor me tivesse afirmado o contrário quando me vendeu a apólice. Na vida real, nunca me permitiram avançar mais que um ou dois metros além da maternidade.
A única coisa boa em minha vida era Arlene Wagstaff, com quarenta e dois anos e tantos de idade — tantos que só Deus sabia quantos eram. Todavia, Arlene disfarçava bem esses anos, até mesmo em público. Em fevereiro passado ganhava o mais alto salário dentre as pessoas que faziam comerciais para a televisão. Era também conhecida em todos os lares americanos, tanto por nome como por imagem. A obra-prima de Arlene fora o comercial do café Jedda, onde ela aparece no início como a típica dona-de-casa apática, inclusive com uma carranca neurótica. Tenta limpar o assoalho com um aspirador. Não consegue. Deixa-se cair numa poltrona. Então, uma vizinha amável lhe oferece uma xícara do café Jedda. Arlene toma o café, com resultados espantosos. Deixa de ser catatônica; fica cheia de energia e maneja seu aspirador de pó como um avião a jato. A renda do comercial permitia a nós duas uma vida confortável.
Não. Arlene e eu não éramos amantes. Éramos mais como duas irmãs. Como duas irmãs que realmente precisam uma da outra. Ela ganhava nosso sustento. Também era alcoólatra. Eu não. Eu controlava as bebidas. Cuidava das ressacas. Escondia as pílulas à meia-noite.
— O que sabe você a respeito do hinduísmo? — indagou Morgan, lançando-me seu astucioso olhar de editor-gerente e traficante de influência. Certa vez, ele afirmara que o momento mais importante de sua vida fora quando conseguira eleger para governador do Estado de Nova York um sujeito chamado Carey, ou Curry. Pelo menos, Clay Felker visava mais alto. No mínimo, mais alto que Morgan. Na realidade, jamais gostei deles.
— Os deuses têm uma porção de braços. E de cabeças. É proibido comer as vacas. As almas sofrem transmigração. E eu detesto curry.
Morgan apertou o Caderno de Turismo de encontro ao estômago. As pessoas continuavam a olhar para nós. Algumas reconheciam Morgan. Algumas me reconheciam. Como não havia astros ou estrelas de cinema em volta da piscina, não tínhamos concorrentes. Merv Griffin já se fora.
— E também há os garotos de cabeça raspada — acrescentei. — Costumam freqüentar o Hollywood Boulevard. Cantam Hare Krishna, usam túnicas amarelas e sandálias. Ou alpargatas sem meias.
Morgan meneou afirmativamente a cabeça.
— É. São hindus. Ou, pelo menos, um tipo de hindu. Parece que existe uma porção de espécies.
— Como os nossos cristãos protestantes. Nascidos uma vez, duas, três... e até mesmo os que ainda não nasceram.
— Não creio que seja um comentário de bom gosto, Teddy — declarou o editor do National Sun.
Morgan gostava do presidente. Eu o julgava um carola pudico — refiro-me ao presidente. Morgan era Judas na obra do qualquer escritor.
— Há um americano que vive no Nepal. Em Katmandu. Um adepto do hinduísmo. Na realidade, afirma que é o messias hindu. Usa o nome de Kalki. Talvez você já tenha visto alguns
de seus discípulos. Andam por aí, por toda parte, distribuindo panfletos e flores de papel — de graça!
Morgan me passou um folheto sobre o qual estivera sentado. No alto da capa estava escrito a palavra "Kalki". Abaixo dela, uma mensagem nada encorajadora: "O mundo está chegando ao fim". A aparência geral e a textura do panfleto não tinham sido melhoradas pela pressão e a umidade das imensas nádegas de Morgan.
— Já os vi — disse eu. — E lembro-me de ter ficado intrigada com o fato de não pedirem dinheiro. A maioria das religiões extorque dinheiro.
— Foi isso que me deixou curioso, também. Isso e o fato de ninguém saber praticamente coisa alguma a respeito de Kalki. Até o momento, houve apenas uma pequena reportagem da Associated Press. Alguns dos discípulos locais foram entrevistados, mas não parecem saber muito a respeito dele. Limitam- se a repetir a linha do partido: o fim do mundo está chegando, portanto tratem do espaço futuro. O que não é o que poderíamos chamar de notícia quente. Até hoje, Kalki jamais concedeu entrevistas a alguém. Limita-se a fazer pregações em seu ash... como é mesmo o nome?
— Ashram, um mosteiro.
De repente, lembrei-me de ter visto o ashram de Kalki no Santa Mônica Boulevard. Anteriormente funcionara no prédio uma estação de rádio. Eu julgara que o enorme letreiro "KALKI" no topo do prédio fosse o prefixo de alguma nova estação de FM.
Morgan fitou-me de modo firme e penetrante, como convinha a um admirador de H. V. Weiss.
— Daqui a três semanas, Mike Wallace vai entrevistar Kalki para o programa 60 Minutos da CBS. Kalki acaba de concordar em conceder a entrevista. Portanto, aqui está minha proposta: quero furar a CBS. Quero chegar a Kalki antes dela. Quero que você o entreviste para o Sun.
Morgan tirou de cima do estômago o Caderno de Turismo do Times e, como eu já previra, lá estava a primeira página, impressa de trás para a frente em sua barriga, por causa do suor.
Enquanto o sol se escondia por detrás do toldo listrado do bar da piscina, senti vontade de tomar um trago. Falei:
— Não sou exatamente a primeira pessoa em quem você pensaria para fazer uma reportagem a respeito de Kalki, ou de quem quer que seja. Sou aviadora e não jornalista.
— O verdadeiro nome de Kalki é Kelly — disse Morgan, cobrindo-se com uma toalha. Fiquei aliviada; carne balofa me deprime. — Jim, John, Jack... sei lá o quê... Kelly. Vou lhe dar nossa ficha a respeito dele. Infelizmente, é muito pequena. Esteve no Exército. Serviu no Vietnam. Depois, radicou-se por lá.
Apontou para o oeste, na direção de Malibu, de Catalina e da Ásia, concluindo:
— Virou nativo. Então, no ano passado, como se caísse do céu, declarou ser Kalki.
Algo me estalou na cabeça. Eu lera a respeito dele. Abri o folheto. Na primeira página havia a fotografia de um jovem bem-apessoado, em trajes indianos.
— Ele se considera um deus, não é?
Morgan assentiu.
— Sim. Ele declara ser a encarnação final do deus... sei lá como se chama. Sua missão é...
— Escatológica — completei, sentindo-me feliz com cada sílaba dessa palavra tão útil.
Antes que Morgan pudesse perguntar qual o significado do termo, apressei-me em impressioná-lo com a amplitude e pro¬undidade de minha leitura de jornais:
— Ele possui um ashram em Katmandu. Vive rodeado de hippies. Todos tomam drogas. O verdadeiro nome de Kalki é James J. Kelly. Com seu aparecimento no mundo, a raça humana terá fim. Está vendo? Tenho uma memória perfeita.
E tenho. Quando leio uma coisa, esta permanece arquivada em minha mente. Graças a Deus, a maioria dos arquivos estão seguramente trancafiados. A gente pode ficar maluco por lembrar coisas demais, especialmente o incessante fluxo de imagens sem sentido da televisão, das negras caravanas de palavras que cruzam as páginas dos jornais para invadir e devastar o delicado lar da memória como formigas assassinas.
— Que menina formidável! Então, gostaria de escrever a respeito dele?
— Sou pilota de prova, Morgan.
— Você é autora do best seller Além da maternidade.
— Relatado a Herman Weiss. Por que não o contrata? Está lecionando estruturalismo e semiologia na Universidade Estadual de San Fernando.
— Quero você.
— Por quê?
Morgan replicou em tom ansioso, grave, sincero:
— Porque ele quer você, Teddy.
— Ele quem?
— Kalki. Ele próprio declarou isso na segunda-feira passada, num telex enviado ao escritório do National Sun em Los Angeles. Só existe um repórter no mundo inteiro a quem ele concederá uma entrevista: trata-se da garota maravilhosa, escritora, aviadora, personalidade famosa — a primeira e única Theodora Hecht Ottinger. E eu sou um idiota por lhe contar isso, porque agora você poderá colocar a faca no meu peito e pedir o quanto quiser pelo serviço. Mas não me incomodo. Preciso de você, Teddy. É isso aí. Depois da entrevista com Mike Wallace, o sujeito será notícia internacional. É por isso que preciso chegar na frente. E o único meio de conseguir isso é através de você.
— Ele sabe que não sei escrever?
Não sei por que motivo resolvi mencionar o detalhe. Ninguém mais sabia escrever, tampouco. Só conseguia ler uma página eventual de Joan Didion e a página regular de Renata Adler. Mas não mais que isso. Eu lia Michel Foucault, mas, afinal, jamais deixei de estudar francês. Em fevereiro passado, todas as artes estavam em decadência; a entropia imperava.
— Contratarei alguém para escrever por você — disse Morgan. Ou "rosnou Morgan", como escreveria H. V. W.
— Não sei... — comecei, ou melhor, terminei. Pois sabia perfeitamente que minha sorte retornara.
— Teddy, querida, isso pode ser importante. Já entrei em contato com a Doubleday. Eles lhe farão um adiantamento sobre o livro. Não poderia ser mais fácil: basta ligar o gravador e deixar o sujeito falar. Você fará história!
— Por quê?
Morgan Davies apertou (como diria H. V. W.) os olhos miúdos. Percebi que estavam vermelhos por causa da poluição. Em fevereiro passado respirava-se com dificuldade em Los Angeles.
— Porque o Sr. Kelly afirma que é deus — respondeu ele. — Porque há gente rica que o financia, acreditando que ele é deus ou alegando que acredita nisso. Se essas pessoas tiverem outros motivos para financiá-lo, trate de descobrir.
O faro de Morgan para descobrir quem estava ganhando dinheiro em troca do quê era quase tão apurado quanto o de Clay Felker.
— No ano passado ele conseguiu arrebanhar um enorme séquito na Índia, o que se torna ainda mais notável se levarmos em conta que ele é americano. Era de se esperar que os hindus se ofendessem contra o fato de um ex-soldado americano proclamar-se deus hindu. Mas não se ofenderam. Muito ao contrário. Milhões de hindus estão se purificando, preparando-se para o fim do mundo.
— Talvez ele seja mesmo um deus — comentei, achando a idéia engraçada.
Os escapamentos dos jatos formavam uma figura trapezoidal acima das palmeiras.
— Mas, se ele for realmente um deus, o que pretende? — ponderou Morgan, paciente. — Ele já tem tudo, de qualquer modo.
— Nelson Rockefeller também tinha, mas ainda assim queria ser presidente desta nação. Os deuses estão sempre pretendendo alguma coisa. Querem que vivamos segundo a sua regra de ouro e, sendo onipotentes, não permitem que assim vivamos porque isso estragaria seu prazer no jogo.
Isso era especialmente verdadeiro em relação ao primeiro deus de meus pais, o velho e rabugento Jeová. Alguns anos antes de meu nascimento, papai e mamãe Hecht trocaram Jeová por Mary Baker Eddy, um bangalô nas proximidades de San Diego e um clube social que só aceitava sócios gentios. Mantivemos ao menos nossos narizes judaicos. Meu pai morreu crente que a morte não existia. Na minha opinião, Mary Baker Eddy não existia porque a morte existe. Quanto a isso, não há a menor dúvida.
Morgan voltou ao rumo costumeiro:
— De qualquer maneira, o importante é o dinheiro. De onde vem? Como ele consegue mandar aqueles garotos para as ruas, distribuindo panfletos e flores, mas recusando dinheiro?
— Está certo, Morgan. Estou convencida. Passarei a ser Theodora Ottinger, repórter. A Oriana Fallaci de West Hollywood. Mas por quê? Por que, com tantos jornalistas profissionais espalhados pelo mundo inteiro, ele quer conversar comigo?
— Bem, ele diz que leu Além da maternidade.
— Nesse caso, você deveria mandar-lhe Herman V. Weiss.
— Não. Tem que ser você. Só você e mais ninguém —retrucou Morgan, substituindo seu ar astuto e profissional por uma expressão de genuína surpresa. — Ouça, menina, estou tão espantado quanto você. Até mesmo enviei um telex a ele: "Aceita algum outro jornalista famoso?" E a resposta foi: "Ottinger ou ninguém".
— Então, tem que ser Ottinger. Está certo.
Apertamo-nos pegajosamente as mãos. Limpei o óleo de bebê da minha mão na toalha de Morgan. Este declarou que se entenderia com meus empresários do escritório de "William Morris. Prometeu arranjar-me todas as informações possíveis a respeito de Kalki.
No peito dele estava escrito, de trás para diante: "SUAS FÉRIAS NO CARIBE".
— Oi, mãe! — exclamou Tessa, abraçando-me com força.
A seguir, troquei um aperto de mãos com Earl Ottinger Jr., meu ex-companheiro.
— Onde está Eric? — perguntei.
— Foi ao médico. Está fazendo testes de alergia.
— É a terceira série de testes — protestei.
— Ele precisa, Teddy. É muito tenso. Passou por maus bocados. Todos nós passamos.
Lembrei-me de não fazer uma cena por causa de dinheiro na presença de Tessa, uma criança bonita. Quase não havia sinal do lábio leporino; alegrei-me por verificar que parte do dinheiro tinha sido gasta com proveito. Então, Tessa deixou-nos entregues ao que H. V. W. chamaria de nossos problemas domésticos.
— Toma um martíni?
Aceitei, pois já estavam prontos.
Corri os olhos pela sala, mal conseguindo acreditar que passara oito anos, a melhor (isto é, a pior) parte de minha vida de casada, naquela casa que dava para a encosta de uma colina poeirenta, por detrás da qual estavam situados o oceano Pacífico e a zona residencial de Santa Mônica.
Não costumo beber muito, mas terminei o martíni em apenas dois goles. Era o efeito que Earl Jr. surtia em mim.
— Como estão as coisas no escritório? — indaguei.
Era o que perguntava todos os dias, quando ele chegava em casa cansado — segundo afirmava — da firma de corretagem de imóveis onde trabalhava, embora eu soubesse que, na realidade, fora despojado da pouca energia básica que ainda possuía por uma das várias funcionárias de uma certa academia de massagens de Melrose, que ele freqüentava regularmente desde 1968. Eu sabia. A proprietária da academia era uma ex-rockette de Nova York, amiga de Arlene. Contou-nos que as garotas achavam Earl Jr. ridículo e tinham pena de mim. Eram boas meninas. Não tenho bem certeza de ter realmente gostado dos homens em minha vida.
— Péssimas — respondeu Earl Jr., como sempre.
Parecia um tanto inchado mas, graças a Deus, já não usava colares de contas e cortara os cabelos. Em fevereiro passado estávamos em plena contracontracultura, a caminho da contra-Carter-contracultura, ou um monte de baboseira cristã evangélica. Citarei aqui, para informação dos futuros historiadores de nossa cultura, algo que ouvi há um ano e meio, numa festa em Palm Beach.
Uma jovem se aproximou do homem que conversava comigo e disse: "Olá! Eu sou Bettina. Sou de Peixes. Sou pelos alimentos saudáveis, esportes aquáticos e servidão".
Compreendi então — num relâmpago ofuscante — que o Grande Anarca lá no céu estava prestes a deixar o pano cair. Johnson? Não. Alexander Pope. Na realidade, a escuridão universal não envolveu a todos. Agora, porém, preciso recuar dos limites da proibida percepção posterior dos fatos...
— Você sempre diz isso, mas o mercado imobiliário está em alta. Eu sei. Leio os jornais.
Earl Jr. se limitou a encarar-me, cheio de ódio. Naturalmente, eu não podia culpá-lo. Um dia eu fora a Sra. Earl Ottinger Jr., esposa, mãe e dona-de-casa (pilota de prova e ganhadora de troféus nas horas livres). Então, praticamente a contragosto, a operação, o livro, o divórcio. Da noite para o dia, transformei-me numa segunda Amélia Earhart. Deixei para trás marido, filhos, trompas. Naquele anno mirabilis, fiquei — segundo pesquisa do Instituto Gallup — em nono lugar na lista das mulheres mais admiradas do mundo inteiro.
Earl Jr. jamais aceitou nada disso realmente. Em compensação, eu nunca aceitei muita coisa dele. Meu ex-analista, o Dr. Mengers, afirma que me tornei pilota de provas como uma fuga da terra, de minha própria fecundidade, de Earl Jr. e dos filhos que, na verdade, nunca desejei. Não obstante, fitando o queixo duplo e pálido de meu ex-marido através da névoa reconfortante do primeiro martíni, refleti que algum dia devia ter sentido alguma coisa por ele.
Vieram-me lágrimas aos olhos. Aos dele também. Amor? Ternura? Pesar? Não. Era a poluição, o smog vermelho que subia pelo Santa Mônica Canyon, vindo da Pacific Freeway. Monóxido de carbono expelido pelas dezenas de milhares de automóveis que avançavam lentamente de norte para sul e de sul para norte, pára-choques quase se tocando.
Enxugamos os olhos e assoamos os narizes nos guardanapos de papel que eu comprara três anos antes numa liquidação. E praguejamos contra a poluição.
— Então, como vai Arlene? — indagou. Earl Jr. detestava Arlene e suspeitava o pior.
— Ainda tentando produzir a biografia de Amélia Earhart.
Earl Jr. exibiu um sorriso de escárnio — se isso for franzir os lábios como se algo se prendesse entre dois dentes.
— Pode esperar sentada — disse ele.
— Não se preocupe. Não estou esperando. Nem sentada.
— Suponho que esteja fazendo conferências a respeito da eliminação do crescimento populacional.
Aquilo significava o início de uma discussão. Earl Jr. e eu sempre discordáramos a respeito da superpopulação e da manutenção de um equilíbrio adequado na biosfera. Ele achava que havia abundância de tudo. Na minha opinião, não existia abun¬dância de coisa alguma, a não ser de gente. Uma vez que em fevereiro passado havia um exagero de quatro ou cinco bilhões de pessoas, sempre que possível eu pregava minhas idéias, que são basicamente o contexto de Além da maternidade. O Dr. Paul Erlich, o Dr. Barry Commoner e Teddy Ottinger, pilota de prova, eram os principais profetas daquela época. Falávamos a surdos. Mas falávamos.
— Vou cancelar as conferências — declarei. — Arranjei outro emprego.
— Então, quando vai criar raízes?
Earl Jr. sempre se esforçava ao máximo para fazer com que eu me sentisse culpada. Ocasionalmente, conseguia. Afinal, era o pai de meus filhos — muito melhor pai do que eu fora mãe. Mesmo nos velhos tempos eu estava sempre em movimento, estudando engenharia, aeronáutica, testando aviões, deixando a Earl Jr. o encargo de tratar da catapora das crianças e de tudo o mais. Por outro lado, também eram filhos dele. Foi ele quem quis ter filhos. Eu não queria. Suponho que foi isso que me tornou permanentemente culpada aos meus próprios olhos. Contestando o convencionalismo, eu agira contra minha natureza. Contudo, temos apenas uma vida. Se conseguimos encontrá-la, devemos vivê-la. Foi o que fiz. E faço.
— Nada de casamento pra mim, querido. Nunca mais. Já tive uma experiência.
Sabendo que o magoara, acrescentei depressa:
— Não quero dizer que ser casada com você não tenha sido maravilhoso. Foi, de verdade. Sinceramente. Mas temos que ser nós mesmos, sem dar bola pro resto.
— Ora, ninguém pode dizer que você não foi um sucesso quanto a isso.
O tom de Earl Jr. era amargo, o que me agradou. Tínhamos iniciado uma discussão já conhecida. Existe algo agradável em escutar velhas acusações. São como constantes num mundo em permanente mutação.
Todavia, decidi abandonar o caminho que costumava tomar naquela discussão. Tinha outras coisas em mente.
— Não tenho tanta certeza a respeito desse sucesso. No momento...
— Você está com dois meses de atraso no pagamento da pensão, Teddy.
— Era exatamente sobre isso que eu ia falar com você, Earl Jr. Estou dura...
— Mas não a ponto de não farrear na Sunset Plaza com Arlene e suas amigas lésbicas.
— Nem todas as mulheres sem marido são lésbicas.
Antigamente, aquele negócio de lesbianismo fazia-me ficar furiosa. Agora, não. Na era dos vibradores, a mulher bissexual impera — e o homem heterossexual está algemado numa masmorra.
— Você sabe — disse Earl Jr. — As duas crianças necessitam de cuidados psiquiátricos e isso custa dinheiro.
— Nada de psiquiatras! — repliquei, decidida. — Em primeiro lugar, não tenho dinheiro...
— Quer dizer que não vai fazer o pagamento de fevereiro?
— Mova uma ação contra ela!
Quando ouvi aquela voz, derramei metade do martíni nas minhas calças de brim novinhas. A Sra. Earl Ottinger, Sr., minha ex-sogra, invadiu a sala como uma cadelinha raivosa, latindo e correndo ameaçadoramente de um lado para outro. Era perfeitamente capaz de me morder a perna. Creio que tinha pelo menos um quarto de sangue negro. Mesmo depois de todos os filmes anti-racistas da televisão, eu jamais tive coragem de tocar no assunto. Ela nascera em Baltimore e desprezava pessoas "de cor". Earl Ottinger, Sr., era falecido. Fora também corretor de imóveis, após uma carreira de sargento na Força Aérea.
Afinal, por que estou escrevendo tudo isso? Os Ottinger pouco me importam. Não importam a ninguém. Serei, por acaso, sentimental?
— Ora, como vai, Lenore? — cumprimentei.
— Vá pro inferno!
A Sra. Earl Ottinger, Sr., ficara fora de si quando eu me divorciara de Earl Jr. Sua reação na época foi: "Ligar as trompas, sim! Por que não? Se não quer ter mais filhos, tudo bem! Mas nunca se esqueça de que será sempre a mãe de meus netos e a esposa de Earl Jr.! Jamais houve um divórcio na família Ottinger!" Lenore nunca me perdoou por ter aberto uma exceção na história da família.
Rodeando a coqueteleira cheia de martíni, travamos mais uma de nossas tríplices batalhas. Como sempre, decidi que nunca mais veria qualquer um deles dois. Eram simplesmente horríveis — cada um à seu modo.
— Você devia voltar pra casa! — Embora o segundo martíni costumasse surtir um efeito calmante sobre Lenore, o latido de cadelinha terrier continuava agressivo como sempre. — As crianças precisam de você. Precisam muito!
— Elas estão muito bem — respondi, com a temperatura alterada ("calorosamente", como diria H. V. Weiss). — Graças à senhora. E graças a Earl Jr.
Eu retirara um balde do profundo poço de minha insinceridade e despejara sobre o inimigo. Os dois se deliciaram. Fingida ou não, a bajulação nunca falha. Meu elogio deixou-os mudos.
Fitamo-nos ternamente. Então, Earl Jr. quebrou o encanto:
— Teddy está desempregada.
— "... na imensidão do céu azul, voando nas alturas..." — Lenore cantou o hino da Força Aérea. Tinham sido tempos felizes para ela, acompanhando o marido de uma base aérea para outra, durante a Segunda Guerra.
— Vou para a Índia na semana que vem — anunciei.
Lenore parou de cantar. Earl Jr. começou a piscar.
Contei-lhes a respeito de meu encontro com Morgan Davies. Nenhum dos dois ouvira falar de Kelly ou Kalki, como também nunca tinham ouvido falar de Horácio, Alexander Pope, Pascal, Diderot, bem como da lei de Heisenberg ou de entropia. Viviam como pessoas bem-sucedidas, recusando-se a tomar conhecimento de quaisquer informações. Na terminologia cientologista, eram os mais perfeitos "puros".
Quando terminei Earl Jr. desferiu:
— Lenore está com C maiúsculo.
Sempre chamava a mãe pelo primeiro nome, coisa a que eu não conseguira habituar-me.
A gravidade daquela declaração lançou uma sombra no ambiente.
— Isso mesmo — disse Lenore, parecendo muito satisfeita.
Para muita gente, o câncer é uma espécie de status. Para mim, não. Se eu encontrar uma pequena verruga no corpo, entro em choque.
— Na verdade, ainda não temos certeza — disse Lenore, servindo-se de um terceiro martíni cheio de picles de cebola. — Vão me operar na terça-feira, no Cedars-Sinai. Às sete horas em ponto. Então, saberemos ao certo, depois da biópsia.
— Mas, isto é terrível! — foi o melhor que consegui dizer.
— Eu sei — replicou Lenore, com um estranho sorriso, como se soubesse algo que nós não sabíamos. Talvez soubesse, realmente. Em seguida, acrescentou: — Acho que é essa dieta. Por isso a doença se espalha tanto por aí. Não há propriedades alimentícias suficientes na comida. A Sra. Hendon, lembra-se dela? De Sharman Oaks. Ela fez uma mastectomia em agosto e tem certeza de que...
Prometi a Earl Jr. que o primeiro centavo que eu recebesse de Morgan Davies e do National Sun iria direto para as crianças. Por outro lado, eu não queria que elas consultassem psiquiatras.
— São perfeitamente normais — declarei. — Mas deixarão de ser se vocês, bárbaros primitivos, não pararem de gritar com elas!
Earl Jr. limitou-se a franzir os lábios e dizer:
— Levando em consideração o que você fez a elas, não é de espantar que estejam perturbadas.
Em tempo de valsa, demos alguns passos daquela rotina tão familiar, enquanto Lenore foi para a cozinha. Podia ouvi-la falando ao telefone com a Sra. Hendon, que estava na enfermaria de cancerosos do hospital.
Tratei de sair antes que Lenore voltasse à sala. Na verdade, nunca transei com a morte. Ou com esportes aquáticos. Ou com a servidão. Não sou de Peixes, mas de Libra.
Meus últimos dias em Los Angeles foram frenéticos.
Morgan Davies me forneceu reportagens jornalísticas a respeito de Kelly-Kalki, livros sobre hinduísmo e um pesquisador chamado Bruce Sapersteen. O Sr. Sapersteen estava no escritório do National Sun em Nova York. Telefonou para mim na casa de Arlene e se ofereceu para vir "à costa", expressão que o pessoal do leste usa para designar a Califórnia. Eu respondi que não, ainda não. Sapersteen disse que me enviaria o máximo que pudesse coletar, embora "não haja muito. Isto é, em inglês. Existe evidentemente farto material em hindi". Percebi imediatamente que Bruce Sapersteen jogava no mesmo time que H. V. Weiss.
— Suponhamos que esse tal Kalki seja mesmo um deus. Então, o que você fará? — indagou Arlene, sentada à borda de sua piscina em forma de vesícula biliar, no fundo da qual havia imitações gigantescas de cálculos biliares que ficavam iluminados à noite. O senso de humor de Arlene se formara na década de 40, época do meu nascimento.
Ao sol da manhã e sem maquilagem, Arlene parecia notavelmente bonita, a despeito do pedaço triangular de material adesivo que usava entre as sobrancelhas. Chamava aquela espécie de esparadrapo de "contra carranca". Tinha uma crença positivamente mística no poder do esparadrapo para apagar as rugas que tinham sido inteiramente removidas — embora não definitivamente — por uma injeção de silicone aplicada por um cirurgião plástico brasileiro. As rugas haviam voltado, devido ao sol, à bebida e à miopia. Embora grande parte da carreira profissional de Arlene dependesse de sua capacidade para ler os cartazes postados por detrás das câmeras de TV, ela se recusava a usar óculos em público. Tinha um medo mortal de lentes de contato, até mesmo das modernas lentes maleáveis.
— Não acredito em deuses — declarei.
Arlene já começara a tomar a primeira margarita das muitas que ingeria por dia. O médico recomendara que ela deixasse de beber tequila de manhã. Aconselhara um vinho leve, refrescante, feito no vale de Napa, que fazia bem ao café da manhã. Ele era acionista da companhia vinícola e forneceria a Arlene a quantidade que esta desejasse. Mas ela recusara, alegando que vinho lhe causava gases.
— Ora, tudo é deus.
Arlene olhou em volta, para tudo. No caso, tudo era a cerca de sequóia ao redor da piscina, que ela mandara pintar de amarelo, um pedaço de céu pardacento de poluição, uma moita de hibiscos poeirentos, o passarinho morto que o jardineiro japonês esquecera de retirar do canteiro de cactos.
— Ou nada.
— Isso é muito metafísico.
Arlene gostava de me lembrar a boa educação que recebera no meio-oeste. Todavia, como era a primeira a confessar, esquecera-se de tudo o que aprendera na escola, junto com os milhões de palavras que fora obrigada a decorar em sua carreira de atriz, cantora e modelo de comerciais para a televisão. Sempre afirmava que, quando criança, desejava ser veterinária. Contudo, o show-business a agarrara pelo lindo pescoço. No final dos anos 40 ou início dos 50, fora uma quase, mas não muito, artista de cinema. Agora, em plena maturidade, era o modelo mais bem-pago de comerciais de TV, depois de Barbara Walters. Uma celebridade.
— Pelo menos, ele parece bonito nas fotografias — disse ela.
— Como sabe? — retruquei. -— Só dispomos de algumas telefotos de jornal, muito pouco nítidas.
Examinei a pasta sobre Kalki. Não havia uma só foto nítida. Parecia qualquer um, de cabelos compridos e barba.
— Tenho o palpite de que ele é uma graça. E você conhece meus palpites.
Arlene me lançou um daqueles seus famosos sorrisos e tive a impressão de estar vendo um comercial de televisão. Viver, morar com alguém cujo rosto estamos acostumados a ver na TV, anunciando aparelhos eletrodomésticos, representando,
conversando, provoca-nos uma sensação de irrealidade. O público e o particular, o interior e o exterior se confundem.
— Por que não vem comigo? — indaguei, dando-lhe um leve beliscão na parte interna da coxa.
Em fevereiro passado, aquela parte interna da coxa estava muito firme e rija, graças à cirurgia plástica. No decurso dos anos, Arlene fizera todas as operações plásticas possíveis e imagináveis. A seu modo, contrariara as leis da gravidade e da flacidez.
— Você bem sabe que não posso. É muita gentileza convidar-me, mas passarei o mês inteiro fazendo gravações. Depois, terei o Programa do Gongo. Estou comprometida até o final de março. Quanto tempo você vai ficar por lá?
— Não sei. Creio que não será mais que uma ou duas semanas. Morgan está com muita pressa: quer obter a reportagem antes da CBS.
— Mas que reportagem? Isto é, suponhamos que o rapaz seja mesmo um deus. Bolas! Daqui até a universidade mais próxima podemos encontrar milhares de malucos que dizem a mesma coisa.
— Então, por que ele afirma ser deus? E de onde vem o dinheiro? Além disso... por que eu? Por que só quer falar comigo?
— "Você é maravilhosa! E é minha! Tão divina!" — bradou Arlene, repetindo a letra de uma canção que gravara há muitos anos com a orquestra de Tommy Dorsey.
Já estava recitando a segunda estrofe quando o telefone situado junto à piscina começou a tocar. Era Earl Jr.
— Muito bem — declarou ele, em tom acusatório. — Lenore está com câncer. Removeram o...
Com todos os detalhes revoltantes, Earl Jr. descreveu as atribulações e sofrimentos de Lenore no hospital Cedars-Sinai. Fiz o máximo esforço para não prestar atenção ao que ele dizia. Posteriormente, Arlene me disse que, enquanto segurava o fone com uma das mãos, eu tateava os seios com a outra, procurando caroços.
Lembro-me de haver pensado que tudo estava fora de controle: a população, o clima, as células de todos os corpos. Tudo parecia convergir para o desastre final. Havia seis anos que Arlene sofria de leucemia; agora, era apenas uma questão de tempo. Jamais falávamos no assunto, mas ambas pensávamos nele o tempo todo. Além disso, eu estava sem vintém porque não havia aviões para serem testados, devido à recessão, ou depressão, ou sei lá como dizem... E também...
Desliguei o telefone. De repente, senti-me satisfeita por estar de partida para a Índia, para o Nepal, a fim de conhecer um americano que alegava ser Kalki, vindo para dar fim ao mundo, pois disse em voz alta:
— As coisas não podem ficar piores.
— O que não pode? — perguntou Arlene, franzindo a testa sob o triângulo de esparadrapo.
— A vida.
— Oh, isso! Você precisa de um homem. Eu preciso de um homem.
— É a última coisa de que preciso.
— Pois é a primeira coisa de que preciso. Mas ficarei com a segunda. Ou com a terceira.
Arlene deu uma risadinha, e despiu o sutiã e, depois, as calcinhas. Não havia uma só marca ou cicatriz naquele corpo esbelto e bronzeado, cuja idade só Deus conhecia.
Com um lânguido suspiro, abriu as pernas como se desafiasse o sol a estuprá-la e adormeceu bem à vista da empregada mexicana que preparava a salada de legumes que sempre comíamos ao almoço. A empregada nos observava pela janela da cozinha, sem a menor expressão no largo rosto asteca. Já estava acostumada a ver Arlene nua. Aliás, Arlene gostava que as pessoas a vissem despida. Até mesmo que a vissem fazendo amor. Costumava dizer:
— Afinal, sexo é uma das poucas coisas que faço bem feitas, agora que já não consigo jogar golfe direito.
Arlene jamais vivera exceto em público e diante de uma câmera. Será que eu me sentia sexualmente atraída por ela? Sim. A maioria das pessoas se sentiam. Ela sempre dizia, com um sorriso malicioso:
—- Milhares já tentaram e nunca permiti que alguém fracassasse!
Morgan Davies me levou ao aeroporto em sua limusine dirigida por um chofer.
— Faz parte do meu contrato — explicou, orgulhoso.
Estava sempre competindo com Clay Felker. Jamais entendi por quê.
Contudo, Morgan fora generoso comigo. Eu saldara minhas dívidas. E estava intrigada com isso.
— Ainda não tenho qualquer pista a respeito de Kalki — declarei.
Quando estiver em dúvida, seja franco — ninguém acreditará.
— Pensei que você tivesse visitado aquele ashean no Santa Mônica Boulevard.
— Ashram — corrigi. — Visitei, sim. Passei um dia inteiro lá. Todos acreditam que ele seja deus vindo à terra. Todavia, ainda não sei por quê.
— E quanto a drogas?
— Não vi nenhuma. Nem senti o cheiro.
Eu achara aquela experiência muito confusa. Os discípulos de Kalki (ou mandali, como gostavam de ser chamados) estavam absolutamente convencidos de que o fim do mundo era iminente e de que deviam purificar-se não só pela prece como pela total abstenção de carne, álcool, sexo e drogas, a fim de nascerem para o novo ciclo da raça humana. Os realmente muitos tornar-se-iam iluminados, como Buda, e chegariam ao nirvana — que não é coisa alguma.
— Isso realmente o atrai? — perguntei a Neil, ex-instrutor de ginástica, que tinha cabelos ruivos nos braços que mais pareciam as pernas de uma tarântula.
Não existiam quaisquer vibrações entre nós. Estávamos ml sala que outrora abrigara o controle central da estação de rádio. No outro lado do enorme painel de vidro ficava o amplo estúdio onde as orquestras sinfônicas costumavam tocar. Agora, o estúdio estava cheio de homens e mulheres de aparência normal, trajando roupas de ginástica, blue jeans ou maiôs. Todos se postavam na posição de lótus da ioga. Um disco de George Harrison tocando sitar servia de fundo musical. A música de fundo era produzida por um homem envolto numa túnica amarela, que cantava em sânscrito. Provocava-me a mesma sensação de desalento que eu experimentara ao comparecer a uma reunião de parapsicologia no ano anterior.
— Isso não vem ao caso — replicou Neil, com um insípido sorriso cientológico. — Quero dizer, não precisamos ser atraídos. Temos que estar à altura, porque a festa terminou. É por isso que Kalki chegou. A era atual da humanidade está terminando. Precisamos purificar-nos.
Decididamente, não era uma religião de esperança. Por outro lado, para dizer a verdade, o cristianismo nunca foi exatamente um mar de rosas na hora de enfrentar a realidade.
Neil me acompanhou até o carro.
— Eu a invejo, por poder conhecê-lo — comentou. Eu lhe contara a respeito de minha missão.
— Algum recado? — indaguei, com um sorriso zombeteiro à moda de H. V. Weiss.
Mas Neil venceu o round:
— É impossível mandar recados para a própria mensagem.
Em seguida, entregou-me uma flor de papel e disse, franzindo a testa:
— Este é o símbolo de Nosso Senhor Vishnu, que nasceu de uma flor de lótus. Quando o lótus chegar a todos os homens, este mundo terá fim.
Estava quase certa de que ele aprendera a arenga de cor, porque obviamente não lhe tinham explicado o significado de palavras-chave, como "símbolo". Em seguida, ele acrescentou em seu próprio tom de voz:
— Além disso, há um número impresso dentro da flor. Se o seu número for sorteado, você ganhará um prêmio em dinheiro. Portanto, leia os jornais. Daqui em diante haverá prêmios em dinheiro, até o fim do mundo.
Perguntei quando ocorreria esse fim, mas Neil respondeu que não lhe tinham dito.
Uma anotação cultural para os futuros historiadores: no ano passado, a disposição da maior parte do mundo era escatológica. As coisas iam de mal a pior e a entropia imperava. Devido a essa disposição predominante, as seitas que prometiam salvar algumas poucas almas do desastre iminente eram muito populares. Naquele dia, no ashram do Santa Mônica Boulevard, cheguei à conclusão de que Kalki era uma espécie de testemunha de Jeová hindu. Fiquei impressionada com a felicidade, convicção e estupidez de Neil. É o material de que são feitos os reinos da terra, embora não os do céu. Kalki era um sujeito muito astucioso.
No aeroporto, Morgan me beijou na boca.
— Eu a amo — mentiu ele. — Passe a perna na CBS. É tudo o que lhe peço, Teddy.
Morgan não era um homem ambicioso...
A caminho do Havaí, alguém se deixou cair na poltrona a meu lado. Era um hindu alto, esguio e idoso. Usava um terno escuro, tipo risca-de-giz. Lançou-me um largo sorriso. Seus dentes superiores eram alvos como só podem ser os dentes postiços. Os inferiores eram amarelos e irregulares. O branco dos olhos era de uma tonalidade dourado-pálida e as íris tinham a cor de bronze escurecido. Graças a H. V. Weiss, descrevo as pessoas. Principalmente personagens importantes. Será o hindu uma personagem importante em minha narrativa? Certamente.
— Proibido fumar — disse ele, com sotaque britânico.
— Proibido fumar? — repeti, sem compreender.
— Nesta parte do avião é proibido fumar e tinham-me colocado numa parte onde é permitido fumar. Espero que não se importe.
Respondi que não me importava, julgando que ele era louco, mentiroso, ou as duas coisas ao mesmo tempo. A primeira classe estava totalmente vazia, com exceção de nós dois; ele poderia ter escolhido uma dúzia de poltronas afastadas da minha.
— Permita-me que me apresente, Madame Ottinger. Sou o Dr. Ashok. Eis aqui meu cartão.
O cartão dizia: "R. S. Ashok, Ph. D., professor de Religião Comparada, Universidade Fairleigh Dickinson".
— O senhor me conhece? — indaguei, por pura vaidade.
Queria que ele dissesse que me vira no Merv Griffin Show. Queria que me censurasse por haver elogiado Indira Gandhi. Então, eu poderia falar durante mais de meia hora a respeito do controle da natalidade e da necessidade de medidas drásticas.
Isso nos levaria até a metade do caminho para Honolulu. Preparei o terreno, mas ele me decepcionou. O sorriso no rosto moreno deixou à mostra os dentes alvos e amarelos.
— Eu poderia dizer que a reconheci porque a senhora é, simplesmente, a maior aviadora do mundo. Ou que sei o seu nome porque está nitidamente escrito na etiqueta pregada no encosto de sua poltrona. Mas vou lhe dizer a verdade. Estou neste avião porque nosso amigo comum, o Sr. Morgan Davies, me disse que a senhora viajaria nele.
— Morgan me levou ao aeroporto. E não mencionou o senhor.
Quando não existe dúvida, devemos ir direto ao ponto que interessa.
— O nosso caro Morgan não tinha certeza de que eu conseguiria passagem para este vôo.
Preferi não mencionar as poltronas vazias na primeira classe.
— De qualquer forma, se me permite dizer assim, temos missões semelhantes. Eu também estou à procura do falso Kalki.
— Por que falso?
— Ora, minha cara Madame Ottinger, certamente a senhora... Bem, creio que não seja adepta do hinduísmo, não?
— Não. Não tenho religião alguma.
— O que significa que a senhora é algo profundo — disse ele, com um brilho zombeteiro no olhar. — Isso já não se aplica a mim. Sou hindu. Um brâmane. Pertenço à mais elevada das quatro castas.
— Sim, eu sei. Os brâmanes são os sacerdotes. Depois, vem a classe guerreira, e assim por diante. Já li a respeito.
Nas duas semanas que eu gastara lendo os Upanixades e outros textos sagrados hindus, não encontrara uma única frase digna de ser anotada em minha caderneta.
— Nesse caso, deve compreender o meu difícil dilema, quando, repentinamente, surgindo do nada, um estrangeiro, um ocidental, um homem que nasceu cristão, um indivíduo de raça branca, anuncia ao mundo inteiro que ele é o avatar final de Vishnu.
— O quê final?
Em minhas leituras, eu ainda estava acompanhando as intermináveis aventuras de Rama e Krishna... historinhas protocômicas que devem ter deliciado gerações pré-literárias (para não falar em pré-tubo de imagem de TV). Na verdade, nada acontece a essas encarnações de Vishnu, exceto aventuras. Por outro lado, talvez as histórias de deuses sejam diferentes das demais. Estarei contando uma boa história? Esperem para ver...
— Avatar quer dizer descida... descendente... Bem, não exatamente um descendente, mas, na verdade, uma reencarnação de Vishnu, que é o deus.
— Um aperitivo ou refresco antes do almoço? — perguntou uma aeromoça embonecada demais para o meu gosto.
Pedi uma Coca-Cola.
— Vodca on the rocks — disse o Dr. Ashok, com seu sorriso branco-amarelo, que eu achava repelente. — Como a senhora está vendo, não sou realmente um bom hindu. Como carne. Bebo. Mesmo assim, continuo a fazer parte do ciclo eterno. Além disso — acrescentou no mesmíssimo tom —, admiro Arlene Wagstaff mais que qualquer outra mulher da TV.
— É mesmo? — retruquei em tom gelado. — Direi a ela.
Eu sabia que ele queria que eu demonstrasse surpresa.
Que lhe perguntasse como tinha conhecimento de que Arlene e eu éramos amigas. Que tentasse adivinhar o quanto ele sabia. Mas portei-me como uma pedra de gelo.
— Agora, Dr. Ashok, diga-me por que motivo tem tanta certeza de que J. J. Kelly não é a encarnação final do deus Vishnu.
A crista do Dr. Ashok, embora não totalmente caída, ficou meio murcha. Todavia, não se deu por vencido. Começou a dar-me uma aula — uma vingança mesquinha:
— Até hoje, Vishnu apareceu na terra nove vezes. A ultima vez foi há mais de dois mil anos, quando surgiu como Gautama, um príncipe nepalês. No devido tempo, esse príncipe passou a compreender tudo e, por isso, ficou conhecido no mundo inteiro como o Iluminado, ou, em nosso idioma, o Buda. Não tem vodca russa, senhorita?
— Não, senhor. Só Smirnoff.
O Dr. Ashok suspirou e bebericou a Smirnoff.
— A décima encarnação de Vishnu só ocorrerá quando este ciclo da criação estiver no final. O ciclo atual é conhecido por...
— "Era de Kali" — disse eu, satisfeita por poder citar a mitologia hindu com a mesma facilidade que ele. — Também conhecida por "Idade do Ferro" — acrescentei.
Embora eu já não fique menstruada como antes, sinto ocasionalmente algo esquisito quando o meu período está chegando. Será mesmo uma dor? Ou apenas a lembrança, o fantasma de uma cólica? Seja lá o que for, senti-a com o Dr. Ashok. Na verdade, jamais consigo pensar nele sem sentir aquele espectro de cólica.
— Exatamente — sibilou o Dr. Ashok, mais como um japonês que como um hindu. — De qualquer forma, a era de Kali deve durar mais cento e trinta e cinco mil anos, aproximadamente. Portanto, portanto — o som daquela palavra lhe agradou tanto que ele a repetiu mais uma vez: —, portanto, o Sr. Kelly não pode ser Kalki. Ele é prematuro.
Por algum motivo, o termo deixou-o tão satisfeito que ele teve um ataque de riso, que só terminou com mais um gole de vodca. Então, teve um ataque de tosse. Sorri compassivamente. E não fiz coisa alguma. Isso, pelo menos, eu sei fazer bem.
— Perdão, minha cara Madame Ottinger. Fiquei atônito, verdadeiramente pasmado, pela pretensão de seu compatriota.
— Todavia, além do fato de Kalki ser pre... — tratei de corrigir-me, temendo que ele se engasgasse outra vez — ...de Kalki haver chegado antes do tempo, muito do que ele está fazendo parece de acordo com a lenda.
Exibindo meu exemplar da Mitologia hindu, acrescentei:
— Aqui diz que a última encarnação será um homem branco, montado num cavalo.
— A senhora não leu o texto corretamente — admoestou o Dr. Ashok. — Será um homem de cor desconhecida, montado num cavalo branco. Então, Kalki sacará da espada... — o Dr. Ashok fechou os olhos, parecendo desmesuradamente satisfeito com a perspectiva — ...A espada brilhará como um cometa... os maus serão destruídos... a era negra de Kali chegará ao fim e o temível Yama — quer dizer, a Morte — reinará até que a raça humana inicie um novo ciclo, uma nova era dourada na qual os brâmanes recuperarão sua ascendência original e a pureza será restaurada. Naturalmente, estou dizendo tudo isso para auxiliar a senhora em suas... bem... suas pesquisas.
— Sempre que me dizem algo que já conheço, sinto-me segura. Sou-lhe muito grata, Dr. Ashok, por esta renovada sensação de segurança.
Desta feita, não precisei mergulhar o balde no poço da insinceridade. Não fiz o menor esforço para ser agradável. Jamais desconfiei tanto de alguém como desconfiava do Dr. Ashok naquele momento, a caminho da Índia. Tudo a respeito dele estava errado. Ele sabia demais e, ao mesmo tempo, não sabia o suficiente.
O Dr. Ashok começou a cantarolar. Estava ficando embriagado. Afinal, disse:
— É provável que a senhora deseje saber por que motivo estou regressando à Índia.
— Na verdade, eu jamais perguntaria.
— É bem-educada. Percebo perfeitamente.
Seu olhar pousou em meus seios. Prendi a respiração.
— Estou de licença na universidade. Um certo governo está interessado no Sr. Kelly. Pediram-me para descobrir o que for possível.
— Se ele é ou não a encarnação de Vishnu?
— Oh, não! Nada disso! — disse ele, comendo os amendoins secos e salgados demais que são apanágio das linhas aéreas comerciais. — Nem por um segundo admito o que ele proclama. Sejamos lógicos: Vishnu jamais retornaria sob a forma de um homem branco!
Sua voz (como diria H. V. Weiss) estava carregada de emoção. Por um instante, quase mudei de tática; por pouco cheguei a sentir pena ao imaginar o Dr. Ashok tentando pegar um táxi em Atlanta ou outra cidade do sul dos Estados Unidos. Todavia, nem mesmo a idéia de que ele pudesse ser vítima do racismo sulista apaziguou minha animosidade. Comecei a praticar tensão dinâmica com as coxas.
— Se Vishnu retornasse à terra, seria um brâmane como eu. Não, não! — exclamou, rindo um tanto desvairado. — Eu não sou Kalki!
— Não julguei que fosse. O senhor não tem um cavalo branco — respondi, oferecendo-lhe uma pequena pilhéria.
Teria ele sido obrigado a sentar no último banco dos ônibus? A usar lavatórios "só PARA NEGROS"?
Mas o Dr. Ashok nem me escutou.
— A religião hindu está sendo explorada maliciosamente, talvez até mesmo de modo criminoso, por um ex-soldado americano profundamente envolvido na venda de narcóticos.
— Ele vende drogas?
Aquilo era novidade para mim. Eu estava razoavelmente convencida de que o ashram de Kalki no Santa Mônica Boulevard era perfeitamente legal. Como não fumo, o mais leve cheiro de maconha naquele ambiente deprimente seria o bastante para fazer soar meu sistema interno de alarma.
— Ele vende ganja, que é o nome dado ao haxixe no Nepal. E também cocaína, ópio e heroína branca... muito mais forte que a heroína mexicana, conhecida como "açúcar escuro". Afinal, o seu Sr. Kelly...
— Meu, não, Dr. Ashok.
— ...iniciou a carreira no Serviço de Saúde do Exército dos Estados Unidos, no Vietnam, que foi a tradicional rampa de lançamento de muitos traficantes de drogas.
— Será capaz de me dizer outra?
Desde o início, eu não conseguia levar o Dr. Ashok a sério. De acordo com aquele meu sistema interno de alarma, ele me parecia falso. Todavia, eu também não conseguia fazer com que ele respondesse a perguntas, oferecesse provas. Agora, lançava-me indagações retóricas, da pior espécie:
— Por que o nojento Sr. Kelly veio à tona agora? Onde esteve durante o negro período de 1968 até hoje? E a senhora sabe que quase quatro anos antes que seus soberbos exércitos se retirassem do Vietnam, moralmente vitoriosos, com a bandeira da grande república norte-americana carregada reverentemente pelo ardiloso e hipócrita diplomata Embaixador Martin, o Primeiro-Sargento Especialista James Joseph Kelly desapareceu no mato? A senhora sabe que depois de oito anos no deserto, como diria o seu sábio livro sagrado...
— Meu livro sagrado, não, Dr. Ashok. Pascal, sim. Jesus, não.
O Dr. Ashok, porém, não estava interessado em ligar suas palavras a qualquer coisa que eu dissesse. Estava com a corda toda.
— ...e que belo livro! — prosseguiu, com um sorriso gentil, referindo-se, suponho, não aos Pensamentos de Pascal, mas ao Novo Testamento, de tão sombria memória. — De qualquer modo, o seu agora Sr. Kelly apareceu certo dia na Casa de Chá Lua Azul, em Katmandu, e anunciou aos fregueses comatosos que ele era Kalki. Ora, minha cara Madame Ottinger, eu lhe pergunto — por quê?
A pergunta retórica parecia exigir uma breve resposta ou outro som qualquer de minha parte.
— Biruta?
— Sim.
Não me compreendendo, o Dr. Ashok me passou o último pacote de amendoins secos e salgados servidos pela companhia aérea.
— Não é isso. Eu quis dizer maluco.
O Dr. Ashok pegou de volta os amendoins. De repente, dei-me conta de que seu cabelo grisalho e encarapinhado era, na verdade, uma peruca. Lembro-me de haver refletido que os homens são mais vaidosos que as mulheres. Nós mantemos as aparências para sobreviver; eles o fazem a fim de prevalecer sobre nós. Não obstante, por que fiquei chocada ao saber que John Wayne fizera uma plástica facial? E ainda mais: por que estou fazendo perguntas retóricas, como o Dr. Ashok? Estou confusa.
— Existe uma longa tradição de santos homens loucos e é perfeitamente possível que ele seja maluco. Todavia, a questão mais importante, minha cara senhora, é a seguinte: com que objetivo e em benefício de quem?
Seguiu-se uma longa pausa. Ele me encarava, apertando os olhos dourados. Ou melhor, seus olhos não se apertaram. Bolas! Estou sempre repetindo clichês de H. V. Weiss! Na realidade, os olhos do Dr. Ashok apresentavam uma tendência para saltarem das órbitas sempre que ele procurava prender a atenção do interlocutor. Agora, estavam tão redondos como os dobrões espanhóis de ouro encontrados no ano passado por dois surfistas, logo ao norte de Trancas. Eram moedas falsas. Os surfistas eram mesmo surfistas.
Senti-me forçada a sustentar o monólogo com algumas palavras.
— Uma vez que não tenho meios de saber, por que pergunta a mim? — retruquei, conseguindo um tom agressivo.
— Quem mais se parece com o pseudo-Kalki?
— O verdadeiro Kalki.
Fiquei muito satisfeita com aquela réplica. Percebi que estava fazendo mal aos nervos do Dr. Ashok, da mesma forma que ele fazia mal aos meus nervos.
— O verdadeiro Kalki está a milhares de anos no futuro. Os dois estão separados por uma muralha de tempo. E existe algo que gosta de muralhas, como escreveu certa vez seu grande poeta Edgar Snow.
O Dr. Ashok parecia sofrer de uma leve forma de metáfase.
— Não, senhora — prosseguiu. — Vejo o seu Sr. Kelly como um peão num jogo político...
— Há pouco o senhor afirmou que ele era traficante de drogas.
— Junte as duas coisas! — exclamou o Dr. Ashok, batendo palmas. — Agora, começamos a ver um quadro assumir forma. Se alguma potência estrangeira desejasse minar o Ocidente, haveria melhor maneira que corromper e enfraquecer os cidadãos com entorpecentes? Haveria melhor modo que lhes oferecer uma falsa religião, afirmando que o fim do mundo é iminente? Afinal, quem iria alistar-se em suas orgulhosas forças armadas se estivesse dopado até a raiz dos cabelos?
— Quem se alistaria, se não estivesse dopado?
Como pilota de prova, eu trabalhara com a Força Aérea Americana durante quase dez anos e estava convencida de que os Estados Unidos não conseguiriam vencer uma guerra contra quem quer que fosse. Entre o alcoolismo e a incompetência, os militares americanos estavam fora de competição. Felizmente, os russos se encontravam na mesma situação. Pouca gente era capaz de compreender que, por trinta anos, o equilíbrio de poder entre o Ocidente e o Oriente não fora mantido por armas nucleares, mas pelo consumo de vodca. Nem é necessário dizer que eu não estava disposta a transmitir tais conhecimentos a um civil com uma peruca grisalha e encaracolada.
O Dr. Ashok ignorou meu comentário.
— Uma sociedade enfraquecida por drogas e por uma falsa crença no mágico final do mundo não conseguiria se proteger contra o comunismo. O pseudo-Kalki é um agente...
Fez uma pausa, acrescentando a seguir:
— É isso que precisamos descobrir, minha cara senhora. Será da Rússia, da China, do Vietnam ou da Coréia?
— Ou de Cuba? Ou da CIA?
Naquele momento o Boeing 747 começou a vibrar e sacudir. A voz do comandante soou nos alto-falantes:
— Bem, pessoal, acabamos de penetrar numa zona de turbulência. Façam o favor de apertar os cintos de segurança. O pessoal da tripulação deve ocupar suas respectivas poltronas.
O avião balançava de um lado para outro. Fiquei morta de medo. Sempre fico, quando é outra pessoa que está pilotando
o aparelho. O Dr. Ashok, porém, continuou a beber vodca, sem entornar uma só gota. Continuou também a explicar, explicar... Desconfiava de que Kelly fosse um agente soviético. Achava suspeito que Kelly estivesse radicado no Nepal, um país situado entre a China, inimiga dos soviéticos, e a índia, suposta aliada dos russos. Comparava Kelly ao Reverendo Sol Lua, outro messias que agia nos Estados Unidos. Pensava-se que o Reverendo Sol Lua estava a soldo do governo da Coréia do Sul, que era financiado pelo Congresso dos Estados Unidos, cujos membros, por sua vez, recebiam de volta propinas dos sul-coreanos.
O Dr. Ashok era uma dessas pessoas que gostam de relacionar tudo com alguma coisa. Sou o contrário. Só reconheço ligações bem definíveis. Por outro lado, sou de natureza desconfiada. Sabia que, de algum modo, o Dr. Ashok fora encarregado de se aproximar de mim. Presumia que ele pretendia utilizar-me para conseguir informações a respeito de Kalki. Permitam-me registrar aqui que, desde o início, fiquei convencida de que ele era agente da CIA. Quem mais usaria uma peruca tão óbvia?
Eu estava exausta quando chegamos a Nova Delhi. Completamente desorientada (ou seria "desocidentada"?), tomei um táxi com o Dr. Ashok, para ir do aeroporto ao hotel. As ruas estreitas estavam apinhadas de gente escura, com aspecto simiesco. O Dr. Ashok acenava constantemente para eles, como se fosse o próprio Dalai Lama. A lua ainda brilhava no ocidente. O alvorecer tinha uma tonalidade rosa-pálida. O ar cheirava a fumaça de lenha, curry e merda. Se uma viagem psicodélica se parece com as descrições que correm por aí, Nova Delhi poderia ser classificada como tal.
Havia flamingos rosados no gramado desbotado do Oberoi Intercontinental (ex-Hilton) Hotel. Rosados por causa do amanhecer? Ou seria apenas uma alucinação e não existiam flamingos, rosados ou de qualquer outra cor? Nem gramado?
Fui direto para meu quarto, onde encontrei quatro lindas jovens usando saris. Limitaram-se a ficar ali, de pé, soltando risadinhas, sem fazer coisa alguma. Suponho que fossem camareiras, ou agentes estrangeiras, ou meros produtos de minha imaginação. Expulsei-as do quarto. Caí na cama, inteiramente vestida. Dormi.
Seis horas mais tarde, o telefone sobre a mesinha-de-cabeceira começou a tocar. Peguei o fone. À distância, ouvi uma voz feminina americana pronunciar as seguintes palavras, aparentemente desprovidas de sentido:
— Sra. Ottinger? Aqui fala Lakshmi.
Eu ainda estava às voltas com um pesadelo de flamingos rosados, os dentes brancos e amarelos do Dr. Ashok e Arlene de pé à borda da piscina em forma de vesícula biliar. Arlene usava os dentes do Dr. Ashok num colar ao pescoço e estava inteiramente despida, exibindo apenas a testa franzida e neurótica da dona-de-casa desconsolada do comercial do café Jedda. Quando o telefone começou a tocar, um dos flamingos curvou o pescoço e se transformou num telefone. Nervosa, coloquei o bico do flamingo junto ao ouvido. O flamingo sussurrou:
— Sou a esposa de Kalki. Estou aqui embaixo, no saguão.
— Não se aproxime desses flamingos — adverti. — Podem ser perigosos.
Então, acordei. Cancelei o comentário a respeito dos flamingos e disse à esposa de Kalki que desceria para encontrar-me com ela tão logo tomasse um banho de chuveiro e me vestisse. Literalmente. Isto é, eu já estava usando um vestido. Sentia-me por demais frágil e distraída para ser agressiva. Tinha a impressão de que seria capaz de passar através das paredes.
No saguão, sob uma palmeira plantada num enorme vaso, avistei uma jovem americana, loura, trajando um sari cor de púrpura e tendo numa das mãos uma flor branca de lótus. Uma flor de verdade. Sem número da sorte impresso por dentro. Por detrás dela, uma vitrine mostrava horríveis colares de latão.
Quando saí do elevador, ela se encaminhou para mim. Estendi-lhe a mão, mas ela juntou as palmas em posição de oração e se curvou diante de mim. Foi minha primeira experiência com o pranam, ou cumprimento hindu. Curvei-me levemente.
— Pranam — disse Lakshmi.
— Olá — respondi.
— Sente-se, Sra. Ottinger.
— Obrigada... Sra. Kalki?
— Pode me chamar de Lakshmi.
— Pode me chamar de Teddy.
Sentamo-nos lado a lado num sofá. A maioria dos hóspedes estava almoçando. O saguão era gritantemente exótico: latão de Benares, azulejos de cores berrantes, plantas cujas folhas se moviam ao frio ártico de um sistema mal-regulado de ar condicionado. Durante uma década, em que voei a grandes velocidades de um ponto para outro do globo, eu conhecera a maior parte dos grandes hotéis internacionais do mundo e passara a detestar a maneira pela qual eles conseguem uma desagradável combinação do desconforto americano, prescrito por St. Conrad, com hediondas características locais. O Oberoi Intercontinental de Nova Delhi não ficava atrás.
Por estranho que pareça, a despeito de todas as minhas viagens, eu jamais estivera em Paris, a cidade que mais me excitava a imaginação. Poderia ter ido lá várias vezes, fazendo escala a caminho de outros lugares, mas decidi em contrário. Resolvi esperar até estar apaixonada por alguém. No verão passado, finalmente, fui a Paris. Mas estou colocando o carro na frente dos bois. Por enquanto, basta dizer que era suficientemente romântica para querer ver Paris não através das janelas de um Hilton Hotel, mas através dos olhos de um amante. Tenho certeza de ter sido francesa em alguma encarnação anterior. Na use, recebi um prêmio pela tradução que fiz dos dois primeiros capítulos de L'homme qui rit. O que teria sido de minha vida se não me tivesse formado em engenharia, mas em literatura francesa? Se não me tivesse casado com Earl Jr.? Se eu... fosse outra pessoa, é óbvio. "Console-toi, tu ne me chercherais pas si tu ne m'avais trouvé." Pascal, mais uma vez: "Console-se, você jamais me procuraria se não me tivesse encontrado". Eu jamais seria esta "detestável" pessoa (as palavras são dele e não minhas) se esta pessoa não me tivesse encontrado.
Lakshmi sorriu. Era tímida, ou aparentava ser. Indagou inesperadamente:
— Trouxe sua licença de aviadora?
Fiquei surpresa.
— Sim. Mas estou aqui como jornalista e não...
— Sabe pilotar um Learjet?
— Certamente. Mas vim para entrevistar seu marido.
— Naturalmente — concordou Lakshmi, que era uma versão esguia da jovem Grace Kelly que ainda aparece nas últimas sessões de cinema da TV. — Mas Kalki gostaria que a senhora o ajudasse, como piloto...
— Deuses precisam de ajuda?
Minha inflexão foi semelhante à de Arlene, sardônica. Corrigi depressa:
— Desculpe-me. Não era minha intenção parecer grosseira.
Desde o início, achei Lakshmi atraente, como mulher e como... Lakshmi.
O sorriso dela não vacilou.
— Deus exige muitas coisas de nós, Teddy. Acabamos de comprar um Learjet. Está aqui, no aeroporto. Vim de Katmandu ontem, para buscá-lo, mas o piloto está com disenteria. E o co-piloto é incompetente. Foi um verdadeiro achado para mim o fato de você estar aqui. Vai nos ajudar, não vai? Pilote o Garuda. Por favor.
— Sou fácil de convencer — declarei, acrescentando com meus botões: "Por uma garota linda". -— O que é o Garuda?
— O Garuda original era uma enorme ave em cujas costas o deus Vishnu costumava voar. Julguei que devíamos batizar o Learjet com esse nome. Espero que você goste de nós.
Antes que eu me pudesse declarar devota da seita, fomos interrompidas pelo Dr. Ashok. Exibindo seu sorriso de vilão, aproximou-se de nós, com a peruca fora do lugar.
— Madame Ottinger! Está acordada! E vocês se conheceram!
Atirava-nos pontos de exclamação. Decididamente, pertencia à escola de H. V. Weiss. Mais que nunca senti-me convencida de que era alguma espécie de agente governamental. Reconhecera Lakshmi. Não obstante, eu jamais vira qualquer referência a ela na imprensa e, muito menos, uma fotografia sua.
Para meu espanto e constrangimento de Lakshmi, o Dr. Ashok começou a ajoelhar-se lentamente perante ela.
— Pare! — exclamou Lakshmi, num tom duro (naturalmente, os tons de voz são sensíveis ao tato apenas na escola de H. V. Weiss).
Com um estalido artrítico, o Dr. Ashok interrompeu o movimento. A seguir, num processo lento e, sem dúvida, doloroso, tornou a levantar-se, entoando:
— Pranam, ó Rainha do Céu, ó...
— Haverá tempo de sobra para isso no Vaikuntha.
Segundo a preciosa Mitologia hindu, o Vaikuntha é o céu onde residem o deus Vishnu e sua esposa Lakshmi.
Levei tudo aquilo a sério, na ocasião? Não. Em primeiro lugar, ainda me encontrava sob o efeito da diferença de fusos horários e do choque cultural. Em segundo lugar, jamais tivera o menor interesse por Cristo (cientista ou mágico), Maomé, Moisés ou qualquer outro dos adorados deuses da raça humana. Certa feita, venci um debate em sala de aula com o diretor do Departamento de Francês da USC. Declarei que Descartes não conseguira provar a existência de Deus. "Je pense, donc je suis" não é uma verdade, mas um simples comentário. Descartes pretendia estabelecer uma prova causal da existência de Deus. Procurou fazê-lo argumentando que, uma vez que o homem é finito e deus infinito, como seria possível alguém finito imaginar o infinito se este infinito (deus) já não existisse? Facilmente. Não temos experiência da eternidade, mas não temos dificuldade para imaginá-la — certo ou errado? Eu só gosto daquilo que pode ser demonstrado. Por exemplo: se Amélia Earhart não tivesse existido, eu jamais teria voado e seria apenas professora de filosofia.
— Vou a Katmandu, ó Nascida do Oceano, ó Mãe do Mundo. Lá prestarei serviço ao seu consorte, que é imortal, que é infinito, que dorme nas águas...
A despeito de nosso constrangimento, o Dr. Ashok conseguiu recitar um bom número dos vários milhares de títulos atribuídos à deusa Lakshmi e ao deus Vishnu, cuja última encarnação, segundo se julgava (muita gente, menos eu), ocorrera há cerca de trinta e cinco anos, quando J. J. Kelly nascera no bairro irlandês do Canal Industrial, nas proximidades do lago Pontchartrain, na periferia de Nova Orleans.
— Será bem-vindo a Katmandu, Dr. Ashok — declarou Lakshmi com um enérgico meneio de cabeça, colocando um ponto final na conversa, ao estilo hindu.
Com toda a aparência de verdadeira adoração, o Dr. Ashok recuou, de cabeça baixa. Lembro-me de haver pensado naquele momento que, se ele estava fingindo, era indubitavelmente um excelente ator.
— Ele é seu inimigo — disse Lakshmi, com naturalidade.
— E seu também, creio.
Ela, porém, não respondeu. Ao invés disso, encarou-me pelo que me pareceu um longo espaço de tempo. Senti o rosto quente. Devo ter corado, coisa muito rara em mim. Afinal, Lakshmi disse:
— Vamos olhar o povo.
Refleti que se tratava de um modo esquisito de dizer: "Vamos andar um pouco por aí". Mas, afinal, ela era uma divindade. Ou pensava ser. Seria a mesma coisa? "Je pense..."
A caminhada de uma ou duas horas que Lakshmi e eu fizemos pela parte velha da cidade de Nova Delhi decidiu meu futuro. Apaixonei-me por ela. Sou suscetível. Arlene me julgava promíscua. Não é verdade. [Exceto mentalmente. Mantenho-me fora da cama o máximo possível. Talvez seja frígida. "Não há dúvida de que gosto mais, da essência que da substância.
Lakshmi falava muito pouco e o que dizia nunca era muito interessante. Não me importei. Sentia-me eufórica. Gosto mais dos seus silêncios. Eram os momentos em que realmente nos comunicávamos. Meu pai me contara que Amélia era assim: ficava calada durante longos espaços de tempo.
Visitamos um templo hindu onde só viviam macacos. Estes eram extremamente inteligentes e muito mal-humorados. Um zelador postado na entrada principal entregou uma vara a cada uma de nós.
— Os macacos são maus. Mordem. Batam neles — explicou sorrindo e exibindo dentes tão ameaçadores quanto as presas dos macacos.
Lakshmi conduziu-me através de um pequeno pátio, levando-me a uma espécie de capela descoberta, onde cada centímetro de parede estava coberto por intrincados relevos. Havia macacos por todos os lados. Sentavam-se em círculos. Pulavam das janelas para o chão e tornavam a trepar nas janelas. Observavam-nos cautelosamente. Alguns estendiam as mãos, pedindo comida. Outros puxavam nossas roupas. Só recuavam quando ameaçados com as varas. Tagarelavam entre si. Era inquietante. Mostravam-se hostis, arrogantes.
— Aqui estou eu — disse Lakshmi, tocando com a flor de lótus a figura de uma jovem que também segurava uma flor igual. — Nasci no mar.
Era difícil distinguir o restante do relevo sob o estrume dos morcegos e a camada de musgo.
— Como Vênus. Parece uma Vênus de Botticelli.
— Talvez eu o tenha inspirado, também — disse Lakshmi, com um sorriso de Botticelli.
Estaria falando sério? Não consegui perceber. Bateu com sua flor de lótus na flor de lótus do relevo. Quando as flores se tocaram, esperei por um raio, como o que entrou pelo ouvido da Virgem Maria numa- ocasião interessante. À meu próprio modo cético eu estava entrando no espírito da coisa.
De repente, uma macaca enorme se deixou cair do alto. Tinha nos braços um macaquinho rosado, de aparência doentia. Tagarelando agitadamente, estendeu o filhote na direção de Lakshmi, que tocou de leve o animal com a flor que tinha na mão. A macaca se calou. O filhote se mexeu. Então — com um pulo para o alto — os dois desapareceram.
Impressionada, fiz a espécie de pergunta que só poderia mesmo fazer sob os efeitos da diferença de fusos horários, do choque cultural e do amor:
— Você é mesmo uma deusa?
— Você está realmente surpresa?
— Não sou religiosa. Divirto-me com as provas da existência de Deus. São bastante engraçadas.
Comecei a citar Descartes, mas desisti. Qualquer menção dos mestres franceses fazia Arlene sair correndo para a sala de TV, onde também ficava o bar.
— Não creio que sejamos muito bons em questão de provas — disse Lakshmi, tentando limpar com a ponta da vara a figura de um deus de quatro braços. — E também não creio que sejamos engraçados.
— O que você é?
— Rainha do céu.
Pelo menos, estávamos num daqueles dias fora de sincronia, em que é possível se fazer afirmações como essa sem que se pareça totalmente louca. O ambiente ajudava.
— E se você nos aceitar...
Lakshmi se interrompeu, sorrindo. Seus olhos eram da mais pura cor de avelã, como os da Vênus de Botticelli.
— O que acontecerá?
— Nós lhe daremos acesso ao Vaikuntha, quando a era de Kali terminar.
Lakshmi soava como Arlene ao prometer que arranjaria duas entradas para o teatro.
— E quando terminará a era de Kali? — perguntei, lembrando-me de minha condição de repórter. Além disso, sentia-me genuinamente curiosa. Quem não se sentiria?
— Quando chegar o momento.
Todos os macacos das proximidades nos fitavam atentamente. Ter-se-ia espalhado a notícia de que havia uma deusa no templo? O silêncio dos animais não me parecia natural. Fiquei inquieta.
Afinal, Lakshmi terminou de limpar a figura que estivera raspando com a ponta da vara.
— Aí está ele: Vishnu.
Vi os contornos de um jovem com quatro braços. Usava uma coroa.
— Numa das mãos, segura uma concha. Está vendo?
Raspei a sujeira com a ponta de minha vara.
— Estou. Por que uma concha?
— Quando Vishnu surgiu na terra pela oitava vez, chamava-se Krishna. Naquela época, havia um demônio que vivia no mar, dentro daquela concha. Krishna o matou — explicou Lakshmi, apontando para um objeto redondo em outra mão do deus. — Aquilo é o disco, uma arma. A mão seguinte segura uma clava. E a última... está vendo?... segura um lótus, como eu.
— Por que o lótus?
— Quando Vishnu estava adormecido sobre as águas — que foi de onde eu nasci, que foi de onde viemos todos que estamos atualmente nesta terra — um lótus brotou de seu umbigo. E o lótus deu à luz Brahma. E Brahma criou o mundo.
Aquilo era um pouco demais para alguém que travara conhecimento não apenas com as ligeiras confusões de Mary Baker Eddy, mas também com as noções surgidas nos séculos XVII e XVIII a respeito de a divindade constituir uma extensão da matemática. Na use eu estudara a ciclóide que tanto obcecara Galileu, Descartes e Pascal. Reexaminando o passado, compreendo que a matemática pura, que conduzira Descartes a Deus, conduziu-me à engenharia.
— Pensei que Vishnu fosse deus.
— Tudo é deus. Nada é deus.
Já que me apaixonara por ela, disfarcei minha impaciência. Tinha um trabalho a fazer.
— Como teve início o universo? — indaguei, esperançosa.
— Havia, antes de todos os tempos, um deus supremo chamado Prajapati. Tinha... ou melhor, tem... três aspectos: Brahma, o criador; Vishnu, o preservador...
— Onde está Brahma atualmente?
Eu conhecia a resposta, mas queria saber o que Lakshmi diria. Qualquer variante da Mitologia hindu poderia servir de pista.
— Está dormindo. Só acordará quando chegar a época de recriar o mundo.
— E o terceiro deus?
— O terceiro aspecto do deus único é Shiva, o destruidor — respondeu Lakshmi, franzindo a testa. — Há quem o coloque acima de Vishnu.
— E onde está Shiva agora?
— Aqui... ali... em toda parte. Sempre esperando.
— Esperando o quê? — insisti, lamentando não ter lavado a cabeça antes de sairmos.
Todavia, Lakshmi não respondeu. Atravessamos juntas o pátio em ruínas. Os macacos nos observavam, em silêncio; entre eles, a macaca com o filhote. Ao passarmos por onde se encontrava, ela fitou Lakshmi com expressão aflita. Os olhos do filhote estavam fechados. Não percebi se estava morto ou apenas adormecido.
Lakshmi estendeu a mão e tocou a cabeça da enorme macaca. Pude quase sentir as longas presas se fechando sobre aquela mão alva e delicada. Para meu espanto, nada disso aconteceu.
— São nossos amigos — explicou Lakshmi. — Quando Vishnu veio à terra sob a forma de Rama, casou-se com Sita... uma encarnação anterior de mim mesma. Quando o rei-demônio Havana seqüestrou Sita, houve uma grande guerra entre Rama c Ravana. Nessa guerra, os macacos lutaram ao lado de Rama c o rei-demônio foi destruído, como sempre acontece. Desde aquela época, os macacos nos amam e nós também os amamos.
Bem, Mary Baker Eddy achava que a dor, a doença, a velhice e a morte eram "enganos".
Saímos do templo. Tudo era tão irreal que dei uma esmola ao que julguei ser um mendigo, mas se tratava de um macaco muito irritado, com dentes amarelos e olhos como os do Dr. Ashok. Então, tendo cometido tal engano e por pouco não recebendo uma dentada na perna, usei minha vara para bater no que julguei ser um macaco de maus bofes, mas verifiquei tarde demais — que se tratava de um mendigo sem as duas pernas.
Lakshmi nos colocou num táxi antes de sermos linchadas por um raivoso grupo de homens e macacos — ou melhor, dois grupos, pois os macacos não gostavam do pessoal das redondezas, bem como as pessoas detestavam os macacos.
Naquele dia tão estranho, nenhum dos dois grupos gostava de mim.
Na manhã seguinte, Lakshmi e eu fomos ao aeroporto de Nova Delhi, onde, milagrosamente, ela conseguiu que as autoridades aprovassem meus documentos em menos de uma hora.
— Tenho influência — comentou simplesmente.
E tinha mesmo. Um jipe nos levou, através de pistas esburacadas, até a área onde os aviões particulares eram guardados e abastecidos.
Uma dúzia de mandali estavam à nossa espera. A maioria deles eram brancos americanos. Pareciam bastante normais. Nenhum apresentava indícios de uso de drogas. Não obstante, curvaram-se perante Lakshmi. Embora ela fizesse questão de apresentar-me a cada um deles, não gravei na memória qualquer dos nomes. Estava apenas interessada no aeroporto, na equipe de manutenção do jato e nas vacas que, não sei como, tinham conseguido passar pela cerca de arame farpado e estavam na pista.
Na qualidade de pilota, criei um grande caso a respeito das vacas na pista. Ninguém me deu atenção. Há vários milhares de anos a Índia sofria (como sempre) o problema de superpopulação. O principal dilema para os soberanos: comer as vacas ou utilizá-las na agricultura? Esta última solução saiu vencedora. A vaca era o trator original, primitivo. O resultado? Excesso de vacas e excesso de gente. Tendo chegado ao pior ponto a que se é possível chegar neste mundo, em fevereiro passado a Índia constituía um macrocosmo do que havia de errado com a raça humana.
Enquanto a equipe de manutenção, indolente e incrivelmente suja, observava displicentemente, fiz uma minuciosa inspeção (que H. V. Weiss chamaria de "passar o pente fino") no Garuda. Encontrei, sob uma lona no compartimento de bagagens, o que parecia um conjunto de pilhas. Na realidade, era uma bomba-relógio.
Sempre me senti fascinada por dispositivos elétricos de qualquer tipo, inclusive pelos destinados a disparar explosivos. Tratava-se de um aparelho sofisticado e, obviamente, fabricado fora da Índia. Virei-me para o chefe da equipe de manutenção, um sujeito baixo e corpulento, com cara de assassino. Sim, existe gente com cara de assassino. Basta olhar no espelho. Focalizei a lanterna elétrica em seus olhos, fazendo-o piscar.
— O que é isto? — perguntei, exibindo a bomba.
Felizmente, estava assustada demais para ter medo. É algo que ocorre esporadicamente no ar, durante uma emergência.
— Baterias — respondeu ele. — Baterias extras. Muito úteis. Em Katmandu não existem sobressalentes. São muito caras.
— Acho que não precisaremos delas — disse eu, sorrindo. — Podem ficar com você — acrescentei, estendendo-as para ele.
— Não, não! — exclamou, aterrorizado, demonstrando que, de algum modo, era cúmplice no caso. — Precisa das baterias — declarou, recuando.
— Essas baterias fazem bum, bum! — retruquei, fazendo menção de jogá-las em cima dele.
Com um grito de pavor, o sujeito saiu correndo do compartimento de bagagens. Nunca mais tornei a vê-lo.
Tratei de trabalhar. Sabendo que o menor engano nos pulverizaria de mistura com a poluição que cobria Nova Delhi, retirei o mecanismo de disparo. Evidentemente, não cometi qualquer erro. Concentrei-me totalmente na tarefa... exceto por lembrar-me de Amélia. Quando me defronto com uma emergência, penso em Amélia decolando de Lae, na Nova Guiné. Penso em seu navegador, Fred Noonan, bêbado, na parte traseira do avião. Imagino um diálogo entre eles. Faltam poucas horas para o desastre — ou para o pouso num lugar secreto. Às vezes, tenho a impressão de saber o que ela disse e o que ele respondeu. Creio que Amélia provocou propositalmente o desastre. Era mais corajosa que eu.
Quando retirei a bomba do avião, Lakshmi disse:
— Estamos atrasadas.
Surpreendi-me ao verificar que levara uma hora para desligar e retirar o mecanismo. Às vezes, o tempo é capaz de parar...
— Sinto muito — repliquei, friamente. — Houve um problema. Já foi resolvido.
Não querendo provocar alarma, não dei explicações.
A tripulação me observava com caras que H. V. Weiss descreveria como "impassíveis". Encaminhei-me para um tonel cheio de, água de chuva da estação das monções e larguei a bomba dentro dele. Em seguida, tomei uma garrafa de refrigerante de laranja, enjoativamente adocicado. Minhas mãos começaram a tremer. Lakshmi fitou-me, curiosa. Percebeu que havia algo errado, mas não fez perguntas.
Decolamos pouco depois do meio-dia.
Havia mais de um ano que eu não pilotava um Learjet e, embora não fosse meu avião favorito, sentia-me feliz por estar quinze mil metros acima dos macacos agressivos, vacas indolentes e gente faminta. Antoine de Saint-Exupéry escreveu, em alguma de suas obras, que o aviador nato é fascista. Sei que isso não é literalmente verdadeiro, mas compreendo o que ele quis dizer. Quando uma pessoa voa sozinha deixa de ser parte da raça humana. Fica fora, acima, além dela. Só ela e o cosmo existem. Ou, pelo menos, é o que se pensa. Compreendo como deve ser fácil para um aviador soltar uma bomba. Na realidade, nada existe sob ele exceto a maligna gravidade. Ao aviador, tudo o que interessa é a delicada película azul-escura através da qual ele enxerga um cosmo que não parece fitá-lo de volta.
Deliciei-me por ver os picos do Himalaia, irradiando vapor como gelo seco exposto ao sol. Em momentos como aqueles, sempre tive vontade de poder transmitir aos outros o que é ser como... bem... vento, areia, estrelas — até mesmo quasars e outros sóis. Contudo, sou apenas uma aviadora nata; nada mais que isso. Pelo que sei, Saint-Exupéry, além de não ser aviador nato, era um péssimo piloto, que acabaria mais cedo ou mais tarde morrendo num desastre — o que, de fato, aconteceu. Por outro lado, sabia enfeitar o cosmo com belas palavras.
Lakshmi juntou-se a mim, acomodando-se no assento do co-piloto. Quis saber o que atrasara nossa decolagem e eu lhe revelei o motivo. Perguntei se aquele fora o primeiro atentado contra ela — ou contra Kalki.
— Sim, foi a primeira vez — respondeu Lakshmi, serena. — Todavia, Kalki afirma que haverá outros atentados.
Embora ela estivesse sorrindo, notei que a flor de lótus murchara em seu punho cerrado. Indaguei se ela tinha idéia de quem colocara a bomba no avião. Lakshmi deu de ombros:
— No final da era de Kali, haverá muitos horrores.
E nada mais disse.
Perguntei-lhe por que motivo eu não havia lido nada a seu respeito nas reportagens sobre Kalki.
Lakshmi pareceu divertir-se com a pergunta.
— Porque sou uma das revelações.
— Quando deverá ser revelada?
— Muito em breve.
O mais depressa possível, arranquei-a da vaga essência trazendo-a de volta à substância.
— Onde conheceu Kalki?
— Quando emergimos juntos do mar, no seio do lótus.
Virei-me para encará-la e percebi seu sorriso de criança travessa. Imediatamente, ela assumiu seu solene ar de deusa hindu.
— Eu me referia a tempo e lugar...
— No ano-novo de 1970, em Chicago — disse Lakshmi, num tom surpreendentemente enérgico. — Fui a uma festa no Drake Hotel, com um rapaz com o qual eu julgava que desejasse casar-me.
— Você é de Chicago?
— Não. Sou de Silver Spring, em Maryland. Meu pai era um politiqueiro em Washington. Defendia os interesses de indústrias açucareiras em Cuba. Então, Fidel Castro assumiu o poder em Cuba, e foi isso aí. Felizmente, restou-lhe dinheiro suficiente para mandar-me para uma universidade americana. Fiz então dois anos na Universidade de Chicago. Graduei-me em física nuclear. Mas quando conheci Kalki no Drake Hotel, foi isso aí.
— Abandonou os estudos.
— Abandonei tudo. Desde então, nunca mais tornei a ver minha família. Nunca mais tive contato com qualquer pessoa de minha vida anterior, exceto Geraldine O'Connor. Você a conheceu no aeroporto. Somos amigas de infância. Kalki também gosta dela. Estudou comigo na universidade, mas depois transferiu-se para o MIT. Ela...
Resolvi interromper, delicadamente. Não estava interessada em Geraldine O'Connor, a quem nem notara no aeroporto de Nova Delhi.
— Qual era o seu verdadeiro nome?
Sentia-me excitada. Na verdade, jamais imaginara descobrir algo de valor para o Sun. Agora, eu realmente conseguira "furar" a CBS (como diria H. V. "Weiss). Descobrira a desconhecida esposa de Kalki.
— Fui batizada com o nome de Doris. Doris Pannicker. Com dois enes e um cê.
— Então, não nasceu realmente no mar...
— Na primeira vez, sim. Nesta última, foi uma confusão: nasci de cesariana. Minha mãe jamais me perdoou.
— Casou-se com Kalki em Chicago?
Naquele momento, a amistosa Doris Pannieker transformou-se repentinamente na altiva Lakshmi, Rainha do Céu.
— Você terá que perguntar a ele — respondeu, levantando-se da poltrona. — Quero que conheça os outros.
Um por um, os mandali vieram à cabine de comando e se sentaram a meu lado. Todos me pareceram desinteressantes, menos Geraldine O'Connor, a amiga íntima de Lakshmi. Tinha cabelos ruivos rebeldes, pele sardenta e um corpo bem-torneado.
Contou-me que havia sido professora de bioquímica. Também era doutora em biofísica. Realizara pesquisas de genética.
— Estava a ponto de conseguir uma cadeira no MIT quando abandonei tudo para juntar-me a Kalki.
Era evidente que Kalki aprovava as mulheres cientistas. Tentei adivinhar que tipo de diploma ele conseguira em Tulane. Talvez um curso de religião comparada — com alguém como o Dr. Ashok? Conheceria o Dr. Ashok? Minha mente se ocupava em fazer associações com dados insuficientes.
Perguntei a Geraldine qual fora a reação do MIT à sua partida. Ela riu. Um som agradável.
— Por recusar uma nomeação? Jamais se ouviu falar nisso no mundo universitário. Sou uma exceção. Todavia, tudo isso é kal.
— O quê?
— Kal é o termo hindu para ontem. Kal é também o termo hindu para amanhã.
Aquilo se ajustava perfeitamente à impressão que eu tinha da cultura hindu. Comentei:
— Kal explica o motivo pelo qual não possuem história ou ciência. Tudo acontece no presente — ou não acontece.
Geraldine replicou com a frase que resume os mil nomes do deus Vishnu, que está presente em todo o universo:
— Sahasra-nama.
Eu gostava de Geraldine. Amava Lakshmi. E temia o desconhecido Kalki.
O aeroporto de Katmandu é um dos piores do mundo. Tivemos sorte, porém. A visibilidade estava boa. Não surgiu qualquer nuvem imprevista durante a descida. Amelia certa vez confessou a meu pai que, em termos de pilotagem, não tinha medo das montanhas ou do mar; apenas da selva.
— Cair numa selva da África! — exclamara, arrepiada. — E sobreviver...
Não obstante, caíra no mar. Ou teria caído numa ilha deserta...?
Parei o avião. Meia dúzia de jipes carregados de soldados estavam à nossa espera junto à pista de pouso. Os soldados empunhavam metralhadoras. Quando desembarcamos, eles cercaram o avião.
Lakshmi saudou o oficial comandante. Este prestou continência. Então, muito respeitosamente, conduziu-nos — Lakshmi, Geraldine e eu — até um velho Cadillac. Os outros mandali embarcaram num ônibus.
— Reservamos alojamentos para você no Ananda Hotel — informou Lakshmi.
— É onde se hospedam todos os espiões — completou Geraldine, sorrindo. — Você vai adorar.
Tentei adivinhar o que ela queria dizer com aquilo. Consideravam-me uma espiã, ou agente dupla? Eu era, evidentemente. Todavia, em sentido literal, a duplicidade (duplicité, duplicitatem) faz parte do jornalismo — segundo Morgan Davies. E de metade da vida, também.
Devido à escolta policial, não precisamos cumprir as formalidades costumeiras para entrar no país. Fomos tratadas como membros da realeza. E, também, como prisioneiras.
Lakshmi informou que tomaria providências para que eu fosse apresentada a Kalki no dia seguinte.
Geraldine apontou-me as principais vistas de Katmandu as que podem ser divisadas da estrada do aeroporto. O principal monumento era em honra de — e de quem mais poderia ser? — Conrad Hilton.
Assinei o registro do Ananda Hotel. O recepcionista beijou-me a mão. Era húngaro. Entregou-me um telegrama de Morgan Davies com os dizeres: "FURE CCC AMMRAM". Interpretei como: "Fure a CBS. Amor de Morgan". Não tive muito tempo para pensar no assunto.
O saguão estava apinhado com todo o tipo de gente, na maioria homens, muitos deles caucasianos, nenhum deles turista. Negócios era a ordem daquele dia no Himalaia. Sob uma loto emoldurada em dourado do jovem gordo que era o atual rei do Nepal, estava a nada caucasiana encarnação da minha Nêmesis.
— Bem-vinda a Katmandu! — exclamou o Dr. Ashok, apertando com firmeza minha mão que fora tão recentemente beijada.
A peruca parecia estar apoiada nas sobrancelhas. O efeito era simplesmente ridículo e cretino. Ele irradiava perfídia.
— Como chegou tão depressa?
— Vim de tapete mágico, minha cara Madame Ottinger. Muito mais rápido que o Garuda e — permita-me dizer — muito mais seguro.
Era evidente que o Dr. Ashok sabia a respeito da bomba. Teria colocado o engenho no avião? Agora estava certa de que se tratava de um agente da CIA. Também estava certa de que ele se sentia sexualmente atraído por mim. Sorri para ele. As mulheres perdoam instintivamente muita coisa num homem que é atraído sexualmente por elas (pace, Greer, Millett, Figes). Por outro, lado, tentativa de homicídio não está entre as coisas instintivamente perdoadas, exceto por masoquistas irrecuperáveis. Por mim, prefiro causar dor a recebê-la.
— Estamos cercados de agentes secretos — disse o Dr. Ashok.
— O senhor é o próprio — repliquei.
Era verdade. Todos os agentes chineses usavam óculos com aros de aço. Os agentes russos pareciam homens de negócios americanos, e, tal como eles, iam cavar dólares até mesmo ali, naquele fim e topo do mundo. A CIA estava representada pelo Dr. Ashok, que me convidou para almoçar, informando que conhecia muito bem Katmandu.
— Vai precisar de alguma cor local para o Sun.
Enquanto caminhávamos em direção a um restaurante na parte velha da cidade, percebi que até mesmo em Katmandu havia neblina. Não obstante, o clima era revigorante. A despeito da altitude, nunca neva em Katmandu. Se não fosse pela neblina, poderíamos avistar os picos mais altos do Himalaia, além da cidade. Naquelas montanhas só existe neve e gelo.
Gostei da parte velha da cidade. Pretendia fazer anotações, mas havia coisas demais para ver. Templos, estátuas, pagodes, altares redondos dedicados ao Buda chamados stupas. Cores vivas, predominantemente escarlate e açafrão. Odores pungentes: canela e sândalo. Formas intrincadas...
As pessoas eram altas, de tez pálida e olhos oblíquos; pareciam mais chinesas que hindus. Todas, sem exceção, aparentavam estar no início, meio ou fim de um resfriado. Coçavam o nariz, fungavam e cuspiam. Arrependi-me de não ter permitido que o médico de Arlene me aplicasse uma vacina contra a gripe suína.
O Dr. Ashok parou diante de um prédio de madeira escura. Pesadas traves lavradas sustentavam um telhado pontiagudo coberto com telhas amarelas. Rótulas cobriam janelas minúsculas. De repente, uma das rótulas do segundo andar se abriu. Uma menina se debruçou para fora, gritando. Quanto mais ela gritava, mais o Dr. Ashok e os transeuntes nepaleses se divertiam. Então, braços adultos envolveram a menina e esta desapareceu da janela.
— Uma deusa — disse o Dr. Ashok. — Quando encontram uma, trancam-na no palácio para o resto da vida. A deusa anterior desencarnou há algum tempo e demoraram muito para encontrar sua nova forma. Naturalmente, a reencarnação fica um tanto perturbada, no início.
— Como podem saber que a criança é uma deusa?
— Sinais astrológicos. Sinais físicos. Ora, nossos... seus sacerdotes são peritos no assunto. Os deuses nepaleses são sempre... kosher, como vocês costumam dizer. Ao contrário de certos deuses auto-proclamados.
O Dr. Ashok soltou uma risadinha de satisfação. Certa vez, perguntei a H. V. Weiss qual a diferença entre uma risadinha de satisfação e uma risada. Entre um sorriso afetado e um riso reprimido. Entre... Bem, foi inútil. A despeito de sua incorporação à atual escola estruturalista francesa, Weiss nada conhecia a respeito das palavras. De qualquer modo, poucos teóricos profissionais de linguagem ficam à vontade com esta. Percebi o fenômeno quando assisti a uma aula de Noam Chomsky, que encontrava dificuldade para exprimir-se por meio de palavras. Talvez as conhecesse tão bem que relutava em utilizá-las...
A Casa de Chá Lua Azul era uma série de pequenos salões de refeição, separados uns dos outros por cortinas de contas de vidro. A clientela era constituída principalmente de hippies (o termo antigo — será que já inventaram outro?) ocidentais e de asiáticos pretendendo parecer americanos radicados na Ásia.
— Antigamente, havia muito mais tipos como aqueles — informou o Dr. Ashok, apontando para meia dúzia de americanos dopados até às orelhas e trajando roupas dos anos 60. Katmandu era como uma máquina do tempo de ficção científica: uma volta a épocas anteriores dos Estados Unidos. — Felizmente, o governo nepalês vem adotando uma linha dura... ou melhor, mais dura... quanto ao uso de drogas. A maioria da ralé já foi embora. Ou se transformou, como o seu Sr. Kelly.
Serviram-nos uma aguada sopa de legumes cheia de curry. Havia também fatias de pão torrado. Uma refeição realmente desagradável. Tomamos cerveja.
— Qual a sua impressão pessoal a respeito de Dóris Pannicker? — indagou o Dr. Ashok.
— Refere-se a Lakshmi? É bonita. Inteligente. Acredita que Kalki é deus. Todos eles acreditam.
— Bem, minha cara Madame Ottinger, vou abrir o jogo com a senhora. Não sou professor da Universidade Fairleigh Dickinson de Nova Jersey. Isso é apenas a minha cobertura, como costumamos dizer. Na realidade, sou um agente especial da Agência Central de Inteligência do governo dos Estados Unidos, também conhecida como CIA ou a Companhia. Eis minhas credenciais.
Por baixo da mesa, o Dr. Ashok exibiu algo que podia ser qualquer documento com uma fotografia sua. Pela primeira vez, desconfiei que talvez ele não fosse agente da CIA.
— Eu gostava da sua cobertura anterior, Dr. Ashok. Era muito melhor que esta segunda.
O Dr. Ashok não deu atenção ao comentário. Já iniciara o que presumi tratar-se de uma arenga bem ensaiada.
— Preciso de seu auxílio, cara senhora. Os Estados Unidos precisam de sua ajuda. Suspeitamos que J. J. Kelly, ex-integrante do Corpo Médico do Exército dos Estados Unidos, seja não apenas uma peça-chave no tráfico de drogas que tem origem no chamado Triângulo Dourado, a noroeste de cuja hipotenusa a senhora e eu nos encontramos agora, em Katmandu, como também, simultaneamente, talvez por motivos correlatos, esteja trabalhando para o serviço secreto da União Soviética, o KGB, cuja intenção é causar o maior atrito possível entre a China e a Índia, com relação ao Nepal, bem como, por meio da infiltração planejada da organização religiosa de Kalki nos Estados Unidos, desmoralizar ainda mais este país, por meio do incremento do tráfico de drogas e do deliberado enfraquecimento da ética protestante de trabalho que tornou sua república uma maravilha aos olhos do mundo, utilizando para esse fim a propagação do hinduísmo — a única religião verdadeira, como creio, mas que não é aplicável aos que servem perante o altar de Moisés, de Jesus e da família Rockefeller. Este é o Sr. Jason McCloud, do Departamento de Combate aos Narcóticos dos Estados Unidos. Procure não aparentar surpresa e não faça menção de cumprimentá-lo formalmente. Limite-se a permanecer como está. Ele ocupou a cadeira à sua esquerda. Finja que já são velhos amigos. Há um agente do KGB neste recinto.
Da maneira mais natural possível naquelas circunstâncias, virei-me para a esquerda. A meu lado estava sentado um enorme negro americano, trajando terno azul, com colete.
— McCloud — disse ele.
— Ottinger — respondi.
McCloud exibiu-me suas credenciais, diante de todos. Obviamente, não era dado a sigilo.
— É importante que a senhora se infiltre no reduto de Kelly — declarou McCloud, falando com os dentes trincados, numa boa imitação de um popular ator de TV cujo nome ainda não consigo lembrar.
— Já expliquei — disse o Dr. Ashok, acendendo um cigarro de maconha.
Fiquei ligeiramente espantada. Seria correto um agente da CIA acender um baseado na presença de um homem a quem aqueles que prestam reverência ao Departamento de Narcóticos chamariam de "narc"? Tive a impressão de que o Dr. Ashok estava procedendo sem muito tato. Depois de uma longa tragada, o Dr. Ashok passou o baseado a McCloud, que, por sua vez, inalou profundamente. Pela primeira vez, pensei que talvez McCloud fosse realmente o que alegava ser. É bem sabido que os agentes do Departamento de Narcóticos são, sem uma única exceção, viciados em drogas. Recusei o baseado.
McCloud, com ar sonhador, colocou-me a par dos detalhes.
— Esse tal de Kelly radicou-se aqui em 1968. É o chefe de uma belíssima organização. Tem agentes em Kabul, em Dacca, em Vera Cruz. O ponto de distribuição nos Estados Unidos é Nova Orleans. Temos uma boa idéia geral de como ele opera, mas faltam alguns elos da cadeia. É aí que a senhora entra.
— Não nos esqueçamos, porém, das implicações políticas da organização de Kelly — disse o Dr. Ashok, se possível ainda mais untuoso que de costume, em conseqüência do haxixe, ou ganja. — Naturalmente, nosso bom amigo McCloud é obrigado a raciocinar apenas em termos do tráfico de drogas. Permita dizer logo de saída, Jason, antecipando sua natural defesa do Departamento de Narcóticos, cujos milhares de agentes estão espalhados pelo mundo inteiro, descobrindo rigorosamente e promovendo... quero dizer, suprimindo... a venda de narcóticos de qualquer tipo, que se trata de um elemento muito importante da equação. E que belo trabalho realizam todos vocês! Não apenas coletivamente, como também individualmente, na figura simpática, porém inteligente e inflexível do agente especial Jason McCloud, o Terror do Triângulo Dourado, o Flagelo da Hipotenusa Noroeste!
Assoberbado de emoção por tão profuso elogio, McCloud revirou os olhos para cima, deixando o branco à mostra. E assim permaneceu. Um efeito realmente alarmante. Estava totalmente dopado.
Um tanto tarde demais, percebi que a Casa de Chá Lua Azul era o que antigamente se costumava chamar de antro de ópio; a diferença era que os clientes, em lugar de cachimbos de ópio, fumavam haxixe.
-— Boa noite, meu doce Jason — cantarolou o Dr. Ashok.
— Que bandos de anjos o conduzam a seu ninho. A ganja local é muito forte... posso chamá-la de Teddy?
— Não — repliquei, com o sorriso mais delicado que consegui exibir. Decididamente, estava ficando alta só em respirar aquele ambiente enfumaçado.
— Estou perplexo. A senhora é uma mulher muito bonita, além de aviadora mundialmente famosa. Por que acha que o seu Sr. Kelly lhe permitiu entrevistá-lo?
— Não sei. Quer parar de soprar essa fumaça na minha cara? Já estou ficando tonta.
O Dr. Ashok apagou cuidadosamente o baseado. Depois, avarentamente, guardou a beata no bolso.
— Tivemos alguma dificuldade para infiltrar-nos no ashram de Kalki; por sinal, um belo exemplo da arquitetura nepalesa do século XIII. O que procuramos é a ligação entre o seu Sr. Kelly e o KGB.
— Destruidores da juventude — disse Jason McCloud, com o branco dos olhos ainda brilhando no rosto escuro. — Predadores de parques infantis — acrescentou, trincando os dentes. — A maconha é meio caminho andado para coisas muito piores.
Estava profundamente adormecido.
— Um agente de narcóticos realmente devotado e intrépido — comentou o Dr. Ashok. Em seguida, virou-se para mim, com um brilho de falsidade nos olhos dourados. — Minha cara Madame Ottinger, a CIA ficar-lhe-ia eternamente grata — assim como a nação inteira, também — se a senhora nos servisse de olhos e ouvidos no interior do reduto de Kelly.
— Não, obrigada.
Eu já estava começando a ficar cansada do Dr. Ashok. A fumaça que pairava no ambiente me causava dor de cabeça.
— Não sou espiã do governo dos Estados Unidos. Sou correspondente do National Sun.
— Só existe uma coisa digna da lealdade da senhora, de todos os americanos e de mim, também: o Mundo Livre. Para servir a essa nobre, mas constantemente ameaçada entidade, especialmente agora, que os poderes do Mal, enquanto aqui falamos...
— Enquanto o senhor fala — interpus.
Mas ele nem escutou. As palavras continuaram a jorrar dos lábios escuros e azulados:
— ...enfrentam em espúria batalha, nas alturas do Himalaia, as forças do Bem, o que está em jogo é nada mais, nada menos, que a alma humana, a própria atman meretrícia.
Fiquei satisfeita ao perceber que ele não conhecia o significado da palavra "meretrícia", da mesma forma que me satisfez saber que "atman" é o termo hindu para designar a alma.
— Jurei perante a bandeira dos Estados Unidos... — disse McCloud, agora de olhos fechados. Em seguida, recitou em voz grave e emocionada o juramento à bandeira.
Eu começava a perder o contato com a realidade. Sentia-me irreal, como ocorria quando Arlene estava embriagada e eu não. Tinha a mesma sensação junto àqueles dois imbecis.
— O que sabem sobre Kelly? — perguntei, farta de retórica.
— James Joseph Kelly tem trinta e cinco anos. Dois anos mais que o seu deus Jesus tinha por ocasião de seu infortúnio final no topo do Gólgota.
— Meu deus Jesus, não. Sou atéia.
Tive vontade de citar Diderot, mas não consegui lembrar o texto exato em francês. Sempre invejei a confiança daqueles philosophes. Julgavam-se capazes de saber tudo. Ousaram até mesmo escrever uma enciclopédia. Será que Amélia falava francês? Sei que escrevia poesias. Li algumas. Ela também queria ser tudo. Ou estarei procurando recriá-la, imaginá-la à minha própria imagem?
— Nesse caso, merece congratulações — replicou o Dr. Ashok, suave como seda. — Não se sabe muito a respeito de Kelly até 1964, quando ingressou no Exército dos Estados Unidos, aos vinte e um anos de idade, recém-formado em Tulane. Então, começa o mistério, Uma vez que Kelly era um estudante do curso preparatório para medicina e protegido do brilhante Professor Dr. Giles Lowell, poderia perfeitamente evitar qualquer participação na Guerra do Vietnam — ou "ação policial", para definir aquela corajosa tentativa de salvar o sudeste asiático para o Mundo Livre. Kelly poderia ter continuado a estudar medicina, fazendo uma especialização. Ou poderia tornar-se oficial no seu... no nosso Exército. Todavia, preferiu alistar- se como moldado. Escolheu o Corpo Médico. Pediu para servir no Vietnam. Insistiu em continuar a ser um mero sargento. Por quê? Creio que conheço a resposta. Ele tomava drogas. Vendia drogas. Portanto, para um humilde soldado, o Corpo Médico era o lugar ideal para conseguir, secretamente, um ilimitado suprimento de drogas — especialmente na conturbada Saigon em tempo de guerra.
Agora, a cabeça de McCloud repousava em meu ombro. O Dr. Ashok ajudou-me a apoiá-la de encontro à parede. Ninguém nos dava a mínima atenção. Os demais viciados comiam bolinhos de aspecto venenoso. Os viciados adoram açúcar.
— Existem algumas lacunas na folha de serviço militar de Kelly. Por exemplo: esteve numa espécie de missão especial em 65. O Serviço de Informações do Exército se recusa a nos dizer qual era tal missão. Imagine! Como se, a longo prazo, conseguissem esconder alguma coisa da Companhia! Todavia, não estamos realmente interessados em histórias antigas, por mais interessantes que sejam. O que desejamos saber — e nisso pretendemos contar com seu auxílio — é o motivo pelo qual ele se transformou repentinamente numa figura religiosa. Por que motivo emprega seu próprio dinheiro, auferido através de sua organização de tráfico de drogas, nas Empresas Kalki — que financiam centenas de ashrams espalhados pelo mundo inteiro. Se, como suspeitamos, ele emprega sua enorme influência potencial de figura religiosa para subverter o modo de vida americano, a fim de favorecer um credo alienígena baseado num coletivismo desumano.
A peruca recuara, como a maré na praia. Um ar inteligente voltara a surgir naquela testa morena. O Dr. Ashok retirou do bolso uma pequena caixa de prata.
Comentei em tom neutro:
— Segundo as pessoas mais ligadas a Kalki, ele acredita realmente ser uma reencarnação de Vishnu. Julga realmente que o fim do mundo é iminente.
Ante meu olhar espantado, o Dr. Ashok abriu a caixinha de cocaína, aspirando-a. Em seguida, tornou a guardá-la. Para todos os efeitos, poderíamos estar numa festa do pessoal de cinema, em Bel-Air.
— Apenas a título de argumentação, cara senhora... — começou ele, soltando um espirro — ...suponhamos que Kelly realmente acredite ser Kalki e que o mundo esteja prestes a terminar quando ele cavalgar seu corcel branco. A propósito, acabamos de receber a informação de que ele realmente comprou um cavalo branco, que chegará a Katmandu no domingo, oriundo da famosa criação de Jaipur. Kelly não sabe andar a cavalo, mas cremos que tomará lições de equitação. De qualquer forma, digamos que ele está vivendo sinceramente a lenda de Kalki. Nesse caso, por que se estabeleceu comercialmente no Estado americano de Delaware, sob o nome de Empresas Kalki? Por que comprou o prédio de apartamentos Jefferson Towers, a pouca distância do complexo Watergate — de propriedade do Vaticano — em Washington, D.C.? Por que está fazendo grandes investimentos imobiliários em Los Angeles? Por que seus adeptos, enquanto aqui conversamos... ou melhor, enquanto aqui eu falo... se espalham pelos Estados Unidos, pregando a sagrada palavra de Kalki e espancando os seguidores do Reverendo Sol Lua? Encontre resposta para estas perguntas e estará um passo, um pulo à frente da Companhia e será uma grande, verdadeira cidadã americana!
— Leia tudo no National Sun. Preciso ir. O Sr. McCloud morreu? Creio que parou de respirar.
O Dr. Ashok, com ar muito profissional, tomou o pulso de McCloud.
— Está vivo. E sonhando. Minha cara senhora, considere-se também incluída em nossa folha de pagamentos. E lembre-se que só o céu é o limite para aqueles que trabalham para a Companhia.
Para meu total espanto, o Dr. Ashok começou a enfiar notas de vinte dólares no bolso de meu casaco.
— Um adiantamento. Um sinal de confiança. Uma pequena lembrança, cara Madame Ottinger.
Era dia 14 de fevereiro. Dia dos Namorados.
Finalmente, consegui detê-lo, evitando não apenas que me corrompesse em nome do governo dos Estados Unidos, como também que me bolinasse disfarçadamente.
— Tome seu dinheiro de volta — declarei, colocando os maços de notas em cima da mesa.
Senti-me nobre. E também dopada. Talvez estivesse.
— Julguei que a senhora fosse patriota — declarou o Dr. Ashok, fitando-me com ar fúnebre.
A peruca tornara a escorregar para a frente, eliminando o ar inteligente.
Com alguma dificuldade, consegui levantar-me e passar por McCloud, cujo rosto estava apoiado na mesa.
O ambiente estava azulado com fumaça de ganja. Casa de Chá Lua Azul?
No primeiro salão havia uma jovem americana, sentada sozinha. Usava óculos de aro de metal e um chapéu à moda do século passado. Estava chorando e tomando chá com hortelã. Tinha uma cor doentia.
Na cozinha, alguém tocava flauta.
Havia um recado de Lakshmi no hotel: "Um carro virá buscá-la amanhã, às dez horas, para levá-la ao ashram". Estava assinado com o desenho de uma flor de lótus.
No dia seguinte, o carro não chegou às dez horas, mas ao meio-dia. Como conseqüência, fui mais uma vez encurralada pelo Dr. Ashok, que parecia menos untuoso que de costume. Além disso, tinha as mãos trêmulas. Seria um sintoma de falta de droga?
Quando saí para o terraço à frente do hotel, o Dr. Ashok se destacou de um grupo de agentes secretos (rotarianos, ou representantes comerciais) americanos e me cumprimentou em chinês.
Informei que chinês não está entre as várias línguas que falo. Ele se desculpou. Então, aplicou a conversa. Queria colocar em mim um aparelho de som, de modo que tudo o que fosse dito no ashram pudesse ser gravado no escritório da CIA, no centro de Katmandu. Recusei. O Dr. Ashok não pareceu surpreso. A essa altura, eu tinha absoluta certeza de que ele estava louco.
Pedi licença. Sentei-me a uma das mesas no terraço e pedi chá, que não trouxeram. Observei os bandos de turistas japoneses que passeavam por entre o tráfego, fotografando-se mutuamente. Examinei mais uma vez meu gravador de fita. Minha expressão dizia claramente: "MANTENHA DISTÂNCIA".
O carro do ashram chegou, afinal. O motorista era nepalês. Tive certeza de estar sendo seqüestrada. Por algum motivo, a paranóia floresce depressa no Himalaia. Imaginei-me acorrentada ao monte Everest, repetidamente seviciada por bandos de abomináveis homens da neve, auxiliados por um ou outro sherpa.
Os arrabaldes de Katmandu eram semelhantes aos de qualquer outra cidade do mundo. Isto é, feios, toscos, desorganizados, com um amontoado de prédios de concreto. O panorama para além da periferia, porém, era verdejante e ondulado. Num dia bonito (aquele não era), podia-se ver o Himalaia, faiscando ao sol como massa de quartzo e cristal.
Detesto descrições nos livros. Então, por que me sinto na obrigação de descrever o Nepal? Suponho que pelo fato de ser realmente diferente, inesperado.
Nas partes mais antigas de Katmandu, as casas são feitas de tijolos vermelho-escuros, que lembram as casas dos séculos XVIII e XIX que vemos aqui em Georgetown. Todavia, as casas nepalesas têm pequenas janelas com postigos em treliça, telhados pontudos cobertos de telhas amarelas e sustentados por traves de madeira entalhada que se projetam por sobre as ruas estreitas... Mas já descrevi isso antes. Estou convencida de que vários milhões de quilômetros de filmes de TV que as pessoas assistem a contragosto substituem milhões de páginas de prosa descritiva que ninguém leu de bom grado. Meus autores prediletos, Diderot, Voltaire, Pascal, quase nunca descrevem alguma coisa.
Cheguei ao ashram sem ter sido estuprada. O ashram era uma grande mansão de tijolos vermelhos, situada num bosque de árvores altas e de aspecto delicado. O Dr. Ashok tinha razão. A casa era linda. Dois policiais nepaleses mantinham guarda à porta principal. Pareciam nervosos.
Geraldine veio ao meu encontro. Os policiais olharam primeiro para ela e depois para mim. Pareciam hostis. Minha paranóia atingia o auge da florescência. Entre os hijinks da Casa de Chá Lua Azul e a tentativa de explodir o Garuda, eu já não era a legendária e intrépida Teddy Ottinger.
— Pranam, Teddy.
Retribuí o pranam.
Geraldine estava usando um sari de seda verde, contrastando com os cabelos ruivos. Achei-a simpática. Todavia, parafraseando a canção favorita de Arlene na longínqua década de 40, meu coração pertencia a Lakshmi.
Entramos juntas numa comprida sala com escuras traves de teca lavrada. O efeito era perturbador. Por um instante, tive a impressão de estar de volta a Los Angeles, numa sala em estilo neocolonial espanhol, o último recurso das donas-de-casa de minha geração, sobre as quais o estilo provençal francês tivera efeitos negativos. Nos meus tempos de dona-de-casa, eu me guiava estritamente pela Bauhaus. Earl Jr. era adepto do estilo provençal francês, de corpo e alma.
— Kalki está meditando — informou Geraldine. — Todos estão. Menos eu. Passei a manhã inteira à sua espera.
Expliquei o motivo de meu atraso.
— Então, fique para almoçar. Espero que goste de arroz. É nossa única comida.
Comecei a ligar meu gravador, mas Geraldine sacudiu a cabeça.
— Kalki não permite gravadores.
— Posso fazer anotações?
— Se quiser, mas não fará muita diferença. Quero dizer, tudo o que você receberá dele é um comprimento de onda, entende? Ele transmite e nós recebemos — se conseguirmos, é claro. Sente-se.
Sentamo-nos lado a lado num banco comprido. Tive a impressão de estar esperando um trem.
— Há quanto tempo você está aqui? — perguntei, fazendo o possível para agir como uma repórter profissional. Meu único problema é que, embora costume fazer as perguntas adequadas, quase nunca escuto as respostas.
— Faz apenas um ano. Tem sido verdadeiramente fascinante. Tenho meu próprio laboratório.
— De genética?
— Sim. Estou tentando isolar certos...
Geraldine se interrompeu, não dando maiores explicações. Pensava que eu não entenderia, ou tinha medo que eu entendesse?
— De qualquer forma, o grande desafio é conseguir trazer o equipamento até aqui. Foi por isso que acompanhei Lakshmi até Nova Delhi: para buscar um novo tipo de laser — disse ela. Então, franziu a testa, acrescentando: — Lakshmi disse que você encontrou uma bomba...
Assenti, indagando:
— Quem você acha que a colocou no avião?
— Não sei. Kalki tem inimigos. Pode ter sido muita gente. Ele é incrivelmente popular na Índia. Por isso, os brâmanes antiquados o odeiam. Ele possui até mesmo missões secretas no interior da China vermelha e os chineses não gostariam, se soubessem... E creio que já devem saber.
— Mas por que nos matar, em vez de Kalki?
— Kalki deveria estar no avião. À última hora, resolveu permanecer em Katmandu.
— Este negócio não é muito seguro, não acha?
Geraldine sorriu.
— Bem, tem que existir gente que não quer que a era de Kali termine. Suponho que julgam que, matando Kalki, a vida continuará como era antes. Mas não será assim.
Antes que eu pudesse arrancar dela uma explicação sobre o significado daquelas últimas palavras, um gongo soou no interior da casa.
— Kalki está na sala de audiências — anunciou Geraldine num tom reverente.
Levantou-se e tomou-me o braço, guiando-me em direção às enormes portas duplas de teca, na outra extremidade do salão, que se abriram automaticamente. Tanto Geraldine como Lakshmi eram fascinadas por dispositivos eletrônicos. A própria Lakshmi instalara as portas. Decididamente, nós três éramos pouco femininas, pelo menos nos termos em que a feminilidade era definida naquela época.
A sala de audiências era do mesmo tamanho que o salão de espera. De encontro a uma parede havia um estrado com meio metro de altura. No fundo do estrado, uma estátua de madeira, em tamanho natural, do deus Vishnu. Nas quatro mãos ele segurava uma concha, uma clava, um disco e uma flor de lótus. A estátua era pintada numa horrível tonalidade de azul... a cor oficial de Vishnu.
Sobre o tablado encontrava-se Kalki, sentado de pernas cruzadas. Olhava fixamente em frente. Teoricamente, podia ver-nos, pois nos encontrávamos em sua linha de visão; mas, na realidade, não nos enxergava porque, segundo explicou Geraldine, sua atman, ou espírito, abandonara o corpo.
Acreditava eu em tudo aquilo? Claro que não. Tinha uma tarefa a cumprir; nada mais que isso.
Quando Geraldine e eu nos sentamos, lado a lado, no dispendioso tapete persa estendido diante do tablado, tive bastante tempo para examinar Kalki. Ele usava uma túnica cor de açafrão, com um cinto de corda. A parte superior do corpo era esguia. As pernas nuas e cruzadas eram grossas e musculosas, cobertas de pêlos dourados. Ao contrário de suas fotografias que eu vira antes, barbudo e cabeludo como um Jesus Cristo da Associação Cristã de Moços, estava barbeado. O cabelo louro e crespo era curto. Os olhos, que fitavam um ponto distante no espaço, eram de um azul profundo.
Minha heterossexualidade latente começou a fazer-se sentir. Kalki atraía-me sexualmente. Era louro. Sou morena. Esse simples fato era suficiente para colocar em vibração nossas respectivas células. Os opostos se atraem. Todavia, eu ainda não escutara a voz. Nos homens, a voz é de importância capital. Só consigo reagir sexualmente a um determinado timbre. Não existindo esse timbre, fico fria. Nas mulheres, é uma certa curvatura na parte interna da coxa. Arlene a possuía. Eu esperava que Lakshmi também a possuísse.
Devemos ter ficado dez minutos à espera de que Kalki retornasse ao corpo e viesse juntar-se a nós. Afinal, ele respirou profundamente. Piscou os olhos. Geraldine segredou-me ao ouvido:
— Toque o pé dele. É um sinal de respeito.
Trepidantemente (um advérbio predileto de H. V. Weiss), toquei o dedão do pé de Kalki. A pele era áspera e seca.
Kalki me encarou. Então, sorriu, indagando:
— O que existe além da maternidade?
— Liberdade — respondi. Não era a primeira vez que me faziam aquela pergunta. —- Pode-se ser tanto homem como mulher.
— Tirésias.
Espantei-me ao verificar que ele sabia quem era Tirésias. Não sei bem por que motivo, julgara que Kalki seria um tanto estúpido. Ao contrário, ele era inteligente, culto, atraente. E a voz? Para mim, um afrodisíaco. Falava com um leve sotaque sulino, que me agradava — muito diferente do modo enrolado de falar de um recente presidente dos Estados Unidos. Todavia, ainda melhor, a voz de Kalki era de barítono, beirando o baixo. Agora, eu estava totalmente ligada. O interruptor fora girado. Todos os sistemas entraram em funcionamento.
— Pranam — disse Kalki, dando início à sua pregação. — Sou o avatar — declarou em tom sensato. — Sou o mais alto dos altos. O divino amado, que vos ama mais do que vos amais a vós mesmos. Antes de mim houve Zoroastro, Rama, Krishna, Buda, Jesus e Maomé. Agora, eu cheguei. Atcha. Estou aqui. Sou o avatar definitivo, a última encarnação neste ciclo de tempo. No dia em que eu cavalgar o corcel branco, com a espada nandaka cintilando como um cometa em minha mão direita, destruirei os maus. À minha aproximação, a carne deste mundo se abaterá como capim sob a foice e a era de Kali terminará. Então, no silêncio do vácuo, recriarei a raça humana. A idade de ouro retornará. Pois eu sou Kalki. Sou Vishnu.
Sou o mais alto dos altos. Antes da criação do universo, eu era. Depois que a última estrela se apagar, continuarei sendo.
Kalki se calou, tão inesperadamente quanto começara a falar. Não demonstrava qualquer interesse por minha reação. Evidentemente, já repetira inúmeras vezes aquela arenga.
Eu me sentia irresistivelmente arrebatada — por desejo físico, sexual. Com um esforço, lembrei-me de minha missão. Perguntei:
— Quando cavalgará o corcel branco?
— Amanhã. Estou tomando lições — respondeu Kalki, num tom perfeitamente natural.
— Quero dizer, quando... bem, quando terminará o mundo?
— Quando eu terminar — declarou Kalki, obviamente disposto a não revelar seus segredos. — Agora... Teddy?...
— Por favor — disse eu. — Chame-me de Teddy.
— Nesta terra, à todo momento, existem cinco Mestres Perfeitos. Creio que encontrei três deles. Antes do fim, preciso encontrar os outros dois.
Kalki lançou-me um olhar demorado.
— O que é um Mestre Perfeito? — indaguei.
— Uma das pessoas que se dedicam à orientação espiritual do mundo. Antes da era de Kali, era fácil reconhecê-los. Até mesmo em tempos tão recentes quanto os de Moisés, não era difícil identificar quem era ou não era um Mestre Perfeito. Agora, porém, que tudo aquilo que é humano se deteriorou e desmoronou, os Mestres Perfeitos estão desmoralizados como qualquer outra pessoa. Atualmente, é possível que um Mestre Perfeito nasça, viva e morra na mais completa ignorância de sua própria identidade.
Percebi tudo. Eu estava sendo entrevistada para verificar se merecia o Mestrado Perfeito. Resolvi fazer o jogo dele. Não sabia por que motivo Kalki desejaria alistar-me em seu movimento religioso. Talvez fosse sua cantada ou procedimento-padrão. Não havia dúvida de que ele era um maravilhoso sedutor e de que eu estava disposta a ser seduzida. E quero dizer, literalmente, seduzida: no mais completo sentido do termo. A mensagem religiosa de Kalki me interessava ainda menos que os relatórios da Sra. Eddy a respeito de seus progressos na ciência cristã.
— Conhece Mike Wallace? — perguntou Kalki.
— Pessoalmente, não. Mas já o vi pela televisão.
— Eu nunca o vi. A propósito, faz muitos anos que não vejo a televisão americana. De qualquer forma, ele vai me entrevistar para a CBS.
Informei que Wallace era famoso e que o programa 60 Minutos tinha um elevado índice de audiência. Mal pude acreditar em meus próprios ouvidos. Ali estava eu, no Himalaia: Teddy Ottinger, piloto de prova, falando a respeito dos índices de audiência do programa de televisão de Wallace à encarnação definitiva do deus Vishnu. Minha cuca estava fundida.
Um gongo soou em outro lugar da mansão.
— Hora do almoço — anunciou Kalki.
Levantou-se. Era mais baixo do que eu julgara. Todavia, mantinha-se muito ereto e movimentava-se (sim, H. V. Weiss) como um grande felino.
Quando Kalki fez um gesto para que o acompanhássemos, percebi que usava um bracelete de ouro, incrustado com um enorme cabochão de rubi, a jóia syamantaka (sim, Mitologia hindu), sempre usada pelo deus Vishnu. Kalki também trazia outra marca do deus: no centro de seu peito crescia um único tufo de cabelos louros, um sinal seguro de divindade. Presumi que raspasse o resto dos cabelos do peito, a fim de preservar a tradição. Sentia-me totalmente atraída sexualmente pelo Sr. Kelly.
Havia vinte ou trinta pessoas ao almoço. Sentamo-nos de pernas cruzadas em tapetes, formando um círculo. Fiquei à esquerda de Kalki. À sua direita estava Lakshmi, que me saudou como velha amiga. Entre a curvatura da parte interna da coxa de Lakshmi (que eu imaginava) e a voz de Kalki (que eu escutava), fiquei no cio. Além da Maternidade não nos deixa Além de Eros. Muito pelo contrário.
Os mandali ali reunidos formavam um grupo heterogêneo. A maioria eram americanos. Pareciam homens de negócios. O tipo que a gente vê em exposições aeronáuticas, fechando grandes transações. O único mandalin religioso era um velho hindu de barbas brancas. Parecia bondoso, introspectivo, santo. Tive certeza de que se tratava de um Mestre Perfeito, mas Geraldine informou-me de que se tratava de um contador de Madras, que viera falar com Kalki a respeito de negócios.
Uma aparelhagem de som fora instalada em todo o ashram, de modo que éramos obrigados a ouvir a ascensão, queda e dispersão final dos ídolos sonoros dos anos 60, os Beatles. Por mim, preferia o som de Joni Mitehell, mas esta ainda não era conhecida em Katmandu.
Jovens... acólitos?... em túnicas cor de açafrão nos serviram montes de arroz com legumes cozidos. Ocasionalmente, Kalki murmurava a palavra hindu que significa paz:
— Shanti.
Fora disso, não nos embaraçou (pelo menos a mim) com sua santidade. Disse-me que tinha licença para pilotar um Cessna.
— Mas nunca pilotei um jato. Quero que você me ensine a pilotar o Garuda.
— Vishnu deveria saber pilotar o Garuda sem precisar de lições — repliquei, procurando irritá-lo.
Ao invés disso, quem reagiu foi Geraldine, afirmando com total convicção:
— Kalki é capaz de tudo.
Parecia acreditar realmente no que dizia.
Kalki sorriu.
— Bem, não há dúvida de que eu bem poderia receber algumas aulas sobre a pilotagem de jatos.
Fiquei satisfeita por ele não basear seu comportamento em Moisés, Jesus, ou qualquer outro daqueles deuses mal- humorados. Vishnu, a despeito de seus quatro braços, era um criador amável.
— Vamos dar um passeio — declarou Kalki. — Logo depois do almoço.
Contudo, isso não foi fácil. Em primeiro lugar, foi preciso entrar em contato com o aeroporto de Katmandu. Isto levou uma hora. Então, tivemos que alertar a equipe de manutenção e fazer uma solicitação às autoridades. Só conseguimos decolar às cinco horas.
Nesse ínterim, várias centenas de peregrinos hindus e nepaleses se haviam reunido fora do ashram. Formavam um círculo em torno de um stupa em ruínas, coberto de botões de rosa ainda não desabrochados.
Lakshmi e eu nos postamos a uma janela e observamos Kalki caminhar... não, planar em direção ao stupa. Quando ele surgiu, os peregrinos se prostraram ao solo. Pareciam extáticos, mas de um modo discreto. Produziam um estranho som suspirante.
Kalki galgou o stupa e ergueu os braços numa bênção. Então, começou a falar em hindi. Sua voz era grave, baixa, sedutora. Alguns dos devotos choravam. Alguns gemiam. Outros riam nervosamente. Muitos tocavam os pés de Kalki, em sinal de adoração.
Perguntei a Lakshmi o que ele dizia.
— Está descrevendo o fim da era de Kali. Ensina como devem purificar-se. Fala maravilhosamente o hindi. E, naturalmente, conhece o sânscrito, o idioma original dos deuses.
— Aposto que não aprendeu sânscrito no curso preparatório para medicina em Tulane.
Lakshmi riu.
— Deus sabe falar qualquer idioma. E, naturalmente, deus vive há oito anos no Nepal.
Kalki deu a bênção final. Depois, desapareceu.
— Ele vai encontrar você no carro. O que acha dele?
Lakshmi parecia realmente interessada em minha reação a Kalki.
— Bem, é muito atraente.
— Oh, querida! E você também é muito atraente — disse ela, pesarosa (como diria H. V. Weiss).
Para usar um neologismo, senti-me "despesarosa".
— Você me acha mesmo atraente?
A despeito de minha ousadia, creio que ela não percebeu a mensagem. Considerava-me simplesmente mais uma mulher bonita que poderia cobiçar-lhe o marido.
— Claro que acho. Sabe — acrescentou... ou melhor, dividiu —, somos castos. Faz parte da purificação.
Passou o braço pelos meus ombros, como uma irmã. Estremeci de excitação.
— Você terá um papel a representar na história sagrada — declarou, dando-me um beijo muito casto no rosto. Só faltei gritar. — Tenho certeza disso.
— Que tipo de papel?
Lakshmi limitou-se a sorrir. Cheirava a jasmim.
Sentei-me ao lado de Kalki no banco traseiro do velho Cadillac. As janelas estavam cobertas por cortinas já gastas pelo uso. O motorista estava separado de nós por um painel de vidro. Ao passarmos pelo portão principal, os guardas bateram continência. Pareciam ainda mais nervosos que antes. Mais uma vez, tive a impressão de que Kalki era, no Nepal, uma espécie de rei e, ao mesmo tempo, prisioneiro.
Perguntei-lhe se estudara sânscrito na escola.
— Não. Mas tenho facilidade para línguas. E nem poderia ser de outro modo.
— Não poderia ser de outro modo?
— Claro. Para o que tenho a fazer.
— Você foi sempre Vishnu?
— Sempre.
— E sempre soube disso?
Os olhos azul-escuros de Kalki brilharam repentinamente quando um raio de sol penetrou por um furo na cortina.
— Não — respondeu ele. Depois, sorriu, dizendo: — Sim.
— Sim ou não?
— Ou não e sim.
— Não consigo acompanhá-lo.
— E eu não a estou guiando.
— Mas você tem... bem... tem que ensinar alguma coisa.
— Não vim ensinar, mas despertar.
A resposta foi muito pronta.
— Despertar para quê?
— Para o fim.
— Quando será isso?
— Em breve.
— Quando?
— Quando eu cavalgar o corcel branco, empunhando a espada. Acredita em mim?
Fiquei sem saber ao certo o que responder. Naturalmente, não acreditava em uma só palavra que ele dizia. Não obstante, recebia dele uma espécie de estranha vibração. Talvez fosse uma vibração religiosa, mas desconfio que fosse apenas... apenas!... sexual. As fãs de Santa Teresa de Ávila acham que as duas reações não diferem muito entre si.
— Você exige um bocado de fé.
— É preciso.
— Estou curiosa a respeito de uma coisa — disse eu, um pouco sem fôlego por sentir o corpo dele próximo ao meu.
- Por que se dá tanto trabalho quando vai destruir o mundo? Isto é, por que não termina tudo sem fazer estardalhaço? E, depois, começa tudo outra vez, ou, seja lá o que pretende fazer? Quero dizer: por que fazer pregações? Por que fazer leis se todos morrerão, de qualquer maneira?
Kalki cheirava a sândalo, a loiro. O suor dos loiros é diferente do nosso.
—- Já não faço leis — disse Kalki, esticando as pernas. Fiquei úmida no meio das minhas. — No passado, eu promulgava princípios. Fazia leis. Todavia, desde o início da raça humana só alguns seguiram o caminho indicado por mim. Agora, pela décima e última vez, aqui estou. E já é tarde demais para leis. O máximo que posso fazer é ajudá-los a purificar-se, a conseguir serenidade, a se aproximar de mim.
Kalki fitou-me como se meu rosto fosse um mapa que trouxesse marcado com um x o local onde estava escondido o tesouro.
— Quando eu fui Buda, aprendi o caminho da iluminação e da sabedoria por meio da eliminação de todo o desejo e, finalmente, do ego, da individualidade. Compartilhei com os que seguiram meu caminho o conhecimento de que o "eu" não existe; só existe sunya, um lindo vazio, um vácuo no qual estão todas as coisas, e nada mais. Mas fracassei como Buda. Antes de ser Buda, fracassei como Krishna. Antes de ser Krishna, fracassei como Rama. Embora como Rama eu tenha destruído o rei-demônio Ravana, que tentou raptar minha esposa. À exceção de umas poucas almas, estou sempre separado do homem pela sua própria cortina de ignorância.
— Todavia, se você for mesmo deus, pode rasgar essa cortina quando quiser.
Kalki não fez réplica a esse eterno argumento. Os deuses rabugentos, em geral, jamais conseguem responder à pergunta: "Bem, já que o Mal não lhe agrada, por que o inventou?" Creio que Vigny definiu bem a questão: "J'aime la majesté des souf-frances humaines". Não obstante, sei que se eu fosse deus não apreciaria os sofrimentos humanos, por mais majestosos que fossem. Muito ao contrário. Por outro lado, eu também não me daria o trabalho de inventar a raça humana...
— A cortina cairá no último dia — declarou Kalki, peremptório. — Nesse ínterim, eu também evoluo. Embora eu seja, em essência, eterno e imutável, não estarei completo, como Kalki, até o dia em que cavalgar o corcel branco e a raça humana chegar ao fim.
— Para recomeçar?
— Se eu quiser.
Posso assegurar que não existe algo como falar sobre o final do mundo para diminuir o apetite sexual. Naquela altura eu estava... o quê? Preciso ser absolutamente exata. Este ponto da história é crucial. Crucial é derivado de cruz. Relativo ou pertencente à cruz. Julguei que ele fosse louco, ou um grande ator, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Fiquei arrepiada pela frieza com que falou no final. O Final. Não obstante, tenho consciência do processo de terminar minha vida. A primeira e implacável lei de nosso estado é a segunda lei da termodinâmica: tudo se dissipa. Mesmo assim, eu não conseguia conceber que alguém simplesmente desligasse o motor.
No aeroporto, embarcamos no Garuda.
— Sempre desejei ser um bom piloto — disse Kalki, apertando o cinto no assento do co-piloto.
Expliquei-lhe os instrumentos. Ele compreendia depressa. Bastava dizer as coisas uma única vez.
Lá em cima, deixei-o tomar os controles. Ele tinha boa coordenação. Disse-me o quanto gostara de Além da maternidade, em especial dos trechos a respeito de pilotagem.
— Por isso quis conhecê-la pessoalmente.
Era simples, franco, encantador. Deus?
Conversamos sobre a aviação. Relatei-lhe alguns dos problemas que as mulheres eram obrigadas a enfrentar como aviadoras. Durante a Segunda Guerra, Jacqueline Cochran e Nancy Love (eu a conheci, uma mulher linda) tinham treinado um certo número de aviadoras para testar e transportar aviões para as forças armadas americanas. Havia mais de mil aviadoras incorporadas como pilotas no Serviço Feminino da Força Aérea (WASP). Como era de se esperar, os homens ficaram furiosos. Em 1944, o Congresso dos Estados Unidos dissolveu a unidade feminina. Trinta anos mais tarde, graças a meus esforços e de algumas outras, as mulheres tinham permissão para voar como pilotas de aviões militares e, também, das linhas comerciais. Nossa maior vitória ocorreu em setembro de 1966, quando dez mulheres foram aceitas para o curso de treinamento de pilotos na Base Aérea de Williams, perto de Phoenix. Fizeram-me membro honorário da Ordem de Fifinella, fundada pelas ex-integrantes da WASP. Sempre adorei conviver com aquelas mulheres. Algumas delas tinham conhecido Amélia. Éramos como irmãs. Kalki se mostrou compreensivo.
Deixei que ele subisse até doze mil metros e depois indiquei-lhe o rumo do Everest, que emitia vapores como gelo seco ao sol. Percebo que estou repetindo a mesma comparação. H. V. Weiss jamais o faria. Mas eu faço.
— Quem colocou a bomba no Garuda, ontem? — perguntei.
Kalki não pareceu interessado.
— O governo da Índia. O governo americano. A Associação das Nações do Sudeste Asiático. Quem sabe? Que diferença faz?
— Conhece o Dr. Ashok?
Kalki assentiu, replicando:
— Que acha da peruca dele?
— Não convence ninguém.
Kalki riu.
— Todos eles estão no meu encalço. A CIA, O Departamento de Combate aos Narcóticos...
— Por quê?
— Por que não? Sou o destino deles. É apenas humano procurar fugir ao destino, que é a morte.
— O Dr. Ashok acha que você negocia com drogas.
— Talvez tenha razão — respondeu Kalki, imperturbável.
— Parece-me uma atividade muito estranha para um deus.
— Não existem regras, exceto as que eu resolvo ditar.
Pela primeira vez, senti a frieza de Kalki — e não me refiro àquilo que H. V. Weiss chamaria de "frieza". Uso a palavra no seu sentido literal, como algo inumano, desumano. Havia no interior de Kalki uma zona além de zero, um nível no qual ele era incapaz de reagir a qualquer pessoa de um modo normal. Eu já percebera isso em alguns animais. Neutralidade. Distância. Alheamento.
— O que devo escrever para o Sun a seu respeito?
— Que eu sou o Sol... e também a Lua, e as estrelas — replicou Kalki, com um sorriso encantador. — Escreva o que quiser.
— Você é o fim...
— ... e o começo. E o meio. Você é uma mulher atraente, Teddy.
— Já escrevi que você é casto — disse eu, sentindo o arrepio de frio começar a diminuir.
— Sempre existem exceções. Deus talvez ainda penetre em você. Talvez você seja escolhida.
— Isto é um convite?
Eu realmente o desejava.
E Kalki me desejava, também. Mas a resposta foi enigmática:
— Quando você passou para além da maternidade, veio até mim.
O resto de nossa conversa foi sobre aviação. Ele nunca ouvira falar de Amélia Earhart. Expliquei-lhe tudo a respeito dela. Amélia tivera um casamento infeliz com um editor e publicitário chamado George Palmer Putnam. Se ela se matara propositalmente naquele último vôo, G. P. (como Amélia chamava o marido) fora o culpado. Em meus devaneios, gostava de imaginar que Amélia era minha mãe.
Bem tarde naquela noite, Bruce Sapersteen telefonou para mim, no Ananda Hotel. Presumi que todos os espiões de Katmandu estivessem na escuta. Pela voz, parecia jovem. Comecei a colocar cabelos ruivos em sua cabeça. Primeiro, costeletas. Depois, cachinhos curtos no topo. Transformei-o numa versão mais jovem de H. V. Weiss.
— Estive com Kalki — informei.
Enquanto as linhas telefônicas de Nova York para Katmandu estalavam e zumbiam com os aparelhos de gravação de uma dúzia de agentes secretos, forneci a ele os dados iniciais de minha reportagem para o Sun. Fazia uma idéia de como Morgan abordaria o assunto. À moda antiga: "Dr. Livingstone, presumo". E eu no papel de uma intrépida Stanley no topo do mundo. Mencionei uma grande quantidade de detalhes sobre o ambiente local.
— Escreverei tudo — disse Sapersteen, muito satisfeito.
Sempre "como relatado a", pensei com meus botões, nunca "como relatado por".
— O grande problema — declarou Sapersteen — é saber quem colocou a bomba no Garuda.
— Kalki não parece se importar em saber.
— Gozado...
— É que ele realmente pensa que o mundo está prestes a terminar.
— Ele já lhe forneceu a data do fim do mundo?
— Não. Mas julgo que será dentro em breve.
Então, Bruce Sapersteen, pesquisador, apresentou um pouco de pesquisa:
— As Empresas Kalki acabam de alugar o Madison Square Garden para a noite de 15 de março. Haverá uma espécie de concentração. Descubra...
— É para isso que estou aqui.
Naquele momento, a ligação foi cortada. Como tudo o mais, as companhias telefônicas do mundo inteiro se encontravam num estado de crescente entropia durante aqueles últimos dias da era de Kali.
Na manhã seguinte, enquanto esperava que o carro do ashram me apanhasse no hotel, tive mais uma palestra com o Dr. Ashok. Ele estava no terraço da frente, conversando com um grupo de chineses. Quando me avistou, veio quase correndo.
— Cara Madame Ottinger! — a mesma cerimônia idiota de sempre. — Acabamos de saber que Kalki chegará aos Estados Unidos dentro de duas semanas! Promoverá uma concentração no Madison Square Garden, em Nova York.
Suspeitei que ele tivesse escutado minha conversa com Sapersteen. O Dr. Ashok prosseguiu:
— Nessa ocasião, Kalki anunciará que o fim do mundo está próximo. Então, fornecerá a data exata.
O Dr. Ashok parecia tão enlouquecido que, pela primeira vez, admiti que fosse não apenas mentalmente são, como também sério, a despeito da essencial frivolidade de seu suposto patrão, a CIA.
— Quando estiver no ashram, a senhora precisa descobrir essa data!
Tentei acalmá-lo:
— Farei o possível.
— Cara senhora! — sussurrou sombriamente o Dr. Ashok em meu ouvido. — Considere isso uma investigação. Por conta da Deusa Dourada, ou do Galho Branco.
Era bastante evidente que a mais completa confusão imperava naquela mente desorganizada. Pensei, contristada, no dinheiro que eu pagara de impostos para sustentar gente como o Dr. Ashok e Jason McCloud.
Nos dias seguintes, consegui evitar o Dr. Ashok. Nesse ínterim, Kalki me evitava. Via-o apenas em público, recebendo romeiros. Contra meu melhor (poderia haver um pior?) julgamento, deixei-me impressionar pela facilidade com que ele falava hindi, chinês e outras línguas. Possuía a qualidade de astro, um elemento muito mencionado no círculo de amigos de Arlene pertencentes ao show business — nenhum dos quais o possuía. Sei que possuo um toque. Arlene também possui. Amélia era a personificação desse elemento.
Lakshmi apresentou desculpas. Explicou-me que Kalki estava muito ocupado. Sugeriu que eu assistisse a algumas das aulas, "para ter ao menos uma noção do que realmente somos". Segui o conselho. E passei muitas horas de tédio, entoando incompreensíveis mantras em sânscrito. Muitas delas continham o om, um monossílabo que significa a trindade hindu. Os noviços americanos, em especial, curtiam muito o om. De algum modo, aquelas preces nos ajudariam a atingir o infinito, por ocasião do Fim. Sempre achei o infinito muito pouco atraente como abstração...
Quando eu já quase não sabia mais o que fazer, fui salva por Geraldine. No momento em que eu saía de uma das aulas, levada a um estado de imbecilidade por tantos oms, Geraldine surgiu diante de mim. Usava um jaleco branco de laboratório. Passou o braço pelo meu.
— Já sofreu o suficiente — declarou, com um belo sorriso. — Vamos dar um passeio de automóvel.
Assim, fomos dar um passeio num Volkswagen empoeirado.
Um dia claro e fresco, mas não frio. Campos de inverno pardacentos. Esparsas casas de fazenda. Grupos de árvores esquisitas, bem como bosques de coníferas. Pequenos templos ou altares dedicados a um ou outro deus. Na maioria dos casos, porém, os lugares santos eram consagrados ao jovem local que conseguira a beatificação, o Buda, a penúltima encarnação de Vishnu, atualmente residindo no corpo dourado de J. J. Kelly.
— Está gostando? — indagou Geraldine, num tom que lembrava o das aeromoças.
— Não. Não consigo falar com Kalki desde aquele primeiro dia.
— Deve existir um bom motivo.
— Existe também uma grande pressão sobre mim.
Era verdade. Morgan ligara pessoalmente. O primeiro artigo fora um sucesso. Onde estava o segundo?
— Não, se você desistir da história.
— Desistir dela? O que resta de minha carreira depende desta reportagem.
— Existem outras carreiras.
— Não existem mais aviões para eu testar. Não existem mais recordes para eu quebrar.
Ali estava o resumo de tudo.
— Sempre fui sua admiradora.
A declaração de Geraldine foi feita de modo tão simples e sincero que, mais ou menos, me apaixonei por ela. Eu estava suscetível demais, naqueles dias que passei no Himalaia. Entregava-me a ataques de choro ao anoitecer. E tomava Valium.
Geraldine parou o carro. Estávamos no topo de uma colina arredondada, onde havia uma pequena cratera redonda cheia de água escura, que brilhava como metal polido.
— Aí está a origem do Ganges — anunciou Geraldine.
— Estou impressionada.
E estava. Mesmo que aquele laguinho escuro não fosse a verdadeira origem do rio sagrado, o cenário era... como é mesmo a palavra?... numinoso. Geraldine mostrou-me o local onde o lago transbordava, transformando-se num regato que logo desaparecia por entre os abetos. Pensei em matas verdes e frescas, em neve derretida, em cascatas, em grandes confluências. Então, de repente, ali estava: o Ganges, bissetor e nutridor da Índia inteira. Um rio que sempre fora sagrado, desde que "começou a jorrar do dedo do pé de Vishnu" — como explicou Geraldine com absoluta seriedade.
— Por favor! — eu teria sido mais brusca caso ela não se tivesse declarado, de modo tão amável, minha admiradora. — Quero dizer, você realmente acredita nessas coisas?
Geraldine sentou-se na grama crescida. Sentei-me a seu lado. A umidade não era desagradável.
— Este é o começo — disse ela. Estaria sendo deliberadamente ambígua?
— Do dedo do pé de Vishnu?
— Acredito naquele dedo! — exclamou Geraldine, lançando-me um olhar de esguelha. Não percebi se ela falava sério ou não.
— Deixe-me entrevistá-la — sugeri. — Diga-me, Professora O'Connor...
— Geraldine.
Já era um progresso.
— Acredita realmente que o mundo esteja prestes a terminar e que Kalki levará vocês todos para o céu, também conhecido por Vaikuntha?
— O mundo vai terminar.
— Data?
— Não me disseram.
— Método?
— Não me disseram.
— O céu se abrirá? Haverá anjos, com escadas...
— Não diga tolices.
— Estou tentando descobrir como Kalki pretende livrar-se de nós.
— Ele presidirá o final, da mesma forma que presidiu o começo.
Por mais lunática que pudesse parecer (a mim) nossa conversa, fiquei impressionada com a convicção de Geraldine; e também com sua inteligência. Sentada junto àquela lagoa escura, que pode ser ou não a origem do Ganges, que pode ter brotado ou não do dedo do pé de Vishnu, senti meu ceticismo começar a vacilar. Não acreditava que Kalki fosse deus. Todavia, acreditava que alguém suficientemente inteligente e astucioso para convencer uma pessoa como Geraldine bem poderia ser bastante inteligente e astucioso para deflagrar... digamos... uma reação nuclear que matasse todo mundo, inclusive eu. Pergunta: Por quê? Indaguei o motivo a Geraldine. Esta, porém, não estava disposta a dizer coisa alguma fora da linha oficial estabelecida por Kalki. Descansei o braço no ombro dela. Para meu deleite, Geraldine não fez menção de retirá-lo. Mais progresso.
Ficamos caladas, ouvindo o vento pentear as folhas dos abetos. Afinal, ela disse:
— Teddy — era a primeira vez que me chamava pelo primeiro nome —, Kalki quer você.
Retrocesso.
— Como Jesus?
— Como quê?
— Você sabe. Como esses cartazes que dizem: "Jesus quer você".
— Fale sério.
— Jesus não é sério?
— Jesus não é nada. Foi. Mas Kalki é. Kalki é o avatar vivo. Pode salvar você.
— Puxa!
— Se não está interessada... — replicou Geraldine, tirando meu braço de seu ombro.
Aquilo era chantagem.
Ri, com vontade de chorar.
— Claro que estou interessada. Mas por que eu?
— E por que eu?
— Você acredita nele.
— Você também acreditará. De qualquer maneira, o que interessa é o que ele quer. Portanto... aí está sua oportunidade.
— Mas... o que me oferecem? O paraíso? E o que devo fazer em troca?
Geraldine olhou fixamente para a água. Fiz o mesmo. À intervalos, a superfície escura se franzia em ondulações estranhas. Haveria monstros abaixo dela? Abomináveis serpentes marinhas?
— O que devo fazer? — perguntei, capitulando.
— Largue a reportagem.
Diretamente ao ponto! Compreendi, então, que todos os boatos eram verdade. O Dr. Ashok e McCloud tinham razão. As Empresas Kalki nada tinham a ver com religião; só com drogas.
Repliquei o óbvio:
— Preciso do emprego.
— Kalki cuidará de você.
— E o que faço para ganhar dinheiro?
— Dentro de pouco tempo não existirá mais dinheiro.
— Mas, e daqui até lá?
— Ele pagará o que você quiser. Isso não é problema.
Enquanto Geraldine falava, tive uma visão de milhares de traficantes em parques infantis, tirando moedas de crianças viciadas e enviando-as às Empresas Kalki, estabelecidas em Wilmington, Delaware.
-— Além de acreditar em Kalki, que mais devo fazer?
— Pilotar o Garuda para ele.
Eu não estava preparada para algo tão prático ou que fizesse tanto sentido. Um objetivo, pelo menos, era evidente. Morgan Davies quer uma entrevista com Kalki. Todavia, Kalki não concede entrevistas. Morgan se gaba de haver publicado o livro Além da maternidade, escrito pela melhor aviadora do mundo. Já não tenho modéstia quando escrevo, ou quando não estou escrevendo. Então, Kalki concorda em ser entrevistado por Teddy Ottinger — não porque pretenda conceder uma entrevista, mas porque deseja contratar os serviços da citada melhor aviadora do mundo. Sob um aspecto, eu fora usada. Por outro lado, estava preparada para usá-lo. Portanto, ali estávamos nós. O mistério do motivo pelo qual Kalki só admitia ser entrevistado por mim deixara de ser mistério.
Pelo contrário, um vale de decisão se abrira a meus pés.
— Vou pensar no assunto.
Geraldine e eu caminhamos juntas ao longo da crista da colina. Logo além da lagoa, havia um velho templo de madeira, erguido sobre degraus de pedra muito gastos pelo uso. Bandeiras vermelhas e douradas drapejavam em postes de madeira.
Sacerdotes gordos e sujos nos cumprimentaram. Fomos cercadas por cerca de quarenta cães sujos e gordos, que pareciam viver no interior do templo. Através de postigos estragados, pude divisar a estátua dourada do Buda, com seu misterioso sorriso de quem sabe tudo. Se alguém deve ser deus na terra, ou seu mandatário, suponho que a maneira de Buda seja a melhor: uma neutra auto-absorção sem uma real auto-absorção. Lembro-me de ter desejado, naquele momento, que Kalki imitasse seu predecessor. Era impossível imaginar o Buda no Madison Square Garden, diante das câmeras de televisão. Em compensação, o Buda era um exemplo. Kalki era o fim.
Um dos sacerdotes deu um pontapé num cachorro, que rolou pelos degraus do templo como uma bola de futebol. Todos riram. Os outros cachorros não pareceram intimidados.
Geraldine fez uma prece diante do altar. Os sacerdotes ficaram surpresos e satisfeitos. Mostraram-se ainda mais satisfeitos quando ela lhes deu dinheiro.
No caminho de volta ao Volkswagen, fiz a pergunta crucial. Pelo menos, crucial para o Sun. A respeito de drogas.
A resposta de Geraldine foi calma:
— Também já ouvi falar nisso.
— Onde há tanta fumaça... — comecei.
— Não há fogo — interrompeu ela. — Ouça: todos desejam desacreditar-nos. As outras igrejas. O governo dos Estados Unidos. O governo da Índia. Até mesmo os nepaleses nos ameaçam. Felizmente, dispomos de dinheiro para suborná-los.
— De onde vem o dinheiro?
Quando em dúvida, faça perguntas diretas.
— Dos peregrinos. Dos crentes. São milhões, atualmente, espalhados pelo mundo inteiro.
Geraldine não era do tipo que deixa escapar do saco o gato inconveniente.
— Não chegam a milhões — disse eu, tentando lembrar- me de parte das pesquisas de Sapersteen.
Dezenas de milhares, talvez... mais do que a contribuição da Coréia do Sul à credulidade humana conseguira, porém menos que... digamos... a seita negra dos muçulmanos americanos. Não obstante, os dados da pesquisa mostravam rendas elevadas, grandes investimentos, um constante fluxo de dinheiro para fora — nunca, entretanto, uma explicação plausível para a entrada desse dinheiro. Haveria, em algum lugar do mundo, um bilionário que acreditasse em Kalki e pagasse as despesas?
Uma vez que Geraldine não se dispunha a revelar coisa alguma, decidi jogar uma cartada religiosa:
— Esses milhões de crentes também serão salvos?
— Quando o novo ciclo começar, tudo será novo. Os que se purificarem continuarão, como sempre. Renascerão. Uns poucos felizes privilegiados servirão a Vishnu, no Vaikuntha.
Sempre que havia menção do Vaikuntha, minha capacidade de atenção se interrompia. Foi o que aconteceu naquele momento.
Caladas, aproximamo-nos de uma pedra alta, escura e brilhante, isolada numa campina. Geraldine curvou-se perante a pedra. Murmurou uma mantra. Observando melhor, percebi que a pedra era esculpida em forma de falo.
— Oh... — disse eu.
— É o linga. Emblema do deus Shiva — explicou Geraldine, franzindo a testa.
Ansiosa por mostrar que lera a Mitologia hindu, comentei:
— Shiva é um dos aspectos do deus que é um só, mas também é tríplice.
Meu avô Hecht fora rabino, muito ortodoxo. "A Trindade!", costumava sussurrar. "Que trabalhão não deve ter sido imaginá-la!" Sempre falava em sussurros quando se referia ao cristianismo. Achava que os cossacos andavam sempre por perto, mesmo em San Diego. Morrera pouco depois que meus pais se converteram à ciência cristã. Estou convencida de que a Trindade, trajando jalecos brancos e empunhando seringas hipo- dérmicas, era... ou devo dizer eram?... demais para ele. Meu avô nascera em Luxemburgo. Tentara viver na Califórnia, mas não suportara o sol. Mudou-se para Ohio, onde morreu. Em Dayton. Por que Dayton? Não sei. Os irmãos Wright eram de Dayton. Meu avô fora viúvo a maior parte da vida.
— Shiva nasceu da testa de Vishnu. Tem pescoço azul. É horrível, divino. Coroado com uma lua. Possui três olhos — Geraldine recitou alguns dos epítetos tradicionais utilizados para descrever Shiva. Senti-me razoavelmente segura de que ela não me tentava iludir.
— Quem é mais importante? — indaguei. — Vishnu ou Shiva?
— Vishnu! — exclamou ela, convicta. — Tem que ser!
E nada mais disse sobre o assunto. Eu notara a ênfase no "tem". Evidentemente, existia algum tipo de competição entre Vishnu-Kalki e Vishnu-Shiva. Todavia... nada de compreensão retroativa.
Pela primeira vez, achei o hinduísmo atraente. Bem, moderadamente atraente. E básico. Agradava-me a idéia de representar um deus sob a forma de órgãos genitais humanos. Os cristãos o fizeram no século XII. Deus, o Pai, era o pênis; o Filho era o escroto; o Espírito Santo era a ejaculação. Os judeus não aceitam esse tipo de coisas. No Antigo Testamento, o sexo era apenas para os reis e para a reprodução. Não havia imagens. Para nós, não havia nada esculpido, exceto a coisa mais perigosa de toda a palavra.
No dia seguinte, fui ao ashram. Pedi para ver Kalki. Não estava disponível. Geraldine? Idem. Lakshmi? Deixara um recado para mim. Assistiria eu a uma das aulas matinais?
Foi o que fiz, a contragosto. A sala estava cheia de jovens americanos estereotipados. Todos tinham o mesmo sorriso fixo; pareciam fitar-me com os mesmos olhos vazios, cegos. Sabiam, por instinto, que estavam sobrando em sua terra natal. Sim, a década de 70 era a época ideal para fundar uma religião. Quando se vem ao mundo sabendo que realmente não se existe, que não há ninguém em casa, a solução é deixar Deus — qualquer deus — preencher o vazio.
Enquanto murmurava om em uníssono com os outros, consegui manter minha sanidade mental olhando pela janela. Por isso, vi a chegada da equipe de televisão da CBS, com suas câmeras, equipamento de som e iluminação, bem como o ar de importância que sempre a rodeava. Todos estavam excitados e satisfeitos. Até mesmo os policiais nepaleses sorriam, deliciados com aquela invasão do século XX.
Mike Wallace usava um terno marrom, camisa amarela e gravata escura. Segurava uma prancheta. Conversava com o diretor, ou produtor, do programa. Levando tudo em consideração, decidi que seria uma boa idéia nos conhecermos pessoalmente. Na véspera, Morgan me telefonara de Nova York.
— A segunda reportagem foi uma beleza!
Morgan ainda usava termos como "beleza".
— Conseguimos furar a CBS. Vá em frente, Teddy. Continue assim.
Respondi que conseguiria continuar até mesmo melhor se pudesse ler "minhas" duas reportagens. Morgan achou muita graça. De qualquer maneira, o programa 60 Minutos fora um sucesso.
Embora eu raramente assistisse à televisão, gostava de Wallace. Um comentário cultural relativo à televisão: os que nela muito trabalham raramente assistem a ela. Arlene era uma exceção. Passava o dia inteiro diante de uma tela de TV. Em compensação, passava o dia inteiro bebendo. Não obstante, tinha suas preferências. Era uma fã leal. Conhecera Wallace na década de 50 e o considerava sólido, digno de confiança (ou seja, conservador). A única briga séria que eu e Arlene tivemos foi quando ela fez um comercial de televisão promovendo um candidato à presidência chamado Roland Reagan.
Quando minha mente já começava a dissolver-se de tanto entoar om, uma jovem entrou na sala, caminhando nas pontas dos pés.
— Lakshmi vai receber você — sussurrou ela. — Vá à Sala da Deusa.
A Sala da Deusa era o santuário íntimo de Lakshmi. Apenas algumas pessoas cuidadosamente escolhidas tinham acesso ao recinto. A sala, em si, nada tinha de especial, à exceção de uma antiga estátua de bronze da deusa Lakshmi, a qual — causou-me alívio verificar — possuía o número normal de braços e pernas. Os deuses hindus apresentam uma tendência notável para os negócios...
Lakshmi estava encolhida sobre uma almofada entre dois braseiros de carvão. Era um dia frio.
— Tem sido negligenciada por nós. Sinto muito.
Derreti-me. Estava sempre me derretendo no Himalaia.
Atribuía essa situação à altitude. Isso poderia explicar meu amor pela aviação. Altitude, velocidade. Eliminação da gravidade. Transcendência e negação da terra.
— Acho as aulas interessantes — menti, como qualquer pessoa apaixonada.
— Geraldine lhe revelou nosso... plano — disse Lakshmi, embaraçada, o que a tornava ainda mais atraente.
— Sim. Fez-me uma oferta. O preço não foi mencionado.
Eu sabia tratar de negócios.
Lakshmi não sabia:
— Não se trata apenas de um emprego. É uma vida. É também uma vida futura.
— Não sou exatamente uma crente — repliquei, pensando se deveria chamá-la de Lakshmi. Decidi em contrário.
— Será, se quisermos que seja — disse ela, convicta. Com uma convicção que me abalou.
— Está tão convencida do poder de persuasão de Kalki?
— De certo modo — disse Lakshmi, sorrindo. Então, soltou a bomba atômica em minha despreparada Hiroxima: — O mundo vai acabar no dia 3 de abril.
Lakshmi falava sério. H. V. Weiss diria que havia um tremor, ou mesmo um tom agudo, em sua voz. Todavia, ela foi impassível. Era como se estivesse meramente mencionando a data de uma festa para a qual me convidava.
— Eu não deveria lhe dizer isso — prosseguiu. — Por favor, não informe seu jornal. Estou correndo um risco. Por outro lado, estou também supondo que você se juntará a nós. Não resta muito tempo. Apenas algumas semanas.
Sempre me apego a fatos reais, quando eles existem. Retruquei:
— Quando afirma que o mundo acabará no dia 3 de abril, refere-se a uma explosão nuclear? — Hiroshima, mon amour. — A uma guerra? A quê?
— Quem diz é Kalki. Eu não digo coisa alguma. Só sei que ele deseja que você esteja conosco no Fim. E depois.
Através das espessas paredes de pedra, podíamos ouvir a equipe da CBS instalando o equipamento.
— Preciso de mais força! — gritou alguém.
"Quem não precisa?", pensei. Sou física, não metafísica. Meu forte é a lógica. Geralmente, percebo a falha de qualquer argumento. Percebi a falha daquele.
— Se o mundo vai terminar, de que me adianta aceitar o emprego? Estarei morta, com o resto do mundo, dois dias após o 1º de abril.
— Não se trata de uma brincadeira de 1º de abril — declarou Lakshmi. — A Idade do Ferro acabará, o que significa que o mundo terá fim, com exceção de poucas pessoas. Kalki decidiu assim.
"Com exceção de poucas pessoas." Até hoje a frase ecoa em minha mente. Era a primeira pista. Resolvi lançar uma isca:
— Se haverá sobreviventes, significa que não existirá radioatividade. O fogo não será de origem nuclear.
— Que fogo?
— Julguei que a era de Kali fosse terminar pelo fogo.
Todavia, Lakshmi não mordeu esta ou qualquer outra isca que lhe ofereci. Limitou-se a ficar sentada na almofada — e esperar.
— Se o que você diz é verdade, eu gostaria de sobreviver. Claro! Mas não acredito em términos. As coisas sempre continuam a existir. Quanto Kalki me pagará para ser sua pilota particular?
— O que você pedir.
— O contrato será válido mesmo depois de 3 de abril? — indaguei, fazendo minha pilhéria particular.
E Lakshmi fez a sua, como logo verifiquei.
— Sim — respondeu.
Deixamos de lado o assunto.
Descemos juntas para o pátio, onde a gravação estava prestes a começar. Wallace e o produtor estavam junto a um palanque, examinando anotações. Um gerador fora instalado nas proximidades. No último fevereiro começara uma crise geral de energia...
— Onde está Kalki? — perguntou o produtor.
— Na maquilagem — informou o diretor, que olhava para a porta onde Kalki apareceria.
Era alto e muito louro, mais ou menos da minha idade ou ainda mais moço. Usava óculos com aros de tartaruga e tênis com as cores da bandeira americana. Suas mãos eram grandes e vermelhas. Lembro-me de tudo naquele dia. Em close-up. Em câmera lenta. Com som estereofônico. Agora, não estou escolhendo os detalhes. Eles se selecionam por si mesmos. Eu apenas os coloco no papel.
Acenderam as luzes. A parede de tijolos vermelhos do ashram começou a brilhar. O encarregado do som colocou os fones nos ouvidos e girou os controles do gravador. Virei-me para Lakshmi, a fim de lhe dizer que já vira antes aquele diretor de TV, mas ela sumira. Aparecia e desaparecia de repente. Mike Wallace pigarreou.
A porta do lado do palanque se abriu e Kalki surgiu sob a forte iluminação. Todos pararam de falar, de se mexer... de respirar? Ele ficou parado no umbral, por um instante. Parecia em chamas naquelas túnicas douradas. Seus olhos eram assustadores, não só por sua espantosa cor azul, como também por possuírem o dom incomum de parecer gerar luz, ao invés de refleti-la.
— Pranam — disse Kalki.
Quando gesticulou, o bracelete de rubi lançou faíscas em todas as direções, como se espalhasse fogo. Wallace reuniu-se a Kalki junto à porta. Conversaram em voz baixa. Tentei escutar, mas não ouvi coisa alguma. Então, o diretor disse:
— Muito bem! Todos à seus lugares!
Kalki entrou no templo. Um homem segurando uma claquete se postou entre a câmera e a porta.
— Comecem a gravar — ordenou o diretor.
O homem da claquete, parecendo encabulado, gritou:
— Entrevista com Kalki. Fim do mundo. Tomada 1.
Quando ele saiu rapidamente do alcance da câmera, Wallace entrou no espaço iluminado.
— Entra Kalki! — gritou o diretor.
A porta se abriu. Kalki ficou enquadrado no umbral. Repetiu o pranam. Mais uma vez, o rubi lançou faíscas. Os olhos tornaram a parecer uma fonte de luz.
Kalki sentou-se no tablado e Wallace ocupou um banquinho a seu lado. A entrevista começou. Infelizmente, não consegui ouvir o que diziam, mas percebi que Kalki estava calmo, sereno, enquanto Wallace aparentava intranqüilidade. Era como se um decorador brincalhão tivesse colocado um índio de madeira junto a um Buda de ouro.
A gravação terminou. Kalki e Wallace entraram no ashram. Eu estava a ponto de partir em busca de Lakshmi, quando o diretor se voltou para mim e disse:
— Como vai, Teddy? Lembra-se de mim? Eu era diretor técnico do Programa Mike Douglas, na Filadélfia. Não se lembra?
Eu me lembrava. Mais uma vez, comecei a derreter-me. Hoje em dia, creio que estava sofrendo um colapso nervoso em Katmandu. Primeiro, Lakshmi. Depois Geraldine. Agora, um homem com óculos de aro de tartaruga e tênis com as cores da bandeira americana. Cinco anos antes, eu conversara com ele pelo longo espaço de cinco minutos, quando fora a Filadélfia promover o lançamento de Além da maternidade. Agora, estávamos juntos mais uma vez, no topo do mundo — e eu me sentia no cio.
— Naquela época, eu tinha problemas com a bebida — anunciou ele. Não obstante, naquela época eu fora simplesmente polida, sem maior interesse por ele. Talvez ele tenha pressentido minha sensualidade, ou melhor, histeria. Fiz um esforço para não uivar, enquanto ele prosseguia com a maior naturalidade: — Quase perdi o emprego. Peggy me abandonou e levou as crianças. Agora, pertenço aos Alcoólatras Anônimos.
Ele me olhava com luxúria, o que, naturalmente, me desligou por completo. É engraçado o que acontece comigo. Um pássaro na mão nada significa, mesmo que a mata esteja em chamas...
— Li sua primeira entrevista com Kalki. Estava muito boa. O pessoal da CBS ficou louco. Queriam ser os primeiros. Sabe o que me faz mais falta? Cerveja. Chope. É gozado; pois nunca tomei cerveja antes de entrar para a AA.
— Experimente ganja.
— Experimentei. Ontem à noite. Mas é seca. Só gosto de líquidos. Vamos jantar juntos. Também estou no Ananda.
Esfriei seu ardor com energia. Até mesmo bruscamente. Perguntei se 60 Minutos ia entrevistar alguém além de Kalki para o programa.
— Não. Vai ser apenas ele. Pelo menos, para aquele segmento. Tenho o palpite de que o pessoal de Nova York, quando descobrir o que conseguimos hoje, vai deixar o segmento durar dez, talvez onze minutos. Sabe como é, um estudo em profundidade, como o que fizemos com a rainha da Inglaterra.
Naquela noite, fui cedo para a cama, evitando o pessoal da CBS — em especial, os diretores que usavam tênis. O telefone tocou duas vezes. Não atendi. Tive um bom acesso de choro. Aliás, que será um mau acesso de choro?
Na manhã seguinte, ao ser informada de que Kalki desejava voar, atingi uma espécie de clímax emocional. Eu desejava voar. Quebrar barreiras. Assassinar a gravidade.
Usava um macacão de vôo e Kalki uma túnica amarela. Excetuando isso, ele nada tinha de exótico e, muito menos, de divindade. Parecia-se um pouco com as fotografias do jovem Lindbergh, o qual, naturalmente, parecia a jovem Amélia, cujas fotos eu tão bem conhecia. Kalki e eu procuramos um no outro os reflexos de nós mesmos. Perguntei-lhe se gostara da entrevista com Mike Wallace.
— Era necessária — respondeu, desinteressado.
— Para seu trabalho?
— Para a raça humana. A esta altura, preciso ser visto por todos, ouvido pelo mundo inteiro. Precisam estar em condições de preparar-se.
Fez uma curva para a esquerda, acrescentando:
— Se você quiser um contrato, dou-lhe um.
Todavia, disse isso sorrindo, como se o mundo já estivesse terminando e nós estivéssemos apenas brincando.
Voando ilegalmente no espaço aéreo da China vermelha, tomei a decisão que mudou o rumo de minha vida — e da história, também.
— Está certo — declarei.
Kalki meneou a cabeça. Não pareceu surpreso com minha decisão.
— Quero que volte aos Estados Unidos amanhã.
— Pensei que estivesse contratada como pilota.
— Isso mesmo. Todavia, tenho outro serviço para você.
— E qual é?
— Quero que continue a reportagem a meu respeito. Desse modo, terá condições de descobrir o que as pessoas dizem de mim, o que estão fazendo.
— Refere-se ao pessoal do Departamento de Combate aos Narcóticos?
— Você sabe a que me refiro.
E nada mais disse a respeito.
Passamos duas horas no ar. Eu me encontrava num estado perfeito, embora volátil demais. Ao circundar o monte Everest, senti-me completamente feliz. Não fazia a menor diferença o fato de Kalki ser um deus ou um vigarista. Estávamos no topo do céu.
Sentia-me bem até mesmo ao pousar e entregar o avião à equipe de manutenção. O velho Cadillac já estava à nossa espera. Kalki disse alguma coisa em hindi ao motorista e embarcamos na parte traseira do carro. Kalki esticou as pernas, fechou os olhos e pareceu adormecer.
Meia hora mais tarde, o motorista saiu da estrada principal e atravessou um bosque escuro, chegando à margem de um riacho, onde estacionou o carro. Do outro lado do riacho havia várias centenas de homens e mulheres, trajando túnicas de cores vivas, em atitude de expectativa. Estavam postados em volta de um velho altar. Kalki já acordara.
— O que fazem eles aqui? — indaguei.
— Você logo verá.
Uma procissão saiu do bosque. Homens de túnicas escarlate e cor de açafrão arrastavam um bode por uma corrente de ferro. Alguém dava batidas a esmo num tambor. Um homem amarelo, alto e magro, soprou o que me pareceu ser uma concha oca, produzindo um som estridente de buzina. Olhei para Kalki. Estava rígido, com as pernas ainda esticadas. Temendo que ele fosse epiléptico, procurei em minha bolsa algo para colocar-lhe entre os dentes, a fim de evitar que mordesse a língua. Tive um primo epiléptico que costumava dizer orgulhosamente: "Le grand mal" — enquanto caía para trás, com a boca espumando de baba. Todavia, percebi que Kalki estava meramente em estado de transe e tornei a guardar o pente na bolsa.
Dois homens colocaram o bode sobre o altar. O animal esperneou, tentando livrar-se das cordas que lhe prendiam as pernas. Os animais sempre sabem... Fechei os olhos. Quando tornei a abri-los, o sacerdote cortava a garganta do bode com uma faca. A multidão molhou panos no sangue fresco que escorria pelo altar de pedra. Mais uma vez, soaram a trombeta e tocaram tambor.
Kalki saiu do transe. Disse algo em hindi ou sânscrito. Em seguida, bateu com os dedos no vidro que nos separava do motorista e o carro partiu. Kalki se voltou para mim:
— Aceitei o sacrifício.
— Foi horrível — declarei, estremecendo. — Eu deveria deixar de comer carne. Detesto a maneira como tratamos os animais, como os traímos. Cuidamos deles, damos comida, tratamos como verdadeiras mascotes — e depois os assassinamos. O que devem eles sentir, no final?
— Foi um ritual.
— Não gosto de sangue.
— Você é sangue. É isso que essa gente sabe e você não. Por um instante, estiveram na devida proporção com o universo.
— Que está prestes a terminar.
— O ciclo, sim. O universo, não.
Como devo escrever o que se passou no resto daquele dia?
Não tenho medo de voar, de fazer um trocadilho óbvio no título de um livro típico de uma mulher da década de 70, um período em que as princesas judias se tornaram rainhas da ficção popular, da mesma forma que os príncipes judeus haviam reinado na década anterior. Todavia, fui afastada do judaísmo pela antisséptica seita cientista cristã. Não posso usar os mesmos truques que as minhas irmãs de raça, interessadas em livrar-se dos estereótipos do principado judeu, que confundiam com a feminilidade. Isso é normal. Começamos por nós mesmas. Não temos escolha. Depois, porém, caímos fora. Elas começaram consigo mesmas e não trataram de cair fora. Disseram-nos que relatavam tudo como era. Trataram tudo como sempre foi tratado. Possuíram homens da mesma maneira como os homens (na opinião delas) possuíam as mulheres. Atrevidamente. Sem qualquer sentimento. Sempre tendo em vista o próprio ego e nada mais. Por estranho que pareça, da mesma maneira que eu quase sempre lidei com os homens, à exceção daquelas primeiras semanas com Earl Jr. na use. Apaixonei-me por ele, sem saber que isso não era normal. O que é normal? O que pode ser descrito. Seja lá o que for o amor, senti-o (ou, para ser mais exata, julguei que o sentia) por Earl Jr. Casei-me com ele e nunca fui feliz. Por outro lado, minha tendresse está reservada para meu próprio sexo, como sempre quis a natureza.
No início, as mulheres passavam a maior parte do tempo juntas, na caverna, cuidando dos filhos, fazendo roupas, preparando comida, inventando a roda e o fogo. Enquanto as mulheres criavam e procriavam, os homens estavam lá fora, caçando — e dominando. Oh, o domínio masculino! Em compensação, também tínhamos nosso tipo de domínio. Éramos as especiais. E sempre soubemos isso, desde o óvulo. Afinal, foi a mulher quem primeiro estabeleceu uma relação entre seu próprio ciclo e o da Lua. Foi uma mulher quem descobriu que se o seu ciclo fosse o da Lua, esta teria que acompanhar obedientemente o fluxo do sangue da mulher. O comando partia do útero para o céu: lua crescente, lua minguante. Encher as marés e esvaziá-las. No ventre, todos os fetos nascem mulheres. A masculinidade é um acaso posterior.
Perto do final, as coisas ficaram confusas. As mulheres queriam a "libertação". Do tipo que eu consegui sozinha. Em suas "ficções", as princesas judias tentavam tornar-se príncipes judeus. O resultado nada tinha de erótico. Tentavam descrever os órgãos genitais masculinos da mesma forma que julgavam que os homens descreviam os órgãos genitais femininos. Todavia, seus corações de donzelas jamais contribuíam para tais descrições. Moças que tinham medo de voar entregavam-se cegamente a trepadas desprovidas de entusiasmo. A imagem masculina era tratada e descrita em frases que não possuíam o cunho da verdade, porque o sexo, em si, jamais interessou a essas mulheres. Elas só se interessavam por si mesmas. Conseqüentemente, a única ocasião em que suas frases se retorciam com um pouco de vibração da verdade — como enguias elétricas — era quando elas se sentiam obrigadas a descrever detalhadamente seus próprios encantos pessoais. Começando por corpos voluptuosos, exoticamente depilados, e terminando por rostos provocantes, com narizes perfeitos e dentes de uma beleza irreal.
Após o obrigatório inventário da beleza, vinha a comida. Jamais tantos jantares horríveis foram descritos em detalhes tão sensuais. Uma vez que não podiam descrever com palavras a verdadeira forma de um escroto (como é possível descrever aquilo que se olha, mas, na verdade, não se vê?), relatavam a preparação de uma salada de lagostas, de uma maionese de camarões (as princesas judias, desafiadoramente, empanzinavam-se de iguarias não-kosher), de uma suntuosa casserole servida com Royal Crown Derby — à luz de velas, ainda por cima.
Estou fazendo rodeios para chegar ao assunto porque jamais conheci uma maneira satisfatória de descrever o ato sexual. H. V. Weiss era um fervoroso adepto da técnica anterior às princesas, ou seja, a síndrome de Hemingway. Há muito dela em Além da maternidade, um livro que jamais consegui ler todo. À exceção das narrativas de vôo, foi escrito por Weiss e não tem mérito algum na parte descritiva.
Não descreverei os órgãos genitais de Kalki. É uma decisão importante. As princesas achariam que estou fugindo da raia. Direi apenas que ele não era circuncidado. Na ocasião, tentei adivinhar se isso não seria um sinal de divindade. Certamente o inverso era um sinal de divindade judaico-cristã, em contraposição ao princípio criativo hindu, que requer um macho não-mutilado. Pelo que pude perceber, Kalki não raspava os cabelos do peito. O único tufo de cabelos era autêntico. Como Lakshmi, cheirava a loiro, o que sempre atrai os morenos, como eu.
Como eu o classificaria como amante? Nos últimos dias da era de Kali, o desempenho masculino era constantemente medido por uma escala que tendia a cair verticalmente. Kalki sabia exatamente o que estava fazendo, e ele me levava em consideração ao fazê-lo. Isso é raro nos homens; pelo menos, foi o que descobri por experiência própria. É comum nas mulheres; daí, o amor que meu avô rabino conhecia por "sáfico". Ele gostava de usar palavras gregas para descrever as perversões sexuais dos gentios. Se me visse agora! Ou mesmo naquele momento, os dois deitados lado a lado sobre um cobertor que Kalki encontrara (previdentemente?) na parte traseira do carro, que estava estacionado perto do templo que Geraldine e eu havíamos visitado. O motorista continuava impassível.
Vesti as calças compridas. Kalki baixou a túnica. Amarrei minhas botas. Ele calçou as sandálias. Fazia frio, embora o sol brilhasse e não houvesse uma só nuvem no céu.
— Bem — disse eu. Resolvi não dizer mais nada.
— Satisfeita? — o deus dispensando favores não era muito diferente do homem doando gratuitamente sua energia viril.
— Por que não? — repliquei, vestindo meu blusão de vôo. — Está frio, aqui.
— Aquela lagoa...
— Brotou do dedo de seu pé. Geraldine me contou.
Kalki empurrou os cachos loiros para longe dos olhos. Sim, ele me atraía. Mesmo assim, no glorioso momento alguns segundos depois da penetração, quando meu corpo, como num grande espirro, sacudia-se nos espasmos de um êxtase incontrolável (oh, Weiss, o que fez você à minha capacidade de utilizar as palavras!), não pensei no corpo loiro e suado que me envolvia com braços cabeludos, mas em Lakshmi, recebendo o que eu recebia ali. Por um instante, fui Lakshmi. E feliz.
— Você não acredita em mim — disse Kalki, mais entristecido que irritado.
— Não.
Era melhor ser honesta.
— Bem, acreditará. No devido tempo.
— E Lakshmi?
Foi estupidez de minha parte, mas as mulheres fazem esse tipo de coisas. Anuviam a disposição. Pressagiam calamidade. Não que eu estivesse apaixonada por Kalki, mas ele poderia estar por mim. Ora, estou escrevendo tolices. Kalki queria sexo. Eu também. Era, nada mais, nada menos, que o efeito do Himalaia. Eu estava suscetível. Além disso, estava excitada. Ele estava no cio. A maioria dos homens está no cio durante a maior parte do tempo. Ou julga que está, o que vem a dar no mesmo. Mesmo antes de ler Kate Millet, eu já detestava D. H. Lawrence.
— Lakshmi é minha esposa, para sempre.
Nem mesmo H. V. Weiss colocaria tais palavras na boca de uma personagem. Por outro lado, o sentimento estaria boiando no ensopado de suas frases cansadas, batidas. "Lakshmi é minha esposa, para sempre." Kalki queria dizer aquilo literalmente... presumindo que ele fosse deus, o que eu não estava disposta a admitir naquela tarde clara e fria, junto à suposta origem do rio Ganges.
— Não sei por que a mencionei. Desculpe-me.
— Quem você conhece melhor: os homens ou as mulheres?
Todos os homens perguntam isso, certos de que responderemos: "Os homens".
— As mulheres — declarei, mentindo um pouco. — Todavia, cada caso é diferente. Eu jamais tinha feito amor... sexo... com um deus.
Ele aceitou minha brincadeira. De mãos dadas, voltamos ao carro, passando pelo falo de Shiva. Quando estávamos perto da pedra escura e polida, Kalki murmurou algo.
— O que disse?
Ele sorriu.
— Estava falando comigo mesmo. Ou melhor, com uma de minhas três pessoas. Você está pronta para o Fim?
Estaquei. À nossa frente, estava o altar dedicado a Buda. As compridas bandeiras vermelhas e douradas drapejavam ao vento do noroeste. Notei a direção do vento. Força do hábito. Tenho um barômetro interno. Sou capaz de fazer a previsão do tempo com uma exatidão razoável.
— Não — declarei. — Quero continuar.
— Tudo continua, mas de forma diferente.
— Eu gostaria de permanecer nesta forma o maior tempo possível.
— Talvez consiga.
— Lakshmi disse que poucos sobreviverão. É verdade?
Kalki meneou afirmativamente a cabeça. Raramente encarava o interlocutor ao falar.
— Não pode dar ao menos uma indicação sobre o modo como pretende terminar... o ciclo?
— Você não consegue perceber os indícios? — replicou ele, sem olhar diretamente para mim. — O ar está envenenado. A água está envenenada. As pessoas...
— As pessoas se reproduzem em progressão geométrica e os recursos agrícolas crescem numa progressão aritmética — quando crescem. Escrevi um capítulo sobre isso em Além da maternidade.
— Nesse caso, pode perceber que a raça humana se encontra na fase terminal. Bem, como previu a profecia, vim para purificar.
— E destruir?
— A era de Kali é a Idade do Ferro. E a Idade do Ferro é a era do reinado do Mal. Portanto, terá fim, comigo — montado num corcel branco. O que será um truque memorável, pois me cago de medo dos cavalos.
Rimos juntos. Não havia muitas outras coisas de que rirmos.
— Deus deveria poder montar a cavalo e fazer qualquer outra coisa que deseje.
— No momento, porém, deus está incorporado. Estou usando o corpo de J. J. Kelly. Estou limitado pela carne dele. Por falar nisso, gostou dele?
— Gostei — respondi, sincera.
— O corpo dele gostou do seu — declarou Kalki, sorrindo. — Todavia, não é preciso dizer isso a uma mulher.
No trajeto de volta ao ashram, retornamos às nossas relações anteriores: o entrevistador e a celebridade evasiva. Perguntei-lhe a respeito do Dr. Ashok.
— O Dr. Ashok é um homem de muitos papéis. E representa cada um deles com a maior concentração.
— É agente da CIA?
— Se é esse o papel que está representando.
A resposta não me satisfez.
— E Jason McCloud?
— Agente do Departamento de Combate aos Narcóticos.
Aquilo, sim, era uma resposta.
— Você negocia com drogas?
— Acha que eu lhe diria, se negociasse?
— Não sei. Poderia confiar em mim, agora que sou sua empregada.
— Trabalha também para Morgan Davies, do National Sun.
— Sei quando você pretende terminar o mundo: no dia 3 de abril.
Kalki não ficou satisfeito.
— Lakshmi lhe contou?
— Sim. Queria impressionar-me. Desejava mostrar que me resta muito pouco tempo.
— Você divulgará a data?
— Não. Você me contará a respeito do negócio de drogas?
— Não. Há coisas mais importantes para você saber.
— Tais como?
—- Vá a Nova Orleans. Lá, encontrará um dos cinco Mestres Perfeitos.
— Como?
— Ele achará você. Não se preocupe. Dance conforme a música.
E aquilo foi o final do assunto. O interlúdio de Katmandu terminara. Desci das montanhas. Desapaixonei-me de Lakshmi e de Geraldine. Parei de chorar à noite. Joguei fora os vidros de Valium. Estivera realmente num estado crítico. Todavia, quando o 747 pousou em Los Angeles, eu voltara a meu estado normal.
Kalki não era deus. Eu tinha certeza disso. Também estava razoavelmente segura de que ele estava envolvido no comércio de drogas. Ainda precisava descobrir qual a ligação entre uma quadrilha internacional de traficantes de drogas e uma nova religião. Evidentemente, existia uma ligação. Não acreditava que Kalki fosse terminar a raça humana no dia 3 de abril, por mais desejável que fosse tal acontecimento.
Sem utilizar compreensão retroativa, o que realmente pensava eu no início de março passado? Pensava que Kalki estava maluco. Contudo, achava também que talvez ele realmente acreditasse que poderia fazer o que prometia.
Uma coisa curiosa: por mais prolongados banhos que tomasse, continuava a sentir em meu corpo o cheiro daquele corpo loiro. Isso durou uma semana. Estigma? Esperei que Arlene não notasse.
No dia em que regressei da Ásia, Arlene e eu fizemos amor durante duas horas. Embora ainda atordoada pela diferença de fusos horários, eu voltara a ser o que era antes. Estava livre das montanhas.
Jamais entendi por que Arlene e eu formávamos uma dupla, como costumavam dizer as colunas de mexericos. Arlene não se interessava por aviação. Eu não gostava do show business. Arlene jamais lia um livro. Eu lia muito e continuo a ler. Arlene tinha idade para ser minha mãe. Bem, as respostas às perguntas chegam no final das frases. Minha mãe cientista-cristã era um monstro. Mais uma citação da caderneta, de autoria de Jules Renard: "Nada é mais difícil de olhar que o rosto de uma mãe a quem não amamos e de quem temos pena". Só que eu jamais tive pena de minha mãe, mas de mim mesma, sua filha única. Procurava a fuga nos livros, na aviação, na engenharia. Na literatura francesa. Não fui para a escola... fugi para lá. Daria tudo para me afastar de casa.
Numa bela tarde de meu vigésimo quinto ano de vida, a Sra. Hecht limpou e arrumou meticulosamente o apartamento de dois quartos que comprara em Santa Ana após a morte de meu pai. Em seguida, preparou uma xícara de chá e se acomodou numa poltrona bem em frente ao aparelho de TV, que estava quebrado. O técnico deveria chegar a qualquer momento para consertá-lo. Enquanto ele não chegava, a Sra. Hecht abriu um jornal sobre o colo, enfiou um saco plástico pela cabeça e morreu asfixiada.
O técnico de televisão encontrou o cadáver da Sra. Hecht ao anoitecer (atrasara-se em outro serviço). Manchete do jornal que estava no colo da morta: "TEDDY OTTINGER GANHA O TROFÉU INTERNACIONAL HARMON". EU a matara. Meu sucesso a matara. Não há dúvida de que ela era uma mulher ciumenta, invejosa. Certa vez, jogando bridge, tentara estrangular a parceira. Não tinha muitos amigos...
Pouco depois da morte de minha mãe (na qual ela não acreditava — por motivos religiosos —, mas eu acreditava, e muito), comecei a manter relações com mulheres mais velhas que eu. Earl Jr. nem desconfiava. Em compensação, eu também não suspeitava de coisa alguma. Durante muito tempo, jamais entendi por que motivo tanto me agradava a companhia de Hilda Barefield e de Renée Dubilier. Foi Hilda quem, afinal, me seduziu. Jamais olho para o passado. Depois de Além da maternidade, Arlene e eu passamos a viver juntas abertamente. Mãe substituta? Por que não? Ela também arcava com as despesas...
— Espero que você tenha dito a Mike Wallace que acho que ele é bicha — declarou Arlene, franzindo o nariz do mesmo modo que sempre fazia quando tomava café Jedda após uma experiência desagradável com a "outra marca". Nunca permiti que sua ironia me perturbasse.
— Nem cheguei a falar com ele. O programa já foi ao ar?
— Eu não assisto, meu anjo. Você bem sabe.
Ainda não consegui organizar de modo satisfatório os acontecimentos daquele último mês de março. Minha principal lembrança é de pânico. Além disso, sofria de repetições de um pesadelo que nunca tivera antes — e nunca tive depois. Achava-me nos bastidores de um teatro. Era a estrela da peça. O pano subia. Eu esperava nos bastidores pela minha deixa para entrar em cena. De repente, dava-me conta de que não sabia qual era a peça. Não decorara minhas falas. Tentava fugir pela porta dos fundos. Um sujeito me arrastava de volta, empurrando-me para o palco. As luzes me cegavam. Os aplausos me ensurdeciam. Então, um ator terminava sua fala. Virava-se para mim, na expectativa. Era a minha deixa. Eu tentava falar, mas não conseguia produzir qualquer som. Silêncio. Mal podia divisar a platéia, no outro lado das luzes. O público aguardava, ansioso. Quando o silêncio continuava, os espectadores o quebravam, murmurando entre si. Ficavam furiosos. Então eu acordava, alagada de suor. Não obstante, jamais representei em uma peça teatral. De algum modo misterioso, Arlene e seus amigos de teatro deviam ter transferido para mim suas angústias. Tantas coisas são contagiosas, por que não os pesadelos? Para mim, os acontecimentos de março eram como peças de um quebra- cabeça que eu não conseguia ajustar. Ou como uma peça cujas falas não houvesse decorado.
Não vi Earl Jr. ou as crianças, mas falei várias vezes pelo telefone com minha ex-detestada metade. Amostra da conversa:
— Então, você voltou.
O tom de Earl Jr. era acusador, com ênfase no "voltou".
— Como estão as crianças?
— Você se importa com isso, Teddy? — retrucou Earl Jr., esquentando-se com mais rapidez que de costume. Bem, afinal eu estava atrasada nos pagamentos da pensão alimentícia.
— Claro que me importo.
— Não me perguntou a respeito de Lenore e da operação.
— Como vai ela?
— Após extirparem a mama direita, precisaram ir mais fundo e retirar todos os gânglios da axila direita. Três nódulos apresentaram indícios de malignidade. Lenore está morando comigo, no quarto que era seu, e fazendo quimioterapia no hospital. O cabelo dela caiu todo, Teddy. Os lindos e fartos cabelos de Lenore!
Se a mãe natureza jamais imaginou um clássico conjunto de megera lésbica e filho bicha, estes eram Lenore e Earl Jr. Contudo, a mãe natureza é famosa por seu senso de humor. A despeito de todas as aparências, Earl Jr. era teimosamente heterossexual e Lenore detestava lésbicas.
Casei-me cedo demais. Esta é a desculpa usual e costuma ser verdadeira. Earl Jr. e eu tivemos, no máximo, quatro semanas boas de vida em comum. Eu costumava pensar que tudo era por minha culpa, até que Hilda me convenceu de que somos o que somos; fosse eu o que fosse, o papel de mãe e esposa não se ajustava à minha organização psíquica original. Essas coisas não são culpa de ninguém. Meu pai sempre dizia que eu deveria ter nascido menino. Nunca me dei o trabalho de estudar as implicações de tal afirmação. Meu pai era um homem inteligente. Fabricou barcos de fibra de vidro, até resolver vender suas patentes a uma grande empresa: morreu pobre. Embora eu gostasse dele e ele tivesse orgulho de mim, jamais lhe perdoei o fato de não se ter casado com Amélia Earhart. Tenho certeza de que poderia tê-lo feito. Naquela época, ele se interessava por aviação. Além disso, era caridoso. Juntou-se a Amélia por algum tempo, na Denison House, em Boston. Trabalharam em favor dos pobres. Contudo, ele era por demais modesto e Amélia era por demais irrequieta. Afinal, só por prazer, ela se dedicou à aviação. Só por prazer era o título de seu melhor livro. Meu pai disse certa vez que Amélia era tão loira que suas sobrancelhas chegavam a ser brancas. Moreno como eu, ele se ligava em pessoas loiras.
Eu disse a Earl Jr. que sentia muito pelos cabelos de Lenore, mas me alegrava pelo sucesso da operação. Prometi-lhe pagar a pensão alimentícia tão logo recebesse meu primeiro cheque das Empresas Kalki. Depois, falei com as crianças. Pareciam estar bem. Prometi visitá-las na Páscoa, logo que voltasse de Nova York. Obviamente, eu não levava a sério a profecia de Kalki. Na realidade, eu insistira num contrato de três meses, de 1º de março a 1º de junho. Kalki concordara, mas acrescentara, com um sorriso felino:
— Não pense que conseguirá me obrigar a cumpri-lo.
No meu segundo dia em Los Angeles, Bruce Sapersteen veio procurar-me.
— Voei de ponta a ponta do país para conhecer você, Teddy!
Recebi-o na biblioteca de Arlene, uma sala em que os únicos livros eram uma coleção encadernada em couro do Guia da TV. Todos os exemplares publicados até aquela data. Constava que Arlene aparecia em todos eles, o que era algo digno de ser mencionado no Livro Guiness de recordes mundiais.
Bruce Sapersteen era alto, moreno, esguio. Exatamente o contrário, em todos os detalhes, do que imaginara. O telefone é um grande enganador. Decepcionada, tingi de preto os cachos cor de cenoura, as bastas costeletas que lhe atribuíra; passei base Sol de Acapulco na pele branca e sardenta, cobrindo-a com uma camada uniforme. Ele era quase dez anos mais moço que eu. Faculdade de jornalismo da Universidade de Colúmbia. Village Voice. The National Sun. As reportagens que ele escrevera em meu nome soavam como Tom Wolfe em seus piores dias. Suponho que fosse um pouco melhor que a prosa cerradamente enrodilhada, ao estilo de Hemingway, empregada por H. V. Weiss. Melhor, mas não muito. Em questão de colaboradores do tipo "como relatado a", eu não tinha muita sorte.
— É muito mais bonita que suas fotografias, Teddy.
O que é sempre uma abertura aceitável. Se não o acolhi calorosamente, pelo menos não o repudiei com frieza.
— Muito obrigada, Bruce. Li suas reportagens. Julguei que você fosse mais moço.
— Obrigado, Teddy — como a maioria dos jornalistas, Bruce raramente escutava. — Estamos com um ótimo negócio nas mãos. Morgan ficou satisfeito; a circulação aumentou. Todo mundo está acompanhando você. Devemos conseguir espremer muito caldo, ainda, antes que ele estoure tudo.
— Estoure?
— Kalki afirma que anunciará uma data exata para o fim do mundo. O anúncio será feito no Madison Square Garden. Quando chegar a tal data, Kalki ficará fora de circulação. Quer um cheirinho?
Bruce apresentou uma pitada de cocaína. Sacudi a cabeça, recusando. Ele inalou. Depois, com o nariz vermelho escorrendo, colocou-me a par das novidades.
— Descobrimos a ligação com as drogas. Nossos advogados estão examinando o assunto. Assim que tivermos o sinal verde, vamos botar pra quebrar.
— Que tipo de provas conseguiram?
Bruce abriu um caderninho de anotações.
— Após dar baixa do Exército, Kelly foi para a Tailândia. Em Bangkok, associou-se à comunidade chinesa Chao Chow Overseas, um dos principais sindicatos de tráfico de drogas do mundo inteiro. Sua fonte é o Triângulo Dourado. Kelly trabalha com eles desde aquela época, vendendo não só heroína branca, como também heroína-3, o nosso açúcar pardo. Kelly tem um sócio em Nova Orleans, um tal Dr. Giles Lowell, formado em medicina. Anote tudo.
Anotei.
— São donos, em sociedade, da Companhia de Peixes e Aves Tropicais de Nova Orleans. Juntamente com encomendas legais de peixes e aves da América Latina, recebem remessas de drogas, que são distribuídas pelo país inteiro. Morgan quer que você vá até Nova Orleans. Descreva a loja. Entreviste o Dr. Lowell. Depois, deixe o resto por nossa conta.
Bruce fechou o caderninho, muito satisfeito consigo mesmo. Uma gota de líquido incolor pendia da ponta de seu nariz.
— Estou às ordens — declarei. — Todavia, qual é a ligação entre Kalki, o deus, e Kelly, o traficante de drogas?
— Não sei.
— Então, cabe a mim descobri-la.
— Exato. Não só isso, como também a data do fim do mundo. Quando dispusermos dessas duas informações, vamos fazer uma festa de verdade.
Bruce ficara obviamente impressionado pela faculdade de jornalismo. O mesmo acontecera comigo — com relação a faculdades. Se a fila no balcão de matrículas da use fosse mais curta no ano passado, se eu estivesse com melhor aparência e não sofresse de hemorragia nasal, estaria matriculada num curso de pós-graduação, como a metade das mulheres inteligentes que conheço (bem como algumas que não chegam a ser tão inteli¬gentes). Sim, eu teria voltado a estudar. Começaria tudo outra vez, defenderia tese e teria uma segunda vida — se é que a primeira que tive merece ser chamada de vida. Além da maternidade... um doutorado? De qualquer forma, a fila de matrícula era comprida demais. Eu caí fora. Agora, estou na Casa Branca. Sim, é mesmo a história de um sucesso. Até aqui, pelo menos.
Não revelei a Bruce que conhecia a data mágica. Também não mencionei que fora contratada pelas Empresas Kalki. Não senti remorsos nem me achei desonesta. Se não fosse por mim, não haveria reportagem alguma. Eu era apenas uma testa-de-ferro e sabia muito bem disso. E não me importava. Morgan e eu nos usávamos mutuamente. Contudo, refleti a respeito da coincidência. Kalki queria que eu fosse a Nova Orleans, conhecer um Mestre Perfeito. Agora, o Sun também desejava que eu fosse a Nova Orleans. Haveria uma conspiração contra mim? Estava no limiar da paranóia.
A gota caiu do nariz vermelho de Bruce, que nem pareceu perceber. No ano passado, muita gente que encontrei estava cheirando cocaína. Eu não me atrevia. Se não mantiver meus reflexos rápidos, perco o emprego. Morro.
— Fizemos uma reserva para você no Lafitte Hotel, no Bairro Francês — disse Bruce, entregando-me um envelope. — Passagens e vales. Morgan recomendou cuidado. Você pode estar entrando no meio de uma guerra entre tongs.
Aquilo era demais. Ultrapassei os limites da paranóia.
— Eu não sabia que havia chineses na Louisiana.
— Não foi a isso que me referi. No ano passado, quando Kelly veio à público com toda essa merda a respeito de ser o novo Messias, brigou com o sindicato Chao Chow. É por isso que vão pegá-lo.
Ouvindo aquilo, lembrei-me da bomba no Garuda. Senti vontade de ir ao banheiro. Bruce prosseguiu:
— O Chao Chow contratou alguém para matá-lo. Fez um trato com uma sociedade secreta chinesa, chamada Tríade, que tem ramificações no mundo inteiro. Sicários. Você paga, eles matam. Não poderia ser mais simples. As últimas notícias de Hong Kong dizem que Kelly vai ser assassinado em abril.
Com uma risadinha inspirada pela cocaína, Bruce comentou:
— Abril é o mês mais cruel. Entendeu?
Eu entendi.
Nova Orleans era como qualquer outra cidade dos Estados Unidos na era de Kali. O ar estava escurecido pela fumaça das refinarias de petróleo. Havia excesso de automóveis, de pessoas, de crimes, de anomia. Em conseqüência, a moda de Kalki pegava com facilidade. Além disso, enquanto eu estivera na Ásia a Loteria Lótus se tornara um passatempo nacional. Naturalmente, loteria era um termo inadequado. Numa loteria, a pessoa compra um bilhete e, caso seu número seja sorteado, ganha uma bolada. Os lótus de papel branco não eram vendidos, mas distribuídos gratuitamente. Então, todas as semanas, a imprensa anunciava os números ganhadores e as Empresas Kalki pagavam os prêmios. Kalki passara a ser um nome conhecido em todos os lares americanos. Embora ninguém soubesse de onde vinha o dinheiro, todos curtiam a Loteria Lótus.
O ambiente que reinava em Nova Orleans foi exemplificado pelo motorista de táxi que me levou do aeroporto para o hotel. Era branco, de meia-idade, nascido em Nova York e acreditava em... Bem, acho melhor deixá-lo falar por si mesmo:
— Nunca pego passageiros de cor.
Respondi com o silêncio. Não obstante fosse um silêncio agressivo, ele não se deu por achado.
— A senhora pode pensar que sou racista ou cheio de preconceitos — prosseguiu. — Bem, eu não era assim até o ano passado, quando peguei dois passageiros negros e um deles sacou uma arma, dizendo: "Agora leve a gente até perto da saída da cidade, onde fica aquele edifício em construção". Bem, eu disse que tinha apenas um pouco de dinheiro, mas que eles poderiam levar tudo. Não se interessaram. Um deles repetia: "A gente vai matar você". Então, quando chegamos perto do edifício abandonado, eles me mandaram sair do carro. O que estava com a arma continuava a repetir: "A gente vai matar você".
— O que aconteceu? — indaguei, interessada, embora a contragosto.
— Levei dois tiros no estômago e eles deram no pé. Bem, tive muita sorte, porque consegui me arrastar até o rádio do carro e pedir socorro. Aqui estão meus recortes de jornal. Veja.
Havia dois pequenos recortes de jornal numa moldura dourada de fotografia. A pequena manchete dizia realmente: "Chofer de praça baleado". Fiquei impressionada.
No momento em que entramos na Canal Street, vi o primeiro cartaz de Kalki. Lá estava o rosto dele, ampliado trinta vezes além do tamanho natural. Colorido. Abaixo do rosto, a legenda: "O Fim". Nada mais. Vinte mil cartazes semelhantes haviam sido espalhados pelo país, como uma espécie de preparação para o aparecimento de Kalki no programa 60 Minutos da CBS, que, por sua vez, era apenas uma "chamada" para a concentração no Madison Square Garden. Uma vez que conversar com motoristas de praça é a pedra de toque da reportagem, perguntei ao motorista o que ele pensava a respeito de Kalki.
— Não apanho mais passageiros de cor — replicou, com convicção.
Repetiu a história do tiro, sem alterar uma só palavra.
Daquela época, lembro-me bem de apenas duas coisas: do motorista de pescoço grosso e do diretor de TV de tênis com as cores da bandeira americana, que ansiava por tomar um chope. A memória é um mistério.
O Lafitte Hotel era um hotel totalmente novo, que fazia o possível para imitar os pitorescos hotéis de outrora. Tratei de imitar a graciosa aviadora de hoje. Perguntei se havia recados. Nenhum. Tentei telefonar para Morgan Davies. Estava numa reunião. Liguei para o Dr. Giles Lowell. Estava viajando. Um péssimo começo.
O lendário Bairro Francês era simplesmente horrível. A qualquer hora do dia ou da noite as pessoas estavam bêbadas ou dopadas. Não obstante, algumas casas eram encantadoras e as sacadas de ferro lavrado correspondiam à expectativa. Nem todas as magnólias estavam morrendo. Algumas tinham produzido flores amarelas, um tanto pegajosas, que se abriam timidamente na atmosfera acre e poluída.
No final da Dauphine Street havia uma grande casa de madeira, com dois pavimentos e uma balaustrada de ferro lavrado no andar de cima. Uma placa discreta anunciava: "companhia de peixes e aves tropicais de nova orleans".
Pelas janelas do andar térreo, pude ver centenas de gaiolas cheias de pássaros. Papagaios, cacatuas, periquitos... já nem me lembro dos nomes das aves tropicais, embora, quando criança, fosse uma entusiasta do assunto. Mesmo assim, apesar de ter visto muitos pássaros no sul da Califórnia, jamais conhecera tão exótica variedade nas cores vermelha, verde, amarela e azul como naquelas criaturas.
As aves me olhavam pela vitrina, com olhos tão brilhantes e fixos como os dos sáurios, seus primos. Os bicos se abriam e fechavam, mas nenhum som atravessava o vidro (seria também à prova de bala?).
Armando-me com um sorriso amável e simplório, entrei na loja. Conhecia meu papel: uma dona-de-casa suburbana deseja montar um aquário para o filho, a fim de lhe ensinar a maneira pela qual a natureza equilibra o sistema ecológico — ou seja, depois de devorarem todos os peixes pequenos, os peixes grandes começam a lutar entre si. A retrógrada mãe natureza diz apenas: "É hora do jantar".
A sala de exposição ocupava o andar térreo inteiro. Havia um certo número de pessoas que aparentavam ser fregueses. Todavia, nunca aceito as coisas do modo como me são apresentadas. Presumi que os agentes do Departamento de Combate aos Narcóticos eram os que pareciam mais interessados nos aquários e nas gaiolas, enquanto os viciados eram os que andavam de um lado para outro, aparentando pressa de fechar negócio. Estudei disfarçadamente cada um deles, temendo deparar-me com um rosto chinês ligado ao corpo sinuoso de um sicário pertencente a uma tong. Entretanto, não havia na loja qualquer fisionomia exótica.
Em compensação, a loja não só era exótica, como também o maior barato, como dizem os viciados. As luzes dentro dos aquários lançavam reflexos ondulantes nas paredes, enquanto os gritos estridentes e dissonantes das aves logo me provocaram uma dor de cabeça do tipo pré-menstrual.
Sentei-me numa cadeira perto de uma porta com o letreiro "PARTICULAR" e fechei os olhos. Tentei evitar o efeito psicodélico, mas verifiquei que as cores do arco-íris continuavam a faiscar e dançar por detrás de minhas pálpebras fechadas.
— Em que posso servi-la, senhorita? — indagou uma voz feminina.
Abri os olhos. Algo que H. V. Weiss descreveria como uma mulherzinha tímida me encarava... desconfiadamente? Nervosamente? Inexpressivamente? Eu me encontrava no mais avançado estado da paranóia. Não fazia idéia da imagem que apresentava à mulherzinha. Poderia ser uma freguesa de verdade, passando mal repentinamente. Ou uma freguesa ilegal, vítima de excesso de açúcar pardo no chá.
Rezei para que meu sorriso imbecil fosse convincente.
— Estou com dor de cabeça. As aves são barulhentas demais.
— Eu sei. Para falar a verdade, eu as detesto — disse ela, com forte sotaque sulino. Parecia nervosa. — E sou obrigada a trabalhar aqui.
— Deve ser horrível para você.
— Gosto do trabalho. Só detesto essas malditas aves. Em que posso ajudá-la, senhorita?
— Bem, não sei direito. Eu queria montar um aquário, para meu filho. Ele está com dez anos. Uma idade maravilhosa, quando a gente ainda é tão aberta e, mesmo assim...
— A senhora não é de Nova Orleans.
Ela notara o meu sotaque.
— Ora, não é preciso ser de Nova Orleans para possuir um aquário de peixes tropicais — repliquei, sentindo meu sorriso estúpido cair até o queixo.
Ela me lançou um olhar penetrante. Teria eu pronunciado alguma frase em código? Uma senha?
— Não. Creio que não.
— Na verdade, meu marido e eu nos mudamos há pouco para cá. Viemos de um lugar perto de Sacramento, chamado Marysville...
Naquele momento, a porta com o letreiro "PARTICULAR" se abriu, dando passagem a Jason McCloud, que parecia muito elegante num terno de flanela cinzenta, em estilo conservador. Carregava uma pasta. Tentei tornar-me irreconhecível, abrindo ainda mais meu sorriso cretino. Nossos olhares se cruzaram por um instante, no melhor estilo de H. V. Weiss. Então, quebrando o cruzamento, Jason McCloud mostrou o branco dos seus olhos muito além do necessário. Em seguida, saiu correndo, quase derrubando uma gaiola, cujo ocupante soltou um grito irritado.
— Vocês se conhecem? — perguntou a moça.
— Não. Creio que não.
Quase declarei que, para mim, todos os negros são iguais — o tipo de comentário que os amigos de Arlene costumam fazer entre si, falando sério, mas em tom de pilhéria. Para eles, Ronald Reagan era a única e derradeira esperança dos Estados Unidos...
— Aquela é a sala do Dr. Lowell? — perguntei, apontando para a porta com o letreiro "PARTICULAR".
— É, sim — disse a garota, franzindo a testa. — Mas ele não está. A senhorita tem hora marcada?
Exatamente quando eu me preparava para fazer o papel de Teddy Ottinger, a Grande Repórter, capaz de descobrir os maiores furos jornalísticos, ou seja lá o que costumam chamar, alguém na entrada da loja berrou:
— Sra. Kelly!
A moça me pediu licença e foi para lá.
Tive sorte. Descobri que a moça era Estelle Kelly, primeira esposa de James J. Kelly, o Kalki. Não havia qualquer menção dela nas reportagens e fichas a respeito dele; ela simplesmente não existia — era "ninguém", como costumavam dizer por aí. Entretanto, ninguém ou não-ninguém, ali estava, diante de mim. Levei-a para almoçar. Fiz o possível para conquistá-la.
Tímida, mal-humorada, nervosa, Estelle Kelly mostrou-se difícil de conquistar. A princípio, fui eu quem mais falou. Tive o cuidado de dizer o máximo da verdade. Contei-lhe que era pilota do avião de Kalki, que desejava conhecer o Dr. Lowell, que estava escrevendo algumas reportagens para o National Sun, mas tudo isso com o objetivo de ajudar Kalki. Estelle me encarou com a mais profunda desconfiança. Não obstante, permitiu que eu a levasse a seu restaurante predileto, onde tive a oportunidade de provar a comida crioula — que detestei.
— Jim é um filho da puta.
Foi a primeira opinião (ou análise profunda) que Estelle emitiu sobre o marido. Cada uma de nós havia tomado dois coquetéis sazerac, uma bomba local. O restaurante estava cheio; a comida era cara e ruim. Belisquei um complicado prato feito com camarões congelados que tinham gosto de iodo. Na primavera passada, você arriscava a vida ao comer frutos do mar — se tivesse dinheiro para pagar a conta...
O garçom nos trouxe uma segunda garrafa de vinho da Califórnia. Eu queria embebedar Estelle, obrigá-la a falar. Infelizmente, ela bebia muito mais que eu; se quisesse acompanhá-la, acabaria caída embaixo da mesa. Até certo ponto, ela foi muito franca. Esse assunto de "meu marido é um filho da puta" dá boas reportagens. Todavia, não me servia. Eu estava a serviço de Kalki e, também, do Sun. Trabalhar como agente duplo tem seus encantos, mas, em compensação, seus perigos. Fiz perguntas inofensivas, do tipo:
— Vocês ainda se dão bem?
— Por que eu me daria bem com ele? — retrucou Estelle, franzindo a testa. — Eu era a esposa dele. Certo? De repente, passei a ser ex-esposa. Sem a menor explicação. Tudo terminado. Foi isso que ele declarou. Depois, amigou-se com aquela garota, Pannicker. Não creio que sejam casados legalmente. Não que eu fosse incomodar Jimmy com esse assunto, embora sejamos ambos católicos. Pelo menos, eu continuo a ser e ele era.
Com um sorriso confidencial e um leve toque de ceticismo, comentei:
— Agora, ele é deus.
— Você consegue acreditar nisso? — redargüiu Estelle, com um furioso tom rosado tingindo seu rosto normalmente pálido. Notei que seus poros eram dilatados. — Quase caí dura quando li nos jornais! Primeiro, ele se livra de mim. Certo? Então, pego um jornal e leio que fundou uma nova religião. Jim está maluco!
Tentei explicar que a religião hindu não era nova. Quando cheguei ao ponto de elucidar que Kalki era o avatar, ela já não me dava a mínima atenção.
— Presumo que isso renda dinheiro — comentou. — Quero dizer, vemos esses garotos nas ruas, distribuindo panfletos e flores de papel. O dinheiro tem que vir de algum lugar. Certo? E, agora, esses cartazes! Mal pude acreditar quando vim para o trabalho, hoje de manhã, e avistei aquele enorme cartaz, mostrando o rosto de Jimmy e anunciando o Fim. Você consegue acreditar?
Respondi que não; que, pessoalmente, não aceitava a mensagem de Kalki. Achava, porém, que ele realmente acreditava em sua religião e julgava que o mundo estava prestes a terminar.
Estelle disse de repente:
— Você é a mulher que paga pensão alimentícia ao ex- marido.
— Acho que as mulheres devem fazer isso — declarei, acrescentando depressa: — Algumas mulheres. Evidentemente, não é o seu caso. Kalki a abandonou. Portanto, deve-lhe muita coisa. Eu, porém, abandonei meu marido. Ganhava mais que ele. Assim, quando ele conseguiu a guarda dos filhos...
Interrompi a autobiografia, indagando:
— Kalki lhe paga pensão alimentícia?
Estelle meneou afirmativamente a cabeça. Percebi que eu não era uma heroína aos olhos dela. Eu traíra as mulheres. "Arranquem-lhes até as cuecas!", era o grito de guerra das gatas. Entretanto, eu não estava em Los Angeles para pregar a igualdade de direitos.
— Kalki é o dono daquela loja de peixes e aves, não é?
Para variar, H. V. Weiss acertaria na mosca se dissesse que um par de olhos se apertara: os de Estelle quase desapareceram.
— O dono da loja é o Dr. Lowell — disse ela, cautelosamente. — Naturalmente, ele e Kalki são velhos amigos. Jimmy estudou com o Dr. Lowell em Tulane, no preparatório de medicina. O Dr. Lowell era professor do curso. Agora, devo preveni-la de que nada direi a respeito de Jimmy, de um modo ou de outro, exceto que o considero um filho da puta pela maneira como ele me deixou pensar, durante anos, que iríamos viver juntos quando ele voltasse da Ásia e nunca mais voltou de lá.
— Quando o viu pela última vez?
— Em seu último ano no Exército. Encontramo-nos em Bangkok, durante uma licença que ele tirou. Foi em 1968. Jimmy afirmou que tão logo desse baixa do serviço ativo voltaria diretamente para casa, aqui em Nova Orleans. Esta é a melhor torta de rum da cidade.
A torta de rum era mesmo excelente e a disposição de Estelle começava a melhorar.
— Ele disse também que pretendia ingressar na faculdade de medicina. Contudo, mesmo naquela ocasião eu já tinha certeza de que tudo não passava de conversa fiada, porque ele estava realmente integrado na Ásia. Quero dizer, já sabia falar todas aquelas línguas. Suponho que tivesse muitas amiguinhas por lá. Nativas. Tipo Madame Butterfly. Sempre achei que ele era supersexuado. De qualquer forma, quando saiu do Exército, permaneceu em Saigon. Queria que eu fosse morar lá, embora eu deteste comida chinesa. Depois, pediu-me o divórcio. Sem mais nem menos. Admito que foi generoso. Pagou-me a viagem ao México. Pouco depois que voltei de lá, Jimmy me telefonou, de Bangkok. Disse que se casara com uma garota rica, chamada Dóris Pannicker. Desejava que eu fosse feliz. Esperava que eu me casasse outra vez. Oh, Deus, os homens são mesmo podres! De qualquer modo, bati o telefone na cara dele. E arranjei um emprego.
— Na loja?
Estelle assentiu. Tinha os olhos marejados de lágrimas. Eu sabia como ela se sentia.
— Giles... quero dizer, o Dr. Lowell... saiu de Tulane naquele ano. Sempre fôramos bons amigos. Na verdade, Jimmy era uma espécie de favorito dele. Giles estava cansado de lecionar. Cansado de ser pobre. Adorava aves tropicais. Os peixes vieram depois. Foram uma espécie de complemento, como as cabeças mumificadas. De qualquer forma, ele abriu a loja e eu vim trabalhar para ele. Foi um grande sucesso. E gosto de trabalhar.
Esta última afirmação foi feita sem muita convicção. Terminamos o vinho em silêncio. Na mesa ao lado, crêpes suzettes começaram a pegar fogo. Um garçom atabalhoado derramou conhaque no fogo. As chamas azuis se elevaram no ambiente. Todos se divertiam, embriagados. Uma cidade tropical.
— De onde vem o dinheiro?
— Dinheiro? — repetiu Estelle, observando atentamente nosso garçom preparar o café brülé. — A loja vai mesmo muito bem, se é a isso que se refere.
— Refiro-me ao dinheiro para Kalki.
— Só Deus sabe. Mas ele é capaz de hipnotizar os passarinhos nas árvores. É um vigarista nato.
Estelle deixou o assunto de lado e não consegui fazê-la voltar a ele. De repente, declarou em tom confidencial:
— Sabe, aqui entre nós, detesto aves. Tenho fobia delas. Por isso, fui a um psiquiatra, amigo de Giles... do Dr. Lowell. Ele me contou uma história a respeito de uma mulher que foi procurar o Dr. Jung, aquele psiquiatra da Suíça, e se queixou de que, sempre que saía de casa, as aves a atacavam. Então, o Dr. Jung declarou: "Senhora, tenho certeza de que a senhora apenas imagina que as aves a ataquem. Vamos dar um passeio no meu jardim e a senhora verá que tudo não passa de imaginação". Certo? Assim, foram passear no jardim do Dr. Jung e as aves atacaram a mulher. Bem, eu sou assim. Quer dizer, as aves não me atacam, mas me causam arrepios.
A essa altura, eu já me sentia um pouco embriagada. O café brülé estava fazendo efeito.
— Parece que você escolheu o tipo errado de trabalho.
— Sinto-me mais segura quando elas estão trancadas nas gaiolas.
A primeira Sra. Kelly era realmente uma avis rara. Todavia, eu precisava dela. Fiz o possível para fazê-la falar, mas foi inútil. Parecia não ter o menor interesse por Kalki. Havia anos que não se encontravam. Por outro lado, parecia obcecada por Lakshmi. Sabia que esta ganhava muito dinheiro através de Kalki. E dinheiro significava muito para Estelle. Religião também.
— É preciso lembrar que Jimmy nunca foi religioso — declarou. — Nunca ia à missa. A mãe dele ficava muito perturbada com isso, porque a família é muito religiosa; são irlandeses, lá do Irish Canal. A minha família é crioula. Isso não significa que tenhamos sangue negro. O termo é usado aqui para designar os colonos originais, vindos da França, que se casaram com famílias espanholas. Os irlandeses chegaram muito depois. Estudei no Convento de Santa Úrsula, sabe? Só umas poucas famílias conseguem mandar as filhas para lá. Sempre nos preveniram contra aqueles rapazes irlandeses do Irish Canal. Mas não dei ouvidos...
— Onde conheceu Jimmy? — indaguei, a verdadeira repórter, perspicaz e direta.
— Na aula de dança. Ambos estudamos com Eglanova, aqui em Nova Orléans. Ela já morreu, mas a escola continua firme, na Napoléon Street. Foi primeira bailarina do Balé Russo de Monte Carlo.
— Dança? — perguntei. Minha mente dava cambalhotas dignas de H. V. Weiss. — Balé?
— Oh, sim. Na realidade, Eglanova sempre dizia que Jimmy tinha tudo para ser um grande bailarino, embora só tivesse começado a estudar aos dezessete anos, o que é considerado tarde demais.
— Não sei bem porquê, mas acho difícil de acreditar.
— Eu também não sei por quê. Ele levava muito a sério, porém. Compreenda: ele sofreu de poliomielite. Foi um caso leve, mas Jimmy queria fortalecer as pernas. Por isso começou a ter aulas de dança. Freqüentávamos a academia de Eglanova enquanto estudávamos em Tulane.
As pernas excepcionalmente musculosas de Kalki estavam explicadas, agora. A maioria das peças do quebra-cabeça já estava disponível. Balé! Preparatório de medicina. Casamento católico romano com Estelle. Vietnam. Corpo Médico do Exército. Drogas? Divórcio civil. Novo casamento? Religião. Os elos da cadeia se tocavam, mas ainda não estavam no lugar certo...
— Hoje em dia, o balé nada tem de frescura. Jimmy nada tinha de bicha, sabe?
Eu sabia, pensei com meus botões. Por outro lado, não sabia realmente. Quem pode ter certeza? A bissexualidade é uma coisa estranha. Segundo as maiores autoridades no assunto, só existe bissexualidade entre as pessoas bissexuais.
— Ele possuía uma impulsão maravilhosa, mas eu, apesar de ágil, não tinha muita resistência. Jimmy é um rapaz estranho — disse Estelle, já começando a arrastar seu arrastado sotaque sulino. — Acho que sempre foi assim. Não que eu fosse capaz de perceber, quando era menina. Éramos tão jovens, sabe? Por incrível que pareça, eu estudava no curso preparatório de direito, em Tulane. Ele se preparava para a faculdade de medicina. Depois, preferiu estudar química. Sempre achei que ele seria um grande cientista. Imaginava-o com um avental branco, inventando produtos para a DuPont.
Suspirou, acrescentando:
— Wilmington é uma cidade linda. Eu sempre desejei que fôssemos morar lá. Tenho parentes ali perto, os Jarvis. Então, veio o Vietnam...
Estelle parecia precisar de uma boa choradeira, para desabafar. Por mim, eu precisava de oxigênio. A fumaça das crêpes suzettes queimadas me sufocava.
— Sei como são essas coisas — declarei, bancando a amiga compreensiva. — Quando me casei com Earl Jr., julguei que fôssemos morar em Seattle. Ele ia trabalhar como engenheiro da Boeing. Eu adorava Seattle.
Nada disso era verdade, mas eu queria deixá-la à vontade comigo. Irmã no sofrimento.
— Ele preferiu trabalhar na corretagem de imóveis, em Santa Mónica — concluí. — Não foi a mesma coisa.
— Não — disse Estelle. — Nunca é a mesma coisa.
Já começava a apresentar indícios de estar alta, se não embriagada. Eu a deixara tomar sozinha a segunda garrafa de vinho.
Indaguei de mansinho:
— Quando Jimmy começou a tomar drogas?
Estelle ficou sóbria de um momento para outro. Tirou da boca o cigarro que acabara de acender e o apagou no resto da torta de rum. Pegou a bolsa, que estava no chão, colocando-a em cima da mesa.
— Nada sei a respeito de drogas, Sra. Ottinger. Agora, preciso voltar ao trabalho. Foi um almoço excelente...
Paguei a conta e mantive uma frieza exemplar.
— Engraçado. Pensei que soubesse. Afinal, você conhece Jason McCloud e ele é agente do Departamento de Combate aos Narcóticos. Aquele negro, com a pasta.
— Nunca o vi antes — declarou Estelle, pondo-se de pé. - Agora, preciso ir.
Acompanhei-a de volta à loja. Naquela esquina da Canal Street, fomos detidas por uma dúzia de moças e rapazes da seita de Kalki. Usavam túnicas amarelas e sandálias. Levavam livros, revistas e flores de lótus feitas de papel branco.
— Kalki chegou — disse um deles, muito amável. — O fim do mundo é iminente. Gostaria de preparar-se? De purificar-se?
Cada uma de nós recebeu um panfleto. E um lótus de papel branco.
— Recebo uma média de dois por dia — declarou Estelle, jogando o panfleto na sarjeta, mas guardando o lótus de papel. Evidentemente, acompanhava os resultados da loteria.
— Nunca li tanta tolice. Nunca! Não consigo entender como um bom menino católico, como Jimmy, acabou espalhando essas besteiras hindus.
— Você não acredita que ele seja mesmo deus?
— Está louca? Claro que não acredito.
O rosto de Estelle assumiu uma expressão resoluta — se é isso que acontece quando o maxilar fica ressaltado em virtude de uma deliberada oclusão dos molares posteriores.
— Todavia, também não acredito que esteja maluco. Na minha opinião, está aprontando alguma coisa, mas não sei o que é.
— Dinheiro?
— Não.
Estelle decidiu não falar mais no assunto, pois isso implicaria discutirmos o funcionamento da loja de aves e peixes tropicais.
— Jimmy é muito radical — comentou. — Se achar que está com a razão e conseguir analisar todos os aspectos da questão, é capaz de tudo. Sabe, ele é um gênio.
— Em que sentido?
— QI. Coeficiente de inteligência. Giles... o Dr. Lowell... acha que Jimmy é único, fora de série.
— Eles ainda se encontram?
Estelle fitou-me nos olhos, como sempre se instruem os mentirosos a proceder.
— Nunca. Como poderiam encontrar-se? Há anos que Jimmy não volta para casa. E Giles nunca sai da cidade.
— Ora, pensei que você me tivesse dito que estava fora da cidade.
— Disse que estava fora do escritório. Voltará mais tarde. Informarei que a senhora está hospedada no Lafitte Hotel.
Na Dauphine Street, um segundo grupo de discípulos de Kalki nos perguntou delicadamente se gostaríamos de visitar seu ashram, onde um guru nos diria tudo a respeito das diversas etapas da humanidade que haviam levado à era de Kali, a nossa era, que seria a última. Mostrar-nos-ia também como meditar, como ser e como não ser, como purificar-nos para atingir uma esfera mais elevada. Conseguimos esquivar-nos dos jovens, que acenaram para nós em despedida. Eram muito amáveis.
— Não compreendo por que as pessoas se sentem tão atraídas por Kalki — comentei. Eu não me sentia (pelo menos, não totalmente). — Tudo o que ele promete é o Fim. Não se trata de uma mensagem muito feliz.
— Bem, talvez todos eles estejam tão enojados disto tudo quanto eu! — replicou Estelle, inesperadamente áspera.
— Mas não existe sempre uma esperança de...
Meu otimismo foi interrompido:
— Merda! — exclamou Estelle. Estávamos à porta da loja. — Obrigada pelo almoço. Dê lembranças a Jimmy. Direi ao Dr. Lowell que a senhora deseja falar com ele.
Entrou.
Caminhando de volta ao hotel, sentia-me muito satisfeita comigo mesma. Os jornalistas raramente fazem algo além de reescrever notícias já conhecidas. Eu, porém, conseguira descobrir algo novo: uma verdadeira notícia. Vindo a Nova Orleans, conseguira encontrar a desconhecida primeira esposa de Kalki e, eventualmente, com um pouco de sorte, encontraria o ex-professor de Kalki, o Dr. Giles Lowell.
Por que ninguém mais conseguira fazer o que eu fizera? Tentei adivinhar os motivos e, ao mesmo tempo, afastar sombrias suspeitas. Em primeiro lugar, Kalki era notícia havia menos de um ano... doze meses durante os quais ele fora obrigado a competir por um espaço nos veículos de comunicação de massa com a crise de energia, a seca, a recessão econômica, o desemprego, o Reverendo Sol Lua, as ratas do governo em Washington. O impulso só aumentara nas duas últimas semanas. Devido aos jovens discípulos (milhares deles) nas ruas e a todos aqueles cartazes, Kalki se tornara mundialmente famoso. Não obstante, com tantos jornalistas profissionais no mundo, eu fora a única pessoa a conhecer as suas duas esposas, a...
De repente, senti-me afogada por uma onda de paranóia. Kalki facilitara propositalmente as coisas para mim. Mandara Estelle conversar comigo. Queria que eu escrevesse a versão que ela apresentava da vida dele. Eu estava sendo preparada. Primeiro, por Estelle (seria ela realmente quem alegava ser?) e, depois, por um misterioso Mestre Perfeito. Estava sendo testada. Por quê? E com que finalidade?
Quando vi Jason McCloud sentado no saguão do hotel, tive, por um momento terrível, a impressão de que ele era um Mestre Perfeito fazendo passar-se por agente do Departamento de Combate aos Narcóticos. Todavia, era apenas um agente — e muito trêmulo, por sinal. Cumprimentei-o:
— Oi!
O recepcionista me entregou um recado telefônico. Eu devia ligar para Bruce Sapersteen, em Nova York, para a sua residência.
— Preciso falar com você — declarou Jason McCloud, que já não carregava a pasta.
Disse-lhe que se encontrasse comigo no bar do hotel. Em seguida, telefonei para Bruce.
— Oi, Teddy! — disse Bruce, parecendo dopado. Imaginei o nariz vermelho.
— Estive na loja de aves e peixes. Ainda estou tentando entrevistar o Dr. Lowell. Conheci a primeira esposa de Kalki.
— Jóia! Quando ouvir o bip, comece a ditar.
Escutei o bip e relatei a reportagem. Quando terminei, Bruce voltou ao aparelho.
— O material está ótimo. Não sei como deixamos de descobrir a tal primeira esposa. Péssimo serviço de pesquisa, creio. De qualquer maneira, estamos recebendo um bocado de retorno por causa das reportagens. A ligação com drogas se torna cada vez mais evidente.
— Mas como poderão utilizá-la?
— Morgan está procurando verificar com os advogados. As Empresas Kalki têm muito dinheiro, mas estamos recebendo ajuda do governo, na moita. Mesmo assim, é assunto delicado!
— Morgan se importa com o fato de eu aceitar o emprego de pilota de Kalki?
Quando em dúvida, diga a verdade. Eu escrevera uma carta a Morgan, para tornar a informação oficial, mas ainda não recebera qualquer resposta.
— Não. Ele acha ótima idéia. Estamos fazendo publicidade da próxima reportagem como um relato íntimo da aviadora particular de Kalki, com uma fotografia sua, linda, aqueles seios enormes...
— Vá à merda, Bruce. Sou uma mulher divorciada.
Bruce Sapersteen soltou uma risadinha histérica. Bati o telefone.
McCloud estava sentado a um canto do bar, um lugar escuro, com um barman negro vestido como um criado da época anterior à Segunda Guerra. Resolvi arriscar mais um sazerac. McCloud ingeria grandes quantidades de bourbon. Falava em sussurros, embora fôssemos os dois únicos fregueses no recinto.
— Sra. Ottinger, creio que deve uma explicação ao Departamento de Combate aos Narcóticos.
Foi uma abertura realmente surpreendente.
Por quê?
Por que estava na Companhia de Peixes e Aves Tropicais de Nova Orleans?
Desejo montar um aquário.
Não estou brincando, Sra. Ottinger.
Deixe-me julgar se é ou não brincadeira, Sr. McCloud — repliquei, tomando a ofensiva. — Por que o senhor estava lá?
— A serviço.
— E qual é o seu serviço?
— Descobrir traficantes de drogas.
— O que havia naquela pasta que o senhor carregava? Drogas ou dinheiro de suborno?
McCloud lançou-me um olhar (como diria H. V. Weiss) malevolente.
— A senhora poderia ser presa. Agora mesmo. Por mim.
— Qual a acusação?
— Posse de cocaína. Em sua bolsa. Um grama.
Apertei minha bolsa de encontro ao peito.
— Não há cocaína nesta bolsa.
McCloud disse em voz lenta, sussurrante:
— Se eu disser que há cocaína na bolsa, haverá. E a senhora irá para a cadeia. É a minha palavra contra a sua.
Fiquei levemente alarmada. Preparar provas falsas contra pessoas inocentes era um passatempo predileto das muitas forças policiais — secretas e públicas — dos Estados Unidos. Alguns policiais de Los Angeles sempre carregavam consigo pacotinhos de maconha. Quando não gostavam de alguém, um pacotinho era colocado no automóvel ou na casa da vítima. Então, o tira dizia: "Ah! Pegamos você!" O inocente ia em cana. E continuava em cana, porque juiz nenhum seria capaz de duvidar publicamente da palavra de um policial. Afinal, os juízes também podem ser vítimas de provas falsas... A polícia de Los Angeles se divertia a valer. E as outras polícias também.
Permaneci na ofensiva.
— Sei muita coisa a seu respeito — inventei deslavadamente. — Você está sendo pago pelas Empresas Kalki. Esteve hoje com o Dr. Lowell. Ele deu dinheiro. Não posso provar — ainda. Contudo, o Sun mantém meia dúzia de pesquisadores checando minha reportagem e você está incluído nela. Portanto, dou-lhe um conselho: fique de fora. E trate de arranjar um bom advogado.
Achei que representara bem a cena. Lembrei-me de Claire Trevor num filme de Humphrey Bogart.
Infelizmente, McCloud assistira ao mesmo filme e se imaginava no papel do bandido representado por Bogart.
— Está metida numa encrenca, Sra. Ottinger — replicou, no mesmo tom sussurrado, mas franzindo o lábio superior, exatamente como Humphrey Bogart. — Tem razão a respeito da loja de aves e peixes tropicais. Infiltrei-me nela. E estou em ligação com o Dr. Lowell. Pretendo manter essa ligação e não quero que a senhora estrague tudo. Sou um profissional. A senhora é amadora. Estamos prestes a efetuar uma prisão e não quero que a senhora interfira.
— O que constituiria interferência, Sr. McCloud?
— Entrevistar o Dr. Lowell. Publicar no Sun uma reportagem sobre a loja de aves e peixes.
— Julguei que qualquer coisa que publicássemos poderia ser útil a vocês.
— Temos um cronograma, Sra. Ottinger. Qualquer revelação prematura poderia estragar todo o nosso trabalho. Estou com White.
Entendi que ele "estava white". Branco. Em relação aos negros, o problema de cor sempre me vinha à cabeça.
— O quê?
— Estou numa missão especial para a Comissão White.
Fitei-o, atônita. Recebi uma explicação irritada:
— O Senador Johnson White é o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Abuso e Controle de Narcóticos. Atualmente, estudam a situação mundial do tráfico de drogas. Recebi a missão de investigar as Empresas Kalki. Por esse motivo estava em Katmandu. E pelo mesmo motivo estou aqui. Dentro de algumas semanas, haverá uma audiência pública. Kalki será chamado. O Senador White não quer que ninguém anuncie isso antes dele.
Achei que McCloud estivesse mentindo. Pouco interessava que trabalhasse para a Comissão White; o fato é que estava trabalhando para si próprio. Eu tinha certeza de que estava levando dinheiro das Empresas Kalki. Fiz-me de boba. E procurei também parecer bonita.
— Não diga! — exclamei, fingindo espanto. — Você é mesmo importante, não é?
McCloud caiu na cilada. Ou fingiu cair, o que dava no mesmo para meu objetivo.
— Sou, sim — sussurrou. Creio que seria adequado descrever sua voz como pastosa, pois estava ficando bêbado.
— Acha que poderia me apresentar ao Senador White? Sem ninguém saber. Só pra eu poder alegar que tive informações de uma "fonte autorizada de Washington".
— É possível — disse McCloud, fitando minha blusa.
A miscigenação pairava no ar, como uma nuvem atômica em forma de cogumelo, entre nós dois. Fui literalmente salva pelo gongo. Anunciaram um telefonema para mim. Levantei-me da mesa. McCloud permaneceu sentado. Apertei sua enorme mão negra com minhas delicadas (pelo menos relativamente) mãos brancas.
— É meu namorado — segredei. — Você foi um anjo.
Franzi os lábios num beijo de mentira e saí correndo.
McCloud não se moveu do lugar; limitou-se a sorrir.
— Aqui fala o Dr. Giles Lowell — disse a voz agradável ao telefone, com um leve sotaque sulino. — Estelle Kelly informou-me que a senhora gostaria de se encontrar comigo.
— Oh, gostaria muito. Trabalho para Kalki, como o senhor deve saber.
— Sei, sim. Estou na loja. Por que não dá um pulo até aqui? Toque a campainha da frente três vezes. Abrirei a porta.
Respondi que iria imediatamente. Por motivo de segurança, liguei para Bruce Sapersteen, em Nova York. Ele berrou:
— Alô!
Era uma daquelas noites. Como música de fundo, pude ouvir o aparelho de som tocando bem alto Joni Mitchell, em sua fase mais recente.
— Ouça, Bruce: estou saindo para encontrar o Dr. Lowell, na loja de aves e peixes.
— Boa caçada. Vá em frente...
— Cale a boca! Estou lhe avisando para o caso de me assassinarem.
— Oh! — fungou Bruce. — Acha que ele é perigoso?
— Tudo é perigoso. A vida é perigosa. De qualquer modo, estou indo para lá. Além disso, investigue a respeito de um tal Jason McCloud, suposto agente do Departamento de Combate aos Narcóticos. Um negro. Parece uma personagem desses seriados baratos de TV. Afirma que está trabalhando para a comissão do Senador White...
— White está atrás de Kalki?
— É o que McCloud diz.
— White vai se candidatar à presidência...
— Já estou atrasada.
Desliguei. Estava nervosa. Há ocasiões em que é um atraso de vida ser mulher. Jamais tive medo de ser estuprada. Ou de voar. Ou da vida, em geral. Todavia, sinto-me constantemente perseguida pela figura de um homem alto e corpulento. Ele me segue em uma rua escura. Não quer minha bolsa; quer tirar-me a vida. Sinto seu braço em meu pescoço. Não consigo ver seu rosto. Não consigo respirar. Fico indefesa.
A Bourbon Street estava, no mínimo, mal iluminada. Caminhei por ela, evitando da melhor maneira possível as ruas transversais, especialmente a Dauphine Street, onde as sacadas que se projetavam das fachadas contribuíam para a escuridão na qual, eu tinha certeza, se ocultavam inúmeros vultos masculinos altos e corpulentos, cujos braços ansiavam por envolver-me o pescoço pelas costas.
A Bourbon Street não era o que se pode chamar de uma rua agradável para uma mulher solitária, usando um vestido azul-turquesa copiado de Halston. O sexo pairava no ar. E, também, música trepidante vinda dos bares. Todo mundo parecia cadavérico à luz fluorescente dos letreiros. À noite, uma mulher desacompanhada constituía um desafio naquela cidade, especialmente naquela rua. Os homens me olhavam. Alguns me lançavam olhares lascivos e sorrisos sinistros. Graças a Deus, nenhum deles tinha dentes faiscantes.
Concentrei-me em minha bolsa, colocando nela uma pistola imaginária, devidamente carregada. Por meio de pura concentração, consegui convencer até mesmo os conquistadores mais embriagados de que era uma mulher armada e perigosa. Na verdade, as mulheres eram piores que os homens. Tinham o pensamento fixo no sexo — mas não comigo. Eu era mais uma competidora. Levei cotoveladas e pontapés. As marafonas não percebiam a pistola imaginária...
Andei depressa, evitando o máximo possível qualquer contato físico com alguém. Um marinheiro vomitava. Um branco puxou uma faca para um negro no umbral de uma porta. Todos riram diante daquela inversão da ordem natural das coisas. Os viciados passavam por mim, com olhos vidrados, parecendo descansar os rostos no ar, como se este fosse um travesseiro. Os adeptos de Kalki, muito sensatamente, não saíam à noite...
Os últimos dois quarteirões da Dauphine Street foram simplesmente aterrorizantes. Sob as arcadas ameaçadoras, a escuridão que recendia a café ocultava toda espécie de perigos. Andei, trotei, corri os últimos metros até chegar à loja de aves e peixes. Estava fechada. Por detrás das vitrinas, os aquários iluminados e cheios de peixes brilhavam como opalas líquidas. Toquei a campainha três vezes.
A porta se abriu. O Dr. Giles Lowell era alto, magro e calvo. Lembro-me de haver pensado, aliviada, que ele não era corpulento e não se achava atrás de mim.
Quando fiz menção de falar, ele levou um dedo aos lábios, em sinal de silêncio. Em seguida, fez um gesto para que eu o acompanhasse. Nas pontas dos pés, caminhamos por entre as fileiras de aquários iluminados e de gaiolas cobertas com capas de pano. Algum tipo de vaporizador com perfume de flores fora utilizado para neutralizar o cheiro penetrante das aves. O odor resultante causou-me a segunda dor de cabeça daquele dia.
O Dr. Lowell destrancou a porta com o letreiro "PARTICULAR" e ficou de lado para me dar passagem. Meu coração batia com força. Agora, ele estava por detrás de mim. Todavia, cheguei a seu escritório sem ser agredida, estuprada ou assassinada. Ele acendeu a luz.
— Entre, Sra. Ottinger — convidou delicadamente. — Perdoe-me a escuridão e o procedimento furtivo, mas basta acender uma lâmpada ou dizer duas palavras na loja para acordar cada uma daquelas malditas aves e ter que gastar mais de uma hora para fazê-las dormir outra vez. Sente-se. Sou o Dr. Lowell, é claro.
— É claro — repeti, um tanto tolamente, correndo o olhar pela sala. Nada digno de nota. Uma grande escrivaninha, um sofá, duas poltronas, um armário de arquivo, uma série de aquarelas de aves exóticas. — Dr. Lowell — indaguei, colocando ênfase no título —, ainda pratica a medicina?
— Oh, não. Na verdade, nunca cheguei a praticá-la. Era apenas professor. Depois, tornei-me um "homem de negócios" — a luz fluorescente no teto tirava reflexos azulados do topo de sua calva. — Jim Kelly era um bom aluno, se me permite ir direto ao assunto. Sei que a senhora está escrevendo a respeito dele. Vi suas duas reportagens no Sun.
— Não fui eu quem realmente as escreveu — declarei, numa adequada atitude defensiva. Jamais me passara pela cabeça servir de nom de plume para H. V. Weiss e, agora, B. Sapersteen. Amélia escrevia seus próprios livros — e poemas, também.
— Compreendo. Conversei com Jimmy... ou Kalki... a seu respeito. Ele me informou que a senhora é também sua pilota particular.
— Sim. Todavia, ele quis que eu continuasse a trabalhar para o Sun, a fim de descobrir o que eles... sabem.
Eu nunca soube mentir direito.
— O que eles sabem — repetiu o Dr. Lowell, parecendo excepcionalmente sinistro à luz azulada. Ora, qualquer um parece sinistro sob luz azul. — Contudo, o que realmente interessa é o que a senhora sabe, não é mesmo?
Pressenti a ameaça. Banquei a ingênua.
— Sei muito pouco, em especial sobre o começo.
O Dr. Lowell assentiu com a cabeça.
— Creio que Jimmy... não; vamos chamá-lo de Kalki, pois ele é mesmo Kalki, afinal... O verdadeiro talento de Jimmy era para a química. Ambos percebemos isso durante seu primeiro ano no preparatório de medicina, quando ele extraiu um alucinógeno inteiramente novo de — imagine só! — damascos.
— Um quê?
— Uma droga — disse o Dr. Lowell, mencionando sem o menor embaraço o tema de nosso encontro noturno. — Ele tinha um gênio... ou melhor, não exatamente um gênio, mas um notável talento... para fabricar drogas que provocassem alucinações. Conseguia extraí-las dos mais improváveis ingredientes. Então, ingressou no Exército e tudo terminou.
— Ele tomava drogas?
— Eis uma pergunta melindrosa, em vista das circunstâncias — replicou o Dr. Lowell, abrindo uma gaveta da mesa de trabalho. Esperei que retirasse dela uma versão real de minha pistola imaginária, mas ele simplesmente pegou uma garrafa de uísque escocês e dois copos. — Bem, tomemos um pouco da droga legal, o Nirvana do americano médio: álcool!
Soltou uma risada lúgubre. Havia algo de deprimente — e estranhamente familiar — no Dr. Lowell. Seria um copo para cada um de nós.
— A Kalki! — brindou. Tocamos os copos e bebemos.
— Dr. Lowell — disse eu, engolindo com dificuldade, pois não costumo beber uísque puro. Arlene chegava a gargarejar com tequila e, em resultado, sua voz ficou uma oitava mais grave no espaço de menos de dez anos. — Conheço a reputação desta loja...
— Os mais preciosos peixes e aves tropicais do mundo. Diretamente da floresta amazônica para sua casa, seu apartamento ou seu solitário conjugado.
A luz vinda do teto tornava seus olhos invisíveis para mim.
— Fazemos entrega em qualquer lugar — acrescentou.
— Vi Jason McCloud em Katmandu. Vi-o nesta loja hoje à tarde. Tornei a encontrá-lo esta noite. Ouça: estou com um problema. Esqueçamos o Sun. Não sou obrigada a continuar as reportagens. Todavia, assinei um contrato com as Empresas Kalki. Supõe-se que eu esteja trabalhando para a reencarnação de Vishnu. É supor um pouco demais, mas quem sabe? Agora, permita-me colocar as cartas na mesa. Se toda essa história de religião for apenas uma fachada para encobrir uma quadrilha internacional de tráfico de drogas, o que será de mim quando a comissão do Senador White baixar o sarrafo? Vou ficar na mesma situação que o motorista inocente, que dirige o carro da fuga e vai parar na penitenciária.
Senti-me aliviada por revelar (em parte) a verdadeira situação.
O Dr. Lowell fechou os olhos invisíveis.
— Entendo seu problema — declarou. — E o respeito. Permita-me tentar ajudá-la. Kalki não tem qualquer ligação com esta loja. O negócio é totalmente meu. É verdade que McCloud está trabalhando para a comissão de inquérito do Senador White. A comissão e o senador precisam de manchetes. Julgam que eu negocie com drogas. Kalki e eu éramos íntimos e ainda nos mantemos em contato. Portanto, Kalki não é o avatar do deus supremo, mas um traficante de drogas. Há meses que McCloud e White estão à espreita. Quanto mais aumentar a publicidade de Kalki, maior será a publicidade das audiências públicas da comissão de inquérito. White tenciona ser o quadragésimo... ou será o quadragésimo primeiro?... presidente desta grande república. McCloud pretende subir junto com White. Supondo-se, é claro, que McCloud não seja um agente duplo.
— Que recebe dinheiro de vocês? Vi aquela pasta na mão dele.
Enfiei meu pescoço no laço do carrasco. O uísque me tornara sonolenta — e ousada.
O Dr. Lowell recebeu minha acusação com uma calma considerável.
— É costume os homens de negócio americanos, por mais inocentes que sejam, subornarem os investigadores do governo. McCloud é perfeitamente capaz de forjar provas contra mim.
Assenti.
— O tira com o pacotinho... — comentei.
— O que disse? — perguntou o Dr. Lowell, cuja figura começava a ficar confusa sob a luz azulada.
— Eu disse...
Contudo, mesmo que isso me custasse a vida, eu não conseguiria repetir o que dissera, pois fora drogada.
No momento em que perdia a consciência, dei-me conta de que o Dr. Lowell era o Dr. Ashok.
Se eu não me sentisse tão mal, poderia ter apreciado até certo ponto o obsoleto senso dramático do Dr. Lowell. Em primeiro lugar, eu fora dopada com um simples componente da antiga e legendária família de Michael Finn. Em segundo lugar, fora colocada numa cama num quarto moderno, decorado em estilo escandinavo. Em terceiro lugar, estava vestida com uma camisola de renda preta que se encontrava fora de moda desde a década de 40, época em que o Dr. Lowell despertara para a masculinidade. Fora estuprada? Provavelmente. Toda a minha região pélvica estava dolorida. Só Deus sabia a que jogos libidinosos o Dr. Lowell me submetera. Tive vontade de vomitar. Sentia-me febril.
Uma voz feminina chegou-me aos ouvidos, como se através de um metro de parede de algodão:
— Como se sente, Sra. Ottinger?
— Como morta — repliquei.
Virei a cabeça e avistei uma mulher de aspecto agradável, vestida (disfarçada?) de enfermeira.
— Vou informar ao Dr. Lowell — anunciou ela, saindo do quarto.
Fechei os olhos. Só queria dormir. Perder novamente os sentidos. Fugir às dores, arrepios, febres.
A próxima coisa que percebi foi o Dr. Lowell sentado ao lado da cama. Tomou-me o pulso. Parecia realmente preocupado com minha saúde.
— Fui dopada? — indaguei, tendo dificuldade para falar. Além disso, estava sofrendo de visão dupla.
— Sim. Temo que tenha sido obrigado a fazer isso. Mas a senhora também está doente. Nada tem a ver com a droga. Pode crer. É alguma espécie de gripe. Não sei exatamente qual o tipo. Algo que a senhora contraiu no Nepal.
— De um legionário.
Achei graça no comentário, mas ele permaneceu muito sério. Examinou meus reflexos, visão, audição. Pareceu tranqüilizar-se um pouco.
— A senhora está bem — declarou. — Graças a Deus. Quase morri de susto.
— Por que fui dopada?
— Eu precisava tirar você de Nova Orleans. Escapar de McCloud.
— Nova Orleans? — repeti, sem entender direito.
— Sim. Estamos em Washington, D.C., numa suíte do Jefferson Arms, um hotel pertencente às Empresas Kalki.
— O Sun sabe disso?
— Sabem que a senhora esteve doente — respondeu o Dr. Lowell, empunhando uma seringa de injeção. Permiti que me espetasse. — Vai sentir-se melhor em alguns minutos.
Presumi que tivesse me injetado velocidade. Não perguntei.
— E McCloud?
— Ele ia matá-la. É um assassino profissional que trabalha para os chineses.
Não dei atenção àquela tolice.
— Por que estou aqui?
O Dr. Lowell tornou a guardar a seringa. Em seguida, recostou-se na poltrona e lançou-me o que ele sem dúvida julgava ser um sorriso encantador.
— A senhora é um Mestre Perfeito, Sra. Ottinger. Eu também sou — disse ele, fitando-me com os olhos amarelados do Dr. Ashok. Fechei os olhos, e minha visão, se não era dupla, era pelo menos de duplicidade.
— Kalki me disse que eu conheceria um Mestre Perfeito em Nova Orleans. Não me disse que eu também seria drogada, seqüestrada... estuprada...
Assim, decidi pegar o touro pelos chifres. Conheço de cor o livro da Sra. Brownmiller sobre os homens e o estupro.
— Não. Não foi estuprada. Apesar de ser linda. Posso chamá-la de Teddy?
-— Pode chamar-me do que bem entender. Mas como devo chamá-lo? Dr. Lowell ou Dr. Ashok?
— Meu disfarce foi descoberto! — exclamou ele, não parecendo importar-se muito com o fato. — Paciência. Sou o Dr. Ashok no Nepal, porque o Dr. Lowell é persona non grata naquele mágico país. Portanto, quando vou lá, preciso usar um disfarce. Sou também agente da CIA, em regime de meio período. Eles não fazem ligação entre o Dr. Lowell e eu.
— Ele é fornecedor de drogas para o mundo ocidental.
Lowell ignorou o desafio.
— Desde o início, Kalki desejava que nos conhecêssemos. Foi por isso que tomei aquele avião para Nova Delhi. Ele desejava que eu a observasse. Foi o que fiz. E disse a ele que você era um Mestre Perfeito.
Indaguei:
— Como pode um ateu, não adepto do hinduísmo, ser um Mestre Perfeito?
— Todos nós somos hindus, quer tenhamos consciência disso ou não. É também fato que o deus único possui três aspectos e que a encarnação atual de um desses três aspectos é Kalki. Minha cara Teddy, não franza a testa dessa maneira! Sei que é difícil acostumar-se à idéia. Quando Jimmy me revelou que era Kalki — em sua última viagem aos Estados Unidos, em 1970 — pensei que ele estivesse louco.
— Posso fazer anotações?
Apesar de sentir-me muito fraca, achava que tinha uma obrigação a cumprir para Morgan.
— Na qualidade de seu médico, devo dizer que não. Haverá tempo suficiente para isso antes do fim — replicou Lowell, achando o comentário tão divertido a ponto de merecer uma risada. — Como você, eu também argumentei com Jimmy: "Não sou hindu". Além disso, ponderei com Kalki que ele também não era hindu, exceto por conversão religiosa. Ele retrucou que isso não importava. Somos quem somos, e sempre fomos quem somos através de toda a eternidade. Às vezes, sabemos disso. Às vezes, não. Precisamos de esclarecimento, iluminação. É esse o significado da palavra "Buda": aquele que foi iluminado.
— Então, você... todos nós somos Budas?
— Estamos prestes a ser. À exceção de Kalki, naturalmente: ele é deus.
Lowell pronunciou essas palavras com toda a tranqüila autoridade com que Michel Foucault nos associaria com os realmente loucos ou sãos.
Senti uma tremenda vontade de me ver ao espelho.
— Ele já era Kalki em Tulane?
Minha pele estava seca. Tentei, sem sucesso, ver meu reflexo no estetoscópio que estava sobre a mesa-de-cabeceira.
— Já era Kalki, mas não sabia. Ou, pelo menos, é o que afirma. Certamente eu jamais desconfiei que fosse. Excetuando seu trabalho no laboratório, era um estudante bastante normal.
— Ele estudava balé.
— Depois da pantomima, o que mais odeio é o balé. Se há um inferno sendo preparado para mim, será passar a eternidade assistindo a Marcel Marceau alternar-se com o Balé Bolchói.
A posição de Lowell era mais radical que a minha. Não obstante, nossos gostos não diferiam muito.
— Você encontrou Kalki antes de 1970?
— Costumava ter notícias dele. Ou melhor, a respeito dele. Através de Estelle, uma boa menina. Tenho pena dela. Kalki também tem. Isto é, ela não tem culpa por não ser Lakshmi.
— Kalki poderia ter dito isso a ela mais cedo. As mulheres geralmente percebem de imediato uma insinuação.
— Ele não sabia. Portanto, como poderia dizer a ela? Quando compreendeu que era Kalki e que sua esposa eterna era Lakshmi, disse a Estelle. Pediu-me também que desse a ela um emprego, o que fiz com o maior prazer. Não estou quebrando um segredo ao dizer que Estelle e eu temos sido muito íntimos desde que inaugurei a loja.
Comentei, do fundo do coração:
— As mulheres sofrem muito neste mundo!
— Então, alegre-se por estarmos chegando ao fim.
— Você poderia ao menos casar-se com Estelle.
— É tarde demais. O fim...
— Claro, claro, já sei. E há dez anos? Ela teria gostado.
Eu travava uma batalha em defesa das irmãs. E Lowell começava a perder suas maneiras suaves.
— Estelle é católica. Eu não sou. Além disso, fui submetido a uma vasectomia. Não poderíamos ter filhos. De que adiantaria o casamento?
— Se você não sabe, jamais conseguirei explicar. Os homens são mesmo uns merdas. Quero um espelho.
Lowell me trouxe um espelho. Fiquei devidamente deprimida.
— Pareço um cadáver. Onde é a loja mais próxima de Elizabeth Arden?
— Você quase morreu, Teddy. Se não fosse um Mestre Perfeito, teria morrido.
— Se você não me tivesse drogado, eu não teria ficado doente.
— Juro que uma coisa não teve nada a ver com a outra.
Percebi que Lowell desejava ardentemente que eu acreditasse nele. Mas não acreditei. Por algum motivo obscuro, fizeram-me ficar doente.
Por motivos igualmente obscuros, tinham-me curado. De repente, senti um fluxo quente, como um relâmpago. A droga que ele me aplicara começava a fazer efeito. Senti-me subitamente eufórica, cheia de energia.
— Ainda não compreendo como posso ser um Mestre Perfeito.
Lowell realmente deu de ombros, algo que só acontece nas histórias de H. V. Weiss. Por outro lado, o Dr. Giles Lowell era melodramático e, portanto, se sentia perfeitamente à vontade com aquele lúgubre tipo de coisas.
— Também não sei. Kalki desconfiou quando leu seu livro, o que, infelizmente, ainda não tive tempo de fazer. De qualquer forma, agora tenho certeza de que você é um dos cinco Mestres Perfeitos. Não me pergunte como sei, mas tenho absoluta certeza. Sua viagem a Nova Orleans provou que Kalki tinha razão. Que você, eu e Geraldine fomos escolhidos, desde o início, para presidir o Fim. Não temos escolha ou alternativa. Dentre todos nós, apenas Kalki tem liberdade para agir, para surpreender. Não obstante, mesmo sendo deus, ele é obrigado — quer queira, quer não — a efetuar o interminável ciclo de nascimento, morte e renascimento. Como Vishnu, é senhor do universo. Como Kalki, é Vishnu temporariamente incorporado num ser humano. A história de Jesus é mera variante da história de Kalki.
A fim de estimular a circulação e livrar o cérebro dos efeitos da droga, sacudi os braços para cima. Ao fazê-lo, a manga esquerda da camisola de renda preta recuou, deixando à mostra um hematoma na dobra de meu braço.
— O que é isto?
— Apenas uma de uma série de injeções. A primeira eu lhe apliquei no avião, quando você acordou. Lembra-se?
Fiquei em pânico.
— Que avião?
— O que tomamos de Nova Orleans para Washington. Um avião particular, de propriedade das Empresas Kalki. Acho que foi então que você adoeceu. Sua temperatura atingiu quarenta graus. Houve problemas respiratórios...
Mais uma vez, comecei a me sentir irreal.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Seis dias.
— Meu Deus! Preciso levantar! Tenho que falar com Morgan Davies!
— No devido tempo. Por enquanto, vai conversar com alguém muito mais interessante que o Sr. Davies. Marquei um compromisso para você tomar o café da manhã, amanhã, com o Senador Johnson White, no Mayflower Hotel. Falei também com o Sr. Davies. Ele ficou entusiasmado com o seu futuro encontro com o Senador White, porque tudo se relaciona com Kalki e com suas reportagens para o Sun.
— Tem tido muito trabalho, Lowell.
— Giles.
— Está certo... Giles. Onde está minha bagagem?
— Está tudo aqui — disse Lowell, erguendo-se. — Se precisar de alguma coisa, fale comigo. Ou com a enfermeira.
Aqui sentada na Sala do Gabinete da Casa Branca, ainda encontro alguma dificuldade para ajustar as peças do quebra- cabeça. Uma citação de Jules Renard: "Quando vejo algo ridículo, só percebo muito depois. Não consigo observar o momento em que estou vivendo. Só muito mais tarde consigo perceber cada detalhe de minha vida". É o que estou fazendo agora, após salvar minha vida. Entretanto, devo confessar que grande parte do que observei em Washington e, posteriormente, em Nova York pareceu-me surrealista. Como desejavam que me parecesse. Namah Shivayah. Traduzirei depois.
Se alguém me dissesse na manhã seguinte, quando eu caminhava pela Wisconsin Avenue, que um ano mais tarde eu estaria trabalhando aqui na Casa Branca, eu certamente... Não! É exatamente esse tipo de compreensão retroativa que estou procurando evitar. Que me pediram para evitar. Tentarei limitar-me aos fatos, da maneira como ocorreram. Meu modelo será
Jules Renard, que não era dado a metáforas ou a expressões do tipo usado por H. V. Weiss. Renard escreveu: "O romântico olha para um espelho grande e acredita que seja o mar. O realista olha para o mar e acredita que seja um espelho. O homem objetivo, porém, diz diante do mar: 'É o mar!' E diante do espelho: 'É um espelho!'"
Em Washington, vi-me diante de um senador dos Estados Unidos que desejava ser o próximo candidato republicano à presidência do país. Isto é uma declaração objetiva.
Para prosseguir da maneira mais objetiva possível, devo esclarecer de uma vez por todas que sempre detestei políticos. Ocupam demasiado tempo dos programas de entrevistas esquivando-se dos assuntos que interessam e procurando projetar personalidades que ficariam muito melhor escondidas no âmbito de alguns clubes fechados de cidades do interior. Eu era uma aviadora que batera recordes, que arriscara a vida testando aviões. Em compensação, nenhum político, a começar pelo presidente, fizera algo realmente tangível. Era um negócio caído do céu, sempre pensava ao trocar sorrisos com eles diante das câmeras de TV.
O Senador White já se encontrava sentado a uma mesa do salão de café do Mayflower Hotel. Estava sozinho. Posteriormente, informaram-me que isso era uma grande honra para mim. Normalmente, os senadores (e, em especial, os eventuais candidatos à presidência do país) estão sempre rodeados não só por pessoas que desejam obter algo do governo, como também por seus próprios assessores, cuja missão é colocar, por todos os meios e modos, o nome do senador nos jornais e sua imagem na televisão. Trata-se de um truque notável, se levarmos em consideração que jamais senador algum realizou algo digno de nota. De qualquer forma, com um total de uma centena de senadores, a concorrência era feroz. Para sobreviver, cada homem de Estado precisava conseguir, pelo menos uma vez por ano, trinta ou quarenta segundos no Jornal das 18 Horas, de preferência frente a frente — ou, melhor ainda, lado a lado — com Walter Cronkite, o homem em quem a nação mais confiava porque, cinco noites por semana, lia corretamente as notícias durante um tempo total de sete minutos.
White era um homem baixo e troncudo, com mãos e pés pequenos e uma cabeça enorme. Tinha cerca de cinqüenta anos de idade. Quando me aproximei da mesa, exibiu o sorriso padrão dos políticos, com dentes de jaqueta de porcelana: alvos demais, brilhantes demais, regulares demais, tão diferentes das obras-primas odontológicas que são parte integrante do cenário artístico da Califórnia. White tingia os cabelos, o que é sempre um erro. Entretanto, os políticos americanos têm a tendência de parecerem extras de TV piorados. As lentes de contato faziam com que os olhos do senador parecessem maiores e mais vidrados do que a mãe natureza pretendera. Alguém já escreveu: "Oh, que bela obra é o homem!"
Sempre achei que o povo americano seria beneficiado com uma ditadura do tipo da breve permanência de Indira Gandhi no poder na Índia. Afinal, pouca gente notaria ou se incomodaria com isso, exceto para aplaudir o fato de haver somente um chato ocupando tempo na televisão, em vez de milhares deles. Suponho que Saint-Exupéry tinha razão: nós, aviadores, não somos democratas. A dez mil metros de altitude, o mundo é apenas um formigueiro. Vista do espaço, a Terra é uma bola de gude azul-esverdeada. Resumindo, creio que foi sorte o fato de aviadores, com exceção de Lindbergh (durante breve espaço de tempo), terem-se mantido afastados da política. É verdade que Amélia trabalhava em obras de caridade para os pobres, mas ela foi uma santa numa época terrível.
Apresentei-me ao Senador White, que fez menção de se erguer da cadeira e me cegou com o brilho de três mil dentes muito brancos, enquanto me dava as boas-vindas na voz padrão dos políticos (isto é, sonora e ligeiramente monótona). Eu já percebera... ou melhor, fora Arlene quem me chamara a atenção para o fato... que o político mais popular de cada período é, curiosamente, imitado por todos os outros. Lembro-me bem de que senadores de Estados tão distantes quanto a Califórnia procuravam imitar o sotaque bostoniano de John F. Kennedy. Durante o período em que aquele caipira "carola do sul residiu na Casa Branca, um grande número de senadores que aspiravam à presidência passaram a falar com sotaque sulino. O Senador Johnson White, nascido em Michigan e formado pela Faculdade de Direito de Harvard, arranjara um sotaque sulino caipira que me fez gelar o sangue nas veias.
— O mingau de milho está ótimo — disse ele, arrastando as vogais. Estremecendo de horror, pedi apenas café.
Enquanto tomávamos café e nos estudávamos mutuamente, ele deixou perfeitamente claro (por meio de expressão corporal) que eu poderia me tornar, se não amante de um presidente, ao menos uma trepada de um candidato à presidência.
Afastei o mais possível minhas pernas das dele. Então, liguei o gravador e exibi um sorriso brilhante. Se eu fosse homem, não conseguiria imaginar algo menos afrodisíaco que uma mulher com um gravador ligado.
— Ouvi dizer que acaba de chegar de Nova Orleans — disse ele em voz nítida e seca. Então, lembrou-se de que éramos do sul e que ele era candidato à presidência. Acrescentou com aquele sotaque horrendo: — Boa cidade, onde tratam a gente muito bem.
— É mesmo? — repliquei, procurando deixar o mais claro possível que não era uma de suas eleitoras em potencial.
White deixou de lado o mingau.
— Sou grande admirador de Morgan Davies — declarou calorosa e sinceramente; entretanto, tudo o que ele dizia era caloroso e sincero. — Acho que fez um belo trabalho com as suas... bem... seus periódicos. Sou um leitor fiel do Sun, embora seja um pouco extremista demais, do ponto de vista político, para o meu gosto. Dá ouvidos demais aos boateiros, mas é duro quanto às drogas. Eu também. Acho que foi uma boa inspiração tê-la escolhido para investigar e desmascarar a quadrilha de traficantes internacionais.
— Não se trata de drogas, senador — declarei baixinho, pois no reservado em frente ao nosso havia meia dúzia de eleitores profissionais que nos observavam atentamente. Tinham reconhecido White e estavam com inveja de mim. — Minha tarefa é fazer a cobertura de Kalki e do fim do mundo.
White me lançou um sorriso de cumplicidade.
— Claro, claro. Entendo perfeitamente, Teddy. Câmbio.
Toda a sua experiência na cabine de comando de um avião se resumia a trinta segundos sobre Hanói. E os políticos sempre tratam todo mundo pelo primeiro nome.
Em seguida, assumiu um ar grave, desanimado, que todos os presidentes são obrigados a exibir depois de falarem com seu equivalente do Kremlin.
— Você sabe, Teddy, que Kalki e o fim do mundo ocuparão onze minutos e meio do programa 60 Minutos, da CBS, que irá ao ar no próximo domingo? — perguntou, parecendo prestes a cortar os pulsos.
— Kalki é um bom artista — repliquei calmamente. — E o assunto tem um certo interesse.
A atenuação dos fatos jamais agrada aos políticos.
— Aqueles cartazes! — exclamou White, como se tivesse levado uma facada. — Sabe o quanto custa espalhar pelo país vinte mil cartazes coloridos? Nem mesmo Dick Nixon, em 71, gastou tanto dinheiro!
— Disseram-me que o senhor acha que Kalki e o Dr. Lowell estão envolvidos no tráfico de drogas — disse eu, erguendo a esferográfica sobre o bloco de anotações.
White replicou:
— Julguei que os fatos que você expôs em suas reportagens para o Sun tivessem por objetivo provar que a Companhia de Peixes e Aves Tropicais de Nova Orleans é apenas uma fachada para encobrir uma das maiores organizações de tráfico de drogas no mundo inteiro. Também pensei que meu amigo Morgan já lhe tivesse dito que esperamos que vocês mantenham em segredo suas revelações até depois que minha comissão de inquérito realize as primeiras audiências públicas em Nova York e intime Kelly, ou Kalki, a depor perante ela, dentro de duas semanas.
Fiquei perturbada pela referência a Morgan. Teria White feito algum trato com Morgan à minha revelia? Se tivesse, isso explicaria o motivo pelo qual eu não conseguira falar diretamente com Morgan desde que saíra de Los Angeles. Todas as mensagens eram transmitidas através do dopado Sapersteen, o sujeito mais imbecil que eu já conhecera.
— Jason McCloud me falou a respeito das audiências públicas.
— É um servidor público dedicado — declarou peremptoriamente White. — Foi também o único negro capaz de infiltrar-se no ramo da Chao Chow em Hong Kong. Sem ele, jamais obteríamos provas contra Kelly e Lowell.
— Por quê?
Aquela simples pergunta deteve o eventual presidente.
— Por que o quê? — retrucou ele, virando-se para encarar-me melhor.
— Por que ter todo o trabalho de iniciar um movimento religioso quando já se organizou uma lucrativa quadrilha de tráfico de drogas?
— Porque, Teddy — declarou White, parecendo morder com força as palavras que saíam da larga boca presidencial —, a religião está isenta de impostos!
— Oh...
Não sei por que motivo sempre imaginamos que um candidato à presidência seja estúpido. Jamais me ocorrera que
Johnson White fosse capaz de perceber alguma coisa que eu nem imaginara. Mas percebera. E fazia sentido.
— Então, Kalki é um gênio, por ter arquitetado isso tudo.
— Ou Lowell é um gênio. Acreditamos que Lowell seja o cérebro, em Nova Orleans, enquanto Kalki opera na linha de frente. E, naturalmente, na televisão. Onze minutos e meio — disse White, com lágrimas nos olhos ao pensar nos preciosos minutos de horário nobre que Kalki conseguira e ele não. Suspirou. Então, pronunciou sua arenga: — Eles limpam o dinheiro através dos ashrams. Alegam que são contribuições de devotos no exterior. Uma vez que qualquer religião legítima é isenta de impostos nos Estados Unidos, eles ficam com o total do dinheiro. Enquanto isso, ampliam seu enorme patrimônio. Durante os últimos doze meses, vêm adquirindo imóveis valorizados nas grandes cidades, companhias de investimento, armazéns gerais e terras no oeste de Dakota do Norte. Teddy, esse negócio é como os tentáculos de um polvo. E você tem que me ajudar. Tem que ajudar sua pátria. Tem que ajudar os pobres jovens que foram induzidos ao vício.
Embora os turistas na mesa em frente à nossa não pudes¬sem escutar exatamente o que estava sendo dito, podiam perceber o tom patriótico da voz de White, tão compassado e arrebatador quanto os acordes iniciais do Battle hymn of the Republic. Notei que estavam prestes a aplaudir.
Fechei o bloco de anotações.
— Senador, não sei o que o Sun tenciona fazer. Isso é lá entre o senhor e Morgan Davies. Tudo o que faço é coletar o material e escrevê-lo.
— Você pode ajudar muito, Teddy — disse ele, voltando ao sotaque sulino do caipira carola. — É uma garota bonita. Muito bonita.
O cheiro de cantada voltou a pairar no ambiente. Os senadores dos Estados Unidos gozam da reputação de serem não apenas sexualmente insaciáveis, como também impotentes. Anos antes, Arlene tivera um caso com um senador do Arizona e me contara tudo a respeito.
— Senador, o senhor está amarrotando meu vestido.
A perna de White se afastou da minha.
— O que esteve fazendo estes últimos dias com Giles Lowell? — quis saber ele. — Quando e como chegou a Washington?
— Senador, creio que a mim cabe saber e ao senhor descobrir isso.
— Neste caso, no devido tempo, você será intimada a comparecer perante a Comissão Parlamentar sobre Abuso e Controle de Narcóticos e obrigada a prestar depoimento sob juramento.
— Apelo para a Primeira Emenda à Constituição. Preciso proteger minhas fontes de informação — disse eu, recitando resumidamente o credo dos jornalistas.
— O parecer da Corte Suprema a esse respeito ainda não está definido — replicou White, dando a resposta de costume.
— Você poderá ser indiciada por desrespeito ao Congresso.
Então, lançou-me um sorriso beato. Vieram-lhe aos olhos duas lágrimas por mim e por toda a raça humana.
— Contudo, Teddy, não desejo que fiquemos em situação de adversários, porque tenho por você a maior admiração, tanto como aviadora como na qualidade de cidadã americana.
— Obrigada — disse eu, lançando vinagre no seu azeite.
— Nada tenho de interessante para relatar a respeito do Dr. Lowell. Vim com ele para Washington num avião particular. Fiquei e ainda estou hospedada no Jefferson Arms. Apartamento 437. E isto não é um convite para o senhor me visitar. Nos últimos dias, estive acamada com gripe e o Dr. Lowell me tratou como médico. Aceito a análise geral que o senhor fez das Empresas Kalki. Creio que estão envolvidos no tráfico de drogas. Agora, compreendo o motivo pelo qual iniciaram uma religião, a fim de limparem o dinheiro. Tudo me parece absolutamente esclarecido, exceto um detalhe: qual o motivo do fim do mundo?
— Atrai audiência. O país inteiro está comentando aqueles cartazes. Todos os comediantes da televisão fazem piadas sobre o assunto: o Fim. É como Evel Knievel: no dia tal, você vai virar uma bala de canhão. Com esse tipo de publicidade, é possível arregimentar um público enorme. Além disso, existe a Loteria Lótus! Todo mundo está viciado nela. Quase ganhei cinco mil dólares na semana passada. Errei apenas por um número.
— Mas, senador, o que acontecerá quando o mundo não terminar na data marcada?
— Bem, o sujeito conseguirá — ou terá conseguido — um bom retorno.
White só via o aspecto promocional em favor de Kalki.
Em compensação, estava metido no mesmo negócio: autopromoção.
— Ora, creio que Kalki leva a coisa a sério. Acho que realmente acredita que o fim do mundo esteja chegando. Estamos chegando ao final de nossas reservas de energia e de alimento. Existe excesso de gente e excesso de poluição...
Eu deveria ficar prevenida pela referência anterior de White aos "boateiros". O vulcão entrou em erupção:
— Já sei, já sei. Ecologia. Superpopulação. Poluição de petróleo. Todos os habitantes de Michigan envenenados pelos produtos químicos que as vacas ingeriram na ração antes de produzirem o leite. Não há mais peixes no Mediterrâneo. Por toda parte do mundo, excesso de mercúrio e cádmio nos peixes utilizados para alimentar a população. Uma mulher que fazia regime morreu porque só comia peixe. Os inseticidas envenenaram as fontes de água dos países desenvolvidos por causa dos avanços tecnológicos da agricultura. O nível intelectual dos países subdesenvolvidos diminui em conseqüência do aumento de monóxido de carbono, que produz alterações permanentes na atmosfera e provoca o início de uma nova era glacial, enquanto a camada de ozônio da estratosfera está sendo consumida pelos novos aviões supersônicos, como o Concorde. Teddy, tudo isso não passa de um monte de merda produzida pelos comunistas e fico realmente espantado ao ver que uma boa cidadã americana, natural da Califórnia, como você, caia nessa conversa fiada. Não vê que isso é um truque dos comunistas para nos derrotar? Eles querem que fiquemos preocupados. Querem que paremos de expandir a maior potência industrial que o mundo já conheceu, a fim de poupar da extinção os sapos, mariposas e outras inúteis espécies de aves e peixes. Entretanto, Teddy, nós estaremos à beira da extinção se recuarmos agora e perdermos a batalha pelo controle dos mercados consumidores do mundo. A escolha é muito simples: entre os sapos, mariposas e muitas espécies inúteis de aves e peixes, e uma sociedade que lhe oferece tudo em termos de aparelhos eletrodomésticos, bem como o maior número de horas gratuitas na TV que qualquer outra nação do mundo, além de uma soberba organização militar sem igual neste planeta, sem mencionarmos um padrão de vida que causa inveja a qualquer comunista e desespero a qualquer habitante do Terceiro Mundo. Teddy, você não pode vender os Estados Unidos por um prato de mingau!
O domínio de idioma do Senador White era presidencial.
Além disso, tinha uma visão coerente do mundo como um todo. E uma perfeita receptividade da inteligência, como diria H. V. Weiss. Infelizmente, ele não me entendera.
— Estou quase persuadida por sua eloqüência — declarei. — E isto é um elogio, porque sou uma das que dão ouvidos aos boateiros. Entretanto, quando afirmei que o fim do mundo está iminente, não estava apenas falando daquilo que todos já sabem. Ora, até mesmo o Congresso dos Estados Unidos deve desconfiar de que tudo está se deteriorando. Não; eu me referia a algo muito mais simples. Ao fim do mundo, graças a Kalki.
White começou a cuspir sobre mim o mais ridículo sotaque sulino:
— Minha prenda, se acha que o Sr. Kalki vai acabar com a raça humana, está muito enganada. Porque — então a voz deixou de ser a do caipira carola, passando a soar como um discurso do Presidente White — não existem meios de terminar com a vida humana neste planeta, a não ser desencadear o poder nuclear dos Estados Unidos contra as hordas do comunismo internacional — uma opção que eu jamais deixaria de levar em consideração, por mais relutante que me sentisse ao adotá-la, caso me coubesse tomar a decisão na qualidade de comandante-chefe da nação.
Os turistas na outra mesa aplaudiram discretamente. White baixou a voz:
— Kalki não pode acabar com o mundo. É tecnicamente impossível. Mesmo que dispusesse de uma dúzia de bombas de nêutrons, do modelo B, não conseguiria. Tenho certeza. Verifiquei junto ao Pentágono. Todavia, o problema é apenas acadêmico, pois ele não dispõe de uma só bomba. Não me pergunte como sei disso, mas estou bem informado.
Resolvi dissecar a expressão "modelo B". Eu me opusera publicamente à fabricação da primeira bomba de nêutrons. Embora a bomba N mate satisfatoriamente, se bem que dolorosamente, as forças inimigas (e não as pessoas!), deixando os prédios intactos, a radiação causada por ela pode perdurar mil anos na atmosfera.
— Modelo B? Quer dizer que existe um segundo modelo?
— Eu não disse "modelo B", Teddy — mentiu White, com a maior calma. — Creio que você se enganou, ou me expressei mal. Todavia, isso não vem ao caso. O que interessa é que a segurança do Mundo Livre depende agora daquela pequena bomba de nêutrons, que destrói o inimigo mas preserva as propriedades materiais. E todos aqueles que se opõem a essa bomba são comunistas ou seus adeptos do Washington Post e do New York limes.
Percebi que a mente do Senador White tinha uma tendência a funcionar em círculos bem conhecidos, embora irrelevantes.
— O Concorde não só é um esplêndido avião, como está provado que não polui o meio ambiente, enquanto as latas de aerossol são perfeitamente seguras, segundo observadores desinteressados na indústria... Você disse apartamento 437 do Jefferson Arms? — concluiu, passando para um murmúrio carinhoso.
— Vou partir para Nova York — respondi, com um radiante sorriso. — Nosso encontro fica adiado — acrescentei, também num murmúrio.
Achei melhor cozinhá-lo em água morna. Não estava ansiosa por receber uma intimação. Ou um pênis. Com um floreio, paguei a conta. Giles me prevenira de que os senadores nunca pagam coisa alguma. White me agradeceu.
Quando saímos, o senador manobrou de maneira a esbarrar de leve na mesa em frente. Os fãs ficaram emocionados.
— Estamos com o senhor, senador! — disse um.
— O senhor tem que ser presidente! — declarou outro.
— Pau neles, Teddy! — exclamou um terceiro.
O senador ficou muito sério — creio que pelo fato de eu ter sido reconhecida pelo grupo. Resolvi esfregar a ferida:
— Também tenho meus fãs.
— Não foi para você — retrucou White, num tom que H. V. Weiss chamaria de "brusco". — Aquele sujeito pensou que eu fosse Teddy Kennedy.
E o Senador Johnson White declarou em tom bem audível:
— Uma nação de idiotas fodidos!
Em frente ao hotel, White segurou minha mão durante longo tempo, enquanto se despedia.
— Mantenha-se em contato comigo, Teddy — concluiu. Percebi que o porteiro, diversos transeuntes e eu íamos ouvir uma ária final no melhor estilo do caipira carola. — E pense bem no que eu lhe disse, Teddy, porque, com a sua ajuda, pretendo tornar este país tão bom, limpo e piedoso quanto nós dois somos e quanto esta grande nação pode ser e será quando a tivermos devolvido a você, a mim e ao resto do povo que constitui esta grande nação na história do país.
Obviamente, suas palavras não faziam o menor sentido. Todavia, em março passado, aquele era o modo pelo qual o único candidato republicano importante à presidência do país se expressava. E a grande maioria dos outros políticos, também. Com o aumento da entropia, ocorre uma hemorragia de energia. A linguagem é afetada. As palavras se transformam em meras fórmulas cabalísticas. Quando isso ocorre, o fim está próximo. O frio também.
Quando cheguei a Nova York, verifiquei que havia uma grande demanda da minha presença na televisão. Minhas palavras em defesa de Indira Gandhi haviam sido perdoadas, se não esquecidas. Todos queriam entrevistar a mulher que entrevistara Kalki. Os cartazes haviam causado grande impressão. Tive quatro minutos no Hoje e seis no Bom Dia, América. Também almocei com Morgan Davies no Salão de Carvalho do Plaza Hotel, um recinto agradável, forrado com lambris de madeira entalhada, como ainda não surgira nenhum em Los Angeles.
Morgan engordara, o que não lhe ficava bem.
— A reação tem sido espetacular. Kalki é o Fim! — exclamou ele, rindo do que já se tornara uma velha piada.
Relatei-lhe as últimas novidades. Ele gostou.
— Precisamos fotografar a Sra. Kelly — disse Morgan, fazendo anotações. — E também me agrada essa história de Kalki ser um ex-bailarino. Suponho que a academia de balé que ele freqüentava tenha algumas fotos... Ele é bicha?
— Não, Morgan.
Várias vezes durante o almoço o maitre se aproximou para cochichar ao ouvido de Morgan que havia um telefonema para ele. Então, Morgan pegava a extensão ligada à mesa e discutia se o presidente iria ou não descartar o vice-presidente antes da próxima convenção do partido. Era o único assunto que interessava aos traficantes de influência no ano passado. Kalki não passava de um espetáculo secundário.
— Johnson White será escolhido como candidato do Partido Republicano — afirmou Morgan Davies, desligando o telefone após conversar com alguém que lhe dissera que o presidente, afinal, resolvera substituir o vice-presidente. — Mas só se as tais audiências públicas forem mesmo realizadas e obtiverem sucesso.
— Obterão?
— Isso depende de você, Teddy. De Kalki. Do FBI, da CIA, do Departamento de Combate aos Narcóticos, do Serviço de Imposto de Renda. Todo mundo está fazendo o trabalho de White por ele. Todavia, mesmo que ele seja escolhido como candidato republicano, não vejo como possa derrotar o presidente nas eleições, a menos que...
Bondosamente, Morgan fez para mim uma análise do grande jogo político dos Estados Unidos. Embora eu fosse uma partidária entusiasta daquela grande maioria do eleitorado que não é apática, mas nunca vota nas eleições porque sabe que isso nada adianta, ouvi educadamente tudo o que ele disse. Morgan realmente se importava. Era compreensível: faltava-lhe imaginação.
Quando ele terminou a lição, indaguei a respeito da ligação com as drogas.
— White me contou que você concordou em esperar até depois das audiências — comentei.
— É mesmo?
Morgan soltou uma risadinha com a boca fechada.
— O Senador White não vai gostar disso — ponderei.
— O Senador White que se foda! — os olhos de Morgan pareciam os de uma cobra fitando um mangusto. — Não imagina o quanto admiro seu trabalho, Teddy.
E começou a me bajular. Disse-me que já estava decidido a transformar tudo aquilo num livro; ele já fizera um acordo com a Doubleday. Só estavam aguardando que eu assinasse o contrato. O fato de eu ser pilota particular de Kalki, relatando as coisas "por dentro", fora um "sensacional argumento de venda", segundo Morgan. Agradeci. Ele sugeriu que eu procurasse o Dr. Lowell, que se achava em Nova York.
— Ele deve estar no ashram principal, que fica na Fifty- Third Street, perto da Fifth Avenue. A propósito, estamos inclinados a acreditar que o Dr. Lowell seja o verdadeiro chefão.
— É o que acha o Senador White.
— Johnny nem sempre se engana, sabe? — disse Morgan, que gostava de se referir a gente famosa pelos apelidos.
Riu; depois, espirrou (só um neologismo poderia descrever aquele som, mas não sou criadora de neologismos). Acrescentou:
— Mesmo assim, jamais confie em Johnny. Além disso, ele recebe dinheiro dos traficantes de drogas.
— Todo mundo é corrupto — repliquei, não me sentindo realmente surpresa, mas apenas deprimida.
— Bem, é apenas um boato, mas estamos investigando. A hipótese é de que a campanha de White esteja sendo financiada pela quadrilha Chao Chow de Hong Kong. Querem eliminar as Empresas Kalki. Portanto, pagam Johnny para persegui-las. Johnny terá as manchetes que deseja. Kalki e Lowell irão para a cadeia. Johnny será eleito presidente. A Chao Chow recuperará o controle do tráfico mundial de drogas. Eis aí o panorama. Se for verdadeiro. De qualquer modo, coloquei um investigador no caso. Para nós, está no papo. Na realidade, nossa única preocupação é que Kalki seja assassinado antes da concentração no Madison Square Garden.
— Posso escrever o necrológio?
Oh, estávamos mesmo jogando pra valer!
Morgan se engasgou, divertido.
— Não. O necrológio será escrito por Bruce, mas colocaremos uma fotografia sua, com o blusão de couro preto e botas de piloto, parecendo triste e desgrenhada. Aviadora desolada...
O almoço terminou com aquele assunto edificante. Notei que Morgan começava a apresentar um leve tom azulado nos lábios e ocorreu-me que o Sun talvez precisasse de um novo editor dentro de muito pouco tempo.
Atravessei a pé o centro da cidade, dirigindo-me ao ashram. Fui reconhecida, devido aos recentes programas de TV a que comparecera. Muitas pessoas queriam que eu falasse a respeito de Kalki. Se não chegara a incendiar a imaginação dos sofisticados nova-yorkinos, ele conseguira ao menos tornar-se conhecido por eles. Levei uma hora para percorrer uma dúzia de quarteirões.
O ashram consistia em três prédios estreitos ligados num só. O hall de entrada era pintado de bege. Em frente à porta principal havia um retrato em tamanho natural de Kalki: parecia lindo de morrer. Não; eu não queria que o matassem.
Cartazes anunciavam a concentração: "kalki! no madison square garden, dia 15 de março. O Fim do Mundo".
Uma mesa comprida estava coberta de panfletos para distribuição gratuita: "Quem é Kalki?", "Depois do Fim", "Antes do Fim". No centro do recinto, um enorme recipiente cheio de flores de lótus de papel. Acima do recipiente, a lista dos números sorteados na semana anterior. Até aquela data, a Loteria Lótus havia distribuído mais de um milhão de dólares de prêmio. Em resultado, as moças e rapazes de Kalki já não precisavam preocupar-se com divulgar sua mensagem; eram praticamente atacados nas ruas. Todos queriam pegar um lótus sorteado.
Recepcionistas de ambos os sexos exibiam sorrisos fixos e olhos inexpressivos. Orientavam o tráfego de pessoas. Gente interessada entrava e saía, apanhava folhetos, pedia informações sobre as aulas, comprava entradas para a concentração no Madison Square Garden, pegava flores de lótus no recipiente. O sistema de som tocava bem alto Sergeant Pepper.
Apresentei-me a um jovem corpulento e barbudo, com um dente quebrado. Ele me reconheceu. Abriu um largo sorriso.
— Teddy Ottinger! Pranam! Pranam! Quanta honra! Que prazer! Acabo de vê-la no Programa da Manhã — parecia arrebatado por um êxtase religioso. — Vou levá-la imediatamente para cima. O Dr. Lowell chegou há pouco. Agora, você está aqui! Dois Mestres Perfeitos! Que alegria! Mal posso esperar pelo Fim!
Sim, foi exatamente isso que ele disse. Senti-me tentada a entrevistá-lo ali mesmo. Quando falava no Fim, imaginava-se morto? Ou imaginava o céu se abrindo e uma escada descendo? Ou pensava apenas que no dia 3 de abril (a data que ainda não fora revelada) haveria uma mudança para melhor na raça humana? Lamento não haver analisado superficial ou profundamente um típico adepto de Kalki no ano passado.
Fui conduzida através de vários escritórios equipados com os mais modernos aparelhos de comunicação. Máquinas perfuravam fitas em código. Computadores somavam e subtraíam. Homens e mulheres de aspecto eficiente controlavam silenciosamente os aparelhos, de uma maneira que me deixou impressionada. Meu guia deixou-me diante de uma porta com uma placa de metal que anunciava: "MESTRE PERFEITO".
Bati e entrei. Giles estava deitado num sofá, falando ao telefone. Quando me viu, disse no aparelho:
— Teddy Ottinger, Mestre Perfeito, acaba de entrar na sala.
Houve uma pausa. Então, ele se voltou para mim:
— Lakshmi lhe envia uma saudação especial.
Quando terminou de falar com Katmandu, ergueu-se de um salto, trêmulo de energia e excitação. Exibiu-me uma prova do mais recente cartaz para a concentração de Kalki no Madison Square Garden.
— Que tal? Gosta?
— Muito.
Kalki e o Fim ocupavam lugar proeminente. Depois, vinha uma lista de quatro conjuntos de rock. Não curto rock, mas Giles assegurou:
— São todos sensacionais! Do outro mundo! No total, já ganharam oito discos de ouro! Venderemos discos deles no Garden, juntamente com a nova gravação de Kalki a respeito do fim do mundo, com acompanhamento de flauta e sitar.
Tive o privilégio de assistir a mais uma metamorfose de Giles. Agora, ele era o próprio Mr. Show Business. Andava de um lado para outro, falando de receitas de bilheteria, vendagem de discos, promoções de TV. Quase (mas não muito) desejei que o Dr. Ashok estivesse de volta. Nesse ínterim, auxiliares não paravam de entrar e sair da sala, mostrando a Giles pedaços de papel e dizendo:
— Para sua aprovação, Mestre Perfeito.
Afinal, Giles ordenou a uma secretária na outra sala que suspendesse todas as ligações, exceto as de Katmandu.
— Então, como foi seu encontro com o Senador White?
— Ele vai intimar Kalki a depor. Pretende prender vocês dois como traficantes de drogas.
— Pobre Johnny! Dá tudo por uma manchete. Quando tenciona realizar as audiências?
— Na próxima semana, logo após a concentração no Garden.
Giles franziu a testa. Deixara de ser o Mr. Show Business.
— Precisamos dar um jeito de adiá-las.
— Até depois do dia 3 de abril?
Giles assentiu.
— Bem, precisamos começar a dar tratos à bola. Meu Deus, você está linda, Teddy!
Perseguiu-me pela sala. Felizmente, era a adrenalina e não seu coração que motivava a perseguição. Ele logo desistiu, deixando-se cair no sofá.
Sentei-me pudicamente numa cadeira de espaldar reto. Depois de passar um dia num instituto de beleza de Elizabeth Arden, eu voltara a ser como antes. A secura da pele e dos cabelos desaparecera. Sentia-me bem. Agora eu era Teddy Ottinger, Linda Repórter.
— O Senador White está convencido de que este movimento religioso é uma fachada para encobrir o tráfico de drogas.
Giles teria soltado uma gargalhada, se não tivesse perdido o fôlego ao me perseguir.
— Inverta a frase e chegará mais perto da verdade.
— As drogas são uma fachada para Kalki?
Todavia, Giles silenciou, como costumava fazer sempre que o Assunto Número 1 era mencionado. Relutantemente, passei ao Assunto Número 2.
— Estou procurando extrair algum sentido de tudo isso, Giles — declarei em tom profundamente sincero, um truque que aprendi vendo Arlene fazer comerciais para a TV. — Se o mundo vai terminar no dia 3 de abril, por que estão preocupados em vender entradas, discos, em ganhar dinheiro?
Os dedos de Giles alisaram os poucos tufos de cabelos grisalhos que ainda lhe restavam.
— Nós temos — e isso também inclui você — uma missão divina a cumprir. Fomos trazidos à terra neste período a fim de purificar as pessoas, ajudá-las a conseguir paz e serenidade interior, para que, no início do novo ciclo, possam renascer como brâmanes e restaurar a Idade de Ouro.
Aquele contra-senso fluía de seus lábios como mel orgânico.
— Estou ouvindo o que você diz, Giles — declarei, afetando uma sinceridade ainda mais profunda e parecendo um surfista de Malibu ao discutir os meios de organizar seu espaço interior. — Mesmo assim, não faz sentido.
— Teddy, nada jamais fará sentido se você não aceitar o fato de que nossas almas nascem e renascem no decorrer de toda a eternidade. É por isso que estamos preocupados em vender entradas, discos...
— Também há muito dinheiro nesse trambique — comentei, substituindo a sinceridade por dureza.
Giles achou graça.
— Muito dinheiro? Você deveria ver nossa contabilidade! Estamos irremediavelmente endividados. Além disso, temos outro problema, graças a Johnny White.
Giles abriu uma porta situada atrás de sua mesa de trabalho. Na sala contígua, uma dúzia de homens de aparência fatigada estavam sentados a uma comprida mesa, examinando livros de registro e manipulando máquinas de calcular eletrônicas. Olharam para nós com evidente desagrado.
— Auditores — disse Giles. — Do Serviço de Imposto de Renda. Como vão as coisas, Sr. Prager?
O Sr. Prager era um homenzinho escuro, que parecia um grilo. Estava sentado à cabeceira da mesa.
— Estamos fazendo progressos, Dr. Lowell. Não se preocupe.
Seu tom nada tinha de amistoso.
— Apenas espero que não estejam muito confusos, Sr. Prager.
— Muito pelo contrário, Dr. Lowell.
Giles fechou a porta.
— Prager é o principal investigador do governo. Pobre diabo! Encontrou um adversário à altura. Você não se incomoda se lhe dermos segurança, não é?
Levei um momento para me adaptar àquela súbita mudança de assunto, típica do Dr. Ashok.
— Um guarda-costas?
Giles assentiu.
— Verificará que eles não a incomodarão, mas estarão trabalhando vinte e quatro horas por dia. Foi por isso que reservamos um apartamento para você no Americana Hotel. Está preparado para segurança total.
— Por quê?
— McCloud está na cidade. Minha cara Teddy, é melhor prevenir que...
— Você jamais apresentou um motivo convincente para McCloud estar no meu encalço — interrompi, preferindo não acrescentar que Giles Lowell jamais apresentara um motivo convincente para qualquer coisa. Mentia com a mesma facilidade com que os pássaros cantam.
— Ele está no encalço de todos nós — disse ele, tornando-se vago mais uma vez, pois o Assunto Número 1 fora mencionado.
— Ele sabe que você é o Dr. Ashok?
— Como poderia saber? — replicou Giles, assumindo a personalidade de Ashok. — Sou um mestre do disfarce. Lembra-se, Madame Ottinger? O agente do Departamento de Combate aos Narcóticos não faz a menor idéia de que seu prestimoso colega do Nepal, Dr. Ashok, agente da CIA, seja também o Dr. Lowell, seu principal alvo em Nova Orleans.
— Nesse caso, McCloud é muito mais imbecil do que aparenta — ponderei.
— Isso acontece freqüentemente. De qualquer forma, tenha cuidado com ele. Agora, passemos às boas notícias: Geraldine chega amanhã.
Fiquei feliz. Sentira falta dela. Sonhara com ela várias vezes. E não sonhara uma só vez com Kalki. O que significaria isso? Nada, ou alguma coisa? Nos sonhos começam... todas as coisas.
Giles deu-me um escritório no ashram. Na porta, uma placa de metal anunciava: "MESTRE PERFEITO". Fui apresentada a vários mandali. Sentia-me uma impostora. Todos eles ficavam emocionados por me conhecerem pessoalmente.
— É uma verdadeira bênção poder falar com um Mestre Perfeito — disse uma garota, com os olhos brilhando.
Fugi do ashram; fui visitar Bruce Sapersteen, nos escritórios do Sun. Ao menos ali ninguém julgava ser uma bênção conhecer-me. Creio que achavam ser mais como uma praga.
— Sabe de uma coisa, Teddy? É mesmo um saco trabalhar como uma mula para escrever suas reportagens e, no final, você receber todo o crédito — resmungou raivosamente Bruce.
Em seguida, entregou-me a correspondência de meus fãs. A maior parte fora enviada por protestantes fundamentalistas, tipo Ku Klux Klan, que rezavam por mim enquanto costuravam seus capuzes, acendiam suas cruzes e planejavam seus pogroms.
Uma das cartas, porém, causou-me enorme satisfação:
"Não posso deixar de dizer: 'parabéns, Teddy!' Suas frases acertam invariavelmente como um martelo na cabeça do prego: bem na mosca! Você escreve como um sonho.
Um abraço Herman Victor Weiss".
A maioria dos californianos do sul não gostava de Nova York. Desta vez, pelo menos, eu acompanhava a maioria. Primeiro, o clima é sempre deprimente, exceto no outono. Infelizmente, eu jamais visitara a cidade naquela época do ano e, portanto, era obrigada a aceitar como artigo de fé as glórias do outono em Nova York, tão decantadas em prosa e verso, bem como a emoção das estréias na Broadway. Noites de estréia. Uma expressão misteriosa. Referência à sedução de uma virgem?
O tempo em março era frio. Cinzento. Ventava. Todo e qualquer tom de azul abandonara o céu. As nuvens e a névoa de poluição envolviam a ilha de Manhattan como uma capa de celulóide. Pedaços de jornal flutuavam ao vento. Tudo o que podia ser torcido ou quebrado fora torcido ou quebrado — pelo menos ao nível de meus olhos. O lixo não era recolhido havia semanas. Os lixeiros estavam em greve por mais dinheiro e por um pouco de dignidade humana. No lugar deles, eu teria emigrado para outro país.
A despeito do clima, da sujeira e do desconforto, eu me sentia com esplêndida disposição. Estava com Geraldine e, com ela, o ânimo e excitação das elevadas montanhas parecia ter voltado. Ela também estava hospedada no Americana Hotel e, como eu, tinha uma discreta guarda de segurança. No cômputo geral, eu me sentia até um pouco satisfeita por estar sendo seguida durante todo o tempo por um enorme negro que trajava um suéter de gola rulê e carregava consigo um walkie-talkie. Pairava nas ruas uma sensação de perigo. Isto é, para quem andava a pé. E eu sempre andava a pé. Ao contrário da maioria dos californianos do sul, prefiro caminhar a usar automóvel.
Geraldine e eu nos encontramos no saguão do Americana. Ela estava vestida como uma jovem matrona de Connecticut, do tipo que a gente só vê — ou eu, pelo menos, só via — em revistas como Town & Country. Embora a costa leste e seus costumes sociais fossem um mistério para mim, eu gostava de ler as colunas de mexericos e de ver as fotografias de casamentos, concursos hípicos e da vida elegante entre os móveis de estilo e os belos cães de caça. Eu tinha plena consciência das Geraldines de Connecticut...
Abraçamo-nos e trocamos beijos no rosto.
— Que alegria rever você, Teddy! — disse ela, calorosamente.
Gostei do casaco verde-escuro de tweed que ela usava. Gostei do fato de Geraldine cheirar levemente a sândalo — o cheiro de Kalki. Tentei adivinhar se ele também a seduzira. Se o tivesse feito, eu me importaria? Sim, importava-me. Todavia, meus motivos eram, no mínimo, confusos; passou-se algum tempo antes que eu pudesse perceber tudo corretamente. Enquanto isso, estávamos juntas outra vez. Eu me sentia no sexto, se não no sétimo céu, ao tomarmos o café da manhã juntas, no Americana. Nossos guardas sentaram-se a mesas diferentes, perto da porta.
— Não agüentaria ficar no Nepal um só minuto mais — disse Geraldine, muito séria. — Então, Kalki permitiu que eu viesse. Foi muito gentil a esse respeito, mas eu me senti muito culpada por abandonar Kalki e Lakshmi. Você sabe, estávamos prisioneiros no ashram, até que Kalki telefonou para Nova Delhi e falou com o primeiro-ministro. Kalki é mesmo muito popular na índia. De qualquer modo, o governo da Índia pressionou os nepaleses e eu tive permissão para deixar o país.
— Quando virão Kalki e Lakshmi?
— Tão logo Giles encontre um lugar seguro para eles, aqui.
Tomei suco de laranja congelado, que tinha gosto de produtos químicos. Em março passado, americano algum espremeria voluntariamente uma laranja.
— Quem você acha que deseja matar Kalki? — indaguei, como se não tivesse minhas próprias teorias a respeito.
Geraldine suspirou.
— Grupos religiosos rivais. Alegam que todo o dinheiro está vindo para nós. Por outro lado, Giles afirma que estamos falidos. Não sei. Só sei que Kalki é muito popular em toda parte, especialmente na índia. É estranho — você não acha? — como os hindus aceitam um branco americano como a encarnação de Vishnu. Aceitam também a idéia do Fim. Bem, de qualquer forma, eles estão bem próximos do fim: pelo menos a metade da população está morrendo de subnutrição.
Geraldine e eu caminhamos pela Fifth Avenue. Ali, as coisas estavam menos quebradas. Em frente à Biblioteca Pública, resolvemos ir até o Madison Square Garden. Nosso hálito se condensava como fumaça no ar frio. Geraldine disse:
— Quero que você conheça o Professor Jossi, um físico nuclear. É um mandalin. Está preparando alguns efeitos especiais para a concentração do dia 15.
Atravessamos o Bryant Park, uma pequena área quadrada de jardim situada atrás da biblioteca. Altas árvores desfolhadas cercavam um gramado queimado pelo frio. Os bancos estavam ocupados por gente pobre. Indigentes. Alguns bebiam vinho no gargalo de garrafas embrulhadas em sacos de papel pardo. Quase todos eram de origem latina ou negros.
Sentamo-nos por alguns momentos num banco próximo a uma estátua de bronze esverdeado, manchada de branco pelo esterco dos pombos. Um sol pálido tentava, sem sucesso, varar a névoa pardacenta de poluição. No banco ao lado, um homem branco aplicava uma injeção, com uma seringa suja, no tornozelo inchado e arroxeado. Ninguém lhe prestava atenção.
Observamos, horrorizadas, o desfile dos monstros. Bêbados, drogados, loucos passavam cambaleando diante de nós, falando sozinhos. Julguei muito adequado o fato de haver no prédio em frente a nós um dos enormes cartazes que anunciavam: "KALKI, O FIM". Não consegui imaginar que alguma daquelas pessoas desejasse continuar viva.
Geraldine leu meus pensamentos — o que não era difícil.
— Isso não é vida — comentou.
— Não. Não é.
Nossos dois guardas pareciam alarmados. Sentadas num banco daquele parque formávamos um alvo perfeito para... a Tríade? Tentei descobrir.
— O Sun está planejando desmascarar Kalki como traficante de drogas.
-— Quando? — perguntou Geraldine, muito calma.
— Após a concentração no Garden.
— Kalki está preparado.
— Eu gostaria que você me contasse a verdade.
Geraldine exibiu um leve sorriso. Notei que as três sardas em seu nariz formavam um triângulo... Triângulo Dourado?
— Ouça — disse ela. — O que éramos, o que somos e o que seremos são três coisas diferentes. Eu era candidata a uma cadeira no MIT. SOU um Mestre Perfeito, sentada no Bryant Park, em Nova York, com outro Mestre Perfeito. Após o dia 3 de abril, serei outra coisa.
Uma dúzia de discípulos de Kalki entraram no parque, indo de banco em banco. Distribuíam panfletos, cartões com endereços dos diferentes ashrams, lótus de papel. Comportavam-se bastante bem, considerando-se os riscos daquele local.
A essa altura, eu já me conformara com o fato de que nada me seria dito a respeito do Assunto Número 1 até... quando? O Fim, ou depois dele? Embora eu já estivesse acostumada a falar no fim do mundo, nunca cheguei a levá-lo realmente a sério. Julgava que, no máximo, haveria alguma espécie de programa espetacular para televisão. Em seguida, uma série de explicações a respeito de um adiamento especial para a humanidade. Ou, talvez — o que seria ainda mais astucioso —, a revelação de que o Fim já ocorrera e que todos estavam milagrosamente purificados, vivendo o início de uma nova Idade de Ouro.
Quem saberia a diferença? Eu tinha freqüentemente a sensação de já ter morrido antes. Curiosamente, porém, nunca tive a sensação de ter nascido e, muito menos, renascido. De qualquer modo, imaginara uma série de soluções para o dilema do dia 3 de abril e presumia que Kalki fizera o mesmo. Não interessando o que pudesse ser ou não, o fato é que Kalki era um artista nato.
Geraldine falou-me a seu respeito e de Lakshmi:
— Dóris e eu fomos colegas de escola, em Washington. Primeiro, na National Cathedral School e depois na Universidade Americana. Sempre fomos muito íntimas. Passávamos férias juntas, uma vez com minha família e outra com a família dela. Mesmo quando fomos estudar em universidades diferentes, mantínhamos contato pelo telefone. Diariamente. Às vezes, até duas vezes por dia. Ela estava em Chicago e eu em Boston. Então, casou-se com Jim Kelly e foi morar em Saigon. Eu sentia mesmo muita falta de nossas longas conversas.
— Sobre o que conversavam?
Detesto telefones. Utilizo-os o mínimo possível.
— Tudo! O casamento dela. Minha carreira. A urticária dela. As minhas pesquisas. A lei de Heisenberg, que ela desejava quebrar. "Variações sobre um tema de Mendel", minha tese de doutorado. O telefone evitou que nos afastássemos uma da outra. Então ela se casou...
— Foi um... um bom casamento?
— Pelo telefone, chegamos à conclusão de que não existe um bom casamento. Isso ocorreu pouco antes de Dóris deixar Chicago para juntar-se a Jimmy em Saigon. Lembro-me de que conversamos durante três horas. Era a minha vez de pagar a conta do telefone...
— Ela foi feliz com ele?
— Bem, ela era uma esposa e ele um marido. Isso é sempre um problema, não é?
— Por que você não se casou?
— Eu queria filhos. Não posso tê-los. Sou... tenho um defeito congênito. Portanto, para que casar?
— Eis aí uma boa pergunta.
Todavia, a insatisfação de Geraldine era evidente.
— Você teve sorte — declarou, com inesperada inveja. — Chegou à maternidade antes de passar para além dela.
— Não sou uma boa mãe.
Era verdade. Senti-me culpada. Resolvi ir à F. A. O. Schwartz, comprar brinquedos.
— Mesmo assim, eu me sentia bastante satisfeita em Boston. Então, Dóris... Lakshmi apareceu, de repente. Disse-me quem ela era. Quem Jimmy era. Quem eu era.
— Você acreditou?
Geraldine sacudiu a cabeça.
— Claro que não. Pelo menos, não de imediato. Mas Lakshmi insistiu para que eu visitasse Katmandu. Estava grávida; queria que eu lhe fizesse companhia. Depois, quando a criança nasceu, Lakshmi teve tifo. O bebê também. Giles e eu salvamos Lakshmi. O bebê morreu. A essa altura, estava fora de qualquer cogitação eu me afastar dela. Nunca mais. Portanto, fui colocada na folha de pagamento e recebi um laboratório. O MIT me enviou um ultimato: volte ou desista de tudo. Permaneci em Katmandu.
Um vento frio sacudiu os galhos acima de nós. Geraldine estremeceu.
— Temos um destino maravilhoso, Teddy. Não lhe posso dizer mais que isso, porque... — interrompeu-se, dizendo repentinamente: — Há ratos naquele arbusto!
Olhei para o arbusto na base da estátua. Dois ratos estavam sentados nas patas traseiras, com olhos brilhantes, confiantes, fixos. Continuaram olhando para nós até sairmos do parque, quase correndo. Nossos guardas ficaram muito satisfeitos.
Prostitutas negras (ostensivamente do sexo feminino), usando perucas prateadas e saias muito curtas, abrigavam-se nas soleiras das portas ao longo da Forty-Second Street. "Lojas para adultos" alternavam-se com academias de massagens e, pior ainda, restaurantes gregos onde o cheiro de gordura frita merecia um lugar especial no inferno de Dante. Pequenos cinemas anunciavam filmes pornô e de assassinatos, dois temas dificilmente estranhos às pessoas daquela rua.
— Essa gente é tão... deplorável.
A reação de Geraldine era muito semelhante à minha, mas ela escolhera um termo que eu não empregaria. Acrescentou:
— Ficarão felizes quando a era de Kali terminar.
— Como sabe? — indaguei perversamente. — Talvez estejam se divertindo.
— Duvido.
Na esquina da Eight Avenue havia outro enorme cartaz de Kalki, anunciando a concentração no Madison Square Garden: Letras com quase dois metros de altura proclamavam: "KALKI". Abaixo de um desenho de Kalki cavalgando um corcel branco, estavam os nomes dos artistas que se apresentariam com ele no espetáculo do dia 15 de março. Aquela mescla de religião e show husiness era astuciosa, embora inquietante. Imaginei o Maharajji no Houston Astrodome. O papa no Yankee Stadium. Obviamente, o objetivo era o delírio das massas. Mas com que finalidade? O Fim?
Geraldine olhava fixamente para o cartaz.
— Está rezando?
Ela sacudiu a cabeça e riu.
— Não. Ou melhor, sim. De certo modo. Eu estava rezando para Kalki não cair daquele cavalo e quebrar o pescoço. Tem um medo horrível de cavalos.
Descemos rapidamente a Eight Avenue. O sol pálido desistira por completo e o céu tinha uma cor de lama. O frio já me causava arrepios.
Diante de um estabelecimento que anunciava danças go-go (masculinas), perguntei:
— O que nos acontecerá no dia 3 de abril? Vamos ser consumidas pelo fogo, também?
— Nós continuaremos — foi a resposta, muito rápida.
— Como somos agora?
— Alteradas, creio. Não sei. Não me recordo de haver presenciado antes o final de um ciclo. E você?
— Claro que não — repliquei, já me sentindo irritada com aquele jogo. — Não me lembro de coisa alguma, exceto de estar vivendo minha vida atual.
Afastei-me para um lado, a fim de deixar um viciado em drogas passar por nós, cambaleando, os olhos fechados. Estava dormindo — e andando.
— Não acredito que continuemos.
— Nós acreditamos.
Se Geraldine estava fingindo, certamente poderia ombrear-se com as maiores artistas que eu já vira. Eu chegara à conclusão de que ela estava apaixonada por Lakshmi. Em resultado disso, dispunha-se a interferir na crença normal e ajudá-los a representar aquela farsa de divindade, ou (seria possível?) também estava envolvida no tráfico de drogas. Dei-me conta do pouco que conhecia a respeito de meus colegas Mestres Perfeitos. Creio que se pudesse cair fora naquele momento, eu o teria feito. Não me agradava a idéia de sicários chineses no meu encalço. Nem de candidatos à presidência armados com intimações. Ou de agentes do Departamento de Combate aos Narcóticos brandindo ordens de prisão contra mim. Infelizmente, eu precisava do dinheiro. Precisava do Sun. Precisava de Kalki. Estava enredada. Mas não me sentia satisfeita.
O misterioso Madison Square Garden (nem praça, nem jardim) já me era familiar através da televisão. Ali realizavam-se convenções políticas. O sistema de segurança era rígido. Felizmente, nossos guardas conseguiram convencer seus colegas a nos deixarem entrar. Tão logo entramos, fomos informadas de que o Dr. Lowell acabara de sair.
Geraldine e eu ingressamos no auditório. Meia dúzia de holofotes iluminavam apenas a área central, onde um grupo de homens dava os retoques finais numa pirâmide de treze metros de altura. Segundo Geraldine, que ajudara a projetar o mecanismo, a um simples toque num botão a pirâmide se abriria. No topo da pirâmide estava o trono a ser ocupado por Kalki.
Junto à base da pirâmide, um homenzinho de cabelos e barba grisalhos supervisionava a montagem de um complicado maquinismo. Geraldine apresentou-me ao Professor Ludwig Jossi, que recebera um prêmio Nobel por haver isolado a menor (até aquela data) manifestação de energia, o quark. Lecionava na Universidade de Lausanne. Estudara vedanta durante alguns anos. Mais recentemente, aceitara Kalki como a última encarnação de Vishnu. Uma vez que o Professor Jossi fora o primeiro cientista a aderir ao movimento de Kalki, houve muita publicidade e espanto geral. Indubitavelmente, ele constituía um agradável contraste com todos os astros de rock que "estavam na de" Kalki. Sem exceção, aqueles artistas estavam absolutamente "ligados", como eles mesmos diziam, no — ou pelo — Fim.
O Professor Jossi falava inglês com uma pronúncia imperfeita.
— Creio que não haverá enguiços. As imagens deverão ser lindas.
— Quando, exatamente, o átomo será dividido? — indagou Geraldine, tensa. Naquela altura, qualquer referência a uma divisão do átomo deixava-me com os nervos à flor da pele.
— Ligarei o interruptor tão logo Kalki forneça a data exata para o fim da era de Kali. Então, poderemos observar a verdadeira desintegração do átomo, numa tela especialmente projetada, situada logo acima da cabeça de Kalki. As cores serão exóticas, espantosas, dramatizando aos olhos do mundo inteiro o poder criador e destruidor de Vishnu.
Senti-me mal. Se aquela gente era tão louca quanto eu começava a julgar, a máquina do Professor Jossi não desintegraria apenas um único átomo. Haveria uma reação em cadeia. Como pedras de dominó caindo. O mundo inteiro seria envolvido pelo fogo nuclear. Procurando aparentar a maior naturalidade possível, indaguei se havia algum perigo de uma reação em cadeia.
O Professor Jossi não gostou da pergunta.
— Claro que não. Estamos na época de testar, de avisar. As pessoas precisam de uma oportunidade para se purificarem. Mais tarde, evidentemente...
Geraldine o interrompeu, como se temerosa de que ele falasse demais.
— Mais tarde Kalki fará o que tem que fazer.
De repente, apontou para a pirâmide às nossas costas:
— Lá está ele!
O Professor Jossi e eu nos voltamos, esperando avistar Kalki. Entretanto, Geraldine se referia à parte superior de uma enorme estátua de Vishnu, feita de isopor. A cabeça coroada e o torso (com seus quatro braços) estavam suspensos por uma
polia, sendo cuidadosamente baixados para se ajustarem à parte inferior, que já se encontrava por detrás da pirâmide.
Em silêncio, observamos a junção das duas partes da estátua. À luz difusa, o efeito era fantasmagórico, horripilante. Num impulso repentino, deixei Geraldine ali e passei o resto do dia comprando brinquedos na F.A.O. Schwartz.
O telefone tocou às oito da manhã seguinte. Demorei a acordar, pois voltara a tomar Valium. Devido à constante guarda de segurança, à ameaça de Jason McCloud (se fosse real), aos sicários chineses (se realmente existissem), ao fim do mundo (se fosse mesmo acontecer), meus nervos estavam tensos — "como cordas de violino", como costumava dizer H. V. Weiss.
— Quem é? — perguntei. Àquela altura, eu já não dizia "alô".
— Geraldine. Kalki chegou. Estamos no navio. Chama-se Narayana. Estamos todos à sua espera.
Deu-me um endereço à margem do East River. Respondi que iria imediatamente.
Coloquei café solúvel num copo e adicionei água quente da torneira do banheiro. Engoli a porcaria resultante disso. Geralmente, sinto-me bem de manhã, mas tal não ocorreu naquele dia. Em primeiro lugar, sofria de uma ressaca de Valium. Além disso, estava ciente de que sonhara durante a noite inteira, mas não conseguia lembrar um só dos sonhos, o que é sempre um mau sinal. Resolvi ir a pé até o navio, para clarear as idéias com monóxido de carbono.
Fazia frio. O céu estava escuro. A primavera se atrasara. Caminhando pela Fifty-Seventh Street, observei os discípulos de Kalki em ação. Eram mesmo impressionantes. Começavam por aproximar-se de uma pessoa bem-vestida, do tipo que parece disposto a fazer um rodeio de um quilômetro para evitar gente que faz propaganda religiosa — de qualquer tipo de deus. Em seguida, mostravam-se encantadores. Em geral, os panfletos eram aceitos. Os lótus de papel eram sempre aceitos. Até mesmo os mais prósperos se sentiam atraídos pela Loteria Lótus. Na verdade, o país inteiro corria para comprar os jornais de sexta-feira, que anunciavam a relação dos prêmios.
Verifiquei que o Narayana era algo da espécie do Queen Mary — que agora se achava tristemente encalhado em Long Beach. Uma vez que nunca estive a bordo de um navio grande, presumi que os transatlânticos da era anterior ao jato fossem algo semelhante ao Narayana.
Como sempre, um rígido esquema de segurança. Guardas armados patrulhavam o cais. Guardas armados postados no convés. As vizinhanças pululavam de policiais de Nova York, bem como (presumivelmente) de agentes à paisana pertencentes a mil e um serviços governamentais de espionagem. Após uma demorada comunicação através de walkie-talkie com alguém a bordo, tive a permissão para embarcar. A escada de embarque balançava perigosamente ao vento.
No convés, outros guardas me inspecionaram. Em seguida, fui conduzida a uma enorme sala de estar, ou salão de bordo. Uma vez lá dentro, nada havia que me desse a impressão de estar a bordo de um navio. Havia lustres de cristal, lareiras de mármore, tapeçarias nas paredes, tapetes persas no assoalho. Parecia um pouco com San Simeon, o castelo megalomaníaco de William Randolph Hearst, agora transformado em museu.
Sentei-me na beira de uma poltrona forrada de tapeçaria, sentindo-me deveras impressionada com o Narayana (mais um dos epítetos de Vishnu: "aquele que caminha sobre as águas"). Afinal, juntaram-se a mim Geraldine, o Professor Jossi e uma dúzia de mandali que eu não conhecia.
Geraldine e eu nos abraçamos, como se não tivéssemos passado juntas o dia anterior.
— Kalki chegou! — sussurrou ela. — Está a bordo!
— Eu sei. Você já me disse — repliquei, sentindo-me repentinamente curiosa. — Como conseguiu passar pela alfândega?
Pude imaginar o suposto contrabandista de drogas sendo revistado pelos agentes do Departamento de Combate aos Narcóticos: cada orifício de seu corpo meticulosamente examinado, enquanto cada peça de sua bagagem era submetida a exames de raios X e farejada por cães policiais. Depois, imaginei o suposto deus percorrendo a Wall Street sob uma chuva de papéis picados jogados das janelas dos arranha-céus, de pé num carro conversível, acenando para a multidão, exatamente como faziam Lindbergh e Amélia nos velhos noticiários cinematográficos.
— Entrou na surdina. O pessoal da alfândega cooperou bastante. Ninguém queria encrencas — disse ela, acrescentando: — Este navio é o terceiro maior iate do mundo. Giles comprou-o na semana passada para as Empresas Kalki.
— E pagou? — indaguei, pois era o tipo de detalhe que Morgan Davies desejaria saber para o Sun.
Geraldine sorriu.
— Uma entrada é suficiente, levando-se em consideração...
Sim, ela realmente acreditava que só restavam vinte e um dias de existência para o mundo. Exatamente como o Natal, pensei com meus botões. Fiquei satisfeita por ter enviado vários brinquedos interessantes para as crianças, por via postal.
Soou um gongo. Em seguida, Giles entrou no salão. Curvou-se profundamente para todos nós, com as mãos postas na saudação hindu. Respondemos da mesma forma. Enquanto fazíamos o pranam, Kalki e Lakshmi entraram.
Quase não reconheci Kalki. Usava um terno de mohair de corte moderno. Por mim, preferia vê-lo numa túnica cor de açafrão. Em compensação, Lakshmi estava maravilhosa num vestido St.-Laurent que lhe devia ter custado uma fortuna na Saks, ou onde ela o tivesse comprado (estilo camponês russo em azul-faisão — uma cor que sempre adorei mas nunca pude usar, porque a minha cor mata o azul, o qual, por sua vez, me assassina vingativamente).
— Shanti! — disse Kalki, fazendo o gesto da bênção.
Deu-me um beijo fraternal e, por um instante, senti os joelhos fraquejarem com o perfume de sândalo e a cor loira de seus cabelos e pele. Lakshmi não me beijou ou abraçou, o que foi melhor: duas infusões de tanta coisa loira ter-me-iam deixado nas nuvens, apesar de estarmos ao nível do mar.
Então, Kalki e Lakshmi se acomodaram lado a lado num pequeno sofá para dois, enquanto o resto de nós formamos um semicírculo diante deles. Giles foi o único que permaneceu de pé.
— Já apresentei meu relatório ao mais alto dos supremos anunciou com sua voz de Dr. Ashok. — Inúmeros esforços vêm sendo desenvolvidos não só para nos desacreditar como intimidar. Tanto aqui como em Katmandu. Não obstante, perseveraremos. Assim como prevaleceremos. Infelizmente, um terço das entradas para a concentração no Madison Square Garden encontram-se agora em poder dos cambistas, que estão vendendo as melhores filas, de A a F, por até mil dólares o lugar!
Todos gostamos muito de ouvir a notícia, mas Giles estava furioso.
— Nós não estamos ganhando dinheiro. O lucro é dos cambistas. Talvez sejamos obrigados a impetrar uma ação judicial.
Refleti que aquilo não fazia muito sentido. Afinal, dentro de três semanas...
Finalmente, Giles terminou o relatório financeiro. Todos os olhares se dirigiram a Kalki, na expectativa. Ele se mostrou amável, suave:
— Alegro-me por rever vocês todos. Espero que não tenham sido muito apoquentados.
Estava tão calmo, relaxado, que parecia um ser humano comum. Fez uma pausa, olhando para os sapatos. Por um momento, pareceu afastar-se de nós. Então, Lakshmi murmurou algo e ele retornou. A atman (alma) estava novamente atcha (aqui).
— Nos próximos dias haverá pelo menos um atentado grave contra minha vida — disse Kalki, como se falasse a respeito de uma peça de máquina. — Não o levem a sério.
Sorriu repentinamente e cruzou os tornozelos, com as pontas dos pés apoiadas no chão, como um bailarino. Estava muito atraente. Senti um arrepio de febre das montanhas...
— Conheço o futuro como conheço o passado. Contudo, estes olhos são limitados — declarou, tocando as pálpebras com as pontas dos dedos, mas de modo tão impessoal como se estivesse tocando em duas velas de ignição. — Não lhes posso dizer o que ocorrerá nos próximos dias. Gostaria de poder. Só consigo prever as possíveis permutações. É como um jogo de dados. Esperemos apenas que os dados não sejam contrários a Jim Kelly, pois, enquanto estou neste corpo, posso ser morto — concluiu, passando as mãos no peito.
— Oh, não!
A exclamação não partiu de Lakshmi, mas de Geraldine. Uma luz me brilhou no cérebro. Geraldine não só estava apai¬xonada por sua melhor amiga, como também pelo marido dela. Senti ciúmes. De quem? Suponho que fiquei com ciúmes de todos os três. Não obstante, Lakshmi era obviamente inconquistável e Kalki estava fora de cogitações, apesar de nossa aventura junto à lagoa, no Nepal. Assim, restava Geraldine. Sim, era Geraldine. Já naquela época. Mesmo assim... Mas eu estava desesperada. Não recebera o menor encorajamento por parte dela. Pior ainda: se ela estivesse apaixonada por Kalki, eu não teria a menor possibilidade. Imaginei o futuro como uma espécie de harém turco: nós três, mulheres, andando de um lado para outro com guizos nos dedos dos pés, à espera de que nosso amo chegasse e fizesse sua escolha para aquela noite.
— Não se preocupem — disse Kalki, apaziguador. — Se eu for obrigado a abandonar o corpo de Kelly, escolherei um novo corpo e a era de Kali terminará na data marcada. Os que acreditam em mim, que se mantêm fiéis a despeito da tentação, continuarão a existir no próximo ciclo, como são agora ou renascidos.
Era a primeira vez que Kalki prometia explicitamente a alguns de nós a sobrevivência pessoal após o término da era de Kali.
Agora:
O que realmente pensava eu naquela fria manhã a bordo do Narayana? Para falar com franqueza (como me pediram que fizesse), devo responder que não sei. Tanta coisa aconteceu desde então. Atualmente, só disponho de percepção retroativa e não posso relatar honestamente qualquer premonição que tenha sentido então. Creio (talvez esteja enganada, mas quem pode provar o contrário?) que começava a aceitar, de um certo modo subliminar, a idéia de que a raça humana não existiria após o dia 3 de abril, com exceção de um punhado de nós, escolhidos por Kalki. Ao mesmo tempo, a parte consciente de meu cérebro ignorava absolutamente a parte inconsciente. Continuei fazendo planos para o futuro. Tivera um encontro com um dos editores da Doubleday pouco após a participação de Kalki no programa 60 Minutos. Tive sorte ao escolher o dia do encontro, pois Kalki causara grande sensação. A CBS conseguira um índice de audiência de 36,3, o maior já atingido naquela faixa de horário. Agora, o país inteiro tinha conhecimento de Kalki e do Fim. Recordo-me de que, a princípio, o editor tinha dúvidas a respeito do eventual sucesso do livro se o mundo não terminasse na data marcada. Finalmente, ambos concordamos que, qualquer que fossem os acontecimentos, a história continha uma grande dose de apelo. Ele quis saber quem escreveria o livro. Respondi que entre B. Sapersteen e H. V. Weiss, eu preferiria (acreditem se quiserem) Weiss. Em seguida, fiz planos para visitar as crianças. Deixei que Arlene reservasse acomodações para a semana da Páscoa no Princess Hotel de Acapulco, onde Howard Hughes iniciara o processo de resfriamento que terminara no ar, acima de Houston. Pessoalmente, eu preferiria morrer nos controles de um avião a jato. Sozinha, é claro. De um colapso cardíaco. Em resumo: continuei a planejar para o futuro. Contudo, meus sonhos eram intranqüilos.
Giles voltou à ribalta para fornecer mais detalhes:
— A auditoria do Serviço de Imposto de Renda já entrou no segundo mês e, alegro-me em poder dizer, está tão confusa quanto eu em relação às nossas finanças.
Risadas obrigatórias. Todos sabiam que Giles jamais ficava confuso a respeito de coisa alguma. Kalki parecia distante, com a atman pronta para decolar.
Então, o Professor Jossi tomou a palavra pela primeira vez:
— Tenha a bondade de explicar, Dr. Lowell, por que motivo as autoridades tributárias de seu país insistem tão teimosamente na investigação de um grupo religioso que, de acordo com suas leis, está isento do pagamento de qualquer tipo de imposto.
Na era de Kali, havia muito pouca coisa que um suíço — mesmo sendo físico nuclear — não conhecesse a respeito de impostos.
— Somos uma religião devidamente organizada e oficialmente registrada. Portanto, estamos isentos de impostos — disse Giles, com o ar de Dr. Ashok que costumava assumir quando falava sobre o hinduísmo. — Todavia, por algum motivo misterioso, o governo dos Estados Unidos se mostra morbidamente ansioso por provar que somos — à semelhança dos imbecis que seguem o Reverendo Sol Lua — financiados por um determinado governo estrangeiro cujo objetivo é derrubar esta grande república, a qual, merecidamente, é alvo da inveja do mundo inteiro. Que outra nação possui tantas centenas de milhares de agentes secretos, astuciosos e dedicados, postados em cada esquina não só do primeiro, segundo e terceiro mundos, como também em cada cidade, vila ou aldeia de nossos amados Estados Unidos? Que outra nação se transformou num império mundial, não tanto pela força — e venda — das armas, como também pela invenção da empresa multinacional, a qual, oficialmente, não deve obediência ou lealdade a qualquer país do mundo, mas, oficialmente, é uma instituição da classe dominante dos Estados Unidos? Que outra nação...
Giles estava com a corda toda, falando ininterruptamente sem fazer o menor sentido.
Quando pressionado, Giles gostava de alegar que as Empresas Kalki eram vítimas de perseguição por parte do governo dos Estados Unidos devido a uma suposta ligação com os chineses, cubanos ou soviéticos — a potência estrangeira por ele citada variava de acordo com o país que estivesse sendo acusado de inimigo dos Estados Unidos, através da imprensa ou da televisão, pelos tagarelas auxiliares do presidente.
Quando Giles chegou aos fatos, era evidente que a atman de Kalki estava vagando pelo universo. Os olhos azuis se mantinham abertos, mas não enxergavam. O ocupante do corpo de Jim Kelly não se encontrava em casa.
— Vamos resumir — disse Giles, incansável. — Somos vítimas do desagrado que o governo dos Estados Unidos nutre em relação a qualquer organização que seja mais atraente para os cidadãos americanos que o governo federal, essa gigantesca instituição com mil e uma facetas, incluindo a chamada Máfia, que não passa de um clube patriótico ítalo-americano dominado pelo Departamento de Combate aos Narcóticos, nosso inimigo específico.
— Dr. Lowell — disse o Professor Jossi, que não se deixara iludir por aquela arenga. — A imprensa européia costuma indagar de mim por que as Empresas Kalki são suspeitas de envolvimento com o comércio ilegal de drogas. Acho-me impossibilitado de responder a tal pergunta. Deixando de lado os rituais tântricos, o hinduísmo é contrário ao uso de drogas. Devo presumir que tudo não passe de uma farsa inventada pelo decadente governo judaico-católico de seu país para desacreditar uma religião verdadeira — a única religião que existe como tal? Ou será que existe a proverbial semente de verdade nessa afirmação? Esclareça-nos, por favor, Dr. Lowell.
Olhei para Kalki, a fim de verificar se ele escutava, mas seu rosto continuava inexpressivo. A atman (o próprio Vishnu) devia estar pairando nas vizinhanças da estrela Arcturo, moldando novas estrelas, enquanto os quasares cantavam e novos buracos negros se abriam para outras eternidades...
Eu estava curiosa para ouvir o que Giles ia responder. Olhei para Geraldine. Parecia inquieta. Presumi que ela conhecia a verdade — qualquer que fosse — e tive a certeza de que Giles não a revelaria. Com a expressão mais sincera, ele respondeu:
— Não negociamos com drogas, Professor Jossi. É contra os ensinamentos de...
O Professor Jossi, porém, era um homem persistente. Interrompeu:
— Entretanto, Dr. Lowell, de acordo com a Neue Züricher Zeitung de ontem, o senhor é proprietário de um estabelecimento chamado Companhia de Peixes e Aves Tropicais de Nova Orleans, que está prestes a ser submetido a uma investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, sob a alegação de que tal estabelecimento...
— ...está envolvido no comércio de drogas — interpôs Giles com a maior calma. — Bem, a loja me pertence. Há alguns anos, Kalki foi meu sócio, mas comprei suas cotas. Precisa acreditar, Professor Jossi, quando lhe asseguro que negociamos apenas com peixes e aves tropicais. Confesso-lhe que, em certo período, muito curto e em pequena escala, compramos e vendemos... temo que ilegalmente... cabeças mumificadas de índios da bacia Amazônica. Todavia, desde que ingressei... ou tive acesso... à qualidade de Mestre Perfeito, dei ordens específicas a nossos representantes no exterior para que não aceitassem ofertas de cabeças mumificadas de seres humanos, embora ainda não tenhamos deixado de negociar com cabeças mumificadas de macacos.
Na minha opinião, aquilo era um perfeito exemplo de declaração dúbia. O Professor Jossi não se convenceu, mas nada podia fazer em contrário. Fitava Kalki, esperando que este esclarecesse tudo. Kalki, porém, se encontrava no espaço exterior.
Giles deixou de lado o assunto (literalmente, tirou o corpo fora) e prosseguiu:
— Francamente, levando em consideração o que deverá ocorrer dentro de vinte e um dias, investigações de comissões parlamentares não têm qualquer significação. Nesse ínterim, nossa estratégia deve ser de retardamento. Neste momento, estamos sendo ameaçados por dois dos múltiplos aspectos do governo dos Estados Unidos. Primeiro, o Serviço de Imposto de Renda. Segundo, o Departamento de Combate aos Narcóticos. E...
Resolvi fazer uma travessura:
— E terceiro, pela Tríade. Uma organização chinesa de assassinos assalariados, a soldo da Sociedade Chao Chow, de Hong Kong.
Então, compreendi que todos os boatos eram verdadeiros. Lakshmi ficou pálida. Não — isso é o que H. V. Weiss teria escrito automaticamente, como fiz agora. Na realidade, sua cor permaneceu a mesma, mas ela ficou boquiaberta. Voltou-se para Kalki, buscando auxílio. Não recebeu. Virou-se para Geraldine, que parecia zangada. Eu revelara uma boa parte do jogo, mas os outros não faziam a menor idéia do assunto que eu mencionara. O Professor Jossi parecia espantado.
Giles encobriu minha interrupção com uma informação diversiva:
— Devo também mencionar que a alta hierarquia do clero católico local estabeleceu uma aliança profana com a Liga Judaica. Trabalhando em conjunto, tentarão impedir a concentração do dia 15 de março. Em conseqüência, ao contrário do que a imprensa tem noticiado e no interesse da segurança, Kalki não comparecerá, junto com vários líderes cristãos e judeus, ao programa David Susskind Show, no próximo domingo.
A seguir, discutiu-se o efeito nuclear do Professor Jossi. Este afirmou que não haveria problemas técnicos.
O que pensava eu? Ao reviver aqueles dias extraordinários, continuo a repetir para mim mesma essa pergunta. Em primeiro lugar chegara à conclusão de que Kalki, se fosse bastante louco para exterminar a raça humana, levaria isso a efeito por meio de algum tipo de reação nuclear. A partir do momento em que fora apresentada ao Professor Jossi, passei a ter uma sensação de ruína, de perdição. "O espaço e o tempo são o reino do poeta. Deixem-no ir aonde quiser e fazer o que desejar: essa é a Lei." Bastava substituir "poeta" por Kalki e a frase de Victor Hugo tornar-se-ia a apoteose de Kalki. Contemplando a "Lei" e o "poeta" no salão do Narayana, tentei adivinhar se eu algum dia seria capaz de compreender o final de toda a vida humana (com exceção de um punhado de nós?). Desisti. Minha mente não admitia tal idéia. Voltei a meu estado normal, encarando Kalki como encantador, bandido, vigarista, a própria essência do sândalo e dos cabelos e pele dourados.
De repente, Kalki regressou. Bocejou. Pediu desculpas a lodos nós. Anunciou que a reunião estava encerrada. Perguntou-me se eu sabia montar a cavalo. Quando respondi afirmativamente, convidou-me a acompanhá-lo em um passeio a cavalo no Central Park. Disse que poderia emprestar-me seus blue jeans. Também foi trocar de roupa, voltando com blue jeans e um boné de iatista.
Acompanhados por quatro guardas de segurança, fomos de carro até as cocheiras onde estava alojado o corcel branco trazido da Índia. Aluguei um velho cavalo de pólo. Os guarda-costas pegaram cavalos que, segundo nos foi garantido, eram mansos e obedientes. Dois guardas cavalgavam à nossa frente e os outros dois atrás de nós. Pareciam muito preocupados e sombrios.
O dia estava frio. Fragmentos azuis acentuavam a cor castanha do céu. Meu rosto ardia com a brisa fria que cheirava a neve. Em meados de março, o inverno persistia. Partículas de poeira em suspensão no ar devolviam a tênue luz do sol para o espaço. Estávamos condenados a nos congelar.
O Central Park, embora queimado pelo frio, era agradável. Lembrei-me das colinas acima de Burbank, nas quais eu costumava cavalgar com Earl Jr. antes que o casamento colocasse um ponto final em nosso companheirismo agradável. Fazia muito tempo...
A alameda estava enlameada. Meu cavalo se assustava com cada arbusto; era arisco. O cavalo branco de Kalki era de uma beleza fora do comum. Infelizmente, Kalki era um cavaleiro nervoso: puxava as rédeas com demasiada força, não entendia o ritmo das passadas do animal. Por sorte, o cavalo era manso. Fiz o possível para ajudá-los.
Kalki não fez menção à nossa intimidade anterior.
— Não conheço Nova York — disse ele. — Estive aqui apenas uma vez, no meu último ano em Tulane. Estava sem dinheiro para ir a qualquer lugar, com exceção do Radio City Music Hall. Lembra-se das rockettes?
— Sim. Na verdade, conheço uma delas. Está aposentada. É amiga de Arlene Wagstaff.
— Gosto de sua amiga Arlene.
Não entendi o que Kalki queria dizer com aquilo — se realmente queria dizer alguma coisa. Será que sabia?
— Lembro-me dela no cinema — acrescentou, puxando a pala do boné sobre os olhos quando um grupo de colegiais a cavalo passou por nós, em fila indiana. Não o reconheceram. Os guardas observaram desconfiadamente as moças. Eu também. Felizmente, não havia uma só chinesa entre elas.
Nossos cavalos se espantaram quando uma dupla de criminosos negros passou correndo atrás do que me pareceu uma dupla de criminosos latinos, ao longo da alameda. Uma lâmina brilhou. Refreamos os cavalos e os guardas de segurança atrás de nós sacaram as pistolas, mas os bandidos desapareceram por detrás de uma elevação. Ficamos parados um instante. Ouvimos um grito. Depois, silêncio. Seguimos nosso caminho.
— Ninguém sentirá falta deles.
Mais uma vez, fiquei desconcertada pelo tom da voz de Kalki: uma frieza que combinava com o dia.
— Restará alguém para sentir falta deles? Ou estarei violando as regras com esta pergunta?
Kalki limitou-se a sorrir. Depois, passou para um galope lento. Acompanhei-o. Os guarda-costas faziam o possível para ficar perto de nós. Devemos ter percorrido quase um quilômetro antes que Kalki refreasse o cavalo branco. Por cima de um arranha-céu com o letreiro "ESSEX HOUSE", um avião passava pela única nesga de céu azul, como uma agulha de prata.
— Acho que minha postura na sela está boa, não é?
Não respondi. Pelo menos, ele não caíra do cavalo.
— Comprei um novo Garuda. Um Boeing 707. Você tem licença para pilotar um 707?
— Sim. Mas vou precisar de um co-piloto, de um navegador, de um...
— Posso aprender tudo isso.
— Quando?
— Quando tiver tempo. Você gosta de Geraldine?
Pela primeira vez, Kalki fazia-me uma pergunta pessoal.
Nem mesmo pareceu interessado na resposta.
— Sim. Gosto muito. Temos muitas coisas em comum.
— Ótimo. Ela também é valiosa.
Uma palavra esquisita, refleti. Como se Geraldine — e eu — fôssemos sua propriedade particular.
Aproveitei-me da disposição informal de Kalki:
— Contudo, não posso dizer que acho Giles inteiramente... correto.
— O papel dele é o mais difícil.
— E qual é esse papel?
— Precisa opor-se. Tem que ser o outro. Estude os vedas.
Eu fizera o possível para ler o máximo número dos muitos milhares de poemas, hinos, mantras, episódios da pré-história, que constituem os livros sagrados dos hindus. Nos ashrams, os gurus dão aos noviços um curso intensivo a respeito do começo e do fim, mas deixam de lado o mais importante: o meio.
— Suponho que seja a duplicidade — comentei. — Eu pensava que ele era mesmo o Dr. Ashok.
— Devia pensar. Todo mundo devia. Se Giles puser os pés no Nepal como Dr. Lowell, vai direto para a cadeia.
— Porque é traficante de drogas?
— Exato.
Por que motivo nós, morenos, julgamos que os loiros são necessariamente transparentes... como a própria luz? Uma citação de Racine, retirada da caderneta: "C'était pendant l'horreur d'une profonde nuit". Jamais consegui fazer uma tradução tão aterrorizante quanto o som da frase no original. Foi durante (mas, também, pendurado... ou aparição indistinta, gigantesca... ou, ainda, ameaçadora) o horror de uma noite escura. Todavia, profonde não é apenas escura. Profonde também pode significar as profundezas do abismo, a escuridão universal que envolve tudo. Nesse contexto, o "exato" pronunciado por Kalki era mais reverberante e arrepiante que qualquer de suas arengas cabalísticas a respeito do Fim. A noite escura começava a descer sobre dois cavaleiros no Central Park.
— Você também?
— Sim — disse Kalki, fitando os arranha-céus. Já não fazia negativas.
— Por quê?
— Dinheiro. Para os ashrams. Para os mandali. Para os livros e panfletos. Onde poderíamos arranjar tanto dinheiro com a mesma rapidez?
— Estou chocada — soltei uma risadinha, coisa que nunca faço. Estava chocada. E amedrontada, também.
— Por quê? Não é exatamente um segredo. De que outra fonte poderia vir o dinheiro?
— Dos discípulos. De contribuições. Da Loteria Lótus... Não, isso não seria possível; os lótus de papel são dados e não vendidos. Não sei. Isto é, não estou realmente chocada com isso — balbuciei, confusa. — Ora, não: estou mesmo chocada. Suponho que isso se deva ao fato de Kalki, o avatar de Vishnu, e todo o resto serem uma farsa. De que sua religião, sua missão religiosa, não passe de uma fachada para encobrir algo tão vil...
— Eu sou Kalki. Sou o avatar de Vishnu. Vim para purificar. Vim para trazer o Fim. Mas também estou no corpo de Jim Kelly. Ele tinha uma história, antes da minha chegada. Vendia drogas em Saigon. Trabalhava para a Chao Chow de Hong Kong. Tinha uma sociedade com seu ex-professor, em Nova Orléans. Quando eu me manifestei em seu corpo, utilizei o que havia de disponível. Ganho dinheiro como Kelly o ganharia, fazendo tráfico de drogas. Enquanto isso, faço o que tenho que fazer. Ensinei. Adverti. Tentei chegar ao maior número possível de pessoas, utilizando o corpo desse homem.
— Não tem qualquer sentimento moral em relação ao vício das drogas? Além de ilegal, também pode causar a morte das pessoas.
— Eu também sou a morte.
Como se para sublinhar o argumento, a última nesga azul que restava no céu foi encoberta por nuvens escuras. Grandes flocos de neve caíam sobre nós. Sentia-me gelada, em todos os sentidos.
Kalki se voltou para mim. Os lindos olhos pareciam gerar luminosidade, como sempre.
— Não tenha medo — disse ele. — Não haverá sofrimento.
— Como? O que acontecerá?
— Imaginarei outro modo. Só isso.
— Nós somos seus sonhos?
Kalki assentiu. Parecia satisfeito, como se um aluno conseguisse, afinal, resolver uma equação difícil.
— Sou a mente que contém todas as coisas, bem como coisa nenhuma, nada. Eu sou: isso é tudo.
— Se está sonhando tudo, então por que... bem, por que fez um mundo tão confuso? Por que permitiu que a era de Kali existisse?
— Estou jogando um jogo. Devo seguir as regras que estabeleço, pois elas também me fazem. Não posso explicar melhor, porque a linguagem humana é insuficiente. Lembre-se apenas de que, na eternidade, só os meus sonhos preenchem o vácuo.
— Você está sozinho na eternidade?
— Aqui, lá, são apenas palavras. Eu sou. Nada mais existe além de mim.
Tive uma inspiração. Seria memória racial? Ou simplesmente algo que escutara recentemente e não entendera?
— Quem é Shiva? — perguntei.
Kalki me respondeu numa voz diferente do normal — grave, áspera, sibilante:
— Não há diferença entre Shiva que existe sob a forma de Vishnu e Vishnu que existe sob a forma de Shiva.
— Você é o mesmo, mas não é o mesmo?
Cavalgamos em silêncio por algum tempo. Eu não podia ver os olhos de Kalki, mas presumi que sua atman fora novamente vagar pelo espaço.
Então, ele começou a entoar uma cantilena:
— Sou o senhor das canções, o senhor dos sacrifícios. Sou fôlego. Sou espírito. Sou o senhor supremo. Só eu existia antes de todas as coisas. Só eu existo e existirei. Nada transcende a mim. Sou eterno e finito, sou discernível e indiscernível. Sou Brahma e não sou Brahma. Não tenho começo, meio ou fim. Conhece-me e não morrerás. Não há outro caminho.
A cantilena cessou. Kalki virou-se para mim. Seus olhos azuis tinham um brilho cego.
— Quando chegar o Fim, aniquilarei todos os mundos. Sou. Shiva, o destruidor.
Estávamos passando por um local chamado Taverna do Parque. Refreei minha montaria. Alarmada? Sim. Prestes a fugir? Não sei. Agora, porém, Kalki voltara a ser o que era — ou, pelo menos, assumira a aparência que eu estava mais acostumada a ver.
— Shiva lhe respondeu?
— Oh, sim. É um deus alarmante, não?
— E a minha carranca, Teddy. Esperemos que eu não tenha necessidade de ficar carrancudo. Como Vishnu, estou sempre sorrindo. Como Vishnu, sou o preservador.
— Não me parece que pretenda fazer muita preservação no dia 3 de abril.
— Preservarei apenas o que houver de melhor.
Embora eu não acreditasse que Kalki fosse Vishnu, agora estava convencida de que ele acreditava. Assim, para todos os efeitos práticos, deus se encontrava entre nós. Na medida em que esse deus específico encarnasse antigos sonhos de morte e ressurreição, talvez ainda prevalecesse. Mas de que maneira?
Reação nuclear em cadeia. Não consegui imaginar outro modo. Fiquei em dúvida se deveria ou não alertar a polícia, o Sun, o Senador White. Mas não tomei providência alguma. Nem mesmo relatei a Morgan Davies a confissão que Kalki me fizera. Ele acabaria descobrindo, inevitavelmente. "MESSIAS DAS DROGAS DESMASCARADO." Essa seria a manchete do Sun. A imprensa sempre é previsível. Tentei imaginar de que modo ela conseguiria fazer a cobertura do fim do mundo...
Na manhã de 15 de março houve uma tempestade de neve. Permaneci na cama, observando os flocos de neve que se chocavam contra a vidraça. Ao contato com o vidro aquecido, a neve se derretia, virando água.
Arlene telefonou. Era fã incondicional de Kalki.
— Acordei de madrugada para assistir àquele especial de cinco minutos no programa Bom dia, América. Nunca na minha vida fiz isso por ninguém. Meu anjo, ele não existe! É o Fim!
Arlene aderira à piada nacional, colocando uma inflexão especial na palavra "Fim". Da noite para o dia, cada comediante do país inventara sua própria maneira de dizer "o Fim". Era um modo infalível de arrancar gargalhadas do público. Um cômico de TV sempre fingia explodir quando Kalki era mencionado. O assunto servia para todo tipo de pilhérias. Mesmo assim, desde o início, boa parte das risadas tinham um fundo de nervosismo. Afinal, muita gente visitara os ashrams, lera os panfletos, vira Kalki na televisão. O fato de acreditarem ou não em Kalki não fazia diferença. Quem quer que ele fosse, era evidente que algo muito estranho estava ocorrendo. Infelizmente, a imprensa não fazia uma análise séria do fenômeno Kalki. A 15 de março, o assunto "quente" era saber se o presidente substituiria ou não o vice-presidente. O eventual fim da vida humana sobre a terra não interessava a ninguém.
— Agora — disse Arlene —, me conte as últimas novidades. O que ele pretende fazer? O que está aprontando?
— Não sei — respondi vagamente. — Apenas um sermão, creio.
O sangue ainda me gelava nas veias sempre que eu me lembrava do que ele me dissera no Central Park. Alguns comentários desse tipo numa cadeia nacional de televisão e haveria pânico total.
— Você é mesmo uma garota malvada. Sabe de tudo e não me conta nada. Bem, diga a Kalki que eu o acho um gatão da pesada — Arlene gostava de um tipo estranho de gíria. — É um pão! — acrescentou, como se estivesse em plena Segunda Guerra, época em que fazia espetáculos para distrair as tropas combatentes no exterior.
— Kalki me disse que também gosta de você.
Arlene ficou entusiasmada:
— Temos o mesmo tipo de ondas, sabe? Estudei nosso biorritmo. Nós nos complementamos. Portanto, diga-lhe que darei uma festa em honra a Kalki esta noite. Ficaremos todos sentados diante da tela, porque ele é a melhor coisa que já apareceu na TV desde que aquele astronauta... como é mesmo o nome dele?... pisou na Lua.
Arlene não estava muito enganada. Não apenas toda a nação americana, como também a privilegiada parte do mundo que tinha acesso ao Telstar, sintonizara seus aparelhos para ver Kalki proclamar (transmissão ao vivo, direto do Madison Square Garden) o fim da era de Kali.
O Madison Square Garden ficara em estado de sítio o dia inteiro. Todas as entradas estavam guardadas por policiais a cavalo. As ruas que davam acesso ao local estavam apinhadas de gente. Só na Eighth Avenue havia uma multidão calculada em cinqüenta mil pessoas à espera de ver Kalki passar.
Levei (com meu guarda-costas) uma hora para entrar no Garden e chegar até o posto de comando de Giles, que dava para a Eighth Avenue.
Ao entrar, fui informada por uma secretária atabalhoada (oito telefones não paravam de tocar) de que Kalki ainda não chegara, mas Giles estava dando uma entrevista coletiva na sala de imprensa.
Olhando para a multidão que se comprimia na avenida, lembrei-me de algo que meu pai me contara a respeito de Amélia Earhart. Ele a levara a um jogo de futebol americano na use. Amélia não gostava do jogo, mas meu pai era um fã apaixonado. No momento culminante da partida, quando um dos jogadores marcou um gol e todos estavam em pé, pulando, berrando, aplaudindo, Amélia perguntou:
— Qual é a cor de uma multidão?
A sala de imprensa do Madison Square Garden ficava por detrás da pirâmide sobre a qual Kalki se instalaria. Luzes fluorescentes no teto davam a todos os presentes uma coloração azul de Vishnu. Entre a sala de imprensa e a pirâmide erguia-se a colossal estátua azul de Vishnu, com os quatro braços estendidos, o rosto carrancudo sob a coroa.
Giles estava sentado sobre uma mesa. Havia pelo menos uma centena de repórteres acotovelando-se na sala. Todos falavam ao mesmo tempo. Afinal, a voz de um dos repórteres se fez ouvir acima do tumulto:
— Consta que o Sr. Kelly, que diz ser Kalki, jamais mudou legalmente seu nome para Kalki. O senhor tem algum comentário a fazer sobre o assunto?
Era uma pergunta normal. Giles estava em seu elemento. Era um mentiroso nato (ou seja, espontâneo). Deu uma resposta longa e irrelevante.
Então, uma repórter negra, alta e esguia, do Village Voice, quis saber:
— O senhor tem algum comentário a fazer sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senador White e sua suposta intenção de investigar as Empresas Kalki e suas possíveis ligações com o tráfico de drogas na Ásia e em outras partes do mundo?
De repente, a sala enfumaçada e cheia de gente ficou tão silenciosa que pude ouvir o zumbido do sistema de ar condicionado.
Giles foi soberbo:
— Como todos os bons cidadãos americanos, nós, das Empresas Kalki, sentimo-nos endividados para com o Senador Johnson White e sua dedicada Comissão de Inquérito. Se já houve um grande cidadão americano, este é o Senador Johnson White, e nós, das Empresas Kalki, aplaudimos calorosamente o esforço que ele vem desenvolvendo para o bem desta nação.
A declaração surtiu o efeito desejado. Todos ficaram confusos.
— O Senador White declarou que pretende, na próxima semana, intimar Kalki a depor como testemunha — insistiu a repórter negra. — O Sr. Kalki corroborará?
— Felizmente, Kalki corrobora em favor de todos nós, durante o tempo todo, para sempre — replicou Giles, iniciando o que prometia ser uma grandiosa arenga. Infelizmente, outros repórteres começaram a despertar.
— Ele foi intimado? — perguntou um deles.
— Não.
— Qual é o capital imobilizado das Empresas Kalki? — quis saber outro.
— Devem perguntar isso ao Serviço de Imposto de Renda. Há algumas semanas, seus principais auditores estão examinando nossos registros contábeis. Oficiosamente — Giles voltara a seu elemento —, não conseguirão terminar a auditoria antes do fim do mundo.
Riu alto. Sozinho. A imprensa não sabia como reagir diante daquilo. Bruce Sapersteen surgiu a meu lado.
— Olá, Teddy — fungou ele. Em seguida, perguntou a Giles: — Quando será o fim do mundo?
A resposta de Giles foi tranqüila:
— Esta noite, Kalki falará à cidade, ao mundo, ao universo. Nessa ocasião, segundo me disse, revelará a data.
Bruce e eu saímos da sala de imprensa. As luzes do auditório estavam acesas. Recepcionistas andavam pelos corredores entre as poltronas, aguardando a entrada do público. As equipes de televisão já se encontravam em seus lugares, em frente à pirâmide. Guardas por todos os lados. Diante da pirâmide, fora erguido um palco para os astros do rock. Técnicos ajustavam os microfones. A enorme estátua de Vishnu parecia mais alarmante que nunca. Bruce pediu-me para lhe explicar o significado da estátua. Parecia menos dopado que de costume.
— Bem, uma das mãos empunha uma clava; outra segura o lótus sagrado...
— Enquanto as outras batem as carteiras dos crentes. Sabe, Teddy, creio que você se converteu à religião dele. Morgan também acha isso.
— Estão ambos enganados. O Cristo cientista é meu pastor e médico.
— Você está trepando com Kalki?
Bruce procurava imitar um dos dois jovens jornalistas que haviam investigado o caso Watergate. Infelizmente, não era o que Robert Redford representara no filme, mas o outro. Considerei a personificação de Bruce altamente irresistível — e lhe disse isso em termos brutais, de baixo calão.
— Bem, eu estava apenas curioso. Ora, não precisa me morder. Olhe, vamos tomar um café.
Um vendedor ambulante nos serviu duas xícaras de café. Sentamo-nos lado a lado na primeira fila de poltronas, olhando para o palco, a pirâmide, a estátua.
— Aqueles braços são móveis? — quis saber Bruce, nitidamente abismado pela estátua.
— Espero que não.
— Sabe que o King Kong de Dino de Laurentis era apenas um sujeito metido numa fantasia de gorila? Jamais conseguiram fazer um monstro que funcionasse direito.
Bruce estava sempre cheio de informações, a maior parte muito deprimente.
— Não vejo um filme desde Elvira Madigan -— menti. —
Mas adorei Elvira Madigan. O que não é de espantar: sou romântica.
— Corre o boato de que seu rapaz vai em cana esta noite — fungou Bruce, muito satisfeito.
— Ele não é meu rapaz. Quem vai prendê-lo? E por quê?
— O pessoal do Departamento de Combate aos Narcóticos.
— McCloud é um idiota.
Meu palpite acertou na mosca.
— McCloud é muito vivo — disse Bruce, que freqüentemente falava como um fugitivo num seriado barato feito para a TV.
— Afinal, quem ele deseja pegar? É um agente duplo, talvez triplo.
Eu também sabia falar em termos de seriado de TV. Aliás, que cidadão americano não sabia, no final da era de Kali? O cidadão americano médio assistia a sete horas diárias de televisão — não necessariamente consecutivas. Periodicamente, eram amplamente divulgados relatórios afirmando que, graças a todo esse tempo gasto diante dos aparelhos de TV, O povo americano estava mais informado que nunca a respeito da vida animal, dos detergentes, dos países estrangeiros e dos aparelhos eletrodomésticos.
— McCloud trabalha para White — anunciou Bruce.
— Trabalha também para Kalki — respondi, querendo saber como Bruce reagiria a tal informação.
Todavia, ele estava um passo à minha frente.
— Eu sei. E também trabalha para a Chao Chow. E para a Tríade.
Pela primeira vez desde que eu o conhecera, Bruce conseguiu despertar meu interesse. Desejei interrogá-lo mais extensivamente, mas o público começou a chegar e, na confusão, fomos separados.
Por detrás da cabeça da estátua de Vishnu, ficava a Sala Verde, onde estava reunido um grupo de mandali. Uma janela de vidro que só permitia visão de dentro para fora dava para o auditório. Podíamos ver o público, mas ninguém da platéia nos enxergava. Na parede oposta à janela, uma série de monitores de TV nos mostravam, simultaneamente, o interior do Madison Square Garden, a rua lá fora, um replay de I love Lucy, um programa de auditório ao vivo... enfim, tudo o que estava sendo levado ao ar pela rede nacional de emissoras, bem como o que estava sendo focalizado pelas câmeras colocadas no interior e no lado de fora do Garden.
Geraldine usava um sari cor de jade. Beijou-me impulsivamente. Lakshmi não me beijou, mas sua saudação foi afetuosa. O Professor Jossi parecia muito satisfeito consigo mesmo. Aparentemente, o átomo se desintegraria de acordo com o plano previsto.
— Kalki chegará de helicóptero — informou Geraldine, excitada como uma criança num circo. Tornei a me apaixonar por ela. — Pousará no terraço.
Giles saiu da entrevista coletiva e veio direto a nós. Brandia um telegrama.
— O presidente espera que o progresso da paz mundial e da compreensão humana seja auxiliado pelo que acontecerá aqui esta noite!
Todos aplaudiram.
— Agora, ele nascerá pela terceira vez — disse Lakshmi. Referia-se ao presidente, é claro.
Giles foi até um canto da sala, onde falou num walkie-talkie. Os restantes observavam os monitores de televisão. Todos preferiam ver o que se passava no auditório através dos monitores, em vez de olharem pela janela. Era algo muito comum naquela época: os acontecimentos só pareciam reais se observados numa tela.
Contei a Geraldine o que Bruce me dissera.
— Não acho que o povo gostará disso — replicou ela. inesperadamente tranqüila. — Afinal, ninguém prende deus.
— Prenderam Jesus Cristo.
— Não se preocupe, Teddy. Estamos na reta final!
O Professor Jossi tinha uma mensagem semelhante. Dirigiu-se a nós como se fôssemos duas de suas alunas mais atrasadas:
— Haverá uma imagem nítida e incomum do átomo, ou, para sermos mais exatos, da sombra ou efeito do átomo, no momento da explosão, produzindo algumas cores vivas e raras na estreita faixa do espectro que o olho humano é capaz de perceber, em contraste com todas as cores radiantes que nossos olhos só poderão ver quando chegarmos ao Vaikuntha.
— Professor Jossi, espero que não haja risco de uma reação em cadeia — declarei em tom bem claro.
— Não haverá risco de espécie alguma — replicou o Professor Jossi, num tom igualmente decidido.
Julguei que sua declaração era ambígua e, portanto, de mau presságio. Insisti:
— Se houver uma reação em cadeia, a terra não será habitável durante séculos.
— Está confundindo duas coisas — disse o Professor Jossi, erguendo a mão direita e juntando o polegar com o indi¬cador, como se segurasse um pedaço de giz. — Em primeiro lugar, parece pensar que eu seria capaz de cometer algum tipo de engano. Pode ficar tranqüila. Não haverá engano algum. No mundo inteiro, graças à televisão, o público assistirá a um espetáculo atômico sem igual, que simbolizará o poder de Vishnu, o causador original da explosão primitiva que criou o universo conhecido. Em segundo lugar, sua análise do que poderia resultar caso fosse desencadeada uma reação atômica em cadeia não é correta. Dependendo do material fissionável utilizado, a reação poderia matar alguns tipos de seres vivos e poupar outros...
A lição de física nuclear do Professor Jossi foi interrompida pelo ruído do helicóptero de Kalki, que, é desnecessário dizer, não vinha do céu (a sala era à prova de som), mas de um dos monitores de TV, que nos mostrava o aparelho sobrevoando a Eighth Avenue.
Então, apareceram tomadas do terraço do Madison Square Garden, onde equipes de televisão aguardavam a chegada de Kalki. A imprensa se encontrava em peso no local. Houve uma tomada da multidão que se comprimia na Eighth Avenue, fitando o helicóptero que, de repente, despejou sobre ela milhares de lótus de papel. O povo delirava. Como uma revoada de borboletas brancas, os lótus desciam em círculos vagarosos no ar gelado da noite.
Assistimos ao pouso do helicóptero. A porta se abriu. Kalki desembarcou sob o brilho dos holofotes da TV. As luzes eram tão intensas que sua túnica cor de açafrão parecia branca. Kalki trazia numa das mãos uma flor de lótus. Giles avançou rapidamente para saudá-lo (e aparecer na tela), enquanto a voz de um locutor descrevia bondosamente aquilo que todos estavam vendo por si mesmos.
— Kalki desceu do helicóptero. Está atravessando o terraço do Madison Square Garden. A multidão de fãs se fecha sobre ele. Também está havendo um tumulto na rua.
A imagem passou para a Eighth Avenue, onde os entusiastas berravam:
— Kal-kil Kal-ki!
O locutor informou que o povo cantava "Kal-ki".
Voltei-me do monitor que mostrava a imagem lançada no ar pela rede nacional e olhei para o monitor que mostrava os bastidores do Madison Square Garden. Os corredores estavam apinhados de policiais e agentes de segurança. "Ensurdecedor" seria o termo empregado por H. V. Weiss para descrever o barulho que vinha dos camarins dos astros do rock, onde as guitarras gemiam, as baterias rufavam, os sitares tocavam em staccato. A fumaça de maconha azulava levemente o ar. Acima daquele ruído infernal, alguém gritava:
— Shanti!
Até mesmo a câmera que focalizava tremulamente a área dos bastidores parecia dopada.
Geraldine e eu olhamos para todos os monitores. A televisão em circuito fechado para os lugares públicos transmitia o espetáculo integralmente. As redes nacionais transmitiam flashes, com os replays de costume.
Postamo-nos diante de um monitor que mostrava um comentarista solene, intrigado pelo fato de Kalki ter conseguido lotar o Madison Square Garden com gente que pagara, no câmbio negro, preços que atingiam até três mil dólares por uma poltrona. Aparentemente, nada semelhante ocorrera desde o tempo dos Beatles, o zênite espiritual do século XX.
O Solene se esforçou ao máximo para parecer sério, dizendo que "O fenômeno conhecido por Kalki é novidade na história americana". (Cito-o de memória.) "No século XIX surgiram várias seitas protestantes que anunciavam o fim do mundo. Hoje em dia temos, é claro, os adventistas do sétimo dia e as testemunhas de Jeová. Entretanto, até o presente, nem mesmo a Primeira Assembléia de Deus de Hollywood conseguiu exercer sobre o público uma atração comparável à deste jovem de Nova Orleans. Denominando-se Kalki e proclamando ser a derradeira encarnação de Vishnu, o jovem de Nova Orleans tocou num ponto nevrálgico. É evidente que explorou com grande sucesso o fascínio do misticismo oriental que se tornou tão popular nos últimos anos a ponto de, recentemente, proporcionar a eleição para o governo do Estado da Califórnia de um zen- budista que dormia no chão."
Olhei pela janela que dava para o auditório. Milhares e milhares de pessoas ainda continuavam a entrar, comprimindo-se nos corredores entre as fileiras de poltronas. A cor das multidões é rosa-cinza, Amélia.
Eu queria descer para o auditório, mas Geraldine, por algum motivo, estava fascinada pelo sujeito que falava no monitor.
— Entretanto, aqui está ocorrendo algo mais profundo que uma simples mania de dormir no chão. Algo mais profundo e, talvez, alarmante. Muito embora Kalki tenha anunciado que o fim do mundo está prestes a chegar, algo que, no momento, não parece muito provável.
O Solene nos favoreceu com um leve sorriso, a fim de mostrar que era não só uma pessoa muito compreensiva e bondosa, como também muito prática e pouco disposta a cair num conto-do-vigário. Prosseguiu:
— Mesmo assim, é significativo o fato de tantas pessoas terem reagido ante a mensagem de desesperança de Kalki.
— Você renascerá — disse Geraldine, falando com o monitor de TV.
— Será que isso é um bom negócio? — perguntei.
Geraldine ficou calada, mas o Solene respondeu:
— Em que ponto, então, fracassamos como pais, professores, orientadores da opinião pública? — A sincronia de cores da televisão falhou naquele momento, dando ao seu sorriso modesto uma cor amarelo-esverdeada. — Como falhamos para esses jovens que, hoje em dia, são adeptos de Kalki? Jovens que aceitam a obliteração do mundo, até mesmo desta grande nação, como algo normal que não deve ser lamentado? Não é fácil encontrar uma resposta...
— As respostas são tão fáceis — disse Geraldine, afastando-se, afinal, do monitor.
Entramos no auditório através da sala de imprensa que ficava por detrás da perna esquerda da estátua de Vishnu. Como sempre, nossos guarda-costas, amáveis e fluentes, conseguiram fazer-nos passar por seus colegas. Entramos no círculo brilhantemente iluminado pelos holofotes que cercavam a pirâmide por todos os lados. Um conjunto de rock nos ensurdecia.
De mãos dadas, procuramos um local de onde pudéssemos ver a entrada de Kalki. Bem abaixo da fileira de câmeras de televisão havia um espaço vazio, com cerca de um metro quadrado. Ficamos ali.
Gradativamente, nossos olhos se acostumaram às luzes brilhantes. Agora, podíamos divisar a cabeça azul de Vishnu, dominando o cenário como um rosto num sonho. Então, o conjunto de rock diminuiu o índice de decibéis e consegui ouvir as batidas de meu coração.
Kalki surgiu no topo da pirâmide. Parecia feito de chamas amarelas. O auditório inteiro começou a pulsar, quando todos cantaram em uníssono as sílabas mágicas:
— Kal-ki!
Geraldine agarrou-me o braço e disse algo que não consegui ouvir.
Kalki ficou de pé por alguns momentos, imóvel. Depois, fez um pranam e sentou-se no trono, de pernas cruzadas. Repentinamente, imperou não só o silêncio, mas total imobilidade.
A voz de Kalki, quando se fez ouvir, era suave, tranqüila, sedutora — e maravilhosamente amplificada.
— Sou o supremo dos supremos.
Enquanto as palavras ainda vibravam no ar, o rosto de Vishnu se iluminou de tal maneira que, por um instante horrível, tive a impressão de que a estátua sorria. O público prendeu a respiração. Eu também.
— Quando nada existia, eu dei três passos. No espaço. No ar. Na terra. No espaço, sou o Sol. No ar, sou o relâmpago. Na terra, sou o fogo. Fui o princípio. Serei o fim. Sou Kalki, o derradeiro avatar de Vishnu.
Ainda não escutei a gravação do espetáculo de Kalki no Madison Square Garden (creio que não existe um exemplar aqui, na Casa Branca), mas duvido que jamais tenha havido algo semelhante na história do show business. Evidentemente, não estou capacitada para falar sobre a história da religião. Todavia, posso afirmar que Kalki conseguia seus efeitos sem quaisquer truques, mágicos ou de outra espécie. Utilizava apenas aquela voz com um sotaque que não era inteiramente de Nova Orleans, com a qual tecia sua teia em volta do mundo inteiro.
Ao descrever a criação do universo segundo a cosmologia hindu, Kalki utilizou uma quantidade suficiente de termos científicos contemporâneos para parecer, se não plausível, ao menos familiar a seus ouvintes. Ao descrever os ciclos da criação, explicou que nada tem fim. Que a poeira que se incendiou para formar o Sol era a mesma poeira que constitui cada ser humano. Que todas as coisas são intercambiáveis. Que nada se perde ou pode ser perdido. Que somos constituídos de uma forma por ocasião do nascimento e, depois da morte, nossa matéria é reorganizada sob uma forma diferente. Nesse ínterim, nossa alma passa por várias novas encarnações, até chegar ao último sono, ou apoteose, o Nirvana ou Vaikuntha.
A seguir, Kalki descreveu o modo pelo qual o mundo está dividido em eras. Que cada era é iniciada e terminada por um período de crepúsculo. Que estávamos, agora, no final do crepúsculo da última das quatro eras do homem, a era do Ferro, ou de Kali. Que, com cada era a partir da original Idade de Ouro, tudo o que era humano perdeu energia. Que o deus Vishnu veio a nós nove vezes desde o início da criação. Que Vishnu tentou ensinar aos homens o caminho do esclarecimento, da iluminação, mas este caminho só foi adotado por uns poucos homens. Agora, Vishnu se encontrava entre nós pela décima e última vez.
— Desde o início, eu ensinei. Desde o início, só poucos me deram ouvidos. Através da eternidade, o homem e deus têm estado num conflito necessário, como acontece com todos os elementos da criação, como estarão todos os elementos da matéria quando minha vontade dividir o átomo.
Assim, Kalki preparava o público para os efeitos especiais do Professor Jossi.
Tive que fazer um esforço para não olhar para a figura dourada que ocupava o trono. Queria observar a reação das pessoas na platéia. Estavam transfixadas, mesmerizadas. Quando digo que Kalki conseguia seus efeitos unicamente pela voz, estou exagerando. O público fora previamente condicionado pelos conjuntos de rock, pela iluminação psicodélica, pelo cheiro do incenso que queimava em braseiros a cada canto da base da pirâmide.
Por mais encantada que eu estivesse pelo desempenho de Kalki, minha mente se preocupava nervosamente com os fogos de artifício do Professor Jossi. Olhei em volta, tentando avistá-lo. Não vi Jossi, mas vi Jason McCloud, no instante em que saía de trás da estátua de Vishnu.
McCloud segurava o que me pareceu a mesma pasta com que eu o vira em Nova Orleans. Parecia nervoso. Lembro-me de ter procurado adivinhar se ele viera ou não prender Kalki. Eu estava prestes a chamar a atenção de Geraldine para McCloud, quando Kalki se ergueu de um salto.
— Sou Vishnu! — sua voz ecoou no recinto. — Acabo, mas não posso acabar. Morro, mas vivo para sempre. Tenham fé e renascerão!
Então, Kalki começou a cantar algo totalmente incompreensível para mim, mas não para Geraldine e os outros mandali. Estava recitando o hino sânscrito que celebrava o fim. Sim. O Fim.
— Meu Deus! — exclamou Geraldine.
Enquanto cantava, Kalki apontou para o céu — ou, mais especificamente, para a tela do Professor Jossi, que começara a pulsar de luz. Todos olharam para a tela. Exceto Kalki. Ele desapareceu no interior da pirâmide. A maior parte do público não percebeu seu desaparecimento até que a pirâmide começou a se abrir lentamente, revelando Kalki montado no corcel branco.
Não havia uma só pessoa naquele recinto que não soubesse que quando Kalki cavalgasse o corcel branco o mundo deveria terminar. Ondas de emoção — para não mencionar as de som — inundaram o auditório. Houve horror. Houve... expectativa? É difícil dizer. As coisas aconteceram depressa demais. Geraldine caiu de joelhos, cobrindo o rosto com as mãos. Eu fiz o mesmo.
Kalki cavalgou em nossa direção, brandindo a espada cravejada de pedras preciosas. Sua voz era estridente, esquisita:
— Os que me acompanharem, mesmo até o fim e depois do fim, estarão comigo no Vaikuntha!
Então, a criação inteira explodiu. Ondas de som me envolveram, ensurdecendo-me. Não obstante, tive uma fração de segundo para me congratular por ter adivinhado corretamente o modo pelo qual o mundo chegaria ao fim.
À ordem de Kalki, o Professor Jossi desencadeara uma reação atômica em cadeia. A terra estava em chamas, morta. Tive o amargo prazer de haver acertado.
Todavia, depois que a explosão inicial se desvaneceu em ondas sonoras, o mundo continuou intacto. Eu também. Geraldine também. E também a estátua de Vishnu. E a tela onde se podiam ver as partículas do átomo desintegrado, como cometas enlouquecidos.
Nada no mundo parecia ter sido afetado, exceto o cavaleiro dourado e o corcel branco. Tinham-se desintegrado. Havia sangue por toda parte. Fui a primeira a gritar.
O assassinato na televisão foi o acontecimento mais dramático na história desse veículo de comunicação de massa. Os irmãos Kennedy e Martin Luther King foram assassinados fora do alcance das câmeras. Embora, satisfatoriamente para os homens de TV, Lee Oswald fosse assassinado diante das câmeras, naquela época ele não era um astro e nem mesmo um ator conhecido. Kalki, em compensação, era um deus para milhões de pessoas. Para os outros milhões que o repudiavam, era inegavelmente um super-astro, a mais eminente das criaturas naqueles últimos dias da era de Kali.
Tenho um número surpreendentemente reduzido de recordações dos dias traumáticos que se seguiram ao atentado no Madison Square Garden. Não sei por que motivo, lembro-me perfeitamente do debate travado no Congresso a respeito de dever-se ou não decretar que a bandeira americana fosse hasteada a meio pau, em sinal de luto. Afinal, ficou decidido que cada cidade poderia fazer sua opção. O prefeito de Nova York proibiu que a bandeira da prefeitura fosse hasteada a meio pau, em deferência aos numerosos eleitores católicos e judeus da cidade. Dois fanáticos discípulos de Kalki prontamente subiram pelo mastro e arriaram a bandeira. Uma fotografia dessa aventura foi publicada na primeira página do Daily News de Nova York. Não obstante, uma só palavra vale mais que mil fotografias, especialmente se for "não".
O que mais? A explosão que desintegrou cavalo e cavaleiro foi atribuída imediatamente ao Professor Jossi e a seu reator atômico. Jossi teve um encontro com a imprensa. Encheu um enorme quadro-negro de diagramas e equações, provando que sua máquina não podia causar o menor mal a alguém. A explicação foi aceita porque ninguém foi capaz de entender a aula de física aplicada ministrada por Jossi. Confesso (atualmente) que eu também o julguei culpado, a princípio. Todavia, estávamos todos enganados.
Amuado, o Professor Jossi retornou a Lausanne. Suas palavras de despedida foram:
— Esse homem, Kelly, não era o verdadeiro avatar de Vishnu. Fui engodado.
Devido ao sotaque de Jossi, a imprensa achou que ele dissera "culpado". Houve ainda mais confusão quando isso foi publicado.
Já me esqueci de quando fiquei realmente convencida de que o assassino fora Jason McCloud. Creio que foi logo depois do fato. Giles assegurara-nos que McCloud não agia por ordem do Departamento de Combate aos Narcóticos, mas da sociedade Chao Chow, seu principal patrão. McCloud era um agente triplo. Usando sua verdadeira condição de agente do Departamento de Combate aos Narcóticos, infiltrara-se nas Empresas Kalki e Giles fora obrigado a lhe pagar "honorários de consultor". McCloud também se infiltrara na sociedade Chao Chow de Hong Kong. Ao descobrir que esta contratara a Tríade para eliminar Kalki, convencera a organização de sicários a deixar que ele fizesse o serviço. A Tríade ficara encantada com a proposta. Quem ousaria acusar um agente do Departamento de Combate aos Narcóticos de haver cometido um assassinato tão ostensivo? Até hoje, ninguém sabe como McCloud fez explodir a bomba, mas sabemos que foi ele. Na verdade, McCloud nunca foi citado como suspeito, embora a imprensa fizesse muitas especulações sobre o caso.
Como encarei os acontecimentos? Fiquei atordoada. Sumi de vista durante vinte e quatro horas. Assisti à televisão em meu apartamento do Americana Hotel. A cada intervalo de uma hora eles exibiam um vídeo-teipe horrível, em câmera lenta, do cavalo e do cavaleiro explodindo em cores vivas. Eu não conseguia deixar de assistir àquelas exibições. Recusei-me a atender telefonemas, exceto de Arlene, que estava tão perturbada quanto eu e ainda mais bêbada.
Dois dias após o assassinato, Giles deu uma entrevista coletiva à imprensa a bordo do Narayana. Geraldine compareceu. Lakshmi, sob a ação de sedativos, estava acomodada em algum outro lugar do barco. Usei um vestido preto. Fui ao cabeleireiro naquela manhã. Não me importei muito com os fotógrafos. Incomodei-me com Bruce, que se sentou a meu lado num sofá enquanto as câmeras estavam sendo montadas e as luzes ajustadas.
— Foi ele — declarou Bruce, apontando um dedo encardido para Giles.
— Por quê?
— Para assumir o controle da quadrilha. Agora, é toda dele.
— Não.
Confesso, agora, que tive algumas suspeitas de que Giles talvez desejasse afastar Kalki de seu caminho. Todavia, tais desconfianças logo se desfizeram. Em primeiro lugar, Giles não tinha motivo para isso. Afinal, ele e Kalki eram sócios em partes iguais no tráfico de drogas. Precisavam um do outro. Giles nada tinha a ganhar com a morte de Kalki; pelo contrário, tinha muito a perder. À luz intensa da TV, Giles parecia excepcionalmente doentio, mesmo para alguém como ele. Percebi também que os olhos de Geraldine estavam vermelhos. Sim, ela estivera mesmo apaixonada por Kalki, refleti. E eu? De certo modo. E o que mais existe no amor, a não ser um modo de se envolver ou de se escapar dele? Inclusive, modo nenhum...
— Você parece ter muita certeza disso — comentou Bruce, lançando-me seu melhor olhar de repórter astuto e inquisitivo. Devolvi-lhe meu melhor olhar de repórter que sabe das coisas.
— Tenho, sim — respondi.
— Então, quem foi?
— Uma outra religião. O governo dos Estados Unidos. Que diferença faz? — disse eu, com naturalidade.
— Que diferença faz? — repetiu Bruce, como se uma porta se abrisse em minha testa e um cuco aparecesse por ela.
— Se você acha que a Comissão Warren gastou muito tempo na investigação do assassinato de John F. Kennedy, nem imagina o que o Congresso fará a respeito da morte de Kalki. White já chegou à cidade, com mais da metade dos membros de sua comissão. Você tem aí um Quaalude?
Quaalude era um tranqüilizante muito popular entre o pessoal do show business no final da era de Kali.
— Não — respondi, satisfeita por poder negar-lhe auxílio.
— Vai ter que agüentar a tremedeira.
Giles subiu numa cadeira.
— Tenho uma declaração a fazer — anunciou.
Fez-se silêncio, quebrado apenas pelo zumbido das câmeras. Giles começou a ler.
— Kalki está vivo.
Fez uma pausa. Será que fez mesmo? Sim, suponho que sim. A reação imediata foi de espanto. Alguns soltaram risadinhas. O pessoal dos veículos de comunicação de massa não é exatamente amigável.
A contrariedade de Giles era evidente. A raiva lhe emprestou um tom de aspereza:
— Kalki está vivo — repetiu. — Vishnu está vivo. O que morreu no Madison Square Garden foi apenas um dos quatro bilhões de corpos humanos que pululam atualmente em nosso planeta. Como estava previsto, Kalki foi obrigado a descartar-se de um desses corpos. No devido tempo, Kalki habitará um novo corpo. Voltará a nós, como foi profetizado, e terminará a era de Kali no dia 3 de abril.
A ousadia de tais declarações produziu, a princípio, um profundo silêncio. Então, alguém soltou um riso nervoso. Bruce mordia os nós dos dedos. Sintoma de abstinência do vício?
Giles olhava fixamente para a câmera de TV. Agora, parecia calmo, relaxado. As câmeras de TV costumam surtir esse efeito.
Afinal, o repórter fez a pergunta óbvia, embora um pouco fora de propósito em tais circunstâncias:
— Onde ele está agora, Dr. Lowell?
— Kalki é Vishnu. Vishnu é o universo. Portanto, Kalki está em toda parte e em lugar nenhum.
Soltei um gemido. Aquele papo furado me deprimia, Aos outros também.
— Dr. Lowell — insistiu o mesmo repórter —, desejo saber exatamente onde está esse espírito que o senhor declarou que voltará a habitar outro corpo entre este momento e o próximo dia 3 de abril.
— Eu já respondi — declarou Giles, decididamente irritado. — O espírito está em toda parte.
— Nesse caso — quis saber uma moça —, o senhor poderia revelar onde está o corpo que o espírito vai ocupar? E a quem ele pertence no momento?
Pareceu-me uma boa pergunta.
— Não sei — disse Giles, lacônico.
— Então, o senhor poderia revelar o que acontecerá ao atual ocupante do corpo quando Kalki o substituir? — perguntou um conhecido colunista, famoso pela lentidão de raciocínio.
Todos riram, exceto Geraldine, que parecia furiosa, com os cabelos ruivos eriçados (para H. V. Weiss, cabelos ruivos sempre ficam eriçados).
— Uma vez que Vishnu já está presente naquele corpo, como está presente em mim e no senhor, não haverá qualquer deslocamento.
Quando Giles se mostrava desusadamente preciso em suas palavras, era sinal seguro de que estava ficando zangado.
— Por que Kalki abandonou o corpo anterior?
Giles começou a derramar seu mel especial com a maior naturalidade:
— Porque, minha cara senhora, uma pessoa não-identificada achou por bem atacar o corpo anterior com um explosivo ainda não conhecido, desintegrando-o totalmente. Naturalmente, o deus Vishnu continua a existir nas diversas partes do corpo anterior, que foram espalhadas pelo Madison Square Garden da maneira mais criminosa e selvagem. Eventualmente, ele tornará a reunir essas partes e reaparecerá entre nós como era antes, ou escolherá um novo corpo no qual tornará a nos aparecer. Teremos que esperar para ver.
— Tudo isso é muito bonito, Dr. Lowell — disse uma mulher durona, tipo Barbara Walters. — Não compreendo, porém, por que razão Kalki, ou Vishnu, ou seja lá quem fosse, permitiu que alguém o explodisse daquela maneira.
— Karma, minha cara senhora. O Destino. Tinha que ser assim e assim foi.
— Então, Kalki sabia que explodiria diante da televisão?
— Vishnu sabe tudo o que foi, o que é e o que será.
— Mas Kalki lhe disse previamente que seria explodido diante das câmeras de TV?
— Disse, sim. Ele previu tudo.
Aquilo surtiu o efeito desejado. Agora, era notícia. Todos começaram a berrar ao mesmo tempo. Quando Kalki soube? O que disse a respeito?
A voz de Bruce foi a mais alta entre todas. Fez-se ouvir acima do vozerio ao indagar:
— Kalki lhe contou por que ia permitir que isso lhe acontecesse?
— Sr. Sapersteen, é uma satisfação verificar que essa pergunta foi feita pelo senhor — disse Giles, a quem o suor provocado pelas luzes da televisão emprestava uma aparência quase saudável. Todos fizeram silêncio para ouvir o que ele diria. — Para começar, estamos todos envolvidos numa cerimônia bastante complexa. Considerem o fim desta era da criação como uma espécie de bailado. Na verdade, existe uma lenda segundo a qual o fim chegará quando Shiva iniciar a dança de Tandava, ou dança da eternidade. Shiva é também conhecido pelos deuses como Nataraja, o deus da dança.
— Como se escreve Shiva? E quem é ele... ou ela? — quis saber o repórter da Associated Press, que precisava relatar as notícias com exatidão. O resto da imprensa lidava essencialmente com opiniões.
Giles soletrou Shiva. Explicou também que Shiva era um dos três aspectos do deus único. Não sei por que motivo, alguns dos cristãos presentes tiveram dificuldade para compreender isso, embora sua religião também tenha um deus igualmente tripartido, ou trilateral. Mary Baker Eddy, que Deus a tenha em bom lugar, jamais aceitou tal espécie de tolice. Já era suficiente ter três nomes...
— Permitam-me voltar, porém, à comparação do bailado — disse Giles, partindo agora a pleno galope. — Kalki surge. Faz um gesto. Desaparece. Reaparece. Transforma-se. Move-se de um lado para outro. Nós o fitamos durante todo o tempo. E durante todo o tempo ele nos observa. Porque está nos experimentando, testando.
— Para quê? — quis saber Bruce.
— Para verificar nossa fé. Agora, devo-lhes fazer uma advertência muito solene. Aqueles que acreditam que Kalki cessou de existir no Madison Square Garden estão condenados a jamais chegarem ao Nirvana. Os que têm fé em Kalki e no seu retorno conhecerão o paraíso — muito em breve.
Pelo menos, Giles tinha um bocado de coragem. Desfiar aquele tipo de arenga diante da imprensa era procurar encrenca. E houve encrenca de sobra. A moça negra do Village Voice tomou a palavra:
— O senhor disse há pouco que o dia 3 de abril é a nova data para o fim do mundo, certo?
Os jornalistas sempre gostam de responder à pergunta que fazem, na intenção de transformar em larga avenida de duas pistas uma estreita rua de mão única. Enquanto Giles confirmava a data, fiz sinal para Geraldine. Saímos juntas do salão, sem sermos notadas pela platéia de repórteres. Estes me lembravam uma matilha de lobos... do tipo que Arlene tanto costumava aplaudir naqueles documentários de televisão. Evidentemente, Giles serviria de jantar para os lobos.
Geraldine e eu voltamos a pé para o Americana Hotel. Illa se mantinha tensa, reservada. Concordou comigo em que McCloud era o assassino.
— Está em segurança, porém. Jamais o agarrarão... a tempo.
Na Lexington Avenue, paramos para observar um grupo de moças e rapazes adeptos de Kalki. Ofereciam sua literatura, da mesma forma educada de costume. Todavia, ninguém aceitava os panfletos. Até mesmo os lótus de papel eram recusados. A disposição do público mudara do dia para a noite.
— Está tudo acabado — disse Geraldine, parecendo triste.
— Kalki não vai retornar? — sondei.
— Sim — respondeu ela, enérgica. — Mesmo assim, a fase terminou.
Fez um gesto de quem empurra algo para um lado, acrescentando:
— Eles estão todos excluídos, agora.
— Quem está excluído?
— Todo mundo, exceto...
Interrompeu-se, sem olhar para mim. Atravessamos a Park Avenue. O vento era frio, soprando do noroeste.
— Exceto os mandali? — insisti.
— Exceto os que têm fé.
— E você tem dúvidas a meu respeito?
— Não sei. Todo mundo parece ter desistido.
Demoramo-nos por um momento no jardim desolado do Edifício Lever. Geraldine contou que os mais devotados mandali haviam desertado. Alguns ficaram com medo. Achavam que quem matara Kalki poderia desejar eliminar todos os seus seguidores. Alguns temiam que o governo dos Estados Unidos não resistisse à tentação de tomar medidas ilegais e mandasse prendê-los ou deportá-los. Alguns haviam simplesmente perdido a fé.
— Agora, somos apenas nós. Lakshmi, Giles, eu e...
— Bem — interpus rapidamente. — Ainda estou disponível. Isto é, o contrato ainda está em vigor, não é?
Em que acreditava eu a 18 de março? Devo ser absolutamente franca. Achava que Kalki estava mortinho da silva, mas presumia que Giles arranjaria algum tipo de substituto. Não obstante, mesmo que ele conseguisse arranjar, o brinquedo terminara. O dia 3 de abril chegaria e passaria. Nesse ínterim, eu estava ansiosa para que as Empresas Kalki cumprissem meu contrato como pilota, pois agora tudo indicava que meu livro para a Doubleday goraria, como haviam gorado minhas reportagens para o National Sun, pois Bruce Sapersteen declarara, quando me levantei para sair da entrevista coletiva de Giles:
— Vou escrever sozinho a parte final da série a respeito de Kalki.
— Obrigada, colega — respondera eu.
Nunca mais tornei a vê-lo. Tanto melhor.
Geraldine mostrou-se agradecida por minha demonstração de solidariedade, embora não fosse fidelidade. Quando indaguei a respeito de Lakshmi, Geraldine respondeu:
— Ninguém a viu, a não ser Giles.
— Mas ela devia saber — insisti. — Já que Kalki predisse o que aconteceria...
— Mesmo assim, é um choque — declarou ela, secamente.
Eu não conseguia analisá-la. Nem ela, nem qualquer um deles. Sentia-me genuinamente entristecida pelo fato de a bela composição de carne e osso que fora J. J. Kelly já não existir em sua forma loira original.
Havia uma porção de recados para mim no hotel. Um deles era do Senador Johnson White. Desejava encontrar-se comigo no dia seguinte, onde e quando me fosse mais conveniente. Estava hospedado no Plaza.
Liguei a televisão do meu quarto. À tempo de ver Arlene aparecer no comercial do café Jedda. Nunca me canso de vê-la. Depois de ter sido acalmada por Arlene, fui imediatamente perturbada por um noticiário especial a respeito da morte do messias hindu de Nova Orleans, no Madison Square Garden. Primeiro, apareceu a cena já obrigatória da desintegração do cavalo e do cavaleiro. Em seguida, um ator fazendo o papel de repórter anunciou, olhando para a câmera:
— Acredita-se que o atentado tenha sido obra de um grupo religioso rival ou de outra quadrilha internacional de traficantes de drogas. Um porta-voz do Reverendo Sol Lua nega qualquer cumplicidade no crime e afirma que o messias coreano se declara consternado com a morte do messias hindu de Nova Orleans, J. J. Kelly, conhecido por inúmeros adeptos no mundo inteiro como Kalki. Vários capi da Máfia em diversas partes do país negaram qualquer conhecimento do assassinato do homem que muitos acreditavam ser um importante traficante de drogas.
Agora, a ligação com drogas estava publicamente revelada.
Então, a cara negra de Jason McCloud surgiu na tela, entre uma bandeira americana e um globo terrestre. Suas palavras pareciam um tanto incoerentes.
— É verdade, Jim — disse ele, falando a um entrevistador invisível. — Isto é, Bill. O Departamento de Combate aos Narcóticos está. Absolutamente.
— Isso é certo, Sr. McCloud?
— Claro, Bill. Eu poderia dizer, de maneira alguma. Mas não direi. Direi que as Empresas Kalki estão sendo investigadas e agora, que o cérebro da organização foi eliminado de cena por um grupo rival, estou certo de que poderemos dar um jeito de ferrar de uma vez por todas esse terrível polvo, cujos tentáculos se estendem das plantações de papoulas na Turquia até os parques infantis de Buffalo e de Fort Lauderdale.
— Creio que todos nós, cidadãos americanos, nos sentimos mais seguros por saber que Jason McCloud está trabalhando no caso.
Achei que Geraldine tinha razão. McCloud estava em segurança. Entre a bandeira americana e o globo terrestre, era invulnerável.
A imagem que apareceu em seguida na tela devia ter sido gravada apenas alguns minutos antes. Lá estava Giles, descendo pela prancha de desembarque do Narayana. De repente, um homem surgiu diante dele. Giles pareceu espantar-se. O homem lhe entregou um envelope. Segundo o locutor:
— O Dr. Giles Lowell acaba de receber uma intimação para comparecer perante a Comissão de Inquérito sobre Drogas.
A câmera pegou um close de Giles. Ele mostrou os dentes, como um tigre acuado.
— ...a comissão estará reunida esta semana, em Nova York...
O Senador White estava instalado numa suíte de esquina tio Plaza Hotel. Os janelões davam para um belo panorama do Central Park. Embora flores enviadas por admiradores adornassem todas as mesas da sala de visitas, procurei em vão pela simbólica papoula.
O senador, em mangas de camisa, falava ao telefone. Um secretário fez sinal para que eu me sentasse. Preferi permanecer em pé. O senador concluiu o telefonema e me brindou com o brilhante sorriso de quadragésimo ou quadragésimo primeiro presidente dos Estados Unidos.
— Sente-se, Teddy. Descanse esses pezinhos lindos. Acabo de desbaratar a maior quadrilha de traficantes de drogas do mundo inteiro. Vejo você mais tarde, Teddy — dirigia-se ao secretário, não a mim. Tínhamos o mesmo apelido. — Dentro de poucos minutos teremos a companhia de um agente da CIA. Que possui todas as provas!
White deu um soco na palma da mão, fazendo barulho.
— Queria falar comigo, senador?
— Sim — disse ele, assumindo o aspecto grave do presidente que se dirige à nação para prestar contas de seu governo. Seu rosto parecia esculpido em sabonete cor-de-rosa. — Como boa cidadã americana — e sei que você não é outra coisa, com a mais absoluta certeza —, Teddy, desejo que preste depoimento perante a minha Comissão de Inquérito no dia 4 de abril. Naturalmente, você há de querer instruções a respeito do que deverá dizer e foi por isso que convoquei esta pequena reunião. Você, eu e o homem da CIA. Antes, porém, Teddy, o que você acha que aconteceu no Madison Square Garden?
Nas circunstâncias, julguei que a pergunta era esquisita. Portanto, dei uma resposta esquisita:
— Bem, em primeiro lugar, Kalki encheu o Garden. E o senhor afirmou que ele não conseguiria fazer isso.
— Houve muito papel — replicou White, empregando o jargão do show business. "Papel" são as entradas distribuídas gratuitamente para aparentar que a casa está cheia.
— Não houve papel algum. A lotação estava esgotada.
— Seja lá como for — disse o senador, irritado. — O que, exatamente, ocorreu no final?
— Kalki foi assassinado — declarei, resolvendo adotar a linha oficial do Dr. Giles Lowell. — Como ele já esperava.
— Então, foi isso, hein?
— Foi isso que aconteceu.
— Kalki alguma vez disse a você que esperava ser assassinado?
— De certo modo, sim.
Já que me encontrava no escuro, não via motivos para compartilhar minha escuridão com White. Era pouco provável que ele tivesse conhecimento de algo que eu já não conhecesse.
White coçou a cabeça de tal modo que uma mecha ficou eriçada na parte de trás. Parecia um matuto almofadinha.
— Bem, eu sou apenas um rapaz do interior e não sei... não compreendo quem, diabo, jogou aquela enorme bomba em fim Kelly e no seu lindo cavalo.
Trinquei os dentes. A voz de White era como um prato de quiabos frios. Detesto qualquer tipo de quiabo. Respondi em tom neutro:
— Supõe-se que o FBI esteja investigando.
— Estão impotentes — disse White, deixando de lado o sotaque caipira. — Nem mesmo sabem que tipo de explosivo foi utilizado. Nem de onde veio. Nem quem o atirou, presumindo-se que já não estivesse colocado ali, como uma bomba-relógio. De qualquer forma, isso não interessa à gente — concluiu, voltando a jogar os quiabos na frigideira de gordura derretida. — Agora, menina, tenho uma teoria. É a seguinte: o Dr. Giles Lowell colocou aquela bomba.
— Por quê?
— Porque desejava assumir o controle da quadrilha.
— Essa eu não engulo, senador!
— Bem, é essa que estou vendendo, garota.
Não agüentei mais. Metaforicamente falando, afastei para um lado o prato de quiabos.
— Por favor, senador, não me fale com esse sotaque sulino. Isto é, já basta escutar o presidente, a esposa, os irmãos e irmãs, os filhos e noras, os assessores e a mãe, sem que o senhor, a grande esperança do Partido Republicano e, espero, nosso próximo presidente, precise parecer com o Ferdinando Buscapé, quando nosso país precisa de gente de alto gabarito.
Minhas palavras estavam carregadas de vaselina.
White capitulou. Exibiu um sorriso vitorioso.
— Meu Deus do céu! — exclamou, como caipira, mas controlou-se a tempo. — Acho que o sotaque é contagioso. Ouvimos essa coisa horrível de manhã, à tarde e à noite, em Washington... Bem, Teddy... de qualquer forma, sempre julguei que você acabasse do meu lado, ao menos porque minha palavra de ordem é a responsabilidade fiscal.
Os políticos não falam, realmente; apenas reagem a certos apertos de botões. Não sei bem de que modo, um de nós apertara o botão da "responsabilidade fiscal". Ou teria sido o da "palavra de ordem". Com algum esforço, voltamos ao assunto que interessava e ajudei White a apertar o botão de "Kalki".
— Teddy — disse ele, solene. — Quero que você declare em seu depoimento que, durante o período em que trabalhou como pilota particular de Kalki, ele lhe disse em mais de uma ocasião que: a) ele era o chefe da grande quadrilha de tráfico de drogas, e b) que tinha medo de que o Dr. Lowell o assassi¬nasse para assumir o controle da quadrilha.
— Senador, o senhor está me pedindo para cometer perjúrio perante uma Comissão Parlamentar de Inquérito.
— Teddy, estou lhe pedindo para dizer a verdade e nada mais que a verdade.
As lentes de contato de White, num efeito desagradável, refletiam meu rosto ansioso.
— A verdade é que Kalki jamais me disse a ou b — declarei.
— Creio, Teddy, que você está dando mostras de ser uma testemunha pouco disposta a colaborar — disse ele, mostrando os dentes cobertos com jaquetas de porcelana. — E acho que você bem sabe o que acontece às testemunhas recalcitrantes que não colaboram com o Congresso dos Estados Unidos.
Eu estava prestes a rebater, mas fomos interrompidos por Teddy, o secretário, que enfiou a cabeça pela porta e anunciou:
— Ele já chegou.
Fazendo uma retrospectiva, que agora é para mim uma situação deveras agradável, não sinto tanta surpresa como senti naquele momento, ao ver o Dr. Ashok. Muito embora eu jamais tenha considerado a representação de Giles como Dr. Ashok tão convincente quanto a representação do Dr. Ashok como Dr. Lowell, tive que admitir que ele se apresentou em esplêndida forma naquele dia, diante do Senador White. Não podia, porém, ser de outra maneira. Como Giles Lowell, ele fora intimado pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Poderia muito bem ir parar atrás das grades. Era preciso muita coragem para entrar na jaula do leão, de mãos vazias. Lembro-me de haver imaginado se o Senador White sabia ou não que o Dr. Ashok era o Dr. Lowell. Afinal, Morgan Davies insinuara que o senador talvez estivesse envolvido com as Empresas Kalki. A marca da era de Kali não era bom governo.
— Meu caro senador! Quanto prazer! E minha cara Madame Ottinger, minha companheira de Katmandu! Dê-me sua mão!
Com os olhos dourados e os dentes amarelos brilhando, o Dr. Ashok estendeu para mim a mão morena e frágil. Até mesmo cheirava a pó de curry. Um verdadeiro artista.
— Dr. Ashok, precisamos de seu auxílio — declarou White, colocando os pés miúdos sobre a mesinha de café.
— Estou às suas ordens, como o gênio da lâmpada. Basta esfregar, ó Aladim!, e seus desejos serão satisfeitos.
Sempre achei que Giles tinha uma tendência para exagerar como Dr. Ashok de uma maneira que o Dr. Ashok jamais exagerava como Dr. Lowell. Todavia, se White não estava mancomunado com Giles, fora realmente logrado.
— O que andam dizendo na CIA?
— A confusão em Langley é maior que de costume — disse o Dr. Ashok, dando-me uma palmadinha no joelho. Afastei minha cadeira.
— Dr. Ashok, creio que é melhor irmos direto ao assunto — disse White, ajeitando uma das lentes de contato. — Durante as audiências de minha Comissão de Inquérito, vou esclarecer o assassinato de Kalki. Para fazê-lo, preciso deter a CIA, o FBI, a polícia de Nova York... enfim, qualquer pessoa que possa solucionar o caso antes de mim. Portanto, Dr. Ashok, o senhor está em condições de cuidar das coisas em Langley?
— Caro Senador White, temo que o senhor tenha superestimado minha humilde inteligência. Antes que eu possa cuidar das coisas como o senhor deseja, preciso saber o que tem na manga.
Oh, soberbo sorriso! Oh, maravilhosa metáfora!
— O que tenho na manga é o assassino de Kalki.
O nome dele, caro Senador White?
— Dr. Giles Lowell.
O Dr. Ashok alçou-se, tranqüilamente, aos píncaros da grandiosidade.
— Presumo, então, que o senhor tem em seu poder provas absolutas de que o pernicioso Dr. Lowell assassinou seu comparsa de crimes?
— Tenho a prova.
— Sob que forma?
— Isso cabe à minha comissão decidir. Estou fazendo pilhéria, naturalmente — acrescentou White, muito sério. — Todavia, já que sabemos de antemão a identidade do assassino, não deveremos encontrar dificuldade para armar uma acusação sólida contra ele. Especialmente, contando com a sua ajuda, Dr. Ashok. E com a sua, Teddy...
— Nada disso! — protestei. Decidira que era melhor deixar o assunto bem esclarecido. — Não pretendo defender o Dr. Lowell, mas...
— Um homem realmente pernicioso — comentou o Dr. Ashok, com a mais absoluta convicção.
Fui distraída pelo comentário.
— Presumo que o senhor deva saber disso — declarei, realmente curiosa.
— Certamente que sei! Afinal, faz muito tempo que estou na pista de Giles Lowell. Segui seu rastro de Nova Orleans até Nova York, passando por Nova Delhi. E pretendo agarrá-lo. Ouviram bem? — O Dr. Ashok adicionou vários decibéis à voz ao repetir: — Eu pretendo agarrá-lo!
— Eu também, doutor — disse White, voltando ao sotaque caipira. Eriçou ainda mais a mecha de cabelos. — Ele é erva ruim, sem dúvida. Mesmo assim, precisamos descobrir como introduziu aquela bomba no Garden e onde a escondeu. Nossa opinião é que foi dentro daquele ídolo pagão.
— Senador, o senhor se refere a Vishnu, o deus, que é sagrado para mim — disse o Dr. Ashok, com o que H. V. Weiss definiria como "um leve tom de reprovação".
— Sinto muito, doutor. Acho que o senhor sabe que acredito, mais que qualquer outro senador, na tolerância religiosa. Respeito os deuses dos outros, sejam ou não azuis. Agora, pessoal, vamos dar tratos à bola e descobrir como o Dr. Lowell conseguiu detonar aquela bomba...
— Não acha que primeiro deveria descobrir por quê? — indaguei.
— Com Kalki afastado do caminho, o Dr. Lowell assumiria o controle da maior rede de tráfico de drogas do mundo inteiro. Certo, Dr. Ashok?
— Certo, Senador White — concordou o Dr. Ashok, derramando seu mel característico sobre o estadista. — Além disso, jamais podemos deixar de considerar as misteriosas paixões que governam os homens. Basta lembrar a grande obra de arte, A caftina, de Arden, em que o invejoso Agnello destruiu seu admirável superior Dago, um homem cujo simples nome era um símbolo de lealdade e integridade no exército de Vespasiano. Vejo o Dr. Lowell como Agnello e o pobre... sim, pobre, fraco, amável e leal Kalki como Dago, destruído com um beijo.
White meneou a cabeça, como se aquela arenga fizesse sentido. Sempre achei estranho que, embora o Dr. Ashok sofresse de metáfase, o mesmo não ocorresse com Giles. Por outro lado, Giles não era adepto de citações.
O Dr. Ashok voltou-se para o senador.
— Farei o possível para retardar Langley. Nesse ínterim, estou certo de que Madame Ottinger revelará à sua Comissão de Inquérito como, em mais de uma ocasião, Kalki lhe confessou temer que o Dr. Lowell o assassinasse.
— Mas... — comecei. Então, calei-me. Afinal, era o Dr. Lowell como Dr. Ashok, ou o Dr. Ashok como Dr. Lowell, quem controlava a situação. O problema não era meu; era dele.
— Combinado? — perguntou-me o Dr. Ashok com seu sorriso amarelado.
Permaneci calada.
— Boa menina! — exclamou White, satisfeito. — Já preparei o depoimento que você prestará sob juramento — acrescentou, apontando para uma pasta que estava sobre a mesa de café. — Pode levá-lo. Leia, se quiser. Depois, assine-o na presença de um tabelião e devolva-o para mim.
Resolvi dar um longo salto no escuro:
— E Jason McCloud?
White ficou repentinamente tenso.
— Que tem ele?
— Creio que está metido no atentado. Eu o observei pouco antes da explosão. Estava morto de medo.
— Ora, minha cara Madame Ottinger, que motivos poderia ter ele? — indagou o Dr. Ashok em tom sedoso. — O Departamento de Combate aos Narcóticos tem apenas um objetivo e creio que o Senador White pode confirmar minhas palavras, pelo menos oficiosamente. O objetivo, ou melhor, o único objetivo do Departamento de Combate aos Narcóticos é aumentar a venda de todos os tipos de drogas no mundo inteiro.
— Tem razão — disse White, de imediato. — Sem organizações como a de Kalki, o Departamento de Combate aos Narcóticos morreria à míngua, da mesma forma que a minha Comissão Parlamentar de Inquérito, pois perderia a polpuda verba que lhe é alocada pelo Congresso. McCloud não tinha, absolutamente, o menor motivo para matar Kalki.
— Ele estava na folha de pagamentos do Dr. Lowell em Nova Orleans.
— Minha cara Madame Ottinger — riu o Dr. Ashok, como se alguém lhe tivesse ensinado como era rir, mas esquecesse de dar uma demonstração prática. — Naturalmente que McCloud estava na folha de pagamentos do Dr. Lowell. Afinal, é um agente do Departamento de Combate aos Narcóticos. Todavia, não acha que esse fato prova que ele não mataria Kalki? As galinhas que põem ovos de ouro são sagradas para os que gostam de omeletes douradas.
Deixei o assunto de lado. Compreendi que me encontrava na presença de dois grandes americanos que tratavam de crimes contra o Estado. O secretário entregou ao Senador White uma pasta pouco volumosa.
— O discurso para esta noite, senador. A favor do "direi¬to de viver".
Não sei explicar o motivo, mas aquela foi a gota que fez transbordar o balde.
— Senador White, o senhor é contra o aborto?
O Senador White estava de pé, com os pés miúdos afastados um do outro.
— Teddy, aborto é homicídio — declarou, lenta e gravemente. — Premeditado.
O Dr. Ashok concordou, com um entusiasmo de sicofanta.
— Nós, hindus, acreditamos que, com o encontro do espermatozóide e do óvulo, o karma se inicia e o dharma sai... como se diz por aqui?... ah, sai correndo.
— Escute aqui, White, o mundo está morrendo por excesso de gente — protestei. Em seguida, falei durante cerca de dois minutos a respeito de minhas teorias sobre a superpopulação. No entanto, quando estava chegando ao argumento principal — a população mundial dobraria em trinta e dois anos —, White me interrompeu. Sabia interromper muito bem. Aliás, passara a maior parte de sua vida adulta na televisão, esquivando-se dos assuntos e interrompendo as pessoas que realmente tinham algo a dizer.
— Isso simplesmente não é verdade, Teddy. Você se deixou enganar pelo tipo de grande mentira na qual os comunistas desejam que acreditemos, para que nosso número diminua enquanto eles e sua espécie, principalmente no Terceiro Mundo, aumentam e se multiplicam como fogo em capim seco. Teddy, existem mais alimentos e recursos naturais neste planeta hospitaleiro do que seria necessário para sustentar cem bilhões de pessoas. O grande problema é quem melhor pode explorar e distribuir tais bens. O sistema de livre iniciativa que tornou nossa nação tão grande? Ou o sistema escravagista dos comunistas, que nem mesmo possui know-how tecnológico para colocar em órbita um satélite de televisão em cores?
— Isso não vem ao caso.
Eu deveria ter percebido que não passava de perda de tempo argumentar com um senador que se preparava para ser o próximo presidente dos Estados Unidos — ou o próximo depois do próximo. Mesmo assim, insisti:
— O problema é que existe gente morrendo de fome aqui mesmo, nos Estados Unidos; que não existem empregos ou alimentos suficientes!
— Empregos! Pois deixe-me dizer uma coisa: existem mais empregos do que pessoas dispostas a aceitá-los. A Sra. Johnson White é uma dona-de-casa da qual qualquer país se orgulharia. Entretanto, acha que ela consegue uma faxineira por menos de três dólares e meio por hora para ajudá-la a cuidar da casa? Não, não consegue. Mesmo quando uma dessas pessoas desocupadas promete vir trabalhar, não aparece, apesar de prometermos pagar a corrida do táxi à nossa porta. Então, quem apara a grama do jardim? Quem?
Nessa altura, o Senador White começava a parecer prestes a sofrer um infarto. Felizmente, o Dr. Ashok era um mestre na arte de apaziguar as pessoas. Interveio. Mostrou-se compreensivo e solícito. Faria qualquer coisa, qualquer coisa, para auxiliar um grande cidadão americano. Em especial, aquele cidadão americano. E também se responsabilizava por mim. Eu também era uma grande cidadã americana. Todos trocamos apertos de mão.
Quando Giles e eu caminhávamos juntos pela Seventh Avenue, comentei:
— Eu não sabia que você continuava a representar o papel de Dr. Ashok.
— Não tenho outra escolha — disse ele, falando ainda como o Dr. Ashok. O vento de março continuava frio, levantando papéis velhos e poeira. — Sou obrigado a manter um pé no campo inimigo.
— Mas quem é o inimigo, Giles? Jamais consegui descobrir.
Giles me lançou um olhar de esguelha típico do Dr. Ashok.
— Você é cautelosa demais, Teddy! Tem medo de mergulhar em águas turbulentas. Por outro lado, águas paradas também podem ser profundas. Jamais deixei de ser o Dr. Ashok, em missão especial para a CIA. No momento, é conveniente que o Dr. Ashok venha à tona e o Dr. Lowell fique submerso. Não tenho... o Dr. Giles Lowell não tem a menor intenção de testemunhar perante a Comissão de Inquérito do Senador White, especialmente agora, que sabemos que o pobre Giles está sendo preparado para servir de bode expiatório por Johnny White.
Paramos quando um homem branco já idoso, empunhando um bastão de beisebol, saiu de uma livraria "só para adultos" perseguindo um jovem negro. Quando a estranha dupla desapareceu na esquina, eu disse a Giles:
— Agora, que você está à testa das Empresas Kalki, quero que saiba que estou disposta a cumprir meu contrato até o final, a menos que ele tenha sido rescindido por força dos acontecimentos.
Fiquei aliviada por tirar aquilo do peito. Ainda não pagara a Earl Jr. a pensão alimentícia de março e não queria pedir dinheiro a Arlene.
— Minha querida Teddy, como ficou combinado, você está empregada até o dia 3 de abril.
Giles enfiou a mão no bolso do Dr. Ashok e retirou um talão de cheques. Em pé diante das vitrines sujas de uma mercearia, preencheu um cheque no valor de dois meses de salário.
— Obrigada — disse eu, guardando o cheque no bolso. — E depois do dia 3 de abril?
— Antes dessa data, Kalki já terá retornado. Nessa data, a era de Kali chegará ao fim. Veja! Um cachorro-quente kosher!
Não consigo resistir.
Comemos cachorros-quentes temperados com alho, encostados num balcão imundo.
— Que forma Kalki assumirá?
— A sua própria forma. Que outra poderia ser? Auxiliado pelos Mestres Perfeitos, Kalki completará maravilhosa, terrível e definitivamente sua missão.
— Então, todos eles morrerão? — perguntei, apontando para as pessoas que estavam na rua.
— Uma idéia tranqüilizadora, não é mesmo? Nada mais de cidades, cortiços, pessoas. Nada mais de televisão. Sim, Teddy,
Walter Cronkite, os Quadrados de Hollywood, o Programa do Gongo, tudo terminará como Nínive e Tiro terminaram.
— Não consigo... — eu ia dizer "acreditar", mas corrigi a tempo: — ...conceber tal coisa. É tão brutal. E pensar nas crianças...
Lembrei-me de meus filhos. Senti uma ponta de remorso por não tê-los visitado com maior freqüência, por haver pensado tão pouco neles. Além da maternidade fora realmente, do ponto de vista psíquico, se não financeiro, além.
— Mas todas elas morrerão, de qualquer maneira. Pense nisso! Todas as crianças do mundo estão fadadas a morrer mais cedo ou mais tarde, de câncer, de doenças venéreas, de febre suína, ou de qualquer outra coisa. Todavia, quando Kalki erguer sua espada, elas...
— O quê?
— Elas cessarão de existir — foi a resposta. Que não era uma resposta.
Com um minúsculo guardanapo de papel, limpei a mostarda brilhante e amarela dos dedos. Imaginei se Giles não teria sido o responsável pela morte de Kalki. Julgava-o capaz de tudo. Acreditava eu no retorno de Kalki? Não. No máximo, esperava que Giles anunciasse, de um momento para outro, que Vishnu passara a ocupar o seu corpo e que ele agora era o avatar.
Enquanto caminhávamos para leste pela Forty Second Street, o Dr. Ashok disse:
— A morte é um sonho tanto quanto a vida. Infelizmente, o cérebro humano não consegue compreender a morte porque esta não tem simetria; e a simetria é muito importante para nós, pois pensamos com dois lóbulos de um único cérebro. Respiramos o ar através de duas narinas, levando-o a dois pulmões; vemos e ouvimos o mundo por meio de dois olhos e de dois ouvidos. Uma vez que somos obrigados a raciocinar em termos de pares de coisas, a morte nos parece totalmente errada porque é o equilíbrio definitivo. Cortando-se um lado da gangorra, ela deixa de existir. Portanto, para onde vamos a partir da morte? Não vamos. Ficamos. O que realmente interessa é que a matéria de cada um de nós deixa de existir em sua forma atual e volta a unificar-se numa outra forma diferente. Naturalmente, numa natureza constante não pode ocorrer perda de espécie alguma. Contudo, ocorre uma reorganização. Uma vez que a pessoa se entrega docemente à morte — uma guloseima para Yama —, é reorganizada sob outra forma. Tornará a surgir como um rei ou como um nabo, como um poeta ou como um melão, como um camelo ou como uma estrela. Entretanto, qualquer que seja a nova reorganização, o espírito unificador — chame-o de Vishnu — anima todas as coisas a cada instante, durante todo o tempo, e todas as coisas permanecem num fluxo constante, chegando, partindo, reorganizando-se. Ah, Teddy querida, você sempre não soube, bem no fundo de seu ser, que através dos milênios morreu, não apenas uma vez, mas mil, um milhão, um bilhão, um trilhão de vezes? Começando pelo impulso que ainda está contido em seu corpo, um corpo que neste mesmo instante contém todos os elementos que constituem não apenas o universo, mas cada uma de suas encarnações anteriores como ameba, peixe, gibão... toda uma imensa cadeia em cujo presente — muito longe do fim — está a linda Teddy Ottinger, caminhando a meu lado quando nos aproximamos da esquina sudoeste da Grand Central Station, onde a primeira edição do New York Post acaba de sair e vejo, pela manchete, que o ativo proprietário vindo das regiões antípodas está fazendo um grande movimento.
A manchete dizia: "guerra ao império de drogas de kalki".
— Vejo nisso a grande mão negra de Jason McCloud em ação — disse Giles, começando a deixar de lado seus maneirismos de Dr. Ashok.
— Mas McCloud trabalha para você, não é mesmo?
— Ele faz extorsão comigo, de vez em quando.
— Acredito que ele tenha assassinado Kalki. Sei que o Dr. Ashok discorda. Mas o que acha você, Giles?
— Ah, Teddy, existem mais coisas no céu e na terra do que em qualquer outro lugar. Além disso, minha bela jovem, a culpa de andarmos em círculos não está em nossas mangas, mas nas nossas cicatrizes.
Metástase de metáfase.
O dispositivo de segurança no Narayana era quase tão rigoroso quanto fora antes do assassinato no Madison Square Garden. Além da guarda do próprio navio, havia um bom número de homens à paisana rondando pelo cais, espionando. Havia ocasiões em que eu tinha a impressão de que, na era de Kali, a principal função do governo dos Estados Unidos era espionar seus cidadãos.
Lakshmi e Geraldine estavam no salão principal, embriagando-se com bloody-marys. Tive ímpetos de adverti-las contra o perigo de beber durante o dia, mas não tive coragem. Elas tinham passado por um mau bocado.
— Teddy! — exclamou Geraldine, parecendo sinceramente feliz ao ver-me.
Lakshmi também.
— Eu sabia que você seria fiel — disse ela, beijando-me.
— Teddy Ottinger é um Mestre Perfeito radiante, uma inspiração para todos nós.
Com esta declaração, Giles retirou a peruca branca, derramou um pouco de vodca num guardanapo e começou a limpar a maquilagem do rosto. Então, tendo voltado a ser o Dr. Lowell, anunciou:
— Está na hora.
— Sim — disse Lakshmi. Parecia um tanto cambaleante. Geraldine tomou-lhe o braço. Com seus saris esvoaçantes, as duas jovens pareciam balançar sob uma lufada de vento de verão. Aparentavam grande felicidade. Tentei adivinhar o motivo. Seria a vodca?
Kalki entrou no salão. Os outros se prostraram, colando o rosto ao chão. Não querendo ficar atrás, fiz o mesmo. Então, decidi que estava sonhando. Não havia outra explicação para a figura que surgira à porta. Ou, em outros termos, se eu não estava sonhando, certamente me encontrava diante de um fantasma. E eu não acreditava em fantasmas.
— Namah Shivaya!
Os outros três entoavam cinco sílabas que não tinham qualquer significado para mim.
Kalki se encaminhou para nós. Seu rosto parecia uma máscara de ouro. A voz tinha o som do mais puro bronze.
— Sou Shiva, o destruidor.
— Namah Shivaya! — cantavam os outros três.
Em sânscrito, "Namah Shivaya" significa "Curvo-me diante de Shiva".
Como Shiva, o aniquilador de mundos, Kalki era bastante diferente de sua personalidade anterior. Seu aspecto loiro se congelara. Ele era frio como gelo. Pensei nas geleiras do Ártico, escorregando para o sul.
Kalki se sentou. Eu não. Limitei-me a fitá-lo — sem dúvida, boquiaberta. Devo acordar ou continuar dormindo? — perguntei a mim mesma. Lembro-me de haver refletido que, se fosse mesmo um sonho, os detalhes estavam impressionantemente nítidos. As cenas de sonho geralmente não apresentam tetos ou panoramas reais vistos através das janelas. Contudo, o salão tinha teto. E as silhuetas dos prédios da orla portuária de Nova York eram perfeitamente visíveis através das janelas abertas. Se era mesmo um sonho, fora meticulosamente construído.
Kalki olhou para mim. Eram os seus olhos, sem dúvida alguma. Porém, agora brilhavam como safiras.
— Você está comigo.
Era uma declaração.
Balbuciei algo idiota a respeito de nosso contrato não haver expirado.
— Em breve você tornará a voar — foi a segunda declaração de Kalki.
Então, tive certeza de que estava acordada. E mais confusa que nunca. Como sempre, a explicação partiu de Giles:
— Teddy querida, percebo que está intrigada.
— Pobrezinha! — exclamou Lakshmi, penalizada. — Conte-lhe o que aconteceu, Giles.
— Com o máximo prazer! — disse Giles, no seu elemento: uma substância idêntica à hiper-hipérbole. — Na noite de 15 de março, existiam duas versões do belo corpo de James J. Kelly. Infelizmente, uma delas foi destruída pelo vilão McCloud, sicário, agente do Departamento de Combate aos Narcóticos, sonhador político. Felizmente, restou-nos nosso precioso modelo de reserva. Aqui está ele.
Giles sempre sabia como me irritar. Mesmo no final do mundo, conseguia provocar-me. Ergui-me para protestar:
— É impossível haver duas cópias da mesma pessoa.
— As imagens de Vishnu são infinitas... — começou Giles.
Interrompi-o em sua tirada ao estilo de H. V. Weiss e apliquei uma dose da lógica de Ottinger:
— Diga qual das duas hipóteses, Giles. Ou este é Kalki e outra pessoa morreu no atentado, ou Kalki morreu no atentado e este é outro homem.
— A primeira, Teddy — disse Geraldine, satisfeita com minha perspicácia.
Lakshmi exibiu seu sorriso especial de rainha do céu.
— Este é mesmo, de verdade, o nosso Kalki. O original. São e salvo.
— Então, quem morreu? — perguntei.
— Um sósia — disse Geraldine. — Ouça: sempre soubemos que alguém, provavelmente McCloud, tentaria matar Kalki...
— Sempre souberam? — indaguei, surpresa. Kalki falara apenas num possível atentado contra sua vida.
Geraldine assentiu:
— Quatro dos cinco Mestres Perfeitos sabiam.
— Então, por que não contaram ao quinto?
— Você estava sendo testada, Teddy querida — disse Giles com um sorriso. — No momento crucial, foi aprovada no teste com distinção e louvor.
— Então, quem foi assassinado?
— Um ator chamado Rod Spenser.
— Por McCloud?
— Sim.
Para variar, Giles não tentou fazer rodeios.
— O ator que morreu no Madison Square Garden sabia o que lhe poderia acontecer?
— Não somos cruéis, Teddy querida; apenas implacáveis — disse Giles, sem parecer tão impressionante como as palavras exigiam.
Virei-me para Kalki, mas este já não se achava conosco. Os olhos azuis estavam fora de foco. De repente, tive dúvidas a respeito de aquele Kalki ser mesmo o original. Não poderia ser um sósia? Eu me sentia cavalgando um pesadelo, galopando velozmente em direção ao terror...
Lakshmi disse:
— Rod Spenser era muito parecido com Kalki. Além disso, era um bom cavaleiro e Kalki não é. Já que estava desempregado há quase um ano...
— Você o viu no filme Missouri breaks, de Arthur Penn. Fez papel de cowboy. Apenas uma ponta — informou Geraldine, que era fã de cinema. Eu não sou. — Era fotogênico, mas não tinha muito talento.
— Não tinha família? Seus parentes, amigos, seu empresário, não darão por sua falta? Então, alguém não poderá desconfiar que foi ele quem morreu, e não Kalki?
— Querida Teddy, não fique tão preocupada! — disse Giles, zombeteiro, o que sempre me deixava nervosa.
Lakshmi, porém, mostrou-se conciliatória e foi direto ao assunto:
— Dentro de dez dias, chegaremos a 3 de abril, quando toda a família de Rod Spenser, bem como seus amigos e associados irão juntar-se a ele... na próxima fase.
— E você presenciará tudo, Teddy — disse Geraldine, entusiasmada. — Os cinco Mestres Perfeitos presidirão o Fim.
— Quem são os outros dois Mestres Perfeitos?
Eu nunca me lembrara de perguntar antes. Na realidade, nunca os levara muito a sério até que o ator montado no cavalo branco fora assassinado. Para mim, aquele foi o ponto crucial. Agora, eu conseguia ver por baixo da carne das pessoas vivas o osso duro, essencial. Estava amedrontada.
— Um dos outros dois Mestres Perfeitos era o Professor Jossi — disse Giles, parecendo genuinamente entristecido. — Mas eles nos falhou durante a fase de testes. O mesmo aconteceu com o quinto Mestre Perfeito. Era alguém que você nem conheceu. Pobres-diabos; agora, perderão a perfeição e o paraíso. Contudo, como devem existir sempre cinco de nós para criar harmonia espiritual neste mundo, Kalki e Lakshmi concordaram em agir como Mestres Perfeitos. Portanto, Teddy querida, eis aí tudo, bem explicado — concluiu Giles, desusadamente satisfeito consigo mesmo.
— E agora? — indaguei. — Que devemos fazer?
— Voar.
Kalki retornara ao corpo. Virou-se para mim e, pela primeira vez, pareceu-se com o Kalki anterior a Shiva. Então, tive certeza de que o homem que me falava era mesmo Kalki e não um sósia.
— Você pilotará o Garuda ao redor do mundo, ao longo do equador. Depois, pilotará o Garuda ao redor do mundo, passando por ambos os pólos. Será minha mensageira.
— Qual é a mensagem?
— O próprio vôo.
— O itinerário está sendo preparado — disse Giles, num tom incisivo. — Você terá uma tripulação completa para o 707...
Quando eu ia perguntar a data da partida, Arlene Wagstaff entrou no salão. Estava maquilada para a televisão e sóbria como um juiz.
Kalki se ergueu para cumprimentá-la. Quando Arlene o avistou, prendeu a respiração com um barulhinho engraçado, semelhante ao que fazia tão bem no comercial do descongestionante nasal.
— Meu bom Jesus! Então, você não morreu! Ora, eu sempre tive certeza! Quero dizer, foi um truque de efeitos especiais lá no Garden, não é mesmo? Claro que sim. Você enganou todo mundo, para ganhar audiência. Os índices estouraram! Bem, permita-me dizer que sou, absoluta e totalmente, sua maior fã. Teddy, eu não lhe dizia sempre que Kalki é um gatão da pesada? Na verdade, desde que Monsenhor Sheen foi afastado das redes de televisão, eu...
Kalki tomara ambas as mãos de Arlene entre as suas. Irradiava um encanto da época anterior a Shiva.
— Eu sou seu fã, Arlene. Não é vantagem, porque todo mundo é. Alegro-me por você poder vir.
Arlene me deu um beijo rápido e uma explicação demorada:
— Meu anjo, quase caí dura quando meu agente telefonou, dizendo que eu devia tomar um avião para Nova York a fim de gravar uma entrevista a respeito de Kalki, porque o pessoal de Kalki desejava alguém de quem o público goste e em quem ele confie, como eu. Meu Deus, estou sedenta! Mas nada de bebida antes da TV: essa é minha regra capital. De qualquer maneira, perguntei a ele o que eu deveria dizer. Kalki não se desintegrara diante de nossos olhos, em pleno horário nobre? Que tipo de brincadeira era aquela? — passando o braço pelo de Kalki, Arlene declarou: — Não que acreditasse que acontecera algo realmente grave a você! Ele é ainda mais lindo em pessoa! — disse, piscando um olho para mim. Depois, tornou a olhar para Kalki. — Foi efeito especial, não foi? Como em Inferno na torre?
Kalki sorriu, calado.
Arlene prosseguiu:
— Bem, do escritório de William Morris me disseram: "Ora, Arlene, não sabemos exatamente do que se trata, mas o fato é que a oferta é quente. Tudo muito sigiloso. O Dr. Lowell quer que você grave um programa especial, com um índice de audiência garantido, talvez até mesmo superior a quarenta por cento". Tentei telefonar pra você, Teddy, mas não consegui completar a ligação. De qualquer modo, como parte do contrato era manter sigilo, não contei nada a ninguém e aqui estou. Kalki, se não se importa que eu diga, você é bastante comível.
Giles começou a acalmar suavemente a superexcitada Arlene:
— Está raciocinando em termos de Jesus Cristo, cara Srta. Wagstaff. Ele é periodicamente comido por seus adeptos durante uma cerimônia conhecida por comunhão. Vishnu, porém, jamais é comido. Afinal, como se poderia dar uma mordida no Sol? Estou percebendo que está pronta para a gravação — concluiu Giles, indicando os cílios postiços que Arlene só usava em comerciais sofisticados, como para o óleo de Olay, que a faziam parecer com Theda Bara. — E nós também.
— O que está acontecendo? — perguntei a Geraldine em voz baixa. Não tão baixa, porém, para que os aguçados ouvidos de Arlene deixassem de perceber que havia um relacionamento especial entre nós. Arlene tentou não franzir a testa, mas foi inútil. Apesar disso, nada havia de exclusivo entre ela e mim. Contudo, o ciúme é irracional. Arlene percebeu que havia algo entre Geraldine e mim. Embora isso não lhe agradasse, ela era uma profissional e o dever estava acima de tudo.
— Por aqui — disse Kalki, passando o braço pela cintura de Arlene, que praticamente entrou em êxtase.
Geraldine me respondeu:
— O que está acontecendo é o seguinte: Kalki vai gravar um teipe para a TV com sua amiga.
Percorremos juntas um comprido corredor. Nas profundezas do navio, um dos camarotes fora convertido em estúdio de televisão. A equipe técnica e o diretor já estavam a postos.
Kalki sentou-se, de pernas cruzadas, num tablado. Arlene sentou-se numa poltrona ao lado dele. Kalki sussurrou algumas instruções para ela. Arlene umedeceu os lábios. Captava tudo muito depressa. A um gesto de Kalki, a gravação teve início.
Arlene olhou para Kalki com uma afeição verdadeira, que nada tinha de fingida. Fora muito astuto quem escolhera Arlene (teria sido Giles?) para entrevistadora. Além de ser minha amiga íntima, era evidente que adorava Kalki. Mesmo excetuando isso, era, sem dúvida, a melhor vendedora da televisão.
— Kalki, você... retornou... dos mortos! — disse ela, num tom reverente.
— Sou eterno — disse Kalki, brilhando como aquelas auroras boreais que podem ser vistas à treze mil metros de altitude, iluminando o horizonte do Ártico. — Não posso morrer. Só eu existia, antes de todas as coisas. Só eu continuarei a existir para sempre.
— Isso é deveras interessante — comentou Arlene, tentando valentemente prosseguir a conversa. — Ficou surpreso com o que lhe aconteceu aquela noite no Madison Square Garden?
— Sei tudo que aconteceu, que acontece, que acontecerá. Sabia que abandonaria um corpo humano e passaria a ocupar outro. Este que você está vendo.
— Que me parece muito bonito, do ângulo pelo qual o vejo no momento — declarou Arlene, lançando-lhe o olhar satisfeito e maternal que aperfeiçoara no comercial em que o detergente em questão limpa as roupas enlameadas das crianças em exatamente um segundo. — Ora, então, Kalki, o que você fez... bem, ao retornar dos mortos, é uma espécie de milagre para nós, leigos, tanto no show business como fora dele.
— Eu nunca morri.
— Sim — disse Arlene, sem dar atenção a ele. — Eu sei. Permite-me que lhe pergunte, agora que voltou para nosso convívio, quais são seus planos para o futuro imediato?
— Sou Shiva.
Arlene não fora informada a respeito de Shiva. Percebi que ficou abalada, mas soube disfarçar muito bem. Havia meio século que fazia aquele tipo de trabalho.
— Muito interessante, o fato de você ser... hum... Shiva. Pode dar algumas explicações ao nosso público a respeito de quem seja Shiva? E de quem você é, na verdade? Como, por exemplo, onde você nasceu?
Kalki, porém, estava com a corda toda. Descreveu Shiva como o descrevera para mim no Central Park. Então, anunciou que ao meio-dia, hora oficial da costa leste, do dia 3 de abril, Shiva iniciaria a dança da eternidade e toda a vida humana chegaria ao fim. Como sempre, Kalki surtia mais efeito quando falava sobre fatos concretos.
— Isso não é uma mensagem muito encorajadora — ponderou Arlene, da melhor forma possível.
— Mas a morte... yama, como nós a chamamos... é paz. E a paz é a mais sublime das bênçãos.
— Que tal uma mensagem de esperança para todos os seus inúmeros fãs que nos assistem neste momento? Para todos nós que o estávamos apoiando no Madison Square Garden e nos sentimos imensamente felizes por saber que você não morreu e que regressou a nós como... hum... Shiva.
— Uma mensagem de esperança? — disse Kalki com um sorriso juvenil, muito pouco adequado a Shiva. — Muito bem. Povo do mundo, divirtam-se. Não se preocupem com o futuro.
Não haverá futuro. Aproveitem este mundo. Aproveitem cada dia. Aproveitem-se uns dos outros. Aqueles dentre vocês que acreditarem em mim viverão para sempre, mas sob formas diferentes. Portanto, apoderem-se da terra. Ela é sua. Tudo é seu. Até que eu inicie a dança da eternidade e todas as estrelas se apaguem!
Já que todas as redes nacionais de TV se recusavam a levar ao ar a entrevista de Kalki com Arlene Wagstaff, Giles foi obrigado a comprar meia hora de horário nobre na televisão. Embora as redes nacionais houvessem decidido "passar" na entrevista, como diziam em seu solene jargão, estavam ansiosas por entrevistar Kalki, cujo horário comprado obtivera, como estava previsto, uma repercussão sensacional. Exemplo de uma manchete (do Daily News de Nova York): "KALKI VOLTA DOS MORTOS". E logo abaixo: "Suspeita de mistificação: o crime do Madison Square Garden terá sido um jogo de espelhos?"
— Teddy, queremos que você volte para bordo!
Era Morgan Davies. Descarado. Largara-me após o Madison Square Garden. Agora, queria-me de volta.
Respondi-lhe que o navio já zarpara.
— De qualquer maneira, não precisa de mim. Tem Bruce Sapersteen.
Morgan começou a chiar e a implorar. Tive o prazer de bater-lhe o telefone na cara. Eu já não precisava do Sun. Naquele mesmo dia, pela manhã, a Doubleday informara a Herman Victor Weiss que suas frases bem-afiadas seriam utilizadas em meu favor.
Tais conversas aconteceram no dia seguinte à gravação da entrevista. Eu me encontrava na sala de visitas da suíte ocupada por Arlene no Regency Hotel, onde passara a noite. Na véspera, o Jornal das 18 Horas anunciara que Kalki estava vivo e seria entrevistado por Arlene. O telefone de Arlene não parava de tocar.
Eu preparava as margaritas e escutava Arlene falar simultaneamente comigo e ao telefone.
— Quem? Stan Kamen? — ela colocou a mão sobre o bocal. — É do escritório de William Morris! Kamen é o chefão! — tirou a mão. — Stan, querido! Uma série? Norman Lear? Bem, não poderei aceitar se Ross Hunter confirmar a co-produção da biografia de Amélia Earhart, estrelada por Teddy Ottinger. Será um negócio quente, Stan. Quente de verdade!
Enquanto Arlene tratava de negócios, girei o sintonizador de canais da televisão. À intervalos regulares ainda apareciam imagens de Kalki conversando com Arlene. Um locutor invisível anunciava o horário do programa.
— Aquele filme vale pra mim um milhão de dólares só este ano! — declarou Arlene, desligando o telefone.
— Que achou de Kalki?
— Um bo-ne-co! — disse ela, separando as sílabas. — Mas eu estava nervosa! Ele é tão... masculino! Um verdadeiro astro. Podem pegar Alan Ladd — refiro-me ao pai e não ao filho, que é uma jóia e chefia o Departamento de Produções da Fox, de quem espero uma oferta firme, quente, antes do final da semana, para o novo filme de Henry Hathaway —, podem pegar todos esses astros machões e jogá-los pela janela, porque Kalki é o máximo!
— Em compensação, se Kalki tiver razão, Henry Hathaway e a Twentieth-Century Fox não existirão mais na semana que vem.
— Teddy — disse Arlene, sem me compreender —, há vinte ou trinta anos vivo lendo e ouvindo essas besteiras sobre o fim de Hollywood, e posso afirmar que o mundo das diversões não acabará nunca mais! É verdade que já não temos mais Louis B. Mayer e os contratos coletivos. E daí? Temos os longa-metragens para a ABC. Temos as minisséries para a NBC. Temos...
Embora Arlene houvesse realizado a mais importante entrevista da história da televisão, não compreendera uma só palavra do que Kalki dissera. Ela era como a maioria das pessoas: o fim do mundo era demais para ser entendido ou mesmo concebido. Era muito mais fácil encarar Kalki como mais um superastro da TV, prestes a atingir um índice incrível de audiência.
No dia em que o programa seria levado ao ar, o Senador White chegou a Nova York, rebocando sua Comissão de Inquérito. De seus alojamentos, no Waldorf-Astoria, White declarou:
— Audiências especiais serão realizadas aqui, em Nova York, uma grande cidade que poderá sempre contar com meu apoio, financeiro ou de qualquer outra espécie, nos excitantes anos que temos pela frente. Trabalhando unidos em favor da responsabilidade fiscal, podemos e conseguiremos restaurar a economia da nação. Nos próximos dias, minha Comissão de Inquérito estará investigando a suposta ligação entre um certo movimento supostamente religioso e uma quadrilha internacional de tráfico de drogas. Nossa primeira testemunha será James J. Kelly, também conhecido por Kalki.
O Senador White conseguiu inserir sua mensagem (e sua própria imagem) no jornal das 18 Horas.
Embora tenha aparecido nas manchetes do dia seguinte, o senador foi superado. A intimação preparada para Kalki não foi entregue ao intimado porque Kalki desapareceu. O Narayana foi revistado de proa a popa, do topo do mastro ao fundo do porão. Kalki sumira. Na verdade, todos os Mestres Perfeitos haviam sumido, menos eu. Felizmente, a Comissão de Inquérito do Senador White não sabia que eu era Mestre Perfeito. Não obstante, na qualidade de pilota particular de Kalki, fui interrogada por um investigador da comissão, o qual achou difícil acreditar que eu não tinha idéia do local onde os outros se encontravam. Os membros da comissão ficaram loucos de raiva.
O Senador White ordenou que a polícia de Nova York promovesse uma caçada humana em busca de Kalki. O chefe de polícia se recusou a tomar qualquer providência nesse sentido, alegando que se tratava de um problema federal e não municipal. De qualquer forma, a polícia pouco poderia fazer, pois seus membros estavam em greve, exigindo não apenas um aumento de salários, como também serem tratados com maior dignidade humana.
Durante toda aquela confusão, despedi-me de Arlene. Esta regressou a Los Angeles, afirmando taxativamente que a biografia de Amélia Earhart, estrelada por Teddy Ottinger, estava no papo. Eu esperava que sim. Particularmente, não me sentia otimista. O projeto sempre fora destinado ao fracasso... como a própria Amélia.
Telefonei para Earl Jr.
— Já era tempo de você telefonar, Teddy. As crianças vivem indagando quando você virá visitá-las. Naturalmente, Lenore tem sido maravilhosa para elas. O cabelo dela já tornou a crescer, quase todo, mas ela perdeu as forças, Teddy, totalmente. A quimioterapia deixou-a inerte como um trapo. Além disso, é uma carga terrível fazer a quimioterapia e ter que servir de mãe para duas crianças maravilhosas.
— O cheque da pensão alimentícia já está no correio — informei.
Earl Jr. esfriou um pouco.
— Vejo que esse seu messias não morreu realmente na televisão.
— Morreu, sim — repliquei, não desejando entrar no assunto. — Ao mesmo tempo, não morreu.
— É mesmo? — disse Earl Jr., desagradável, discordando. — Então, o que vai acontecer a 3 de abril? Ele está preparando uma repetição do ato?
— Veja pela TV hoje à noite.
O programa (pago pelas Empresas Kalki) atingiu um índice de audiência de 46,7. Um índice só atingido pela partida final do campeonato nacional de futebol americano. Meu editor na Doubleday afirmou que, se o programa não fosse gravado com antecedência, o índice de audiência seria ainda mais elevado, porque todo mundo estaria curioso para ver se Kalki iria ser assassinado mais uma vez. Com a gravação prévia, o público estava ansioso por verificar se o Kalki atual era o mesmo que todos tinham visto explodir no Madison Square Garden. Ou seria o novo Kalki um sósia convincente? Na ordem do perene fenômeno daqueles anos, o novo Nixon.
No dia seguinte, o consenso geral era de que se tratava mesmo do Kalki original, o que levou às mais absurdas especulações. Muitos cobrões da imprensa julgavam que a entrevista Kalki-Wagstaff fora gravada antes do Madison Square Garden. Outros eram de opinião que o assassinato no Madison Square Garden não fora um atentado, mas algum tipo de truque para aumentar o interesse por Kalki. E a intimação da comissão do Senador White certamente não contribuiu para diminuir esse interesse.
Assisti sozinha ao programa, em meu apartamento do Americana Hotel. Kalki foi brilhante. Arlene mostrou-se exímia. Tão logo o programa terminou, o telefone começou a tocar.
O primeiro a ligar foi Giles, falando como o Dr. Ashok.
— Eles se esconderam — declarou. — Não tema, porém, cara Madame Ottinger: vamos encontrá-los! Nós os traremos de volta. A sorte está lançada, como diria o poeta. Encontrarei a senhora em frente ao reservado dos homens na Grand Central
Station, ao meio-dia de amanhã, com instruções. Seu telefone está sendo interceptado, mas não apenas pela CIA. Portanto, tudo o que a senhora disser será ouvido por terceiros.
Arlene telefonou logo a seguir. Estava emocionada com seu desempenho. Ross Hunter estava disposto a co-produzir a biografia de Amélia Earhart. Com Teddy Ottinger no papel principal. Ou, pelo menos, era o que ele dizia.
O próximo telefonema foi de Jason McCloud.
— Onde está Kalki? — perguntou em voz alta, desprovida de entonação.
— Não faço idéia.
O que era verdade.
— O Senador White acaba de assinar uma intimação. Neste minuto. E sabe de uma coisa, Sra. Ottinger? A intimação leva o seu nome. Ser-lhe-á entregue amanhã. Então, na manhã de quarta-feira, às onze horas, a senhora comparecerá perante a Comissão de Inquérito, no Waldorf-Astoria. Estaremos reunidos no Salão da Sereia.
McCloud desligou. Lembro-me de haver refletido que ele se mostrara muito seguro de si.
O Dr. Ashok e eu nos encontramos, como combinado, na Grand Central Station. Ele carregava uma pasta. Notei que não só a peruca estava bem colocada, como também seu comportamento era menos surrealista que de costume. Na verdade, estava nervoso.
— Já recebeu a intimação?
Percebi que ele não brincara ao afirmar que meu telefone estava sendo interceptado.
— Ainda não.
— Ótimo. Não volte ao hotel. Pode comprar agora as roupas que precisar. Depois, vá direto para o Aeroporto Kennedy. O Garuda está pronto para decolar. A tripulação está de sobreaviso. A carga já está a bordo. Eis aqui seu plano de vôo.
Entregou-me a pasta.
— Onde está Kalki?
— Fora das vistas, mas não das mentes, como diria o...
Interrompi:
— Qual é a carga?
— Leia suas instruções.
Um negro bem-vestido entrou numa cabine telefônica perto de nós e começou a urinar. Embriagado, pensava já ter chegado ao reservado masculino. Ninguém lhe deu a mínima atenção. O Dr. Ashok e eu nos afastamos dali.
— Seu vôo é um gesto necessário, um símbolo do poder de Vishnu.
Nem o Dr. Ashok nem eu conseguíamos deixar de olhar para a cabine telefônica, da qual partia um barulho de água semelhante ao produzido pelas cataratas do Niágara no comercial que Arlene fizera para a soda Sada. Uma poça começou a se espalhar lentamente pelo chão de cimento.
— Seu plano de vôo divide o planeta em quadrantes. Você dará uma volta ao mundo passando por ambos os pólos. À intervalos especiais, o avião deixará cair parte da carga...
— Qual é a carga?
— Flores de lótus. O símbolo da imortalidade. De Vishnu, o eterno. De Shiva e seu amor.
— Será um bocado de lótus...
— Setenta milhões. Haverá uma superloteria. Milhares e milhares de pessoas receberão enormes prêmios em dinheiro, ou, como disse o autor dos Advérbios do Velho Testamento: "Aquele que tiver pressa de ficar rico será inocente". Ou algo semelhante. Não importa. A tripulação sabe o que fazer. Você só terá que pilotar o avião. Naturalmente, você poderá querer falar com os curiosos nas diversas escalas para reabastecimento. Portanto, preparei alguns pequenos discursos, para qualquer eventualidade.
— Quando eu volto? — quis saber eu, já imaginando o tipo de discursos que Giles preparara para mim e decidida a falar por minha própria conta.
— No dia 2 de abril. Juntar-se-á a nós no Narayana, que estará ancorado ao largo da Battery, em Manhattan —- disse o Dr. Ashok, apontando para a maleta que eu segurava. — Todas as instruções estão aí. Mãos à obra, Teddy Ottinger, pilota de prova e Mestre Perfeito!
O ocupante da cabine telefônica adormecera, em pé.
O Garuda estava pronto para decolar. A tripulação era de primeira qualidade. Minhas instruções eram surpreendentemente inteligentes. Giles calculara exatamente onde e quando eu deveria pousar para reabastecimento e manutenção do avião. Conseqüentemente, o vôo foi realizado sem um único senão.
Sentia-me como Amélia, especialmente no vôo que acompanhava a linha do equador. Só lamentei que Lae não fizesse parte do plano de vôo, pois eu gostaria de ver o último aeroporto do qual Amélia decolara.
Sempre que pousávamos, a imprensa estava à minha espera. A imprensa australiana se mostrou desusadamente agressiva. Aparentemente, havia, em certa ocasião, conseguido expulsar Frank Sinatra da Austrália. Tamanho feito dera aos jornalistas locais um excesso de autoconfiança.
Fui praticamente atacada por eles no aeroporto de Sydney. Fiz o possível para aparentar tranqüilidade.
— Que trambique é esse de lótus que vocês estão promovendo? — perguntou um deles.
— Não estamos promovendo coisa nenhuma.
Distribuí lótus de papel branco. Contei-lhes a respeito da Loteria Lótus e dos prêmios em dinheiro. A imprensa achou difícil entender. Enquanto isso, uma dúzia de câmeras gravava tudo.
— Quer dizer que não estão vendendo esses lótus?
— Simplesmente os largamos no espaço. São o símbolo de...
Eu preparara um discurso bonito, mas ninguém estava disposto a escutá-lo, em Sydney. Um jornalista de Melbourne indagou:
— Então, o que vocês estão vendendo nessa viagem?
— Nada.
— Então, o que estão fazendo? — insistiu o homem de Melbourne, que usava um aparelho contra a surdez no ouvido esquerdo. — Além de espalharem flores de papel pelo mundo inteiro?
— Kalki está fazendo um gesto final. Quer que todos contemplem a eternidade antes do fim do...
Soaram risadas zombeteiras.
— E o fim está marcado para o dia 3 de abril?
— Sim — respondi com um sorriso delicado. — Ao meio-dia. Horário oficial da costa leste.
Mais risadas irônicas. Dei as costas a eles, passando a conferenciar com o chefe da equipe de manutenção. Todavia, os jornalistas não se deram por vencidos. Um deles perguntou se seria algo semelhante ao filme que Ava Gardner fizera sobre o fim do mundo, anos atrás. Quando a imprensa indagara de Ava Gardner por que motivo o filme estava sendo rodado na Austrália, ela respondera:
— Ora, o filme é sobre o fim do mundo e este lugar aqui é mesmo o fim!
A imprensa tentara expulsar Ava Gardner da Austrália, mas não conseguira. Obviamente, ela era bem mais dura na queda que seu ex-marido, o Sr. Sinatra.
Afinal, cansada daquelas perguntas tolas, obsequiei-os com uma seleção de árias dos mais ricos e floreados discursos de Giles. Terminei com:
— O lótus é o símbolo do criador do universo, uma lembrança da unidade do homem com o espírito do cosmo. Acreditem em Brahma, Vishnu e Shiva e chegarão ao céu.
O pessoal de Sydney não aceitava tal linha. Passaram para o campo pessoal. Finalmente, quando me perguntaram se eu era mesmo lésbica, como diziam os boatos, esmurrei o repórter do Bulletin. Foi uma cena divertida para a televisão, embora não exatamente adequada para o horário familiar.
Em todas as outras partes do mundo, fui bem recebida. Principalmente porque a entrevista de Kalki com Arlene fora exibida em todos os países onde havia televisão. O público estava fascinado por Kalki. Acreditariam mesmo no Fim? Creio que não. E eu acreditava? Não, na realidade. Sentia-me, é claro, curiosa por saber como Kalki explicaria o Não-Fim que se aproximava.
Ao menos uma vez por dia eu me comunicava pelo rádio com Giles, a bordo do Narayana.
— Você está fazendo um trabalho formidável, Teddy. Estamos recebendo uma cobertura incrível por parte da imprensa. Portanto, trate de manter esses lótus flutuando no espaço, como milhões de beijos do amantíssimo Shiva.
Afinal, exatamente no horário previsto, pousei o Garuda no Aeroporto Kennedy. Estava exausta. Carregando a sacola de viagem e minha caderneta, embarquei na limusine que me aguardava. Adormeci imediatamente. Fui despertada pelo abraço excitado de Geraldine.
— Teddy! Você é uma heroína!
— Por quê?
Atordoada, desembarquei do carro. Estávamos na Battery, uma espécie de parque em Manhattan, com vista para a baía. A certa distância do cais, estava ancorado o Narayana. Devido a um recente vazamento de óleo, as águas da baía pareciam uma densa goma negra, nas quais gaivotas mortas flutuavam ao lado de peixes mortos. Tentamos não respirar muito fundo ao embarcarmos na lancha Narayana.
Geraldine não parava de me dizer como todos eles estavam entusiasmados.
— Giles estava morrendo de medo que algo corresse errado, mas Kalki dizia: "Teddy Ottinger é a melhor!" E você é mesmo a melhor!
Com nossa chegada ao salão principal do navio, os cinco Mestres Perfeitos estavam, afinal, reunidos. Fui abraçada e beijada por cada um deles, sucessivamente. Giles estava fora de si de alegria. (Graças a Deus, assumira a personalidade de Giles e não a do Dr. Ashok.)
— Você não me falhou, querida Teddy. Outros poderiam duvidar de você, mas eu nunca duvidei.
Kalki passou o braço pelos meus ombros.
— Você foi meu quarto braço: o que segura o lótus — disse sorrindo. — Fez um belo trabalho.
Lakshmi apontou para um mapa-múndi montado num cavalete.
— Está vendo? — perguntou. — Acompanhamos você a cada minuto.
O plano de vôo do Garuda formava uma cruz sobre o mapa. Cada escala para reabastecimento estava marcada com uma estrela. Alguém também anotara no mapa a direção e a velocidade do vento a cada dia.
— Agora, os lótus estão no mundo inteiro, inclusive nos pólos — disse Giles, tocando com a ponta do dedo a cruz no centro do mapa. — No total, um soberbo exercício de logística, pelo qual nossas duas cientistas, Geraldine e Lakshmi, merecem os maiores elogios, bem como também você, querida Teddy, a única executora do grande plano.
— Agora, o lótus existe para todos os homens — declarou Kalki.
Naquela noite, jantamos todos juntos a bordo do Narayana, com exceção de Kalki. Segundo fui informada, ele não seria mais visto até as doze horas do dia seguinte.
Como eu me sentia? Exausta. Adormeci na banheira cheia de água quente e acordei, batendo queixo, quando a água já estava fria. Trêmula, esfreguei-me vigorosamente com uma toalha de banho. Notando o monograma "K", bordado em azul, fiquei mais uma vez impressionada com o dinheiro que estava sendo despendido. Minhas duas viagens ao redor do mundo deviam ter custado, no mínimo, um quarto de milhão de dólares. Lembro-me também de haver pensado que se nada acontecesse no dia seguinte, Kalki jamais conseguiria recuperar o equilíbrio financeiro. Ao vestir-me (veludo negro: era uma noite fria de abril), imaginei que ele talvez pretendesse assaltar o mundo. Algo no estilo: "Se não me entregarem x milhões de dólares, explodirei uma bomba de cobalto na Grand Central Station".
Geraldine estava sozinha no salão. Linda... de vermelho! Refleti que aquilo exigia coragem e uma boa dose de sorte. Geralmente, as ruivas ficam apagadas quando usam quaisquer cores vivas, exceto o verde complementar. Em voz baixa, ela me preveniu para não fazer qualquer comentário a respeito das atividades do dia seguinte.
— Todos os garçons são agentes secretos.
Geraldine preparou bloody-marys para nós. Prefiro vodca pura, mas nunca lhe dissera isso. Muitas vezes, ocorrem estranhas reticências entre as pessoas... Indaguei o que Kalki pretendia fazer no dia seguinte. Geraldine respondeu:
— Dançar.
— Espero que tenha treinado bastante na barra. Então, depois da dança...
Geraldine levou o dedo aos lábios, impondo silêncio.
— Há microfones espalhados por toda parte — advertiu.
Fiquei louca de curiosidade. Com um sorriso enigmático, ela ligou a televisão. O noticiário estava prestes a começar.
Esvaziei o copo. Fiquei bêbada. Cansaço, diferença de fusos horários, vodca, tudo junto começou a fazer efeito. Virei valentona.
— Bem, onde ele dançará?
— Numa barcaça, ao largo da Battery. Haverá cobertura de TV, ao vivo.
Não sei bem porquê, este último detalhe me pareceu muito engraçado. Ri como uma louca. Sozinha. Geraldine me olhou da mesma maneira, que eu costumava olhar para Arlene quando a bebida lhe virava a cabeça. Felizmente, o aparecimento de Walter Cronkite na tela surtiu um efeito que, se não curou meu pileque, pelo menos tornou o ambiente mais solene.
As notícias que Cronkite leu para o público, com aquele seu ar pensativo, eram as mesmas de sempre no final da era de Kali. Havia falta de energia. O petróleo árabe ia subir de preço. Uma nova era glacial estava sendo prevista por todos os cientistas que não haviam previsto um novo inferno decorrente do chamado "efeito de estufa" provocado pelos vapores produzidos pelo homem na atmosfera, que, por sua vez, em conseqüência de todos os "devido a" citados por ele, haviam concorrido para colocar uma corda — feita pelo próprio homem — no pescoço da raça humana. Havia fome. Uma nova epidemia misteriosa grassava no mundo inteiro. O presidente anunciava (sua imagem aparecia na tela, falando com a mais profunda sinceridade) que o vice-presidente estaria incluído em sua chapa nas próximas eleições, o que significava, evidentemente, que o vice-presidente não seria incluído na chapa.
Afinal, Walter Cronkite exibiu um leve sorriso ao ler para nós:
— Amanhã, o messias hindu de Nova Orleans, James J. Kelly, também conhecido por Kalki, Vishnu ou Shiva, aparecerá ao meio-dia, horário oficial da costa leste, numa barca no rio Hudson, ao largo da Battery de Manhattan. Então, como o deus Shiva, o Sr. Kelly iniciará o que denomina de "dança da eternidade". Segundo os antigos hindus, quando Shiva executar essa dança todos os mundos serão aniquilados. Portanto, a grande pergunta é a seguinte: Jim Kelly, de Nova Orleans, é realmente o deus Shiva? Se for, o fim do mundo ocorrerá amanhã ao meio-dia.
Walter Cronkite disse esta última frase com uma sobrancelha levantada. Se não o fizesse, haveria pânico nacional. O índice da Bolsa de Valores cairia verticalmente.
— E são estas as notícias de segunda-feira, 2 de abril...
O jantar foi servido de modo nada impecável por dois garçons. Afinal, não é fácil lidar com pratos e servir comida quando se procura escutar ansiosamente cada palavra que está sendo pronunciada à mesa. Escapei por pouco de ficar com o colo cheio de sopa quando a concha do agente distraído errou a terrina.
Giles fez uma conferência sobre alimentação.
— Estamos sendo lentamente envenenados.
Enumerou os venenos, enquanto comíamos sem o menor prazer os venenos enumerados. Cada um de nós já conhecia de cor a litania sobre cádmio-mercúrio. A seguir, em conjunto, lamentamos o que os dedicados horticultores haviam feito ao tomate americano, um fruto próprio para a exportação, mas não para ser comido no país.
Lakshmi ergueu seu copo de vinho:
— Ao alimento orgânico!
Brindamos com ela.
— Em nosso futuro não haverá outra coisa — declarou Lakshmi.
Os dois garçons trocaram olhares significativos. "Nosso futuro" era uma expressão-chave.
Logo após o jantar fomos visitados por Jason McCloud, que se fazia acompanhar por Owen Prager, chefe da equipe do Serviço de Imposto de Renda que estava investigando as Empresas Kalki. O Sr. Prager lembrou-me de que nos havíamos conhecido no ashram. Era um homenzinho cortês.
— Viemos falar com Kalki — disse McCloud, pondo-se muito à vontade no salão. Giles serviu-lhe uísque escocês.
Prager pediu Sanka.
— Sofro de úlcera — explicou, acrescentando com uma risadinha fanhosa e desagradável: — Eu não só causo úlcera nos outros, como em mim também!
Era sua piadinha particular. Preferimos deixá-lo em seu devido lugar: Lilliput, a terra dos anões.
Giles mostrou-se especialmente untuoso — uma verdadeira extrema-unção:
— Temo que Kalki se tenha retirado para passar a noite.
— Como eu — disse Lakshmi.
— E eu também — acompanhou Geraldine.
Ambas saíram do salão. Resolvi ficar. Estava curiosa.
— Viemos a serviço do governo, Lowell — declarou McCloud, cuja constituição devia ser extraordinariamente resistente, pois ele bebia copo após copo de uísque e não ficava embriagado. Em compensação, seu comportamento normal era brusco, atrevido, agressivo. Prager era cortês e, naturalmente, abstêmio:
— Terminamos nossa auditoria nas Empresas Kalki, Dr. Lowell. Creio que é justo preveni-lo de que sua organização deve ao governo impostos atrasados no volumoso montante de cerca de quatro milhões de dólares. Tenho em minha pasta os números exatos.
McCloud interpôs:
— O mais interessante é que você, pessoalmente, é culpado também de fraude.
— Ora, ora, Sr. McCloud. Não nos precipitemos — advertiu Prager em tom severo. — Nós, do Serviço de Imposto de Renda, jamais presumimos que alguém seja inocente até que seja provada a sua culpa. É o sistema americano.
Prager pareceu muito satisfeito com sua própria afirmativa.
Giles, muito calmo, respondeu de imediato:
— Naturalmente, consultarei meu advogado.
Lembro-me de haver-me surpreendido por ele não se mostrar mais abalado. Na realidade, parecia divertir-se com a situação.
— Será preso amanhã pela polícia de Nova York — anunciou McCloud.
Giles remexia numa bela escrivaninha estilo século XVIII.
— Creio que a polícia ainda está em greve — comentou.
— A greve terminou hoje à tarde — replicou McCloud, fitando Giles através do líquido cor de âmbar que havia em seu copo.
La vie en whisky. Sempre lamentei não ter podido ver e ouvir Edith Piaf em pessoa. Eu possuía a coleção completa de seus discos. Earl Jr. ficou com eles por ocasião do divórcio, apesar de só gostar de música caipira cantada por artistas urbanos da década de 60. Detesto Bob Dylan.
Prager tomou repentinamente a palavra.
— Nenhum empregado ou servidor público tem direito de fazer greve contra o Estado. Tal princípio foi estabelecido por Calvin Coolidge quando era governador de Massachusetts e é um preceito cuja negativa constitui anarquia social, Dr. Lowell! — afirmou ele com plena convicção.
— Não precisa dizer isso a mim, Sr. Prager — disse Giles, retirando uma pasta da escrivaninha. — Concordo plenamente com o senhor.
Entregando a pasta a McCloud, acrescentou:
— Aqui estão os documentos que me pediu.
— É melhor que estejam todos aí — retrucou McCloud.
Fiquei atônita ante o descaramento do suborno.
Olhei para Prager, que deveria ter percebido o significado daquela transação. Todavia, ele estava ocupado com a sua própria pasta.
— Se me permite, gostaria de conversar com o senhor a respeito dos principais pontos da auditoria — disse a Giles.
— Pois não — respondeu Giles, sentando-se e parecendo muito alerta.
— Falando de um ponto de vista puramente criminoso, achamos sua administração das Empresas Kalki soberba.
— Muito obrigado, Sr. Prager.
— Não há de quê. E tiramos o chapéu para o senhor! Dr. Lowell, o senhor faz a Máfia parecer um grupo de meninos inocentes. Devo dizer-lhe também que, devido ao seu talento contábil, nossos agentes gastaram quase vinte mil homens-hora neste projeto.
— Vinte mil! — Giles soltou um assobio. — Qual é seu orçamento anual, Prager? Refiro-me ao verdadeiro orçamento do Serviço de Imposto de Renda.
Enquanto os dois burocratas comparavam orçamentos, esgotei meu segundo fôlego. Como não dispunha de um terceiro, pedi licença para retirar-me. Os agentes do governo foram corteses.
— Boa noite, Teddy querida — disse Giles ternamente. — Sonhe com os anjos. Ver-nos-emos no café da manhã.
Lembro-me de ter pensado que, em vista das circunstâncias, ele estava desafiando o destino.
O destino, desafiado, revidou. Pouco antes do amanhecer, a polícia subiu a bordo. Giles foi preso. Dormi durante a confusão que deve ter ocorrido. Quando acordei, Giles fora levado do navio, que pululava de policiais de Nova York.
A manhã estava bonita, mas fria. Havia previsão de neve. O vento soprava de norte-noroeste. Lakshmi estava no convés, usando um pesado capote de inverno sobre o sari. Geraldine trocara o sari por um prático costume de tweed da Peck & Peck. Juntei-me a elas na amurada de proa do navio. Olhamos para a plataforma flutuante sobre a qual Kalki executaria sua dança. Em frente a nós, as onipresentes equipes de TV haviam instalado suas câmeras num rebocador.
Lembrei-me do diretor de TV em Katmandu. Tênis com as cores da bandeira americana. Cabelos loiros. Óculos. Mãos vermelhas. Tive um súbito espasmo de apetite sexual, causado, sem dúvida, pela histeria do momento.
Lakshmi estava nervosa. Indaguei o motivo.
— Estão querendo prender Kalki — disse ela.
— É um bom motivo. Onde está ele?
— Escondido — informou Geraldine. Na fria luz de abril, suas três sardas pareciam miniaturas de moedas de cobre.
— Mas ele não terá que subir ao convés quando for meio-dia? — perguntei.
Lakshmi assentiu.
— O problema é exatamente esse.
A polícia continuava a revistar o navio. Estavam por toda parte. Pareciam divertir-se muito. Não sei por que. Nem imagino. Riam, faziam piadas, acenavam para as câmeras de TV no rebocador. Embora estivessem muito conscientes de nossa presença, nenhum deles se aproximou de nós... exceto Jason McCloud. Atravessou o convés como o monstro numa versão barata de Frankenstein. Ainda estava alto em conseqüência da noite anterior. Mesmo assim, aquela manhã era, para ele, uma continuação da noite da véspera, porque não tinha dormido. Passara a noite conversando com Giles. Após a prisão de Giles, McCloud comera um lauto desjejum e continuara a beber.
— Bom dia, senhoras — disse ele, muito cortês. Respondemos com extrema frieza. Ele prosseguiu: — Sinto muito a respeito de nosso amigo Giles. Todavia, logo que pagar a fiança, será posto em liberdade.
— Onde ele está preso? — perguntou Geraldine.
— No 1º Distrito. Fica em Ericsson Place, 16. Dois quarteirões ao sul da Canal Street. Nós o teremos de volta amanhã, no máximo.
— Será tarde demais — disse Lakshmi.
— Qual é a acusação? — indaguei.
McCloud recitou uma série de crimes que, pelo menos em quantidade, se não em qualidade, era digna de um presidente da República. O crime principal era tráfico de narcóticos.
— Sinto muito — declarou McCloud, parecendo quase arrependido. Afinal, fosse ou não agente triplo, trabalhara para Giles durante muito tempo.
— O mínimo que você poderia ter feito era esperar até o meio-dia — disse Geraldine, raivosa.
— Bem, fizeram muita pressão sobre mim — disse McCloud, num tom vago. — O Senador White, sabem? Meio-dia — repetiu, piscando. Então, lembrou-se da situação. — Ora, o que vai acontecer?
— Shiva dançará — respondeu Lakshmi.
— Mas não se for preso — disse eu.
-— Jason — disse Lakshmi, segurando o braço direito de McCloud. — Você precisa falar com a polícia. Deve explicar que ninguém deverá se aproximar de Kalki antes do final da dança:
— Bem... — disse McCloud. Interrompeu-se. Refletiu. Então:
— Não sei se posso. Afinal, os mandados de prisão já foram expedidos...
— É costume dar-se um prazo de uma hora — inventei.
— Para que as pessoas possam colocar seus assuntos em ordem, despedir-se dos entes queridos...
— Mas as acusações são muito graves. Então, tive uma inspiração genial. Ao lidarmos com agentes triplos, temos que estar triplamente armados. Lentamente, como se falasse a uma criança, disse a McCloud:
— Tenho certeza de que meu amigo... e seu também... Senador Johnson White vai ficar muito, muito zangado quando descobrir que Kalki foi preso antes da audiência de amanhã.
McCloud pareceu repentinamente doente. Eu marcara um ponto.
— Eu sei — disse ele, atordoado. Lakshmi também marcou seu tento:
— Querido Jason, você é tão nosso amigo! E esteve tão ligado a nós durante tantos anos! Tenho certeza de que não deseja que seus sócios sofram algo desagradável.
— Não sou um sócio — declarou McCloud. Evidentemente, as portas da prisão já começavam a se abrir em sua mente traiçoeira.
— Não interessa o que você seja — interpôs Geraldine.
— Certamente é capaz de convencer a polícia a adiar a prisão de Kalki pelo menos por um dia. Se fizer isso, causará grande satisfação ao Senador White. E fará Kalki muito feliz.
Sem uma palavra, McCloud se afastou de nós. Foi à ponte de comando do navio, onde o vimos conversando com várias autoridades policiais.
— Será que ele conseguirá? — perguntei.
— Se não conseguir, irá para a cadeia — disse Geraldine.
— Há anos que lhe pagamos suborno. E temos provas disso.
Lakshmi se mostrou desusadamente feroz:
— E parte das provas foram entregues a ele ontem à noite, por Giles.
— A pasta? — indaguei.
— Sim — confirmou Lakshmi. — Foi o pagamento pelo que ele fez no Madison Square Garden.
Senti-me momentaneamente derrubada por um murro. Contudo, antes de poder recobrar-me, a sirene tocou meio-dia. Fez-se silêncio no navio. Então, o sistema de alto-falantes começou a tocar música... sitares, flautas, metais... E Kalki surgiu no convés.
Estava totalmente despido, a não ser por uma tanga de pele de tigre. O tronco fora esfregado com cinzas e o pescoço estava pintado de azul. Trazia ao pescoço um colar do que pareciam miniaturas de caveiras humanas. Três cobras vivas se entrelaçavam em seus cabelos. Ele carregava um pequeno tambor.
Não faço a menor idéia se McCloud persuadiu ou não a polícia a adiar a prisão. Só sei que bastou uma simples visão daquela figura para que todos se calassem. Acabaram-se os risos e piadas. Ninguém fez menção de deter Kalki... de deter Shiva, quando este se encaminhou para a proa do navio.
Quando Shiva passou por nós, curvamo-nos e dissemos:
— Namah Shivayah!
Não fomos vistas nem ouvidas por ele.
Shiva desceu a escada que levava à plataforma flutuante. Um avião que sobrevoava em círculos o local soltou uma nuvem de lótus de papel branco. Por um instante, o sol de abril ficou totalmente obscurecido. Então, fez-se uma tremenda confusão, quando os policiais correram para pegar as flores de papel...
Shiva bateu no tambor com a mão direita. Sem que os colecionadores de lótus que se engalfinhavam no convés percebessem, teve início a dança da eternidade.
Shiva pulava, contorcia-se, girava, saltava. Como previsto, a era de Kali chegou ao fim.
Pascal: "Le dernier acte est sanglant, quelque belle que soit la comédie en tout le reste". Acho melhor traduzir a citação. Afinal, sou a última pessoa no mundo que sabe falar francês. "O último ato é sangrento, por mais encantador que seja o resto da comédia." Deixo os atos anteriores, encantadores ou não, a cargo dos historiadores futuros. Agora, preciso procurar descrever da melhor maneira possível o último ato e sua sanguinolência.
Quando a dança de Kalki terminou, a era de Kali chegou ao fim. Cerca de quatro bilhões de homens, mulheres e crianças morreram. Não simultaneamente. Alguns podem ter sobrevivido até mesmo uma semana. Jamais saberemos ao certo. Na maior parte dos casos, a morte foi rápida — uma questão de segundos, minutos, uma hora de misericordiosa inconsciência.
Como ocorreu tal coisa? Deixem-me ir por etapas. Esta é parte perigosa de minha narrativa: um passo em falso... e não haverá história.
As coisas mais importantes em primeiro lugar. As questões práticas. Só encontramos Giles no fim da tarde. Estivera trancado numa sala dos fundos da delegacia do 1º Distrito. Procuramos. Gritamos. Ele também gritou — com voz fraca.
Fomos obrigados a arrombar fechaduras. A abrir portas com pés-de-cabra. Tudo isso na incômoda presença de policiais mortos, caídos sobre as mesas ou estendidos no chão. Um sargento gordo morrera abraçado a um bebedouro de água gelada. Por trás das grades, os prisioneiros tinham morrido deitados ou sentados em suas camas. Muitos pareciam até mesmo vivos. Nenhum semblante traía qualquer sinal de dor ou sofrimento. Alguns pareciam espantados. Afinal, a morte não marcara encontro. Na maior parte dos casos, os olhos permaneciam abertos, parecendo enxergar.
Quando conseguimos abrir a porta da cela de Giles, ele gritou:
— Vencemos!
Então, beijou e abraçou cada uma de nós. Depois, beijou a mão de Kalki, murmurando:
— Namah Shivayah!
Giles parecia abatido. Tinha uma série de reclamações:
— Sabem, nem mesmo me deixaram fazer a barba — queixou-se, passando a mão pelo rosto magro. — Fascistas. Estou falando sério. Eis o que eles são. Vocês sabem que nunca empreguei esse termo sem razão — disse ele, passando cuidadosamente a mão pelos poucos cabelos que lhe restavam. — Nem mesmo permitiram que eu trouxesse uma escova de dentes. Todavia — acrescentou, virando-se para Kalki —, deixaram-me assistir à televisão. Vi-o dançar, Senhor.
Como reagiu Kalki? Simplesmente, não reagiu. A não ser por um ar de quem cumpriu sua missão, parecia não se impressionar com o que fizera. Lakshmi e Geraldine, porém, mostravam-se submissas, reverentes. Mais tarde, Geraldine revelou- me que, na ocasião, só conseguia pensar na descrição feita por Robert Oppenheimer da explosão da primeira bomba atômica, em Los Alamos. Oppenheimer escreveu que, quando o átomo se desintegrou, a luz brilhou e o imenso cogumelo subiu, o horror que sentiu só poderia ser definido pelo texto hindu: "Sou Shiva, o Destruidor de Mundos!" De certa forma, Oppenheimer adivinhara o futuro. E eu? Sentindo-me enjaulada por um sonho, esperava acordar a qualquer momento, pois não conseguia compreender o inimaginável, que só Kalki, dentre todos os homens, fora capaz de imaginar.
Mais tarde, eu acordaria. Então, tive ocasião de verificar que meu cérebro apagara muita coisa que seria insuportável. No meu álbum mental intitulado "O Fim" há muitas páginas em branco. A maior parte delas.
Lembro-me, porém, da libertação de Giles. Recordo-me perfeitamente da viagem de volta ao centro da cidade, num automóvel. Kalki estava ao volante de uma limusine de aluguel que havíamos encontrado no Battery Park. Eu estava sentada no banco dianteiro, à seu lado. Os outros estavam no banco traseiro. Não sei por que motivo Lakshmi não estava junto do marido; ou por que eu estava.
Por toda parte, automóveis, ônibus e caminhões parados. Muitos motoristas haviam morrido ao volante. Descontrolados, os veículos haviam-se chocado uns contra os outros, subido nas calçadas, entrado pelas vitrines. Uma vez que o tráfego fora interrompido na hora do rush do meio-dia no centro da cidade, a Fifth Avenue estava transformada numa pista de obstáculos, que Kalki conseguiu percorrer com muita perícia.
Nenhum de nós falava. Até mesmo o neurótico Giles estava atônito. Enquanto dirigiam veículos, caminhavam pelas ruas, conversavam, comiam, cerca de quatro bilhões de corpos humanos tinham sido sem cerimônia abandonados por seus ocupantes. Haviam tombado nas mais extraordinárias atitudes. Enquanto passávamos, nada se movimentava a não ser os lótus de papel. Sempre que o vento soprava, eles flutuavam no ar, percorrendo as ruas silenciosas.
Durante nosso trajeto desde a delegacia de polícia, só Kalki não se mostrava impressionado com as cenas que víamos e com o silêncio reinante. Os sinais de tráfego continuaram a funcionar por mais uma hora. Kalki não lhes dava atenção. Tive consciência de seu corpo perto do meu. O suor da dança já secara. Percebi que, além do cheiro de sândalo e do peculiar odor de gente loira, havia também um cheiro acre, totalmente diferente de Kalki... Seria o cheiro de Shiva?
Estacionamos à porta do Sherry-Netherland Hotel, na Fifth Avenue, em frente ao Plaza. Tentei adivinhar se o Senador White ainda se encontrava em sua suíte de esquina.
Quando desembarcamos da limusine, uma fumaça lenta começava a sair pela porta principal do Plaza Hotel, em rolos pretos e brancos. De um extremo a outro da cidade, cozinhas subitamente abandonadas haviam pegado fogo. Contudo, os incêndios não provocaram grandes danos, devido a uma série de torrenciais pancadas de chuva.
Kalki sugeriu que ocupássemos aposentos no terceiro andar.
-— Quando a eletricidade acabar, os elevadores não funcionarão mais. Quem vai querer subir e descer vinte andares de escadas todos os dias?
Preferi não mencionar minha disposição de colocar mil andares de escadas entre aqueles cadáveres em decomposição e eu. Não obstante, juntei-me aos outros no terceiro andar. Durante os três meses em que residimos no Sherry-Netherland, gastei mais de mil latas de spray com perfume de flores. Sempre que saía à rua, usava uma máscara contra gases, cortesia do Corpo de Bombeiros de Nova York.
No mês de abril, deixamos a cidade apenas uma vez. Laksbmi queria libertar os animais dos zôos. Portanto, pilotei o avião de cidade em cidade, levando Lakshmi e Geraldine, ajudando-as a abrir as jaulas e soltar todos os animais, inclusive os predadores. Os répteis também... com exceção das cobras venenosas. Geraldine fechou questão sobre o assunto e Lakshmi, embora relutante, acabou concordando.
Eu parecia estar em outro planeta. Os zôos. Os animais famintos e amedrontados. Os incêndios. O cheiro de fumaça e carne putrefata. As moscas. O silêncio.
A não ser para aquela viagem, raramente deixávamos o hotel e, muito menos, Nova York. Evidentemente, estávamos aguardando. Não perguntei o quê. Durante aquelas primeiras semanas, não fiz indagação alguma. Fazia apenas o que me mandavam. Tomava Valium. Vivia num branco total.
À noite, comíamos juntos. Giles era um bom cozinheiro. Lakshmi o ajudava na cozinha enquanto Geraldine botava a mesa. Nunca lavávamos a louça suja. Tínhamos à nossa disposição toda a louça do mundo...
Revezávamo-nos nas "compras". Frutas e legumes frescos apodreceram quase de imediato, mas havia todos os tipos de alimentos enlatados, engarrafados e liofilizados. Vivíamos de presunto, salsichas, bacon. À intervalos, um de nós ia de carro até Long Island e colhia legumes frescos. Se eu tivesse escolha, teria permanecido no campo, onde podia tirar a máscara contra gases e respirar ar fresco. Mas não havia alternativa.
O que acontecera?
Não tive o menor indício até nosso primeiro jantar festivo no Sherry-Netherland, que ocorreu cerca de uma semana após o Fim. Lembro-me de que fiquei abismada quando Lakshmi propôs um "jantar de gala". Ela estava muito festiva. Eu, não. Em compensação, sentia-me completamente narcotizada. Já não sonhava à noite. Por outro lado, nunca chegava a acordar por completo. Não só não compreendia o que acontecera, como também não tinha certeza de que tivesse acontecido. Não afastava da mente a hipótese de estar vivendo um longo e complicado pesadelo.
Mesmo assim, levantava-me da cama todas as manhãs. Fazia o que precisava fazer. Depois, percorria os apartamentos e casas particulares das redondezas, soltando os animais de estimação. Todavia, após a terceira semana, já não havia necessidade de libertá-los...
Todas as vezes que ia a Long Island, libertava os animais domésticos: vacas leiteiras, galinhas, porcos, patos... todos os que conseguia encontrar. Não creio que tenham conseguido sobreviver ao inverno, mas minha consciência estava limpa... ou, pelo menos, um pouco mais aliviada. No segundo dia, Kalki e Giles pegaram uma camioneta pickup e foram a Nova Jersey, onde soltaram uma vaca leiteira e trouxeram para o Central Park. Kalki ordenhava a vaca diariamente, mas o leite era desapontadoramente ralo. Eu preferia tomar leite condensado. Giles também. Ele preparou, com leite condensado, um delicioso stroganoff de carne para comemorar nosso jantar (da vitória?).
Lakshmi arrumou a mesa. Eu acendi as velas. Giles sempre prometia ir ao escritório central da companhia de eletricidade, a fim de verificar como poderia iluminar nossa parte da cidade com o combustível que ainda restasse na tubulação, mas nunca chegou a cumprir a promessa.
Enquanto eu acendia as velas, Geraldine arrumou os lótus frescos que encontrara numa floricultura da Madison Avenue. Giles preparou a comida num fogão a gás situado na "suíte imperial" de Kalki e Lakshmi. Giles e Geraldine ocupavam, cada um deles, uma suíte. Num impulso masoquista, eu escolhera um simples quarto, um tanto desconfortável, nos fundos do hotel. Estaria economizando dinheiro?
Os trajes indianos foram deixados de lado. Lakshmi e Geraldine estavam muito elegantes: resultado de muitas horas gastas na Bergdorf Goodman's, no lado oposto da rua. Eventualmente, premida pela necessidade, fiz uma visita à Saks, onde reuni apressadamente algumas roupas não muito atraentes. Por quê? Não sei. Suponho que eu não desejava aproveitar-me de nossa situação, porque, se o fizesse, qualquer que fosse tal situação, ela poderia se sentir tentada a mudar. Agora, todos comiam carne. Notei tudo isso sem fazer comentários. Presumi que sempre que os demais desejassem que conhecesse as regras do jogo, colocar-me-iam a par delas.
Kalki preparou sazeracs. De algum modo, ele tivera a impressão de que eu gostava dessa bebida quando eu estava em Nova Orleans. Não gostava. E não gosto. À despeito, ou por causa, da mistura de Valium com os coquetéis, senti-me se não festiva ao menos mais à vontade do que estivera desde o Fim. Os outros pareciam no sétimo céu. Kalki usava um elegante terno de brim e uma gravata ondulante. Geraldine e Lakshmi trajavam longos. Giles conseguira arranjar um smoking — um número maior que o seu tamanho.
Sentada sob candelabros com velas de verdade (minha contribuição), observando nossas imagens nos grandes espelhos com molduras douradas, bebendo os fortes coquetéis preparados por Kalki, tive uma louca sensação de bem-estar. Alegrei-me por não estar entre os quatro bilhões de pessoas lá fora, que se aproximavam do grau máximo de entropia.
Falamos de roupas. Sim, roupas. Até mesmo Kalki emitia opiniões. Eu escutava, semicerrando os olhos até que os outros se tornaram contornos indistintos à luz das velas. Por um instante, tive a impressão de que havíamos recuado no tempo até outro século. O século XVIII. Logo Mozart começaria a tocar. Voltaire falaria. Eu teria oportunidade de praticar meu francês. Nem por uma vez sonharia com o século XX, o último século... os horrores...
Falamos de comida. De viagens. Kalki virou-se para mim. Fitei-o por entre as pálpebras semicerradas. Uma mancha azul e dourada.
— Você vai viajar em breve —- disse ele.
— Para onde? — indaguei. — Quando?
— Em junho, ou julho. Logo que as ruas estiverem um pouco mais limpas.
Bela maneira de colocar a questão, pensei.
— Para a Europa — disse Geraldine. — Eu também irei. Será minha primeira viagem até lá.
— Eu as acompanharei — informou Giles. — Europa, África, Ásia. Todas as partes que receberam o beijo de Shiva.
— Sim.
Deixei o monossílabo cair como uma pedra naquela conversa em tom de conspiração. Todos se calaram. Entreolharam-se. Percebi que haviam discutido muito a meu respeito. Teddy deveria ou não saber?
Foi Geraldine quem, afinal, introduziu-me ao Mestrado Perfeito.
— Temos sido injustos — disse ela, falando comigo e com os outros também.
— Sim.
Deixei cair o monossílabo uma segunda vez. Mais que nunca, sentia-me numa situação irreal.
Lakshmi pareceu genuinamente preocupada:
— Mas Teddy sabe o que aconteceu.
— Creio que não — disse Giles, olhando para Kalki, que, por sua vez, olhou para mim. A expressão de Kalki seria definida por certos autores, que já não se acham entre os vivos, como "esquisita". Ou obscura. Ou enigmática.
— Bem -— declarou Geraldine, de modo um tanto inesperado. — Foi você que fez, Teddy.
— Fiz o quê?
Olhei para Kalki, que me lançou um sorriso amistoso. Seu tom dourado à luz das velas parecia uma bandeira medieval.
Mas Kalki permaneceu calado. Foi Giles quem disse:
— Você, Teddy Ottinger, distribuiu ao mundo o beijo de Shiva.
Olhei para o espelho à minha frente, a fim de verificar se meu rosto estava adequadamente impassível. O espelho refletia ansiedade e não impassibilidade.
— Como? — perguntei, embora já conhecesse a resposta.
— Os lótus — respondeu Geraldine. — Você espalhou mais de setenta milhões. Eles fizeram o serviço.
Giles se ergueu, atravessando a sala. Estacou. Debatia-se entre duas paixões: cozinhar e explicar. Então, disse:
— Aquelas flores de papel estavam saturadas com bactérias que são imediatamente fatais aos seres humanos, bem como a algumas espécies de nossos primos macacos. Outros mamíferos, aves e sáurios são imunes a essa bactéria, ou praga, ou beijo de Shiva, que é conhecida pela nossa amiga patologista, agora sentada à seu lado, pelo nome de Yersinia entercolitica.
Giles farejou o ar. O aroma de stroganoff de carne chegava até nós. A comida estava pronta. Giles acelerou a explicação:
— A variedade comum, ou de jardim, da Yersinia é fatal, mas não invariavelmente. Além disso, não tem ação imediata, nem total. Durante a guerra do Vietnam, a clandestina Divisão de Guerra Química do Exército dos Estados Unidos conseguiu isolar uma variedade especialmente virulenta dessa bactéria, capaz de exterminar toda a vida humana na Terra. Tal descoberta não foi somente um feito extremamente significativo da Divisão de Guerra Química do Exército americano, como um grande triunfo do homem que realmente a desenvolveu, o Sargento J. J. Kelly.
Giles correu para a cozinha.
Lakshmi pousou a mão na de Kalki.
— Foi por isso que ele recebeu a Medalha por Serviço Relevante — disse ela, orgulhosa. — Na realidade, Jimmy foi o único sargento da Divisão de Guerra Química que recebeu uma condecoração tão honrosa.
A propósito, aquela foi a primeira vez que Lakshmi tratou Kalki por "Jimmy" em nossa presença.
— A pesquisa foi fascinante — disse Kalki, repentinamente alerta.
Todos nós ficamos atentos. Afinal, tínhamos em comum (seria a única coisa?) um fascínio por problemas técnicos, teóricos, empíricos. Não é por mero acaso que somos quem somos. Kalki disse:
— O Exército tinha um estabelecimento que era um sonho, nas proximidades de Saigon. Um laboratório de primeira. Pessoal de elite. Naturalmente, tudo era ultra-secreto porque, supostamente, nosso Exército não deveria dedicar-se à guerra bacteriológica. Mas é claro que se dedicava. De qualquer modo, em menos de seis meses consegui isolar a minha mega-variedade da Yersinia.
Imaginei Kalki vagando pelo mundo com um frasco cheio de um veneno fatal. Tive que tirar o chapéu para eles.
Kalki pareceu achar graça:
— Não. Eu não guardei comigo a variedade original. Não foi necessário. Uma vez que já conhecia o processo para isolá-la, recriei a bactéria em Katmandu.
— Não precisávamos muito — disse Lakshmi. — Seis onças bastavam.
— Seis gramas — corrigiu Kalki. — Isso foi fácil, porém. O mais difícil, a princípio, foi conseguir a diluição adequada. E, depois, a impregnação dos lótus de papel. Foi uma verdadeira dor de cabeça. Fui obrigado a fazer pessoalmente a maior parte do trabalho, num laboratório a bordo do Narayana. Giles fez o que pôde, mas não é muito bom em trabalhos manuais.
Geraldine fez um gesto como se me entregasse uma medalha, ou uma rosa.
— Contudo, o maior problema era a distribuição. Você cuidou disso para nós. Sem saber, é claro.
— Nada disso teria sido possível sem você, Teddy — disse Lakshmi, solene, amável. Eu me sentia simplesmente louca. — Se todas as partes do mundo não recebessem, simultaneamente, a bênção de Shiva, a era de Kali não terminaria de uma só vez, mas gradativamente.
— Isso foi o mais difícil de tudo — explicou Kalki. — No instante em que a variedade-mega da Yersinia se torna ativa, é imediatamente fatal, como já foi dito. Todavia, se diferentes pessoas fossem expostas a ela em ocasiões diferentes, sempre haveria uma possibilidade de surgir uma imunidade para os que fossem expostos por último. Portanto, meu principal problema era encontrar um meio de manter a bactéria inativa entre a data da distribuição e o dia 3 de abril. Solucionei o problema por meio de um escalonamento da intensidade de cada dose...
Giles anunciou o jantar.
Kalki sentou-se à cabeceira da mesa, com Lakshmi à sua direita e Geraldine à sua esquerda. Sentei-me à esquerda de Geraldine e Giles à direita de Lakshmi. Cito a disposição dos lugares porque é sempre assim que nos sentamos à mesa para as refeições e assim será para toda a eternidade. Namah Shivayah!
Todos concordaram em que o jantar estava excelente. Obedientemente, mastiguei e engoli. Sem sentir gosto. Mas tomei champanha. Tomei muito champanha.
— E foi assim, afinal, que você, querida Teddy, juntamente com o Garuda e os ventos predominantes naqueles dias, transformou todos os nossos sonhos em realidade — disse Giles, emocionado às lágrimas.
— Por quê?
Voltei aos monossílabos. Os outros pareceram não entender. Expliquei melhor:
— Por que não morremos, também?
Geraldine olhou para Giles:
— Ela não sabe?
Giles sacudiu a cabeça como o Dr. Ashok, num balanço grotesco, como se o pescoço de bebê fosse fraco demais para sustentar o córtex superdesenvolvido pela mãe natureza.
— Não. Pelo excelente motivo de que a segurança exigia o mais absoluto sigilo durante algum tempo. Absoluto sigilo: le mot juste. Agora, porém, querida Teddy, você já pode saber que cada um de nós é totalmente imune aos efeitos da Yersinia.
— Fomos todos vacinados — disse Geraldine, parecendo irritada com Giles por não me ter contado a verdade. — Através de inoculação.
Voltei à tona.
— Nunca recebi inoculação.
— Foi, sim, querida Teddy. Em Nova Orleans. Por mim. Procure lembrar-se. Acaba de recobrar os sentidos num quarto do Jefferson Arms, nas proximidades do complexo Watergate. Nota um pequeno hematoma na dobra do braço direito. Pergunta-me o que é aquilo. Eu respondo que lhe apliquei um sedativo. Bem, não foi um sedativo, mas a toxina anti-Yersinia, que provocou em você, devo confessar agora, uma reação quase fatal. Durante dois dias, esteve tão doente que cheguei a temer que talvez a perdêssemos. Que idéia horrível! Felizmente, porém, recobrou-se e... portanto, está aqui conosco.
— É uma alegria tão grande! — exclamou Lakshmi.
À luz das velas, parecia mais que nunca uma deusa pagã do amor que descesse à terra sob forma humana. Todavia, quando se congratulou comigo por ser uma das cinco únicas pessoas vivas que restavam no mundo, tive uma sensação de afogamento. Ouvi minha própria voz, como se saísse de dentro da água, indagar por que estava tão certa de que não havia outros sobreviventes. Tentei não ouvir (mas ouvi) a resposta.
— Estamos quase certos disso — declarou Giles, cuja cabeça interrompera o desagradável balançar. — Mas quase não basta. Para ter ainda mais certeza, vou todos os dias ao estúdio principal da NBC, no Rockefeller Center. Procuro captar sinais de rádio do mundo inteiro. Até agora, não houve o menor sinal. Pela primeira vez desde que Marconi inventou a telegrafia sem fio, não há uma só mensagem humana no ar.
— Como a Idade de Ouro começou depressa! — murmurou Lakshmi, com o olhar fixo em Kalki.
— Como a era de Kali terminou depressa! — disse Geraldine.
— Estou sonhando — declarou Kalki, olhando para mim. — Estou sonhando com um novo mundo, no qual nós somos as únicas pessoas.
— Por enquanto — disse Lakshmi.
Acho que, naquele momento, cheguei ao fundo do mar. Nada mais me lembro daquela noite.
Em julho último, o clima em Nova York esteve excepcionalmente bom. Por bom entenda-se tradicional. Não houve tempestades inesperadas. As anomalias climáticas da última década pareciam ter cessado por completo. Terá a era glacial (ou era da estufa) entrado em processo regressivo, agora que os vapores e fumaças produzidos pelo homem deixaram de poluir a atmosfera? Ainda é cedo demais para responder. Contudo, agora o céu está limpo e o clima do hemisfério norte aparenta uma mudança para melhor. Melhor para quem? Eis uma indagação difícil de responder. Estou estudando meteorologia.
Durante junho e julho, treinei Geraldine e Giles nos mistérios do DC-10. Embora eles aprendessem depressa, a idéia de voar pelo mundo inteiro com uma tripulação de amadores me causava uma certa intranqüilidade. Entretanto, eu não levara em consideração o fato de que, com a ausência de tráfego aéreo, as decolagens e pousos não constituem problemas. Por motivos óbvios, só decolo e pouso à luz do dia. Durante a maior parte do tempo, vôo sem piloto automático, com um mapa aberto sobre os joelhos, como Amélia costumava voar.
Um fato curioso: sempre que me aproximo de uma pista para aterrissar, ainda ligo o rádio e fico à espera de instruções que não chegam...
Kalki nos levou de carro ao aeroporto. A esta altura, já estamos acostumados aos veículos parados e às pilhas de roupas que contêm o que chamamos, neutramente, de "restos". Por volta do terceiro mês, os restos já não estavam podres e os ossos brancos começavam a aparecer. Posso... um termo, por favor, Weiss!... relacionar-me melhor com ossos do que com carne despojada. Afinal, podemos habituar-nos a tudo, inclusive ao horror de uma noite profunda, ao silêncio.
Confesso, agora, um momento de morbidez. No final de junho, obriguei-me a percorrer os apartamentos do Sherry- Netherland, a fim de verificar o que restava de tantas pessoas. A maioria delas se encontrava sentada diante dos aparelhos de TV. Assistiam a Kalki por ocasião do Fim. (Giles calculava que o último índice de audiência de Kalki fora 49,0 — um recorde absoluto. Só mesmo Giles pensaria num detalhe como esse.) Uma vez ou outra eu abria carteiras, examinava cartões de crédito. Não sei por quê. Talvez estivesse procurando algum conhecido. Como as pessoas costumam... ou melhor, costumavam... fazer numa festa oferecida por gente que não conheciam. Todavia, só reconheci um dos hóspedes do hotel: Ralph J. Damon, que fora vice-presidente da Lockheed. Eu o vira duas vezes, em exposições aeronáuticas. Era um chato. Por algum motivo, estava no chão de um armário embutido.
Entusiasmado, Kalki dirigia velozmente pelas ruas, ziguezagueando por entre os carros parados. Lakshmi estava furiosa, mas ele parecia uma criança com um brinquedo novo.
Para meu espanto, conseguimos chegar ao aeroporto sem sofrer um acidente. Indiquei a Kalki o DC-10 da Swissair que eu estivera usando.
É sempre uma sensação esquisita passar de automóvel pelo centro de uma pista de pouso, com aviões em ambos os lados, nas várias etapas de embarque e desembarque. Vários tinham sofrido desastres no pouso ou na decolagem, quando os pilotos morreram nos controles.
Lakshmi deu um beijo de despedida em cada um de nós. Kalki nos apertou as mãos.
— Entrem em contato conosco diariamente — instruiu ele. — Usem o aparelho.
Lakshmi e eu havíamos montado um dispositivo especial de comunicação, misto de telefone (o cabo internacional de telefone ainda estava funcionando) e rádio.
— Amanhã, mudaremos para o St. Régis — informou Lakshmi, decidida. Ela jamais gostara do Sherry-Netherland e, embora Kalki se opusesse à mudança, acabou prevalecendo a vontade dela.
— Lakshmi prefere ficar perto da Elizabeth Arden — comentou Kalki, sorrindo. — Isso, para não falar na Saks.
— Bem, de qualquer maneira você não ficará muito longe do que resta da Abercrombie & Fitch.
Desde o Fim, Kalki arrecadara uma enorme coleção de armas de fogo. Lakshmi não gostava. Ficava nervosa na presença de armas. Não conseguia compreender por que ele gostava tanto de praticar tiro ao alvo no Central Park. Felizmente, ambos chegaram a um acordo: Kalki não poderia atirar em criaturas vivas. As aves, lebres e esquilos eram alvos proibidos. Como dizia Lakshmi:
— O mundo agora pertence a eles.
— De qualquer maneira, o número de telefone continuará o mesmo, onde quer que formos morar — disse Kalki. Todos pareceram achar graça. Pelo menos, todos riram.
Embarcamos. Decolei. Kalki e Lakshmi acenaram para nós. Eu sabia que ambos desejavam vir conosco, mas não era possível. Se todos morrêssemos juntos num desastre, a raça humana se extinguiria para sempre. Na verdade, três quintos da população do mundo se encontravam a bordo daquele DC-10.
Fiquei nervosa por sobrevoar o Atlântico com uma tripulação inexperiente, mas tivemos sorte. O tempo esteve bom em todo o trajeto. A visibilidade estava excelente quando pousamos em Paris.
Tenho reações lentas... isto é, emocionalmente. Vivera inteiramente à superfície desde o Fim. Mantinha-me ocupada. Quase não pensava. Não sentia coisa alguma. Absolutamente nada. Não me permitia sentir. Recusei terminantemente qualquer tipo de recordações do passado. Não suportava a idéia de só encontrar uma coisa no caminho das recordações: ossos embranquecidos. Por um curto espaço de tempo, no Sherry-Netherland, pensei em suicídio. De que serviria, porém? A natureza da vida é viver. E eu estava viva. Não encontrei dificuldade para aceitar o papel que desempenhara no Fim. Uma vez que ignorava o que estava fazendo, não fora cúmplice de assassinato em massa. Quanto a Kalki e os outros... Como é possível julgar um juiz que também é carrasco?
Em Paris comecei a reagir... emocionalmente. A pensar. A sentir. Até mesmo a recordar. Quase de imediato, comecei a me desintegrar, sob o ponto de vista mental e emocional.
Antes, porém, descreverei pormenorizadamente o que fizemos, como se fosse o autor de Locus solus (depois de mim, alguém ainda lerá francês?).
Perto da pista de pouso, encontrei um Peugeot novinho em folha. Vazio, graças a Deus. E trancado. Abri a porta. Todos nós nos tínhamos tornado peritos em arrombar fechaduras. Força das circunstâncias... Abri o capô. Fiz uma ligação direta. O motor pegou. Deixei Giles tomar o volante.
— Já estive aqui antes — disse ele. — Uma cidade maravilhosa! Conheço cada palmo dela.
Duas horas mais tarde, estávamos em Versalhes. Giles apresentava milhões de desculpas. Tomei o volante. Parei na livraria mais próxima, arrombei a fechadura (em Paris, o Fim chegara às seis da tarde) e peguei um Guia Michelin e um mapa da cidade. Por algum motivo o número de incêndios fora menor em Versalhes e Paris que em Nova York.
Alegrei-me por estar ocupada. Por usar as mãos. Por não pensar. Todavia, isso não durou muito. Na verdade, terminou
quando atravessávamos o Pont-Neuf e avistei à minha frente os jardins verdejantes das Tulherias, em pleno viço de verão. Comecei a tremer. Felizmente, Giles e Geraldine estavam olhando para o Louvre, que Giles conseguira identificar corretamente.
Parei o Peugeot em frente à estátua dourada de Joana d'Arc, na esquina da Rue de Rivoli. Quando saltamos do carro, fiquei impressionada com o perfume. Livre do monóxido de carbono produzido por um milhão de veículos, o ar de Paris parecia o de um imenso jardim. Ficamos maravilhados. Respiramos profundamente. Então, Giles começou a espirrar.
— Sofro de alergia a rosas — informou. E continuou a espirrar até decolarmos outra vez.
Todavia, nem mesmo Giles e seus espirros conseguiram estragar para mim a beleza de uma cidade com a qual eu sonhara desde a infância.
De braços dados, Geraldine e eu passeamos pelos jardins das Tulherias. Embora os jardins estivessem mal cuidados e necessitassem de capina, as rosas floresciam como se ainda houvesse na terra jardineiros atentos, prontos a capinar, podar, cuidar. Giles nos deixou nos jardins, pois queria apanhar charutos na Dunhill.
Ficamos muito felizes sem ele. Colhemos rosas. Depois, sentamo-nos num banco e olhamos ao longo da Champs- Élysées na direção do Arco do Triunfo. O ar era delicioso. O panorama, maravilhoso. Embora me faltem adjetivos, quero dizer que estava tudo lindo, a despeito dos despojos. Vimos, mas não tomamos conhecimento deles, automóveis enferrujados, roupas rasgadas, ossos esbranquiçados.
— É lindo como eu imaginava — disse Geraldine.
— Sim — concordei.
Então, contei-lhe tudo. Como eu adiara a visita a Paris até estar apaixonada. Infelizmente, o amor e Paris jamais haviam coincidido. Agora, era tarde demais para Paris, embora não para o amor. Prorrompi num pranto ignominioso. De auto- comiseração.
Geraldine mostrou-se terna, carinhosa. Acho que chorou, também. Sei que ficamos abraçadas durante longo tempo, só nos separando ao ouvirmos um espirro vindo da arcada de um café na Rue de Rivoli.
— Sugiro ficarmos no Ritz — disse Giles, cujo charuto formava círculos de fumaça no ar perfumado de rosas. — Fica logo depois da esquina. E, naturalmente, todo mundo se hospeda lá.
Achou muita graça no comentário. Eu não.
— Além disso, está próximo de todas as lojas, museus... — tagarelando, Giles nos levou até à Place Vendôme.
Sem parar de falar, escoltou-nos até o saguão do Ritz, após passarmos pelos despojos do porteiro uniformizado, na calçada. Lembrei-me de Proust. De Albertine.
Ainda falando, Giles nos conduziu ao bar do Ritz.
— O bar mais exclusivo de toda a Europa, meninas!
Indicou-nos cada mesa onde vira pela primeira vez Hemingway, Marlene Dietrich, os duques de Windsor.
Fiz o possível para afastar de minha mente o passado. Durante algum tempo, o possível foi suficiente. Giles foi preparar os martínis, enquanto Geraldine e eu demos uma busca na copa, encontrando algumas latas de castanhas de caju e batatas fritas em pacotes. Limpei uma mesa de canto. O bar estivera lotado. Eram seis horas da tarde e tout Paris estava tomando aperitivos antes do jantar. Então, lembrei-me de que de cinq à sept era o horário em que os parisienses faziam amor e os americanos se embriagavam. Verifiquei passaportes e carteiras de identidade. Eu tinha razão: quase todos os últimos fregueses do bar do Ritz às seis horas da tarde do dia 3 de abril eram estrangeiros.
Pensei nos franceses que estavam fazendo amor quando o Fim chegara. Comecei a enlouquecer outra vez. Fui salva por gim puro, sem gelo. A eletricidade fora desligada para sempre na Cidade Luz. Mesmo assim, senti-me grata pela bebida. Senti- me grata até mesmo por Giles. Ele não tinha imaginação. Geraldine tinha. Sabia o que eu estava passando. Lançava-me olhares preocupados.
— Nunca tive dinheiro para freqüentar o Ritz quando era jovem — disse Giles, meio embriagado. — Foi logo após a Segunda Guerra. Pouco antes de eu ingressar na faculdade de medicina. Vim a Paris no verão de 48. Costumava ficar ali na ponta do balcão, tomando água mineral e observando toda aquela gente famosa. É uma pena que vocês, meninas, tenham perdido aquela época.
— Ora — disse eu —, antes tarde do que nunca.
Aquilo me pareceu mais agressivo do que eu desejava.
Giles, deixando de lado a tagarelice, comentou:
— O passado é uma ilusão. Um cenário pintado. Nada mais que isso.
— Estas coisas não são ilusórias — repliquei, tocando a coqueteleira de cristal Baccarat sobre a mesa. A mesa. Meu copo de cristal.
Geraldine mudou de assunto:
— Vamos ver se há ainda água nos banheiros. Se não houver, vou tomar um banho no Sena.
Felizmente, ainda restava água suficiente no encanamento para que cada um de nós tomasse um banho frio de chuveiro. Depois, arrecadamos velas para iluminar nossos quartos. Cada um de nós trouxera uma lanterna elétrica. A logística da sobrevivência num mundo morto é complexa e, graças a Deus, nos mantém ocupados.
Giles insistiu para que fôssemos ao Maxim's. Ao atravessarmos a Place de la Concorde, percebi que não havia cidade tão linda como Paris, mesmo morta.
Chegamos ao Maxim's na hora do crepúsculo. Havia luz natural apenas suficiente para iluminar o salão de jantar no estilo Belle Époque. Embora Giles quisesse preparar o jantar para nós na famosa cozinha, com o que conseguisse encontrar por lá, Geraldine e eu fizemos questão de ir a outro lugar. Aquele luxo empoeirado fazia lembrar a tumba de Tutancâmon.
Na Place de la Madeleine, estudamos o Guia Michelin. O sol poente lançava sobre a cidade uma luz cor-de-rosa. La vie en rose, enfin. Escolhemos um restaurante de uma estrela da lie St.-Louis; era famoso por seus pratos de caça e, como lembrou Giles, a carne de caça se conserva sem refrigeração. O restaurante era pequeno, encantador. As mesas estavam postas para jantares que jamais se realizaram. As flores mortas nos vasos eram a única indicação de que algo acontecera.
Giles preparou um esplêndido jantar com faisão e o conteúdo de várias latas de conservas e potes de vidro. Tomamos, os três, meia dúzia de garrafas de vinho borgonha. Admiramos a vista de Notre-Dame ao luar. Observamos o rio cinza-prateado correr abaixo da janela. Durante o café, uma barcaça vazia passou, arrastada pela correnteza.
Sobre que conversamos? Não me recordo — o que significa que não tocamos no passado. Com exceção de Jason McCloud. Não sei como, o nome dele foi mencionado. Apesar de ser um agente triplo, prestara bons serviços a Kalki. Assassinara o ator no Madison Square Garden — não para a Chao Chow, mas para Kalki. E Giles lhe pagara o serviço naquele último dia, a bordo do Narayana. Indaguei por que Kalki desejara que o público acreditasse que ele fora assassinado.
Giles acendeu um comprido charuto cubano (durante quanto tempo ainda durarão?) e respondeu:
— Porque se não acreditassem que Kalki estava morto naquela ocasião, ele poderia ser realmente assassinado pela Chao Chow. Além disso, Johnny White estava chegando perto...
Geraldine, percebendo que eu não estava aceitando de bom grado aquela argumentação, interpôs:
— O mais importante, porém, era a necessidade de um novo teste. Os que não acreditassem no retorno de Kalki estariam perdidos.
— Os que acreditaram ficaram perdidos, também.
— Não — declarou Geraldine. Seu tom era decidido. Creio que acreditava mesmo no que dizia. — Eles voltarão, sob outras formas...
Deixei o assunto de lado. Não era o meu tópico favorito. Giles interveio:
— Um passeio de carro ao luar — sugeriu. — De um extremo a outro de Paris!
Embriagados, percorremos as ruas desertas. A lua parecia soltar mel. O ar... as rosas... O silêncio era terrível. Ao luar, a cúpula dos Inválidos me pareceu o topo de uma caveira, com uma seringa cravada no centro.
De volta ao hotel, Giles sugeriu que eu tomasse o último drinque da noite em sua companhia. Estou razoavelmente segura de que ele me estuprou em Nova Orleans. Sinto-me razoavelmente segura de que não haverá uma repetição consciente do ato. Despedi-me dele e fui tomar o último drinque da noite com Geraldine. À luz de velas, tomamos champanha sem gelo. Através da janela, o Arco do Triunfo erguido em honra de Napoleão pareceu-me um símbolo muito significativo.
Revelei a depressão que me dominava. Confessei-me aterrorizada pelo que acontecera. Geraldine se mostrou compreensiva, solícita. Comportou-se também (como diria H. V. Weiss) como um osso duro de roer.
— Vamos encarar as coisas do seguinte ponto de vista — disse ela, quando, afinal, parei de falar: — Eles tiveram um fim maravilhoso. Rápido, indolor. O melhor de tudo é que nada resta de humano para lamentá-los.
— Exceto nós.
— Não somos verdadeiramente humanos.
— Eu me sinto muito humana.
— Não. Você é um Mestre Perfeito.
— Não sei o que é um Mestre Perfeito — repliquei. Também sou capaz de ser áspera. — Não sei quem é Kalki. Além do assassinato em massa...
Geraldine ergueu-se de um salto, furiosa.
— Não diga isso! Ele não é assassino, porque... é ele! É isso aí. Tudo estava predeterminado desde o início dos tempos. Ele veio terminar o mundo. E foi o que fez.
— Terminou o mundo — concordei.
— E começou outro.
Eu não acreditava que Kalki tivesse recebido ordens, desde o início dos tempos, para terminar ou começar alguma coisa, mas tinha absoluta certeza de que Geraldine e eu estávamos fadadas, desde o início dos tempos, a formar um par perfeito. E logo nos apoderamos de um canto do Jardim do Éden. Naquela noite, fizemos amor pela primeira vez.
Depois, adormecemos. Acordei de madrugada. Pela primeira vez, compreendi o que tinha ocorrido. Dei-me conta de que estivera num estado catatônico desde abril. Não sabia se enlouqueceria ou, ainda pior, já enlouquecera e não sabia.
Também pela primeira vez, pensei em Arlene. Comecei a tremer. Obriguei-me a refletir que ela morrera depressa, sem sofrimento. O adiamento da leucemia não é nada, comparado à missão implacável. No cômputo geral, Arlene tivera sorte. Não fora obrigada a internar-se no pavilhão de desenganados do Hospital Cedars-Sinai. Mesmo assim, senti-me arrasada.
Estava tão feliz por continuar viva. Por estar com Geraldine... que jamais tivera antes um caso de amor. Sempre tivera medo de experimentar com mulheres; sempre fora inibida demais para tentar com homens. Ou seria o inverso? O fato é que esperara por mim durante toda a sua vida. E eu por ela.
No dia seguinte, enquanto Giles procurava detectar sinais de rádio, Geraldine e eu fomos passear, fazer turismo. Na Sainte-Chapelle, os vitrais do teto ao chão pareciam incendiar o ambiente, combinando com nossa disposição de espírito... e corpo. Fizemos amor num recinto secreto de onde Luís XI costumava assistir à missa. Quando eu a tive em meus braços... tout le reste est littérature. Verlaine.
Escala seguinte: a Catedral de Notre-Dame. Na silenciosa nave cinzenta, perguntei a Geraldine por que motivo eu fora escolhida para sobreviver. Quando ela começou a arenga de costume a respeito dos Mestres Perfeitos, interrompi:
— Esse não é o verdadeiro motivo.
Geraldine subiu ao trono do bispo.
— Kalki precisava de um piloto — declarou.
Estávamos progredindo.
— Certo. Isso eu percebi em Katmandu.
A luz filtrada pelos vitrais cor-de-rosa tingia o chão. Para variar, o ambiente era propício.
— Todavia o mundo está cheio... ou estava... de pilotos — insisti.
Geraldine encarou-me demoradamente. Examinou meu rosto como se fosse um barômetro... caindo? Não faço idéia do que ela desejava ver em mim que já não tivesse visto antes. Então, fez a primeira pergunta:
— Qual é a única coisa que você, Giles e eu temos em comum?
— Somos Mestres Perfeitos.
— Além disso?
Tentei desesperadamente encontrar uma resposta, mas não consegui. Contudo, devia ter adivinhado. Geraldine explicou claramente:
— Eu não posso ter filhos. Giles sofreu uma vasectomia. Você, como todos sabem, ficou além da maternidade ao cauterizar as trompas.
Não entendo por que demorei tanto a perceber quando, subliminarmente, deveria saber desde o início.
Geraldine fez a segunda pergunta:
— O que Kalki e Lakshmi têm em comum?
— Podem ter filhos — respondi, compreendendo tudo.
Fitei os losangos de luz projetados no chão. Minha mente estava vazia.
— Logo antes de partirmos, Giles examinou Lakshmi. Ela está grávida.
A enormidade do que Kalki fizera era superada pelo que ainda pretendia fazer. Completei o catecismo:
— Ele tenciona ser o pai da nova raça humana.
— Sim — respondeu Geraldine, parecendo muito feliz. — E Lakshmi será a mãe. E nós seremos os mestres, os professores.
— Mas... será geneticamente possível?... E se...
Não consegui conceber totalmente aquilo. Tentei lembrar- me das aulas de genética do ginásio. As leis de Mendel. Ainda feminino? Existe um grande risco.
— E se as crianças forem todas do sexo masculino? Ou feminino? Existe um grande risco.
— Não existe risco algum. Afinal, sou uma boa geneticista.
Geraldine, geneticista e bióloga. Lakshmi, física e mãe. Giles, médico. Teddy Ottinger, pilota de testes e engenheira. Kalki, destruidor... e, agora, criador. Indubitavelmente, fôramos escolhidos.
— Você é capaz de predeterminar o sexo das crianças?
— Sim. Além disso, também sou capaz de reduzir os perigos da consangüinidade. Planejamos tudo cuidadosamente. A primeira criança será uma menina. Será uma segurança no caso de acontecer algo a Lakshmi — Deus nos livre disso! Todavia, se Lakshmi morrer, dentro de mais ou menos catorze anos Kalki poderá reproduzir com sua própria filha. Isso apenas na pior das hipóteses. Se tudo correr de acordo com os planos, nos próximos doze anos Kalki e Lakshmi gerarão três meninos e seis meninas. Essas novas crianças repovoarão o mundo. É espantoso, Teddy.
Eu demonstrei meu espanto limitando-me a fitá-la enquanto tentava calcular mentalmente o tempo necessário para que três machos e seis fêmeas produzissem um milhão de indivíduos. Mais tarde, fiz o cálculo com uma régua de cálculo: um pouco menos de dois séculos.
Geraldine desceu do trono do bispo.
— Do ponto de vista biológico, formam um par perfeito.
— Contudo, casais perfeitos podem produzir monstros perfeitos.
— Essa é a minha missão: controlar a programação genética. Nestes últimos anos ocorreram todos os tipos de descobertas importantes... — Geraldine beijou-me impulsivamente. — Não somos as pessoas mais felizardas que já existiram na terra? Podemos ser os mestres da nova raça humana!
Não tive resposta. Voltamos ao Louvre através das ruas silenciosas. Cães e gatos nos observavam curiosamente; tinham também um aspecto selvagem. Acostumaram-se com rapidez a um mundo desprovido de seres humanos. Giles insistia em que andássemos todos armados.
— Hidrofobia — disse ele. — Pode e deve haver uma epidemia, agora que ninguém está vacinando os animais.
Naquele dia em Paris, porém, nenhum cão ou gato se aproximou de nós.
Quando entramos no Louvre, perguntei a Geraldine se ela realmente acreditava que Kalki fosse deus.
— Sim — respondeu ela, franca, fitando-me nos olhos.
— Nunca duvidou dele?
— Não.
— É difícil acreditar nisso.
Geraldine apontou para os silenciosos jardins das Tulherias, para a deserta Champs-Élysées, mais além.
— Kalki fez tudo isso parar. De que outra prova você necessita?
— O Sargento J. J. Kelly, do Corpo Médico do Exército dos Estados Unidos, também poderia fazer a mesma coisa.
— Não — replicou Geraldine. — Isto é obra de Vishnu. De mais ninguém.
Acreditei em Geraldine. Isto é, acreditei que ela realmente cresse que Kalki fosse deus; portanto, uma fé religiosa combinada com uma pura paixão pela genética fizeram que ela auxiliasse na eliminação de uma raça humana defeituosa. Preferi não julgar. Além disso, em Paris eu estava incapacitada de fazer qualquer tipo de julgamento.
O bem e o mal deixam de ter significado quando não existe uma balança humana para pesar qualidades tão eminentemente humanas...
Nosso último dia em Paris foi gasto nas "compras", como dizia Geraldine, ou no "saque", como preferia dizer Giles. A ilegalidade sempre o excitava. Em compensação, nada existe de ilegal em pegar o que não tem dono...
Geraldine e eu percorremos os estabelecimentos dos costureiros famosos. Escolhemos roupas para nós e, também, para Lakshmi. Devo confessar, com remorso, que tive muito prazer naquilo. Estava em Paris. Apaixonada. Além disso, quase me matei quando explodi o cofre da Cartier. Calculei mal a carga de dinamite necessária. Felizmente, escapei com apenas um hematoma no olho.
O conteúdo do cofre da Cartier bem valia um olho roxo. Eu nunca ligara muito para jóias. Suponho que por pensar que o uso de jóias seria uma traição à minha atitude, uma concessão ao inimigo que eu deixara para trás ao passar além da maternidade. Agora, porém, sou viciada em jóias. Geraldine também.
Reuni um conjunto de rubis enormes. Cada pedra era do tamanho de um ovo de faisão. Geraldine apoderou-se do colar de esmeraldas da Imperatriz Josefina, uma jóia maravilhosa, de tirar o fôlego. Pegamos também vários colares de pérolas róseas, cinzentas e brancas para Laksbmi.
— Ficarão bem para ela — disse Geraldine, cujo conhecimento de jóias era surpreendente. Afinal, ela não viera de San Diego, mas direto das páginas de Town & Country. — Lakshmi tem o tipo de pele adequado. As pérolas precisam respirar, senão morrem. Algumas pessoas têm o tipo exato de pele para usá-las. Outras não. Certa vez, um colar de pérolas Teclas cometeu suicídio no meu pescoço.
Enquanto Geraldine e eu fazíamos nossas "compras", Giles arranjou um caminhão e o estacionou junto à porta principal do Louvre. Com algum auxílio de nossa parte, arrecadou uma coleção maravilhosa de quadros, inclusive a Mona Lisa.
— Jamais gostei deste quadro — declarou ele. — Mas ficará bem no banheiro das senhoras. É o que chamam de assunto para comentários...
Fiz minha escolha de quadros no Jeu de Paume, ali perto. Peguei o melhor que ali existia de Bonnard, Cézanne, Manet.
Se não fosse por Geraldine, eu me teria suicidado em julho último, em Paris. Em compensação, se não fosse por Geraldine, talvez eu nunca tivesse despertado para o que acontecera.
Falávamos diariamente com Kalki e Lakshmi, que se haviam mudado para o St. Régis. Ainda estavam resolvendo se iam ou não passar o inverno no sul. Kalki desejava radicar-se em Nova Orleans, mas Lakshmi era contrária.
— Esperaremos até vocês voltarem — disse ela. — Então, colocaremos o assunto em votação. De qualquer modo, tenho certeza de que ninguém vai querer passar o inverno em Nova York.
Em todos os cinco continentes que visitamos não encontramos sinais de vida humana.
À medida que a sucessão de cidades se confunde em minha mente, lembro-me principalmente dos aeroportos. E dos veículos abandonados. E das vacas em Calcutá. As vacas tinham tomado conta da cidade. Dormiam no meio das ruas, pastavam nas praças e parques. Achei estranho que preferissem permanecer na cidade, quando os campos estavam inteiramente à sua disposição. Sem dúvida, são também vítimas do hábito.
Uma tribo de macacos mal-humorados se instalara no terminal do aeroporto de Calcutá. Não pareceram satisfeitos ao ver-nos chegar. Obviamente, tinham percebido o fato de que seu primo e velho inimigo Homo sapiens morrera misteriosamente; se pudessem pensar, certamente ficariam felizes por serem (com exceção de nós cinco) os únicos primatas quase pensantes na face da terra. Segundo Geraldine, o córtex cerebral dos macacos é quase idêntico ao nosso. Se a evolução os tivesse dotado de laringe, conseguiriam falar.
Num impulso, roubei dois macacos-bebês. Devia estar ficando louca. Detestava a maternidade. Agora, estou criando Jack e Jill (como Geraldine os batizou). Não existe um meio satisfatório para decifrar nossa programação genética. Aparentemente, a maternidade estava tão arraigada em meu subconsciente que, embora pudesse ser extirpada fisicamente, permaneceria arquivada psiquicamente.
Em Hong Kong, colecionamos jade. Houve discussões, principalmente com Giles. Quem vira em primeiro lugar aquela peça de jade imperial? Giles era excepcionalmente aquisitivo. Uma personalidade anal, segundo Geraldine. Percebi que ela não gostava dele. Não obstante, jamais o criticava diretamente. Quando lhe contei que julgava que Giles me estuprara em Nova Orleans, ela ficou em dúvida.
— Não creio que tivesse tempo para isso — declarou. — Afinal, enquanto você estava inconsciente ele teve que examiná-la ginecologicamente, a fim de certificar-se de que é realmente estéril.
Isso explicava as dores na região pélvica. Fiquei devidamente arrepiada. Se eu fosse fértil, não seria imunizada contra a bactéria fatal. De repente, o estupro me pareceu trivial...
Em Hong Kong, notamos o que posteriormente verificamos tratar-se de um fenômeno mundial. Após milênios de clandestinidade, os ratos saíram às ruas. Eram atrevidos. Perigosos, também. Contudo, a mãe natureza sempre dá um jeito de obter um equilíbrio sangrento. Em pouco tempo as aves carnívoras se juntaram aos cães e gatos e a população de ratos diminuiu.
Com uma câmera cinematográfica apanhada em Stuttgart, Geraldine rodou quilômetros de filmes. Principalmente de cães e gatos comendo ratos. Como cientista, ficou fascinada.
— Poderemos ver de que maneira a natureza mantém o equilíbrio ecológico. Além disso, somos os primeiros seres humanos em situação de observar o comportamento das demais espécies sem a perturbadora presença do homem.
— Pobre Claude Lévi-Strauss — comentei. — Estou certa de que daria o braço direito para estar aqui conosco.
Creio que Geraldine não achou graça.
Em Sydney, os animais domésticos pululavam nas ruas. Galinhas por toda parte. Em conseqüência, os predadores que gostavam de galinhas também estavam em evidência. O gado pastava na praça em frente à Ópera. Geraldine filmava e fazia anotações. Giles colecionava, colecionava. Eu pilotava o avião.
O céu sobre Los Angeles era da cor exata de uma água- marinha. Nada de neblina, de poluição. Nada de nada. Eu não queria pernoitar ali, mas Giles insistiu. Ele queria também visitar o Pólo Bar, no Beverly Hills Hotel. Em honra aos velhos tempos. Acompanhei-o, a contragosto.
Ao entrarmos no hotel, lembrei-me de Morgan Davies. De Arlene. De Earl Jr. e das crianças. Comecei a desmoronar outra vez. Então, Geraldine pegou meu braço. Reagi um pouco. Sob certo aspecto, a característica de totalidade do Fim tornava a situação suportável. É impossível lamentar o mundo inteiro. O luto só se aplica a algumas pessoas.
Giles preparou coquetéis. Estavam deliciosos. Por algum motivo, a eletricidade ainda funcionava em Beverly Hills e encontramos gelo. Uma vez que o Fim ocorrera em Los Angeles às nove da manhã, horário do Pacífico, não havia fregueses no bar. O restaurante ao lado, porém, estava cheio dos despojos de quem tomava o café da manhã enquanto lia os jornais, fechava negócios, planejava minisséries de TV que, agora, jamais seriam filmadas.
Naquela noite, ficamos chocados com o que nos pareceu, a princípio, o retorno ou ressurreição da população humana. As lâmpadas de ruas e praças se acenderam. De Beverly Hills a Brentwood, um brilho contínuo. Então, percebemos que as luzes públicas se acendiam automaticamente. Enquanto isso, a intervalos regulares, chuveiros de irrigação continuavam a molhar o que antes eram jardins gramados e agora constituíam matas verdejantes.
Do Restaurante Bistro, ligamos para Kalki e Lakshmi, em Washington, D.C.
— Estamos na Casa Branca — anunciou Lakshmi, entusiasmada. — Moramos aqui. É maravilhoso.
— E conveniente — disse Kalki.
— E confortável — completou Lakshmi. — Vocês vão adorar!
— Além disso, tem o melhor sistema de segurança — acrescentou Kalki.
Eu ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, mas a ligação foi cortada.
Passamos a noite no Beverly Wilshire Hotel. Tive um acesso de choro. Geraldine foi uma verdadeira bênção para mim.
Na manhã seguinte, fomos de carro para o aeroporto. Então, notei mais um fenômeno: para deleite de Giles, Hollywood fora invadida por aves tropicais.
— Deve ter havido um furacão — disse ele. — Não há outra explicação. O vento as trouxe para cá dos... Olhem! Ali está um Conurus patagonus! É muito raro.
Giles estava ao volante.
— Olhe para a frente! — advertiu Geraldine, que sempre fora uma passageira nervosa, ainda mais agora, que dirigir é arriscado, pois as ruas do mundo inteiro mais parecem terrenos de ferro-velho, com carros enferrujados espalhados por toda parte.
— Você deve sentir falta da loja — disse eu a Giles, com a intenção de fazê-lo sofrer.
— Sinto, sim — respondeu ele. — E me arrependo de não ter acompanhado vocês quando fizeram a ronda dos zôos. Poderia ter ido a Nova Orleans, salvar minhas aves. Pobrezinhas.
Então, acrescentou:
— Pobre Estelle.
Geraldine e eu trocamos um olhar de espanto. Giles possuía uma faceta de ternura...
Fiquei satisfeita por partir de Los Angeles, deixando para trás as aves coloridas e as lembranças sombrias.
Na tarde do dia 30 de julho, chegamos de carro ao portão principal da Casa Branca. Kalki e Lakshmi se encaminharam para nós, de mãos dadas como recém-casados. Fomos recebidos tão calorosamente quanto estava o dia, que parecia um forno. Washington é uma cidade tão tropical quanto Nova Orleans.
— Que vamos fazer sem ar condicionado? — perguntou Giles, que detesta o calor quase tanto quanto eu.
— Temos condicionamento de ar — disse Lakshmi. Num sari verde-piscina, lembrava a Lakshmi de Katmandu.
Kalki, porém, era pós-Katmandu (Vaikuntha?); usava bermudas e uma camisa de pólo.
— A Casa Branca tem gerador próprio — disse ele. — Portanto, temos toda a eletricidade de que necessitamos. Também verifiquei a companhia de eletricidade. Se desejarmos, há combustível suficiente para iluminar esta parte da cidade durante...
Foi interrompido por um formidável rugido vindo do outro lado da Pennsylvania Avenue. Voltamo-nos. Na orla do Parque Lafayette, dois leões nos fitavam com curiosidade.
— Do zôo — disse Kalki, num tom azedo. — Graças a Lakshmi.
— São perfeitamente inofensivos — afirmou ela.
— Não aposte nisso — replicou Kalki, sugerindo que todos andássemos armados. — Para qualquer eventualidade — concluiu.
— Sempre andamos armados — disse Giles.
Um dos primeiros filmes a que eu assistira fora Annie, pegue a arma. Agora, Teddy também tinha uma arma. Sempre detestei violência. Morte. Bem...
Lakshmi tinha paixão por todos os animais, incluindo os dois macacos que eu trouxera da índia. Beijou a ambos. Lembrou-lhes a antiga aliança deles com Rama na guerra contra o rei-demônio. Os macaquinhos pareciam espantados, mas gostaram dela.
Ao contrário de Kalki, Lakshmi não tinha medo dos leões e outros predadores que andavam soltos pela cidade.
— Só atacam quando estão amedrontados ou famintos. E, agora, nunca ficam famintos. Além disso, gostam de nós. Isto é, estão acostumados a que as pessoas cuidem deles. É por isso que gostam de ficar perto de nós. Até o frio chegar; então, irão para o sul. Não se preocupe, Giles — Lakshmi percebeu que Giles não era amante de animais. — Não podem passar pelo portão.
Nossa primeira noite na Casa Branca foi... como direi?... memorável. E confortável. Tínhamos luz elétrica. E também leite fresco, manteiga, ovos, legumes e frutas.
Lakshmi preparou um jantar delicioso, que comemos no Salão de Jantar Oficial.
Quando comentei que a mansão estava impecavelmente limpa e arrumada, Kalki assumiu todo o crédito:
— Nunca trabalhei tanto. Lembram-se de toda aquela conversa fiada a respeito de como o presidente reduzira o número de empregados da Casa Branca? Pois nunca vi tantos despojos...
— Ora, Jimmy, não sabemos ao certo quais eram os empregados da Casa Branca e quais eram os turistas, pois 3 de abril foi dia de visitação pública.
Lakshmi gostava do último presidente. Na verdade, dentre nós cinco, era a única que se interessava por política, conseqüência de ter sido criada na casa de um traficante de influência em Washington.
— Bem, de qualquer maneira, limpamos tudo e aqui estamos! — disse Kalki, totalmente feliz, à cabeceira da mesa.
Por detrás da cadeira de Kalki havia uma lareira sob cujo consolo estava gravada uma citação de John Adams, expressando a esperança de que só "Homens bons residam nesta casa". Ultimamente, a ironia me tem penetrado na alma como um prego enferrujado...
Kalki nos contou a respeito da última reunião do Conselho de Segurança Nacional.
— Lá estavam todos eles, sentados à grande mesa da Sala do Gabinete. O presidente, os generais, o chefão da CIA. Encontrei até mesmo meu antigo chefe da Divisão de Guerra Química. Tinha consigo um longo memorando sobre guerra biológica, que jamais chegou a ler para os outros. Mas eu li. Coisa terrível. Um supergás que atuava sobre o sistema nervoso. Dez novas bactérias tóxicas. Algumas delas, inacreditáveis. Temos que tirar o chapéu à Divisão de Guerra Química. Progrediram muito desde a minha mega-Yersinia.
— Conte a Teddy sobre a última versão da bomba de nêutrons — disse Lakshmi, a quem eu mencionara a mancada do Senador White sobre o modelo B. — Chamava-se N-C. Uma coisa horrível.
Kalki assentiu.
— Tenho os planos da bomba, embora não consiga enten¬der coisa alguma deles. Não é minha especialidade. Você talvez os compreenda — olhou para mim. — Mesmo assim, pela transcrição da reunião, sei o que a N-C é capaz de fazer. Aparentemente, tudo que estivesse nas imediações do local de impacto ficaria exposto a dez mil rads. Não se pode obter algo mais letal. Depois, haveria radiação. Todavia, sempre que o presidente indagava a respeito da radiação, os generais mudavam de assunto. A resposta está em outro memorando que não foi lido na reunião. A radiatividade perduraria pelo menos mil anos. Assim, desde que um número adequado de bombas N-C explodissem ao mesmo tempo, o mundo inteiro ficaria contaminado e nada conseguiria sobreviver.
— Tem certeza? — Geraldine, ao contrário dos demais, sempre gostara da idéia da bomba de nêutrons. Convencera-se de que era uma arma tão segura quanto alegava o Pentágono. Sob certos aspectos, ela é muito ingênua. — Isto é, como pode estar tão seguro de que haveria um número suficiente de bombas N-C a serem explodidas num dado momento para surtir tal efeito?
— Porque estavam prontos para fazer a experiência — respondeu Lakshmi. — Esperavam apenas o próximo "ponto crítico". Provavelmente a África.
Geraldine insistiu:
— Se usassem meia dúzia de bombas como medida preventiva, a radiação seria mínima.
— Empregariam muito mais que meia dúzia — afirmou Lakshmi, muito séria. — Os russos já tinham desenvolvido sua própria versão da bomba N-C. Também aguardavam uma oportunidade para testá-la. De acordo com as investigações da CIA, os soviéticos esperavam confrontar-se conosco na África.
Kalki sorriu.
— Sabem, creio que fomos injustos com a CIA. Ela teve o bom senso de ter um pavor mortal da bomba N-C. Advertiu que esta não deveria ser empregada, mas o Pentágono estava louco para arranjar uma desculpa que justificasse seu uso. E o presidente achava que os russos recuariam, como aconteceu no caso do bloqueio de Cuba. Quando os soviéticos recuassem, ele se tornaria um herói nacional e ganharia as eleições com um pé nas costas.
— Segundo a CIA, porém, os russos não recuariam — disse Lakshmi, estremecendo. — Foi por um triz.
Giles se mostrou solene:
— Como foi profetizado, Vishnu chegou e nos salvou para o ciclo seguinte.
A arca de Noé, pensei com meus botões. Estamos a bordo da arca de Noé e o dilúvio continua a cair.
O prato principal foi peixe, pescado por Kalki no rio Potomac, ali perto.
— Comemos peixe diariamente — explicou Lakshmi. — Kalki detesta matar animais, até mesmo galinhas.
— Neste caso, meu caro Kalki, serei não apenas seu médico e Mestre Perfeito, como também açougueiro da Casa Branca.
Como Giles é tão bom açougueiro quanto cozinheiro, sempre comemos bem quando ele se encarrega da cozinha da Casa Branca.
Depois do jantar, Lakshmi nos conduziu ao Salão Vermelho. Ali, apresentamos nossos presentes. Lakshmi ficou encantada com as pérolas. Kalki gostou de um complicado relógio chinês que Giles encontrara em Tóquio, no Palácio Imperial. O relógio mostrava não só as horas em todas as partes do mundo, como também registrava as posições da Lua e das estrelas.
Bebemos champanha demais e fizemos piadas a respeito da suposta austeridade e abstêmia do último presidente.
Kalki estivera lendo a correspondência particular do presidente. Aparentemente, Morgan Davies tinha razão. O vice-presidente ia ser deixado de lado, em favor de Teddy Kennedy (Kalki desconfiava, mas não tinha certeza). Discutimos o futuro político de Kennedy, até que Geraldine comentou:
— Tudo isso terminou.
Terminou mesmo. Para sempre. Acho difícil acostumar-me à idéia de que tudo esteja terminado. Difícil... eis um termo fraco demais para definir o que sinto.
Giles olhou para Lakshmi:
— Como vai a minha paciente?
Lakshmi sorriu:
— Nunca estive tão bem, ou tão gorda. Tenho desejo de comer uvas sem sementes. Mas não consegui encontrar.
— Para quando é o bebê? — perguntei.
— Dezembro — respondeu Kalki.
Solenemente, brindamos à nova raça humana.
Kalki e Lakshmi nos escoltaram, em seguida, até os aposentos residenciais — surpreendentemente pequenos - no segundo andar, onde Giles passou a ocupar o Quarto de Lincoln. Devo mencionar aqui que Geraldine e eu, enquanto ainda estávamos em Paris, tínhamos decidido ser totalmente abertas quanto a nosso relacionamento. E assim fizemos. Ainda fazemos. Creio que os outros aceitaram bem. Certamente Lakshmi parece aprovar e Kalki se mostra condescendente. Giles...? É profundo. Aparenta... qual seria o termo de H. V. Weiss?... apoiar todos. Exceto os macacos. Giles tem um pavor neurótico de macacos e fazemos o possível para manter Jack e Jill longe dele.
Naquela primeira noite na Casa Branca, Geraldine e eu dormimos juntas no Quarto da Rainha. Dormimos muito bem, a despeito das lamúrias de Jack e Jill, trancados no banheiro, e dos uivos de uma matilha de lobos que costuma patrulhar a Pennsylvania Avenue na época da lua cheia.
Embora a Casa Branca tenha continuado a ser nosso quartel-general, chegamos à conclusão de que era pequena demais para cinco pessoas adultas e um casal de macaquinhos travessos.
Giles mudou-se para o outro lado da Pennsylvania Avenue, passando a residir na Blair House, ocupada pelos hóspedes oficiais dos Estados Unidos nos velhos tempos. Usamos a expressão "velhos tempos" para definir a vida anterior ao Fim.
Geraldine e eu também nos mudamos para o outro lado da Pennsylvania Avenue, passando a morar no Hay-Adams Hotel. Gozamos de uma linda vista do Lafayette Park cheio de animais selvagens. Dediquei-me à ornitologia, um passatempo de minha infância.
Em agosto, Geraldine instalou um laboratório no terceiro andar do hotel. Vasculhamos a cidade em busca de equipamentos especiais e ela conseguiu encontrar quase tudo de que precisava. Trabalha diariamente, em horário integral, com ovos, embriões de pintos, etc... Presumo que esteja realizando alterações genéticas, mas a relação de uma galinha com um ser humano me parece muito pequena. Geraldine jamais conversa comigo sobre seu trabalho.
Eu também vivo muito ocupada. Pela manhã, vou à Casa Branca ajudar Kalki e Giles a cuidar dos animais domésticos. Temos duas novilhas leiteiras (as vacas leiteiras mais velhas morreram por falta de quem as ordenhasse). Giles construiu um galinheiro no antigo roseiral. Estamos começando a criar carneiros no descuidado gramado da Casa Branca. Eu plantei uma horta. Tentei aprender a ordenhar as vacas, mas fracassei. Na verdade, nunca consegui olhar uma vaca sem cair em profunda depressão, do tipo pós-natal. Suponho que essa reação se relacione com a idéia de maternidade. Sempre detestei minha própria lactação.
Lakshmi faz pão para todos. A farinha de trigo está começando a mofar. Giles acha que o trigo da Virgínia estará no ponto de ser colhido dentro de algumas semanas. Contudo, nenhum de nós sabe como fazer a colheita. Tenho lido muito sobre agricultura. Lakshmi afirma que nas proximidades de Silver Spring, em Maryland, existe um moinho antigo, movido pela água de um riacho. Acredita que ainda esteja em condições de funcionar. Se for verdade, teremos farinha moída numa roda-d'água. Temos muito trabalho, todos os dias, só para sobrevivermos. Oh, dia-a-dia...
Volto ao Hay-Adams a tempo de almoçar com Geraldine. Eu preparo os ingredientes e ela cozinha. À noite, costumamos jantar na Casa Branca. Giles leva a sério seu papel de mestre- cuca. Conversamos muito sobre comida. Afinal, não há muitos outros assuntos.
No verão passado, usávamos roupas de banho. Eu me sentia esquisita, fazendo manutenção de aviões metida num biquíni, mas o calor era sufocante. À noite, vestíamo-nos bem.
Geraldine e Lakshmi passaram a se empenhar numa competição amistosa. Todas as noites exibiam novos vestidos de gala, sem mencionar tiaras, colares, brincos e pulseiras. Sob os candelabros de cristal do Salão Leste, elas literalmente brilhavam. Eu era mais recatada. Normalmente usava preto, ou branco. Só em raras ocasiões usava os sensacionais rubis. Embora Kalki e Giles gostassem do desfile de modas, quase sempre trajavam roupas esporte.
No final de agosto, depois do jantar, logo antes de descermos à sala de projeção para assistir a um filme, Lakshmi disse repentinamente:
— Sabem, nasci em Washington e nunca fui a Mount Vernon. Quem quer ir até lá?
George Washington estava sempre em nossas mentes. Para onde quer que se olhasse na Casa Branca, lá estava ele: um retrato, um quadro, uma relíquia.
Desde que nenhum de nós visitara o Mount Vernon, Kalki propôs um passeio. Geraldine e Lakshmi preparariam um piquenique. Giles ficou encarregado de encontrar um barco. Eu seria a pilota. Meu conhecimento e domínio das máquinas colocam-me sempre aos controles do avião, ao volante do automóvel, ao leme do barco.
Numa manhã quente e sem brisa zarpamos de um cais próximo à Casa Branca. Eu estava ao leme. Não dispondo de um mapa, subi o rio em direção a Great Falls, em vez de descê-lo no sentido do Mount Vernon. Mas não fez diferença. O que interessava era a normalidade, a naturalidade de um passeio de barco pelo rio.
Usando apenas calções de banho surrados, Kalki tinha uma aparência juvenil, o corpo loiro untado de óleo de bronzear. Geraldine usava um mu-mu e um chapéu de palha de abas largas. Tendo um pavor mortal de câncer de pele, corria para consultar Giles sempre que tinha a impressão de que uma de suas sardas apresentava uma aparência anormal.
Lakshmi deitou-se num colchão de ar à popa.
— Que tranqüilidade... — murmurou.
Em seguida, cruzando os braços sobre o ventre que continha o futuro da raça humana, caiu num sono profundo — para dois.
Giles e Geraldine jogavam gamão. Não consegui acreditar. Embora estivéssemos passando perto da margem verdejante da Virgínia, eles nem erguiam o olhar do tabuleiro de jogo. O panorama era inexistente para eles.
Kalki veio juntar-se a mim no leme. Felizmente, ele é um amante da natureza. Também gosta de ornitologia e comparamos nossas anotações no final de cada semana... Cada semana! Ainda governamos nossos dias por relógios e calendários, como se ainda existisse um tempo histórico.
— Veja como a água está ficando limpa! — exclamou ele, apontando para boreste. A água estava lamacenta, mas sem poluição.
— A água está melhorando a cada dia.
Era verdade. O que até bem pouco tempo não passava de um esgoto ao ar livre voltava a ser o que fora tempos atrás: uma abundante corrente de água pura, onde os peixes podiam reproduzir-se sem morrer envenenados.
Em voz bastante baixa para que os outros não escutassem, Kalki indagou:
— Sente-se solitária?
Levando em consideração o autor, a pergunta era espantosa. Respondi francamente:
— Sim.
— Eu também.
Considerando mais uma vez o autor (Vishnu, o criador, unido a Shiva, o destruidor), fiquei bastante abalada. Sem a ilusão de Kalki como deus, estávamos todos... perdidos? Não. Ainda pior: éramos instrumentos de uma força além do mal.
Olhei para Kalki. Ele fitava um alto penhasco coberto de limo, que se erguia perpendicularmente da água barrenta. Quando falou, sua voz era triste... não... pensativa.
— Também sou humano. É o mais difícil. Às vezes, penso que este meu corpo é uma âncora — comentou. Fitando o rio, conseguiu sorrir. — Arrastando-se na lama. Sinto falta de todos os tipos de pessoas. E não deveria sentir, pois as melhores passarão para o próximo ciclo. Portanto, por que lamentar? Em especial, quando sou eu o criador. O preservador. Mesmo assim, há ocasiões em que me sinto... — mais uma vez, fitou as águas correntes — ...ao sabor da correnteza.
— Sinto falta de Arlene — declarei em voz baixa, pois não queria que Geraldine escutasse.
Kalki também não me ouviu.
— Contudo, não sou eu quem está sendo arrastado pela correnteza; é apenas Kelly. Você deve sentir saudades de seus filhos.
Felizmente, havia muito que eu me livrara do problema, tanto emocional como intelectualmente. Se eu os perdesse repentinamente num acidente, ficaria arrasada por terem sido despojados de algo a que tinham direito: uma vida completa no mundo. Todavia, como o mundo inteiro também morrera, minha sensação de perda não era tão grande; comparava-se a um apagador limpando um quadro-negro, a um jogo sendo suplantado por outro, a um determinado período terminando para sempre.
Kalki me entendeu. Até certo ponto. Pela primeira vez naquele dia, ele me encarou. Seus olhos azuis pareciam desbotados ao sol pálido de agosto.
— Uma vez que a radiatividade daquelas bombas de nêutrons tornaria o planeta inabitável por milhares de anos, fui obrigado a intervir. Bem a tempo. Portanto, como Shiva, eu sou, na realidade, Brahma. Destruo a fim de criar. E preservar. Agora, iniciei o novo ciclo e tudo está bem. Todavia — desviou o olhar —, também sou humano. E há ocasiões em que o cérebro de Jim Kelly não consegue entender o uso que fiz dele. Creio que ele já nem mais tenta entender. Contudo — e Kalki franziu a testa —, por vezes os murmúrios em minha cabeça me dizem que a simetria talvez exija o fim absoluto da raça humana, no devido tempo. Esquisito, não acha? Shiva sussurra: "Aniquile o homem". Vishnu sussurra: "Preserve-o". Brahma sussurra: "Inicie um novo ciclo"... Tem cerveja a bordo?
— Coors — disse eu, sabendo que era a única cerveja de que ele gostava. — Está na geladeira.
Kalki foi buscar cerveja.
Pilotei o barco por baixo de uma ponte. Giles ergueu os olhos do tabuleiro de gamão.
— Minha querida Teddy, estamos passando sob a histórica Chain Bridge. Isto significa que você está na direção totalmente errada. O Mount Vernon fica rio abaixo.
Lakshmi abriu os olhos.
— A culpa foi minha — desculpou-se. — Quem nasceu em Washington fui eu. Deveria ter ensinado o caminho.
Tornou a adormecer. Manobrei o barco. O calor estava opressivo. Mesmo no rio, não havia a menor brisa. Notei que o barômetro estava caindo. Havia uma tempestade a caminho. Vinda de sudoeste.
Giles e Geraldine prosseguiram o jogo. Kalki bebia cerveja e apreciava o panorama, parecendo muito tranqüilo.
Perto da margem da Virgínia, uma grande pedra se projetava acima do nível do rio, como uma Itália em miniatura. Sobre a pedra, entrelaçados, misturados, dois esqueletos. Homem e mulher? Homem e homem? Mulher e mulher? Não havia roupas que identificassem. Estavam despidos. Estariam fazendo amor quando o mundo terminou?
Fatigados e suados, atracamos no Mount Vernon. Com exceção de Lakshmi, todos mergulhamos na água morna. Nadamos por entre os juncos. Andamos pelo fundo lamacento e escorregadio. Fizemos piadas nervosas sobre as cobras venenosas que freqüentam o Potomac. Mas não vimos cobra alguma naquele dia.
Como turistas, percorremos a mansão. Olhamos os velhos móveis e quadros, os armários envidraçados que continham espadas, luvas, meias, chapéus e camisas. Relíquias de George e Martha Washington. Ao contrário dos turistas, abrimos alguns dos armários. Apalpamos os tecidos antigos. Depois, recolocamos tudo nos devidos lugares, exceto o chapéu tricórnio de Washington, que Kalki usou durante o resto do dia.
Lakshmi e Geraldine arrumaram o piquenique nos degraus da mansão, enquanto Kalki se estendeu de costas no capim crescido do gramado, cobrindo o rosto com o tricórnio.
Giles sugeriu que eu fosse com ele apresentar nossos respeitos aos restos mortais de George Washington, num mausoléu de pedra perto da casa principal.
— Seria bom se pudéssemos preservar tudo isso — comentou ele, apontando para a velha mansão.
— Impossível. Basta uma goteira no telhado para estragar tudo.
— Eu sei — concordou Giles, acrescentando: — É uma pena.
Seria sincero? Com Giles, nunca se sabe...
Discutimos freqüentemente os meios e modos de preservar para o novo ciclo da humanidade as melhores obras de arte do ciclo anterior. O problema é que somos muito poucos. Na época em que houver um número suficiente de pessoas no mundo para realizar um trabalho de preservação, só haverá ruínas.
Em frente à porta gradeada do túmulo de Washington, sentei-me num banco. Giles fez menção de sentar-se a meu lado. Deliberadamente, imaginei uma parede entre nós. Um alto muro de pedra. Sim, Giles sentiu o muro. Ora, sou um bom pedreiro; algo em meu íntimo adora muros e paredes.
Suspirando, Giles sentou no chão, de pernas cruzadas.
— Acha que talvez sejamos em número reduzido demais? — perguntou de repente.
— Não é um pouco tarde demais para pensar nisso?
Tenho facilidade para perceber tramas. Sou paranóica. Mas também sou astuta. Primeiro, Kalki me perguntara se eu me sentia solitária. Agora, Giles queria saber mais ou menos a mesma coisa. Tive certeza de que estava sendo testada. Se assim fosse, uma nota errada no teste...
Respondi cautelosamente:
— Julguei que todos vocês tivessem calculado tudo com antecedência. Agora, somos dois reprodutores e três preservadores estéreis da cultura científica. Depois, virão nove crianças...
— Eu não me referia ao novo ciclo. Não teremos problemas, sob esse aspecto. Lakshmi e Kalki são tesouros genéticos. E se complementam perfeitamente. Tenho certeza de que se Mendel ainda fosse vivo, aplaudiria nossa solução. Eu me referia apenas a sermos em número reduzido demais para fazermos companhia uns aos outros. No momento.
— Por que se importaria com o que penso a respeito?
Até o momento, ninguém pediu minha opinião a respeito de coisa alguma. Vocês é que mandam. Não sou eu. Naturalmente — acrescentei com razoável sinceridade —, minha opinião jamais poderia importar muito, porque jamais imaginei que algo assim pudesse acontecer.
-— Bem, o fato é que aconteceu. E aqui estamos nós.
Giles colocou quatro membros magros e peludos numa posição de ioga. Com calções de tênis e uma camisa olímpica, era especialmente desgracioso. Sua calva brilhava como plástico manchado.
— Porque Kalki é Vishnu -— acrescentou. — Tem que ser.
A última frase me espantou.
— Você duvida dele?
— Duvidar é humano, minha querida Teddy. E, embora seja Mestre Perfeito, também sou humano.
— Bem — disse eu, áspera... demais?... —, talvez ele não seja Vishnu, mas certamente atuou muito bem como Shiva, o destruidor.
Giles me lançou um olhar esquisito. Tive a impressão de que desejava revelar-me alguma coisa, mas não tinha coragem.
— Sim, ele é Shiva, que é Vishnu, que é Brahma, que é Kalki.
Giles enfiou a mão no bolso dos calções de tênis e retirou um cilindro de ouro e uma colherzinha. Lembranças de Bruce Sapersteen! Pensativamente, transferiu o pó branco da cocaína para a colher. Então, aspirou.
— Quer um pouco?
— Não, obrigada.
— Você é uma esnobe, Teddy! De nariz azul.
— Quem vai ficar com o nariz azul é você, Giles, não eu.
A risada de Giles foi mais espalhafatosa do que minha piadinha justificava. Ele fica alto com facilidade. Torna-se maníaco. Fala depressa. E demais. Todavia, sentado de pernas cruzadas em frente ao túmulo de Washington, com o nariz pingando e os olhos brilhantes, Giles mostrou-se inesperadamente taciturno. Olhava para mim, pensativo.
O silêncio acabou por trazer à luz uma idéia. Nada brilhante; apenas uma intuição. Algo que eu deveria ter percebido quando ele falou em sermos um número reduzido demais.
— Naturalmente, estamos desequilibrados — declarei, olhando compadecidamente para ele, que estremeceu involuntariamente. Expliquei melhor: — Isto é, cinco é um número ímpar.
— É um número sagrado — replicou Giles, evitando meu olhar de compaixão.
— Sagrado ou não, você foi quem ficou de fora, Giles. Kalki tem Lakshmi. Eu tenho Geraldine. Por que você não imunizou a pobre Estelle? Após esterilizá-la, é claro.
Descobri, muito tarde na vida, que o sadismo proporciona prazeres insuspeitados. Por um instante, mastiguei o fruto proibido. O estremecimento de Giles transformou-se, dramaticamente, num agoniado tremor. Sim, eu acertara na mosca.
Geraldine e eu costumamos imaginar como se sente Giles em seu estado solitário. Kalki e Lakshmi são felizes juntos. Ela e eu estamos em êxtase. Só Giles está sozinho... e feliz? Duvido. Geraldine, porém, não tem tanta certeza, pois desconfia que ele seja eunuco. Acredita que seus prazeres são cozinhar, jogar xadrez, gamão e bridge, instalar uma sofisticada sala de parto no Salão Leste da Casa Branca, manter-se interminavelmente ocupado. Não obstante, ao final de cada dia cheio de atividade, volta sozinho para a Blair House.
— É o meu papel — afirmou Giles, ainda evitando meus olhos. Aspirou mais uma pitada de cocaína. — Gosto de estar sozinho.
Eu já o torturara bastante. Larguei o fruto proibido e mudei de assunto. Apontei para o tubo de cocaína e perguntei:
— Para que as drogas?
Queria verificar se sua resposta coincidiria com a explicação dada por Kalki naquela tarde fria em que cavalgávamos pelo Central Park.
— Para quê?
Olhos semelhantes aos do Dr. Ashok me fitaram ligeiramente estrábicos.
— Jamais consegui uma explicação para o fato de Kalki se envolver no tráfico de drogas.
— O dinheiro, querida Teddy.
— Naturalmente. Todavia, refiro-me ao ponto de vista religioso. Isto é, houve alguma ligação entre as drogas e o fim da era de Kali?
— Absolutamente nenhuma. Na verdade, sempre reprovamos o vício de drogas, bem como do álcool e do fumo. Nossos ashrams eram genuinamente ascéticos.
— Mas você fuma, bebe, aspira cocaína...
— Fui um recipiente defeituoso da graça divina, querida Teddy. Não obstante, detesto o pecador tanto quanto o pecado. Ou, como tão bem disse Warren Drake: "Meu esfíncter me circunda dia e noite, como um seio suave que guarda meu caminho. No fundo de meu ser, minha exalação é um incessante sinal de alarme contra meu pecado". — Ora, ainda não consegui verificar direito esta citação. Creio que é um trecho adulterado de William Blake. Cheguei à conclusão de que as drogas foram a causa da metáfase Lowell-Ashok.
— Almoço! — chamou Lakshmi.
Levantamo-nos. Giles passou o braço pelo meu, como se fôssemos ambos muito velhos. Até mesmo deu um ou dois tropeções típicos do Dr. Ashok.
— O Senador White estava na folha de pagamentos das Empresas Kalki? — indaguei.
Giles levou um dedo comprido ao comprido nariz que pingava.
— Como a maioria dos candidatos presidenciais, Johnny aceitava dinheiro de todo mundo. Naturalmente, fomos obrigados a fazer algumas pequenas contribuições para seu fundo de campanha eleitoral. Mesmo assim, Teddy, pessoalmente eu votaria nele. Sim. Para presidente dos Estados Unidos. É verdade. Estou falando sério. Isso porque, do ponto de vista fiscal, Johnny White era sólido. Responsável. Teria equilibrado o orçamento através do simples expediente de trancar a porta do Tesouro Nacional e entregar a chave a Milton Friedman.
Libertei meu braço do dele.
— Nesse caso, vocês deveriam preservá-lo. O Senador White, é claro.
— Ou Milton Friedman. Ele foi o verdadeiro herói de nossa época. Felizmente, já ultrapassamos a era econômica. Oh, querida Teddy, como é maravilhoso estar no umbral da Idade de Ouro, onde todas as perspectivas nos iludem e o piquenique de Lakshmi é divino!
Os pratos estavam cuidadosamente arrumados no primeiro degrau da varanda. Kalki, recostado numa coluna, comia galinha frita, tendo na cabeça o tricórnio de Washington, enfiado até as orelhas. Ou a cabeça de Washington fora muito maior que a de Kalki, ou o general usava uma peruca sob o chapéu. Lakshmi encheu de cerveja os copos de cristal de Martha Washington. Geraldine serviu salada de batata em pratos de papelão.
— Bebamos à Idade de Ouro! — sugeriu Giles. Bebemos.
Agora, ele estava maníaco: — E ao renascimento de todos os que acreditaram em Kalki e agora residem aos milhões e, sim, supostos milhões nos óvulos aqui dentro! — acrescentou, pousando a mão no ventre dilatado de Lakshmi.
Sob o tricórnio de Washington, Kalki sorriu para Giles.
— Pare com isso! Ela é minha esposa!
— E ele é o meu médico — disse Lakshmi, tornando a encher o copo de Giles.
O piquenique estava agradável. O mormaço, não. Não gosto de Washington no verão. Para ser sincera, não gosto em época alguma. Contudo, era o lar de Lakshmi, e Kalki pretendia fazer-lhe a vontade. Especialmente na situação em que ela estava. A idéia de que todo o futuro da raça humana estava crescendo no ventre de Lakshmi impressionava a todos nós. Era como se quatro bilhões de pessoas estivessem comprimidas num único ovário, como acontece com as estrelas que se desfazem num vácuo escuro para dar origem a um cosmo totalmente novo. Uma Idade de Ouro? Bem, não viveremos o suficiente para ver mais que o início. Segundo Lakshmi, a primeira criança se chamará Eve.
— Um nome esquisito para uma filha de Vishnu — comentei.
— Sou ecumênico — disse Kalki, tranqüilo.
Giles foi positivo:
— Mas a verdadeira crença da Idade de Ouro será o hinduísmo.
— Por que haver uma crença? — repliquei.
Continuo a ser a mais perfeita atéia. Entretanto, devido às circunstâncias, sou obrigada a viver na presença de deus. Embora tenha certeza de que jamais me acostumarei a tal situação, os outros se mostram tolerantes e acreditam que mudarei de opinião. Duvido muito. Estou disposta a admitir que Kalki seja Vishnu e, também, Kelly. Não obstante, no meu cosmo não existe um deus verdadeiro. Para mim, Vishnu é um nome e não um fato.
— Como é possível não ter fé? — perguntou Kalki, secando o copo de cristal com um guardanapo de papel. — Tudo começa comigo. E com o que fiz.
Não havia como negar o que ele fizera.
— E com o que farei. Uma vez que meus descendentes povoarão a terra, é muito natural que adorem o seu criador. Não fique tão acabrunhada, Teddy. Tudo o que é humano requer uma forma. Atualmente, sou a fonte literal de toda a vida humana, assim como Lakshmi é o recipiente que contém a nossa raça.
Sem qualquer motivo aparente, lembrei-me de algo que meu avô rabino lera para mim quando eu era criança. Uma passagem do Velho Testamento. Não sei por que motivo, leu em inglês. Ainda posso ouvir sua voz: "Então, o pó retornará à terra como era antes; e o espírito retornará a Deus..." Preciso verificar a exatidão desta citação.
Os raios rasgaram o céu cor de ardósia. O estrondo dos trovões chegou até nós, vindo do oeste. O vento achatava o capim crescido, colocando à mostra a parte inferior amarelada das folhas.
Ajudei Lakshmi e Geraldine a arrumar as coisas do piquenique. Pensando bem, nosso cuidado em arrumar tudo parecia fora de propósito. Em poucos anos a mansão estaria em ruínas e não faria a menor diferença o fato de termos limpado os restos de galinha frita e salada de batata, retirado os pratos de papelão e as latas de cerveja.
Quando voltamos ao barco, uma chuva quente já começara a cair. Quando embarcávamos, Lakshmi gritou de repente:
— Vejam!
Duas girafas oriundas do zôo estavam silhuetadas de encontro ao céu tempestuoso.
Geraldine pegou a máquina de filmar:
— Espero que haja luz suficiente, porque está lindo.
As girafas nos olhavam. Nós olhávamos para elas. Então, quando os raios começaram a cair do céu como fogo, os dois animais desapareceram por detrás da mansão. Girafas no jardim de Mount Vernon! Bem...
A viagem de volta foi difícil. O vento provocava ondas fortes. A chuva nos encharcava. Embora Geraldine e Giles sofressem enjôos, Lakshmi estava relativamente bem acomodada na cabine e Kalki gostou muito da tempestade. Ficou de pé junto a mim, ao leme, deixando a chuva bater-lhe no rosto.
Quando me preparava para atracar no cais, Kalki disse:
— Quero que você escreva tudo o que consegue lembrar desde a primeira vez que ouviu falar de mim. Tudo, mesmo. Até quando não acreditava em mim, o que pouco me importa. Quero apenas que escreva tudo.
Exibi minha costumeira modéstia:
— Aquele primeiro livro foi escrito por outra pessoa, um sujeito chamado Weiss. E as reportagens para o National Sun foram escritas por Bruce...
— Não me interessa o modo como seja escrito, Teddy. O que importa é seu registro pessoal. O que você sentia. O que sente agora.
Estávamos agora berrando para suplantar o vento. Gritei:
— Por quê?
— Para o futuro. Para meus descendentes.
— Giles pode fazer um trabalho muito melhor...
— Não. Você terá que fazê-lo.
Não fiz idéia do motivo pelo qual Kalki se mostrou tão insistente. E ainda não faço. Acabei concordando. Por que não?
— Será algo como escrever o Novo Testamento — disse eu, fazendo uma pilhéria que Kalki levou totalmente a sério.
— Você está numa situação muito superior à dos autores do Novo Testamento. Você presenciou o Fim, o que não ocorreu com eles. E agora está aqui, como testemunha ocular, no início.
Quando ele acabou de falar, uma lufada de vento lhe arrancou o tricórnio do General Washington da cabeça. O chapéu desapareceu nas fortes ondas do rio.
No cômputo geral, gostei... bem, não gostei... achei interessante este trabalho de recordação do passado. Foi até mesmo catártico. Indubitavelmente, deu uma forma aos meus dias.
Todas as manhãs, venho para a Sala do Gabinete. Trabalho durante várias horas. Na metade do serviço, sugeri a Kalki que desse uma lida no texto, mas ele recusou.
— Só quando você terminar.
O outono tem sido excepcionalmente belo. O tempo está mudando para melhor. Pelo menos na nossa latitude. O pior do calor cessou há um mês, no início de setembro. Desde então, os dias têm sido lindos. Frescos, claros. De uma claridade que parece feita do mais puro cristal.
No dia seguinte ao piquenique em Mount Vernon, todos foram atacados de urticária, menos eu. Lakshmi e Geraldine foram as que mais sofreram. Giles tratou-as com um spray de cortisona. Mesmo assim, passaram mal.
A não ser pela urticária, os últimos três meses transcorreram sem novidades. Afinal, nós nunca saíamos da cidade.
Jack e Jill tiveram um filhote. Jill é bem mais velha do que imaginara; já estava grávida quando a encontrei na Índia. O primeiro filhote de Jill é uma fêmea, um bom presságio. Referimo-nos a ela como a Criança.
Entreguei o saguão e o bar do andar térreo do Hay-Adams aos macacos. Não poderiam estar mais felizes, balançando-se nos lustres, tagarelando entre si — e conosco também. Desejam muito falar, ou, pelo menos, comunicar-se conosco. A princípio, Geraldine não gostava de Jack nem de Jill. Todavia, depois que Jill teve o filhote, Geraldine passou a gostar muito dela. Em primeiro lugar, Jill amadureceu. É agora uma criatura (quase escrevi "pessoa") muito diferente do que era antes. Ao contrário de mim, Jill é uma mãe nata. Além disso, abandonou o comportamento travesso e destrutivo inicial; leva a maternidade muito a sério. Jack continua muito extrovertido. Lembra-me Earl Jr. Tem um ciúme incrível do filhote. Contudo, isso é normal nesse estágio.
Sinto-me fascinada por ver como eles são humanos. Geraldine diz que eu estou "antropomorfizando", mas não tenho tanta certeza disso. Uma vez que os macacos são racialmente tão chegados a nós, não existe motivo pelo qual não lhes possamos ensinar muita coisa ou até mesmo permitir que eles nos ensinem aquilo que sabem por instinto — coisas que esquecemos em nossa desvairada corrida para apagar o fato da humanidade comum entre nós e eles, sapiens ou não.
Nossos dias são cheios. Geraldine trabalha horas a fio em seu laboratório. Lakshmi estuda as mais recentes publicações de física. Trabalha constantemente. Ainda gostaria de conseguir quebrar a lei de Heisenberg.
Giles passa a maior parte do tempo nas repartições governamentais, examinando os arquivos do FBI, da CIA e do Departamento de Combate aos Narcóticos. Coligiu volumosos dossiês sobre cada um de nós e, também, sobre as Empresas Kalki.
— Estou colecionando tudo isso a fim de mostrar a nossos descendentes como funcionava um governo típico no final da era de Kali — declarou ele, quando estávamos todos reunidos na Sala do Gabinete, examinando os documentos recolhidos por Giles, que cobriam a grande mesa como sucessivas camadas de neve.
— Isso não dará más idéias às gerações futuras? — perguntou Geraldine, que tende a encarar com cinismo o procedimento humano, mas afirma que o que eu defino como "cinismo" é apenas "realismo". Talvez seja a mesma coisa.
Infelizmente, não sou realista. Nem cínica. Eu caíra com meu avião a várias centenas de quilômetros a leste da Nova Guiné. Ou pousara numa ilha deserta? Não faz diferença. Sou a última das românticas.
Kalki declarou:
— Passar-se-ão milhares de anos até o retorno da Idade do Ferro. A essa altura, meu povo já terá deixado este planeta em busca de outros mundos, em outras galáxias. Por isso o trabalho de vocês é tão importante — fez um gesto abrangendo a todos. — Vocês devem dar à primeira geração um impulso inicial. Geraldine ensinará biologia. Lakshmi ensinará física nuclear. Giles ensinará medicina. Teddy ensinará engenharia...
— E você, o que ensinará? — quis saber Lakshmi, brincando.
— O Caminho — respondeu Kalki.
Na parede atrás dele o retrato a óleo de Abraham Lincoln nos fitava, de sua moldura dourada. Muito adequadamente, Lincoln tinha um ar sombrio.
Então, Giles nos deu uma longa explicação a respeito de suas mais recentes descobertas em Langley, na Virgínia, sede da CIA. Conseguiu decifrar a maior parte dos códigos ultra- secretos. Agora, já sabe quem assassinou os irmãos Kennedy, bem como muitas outras coisas. Nenhum de nós está muito interessado nisso. Atualmente, quando o outono dourado traz consigo uma promessa de inverno, os velhos tempos começam a se apagar para nós. O melhor de tudo é que já começamos a fazer planos para o futuro. Realizamos seminários sobre educação. Discutimos o melhor método para ensinar as crianças. A nova matemática foi rejeitada por unanimidade.
Ocasionalmente, Geraldine e eu saímos a passeio. Ambas gostamos do Instituto Smithsoniano. Sinto-me fascinada pelos primeiros aviões, pelos trens antigos. Também gosto da coleção de vestidos das ex-primeiras damas do país. Torno-me cada vez mais feminina — qualquer que seja tal estado. A propósito, todos nós passamos a discutir as atribuições sexuais. Como nossos ancestrais mais primitivos, precisamos dar ênfase à reprodução da raça. Contudo, tal ênfase eliminaria relacionamentos como o meu com Geraldine? Giles pensa que sim. Ao falar sobre o assunto, assume um aspecto de Moisés. Afinal, sente um profundo ciúme... como Moisés?
Lakshmi acredita que não haverá problema. Eu sou de opinião contrária. Enquanto isso, Geraldine acredita que a inseminação artificial seja a solução para uma reprodução correta. Se for esse o caso, florescerão relações sexuais românticas de todos os tipos, sem que o suprimento de bebês corra perigo. Geraldine defende ardorosamente sua tese. Kalki mostra-se enigmático; ainda não tomou partido.
Ontem de manhã, Geraldine e eu fomos à National Gallery. Outro dia claro e fresco. Já nem notamos os despojos e os lótus de papel rasgados que ainda voam com a brisa.
Os animais nos observam com atitude neutra. Até agora, nenhum de nós precisou fazer uso de armas. Um animal bem- alimentado é quase sempre manso. Boa lição.
A National Gallery é agora nosso local favorito da cidade. Naturalmente, por algum tempo foi desagradável: a água nos chafarizes e lagos ornamentais se estagnara. Resolvemos trabalhar. Escoamos a água. Limpamos tudo. Agora, o museu é um refúgio perfeito para Geraldine e eu. Ela gosta do ambiente. Eu gosto dos quadros. Estudo-os. Compreendo que em breve terei uma nova atribuição. Serei a única dentre nós capaz de explicar às crianças as artes visuais. Ultimamente, tenho lido críticos de arte. Bernard Berenson, Roger Fry, Harold Rosenberg.
Ocasionalmente, tomo um quadro por empréstimo. Ontem, levei para casa um Mantegna. Descobri que posso passar horas olhando para um quadro. Ao fazer isso, imagino a mão do pintor já falecido a trabalhar; consigo imaginar o que seus olhos viam e, às vezes, creio que sei exatamente o que ele pensava ver tantos anos antes.
Agora, tenho um compromisso. É dia 3 de outubro. Giles convidou-nos todos para o primeiro jantar de gala na Blair House. Ontem, recebemos convites impressos em relevo. Black tie. A rigor! R. S. V. P.
Giles estava disfarçado de Dr. Ashok. — Em honra aos velhos tempos, querida Teddy — explicou.
Senti-me ligeiramente perturbada pela peruca grisalha, rosto moreno e o cheiro de curry. Era como se, em vez de cinco sobreviventes, agora fôssemos seis. Comentei isso em voz alta. Giles soltou uma risadinha à moda indiana.
Uma pergunta entre parênteses: diremos algo à nova geração sobre as outras raças que outrora congestionavam o planeta? Suponho que seremos obrigados a fazê-lo. Todavia, o que pensarão as pessoas da Idade de Ouro a respeito de horrores da era de Kali, tais como Calcutá e Nova York? Suponho que sua reação será condicionada por aquilo que lhes dissermos.
Geraldine, como sempre, foi muito direta:
— Giles gosta de ser o Dr. Ashok por causa da peruca. Não é mesmo, Giles? Detesta ser careca. E não tem cabelo suficiente para tentar um transplante.
Giles fingiu achar graça. Afinal, gosta de fingir. Na realidade, ele é duas pessoas ao mesmo tempo. Pelo menos duas. E devo admitir que uma de suas personalidades múltiplas é um excelente decorador de interiores. A Blair House foi remodelada de modo maravilhoso.
Giles escolheu móveis de estilo em todas as residências elegantes e museus da cidade. Até mesmo confeccionou as cortinas, com algum auxílio de Lakshmi. A coleção apanhada no Louvre é espetacular. A Mona Lisa domina a sala de estar (e não o banheiro, como ele havia ameaçado). As peças de jade estão brilhantemente iluminadas. Um pagode com trinta centímetros de altura, esculpido num único bloco de jade imperial, parece uma onda de água do mar congelada no momento da rebentação.
Geraldine e eu somos obrigadas a manter nossas peças de jade em vitrines de vidro, porque Jack, Jill e a Criança gostam de quebrar coisas. Em princípio, não têm acesso a nossos aposentos no Hay-Adams. Na prática, sempre conseguem entrar lá. Às vezes, com resultados desastrosos.
Notei que a coleção de pintores impressionistas franceses de Giles não estava à altura da minha. Giles não tem gosto para quadros de pintores daquela escola. Embora não tivesse escolhido as piores obras de Cézanne e Soutine, também não escolhera as melhores. Percebo que estamos fazendo concorrência...
O Dr. Ashok, como Giles fez questão de ser chamado na ocasião, preparou os mais secos dos martínis secos. Bebemos muito. Infelizmente, minha cabeça é a mais fraca para bebida dentre as cinco... ou seriam seis? A de Geraldine é a mais forte. Naquela noite, o Dr. Ashok se revelou um anfitrião tão
perfeito que nenhum de nós conseguiu deixar de ser um convidado um pouco menos que perfeito.
Sentados diante da lareira (devidamente provida, como diria H. V. Weiss, de um fogo crepitante contra a umidade noturna), tomamos martínis e discutimos a Mona Lisa. Há algo errado com a cor do quadro — ou talvez fosse um defeito no modo pelo qual Giles o iluminara. Além disso, também existe uma possibilidade de que a Mona Lisa do Louvre seja uma cópia. Os peritos discordam.
Enquanto aguardávamos a chegada de Kalki e Lakshmi, o Dr. Ashok discorreu exaustivamente sobre suas descobertas mais recentes de documentos ultra-secretos, em Langley e outros locais.
— O que vai fazer com todo o resultado dessa pesquisa? — quis saber Geraldine.
— Estive pensando em utilizá-lo para compor um novo Bhagavad-Gita, descrevendo as aventuras de Kalki da mesma maneira que o original relatou a história da encarnação anterior de Kalki, Krishna.
— Por que não recuar ainda mais no tempo? — indagou Geraldine, cujo conhecimento da religião hindu jamais deixa de me espantar. Sou quase totalmente ignorante no assunto e pretendo continuar assim. — Recue até Rama, a encarnação de Vishnu anterior a Krishna. Escreva um novo Ramayana. Seria fascinante. Especialmente o caso de amor entre Rama e sua esposa Sita...
— Onde está a analogia? — interpôs o Dr. Ashok. — Sita foi raptada e violentada por Ravana, o rei-demônio do Ceilão. Graças a Deus, Lakshmi não foi raptada ou violentada; e não existe um Ravana-contemporâneo. Conseqüentemente, não houve, nem haverá, uma guerra semelhante para a libertação de Sita, nem a derrota de Ravana nas mãos de Rama e de seus aliados macacos. Na verdade, faltam-nos todos os elementos, exceto aqueles malditos macacos que vivem com vocês no Hay-Adams.
Eu estava prestes a defender Jack e Jill, mas Geraldine interveio:
— Você precisa encontrar equivalentes simbólicos.
Achei Geraldine belíssima naquela noite. Usava um lindo modelo de Balenciaga, tirado de uma coleção de modas do século XX exposta no Museu Smithsoniano. O vestido em questão fora feito na década de 30 para uma beldade famosa chamada Sra. Harrison Williams. Embora a Sra. Williams fosse um pouco mais alta que Geraldine, ambas possuíam a mesma cintura delgada. Eu sei, pois quem ajustou o vestido para Geraldine fui eu. Além disso, em honra ao nosso primeiro jantar na Blair House, Geraldine usava o colar de esmeraldas da Imperatriz Josefina e uma pequena tiara de brilhantes que pertencera a Maria Antonieta. O efeito era... esfuziante. Deslumbrante.
Eu também usava uma obra-prima da coleção smithsoniana. Um desenho clássico, em damasco vermelho, feito pelo gênio Charles James. Embora jamais tenha dado muita importância a roupas, devo dizer que minha aparência não era das piores...
— Há ocasiões, Giles... — começou Geraldine. Mas nosso anfitrião interrompeu:
— Dr. Ashok!
— ...Dr. Ashok, em que fico imaginando quem realmente você é. Quero dizer, bem lá no fundo. O Dr. Lowell faz o papel de Dr. Ashok, ou será exatamente o contrário?
— Um verdadeiro mistério, caríssima Geraldine! Pessoalmente, creio que cada um é realmente o outro e nenhum deles sou eu.
Geraldine achou graça. Eu não. Ela é sempre analítica. Costuma dizer: "A metamorfose é o curingão do baralho da genética. E os curingas, tanto no jogo como na ciência, portam-se dos modos mais estranhos. Por que não na psicologia, também?"
— Olá — disse Kalki. Lakshmi e ele estavam de pé no umbral da porta.
Giles ergueu-se de um salto e fez um pranam. Geraldine e eu nos pusemos de pé, como fazemos sempre que Kalki e Lakshmi entram num recinto. Não sei o motivo. Afinal, nós os conhecemos tão bem, estamos acostumados a vê-los em trajes de banho, ou trabalhando nos jardins, suando ao sol ou cobertos de urticária.. . Não obstante, existe neles algo de... — não direi divindade porque o termo nada significa para mim — ...de magia. E, naturalmente, são fisicamente lindos. Lakshmi estava usando os colares de pérolas que eu lhe trouxera de Paris. Uma criação de Dior, em púrpura real, disfarçava sua gravidez. Kalki parecia muito jovem, num smoking de veludo preto.
Admiraram o jade, os quadros, a mobília. Já que era a primeira vez que algum de nós entrava na Blair House remodelada, passamos algum tempo comparando opiniões. Somos todos, mesmo a contragosto, devotados donos-de-casa e decoradores de interiores. Lakshmi estava redecorando gradativamente a Casa Branca. Com pleno sucesso, na minha opinião. No interesse do conforto e da autenticidade, descartou a maior parte do estilo Sheraton Hotel, tão apreciado pelos últimos presidentes. Geraldine e eu fizemos o melhor trabalho de decoração (pelo menos é o que penso), pois tivemos que trabalhar os aposentos um tanto acanhados e de teto baixo do Hay-Adams, tão diferentes das esplêndidas proporções dos da Casa Branca ou da Blair House, com seu estilo encantador. Creio que se fôssemos obrigadas a recomeçar tudo, eu escolheria uma casa adequada em Georgetown. Talvez Dumbarton Oakes. Todavia, na situação atual, estamos todos bem próximos uns dos outros. O que já é alguma coisa...
Giles — e não o Dr. Ashok — preparara o jantar. Empanzinamo-nos com doze pratos diferentes, servidos na baixela de ouro maciço feita para Luís XV, que Giles trouxera de Londres. Vivemos com muita elegância e requinte...
O assunto da duplicidade voltou à baila durante o jantar. Geraldine repetiu o que costumava dizer a respeito da metamorfose. Eu ainda não compreendia bem o significado da frase.
Kalki, porém, aceitou a discussão com naturalidade, dizendo:
— O segredo não está em que cada um de nós tenha duas identidades, ou uma identidade que se modifica, mas em termos todas as personalidades. Já que Vishnu é todas as coisas, todas as coisas são Vishnu.
— Então, eu sou Kalki — ponderou Giles.
— Não — os olhos de Kalki estavam excepcionalmente lindos à luz das velas. — Eu sou Kalki. Fisicamente, porém, eu, você e todos nós somos da mesma matéria e, portanto, intercambiáveis; assim, somos herdeiros do átomo original que se dividiu e pegou fogo. Todavia, embora meu corpo seja igual ao seu, eu sou o avatar e, portanto, único.
— E também está prestes a ser o pai da raça humana — disse Lakshmi, fitando-o com uma expressão do mais perfeito amor. Senti um súbito espasmo em meu ventre cauterizado. Uma tristeza sincera pelo fato de Geraldine e eu não podermos gerar filhos. Não quero dizer juntas, mas separadamente. Ou melhor, não. Por que não juntas? O nascimento partenogenético é possível nos coelhos. Contudo, mesmo que uma mulher pudesse engravidar por meio de uma infusão salina, a criança seria só sua e de mais ninguém. Além disso, seria do sexo feminino. O filho gerado apenas pela fêmea só pode ser também uma fêmea.
É um sinal da perversidade humana o fato de eu não ter desejado os dois filhos que tive pelo processo normal. Agora, que não mais posso ter filhos, adoto... macacos! Não fui boa mãe. Também não fui mãe ruim. Suponho que isso piora a situação. Uma mãe ruim é, pelo menos, ativa. Eu fui passiva. Fiz o mínimo. Agora, sou estéril, mas estou amando. Isso é mais que suficiente.
A conversa passou a assuntos gerais. O estágio em que se encontravam a física, a genética, a medicina, a engenharia, a 3 de abril deste ano. Deste ano! Às vezes, tenho a impressão de que estamos vivendo um ano-luz no futuro e que a existência humana anterior ao dia 3 de abril não passa de vestígios cro- magnon de um período pré-histórico.
Kalki esperava que cada um de nós se dedicasse a pesquisas originais, do tipo efetuado por Geraldine em seu laboratório. Explicou:
— Porque a missão mais importante que terão será ensinar a primeira geração a ensinar as gerações posteriores.
— Que sorte terão eles! — exclamou Lakshmi, muito corada à luz das velas. — Uma raça totalmente nova, sem coisa alguma da raça antiga, exceto o que havia de melhor.
— Bem — interveio Geraldine, sempre disposta a ir diretamente ao assunto, por desagradável que fosse. — Não serão tão novos assim. E, certamente, não serão os melhores. Você e Kalki nada mais são que dois conjuntos de genes absolutamente normais. Seus filhos serão bonitos. Saudáveis. Todavia, as probabilidades são bastante contrárias a que sejam gênios, por mais arduamente que eu trabalhe nesse sentido.
— Mas eu também sou Vishnu — disse Kalki com um sorriso juvenil, os olhos brilhando. — É claro que esse fato altera os conjuntos genéticos.
— Concordo. Você é Vishnu. Acontece que reside no corpo de J. J. Kelly e seus filhos serão também filhos dele. Serão Alfa. Além do mais, não serão tão diferentes do resto dos falecidos quatro bilhões de pessoas.
Geraldine foi áspera, descortês. Bebera demais.
Giles mudou rapidamente de assunto:
— Precisamos estabelecer um novo calendário. Por exemplo: como denominaremos o período anterior a 3 de abril? E o período posterior?
Durante o filé chateaubriand, resolvemos dividir a história humana em duas partes: antes de Kalki e depois de Kalki. Não era muito original, mas ninguém conseguiu apresentar uma sugestão melhor.
A seguir, Giles propôs que os meses fossem rebatizados com nossos nomes. Lakshmi ficou entusiasmada. Quis que junho fosse chamado de Lakshmi. Geraldine escolheu setembro, exatamente o que eu desejava para mim. Graciosamente, aceitei outubro. Janeiro será Lowell. Os outros oito meses receberão os nomes das primeiras oito crianças, começando por Eve.
Esta noite, ou melhor, esta madrugada (estou colocando os toques finais neste registro em nossos aposentos do Hay- Adams, enquanto Geraldine dorme um sono agitado no quarto ao lado), a data é 4 de Ottinger do primeiro ano depois de Kalki, ou seja, ano 1 d.K. Ora, não parece mais esquisito que d.C.
Tomamos café na sala de estar. A lareira fazia um pouco de fumaça. Prometi a Giles limpá-la. Para um médico, ele é extremamente desajeitado para trabalhos manuais.
Giles trouxe um conhaque de cem anos e charutos havana. Geraldine fumou um charuto. Tomei o conhaque num copo de cristal Baccarat.
— Missão cumprida! — a frase favorita de Giles foi roubada pelo Dr. Ashok.
— Apenas a primeira etapa — disse Kalki. — A segunda é a fundação da Idade de Ouro.
— As crianças — murmurou Lakshmi.
— Claro! Claro! Apressei-me um pouco! Oh, como invejo vocês! — exclamou Giles, fitando Kalki com olhos injetados e um tanto desvairados.
— Será possível? — perguntou Kalki suavemente, como deve fazer o avatar de deus neste mundo.
— Bem, não se trata exatamente disso. Não é possível invejar o deus supremo. Seria como ter inveja do Sol, da Lua, de toda a maré de criação que percorre o espaço vazio. Não, não. Curvo-me diante de Shiva. Namah Shivayah! Todavia, ó Kalki, como é maravilhoso ser o pai, o único pai, de uma nova raça, como também amado pela deusa Lakshmi, encarnada na mulher mais linda que a raça humana já produziu!
Geraldine e eu trocamos o que H. V. Weiss definiria como "um rápido olhar", em contraposição à sua definição de "olhar prolongado". Até hoje ainda não sabemos como Giles eventualmente se adaptará ao fato de ser a pessoa que está sobrando. Até agora, não revelou sinais evidentes de aflição ou angústia. Ou melhor, isso não é exato. No verão passado, quando veio à baila o assunto de troca de esposas, Giles defendeu calorosamente esse tipo de jogo sexual. Kalki, porém, opôs-se à idéia, vetando-a sob o pretexto de que só ele e Lakshmi são capazes de reproduzir e, portanto, não há necessidade de que os outros façam o que ele define como "representar um papel inútil". Ao que Giles retrucou que se não existe motivo biológico para tais ligações, pela mesma razão lógica também não existe motivo para que elas não se realizem segundo o estilo tradicional. Por que, indagou ele, o único macho estéril não poderia manter relações sexuais com as duas fêmeas estéreis, ou mesmo com a única fêmea fértil?
Kalki não se deixou impressionar pelo argumento de Giles. Geraldine era de opinião que Giles amava Lakshmi.
— Por que não você? — perguntei.
— Em hipótese alguma — retrucou ela.
— Ou eu? — acrescentei, embora a idéia fosse repulsiva.
Acho que esta noite Kalki tratou Giles com uma diplomacia que não lhe é peculiar.
— Seu papel é tão importante quanto o meu — disse ele.
— Não, não! Absolutamente! Sou um simples médico e a raça humana é perfeitamente capaz de sobreviver sem médicos. Na verdade, ela é até mesmo capaz de florescer melhor sem a medicina. Contudo, falando literalmente, não pode existir raça humana sem você e Lakshmi. Ó Lakshmi! Ó Linda! Ó Nascida das Águas do Oceano...!
De repente, Giles pareceu-me o Dr. Ashok no saguão do Oberoi Intercontinental, há uma eternidade...
— Giles! — exclamou Lakshmi. Percebi que após sua primeira reação de satisfação ante a adulação, ficara aborrecida. Alarmada? — Não queremos ouvir todos os meus mil títulos — acrescentou, levando em tom de brincadeira uma situação que se tornara desagradável.
Giles serviu-se de mais conhaque, enquanto Kalki enrolava um cigarro de maconha. Percebi que Kalki se tornara repentinamente alerta, desconfiado. Seria Giles o "outro" a quem ele se referira no Central Park? Que aspecto poderia assumir o tal "outro", a respeito de quem ele me advertira?
De repente, Geraldine mudou de assunto. Voltou à biologia, seu tema predileto. E nosso também.
— Eu gostaria que tivéssemos um reserva biológico para Kalki. Ou até mesmo uma alternativa.
Giles entornou na roupa a maior parte do conhaque, pois a mão que segurava o copo errou a direção da boca. Lakshmi corou. Kalki se manteve impassível, enquanto Geraldine continuou a dar pedradas. Posteriormente, ela me afirmou que não poderia deixar passar uma oportunidade tão boa para expressar suas opiniões. Como se alguma vez deixasse passar... Ou deixe. Adoro sua franqueza.
— Falando como geneticista, não me sinto totalmente satisfeita com a situação atual — declarou, levantando-se da mesa. Pude imaginar um quadro-negro atrás dela. Creio que foi a primeira bióloga que pronunciou uma conferência trajando um modelo de Balenciaga. — Creio que todos vocês já tiveram oportunidade de ler o trabalho que escrevi sobre cruzamentos consanguíneos.
Entregara a cada um de nós uma cópia datilografada da monografia, logo que nos instalamos em Washington.
— Se leram, devem saber até que ponto uma determinada situação genética pode ser manipulada. De um modo geral, as probabilidades são favoráveis à conjunção Kalki-Lakshmi. Mesmo que não fossem, estou em condições de ajustar as probabilidades. De marcar as cartas. De viciar os dados. Não obstante, seria ideal que pudéssemos, se necessário, acrescentar um outro macho à equação.
Geraldine falou durante dez minutos, sem se dar conta de que seus ouvintes estavam petrificados. Ao terminar, muito satisfeita, fez uma pausa... na expectativa. Quase da mesma maneira que Arlene fazia uma pausa em meio a um comercial, contando mentalmente até cinco; a pausa era preenchida por aplausos e risos gravados. Esta noite, porém, não houve aplausos nem risos. Na verdade, ninguém disse uma só palavra até a conta de cinco vezes cinco.
— Seu conselho chegou tarde demais — declarou Giles, afinal. Agora, deixara de ser o Dr. Ashok e era, decididamente, Giles. Estava totalmente sóbrio. Retirou a peruca do Dr. Ashok.
Quando Kalki falou, seu tom era gélido:
— Se fosse minha intenção ter outro homem fértil no final da era de Kali, eu o teria feito sobreviver à peste, como fiz com vocês quatro.
— Claro, claro — disse Giles, estranhamente humilde e conciliador.
Geraldine preferiu ignorar a evidente fúria de Kalki:
— Não entenderam o que eu quis dizer. Na realidade, não há necessidade de um homem. Existem outros métodos para fertilizar Lakshmi.
— Que outros métodos? — indagou Lakshmi, quase em estado de choque.
— Os bancos de sêmen — respondeu Geraldine. — Existem dois aqui mesmo em Washington. Podemos escolher os doadores. Podemos fertilizar Lakshmi com inúmeras combinações desejáveis. E recomendo que uma delas, pelo menos, seja chinesa. Seria uma tragédia biológica perder para sempre o potencial genético dos chineses.
De repente, Kalki soltou uma gargalhada. Todos nós rimos, também, obedientes. Depois, Kalki disse:
— Geraldine, você está no mundo da lua! É uma grande cientista, sem dúvida. E estou certo de que tem razão. Se houvesse um meio de preservar o potencial genético dos chineses, eu o teria feito. Não só o dos chineses, mas todos os potenciais étnicos. Teria construído uma arca de Noé da genética. Todavia, você sabe tão bem quanto eu que isso não estava previsto. No final, só poderiam existir cinco pessoas. E, dentre os cinco, apenas um pode ser o procriador.
— Os bancos de sêmen... — começou Geraldine, irritada. Se cabelos ruivos ficam realmente eriçados, os dela deviam estar estalando de eletricidade.
— Estão falidos! — interrompeu Kalki, sorrindo para ela.
— Que quer dizer com isso? — perguntei. — Falidos?
— Feriado bancário. Moratória. Suspensão de depósitos. Suspensão dos saques. Pensem bem. Para viver, o sêmen precisa ser mantido a uma determinada temperatura. Quando a eletricidade acabou, todos aqueles bilhões de espermatozóides morreram.
— Nem pensei nisso — disse Geraldine. — Você tem razão, é claro.
Ao contrário de todos nós, Geraldine admite prontamente seus enganos. Evidentemente, porém, não ficou satisfeita.
Kalki declarou:
— O único futuro da raça humana está aqui!
Espalmou a mão sobre os órgãos genitais e fechou-a vagarosamente. Ficamos todos espantados. Estarrecidos. Não pelo gesto em si, mas pela verdade que ele representava.
Giles, suavizando o momento mais crítico da noite até aquele instante, anunciou:
— Descobri um vídeo-cassete das festividades de posse do último presidente. Vamos assistir? É divertido.
Assim, fomos assistir à televisão. Depois, despedimo-nos de Giles, que permaneceu de pé na soleira da porta principal da Blair House. Acenou até que nós quatro chegamos ao Lafayette Park.
A lua estava cheia. Será que a lua cheia afeta o comportamento humano? Embora eu já não seja — para falar com exatidão — uma mulher cujo fluxo menstrual pode comandar o crescimento ou minguamento da lua, sinto ocasionalmente o fantasma do extinto poder de meu corpo revolver-se dentro de mim quando a lua está cheia. Esta noite, estou muito consciente de minha personalidade primitiva.
Do Capitólio, podíamos ouvir os lobos. Raramente se aproximam de nós, mas, quando o fazem, mostram-se amistosos, embora tímidos. Preferem manter-se a distância.
Quando entramos no Lafayette Park os lobos pararam de uivar e nosso mundo ficou totalmente silencioso. Até mesmo atualmente tenho dificuldades para me acostumar ao silêncio universal. Ao contrário da escuridão, ele não pode ser alterado. Por solicitação geral, Kalki mantém a Casa Branca iluminada do anoitecer até o amanhecer. Minha mesa de trabalho está colocada de tal maneira que mesmo agora posso ver o famoso pórtico, enquanto escrevo.
— Querem tomar conosco um trago de despedida? Uma saideira? — perguntou Kalki, ainda numa disposição festiva.
— Não, obrigada — respondi, sabendo que Geraldine estava com uma de suas dores de cabeça.
— E eu preciso dormir — disse Lakshmi.
Um leão rugiu na outra margem do Potomac. Esperamos um rugido de resposta, mas este não veio.
— Giles estava muito esquisito — comentou Lakshmi.
— Não é fácil para ele — replicou Kalki, bondoso. Aliás, é sempre muito generoso para conosco. Aceita nossos erros e elogia nossas virtudes. Afinal, talvez sejamos realmente apenas sonhos dele, extensões propositais de sua vontade. Se isso for verdade, o que será de nós quando ele acordar?
Kalki disse repentinamente:
— Eu teria salvo Estelle.
Era espantoso.
— É mesmo? — perguntou Lakshmi, muito séria ao pálido luar.
— Estão vendo? — riu Kalki. — Foi exatamente por isso que não a salvei. Você ficaria com ciúmes. Todavia, se eu o fizesse, Giles teria alguém. Tudo ficaria melhor para todos nós. Contudo, cinco não podem ser seis. Nem mesmo na nova matemática.
Geraldine beijou o rosto de Kalki.
— O deus Vishnu fez o que tinha de ser feito — disse ela. — Você sempre esteve certo.
— Nem sempre — replicou Lakshmi. — Quando Jimmy é sua personalidade humana, comete enganos, como todos nós. Quando é deus, porém, o caso é diferente.
— Uma diferença que não é maior que este corpo de carne e osso que eu utilizo — disse ele, com um sorriso.
Uma vez que Kalki não pareceu aborrecer-se com a quase blasfêmia de Lakshmi, decidi acrescentar uma pequena heresia, comentando da maneira mais seca que H. V. Weiss poderia desejar:
— Deve ser semelhante a uma mudança de corrente direta para corrente alternada, quando Vishnu muda de Kelly para Kalki.
Todos rimos. E nos despedimos. Que belo casal, pensei, ao vê-los percorrer vagarosamente a alameda que levava ao pórtico iluminado da Casa Branca. Kalki passara o braço pela cintura de Lakshmi, que recostara a cabeça no ombro dele.
Ao entrarmos no Hay-Adams, Geraldine e eu fomos barulhentamente recebidas por Jack, Jill e a Criança. Então, como sempre, fiz a limpeza. O projeto mais recente de Jack é arrancar o forro dos diversos sofás. É compulsivamente destrutivo, a despeito da desaprovação de Jill. Na qualidade de mãe, Jill é uma dona-de-casa e preservadora nata.
— Não creio que a nova raça humana pudesse ter pais mais bonitos — comentei para Geraldine, arrancando o último pedaço de forro dos punhos cerrados de Jack.
— São bom material — concordou ela. — Suponho que, se tem de haver apenas um homem e uma mulher para gerar a nova raça, são um casal muito adequado.
A ênfase que ela colocou na expressão "tem de haver" fez com que eu largasse Jack.
— Você acha mesmo que deveria haver outros?
Geraldine não respondeu. É totalmente fiel a Kalki. Começou a subir a escada. Eu tranquei as crianças no bar e fui atrás dela.
Ajudei Geraldine a despir o vestido Balenciaga, muito mais complicado que meu simples, mas elegante, modelo Charles James. Mais uma vez, notei como Geraldine se parece com o retrato de Perdita, pintado por Joshua Reynolds, que lhe dei de presente de aniversário. O quadro está pendurado à cabeceira de sua cama.
— É uma pena, em relação a nós — comentou Geraldine, deitando-se.
— Por não podermos ter filhos... com Kalki?
— Sim. Sei que é tolice minha, porque o único motivo pelo qual ele nos escolheu para a Idade de Ouro é o fato de não podermos ter filhos. Mesmo assim...
— Ora, temos muitas razões para nos sentirmos gratas.
Geraldine sorriu, apesar da dor de cabeça:
— Eu sei.
Beijamo-nos. Em seguida, fui para o meu quarto.
Tomei Alka-Seltzer e aspirina. Agora, estou totalmente sóbria e desperta. Os lobos uivam nas redondezas. Ou melhor, não é bem isso. A não ser nas raras ocasiões em que celebram a lua cheia, os lobos não uivam. Costumam latir, como estão latindo agora.
Afinal meu registro está atualizado. Descrevi o final da era de Kali e o início da Idade de Ouro. Do meu ponto de vista, é claro. Para mim, não pode existir outro.
3 de Ottinger de 3 d.K.
Faz exatamente dois anos desde que olhei pela última vez este registro. Kalki deseja que eu escreva um pós-escrito. Não sei o motivo.
Dois dias após o jantar de gala na Blair House, Lakshmi teve um parto prematuro. A criança — uma menina, como estava previsto — nasceu morta e defeituosa.
Lakshmi caiu em profunda depressão. Kalki ficou sombrio, taciturno. Giles procurou consolar-nos; assegurou a todos que não ocorrera algo grave. Tinha absoluta certeza de que a próxima criança seria saudável. Enumerou uma série de argumentos. Todavia, sem o conhecimento de Giles, Geraldine fez uma série de exames de sangue de Kalki e Lakshmi.
Numa manhã fria e chuvosa, Geraldine entrou em nossa sala de estar no Hay-Adams. Ainda usava seu avental de laboratório. Quando está nervosa, apresenta um leve tique nervoso na bochecha esquerda. Naquela manhã, o tique estava em evidência.
— Lakshmi tem Rh negativo — disse ela, sentando-se na cadeira em frente à minha mesa de trabalho. — O Rh de Kalki é positivo.
Eu sabia exatamente o que aquilo significava. Todas as mães conhecem as incompatibilidades de sangue que podem existir entre homem e mulher. Geraldine me explicou tudo, nos mínimos detalhes, enquanto a chuva caía torrencialmente, embaçando as janelas e escurecendo a sala.
Antes de Kalki, treze por cento de todas as uniões de casais nos Estados Unidos ocorriam entre mulheres com Rh negativo e homens com Rh positivo. Embora o primeiro filho de uma união desse tipo pudesse ser normal, as gestações subseqüentes poderiam ser desastrosas até o descobrimento de um soro profilático denominado Rho-GAM. Se uma mulher com Rh negativo fosse tratada com o Rho-GAM imediatamente após o parto do primeiro filho, a segunda criança seria normal. Sem esse tratamento, os filhos seguintes poderiam sofrer de hidropisia fetal, icterícia ou nascerem mortos. Lakshmi não tivera o tratamento.
Geraldine se mostrara muito exata, enraivecida e culpada.
— Eu deveria conhecer o sangue de ambos...
— Por quê? — tentei consolá-la. — Afinal, você não é médica. O médico deles é Giles.
— Exato — disse Geraldine. — O médico deles é Giles.
Quando percebi o que ela estava pensando, também fiquei profundamente chocada. Ouvi minha própria voz, parecendo vir de muito longe, dizer o que eu esperava que fosse verdade:
— Ele talvez não soubesse.
— Ele sabia.
— Tem certeza? Isto é, não há possibilidade de que ele tenha cometido um equívoco absolutamente involuntário? — insisti na esperança de que a verdade não fosse verdade e que o crime pudesse ser expungido por palavras.
— Giles sabia, desde o início, que o sangue deles era incompatível. Portanto...
Geraldine se interrompeu.
— Por quê? — perguntei.
— Por quê? — repetiu ela. A seguir, telefonou para Kalki.
Quando Geraldine e eu entramos na Sala Oval, Giles já estava lá. Lakshmi estava ausente, acamada. Recusava-se a falar com qualquer um de nós. Tinha que ser alimentada à força.
Kalki estava sentado à mesa do presidente. Pela primeira vez desde o Fim, usava uma túnica cor de açafrão. Através da janela atrás de sua cadeira, eu via as galinhas ciscando no jardim.
Giles ergueu-se de um salto, o rosto brilhando de energia e inteligência.
— Geraldine! Teddy!
Tentou beijar Geraldine. Ela o afastou com um empurrão.
Em seguida, Geraldine sentou-se numa cadeira em frente à mesa de Kalki, abriu a bolsa e tirou um maço de papéis. Então, disse:
— Agora, o problema é o seguinte...
Giles interrompeu, desvairado:
— Não há problema algum! Como poderia haver? Estudei pessoalmente todos os exames de sangue que foram feitos em Lakshmi e Kalki...
— Cale a boca, Giles — ordenou Kalki, impassível.
Enquanto Geraldine expunha sua análise da situação, Giles andava de um lado para outro da sala, querendo interromper, mas não tendo coragem. Ouvi termos médicos, como "eritroblastose". Não obstante, o significado da exposição de Geraldine era perfeitamente óbvio, a despeito da complicada terminologia. Da mesma forma que a solução que ela propôs:
— Você e Lakshmi só poderão ter filhos se Lakshmi for dessensibilizada, até setenta e duas horas após o parto, com o Rho-GAM, que contém uma alta dosagem de anticorpos Rh. Isso neutralizará o antígeno existente no sangue e permitirá que ela tenha filhos normais.
Kalki foi direto ao que interessava, pois ainda havia tempo:
— Onde podemos encontrar esse tal Rho-GAM?
— Suponho que possamos encontrá-lo em qualquer hospital — respondeu Giles. — Todavia, discordo de Geraldine. Afinal, é a minha especialidade...
— Discutiremos isso depois — interrompeu Kalki.
O Rho-GAM foi encontrado, porém tarde demais. Lakshmi estava definitivamente sensibilizada. Qualquer filho seu gerado por Kalki nasceria morto, ou, melhor dizendo, não nasceria.
Kalki deu a notícia a Lakshmi. Não sei o que ele lhe disse, pois ela jamais mencionou o assunto a mim ou a Geraldine.
Kalki e Lakshmi ficaram em total reclusão durante uma semana. Telefonei uma vez para Kalki, oferecendo-me para fazer meus serviços habituais no jardim e na horta. Kalki declarou que preferia não ver ninguém. Segundo Geraldine, Lakshmi ainda se encontrava em profunda depressão. Ela não era a única.
Agora, passo a maior parte do tempo no saguão do Hay- Adams, cuidando de Jack e Jill. A Criança se transformou numa menina muito esperta e travessa, com uma personalidade bem definida. Batizei-a de Eve. Sim, uma conotação óbvia. Jack e Jill tiveram mais dois filhos: um menino e uma menina. Gosto de estar com eles. Geraldine não compartilha de meu entusiasmo. Trata-os com neutralidade e eles, sensíveis, respondem na mesma moeda. Geraldine ainda trabalha horas a fio no laboratório. Uma vez que nunca falou comigo a respeito de seu trabalho, não tenho idéia do que ela esteja fazendo.
Oito dias após a cena na Sala Oval, Kalki surgiu repentinamente no saguão do Hay-Adams. Eve pulou para o seu ombro, puxando-lhe o cabelo. Gosta muito dele, embora não aprecie as demais pessoas. Na verdade, desde o início sempre detestou sua mãe e Giles. Temo que também deteste Geraldine. Tolera Jack. Adora Kalki e a mim. Kalki trata-a muito bem.
— Sentimos sua falta — disse eu, ajudando Kalki a livrar os cabelos dos dedos de Eve.
— Eu também senti falta de vocês. Gostaria de convidá-las para jantar conosco hoje à noite — disse Kalki, limpando os restos de maçã que estavam sobre o único sofá ainda não destruído. Desculpei-me pela sujeira.
Kalki sentou-se. Estava barbado, pálido.
-— Giles sabia de tudo desde o início — declarou, como se isso fosse novidade.
— Foi o que presumimos. Todavia, por que não preveniu vocês? Por que não aplicou o tal soro em Lakshmi na época devida?
— Porque não quis — respondeu Kalki, fitando o vácuo. Então, sua voz assumiu um tom decidido, pausado e preciso: — Fui falar com ele ontem, na Blair House. Ele me contou tudo. Disse que sempre teve conhecimento de nosso problema. Queria que Lakshmi ficasse sensibilizada em relação a mim. Revelou-me que jamais fez vasectomia. Que amava Lakshmi. Declarou que se a raça humana tiver de continuar existindo, será necessário que Lakshmi tenha um filho com ele.
Percebi o que estava por vir com a mesma nitidez de um piloto prestes a fazer um pouso de emergência.
— E quando isso acontecer, ele e não você será o pai da nova raça humana.
— Exato — disse Kalki.
— O que fez você?
-— Eu o matei.
Atualizei este registro apenas para fazer a vontade de Kalki. Não consigo imaginar por que motivo ele deseja isso. No futuro não existirá quem o leia.
Continuamos a nos ver. Uma noite, jantamos os quatro na Casa Branca. Na noite seguinte, jantamos no Hay-Adams. Kalki deixou a barba crescer. Usamos roupas velhas. Ocasionalmente, tentamos fazer uma festa, mas, de um modo geral, somos indiferentes a coisas desse tipo. A todas as coisas. Montaigne: "O trabalho constante de nossa vida é preparar nossa morte".
Não conversamos muito à hora do jantar. Lakshmi se tornou quase totalmente retraída após o aborto. Kalki permanece calado dias a fio. De nós todos, apenas Geraldine continua a ser como antes. Em compensação, tem um interesse na vida. Por sugestão de Kalki, prossegue em suas experiências genéticas, de manipulação celular e assim por diante. Julga que Kalki deseja que nos transformemos num clone; isto é, que nos reproduzamos, não a partir de espermatozóides e óvulo, mas de uma célula transferida para um corpo hospedeiro.
— Infelizmente, não possuímos um útero sadio para nutrir essa célula — declarou Geraldine, sem rodeios. — Você e eu estamos fora de cogitações e Lakshmi está definitivamente sensibilizada.
Nossos dias correm ao sabor do acaso. Não sei o que Lakshmi faz na Casa Branca. Só posso dizer que não sai da área que circunda a casa há mais de um ano. Geraldine vai visitá-la de vez em quando. Se pergunto a Geraldine como vão as coisas por lá, ela se limita a sacudir a cabeça.
Kalki passa uma boa parte do tempo pescando. Também cuida do galinheiro, dos animais domésticos e da horta. Eu faço a capina. É espantoso como tudo cresce depressa. O Lafayette Park está transformado numa floresta e o mato racha o calçamento da Pennsylvania Avenue. Os lobos continuam conosco, mas os leões e outros animais selvagens das regiões tropicais morreram durante o inverno ou migraram para o sul. O silêncio é mais impressionante que nunca.
Raramente falamos nos velhos tempos.
No ano passado, dediquei várias semanas a remover todos os veículos — automóveis, caminhões, ônibus — abandonados em nossa parte da cidade. Em conseqüência, podemos sentar-nos no Lafayette Park e olhar para a Casa Branca (que está necessitando de uma pintura) sem ver o menor vestígio do mundo que morreu há dois anos.
Segundo Kalki, estamos no período de crepúsculo que antecede cada nova era da criação. Nada sei a respeito da nova era, mas sou testemunha do crepúsculo. Estamos todos ficando turvos, não só para nós mesmos como também para os outros. Já que raramente falamos nos velhos tempos e não podemos falar do futuro, pois não existem crianças, temos apenas o presente. E nosso presente não tem muita coisa que mereça ser mencionada. Sentamo-nos à mesa do jantar, praticamente em silêncio.
Esta manhã, Kalki entrou na Sala do Gabinete quando eu acabava de escrever as linhas acima. Pediu-me para deixar o registro em cima da mesa.
— As novas pessoas desejarão saber como era antes.
— Que novas pessoas?
Kalki passou os dedos sujos na barba loira e rebelde.
— Haverá outras — declarou. — Após o crepúsculo.
— Você acha mesmo que restaram sobreviventes no mundo?
Embora mencionemos vez por outra tal possibilidade, sabemos que, a não ser nós, a espécie humana desapareceu da face da terra.
Kalki apontou para o registro:
— Quero que você escreva que eu sabia, desde o início, que nós cinco não conseguiríamos reproduzir.
Tive o cuidado de não mostrar espanto. Ou dúvida.
— Escreva que estive testando cada um dos Mestres Perfeitos. E cada um de vocês correspondeu às expectativas, inclusive Giles. Eu lhe disse que Giles era o inimigo necessário. Agora, escreva que eu sabia desde o começo que ele era o avatar de Ravana, o rei-demônio que cobiçava a esposa de Rama, minha esposa. Todavia, com o auxílio dos macacos anfitriões, destruí-o desta vez, como o destruí quando fui Rama. Escreva que ele era alto como o pico de uma montanha e, com seus braços, deteve o curso do Sol e da Lua, evitando que surgissem no céu.
Suponho que esta última parte seja uma citação do Ramayana, mas não me interesso por poesia. Fiz a pergunta crucial:
— Se sabia o que Giles pretendia fazer, por que não o deteve?
— "Tudo conspira para tornar minha felicidade completa" — Kalki citou o último verso da lenda de Rama, acrescentando: — Sou o que sou. Não pode existir dúvida.
— Nem lógica — repliquei atrevidamente. Nada tenho a perder.
— A criação não tem lógica. A destruição não tem lógica. Eu não tenho lógica. Porque não sou humano — disse Kalki em voz baixa, sem olhar para mim. Parecia estar rezando. Talvez estivesse. — Todavia, isso não significa que não exista um objetivo em meu universo. Quando o crepúsculo terminar, iniciarei um novo ciclo.
— Como? Lakshmi não pode ter filhos seus. Mesmo assim, você julgou que pudesse. Enganou-se.
— Não — declarou Kalki, frio. — Sempre soube que isso aconteceria. Contudo, fui impaciente. Desejei encurtar o período de crepúsculo. Quis passar diretamente para a Idade de Ouro. Queria iniciá-la agora, com nossos filhos. Todavia, o plano de Vishnu não pode ser alterado.
— Você é Vishnu.
— Sou seu avatar, mas uso um corpo humano. Estou limitado por todos os tipos de fraquezas humanas. Da mesma forma que Giles tentou iludir-me, eu tentei iludir meus próprios desígnios. Ele fracassou. Eu também. Agora, estou novamente ligado ao deus único, cuja presença humana na terra eu fui, sou e serei.
— E depois?
— Complete o registro hoje. Deixe-o aqui, sobre esta mesa. Será útil para eles.
Já que Kalki preferiu não me dizer quem eram "eles", resolvi não perguntar.
Quem é Kalki? Já não sei. Antes do Fim, julguei que fosse um ator brilhante. Depois do Fim, julguei que talvez fosse alguma espécie de deus, ou espírito primitivo, encarnado num corpo humano. Após a morte do bebê de Lakshmi, não o compreendo. Nem me importo com isso.
O que mais? Geraldine e eu gozamos de ótima saúde. De vez em quando falamos em fazer uma viagem. Todavia, como as mulheres na peça de Tchékhov, fica tudo na conversa. Nunca saímos de casa. De qualquer forma, atualmente eu teria medo de voar. Há mais de um ano que nenhum jato leve a manutenção adequada.
A melhor parte de meus longos dias é quando levo Jack, Jill e algumas das crianças para passear. Embora gostem de trepar nas árvores e comportar-se como os macacos costumam fazer, mostram-se sempre ansiosos para regressar ao Hay-Adams.
Esta tarde, levei-os todos às margens do Potomac, onde me sentei num tronco sob um salgueiro chorão, com Eve em meu colo. Observamos os outros treparem nas árvores, brincarem de esconder, tagarelarem incessantemente em sua língua. Às vezes, entendo o que eles "dizem". Tenciono aprender linguagem de mímica. Aparentemente, é possível ensinar os macacos a se comunicarem da mesma maneira que os surdos-mudos humanos faziam outrora, através de gestos.
Esta tarde, sentada naquele tronco à beira do rio, com Eve acomodada em meu colo, senti-me surpreendentemente feliz. Agora, pequenas coisas me causam grande prazer. Permitam-me enumerar os prazeres de hoje: o ar cheirando a maçãs; pássaros vermelhos voando; peixes prateados saltando no rio, que brilha ao sol como as escamas de um peixe; a água fria, clara e límpida do rio, que desliza silenciosamente em direção ao oceano. E a Criança.
Verão, 43 d.K.
Sou o último como fui o primeiro. Lakshmi abandonou seu corpo humano há vinte e um anos. Desde a morte de Teddy Ottinger, dezesseis anos atrás, Geraldine e eu vivemos felizes juntos. Isto também estava previsto desde o início.
Geraldine morreu durante a noite passada. Na medida em que sou humano, entristeço-me com seu desaparecimento. Mesmo assim, não havia motivo para que ela permanecesse no estado humano. Nosso trabalho está terminado. Eventualmente, juntar-me-ei a todos no Vaikuntha.
Uma nova raça completa de brâmanes se encontra no limiar de uma época muito sagrada. Sentado nesta fria mansão em ruínas, posso ouvi-los cantar e rezar. É a pura alegria dos novos herdeiros da terra, meus fiéis aliados na guerra contra Ravana, os descendentes de Jack e Jill, aos quais eu lego a Idade de Ouro. Pois não sou o mais supremo dos supremos? O senhor das canções? O senhor dos sacrifícios?
Sou o fôlego. Sou o espírito. Sou o senhor supremo. Só eu existia antes do começo, existo e existirei para sempre. Ninguém me transcende. Sou eterno e finito, discernível e indiscernível. Sou Brahma e não sou Brahma. Não tenho início, meio ou fim. No momento do fim, aniquilo todos os mundos.
Eu sou Shiva.
Gore Vidal
O melhor da literatura para todos os gostos e idades