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A vida de Hermann Hesse, rica de acontecimentos, é, bastante reveladora do seu intranquilo espírito e inquieto coração. Filho de missionários protestantes, que levaram a palavra de Cristo à Índia, foi naturalmente encaminhado aos estudos eclesiásticos. Mas logo abandonou a escola de Maulbroon, e em seguida, o Gimnasium de Connstatt: rebelava-se contra a doutrina pietista, a rígida disciplina escolar e o ensino nacionalista e utilitário. Foi ser então aprendiz de relojoeiro e, mais uma vez, não se deu bem. Fugindo para a Suíça, vai trabalhar numa livraria de Tubingen. Com o êxito do romance Peter Camerzind renuncia a esse emprego para dedicar-se somente às letras. Ia cumprir agora o voto que fizera aos treze anos de idade: "ser poeta, ou nada". Casou-se três vezes. Mas às suas primeiras experiências matrimoniais preferiu a vida em contato com a natureza, sem as pressões do lar: é quando se faz pescador, levando uma existência primitiva à beira do lago de Constância. A paisagem sempre o atraiu mesmo quando estava burguêsmente instalado, recebendo amigos e artistas, tocando violino em suas tertúlias domésticas: saía com os companheiros e visitantes para longas excursões através do país. Também se aborreceu da rusticidade campesina. A Índia passou a chamá-lo e para lá embarca "por pura necessidade interior". A Guerra 1914-1918 faz dele um antimilitarista: julga que é preciso "muito mais coragem para ser um homem comum e simples do que um heroi". Com os nervos esfrangalhados chega às portas da loucura, dela saindo por meio da psicanálise. Tendo notícia das artes de vanguarda, estabelece contatos com Apollinaire, Picasso e os dadaístas. De novo empreende viagens, pela China, pela Europa, pela Itália de Jacob Burckhardt. Deixando temporariamente de escrever, dedica-se à pintura "como se estivesse à procura das cores primordiais da vida'; Enquanto esse "furor de viver" o domina, lê e escreve. Escreve sempre atento ao que se passa no país do indivíduo e no mundo dos homens, agora ameaçado pelo nazismo, que combate com tal eficácia, por meio de manifestos e artigos, que a Alemanha hitlerista logo interdita a leitura e a edição dos seus livros. Hesse, com sua vida acidentada, inquieta e tumultuária, - e através de firmes atitudes políticas liberais - exprimia o seu amor à liberdade, o respeito pelo cidadão. E um insubmisso à ordem imposta, às limitações que contrariam a natureza humana. O homem e o escritor só se interessam pelas atmosferas de ar puro e límpido, pelo clima em que egos e coletividades possam respirar a largos haustos. Knulp é um pouco - ou muito? - o próprio Hermann Hesse, ficcionista que se projeta amplamente em seus romances, contos, novelas e poesias. Este personagem vem de longínquos tempos do escritor: da época em que se entregava a românticas e descuidosas perambulações excursionistas, já farto do ambiente familiar organizado e medido. Knulp é um andarilho que seduz as crianças com as suas brincadeiras, um andejo que tem a toda hora uma canção nos lábios, um vagabundo que ama a vida pela própria vida, um jogral boêmio que preza acima de tudo o direito de ser o que é e como é, um homem sem profissão que aspira estar em paz consigo mesmo e com os outros. Knulp é um homem livre. Sua história, contada por Hermann Hesse, é simplesmente maravilhosa, viva, emocionante, rica de conteúdo humano, de lições de amor ao próximo e de desgarrada poesia.
Prenúncio de Primavera
No início da década de noventa, nosso amigo Knulp teve de passar semanas no hospital, e ao lhe darem alta, em meados de fevereiro, o tempo estava tão péssimo que, após uns poucos dias de andança, ele voltou a sentir febre e foi forçado a procurar um abrigo. Amigos não lhe faltavam e encontraria com facilidade acolhimento cordial quase que em todos os lugarejos da região. Mas a este respeito demonstrava estranho orgulho, a ponto de poder ser considerado uma honra ele aceitar algo de um amigo.
Foi do peliceiro Emil Rothfuss, morador em Lãchstetten, que se lembrou e em cuja porta bateu numa noite de chuva e vento oeste. O peliceiro abriu um pouco a janela, no andar de cima, e gritou para a escuridão da rua:
- Quem está aí? Não pode esperar até que seja dia?
Apesar do cansaço, ao ouvir a voz do velho amigo, Knulp sentiu-se animado. Lembrou-se de um versinho, que fizera havia anos, quando perambulara por quatro semanas em companhia de Emil Rothfuss, e no mesmo instante cantou para o alto:
Senta-se cansado viandante
Numa casa de pasto,
Que por certo não é de outro
Senão do filho perdido.
O peliceiro escancarou a janela e curvou-se o mais que pôde para fora.
- Knulp! És tu mesmo ou um fantasma? - Sou eu! - gritou Knulp. - Será que não preferes descer pela escada, em vez de pulares a janela?
O amigo desceu alegre e pressuroso, abriu a porta da casa e iluminou o recém-chegado no rosto com a fumarenta lamparina, fazendo-o piscar.
- Vamos, já ... já para dentro! - exclamou agitado, puxando o visitante para o interior da casa. - Mais tarde me contas as novidades. Sobrou alguma coisa da ceia, e arranjaremos uma cama. Meu Deus, com esse tempo terrível! Felizmente tuas botas são muito boas, não achas
Knulp deixou que fizesse perguntas e se espantasse. Depois, ao pé da escada, cuidadoso, desceu as pernas arregaçadas das calças, e subiu com firmeza, sob a tênue luz da lamparina embora há quatro anos não pisasse naquela casa.
No patamar superior, frente à porta da sala-de-estar, ficou parado um momento e deteve o peliceiro, que o forçava a entrar, puxando-o pela mão.
- Tu ... - disse baixinho - tu já casaste?
- Claro que sim. - É justamente por isto. Sabes como é, tua mulher não me conhece; pode não ficar contente. Não quero estorvá-los.
- Ora, estorvar que nada! - riu Rothfuss. O amigo franqueou a porta, empurrando Knulp para o interior da sala iluminada. Por sobre grande mesa de jantar pendiam, de três correntes, as lâmpadas a petróleo; leve fumaça de tabaco flutuava no ar, ascendendo em tênues fios na direção dos cilindros aquecidos, para, finalmente, num rodopio, esgarçarem-se no alto. Sôbre a mesa, um jornal e uma bexiga de porco cheia de fumo para cachimbo; de pequeno e estreito canapé, encostado à parede, pulou, em- baraçada e sem muita vivacidade, como se surpreendida num cochilo, que não quisesse deixar perceber, a, jovem dona da casa. Knulp pesta- nejou como ofuscado por intensa luz, fitou a mulher nos olhos cinzento-claros e estendeu-lhe a mão num cumprimento cortês.
- Ei-la! - disse o mestre rindo - e este é Knulp, meu amigo Knulp, sabes, de quem já falamos bastante. Ele é nosso hóspede, naturalmente, e ficará na cama do aprendiz, que está vazia. Knulp precisa comer algo, mas antes beberemos um mosto. Havia por aí um chouriço de fígado, não
A mulher do mestre dirigiu-se para dentro e Knulp acompanhou-a com o olhar.
- Está um pouco assustada, nem se discute - comentou baixinho.
Rothfuss não concordou. - Ainda não têm filhos? - indagou Knulp.
Nesse momento retornava ela trazendo o chouriço num prato de estanho, que colocou ao lado da tábua de pão; no centro desta restava metade de um pão prêto, com a parte cortada cuidadosamente virada para baixo, e, ao redor, um círculo com inscrição entalhada em relêvo onde se lia:
Dá-nos hoje o pão de cada dia.
- Sabes, Lis, o que Knulp me perguntou agorinha
- Deixa disso,- opôs-se Knulp. E virouse sorrindo para a dona da casa. - A verdade é que sou muito indiscreto, minha senhora.
Mas Rothfuss não lhe deu ouvidos. - Se não temos filho, foi o que perguntou. - Ah! isto! - exclamou ela, rindo e logo tornou a deixar a sala.
- Não têm nenhum'? - perguntou Knulp, enquanto ela se ausentara.
- Não, nenhum. Ela acha que temos tempo, e nos primeiros anos assim é melhor. Mas serve-te ... e bom apetite!
Agora a mulher trazia a bilha azul-cinza, em pó de pedra, cheia de mosto; a seu lado colocou três copos, que, com destreza, logo encheu até a borda. Knulp observou e riu.
- À saúde, amigo velho! - exclamou o mestre, batendo seu copo contra o de Knulp.
Mas ele, galante, observou - Primeiro as damas. À sua preciosa saúde, senhora! Bom proveito, velho!
Trocaram brindes e bebêram; Rothfuss resplendia de júbilo e, piscando para a mulher, indagou se já reparara nas finas maneiras de seu amigo.
Ela, no entanto, já o tinha percebido havia muito.
- Vês - disse ela - o Sr. Knulp é mais gentil que tu, conhece etiquêta.
- Oh, por favor! - atalhou o hóspede. - Cada qual age como aprendeu. No que toca às boas maneiras, a senhora poderia me confundir com facilidade. E como serviu bem, tal qual nos melhores hoteis!
- Sim, é verdade - riu o mestre - mas ela também aprendeu isto.
- Sim, onde'? Seu pai é estalajadeiro? - Não, faz muito tempo que ele está debaixo da terra, quase não o conheci. Mas servi um par de anos em Ochsen, conhece'?
- Em Ochsen? Há tempos era a melhor estalagem de Lãchstetten - elogiou Knulp.
- Continua sendo. Não é mesmo, Emil'? Nossos hóspedes eram quase só caixeiros-viajantes e turistas.
- Acredito, senhora. Levava por certo boa vida e de acordo com sua beleza! Mas ser dona de sua própria casa é melhor, não é mesmo?
Vagarosa e fartamente espalhou sobre seu pão o chouriço tenro, depositou, na beirada do prato, a pele cuidadosamente esvaziada, tomando, a, intervalos, um gole do dourado e saboroso mosto de cidra. O mestre, carinhosa e respeitosamente, observava como Knulp, com delicadas e belas mãos, exercia sua tarefa de maneira limpa e elegante; a dona da casa também o admirava com verdadeiro prazer.
- 'Tia, aparência é que não està muito boa - repreendeu-o, mais tarde, Rothfuss.
E Knulp teve então de confessar que havia bem pouco estivera mal e se internara numa casa de saúde, embora ocultasse tudo o que lhe era penoso. Quando seu amigo lhe perguntou o que pensava fazer, oferecendo-lhe, de coração, cama e comida pelo tempo que desejasse, Knulp, que outra coisa não esperava, retraiu-se com certo acanhamento, agradeceu e deixou a discussão do assunto para o dia seguinte.
- Amanhã, ou mesmo depois de amanhã, teremos tempo de tratar disso. Felizmente os dias não se acabam e de qualquer forma, fico um pouco por aqui.
Não fazia planos, nem tomava, de bom grado, compromissos a longo prazo. Só se sentia bem tendo certeza da livre disposição nos dias vindouros.
- Se realmente tivesse eu de permanecer aqui uma temporada - retomou ele - terias então de me registrar como teu ajudante.
- Por que não? - riu o mestre. - Tu como ajudante! Sem falar que não entendes nada de curtume.
- Pouco importa, então não entendes? Pouco se me dá o curtume, que é um belo ofício, mas não tenho talento para o trabalho. Contudo seria bom para a minha carteira de aprendiz-ambulante, sabes. Logo trataria de receber o auxílio-doença.
- Gostaria de ver tua carteira. Knulp enfiou a mão no bolso da frente de seu traje quase novo e retirou o documento, metido com todo cuidado num estôjo oleado.
O mestre peliceiro olhou-o e sorriu. - Sempre irrepreensível! Até parece que foi ontem que te afastaste de tua mãe.
Rothfuss examinou as anotações e os selos e meneou a cabeça com profundo encantamento.
- Mas que ordem! Para ti tudo tem de ser nobre.
Manter a carteira de aprendiz-ambulante assim em ordem era, além do mais, uma das paixões de Knulp. Exprimia, em sua irrepreensibilidade, um agradável e até poético roteiro de ficção; e seus autênticos apontamentos oficiais assinalavam puras etapas gloriosas de uma vida honrada e laboriosa, na qual apenas o gênio erradio, sob forma intensamente ambulatória, chamava a atenção. Apoiado nessas anotações oficiais, de atividades a que se atri- buíra e cultivava, Knulp ia levando uma existência por vezes cheia de fios emaranhados, sem, contudo, transgredir muito aquilo que era proibido. Mas como vagabundo, desocupado, sua existência teria sido ilegal e menosprezada e, sem dúvida, não lhe teria sido possível prosseguir, imperturbavelmente, com sua maravilhosa carga romântica, se os gendarmes não se houvessem mostrado amistosos para com ele. Deixavam-no o mais possível em paz, por perceberem nele um ser humano, sereno e divertido. Na sua carteira não se registrava qualquer censura; não lhe eram atribuídos furtos nem mendicância, e possuía por toda parte honrados amigos. Como um bonito gato caseiro, que se admite com complacência, também todos o deixavam levar uma vida descuidada, por entre diligentes e tiranizados seres humanos, ostentando uma elegância, senhorial e descansada.
- Mas já estariam vocês hà muito tempo dormindo, se eu não tivesse aparecido - exclamou Knulp, enquanto pegava de volta seus papeis.
Pôs-se de pé e fez uma vênia para a dona da casa.
- Vem, Rothfuss, e mostra-me a cama.
O mestre acompanhou-o com uma luz, pela estreita escada do sótão, até o pequeno quarto do aprendiz. Encostada à parede, estava a armação vazia de uma cama de ferro e, ao lado, outra de madeira, com a roupa necessária.
- Queres uma botija de água quente? - indagou, paternalmente, o dono da casa.
- Só o que faltava - disse Knulp rindo. - O Sr. Mestre por certo não precisa de nenhuma, com a, mulherzinha bonita que tem.
- Sim - comentou Rothfuss com veemência -, sobes agora para a tua fria cama no pequeno quarto do sótão; por certo, muitas vezes tens ido para lugar pior, e quantas outras nem mesmo lugar tens para dormir e ficas ao relento. No entanto, nós outros temos casa, profissão e uma bela mulher. Olha, hà muito tempo que podias ser mestre, e antes mesmo do que eu. Bastava quereres.
Enquanto isso, Knulp despira rapidamente a roupa e se enfiara, tiritando, debaixo das cobertas.
- Já não estás cansado de saber? perguntou - Estou bem e posso ouvir.
- Levo as coisas a sério, Knulp.
- Eu também, Rothfuss. Mas não deves pensar que inventaste o casamento. Agora, boa noite.
No outro dia Knulp permaneceu na cama. Ainda se sentia um pouco fraco e o mau tempo não lhe permitiria sair de casa. Pediu ao peliceiro, que pela manhã fora à sua procura, que o deixasse ficar descansando e apenas lhe levasse ao meio-dia um prato de sopa.
Assim deixou-se estar todo o dia na sombria câmara do sótão, quieto e satisfeito. Sentindo o frio e as canseiras das andanças sumirem, abandonou-se com prazer ao bem-estar do cálido abrigo. Escutava os continuados pingos de chuva no telhado e o vento que, inquieto, soprava caprichosas rajadas vindas do gélido sul. E assim, ora cochilava, ora lia, sob luz fraca mas suficiente, peças de sua biblioteca ambulante, constituída de folhas de papel, nas quais copiara poemas e provérbios, e de um macinho de recortes de jornais. Havia também algumas ilustrações de revistas que recortara. Dois recortes eram os preferidos e estavam, pelo frequente manusear, rotos e esfiapados. Um apresentava a atriz Eleonora. Duse, o outro exibia um navio a velas enfrentando vento forte em mar revôlto. Desde o tempo de rapaz Knulp nutria firme predileção pelo Norte e pelo mar, e várias vezes se pusera a caminhar para lá, chegando certa ocasião até Braunschweigische. Esta ave de arribação, que estava sempre em trânsito e não podia permanecer muito tempo no mesmo lugar, invariavelmente voltava em marcha batida para a Alemanha do Sul, impelida, por notável ansiedade e amor à terra. Também podia ser que fosse perdendo a despreocupação quando em paragens com dialetos e costumes estranhos, onde ninguém o conhecia e lhe era mais difícil manter em ordem sua legendária, carteira de ambulante.
Ao meio-dia o peliceiro levou-lhe a sopa e o pão. Entrou sem fazer barulho e falou-lhe em cochicho, pois supunha estar Knulp doente. Ele próprio, mesmo nas suas doenças infantis, jamais ficara na cama com dia claro. Knulp, porém, se sentia muito bem e não se deu ao trabalho de esclarecer, apenas assegurando que no dia seguinte estaria de novo em pé e com boa saúde.
No fim da tarde a mulher do mestre bateu à porta do quartinho, e como Knulp cochilasse e não desse resposta,, ela entrou cautelosamente e colocou, à cabeceira da cama, uma xícara de café com leite no lugar do prato vazio.
Knulp, que a vira entrar, conservou-se, por cansaço ou por gosto, deitado de olhos fechados, não deixando perceber que estava acordado. A mulher, com o prato vazio na mão, lançou um olhar ao adormecido, cuja cabeça apoiava sobre o braço meio coberto pela camisa de xadrez azul. Surpreendida pela formosura dos negros cabelos e pela beleza quase infantil da fisionomia despreocupada, deteve-se um pouco examinando o belo mancebo, de quem o mestre contara tantas maravilhas. Viu, acima dos olhos cerrados, as espessas sobrancelhas sobre a alva pele macia, a boca vermelho-vivo e o pescoço esguio, e tudo a agradou bastante. Pensou no tempo em que, como criada em Ochsen, levada pelo capricho primaveril, se deixou amar por um rapaz desconhecido e formoso.
Ao curvar-se um pouco, sonhadora e levemente excitada, para contemplar o rosto, a colher de estanho escorregou do prato e caiu, violentando o silencioso e discreto lugar.
Knulp abriu os olhos, vagarosa e nebulosamente, como se viesse de sono profundo. Ergueu a, cabeça, manteve um instante a mão sobre os olhos e disse risonho:
- Viva, a senhora já está aqui! E me trouxe café! Um saboroso café quentinho, justamente aquilo com que sonhava neste instante. Meus melhores agradecimentos, Sra. Rothfuss! Que horas são, afinal?
- Quatro - informou ela ligeiro. - Agora beba enquanto está quente; volto depois para apanhar a vasilha.
E saiu apressada como se não tivesse um minuto de sobra. Knulp acompanhou-a com os olhos e percebeu que descia a escada com rapidez. Seus olhos ficaram pensativos, meneou muitas vezes a cabeça e emitiu de mansinho um assobio de pássaro. Depois, tomou seu café.
Uma hora depois do anoitecer, Knulp sentiu-se entediado, estava magnificamente descansado e de nâvo desejava encontrar gente. Levantou-se satisfeito, vestiu-se, esgueirou-se no escuro, leve como uma fuinha, desceu a escada e escapuliu da casa sem ser notado. O vento soprava ainda, sempre violento e de sudoeste, mas não chovia mais e no céu havia grandes manchas claras.
De cabeça erguida Knulp flanava pelas ruas e pela desolada praça do mercado; postou-se depois ante o portão aberto de uma ferraria, observou os aprendizes arrumando as coisas, iniciou uma conversa, com os mestres e estendeu as mãos geladas sobre o vermelhoescuro do carvão incandescente. A seguir, perguntou a esmo sobre as pessoas conhecidas na cidade, informando-se das mortes e dos casamentos, fazendo-se passar por colega do ferrador, pois lhe eram familiares as gírias e sinais de reconhecimento de todos os ofícios.
Durante este tempo a Sra. Rothfuss pôs-se a preparar a sopa noturna, fazendo soar os aros de ferro do fogãozinho enquanto descascava batatas. Tudo pronto, posta a sopa em fogo brando, foi para a sala de estar em cima, levando a lâmpada da cozinha, e postou-se diante do espelho. Ali encontrou o que procurava: um rosto cheio, faces frescas e olhos cinza-azulados, pondo em ordem, com dedos hábeis, os cabelos desarrumados. Esfregou mais uma vez no avental as mãos recém-lavadas, tomou a lâmpada nas mãos e subiu, lépida, para o sótão.
Bateu de leve na porta do quartinho de Knulp: tornou a bater um pouco mais alto e como não obtivesse resposta, depositou a luz no chão e abriu cautelosamente a porta, para que não rangesse. Entrou na ponta dos pés, deu um passo e apalpou a cadeira junto à cabeceira da cama.
- Dorme? - perguntou a meia-voz. E repetiu: - Dorme? Quero apenas retirar a vasilha.
Como tudo permanecesse quieto, estendeu a mão em direção à cama, mas logo a recolheu num movimento de insegurança, procurando a lâmpada. Vendo o quartinho vazio, a cama arrumada, com desvêlo, os travesseiros e a coberta de penas irrepreensivelmente batidos, voltou, perturbada, para, a cozinha, num misto de angústia e frustração.
Meia hora mais tarde, quando o peliceiro voltou para jantar, a mulher começou a se preocupar, mas não teve ânimo de contar ao marido sua visita à câmara do sótão. Não demorou muito e se ouviu o ranger do portão e o caminhar de alguém pelo corredor pavimentado e escada curva acima. Era Knulp que chegava. Tirando o bonito chapéu de fêltro castanho, cumprimentou os presentes.
- De onde vens '? - exclamou o mestre, surpreso. - Doente e correndo noite afora! Podes, sim, é ir buscar a morte.
- Tens razão - disse Knulp. - Deus seja louvado, Sra. Rothfuss, não vim por outra coisa. Já na praça do mercado senti o cheiro de sua gostosa sopa, que logo expulsará de mim a morte.
Sentaram-se para comer. O chefe da casa estava falador e gabava-se de seu gosto pela vida caseira e pela sua condição de mestre. Espicaçava o hóspede e tornava a dizer-lhe, j com seriedade, que devia uma vez por todas abandonar a eterna perambulação e a ociosidade. Knulp ouvia, mal respondendo, e a mulher do mestre não dizia palavra. Aborrecia-se com o marido, que lhe parecia grosseiro com o cortês e belo Knulp. Quando soaram as dez horas, Knulp disse boa noite e pediu emprestada a navalha do peliceiro.
- Tu estás bem - elogiou Rothfuss, entregando-lhe a navalha. - Rapas o queixo e já se acabou a barba. Boa noite e feliz barbear.
Antes de penetrar em seu cômodo, Knulp inclinou-se na janelinha que ficava no alto, acima da escada do sótão, para contemplar por um instante o céu e as redondezas. O vento quase se aquietava e por entre os telhados divisava-se um negro pedaço de céu onde ardiam úmidas estrelas reluzentes.
Justamente quando estava para afastar a cabeça e fechar a janela, eis que se ilumina uma janelinha na casa do vizinho. Ele viu um quartinho baixo, quase igual ao seu, por cuja porta entrava uma, jovem criada, tendo na mão direita uma vela no castiçal de latão e na esquerda uma grande bilha d'água, que depositou no chão. Movendo a vela iluminou a estreita cama de empregada, que convidava ao sono, arrumada modesta e limpamente com uma grossa coberta de lã vermelha. Pôs o castiçal não se viu onde, e sentou-se sobre um baú baixo pintado de verde, igual ao de todas as empregadas.
Knulp, assim que a inesperada cena começara a se desenrolar, apagara sua própria luz para não ser visto, e permaneceu quieto e à espreita.
A criadinha era do tipo que lhe agradava. Tinha quando muito dezoito ou dezenove anos, ainda não desenvolvida de todo, um bondoso rosto trigueiro, olhos castanhos e espessos cabelos escuros. Mas seu rosto quieto não parecia feliz, e toda ela, sentada em sua dura mala verde, mostrava-se aflita e triste. Knulp, profundo conhecedor do mundo e das mocinhas, logo compreendeu que ela se encontrava no estrangeiro havia bem pouco e sentia saudades da terra. Ela descansou as magras mãos morenas no regaço e buscou fugaz consolo, sentando-se um pouquinho, antes de ir para a cama, em cima de sua mala., a fim, talvez, de pensar na sala da casa paterna.
Em seu quarto, Knulp permanecia imóvel no vão da janela, observando com atenção o pequeno e estranho ser lá em cima, que, desamparado, curtia sua encantadora aflição à luz da vela, sem perceber que estava sendo vigiado. Viu seus bondosos olhos castanhos ora toldarem-se, ora cobrirem-se com os longos cílios. Viu sobre suas morenas faces infantis a luz vermelha brincar de manso, as magras mãos, ainda cansadas, adiarem o último trabalho do dia - o de despir-se -, pousadas sobre o vestido de lã azul-escuro.
Por fim, a mocinha endireitou, com um suspiro, a cabeça, cujas pesadas tranças estavam presas atrás em coque; fitou agradecida, embora não menos angustiada, o vazio, e curvouse para desamarrar o cordão dos sapatos.
Knulp recuara pesaroso, pois lhe parecia errado, e mesmo cruel, espiar a pobre criança despir-se. De bom grado tê-la-ia chamado a fim de tagarelar um pouco e fazê-la ir para a cama mais contente com um dito engraçado. Mas temia que se assustasse e logo apagasse a luz quando a chamasse.
Em vez disso começou a exibir uma de suas muitas habilidades. Pôs-se a assobiar bela e infindavelmente, como se viesse de longe, a canção "Num úmido chdo, let se move uma roda de moinho". Aconteceu fazê-lo tão bela e ternamente que a menina a escutou durante bom tempo, sem saber direito o que era, e, lá pelo terceiro verso, endireitou-se devagar, pôs-se de pé e caminhou para a janela.
Esticou a cabeça para fora e espreitou, não obstante Knulp assobiasse mais baixo. Acompanhou com a cabeça alguns compassos da melodia, olhou de repente e então percebeu de onde vinha a melodia.
- Tem alguém aí em cima? - perguntou, baixinho.
- Só um aprendiz de curtidor - veio a resposta igualmente baixa. - Não quero atrapalhar o sono da mocinha. Senti apenas um pouquinho de saudade e assobiei uma canção. Mas também sei ser alegre... Quem sabe és também estranha aqui, menina?
- Sou da Floresta Negra. - Veja, da Floresta Negra! Eu também, portanto somos conterrâneos. Como te sentes em Lãchstetten?
- Oh, não sei dizer, pois estou aqui apenas há oito dias. E o senhor? Está hà muito tempo?
- Não, há três dias. Mas conterrâneos se tratam por tu, não é mesmo?
- Não, não posso, não nos conhecemos bem.
- O que não é, pode ser. Montanha e vale não se aproximam, mas as pessoas sim. Onde fica sua terra, senhorita?
- O senhor, por certo, não conhece. - Quem sabe? Ou é segredo? - Achthausen. Mal passa de um lugarejo. - Mas bonito, não é mesmo? Na esquina fica uma capela e há também um moinho ou uma serraria, com um grande cão São Bernardo amarelo. Confere ou não confere
- O Bello, sim senhor. Assim que percebeu que 'de conhecia sua terra e lá estivera efetivamente, deixou de lado grande parte da desconfiança e vergonha, e mostrou completo entusiasmo.
- Conhece também o Andres Flick? - perguntou a moça.
- Não, não conheço ninguém lá. Mas na certa é seu pai.
- Sim. - Bem, bem, então é uma menina Flick, e só falta saber agora seu nome de batismo para poder escrever-lhe uma carta, quando passar mais uma vez por Achthausen.
- Quer ir-se embora - Não, não quero, mas desejo saber seu nome, menina Flick.
- Ora essa, eu também não sei o seu. - Sinto muito, mas dá para remediar. Meu nome é Karl Eberhard. Agora sabe como me chamar quando nos encontrarmos de dia. E como devo chamá-la?
- Bárbara. - Assim está bem e muito obrigado. É difícil pronunciar o seu nome e quase aposto que em casa é chamada Barbeie.
- Isso mesmo. Já que sabe tudo, por que faz tantas perguntas? Agora vamos parar a conversa. Boa noite, curtidor.
- Boa noite, menina Barbeie. Purina bem. Por enquanto vou ainda assobiar um pouco. Não vá embora, não custa nada.
E pôs-se a assobiar uma canção engenhosa, à maneira tirolesa, com duplos tons e trinados, que cintilava qual música de dança. Ela ouvia com admiração. Quando Knulp parou de assobiar, ela fechou, mansamente, a janela, enquanto o rapaz se resignava ao seu estreito e escuro quarto.
No dia seguinte, Knulp levantou-se cedo e pegou a navalha do amigo para barbear-se. O peliceiro hà muitos anos ostentava uma barba espessa, de modo que a navalha era tão sem fio que Knulp levou bem meia hora a passá-la nos suspensórios a fim de poder usá-la. Uma vez pronto, vestiu o paletó, apanhou as botas e desceu para a cozinha, onde o ambiente era. quente e cheirava a café.
Pediu à mulher do mestre escôva e graxa para lustrar as botas.
- Que nada! - exclamou ela - isto não é trabalho de homem. Deixe que eu faça.
Todavia ele não aceitou o oferecimento e quando, afinal, a senhora,, com ar contrafeito, entregou-lhe o material ara engraxar, Knulp fez o trabalho com perfeição e alegremente.
- Isso sim - elogiou a mulher, mirando-o. - Tudo polido como se fosse falar com a namorada.
- Oh, isso eu também faço com gosto. - Acredito. Por certo tem uma bem bonita - riu de novo. - Quem sabe, mais de uma?
- Ei, isto não seria bonito - censurou Knulp alegremente. Posso mostrar-lhe um retrato dela.
Ansiosa, chegou-se para perto, enquanto ele tirava do bolso de cima sua, carteira de oleado onde estava o retrato da Duse. Ela o contemplou com interesse.
- É muito bonita - elogiou com cautela. - sem dúvida uma verdadeira dama. Apenas me parece magra. Tem saúde?
- Parece que sim. Bem, agora vamos ver o velho. Ouço-o na sala.
Subiu e saudou o peliceiro. A sala-de-estar estava arrumada; com os claros alizares, o relógio, o espelho e as fotografias na parede, era uma sala alegre e acolhedora. Uma sala assim limpa, pensou Knulp, não é má, porém casar por causa disso não vale a pena. Não encontrava nenhum prazer no agrado que a mulher do mestre lhe demonstrava.
Uma vez tomado o café com leite, acompanhou o mestre Rothfuss ao pátio e ao alpendre e deixou-o mostrar-lhe todo o curtume. Conhecia quase todos os ofícios e formulou perguntas tão adequadas que seu amigo ficou bastante surpreso.
- Como sabes tudo isto - perguntou vivamente. - Dá até para pensar que és, na realidade, aprendiz de curtidor ou o fôste alguma vez.
- Aprende-se de tudo, quando se viaja - respondeu Knulp. - Além do mais, no que toca à arte de peliceria tu mesmo fôste meu mestre, não te lembras mais? Durante os seis ou sete anos que perambulamos juntos, ensinaste-me tudo que podia ser ensinado.
- E ainda sabes isso? - Um bocado, Rothfuss. Mas agora não quero atrapalhar mais. É pena, bem que gos- taria de ajudar um pouco, mas lá embaixo é muito úmido e abafadiço, e não devo tossir demais. Assim, meu velho, vou dar um pulo até a cidade enquanto não chove.
Quando deixou a casa e caminhava vagarosamente pela rua do curtume em direção à cidade, o chapéu de fêltro um pouco inclinado para trás, Rothfuss chegou à porta e observou como o rapaz havia se afastado com agilidade e bem humorado, bem apessoado e evitando com cautela as poças d'água de chuva.
"Boa vida leva, na verdade", ruminou o mestre com uma pontinha de inveja. E enquanto se dirigia, para seus fossos pensava como era extravagante o seu amigo, que nada pedia da vida, senão ser um espectador, um homem a quem não sabia se chamava de ingênuo ou de modesto. É certo que quem trabalha e procura progredir leva, sob muitos aspectos, vida melhor, mas não pode ter tão belas e macias mãos, nem ter andar tão leve e bem lançado. Não, Knulp tinha razão. Agia tal uma criança que se dirige a toda gente, cativando-a, dizendo bonitas frases às moças e mulheres, e tomando todos os dias por domingo. Deixava-se levar ao léu, e quando algo lhe ia, mal e precisava de um abrigo, era uma alegria e honra recebê-lo, e todos ainda lhe ficavam agradecidos pois ele tornava a casa alegre e luminosa.
Enquanto isso, seu hóspede caminhava, curioso e prazenteiro, através da cidadezinha, assobiando entredentes uma marcha militar e procurando, sem pressa, os lugares e as pessoas que já conhecia. Primeiro que tudo dirigiu-se para o subúrbio, em terreno íngreme, onde conhecia um pobre alfaiate remendão; este causava pena, pois não conseguia senão calças velhas para consertar e quase nunca um traje novo para fazer, embora soubesse trabalhar e em tempo houvesse alimentado esperanças e praticado em boas oficinas. Mas casara-se cedo, logo veio um par de filhos e a mulher tinha pouco talento para o governo da casa.
Knulp procurou e encontrou o alfaiate Schlotterbeck nos fundos de um terceiro andar. A pequena oficina, como um ninho de pássaro, pendia sobre o vazio, pois a casa estava localizada no lado do vale, e quando se olhava a prumo para o vale, através da janela, não se tinha apenas os três andares embaixo, mas o morro com seus íngremes jardins e suas vertiginosas encostas gramadas, terminando numa confusão de varandões traseiros, currais de cabras, coelheiras e galinheiros. Do alto, divisavam-se para lá desta região descuidada, os telhados seguintes, pequenos e afundados lá embaixo, no vale. Por isso a oficina do alfaiate era clara e arejada, e acocorado sobre sua ampla mesa, à janela, o ativo Schlotterbeck pairava iluminado sobre o mundo tal como o atalaia num farol.
- Salve, Schlotterbeck - disse Knuip à entrada.
O mestre, ofuscado pela luz, mirou em direção à porta com os olhos apertados.
- Olá, Knuip! - exclamou reconhecendo-o, enquanto lhe apertava a mão. - De novo na terrinha? E que ideia foi essa de subir até aqui?
Knuip puxou uma cadeira de três pernas e sentou-se.
- Dá cá uma agulha, e um pouquinho de linha marrom, da melhor, pois quero fazer uma revisão.
E logo tirou o paletó e o colete, enfiou a linha na agulha, percorrendo com olhos atentos todo o traje, ainda muito bom e quase novo, e consertando com dedos operosos cada ponto fraco, cada presilha frouxa, cada botão meio caído.
- E como vais afinal? - indagou Schlotterbeck. - A época do ano não é de se gabar, quando se tem saúde e não se tem família.
Knuip pigarreou, polémico.
- Sim, sim - disse displicentemente. - O Senhor faz chover sobre o justo e o pecador, só o alfaiate fica sentado sem se molhar. Tens sempre do que te queixar, Schlotterbeck?
- Ah, Knulp, nem é bom falar. Podes ouvir as crianças chorando lá dentro. São agora cinco. A gente se senta, vara a noite neste trabalho miserável e não se vai a canto nenhum. E tu nada mais fazes senão passear!
- Errou o tiro, freguês velho. Faz quatro ou cinco semanas que estive internado no hospital de Neustadt, e lá só fica quem está muito mal e enquanto não melhora. Os caminhos do Senhor são prodigiosos, amigo Schlotterbeck.
- Ora, deixa desses provérbios. - Então, piedoso como sempre, heim? Também acabarei piedoso, na certa, e por isto te procurei. Como estás a esse respeito, velho bicho da toca?
- Deixa-me em paz com a religião! No hospital, disseste'? Fico com muita pena.
- Não tem importância. E agora conta-me, de uma vez, o que se passa com o Eclesiastes e o Apocalipse Sabes, no hospital tinha tempo e havia lá uma Bíblia; então li quase tudo e agora posso falar melhor a respeito. É um livro curioso, a Bíblia.
- Nisto tens razão. Curioso, e a metade deve ser mentira, pois não faz sentido. Talvez tu entendas melhor, pois já frequentaste uma vez a escola de latim.
- Daquilo me ficou pouca coisa. - Vê, Knulp - o alfaiate cuspiu, pela janela aberta, para as profundezas e olhou com grandes olhos e fisionomia amarga lá para baixo. - Vê, Knulp, a piedade não é nada mesmo, e eu me rio disso. Eu me rio disso.
O viajante fitou-o meditativo. - Bem, bem. Mas isto já foi muito repetido, amigo velho. A mim me parece que na Bíblia estão coisas bem sensatas.
- Sim, mas quando folheias um pouco mais adiante, sempre encontras, noutra parte, o oposto. Não, para mim chega, estou farto e cheio.
Knulp estava de pé e tinha na mão um ferro de engomar.
- Podias me dar uns carvões? - perguntou ao mestre.
- Para que? - Preciso passar um pouco a roupa, sabes, e também seria bom passar o chapéu, depois de toda a chuva.
- Sempre nobre! - exclamou Schlotterbeck um pouco agastado. - Por que precisas andar tão bonito como um conde, sendo apenas um pobretão?
Knulp riu calmo.
- Fica melhor e me deixa contente. Se não quiseres fazê-lo por caridade, faze-o por amor à limpeza e por quereres bem a um velho amigo, sim?
O alfaiate dirigiu-se porta adentro e voltou com o ferro quente.
- Assim está certo - louvou Knulp. - Muito obrigado.
Começou imediatamente a alisar a aba de seu chapéu de fêltro, e como nisso não era tão destro como na costura, o amigo tomou-lhe o ferro das mãos e ele próprio fez o trabalho.
- Isto me agrada - comentou Knulp, agradecido. - Agora é de novo um chapéu domingueiro. Mas vê, alfaiate, exiges demais da Bíblia,. O que é verdadeiro e como a vida é propriamente organizada, devemos pensar por nós mesmos e não aprender em nenhum livro. É o que penso. A Bíblia é velha, e no passado não se sabia muito do que hoje se conhece e sabe; mas, apesar disto, há nela muito de belo e bom, e também muita verdade. Para mim, de vez em quando é igual a um bonito livro de gravuras, sabes? Como aquela, mocinha lá, a Ruth, que vai pelo campo apanhando as espigas caídas; é bonito e sente-se o calor do mais belo sol. Ou quando o Salvador se senta junto das criancinhas e pensa: vocês me são mais queridas do que todos os adultos com sua soberba! Acho que tinha razão, e muito podia aprender-se com ele.
-- Sim, isso sim - concordou Schlotterbeck. Porém, não querendo dar-lhe razão, aduziu: - Mas é bem mais simples quando se trata de filhos dos outros, do que quando a gente mesmo tem cinco e não sabe como lhes dar comida.
Ei-lo de novo amargo e descontente, e Knulp não podia ver isso. Queria,, antes de partir, dizer-lhe algo de bom. Recolheu-se um pouco. Então, curvou-se para o alfaiate, contemplou-o direto no rosto com seus olhos límpidos, e disse de manso:
- É, então tu não gostas de teus filhos? Com intensa surpresa o alfaiate ergueu os olhos.
- Mas, certamente, que pensas?! Claro que os amo com o maior amor.
Knulp concordou com grande energia. -- Tenho de ir, Schlotterbeck, e te agradeço de coração. O colete agora vale o dôbro. E, olha, deves ser amoroso e alegre para com teus filhos; isto já é metade da comida e da bebida. A propósito, vou te contar algo que ninguém sabe e que não precisas passar adiante.
O mestre, atento e vencido, fitou-o nos olhos claros, que se haviam tornado muito Graves:
Olha-me! Tu me invejas e pensas: sua vida é fácil, nada, de família e nenhuma preocupação! Mas não é assim. Eu tenho um filho, um gurizinho de dois anos que foi adotado por pessoas estranhas, pois não conheciam o pai e a mãe morreu do parto. Não precisas saber onde fica a cidade; mas eu sei, e quando chego lá, volteio a casa e me posto na cerca à espera. Quando tenho a, sorte de ver o molequinho, não ouso dar-lhe a mão nem beijá-lo; no máximo me animo a assobiar de passagem. Sim, assim é, e agora adeus, e fica feliz por teres filhos!
Knulp prosseguiu sua marcha através da cidade, ficou um momento tagarelando à janela de um torneiro, observando a dança, veloz das aneladas lascas de madeira. A caminho, saudou o oficial de polícia de quem era conhecido e deixou-o tomar uma pitada de sua caixa de rapé feita de vidoeiro. Por toda parte indagou, a grandes e pequenos, dos negócios e da vida das famílias, soube da morte prematura da mulher do contador da Municipalidade e da má índole do filho do burgomestre. Contava então novidades de outros lugares e alegrava-se com os elos débeis, joviais, que o uniam aqui e ali, como conhecido, amigo e confidente, à vida dos sedentários e honrados. Era sábado e ele perguntou, na entrada de uma cervejaria, aos aprendizes de tanoeiro, onde, à noite e no dia seguinte, haveria ocasião para dançar.
Havia muitas, mas a reunião mais bonita, era no "Valentão" Gertelfinger, distante apenas meia hora. Resolveu ali mesmo levar consigo a jovem Barbeie, da casa vizinha.
Era quase meio-dia. Quando Knulp subiu as escadas da casa de Rothfuss, veio-lhe ao encontro um cheiro forte e delicioso. Ficou quieto e, narinas arfantes, aspirou o ar com alegria e pueril curiosidade. Porém, por mais quieto que tivesse ficado já o tinham pressentido. A mulher do mestre abriu a porta e, amistosa, ficou de pé na abertura iluminada, circundada por nuvens de vapor da comida.
- Deus seja louvado, Sr. Knulp - disse ela, cordial. - É bom que tenha chegado assim a tempo, ainda mais que hoje temos enroladinhos de fígado. Pensei comigo mesma, quem sabe pudesse assar para o senhor mais um pedaço de fígado, de que tanto gosta. O que acha
Knulp cofiou a barba e fez uma curvatura cavalheiresca.
- Bem, mas por que devo ter algo especial? Uma sopa já, me deixa contente.
- Ah! o quê! Quando se esteve doente deve-se ser bem alimentado, pois como hão de voltar as forças? Quem sabe não gosta de fígado? Há pessoas assim.
De riu discretamente. - Oh, eu não sou desses: um prato cheio de enroladinhos de fígado é comida de domingo, e muito satisfeito ficaria se pudesse comêlos todos os domingos.
- De nossa parte não lhe faltará. Para alguma coisa a gente aprende a cozinhar. Há um pedaço de fígado de sobra, separado para o senhor. Faz bem para a sua saúde.
Ela veio mais para perto e riu-lhe, excitada, no rosto. De bem que entendeu o que ela pretendia. A mulherzinha era bastante bonita, mas ele fez como se não o notasse. Brincava com o chapéu de fêltro, passado pelo pobre alfaiate, e olhava para os lados.
- Obrigado, senhora, muito obrigado por suas atenções, mas realmente gosto muito de enroladinhos. E a senhora jà me mimou bastante.
Ela riu e advertiu-o com o dedo: - Não precisa ser assim envergonhado; não acredito no senhor! Logo enroladinhos e justamente recheados com cebolas, sabe como é?
- Para isto não consigo dizer "não". Ela retornou, atarefada, para seu fogão e ele sentou-se na sala, onde a mesa já estava posta. Leu semanários velhos até que o mestre se juntou a ele. A sopa foi trazida. Comeu-se. Depois os três jogaram cartas um quarto de hora, quando Knulp provocou o assombro de sua hospedeira com uns truques novos de cartas, ousados e atilados. Pôs-se também, com a negligência própria de um jogador, a misturar as cartas e a arrumá-las com a rapidez do raio; jogava com elegância sua carta sobre a mesa e deixava, de tempos em tempos, o polegar correr sobre as bordas do baralho. O mestre observava, com admiração e complacência, como um trabalhador e cidadão de respeito se diverte com artes fúteis que não dão comida a ninguém. Mas a mulher do mestre seguia com interesse de conhecedora estas demonstrações próprias da vida mundana. Seu olhar atento pousava naquelas longas mãos macias, não prejudicadas por trabalho pesado.
Um incerto e tênue raio de sol filtrava-se, pelas pequenas vidraças, sobre a mesa e as cartas; caprichoso e sem forças brincava no soalho com as pálidas sombras e turbilhonava contra o teto da sala rebocado de azul. Knulp, na verdade, apreendeu tudo isto com os olhos luzentes: a dança do sol de fevereiro, a silenciosa paz da casa, o sério e laborioso semblante de operário de seu amigo e os olhares disfarçados da bonita mulher. Não lhe agradou, não constituía para ele um alvo de vida, nem representava felicidade. Estivesse com saúde, pensou ele, e fosse verão, não ficaria ali nem mais uma hora.
- Quero tomar um pouco de sol - disse Knulp, enquanto Rothfuss reunia as cartas e olhava o relógio.
Desceu a escada com o mestre, deixou-o no telheiro de secagem, junto de suas peles, e perdeu-se no inculto jardinzinho gramado que, semeado de covas para curtir, descia até o riachinho. Lá o peliceiro construíra uma pontezinha de tábua, para poder banhar suas peles. Knulp sentou-se na pinguela, deixou que as plantas dos pés pendessem rentes sobre a água que fluía quieta e veloz, mirou encantado os ágeis peixes escuros, cujo caminho passava de baixo dele e começou então, curioso, a estudar o sítio, pois procurava ocasião para dali falar com a empregadinha.
Os jardins eram contíguos, separados por mal conservada cerca de ripas, e lá na água, onde as estacas apodrecidas há tempo tinham sumido, podia-se passar de uma propriedade para a outra sem obstáculos. O jardim do vizinho parecia mais cuidado que o ervaçal inculto do peliceiro. Via-se ali quatro filas de canteiros, cobertos de erva e afundados, como ficam após o inverno. Alface e espinafre, hibernados, cresciam escassos, roseirinhas floriam dobradas para o chão, como corolas enterradas. Mais além erguia-se, vedando a casa, um par de belos pinheiros.
Depois de ter examinado o jardim estranho, Knulp chegou, sem ruído, até as árvores, e por entre elas viu a casa, com a cozinha, na parte de trás; não esperara muito e viu também na cozinha a menina, trabalhando de mangas arregaçadas. A dona da casa estava ao lado, e muito tinha o que determinar e ensinar, como é de hábito entre mulheres que não podem pagar empregada com prática, e cujas aprendizes, que mudam cada ano de casa, não sabem dar valor. Suas instruções e reclamações processavam-se num tom sem zanga e a pequena parecia já estar acostumada a isto, tanto que fazia o trabalho sem confusão e com fisionomia, alegre.
O intruso, apoiado num tronco, com a cabeça esticada para a frente, curioso e atento tal um caçador, escutava, com paciência infinda, como um homem que tem tempo de sobra e aprendeu a participar da vida na qualidade de espectador e ouvinte. Alegrava-se com a visão da mocinha, quando surgia na janela, e pelo dialeto da dona da casa concluiu não ser ela natural de Lachstetten, mas sim de lugar distante, um par de horas mais no alto do vale. Quieto, Knulp escutou e espiou, sentado num ramo de pinheiro, durante meia hora, uma hora inteira, até que a senhora saiu e fez-se silêncio na cozinha.
Esperou mais um pouquinho, avançou cauteloso e bateu na janela da cozinha com um galho seco. A criada não prestou atenção, e o moço precisou bater ainda duas vezes. Ela chegou então à janela entreaberta, abriu-a por completo e olhou para fora.
- Sim, que faz aí? - perguntou a meiavoz. - Me deu um bom susto.
- Mas sem razão - retrucou Knulp, rindo. -Queria apenas cumprimentá-la e ver como vai. E, como justamente hoje é sábado, desejo perguntar-lhe se amanhã à tarde poderíamos fazer um pequeno passeio.
Ela fitou-o e abanou a cabeça. Knulp fez uma cara tão aflita e desconsolada que a deixou com muita pena.
- Não - disse amistosa - amanhã não tenho o dia livre, só pela manhã para ir à missa.
- Bem, bem - resmungou Knulp. - Então por certo pode vir comigo hoje à noite.
- Hoje à noite? Sim, estou livre, mas tenho de escrever uma carta para meu pessoal lá em casa.
- Ora, escreva um pouco mais tarde; de qualquer jeito não segue mais hoje à noite.
Veja, esperei com tanta impaciência até poder falar um pouco com você, e hoje à noite, a menos que chovesse canivete, faríamos um passeio muito bonito. Não é mesmo? Seja boazinha, não precisa, ter medo de mim.
- Não tenho medo nenhum de você. Mas não dá certo. Quando o pessoal vir que eu passeio com um par de calças...
- Mas, Barbeie, você não conhece ninguém aqui. E, com certeza, não é nenhum pecado e ninguém tem nada a dizer. Você não é mais uma menina, de escola, não é mesmo? Portanto, não se esqueça, estarei às oito horas embaixo da sala de ginástica, lá onde ficam as bancas do mercado de gado. Ou é melhor mais cedo? Combinemos já.
- Não, não, mais cedo não. Além do mais, você não devia vir, não dá certo, e eu não devo...
Mais uma vez ele exibiu a pueril fisionomia aflita.
- Bem, já que você não quer mesmo! - disse triste. - Tinha pensado que estivesse aqui livre e sôzinha, sentindo muitas vezes saudades de casa, como eu, e assim a gente falava um pouco; de boa vontade escutaria mais sobre Achthausen, pois lá estive uma vez. Mas forçá-la eu não posso, e você também não devia me levar a mal.
- Mas como levá-lo a mal! É que eu não posso mesmo.
- Você tem a noite livre, Barbele. Você simplesmente não quer. Mas quem sabe mude de opinião. Agora devo ir; hoje à noite estarei no salão de ginástica, esperando; se não vier ninguém, passearei sozinho, pensando em você, que talvez estará escrevendo para Achthausen. Então adeus, e não me tome a mal.
Inclinou de leve a cabeça, e pôs-se a caminho, a fim de que ela nada mais pudesse dizer. A moça viu-o desaparecer atrás das árvores e fez uma cara perplexa. Voltou a seguir para o trabalho e começou logo (a patroa tinha saído) a cantar alto e bonito.
Knulp ouvia bem. Estava de novo sentado na pinguela e fazia bolinhas de um pedaço de pão, que separara quando do almoço. Deixava cair na água as bolinhas, uma atrás da outra, e olhava, pensativo, como elas afundavam, ensopadas pela correnteza, e lá embaixo, no fundo escuro, eram abocanhadas pelos silenciosos peixes fantasmais.
- Bem - disse o peliceiro, ao jantar. - É noite de sábado, e não podes imaginar como isto é bom, depois de a gente dar duro a semana inteira.
- Oh, bem posso imaginar - riu Knulp A mulher do mestre riu também, fitando-o maliciosamente nos olhos.
- Hoje à noite - prosseguiu Rothfuss, alegre - hoje à noite tomamos juntos um bom quartilho de cerveja; minha velha traz agora mesmo, não é verdade? E amanhã, se o tempo estiver bom, fazemos nós três uma excursão. Que pensas, amigo velho?
Knulp sacudiu-o com força pelos ombros. - Vive-se bem contigo, devo dizer, e desde jà me alegro com a excursão. Porém, para hoje à noite tenho um compromisso, pois está aqui um amigo meu e fiquei de encontrá-lo. Ele trabalhou na ferraria que fica, logo ali em cima e viaja amanhã. Sinto muito, mas amanhã estaremos juntos o dia todo, do contrário não me teria comprometido.
- Não vais querer agora andar correndo noite afora, meio doente como estás.
- Ora essa, não se deve dar atenção à doença. Não volto tarde para casa. Onde escondes a chave, para que possa entrar
- Es um teimoso, Knulp. Vai, vai de uma vez, a chave fica atrás da janela do porão. Sabes bem onde?
- Sim. Então já vou. Vão direitinho para a cama! Boa noite. Boa noite, senhora.
Saiu, e quando já estava lá embaixo, à porta de entrada, veio-lhe ao encontro, correndo, a mulher do mestre. 'Trazia, um guarda- chuva que Knuip, quisesse ou não, tinha de levar.
- Precisa ter cuidado consigo, Knuip - disse ela. - E agora quero mostrar-lhe onde encontrar a chave.
Levando-o pela mão conduziu-o, no escuro, ao canto da casa e parou diante de uma janelinha fechada com folhas de madeira.
- Deixamos a chave atrás das folhas - esclareceu, agitada, cochichando e acariciando a mão de Knuip. - É só estender a mão pela abertura; ela está sobre o caixilho.
- Sim, muito obrigado - disse Knuip, embaraçado e puxando a mão para trás.
- Devo guardar-lhe uma cerveja? - tornou ela, reclinando-se de leve contra o moço.
- Não, obrigado, bebo raras vezes. Boa noite, senhora Rothfuss, e muito obrigado.
- 'Tão apressado assim? - sussurrou ela ternamente, beliscando-o no braço.
Seus olhos fitavam os dele. Meio embaraçado e não querendo empurrá-la com força, Knuip passou-lhe de leve a mão sobre os cabelos;
- Mas agora devo andar - exclamou ele de súbito em alta voz, e recuou.
Ela riu-lhe com a boca entreaberta e ele pôde ver-lhe os dentes luzirem na escuridão. E numa voz bem baixa:
- Vou esperar então até que voltes para casa. Tu és um amor.
Knulp saiu ligeiro dali, pela escura rua adentro, o guarda-chuva sob o braço, e na esquina próxima, tentando dominar a desatinada angústia, começa a assobiar. Era a canção:
Desejas que case contigo
Sem uma vez considerar
Se terei vergonha do amigo
Que em sociedade encontrar.
O ar estava tépido, e a espaços apontavam estrelas no céu negro. Numa hospedaria, gente moça, em algazarra, já festejava o domingo, e no interior divisou, atrás das janelas do nôvo campo de bocha, um grupo de senhores burgueses, em mangas de camisa e de charutos nos lábios, a tentarem a sorte com as pesadas bolas.
Na altura do salão de ginástica Knulp parou, olhando em tôruo. O vento úmido cantava flébil nos castanheiros calvos, a veloz corrente fluía inaudível para a treva profunda e se refletia de nôvo num par de janelas iluminadas.
A suavidade da noite atingiu de chofre o andarilho em tôdas as suas fibras, êle aspirou farejante o ar e pressentiu primavera, calor, caminhos secos e peregrinação. Sua inesgotável memória abrangeu a cidade, o rio e seu vale, tôda a região. Conhecia tôdas as entradas e saídas, as ruas e cursos d'água, aldeias, lugarejos, granjas, pousadas amigas. Pensou bem a respeito e estabeleceu o plano de sua próxima viagem, já que não podia mais permanecer em Lãchstetten. Queria apenas, caso a, mulher não lho tornasse muito difícil, passar o domingo com o amigo, para satisfazê-lo.
Quem sabe, pensava, devesse avisar o peliceiro a respeito da mulher. Mas não era seu hábito meter-se em assuntos alheios, e não sentia necessidade de tornar os seres humanos melhores ou mais sábios. Lamentava o rumo que as coisas tomavam, e não era nada bom o conceito que fazia da antiga criada do hotel. de Ochsen. Mas não deixava de recordar, com zombaria, a digna palestra do peliceiro sôbre o lar e a felicidade conjugal. Sabia que na maioria das vezes as coisas não são bem assim, quando uma pessoa se gaba e vangloria da felicidade ou da virtude. Com a religiosidade do alfaiate remendão já tinha sido assim. Pode-se observar as pessoas em sua estupidez, pode-se rir delas ou delas se compadecer, mas deve-se deixá-las seguir seu caminho.
Com um suspiro pejado de reminiscência pôs de lado essas preocupações. Encostou-se ao tronco de um velho castanheiro, de frente para a ponte, e pensou em sua andança. De bom grado teria atravessado a Floresta Negra, porém lá em cima ainda estava frio e por certo ainda havia muita neve, que arruina as botas da gente, e as pousadas eram distantes uma da outra. Não, não dava, devia aproximar-se dos vales e deter-se nas cidadezinhas. O moinho do Hirschen, distante quatro horas rio abaixo, era o primeiro pouso certo. Ali estaria abrigado do mau tempo por um ou dois dias.
Perdido nesses pensamentos, sem mais lembrar que esperava alguém, percebeu sôbre a ponte, envôlta na escuridão e açoitada pelo vento, a medrosa figurinha que pouco a pouco se aproximou. Reconheceu-a logo, correu-lhe ao encontro alegre e agradecido, sacudindo o chapéu.
- Foi gentil ter vindo, Barbeie, já não acreditava mais.
Colocou-se à sua esquerda e conduziu-a rio acima, pela alameda. Era, tímida e envergonhada.
- Não está direito - dizia sem cessar -, se alguém nos vê.
Mas Knulp tinha muito o que perguntar e logo os passos da menina se fizeram mais calmos e regulares; por fim seguia ágil e vivaz ao lado dêle, contando, em franca camaradagem, incentivada por suas perguntas e observações, numa fala ansiosa e ardente, de sua terra, do pai e mãe, irmão e avó, dos gatos e galinhas, de granizos e doenças, de casamentos e festas de Natal na igreja. Seu pequeno tesouro de vivências foi exposto e era maior do que ela mesma julgara. Afinal veio, pela ordem, a história de como se empregou, a despedida de casa, seu emprego atual e o modo de vida, de seus patrões.
Há muito caminhavam pelas cercanias da cidade, sem que Barbeie se tivesse dado conta. Agora, após uma, longa e melancólica semana, se redimia, pela conversa, da sensação de sentir-se estrangeira, do silêncio e do padecimento e se tornara, muito alegre.
- Mas onde estamos afinal? - indagou, de súbito, surpresa. - Para onde nos dirigimos
- Se concordar vamos para Gertelfinger, estamos quase lá.
- Gertelfinger? Que vamos fazer lá? É melhor voltarmos, está ficando tarde.
- A que horas deve voltar para casa, Barbeie?
- As dez. Já deve ser isso. Acabou sendo um belo passeio.
- Com certeza ainda não são dez - disse Knulp - e prometo cuidar para que volte a tempo para casa. Mas, como nunca mais andaremos juntos assim jovens, poderíamos, justamente por isso, arriscar uma dança juntos. Ou não gostaria de dançar?
Ela fitou-o atenta e maravilhada. - Oh! estou sempre disposta a dançar. Mas onde? Aqui fora no meio da noite?
- Devia saber que estamos quase em O-ertelfinger e lá hà música na casa do "Valentão". Podemos ir até lá, dançar uma única marca e então voltamos para casa. Teríamos tido uma bela noite.
Barbele permaneceu em dúvida. - Seria divertido - observou lentamente -, mas o que pensariam de nós? Não quero ser falada por isso, e também não quero que pensem que estamos nos namorando.
E de súbito riu, travessa, exclamando - Além do mais, quando mais tarde tiver um namorado, não vai ser nenhum curtidor. Não quero ofendê-lo, mas o ofício de curtidor é pouco limpo.
- Claro que tem razão - disse Knulp, cordato. - Nem devia, casar comigo. Mas ninguém sabe que sou um curtidor, nem que você é tão orgulhosa; estou com as mãos bem lavadas e considere-se convidada, caso queira dançar ao menos uma vez comigo. Se não, damos meiavolta.
Viram na noite a primeira casa da aldeia, de cumeeira branca, aparecer entre as brechas e Knulp, de súbito, fez psiu e ergueu o dedo; vindo da aldeia, chegou-lhes o som da música de dança, um acordeão e uma rabeca.
- Vamos então - disse rindo a menina, e andaram mais rápido.
Na casa do "Valentão" dançava apenas uns quatro ou cinco pares, só gente moça que Knulp não conhecia. Ia tudo calmo e decente, e ninguém importunou o par forasteiro que se juntou às danças seguintes. Acompanharam uma dança camponesa e uma polca; veio depois uma valsa que Barbeie não sabia dançar. Ficaram apreciando e bebêram apenas um chope, porque as posses de Knulp mais não permitiam.
Barbeie, aquecida pela dança, olhava agora a sala com olhos luzentes.
- Está em tempo de voltar para casa - advertiu Knulp, quando eram dez e meia.
Ela seguiu-o um pouco triste. - Oh! que pena - disse baixinho. - Se quiser continuamos. - Não, tenho de ir para casa. Como foi bonito.
Puseram-se a caminho, mas no umbral da porta a menina deixou escapar:
- E nós que não demos nada para os músicos.
- Sim - concordou Knulp, algo perturbado. - Bem que mereciam um dinheirinho. Pena eu não ter nenhum.
Solícita, ela puxou a carteirinha do bolso.
- Mas por que não disse? Aqui estão vinte pf en,nigen*. Entregue-lhos!
Ele pegou a moeda e entregou-a aos músicos; saíram, mas tiveram de ficar parados um momento à porta da casa até que divisassem o caminho na profunda escuridão. O vento, que se tornara mais forte, espalhava umas gôtas de chuva.
- Devo abrir o guarda-chuva? - indagou Knulp.
- Não, com este vento não adianta. A festa esteve boa. Pouco lhe falta para mestre de dança, curtidor.
Ela prosseguia tagarelando alegremente. Seu amigo, porém, tornara-se silencioso, ou por cansaço, ou por temer o próximo adeus.
De repente ela pôs-se a cantar:
"Ora ceifo junto ao Neckar, ora ceifo junto ao Reno".
Sua voz soava quente e pura, e lá pelo segundo verso Knulp resolveu também cantar, fazendo-o com voz tão segura e de modo tão sentimental e belo que ela escutou-o com agrado.
- Como é, agora a saudade de casa se foi? - perguntou ele ao final.
- Oh, sim - e riu alegre. - Precisamos passear de novo.
- Pena - respondeu num sussurro. - este tem de ser o último.
* Moeda divisionária alemã.
Ela ficou parada. Não ouvira, o suficiente, mas o som aflito da voz chamava-lhe a atenção.
- O que e que há? - indagou meio espantada. - Tem algo contra mim?
- Não, Barbeie. Mas amanhã tenho de partir, fui despedido.
- Mas o que me conta! É verdade? Como me dá pena.
- Não precisa ter pena. Se ficar mais algum tempo, já serei um curtidor. Precisa arranjar logo um namorado, bem bonito; assim, a saudade de casa não volta mais, vai ver.
- Ah, não fale assim! Você sabe que lhe quero muito bem,, mesmo não sendo meu namorado.
Ambos calaram-se. O vento soprava-lhes no rosto e Knulp caminhava lentamente. Quando estavam perto da ponte, ele paxou e disse:
- Agora quero dizer-lhe adeus. É melhor você caminhar sozinha o pedacinho que falta.
Barbeie fitou-o no rosto com sincera tristeza.
- É mesmo, Ernst? Quero também agradecer-lhe. Não vou esquecê-lo. E tudo de bom para você.
Ele segurou-lhe a mão e puxou-a ao seu encontro. Afagando seus cabelos molhados, disse num sussurro:
- Adeus, Barbeie. Quero agora por des- pedida apenas um beijo seu, para que não se esqueça por completo de mim.
Ela, sobressaltou-se um pouco e tentou recuar, mas o olhar dele era bom e triste e pela primeira vez ela percebia como eram belos os seus olhos. Sem fechar os seus, ela recebeu acanhadamente o beijo. Logo vieram-lhe as lágrimas aos olhos e ela, devolveu-lhe o beijo com sofreguidão.
Então foi-se embora correndo e já estava sobre a ponte quando voltou-se e retornou.
Ele ainda estava no mesmo lugar. - O que é, Barbeie? - indagou. - Deve ir para casa.
- Sei, sei, já vou. Não deve pensar mal de mim.
- Só o que faltava! - E então, curtidor, você disse que não tinha mais dinheiro. Não vão lhe pagar mais nada antes que se vá?
- Não, não recebo mais nada. Não importa, eu dou um jeito, não precisa ficar pensando nisso.
- Não, não! Você precisa, ter alguma coisa no bolso. Tome!
Ela estendeu-lhe uma grande moeda, que ele percebeu ser um táler*.
* Antiga moeda alemã de prata, valendo cerca de três marcos.
- Qualquer dia você me devolve ou me envia mais tarde.
Ele empurrou-lhe a mão para trás. - Isso não. Não deve tratar assim seu dinheirinho. Isto é um táler inteiro. Pegue-o de volta! Não, tem de pegá-lo! Assim. Não deve ser desmiolada. Se tiver algum trocado, uns cinquenta p f ennigen ou coisa parecida, aceito de boa vontade, porque estou liso. Porém mais, não.
Altercaram ainda um pouco, e Barbeie teve de mostrar-lhe sua bolsinha de dinheiro, para mostrar-lhe que só tinha o táler. Contudo, possuía também um marco e uma moeda prateada de vinte pfenwgen, que ainda tinha valor. Ele queria a, moeda menor, que Barbeie achava ser pouco. Por fim o rapaz aceitou o marco, e ela saiu correndo em direção à casa.
Enquanto corria pensava demoradamente por que não a tinha beijado mais uma vez. Seria para não magoá-la, ou por ser um homem decente. Ficou com esta última conclusão.
Uma hora mais tarde Knulp foi para casa. Viu que lá em cima,, na sala de estar, ardia uma luz. A mulher do mestre ainda estava de pé, a esperá-lo. Cuspiu indignado e esteve para fugir dali, sem demora, para as profundezas da noite. Mas estava cansado e molhado da chuva e, além disso, não queria trair o peliceiro. Tivera essa noite alegria bastante numa discreta travessura.
Knulp pescou a chave de seu esconderijo, abriu a porta da casa com cautela de ladrão, puxou-a atrás de si, chaveou-a sem ruído, lábios apertados em concentração, e recolocou cuidadosamente a chave no antigo lugar. Com os sapatos na mão, subiu a escada. Por uma, fresta da porta da sala, apenas encostada, filtrava-se luz e escutou o ressonar da mulher do mestre, profundamente adormecida, no canapé. Subiu sorrateiramente para seu pequeno quarto, fechou-o bem por dentro e foi deitar-se. Amanhã - era coisa resolvida - partiria para bem longe
Minhas Recordações de Knulp
AALEGRE mocidade estava a meio e Knulp ainda, vivia. Naquele tempo perambulávamos, ele e eu, ao sol esbraseaste, por uma região fértil e tínhamos poucas preocupações. Durante o dia jogávamo-nos sobre os dourados trigais ou deixávamo-nos estar debaixo de uma fresca nogueira, ou à orla da floresta. A noite eu escutava como Knulp contava histórias para os aldeões, divertia as crianças com sombras chinesas e cantava numerosas canções para as mocinhas. Ouvia-o com prazer e sem inveja; somente quando ele se postava entre as meninas, com seu rosto moreno relampejando e as donzelas rindo e zombando muito, mas todas com a atenção nele presa, é que me parecia ser ele um singular pássaro da fortuna e eu o seu oposto. Então punha-me de lado, para não ficar sobrando ali, ou ia, saudar o pároco em seu quarto, em busca de judiciosa conversa noturna e pousada, ou ainda me sentava na hospedaria para saborear um vinho silencioso.
Uma tarde - lembro-me - chegamos a um cemitério, junto ao qual se erguia uma capelinha perdida entre os campos, longe da aldeia mais próxima, acolhedora e sossegada, com suas escuras brenhas apontando acima do muro, erguida na terra cálida. À cancela da entrada, postavam-se dois grandes castanheiros; estava fechada e eu queria prosseguir. Knulp dispôs-se a trepar sobre o miro e então perguntei:
- Outra vez feriado? - Sim, sim, para que não me doam as solas dos pés.
- Está certo, mas tinha de ser justamente num cemitério?
- Com todo o gosto. Os aldeões não se dão a muitos luxos, mas debaixo da terra querem estar confortáveis. Por isso, de boa vontade se dão ao trabalho de plantar o que há de mais bonito sobre os túmulos e nas vizinhanças.
Alcei-me também e vi que ele tinha razão. Valia a pena trepar sobre o muro. Lá dentro dispunham-se, lado a lado, em fileiras retas e curvas, os túmulos, a maioria com uma branca cruz de madeira, e por toda a parte estendendo-se o verde e o colorido das flores. Lá floriam campainhas e gerânios, e tardios goivos amarelos nas sombras mais profundas. Roseiras pendiam carregadas de rosas, e se erguiam lilases e sabugueiros frondosos e de grossos troncos.
Miramos tudo em calma, sentamo-nos na grama que, de espaço em espaço, estava alta e florida. Quietos, sentíamos a frescura do ambiente.
Knulp leu o nome da cruz mais próxima e disse:
- Ele se chama Engelbert Auer e chegou aos sessenta anos. Como recompensa jaz agora sob resedás, que é uma bela flor, e está tranquilo. Chegando minha vez, também quero ter resedás, e apanhou uma flor.
Observei: - Deixa-o e pega outra coisa, o resedá murcha ligeiro.
Mas ele apanhou um e espetou-o no chapéu deixado sobre a grama.
- Como aqui é quieto - disse eu.
E ele: - É mesmo. Se fosse um pouco mais quieto poderíamos ouvir a conversa dos que estão lá embaixo.
- Isto não. Eles se calaram. - Quem sabe? Diz-se sempre que a morte é um sono, e no sono muitas vezes se fala e também se canta.
- Tu talvez - Sim, por que não? E quando tiver morrido, esperarei que as meninas, aos domingos, venham para cá e aqui fiquem e apanhem uma florzinha de um túmulo. Então me porei a cantar bem de manso.
- Bem, mas o quê? - O quê? Qualquer canção. Estirou-se a fio comprido no chão, fechou os olhos e começou a cantar com voz meiga e infantil:
Porque cedo da vida me despedi
Canta, então para mim, ó donzelinha,
Uma canção de adeus.
Quando de novo voltar
Quando de novo voltar
Serei um belo rapaz.
Tive de rir, pois a canção tinha sua graça. Cantara com voz bonita e meiga,, e embora muitas vezes as palavras não tivessem sentido completo, a melodia era muito bela e soava bem.
- Knulp - disse eu - não prometas tanto às donzelas, pois acabam por não te acreditar. Isto de retornar está bem, mas nenhum ser humano pode estar certo disto, e voltar como um belo rapaz, é que não é garantido de jeito algum.
- Garantido não é, tens razão. Mas me seria grato. Lembras-te do menininho com a vaca que vimos anteontem na estrada? Gostaria de ser de novo assim. Tu também, não?
- Não, eu não. Conheci uma vez um velho, bem velho, acima dos setenta, de olhar tão sereno e bom, que me ocorreu que para ele tudo apenas podia ser bom, sábio e tranquilo. E desde então penso, vez por outra, que gostaria de ser assim.
- É, mas para isso ainda te falta, um pouquinho, sabes. E em geral os desejos são bem engraçados. Se neste instante apenas precisasse cabecear para me converter num lindo menininho e tu apenas precisasses também cabecear para te tornares um belo e piedoso velho, nenhum de nós cabecearia. De boa mente permaneceríamos como somos.
- Isto também é certo.
- Sem dúvida que é. E também penso, com frequência: o que em geral existe de mais belo e encantador é uma graciosa mocinha de louros cabelos. Mas não é verdade que se vê, também com frequência, uma morena ainda mais bela? Além do mais, parece-me que o que existe de mais belo e encantador é um lindo pássaro, quando se o contempla voando livre nas alturas. Outras vezes nada é tão maravilhoso como uma borboleta, uma borboleta branca com olhos encarnados nas asas, ou ainda um raio de sol, à tarde, nas nuvens lá em cima, quando tudo brilha, sem ofuscar e tudo se mostra tão alegre e inocente.
- Tens razão, Knulp. Justamente tudo é belo quando se contempla nas boas horas.
- Sim. Mas eu penso diferente. Penso que o que há de mais belo é sempre assim; provoca além do deleite também angústia.
- Como? - Eis o que penso: talvez não achássemos tão linda uma donzela se atentássemos para o fato de ela ter o seu tempo e depois vir a envelhecer e morrer. Se algo belo devesse permanecer igual por toda a eternidade, isto muito me alegraria, mas eu conjecturaria com frieza: poderia sempre ver isto, não precisaria ser hoje. Ao contrário, o que é perecível e não pode permanecer igual, ao contemplá-lo não sinto apenas alegria, mas também compaixão.
- Por certo. - Não sei de nada mais lindo do que fogos de artifício à noite. Bolas luminosas azuis e verdes sobem pela treva, e justamente quando estão mais belas, fazem pequena curva e se acabam. Ao contemplar-se isto, sente-se alegria, e, ao mesmo tempo, angústia; vai acabar mais uma vez, uma coisa depende da outra e é muito mais belo do que se devesse durar mais. Não?
- Claro que sim. Mas isto não se aplica a tudo.
- Por que não? - Por exemplo, quando dois se gostam e casam, ou quando duas pessoas travam amizade, é sem dúvida belo porque é para durar e não deve ter um fim.
Knulp fitou-me atento, pestanejou com seus escuros cílios e disse pensativo:
- Também acho certo. Mas também isso tem um fim, como tudo o mais. Muitas vezes acontece que uma amizade se desfaz e um amor acaba.
- Bem certo, mas não se pensa nisto antes que aconteça.
- Não sei... Vê, duas vezes em minha vida tive um amor, quero dizer, um amor de verdade, e em ambas experimentei a, certeza de que era para sempre, que só findaria com a morte. Mas tiveram um fim, e eu não morri.
Também tive um amigo, em nossa cidade natal, e jamais pensei que pudéssemos nos tornar estranhos. E no entanto nos tornamos estranhos, hà muito.
Meneou a cabeça e eu não sabia o que dizer. O que há de doloroso em toda a relação entre seres humanos ainda não me surpreendera e ainda não tinha experimentado. Por mais unidos que sejam, sempre permanece entre dois seres humanos uma lacuna, que apenas o amor, e apenas de tempos em tempos, pode transpor com uma ponte improvisada. Meditei sobre essas palavras de meu camarada, e o que mais me agradou foi sobre as que se referem às bolas de luz, pelo fato de as ter sentido muitas vezes. As leves e aneladas chamas coloridas subindo na trena e logo nelas submergindo, pareciam-me um símbolo de todo o humano prazer que, quanto mais belo tanto menos satisfaz e tanto mais ligeiro se extingue. Disse isto também para Knulp.
Mas ele não se estendeu a respeito. - Sim, sim - disse apenas. E após um bom momento, com voz sufocada aditou: - Os pensamentos e opiniões não têm valor; não se age como se pensa, ao contrário, dá-se cada passo sem refletir, mas como manda o coração. Com a amizade e o amor talvez seja assim, penso eu. Afinal, cada ser humano tem o que lhe é próprio só para si e não pode compartilhá-lo com outros. Vê-se isto quando alguém morre. Será lamentado e chorado um dia ou uma semana, e até mesmo um ano, mas o morto està morto e distante, e pode jazer dentro de sua tumba tão desprezado e desconhecido quanto um operário qualquer.
- Sabes, isto não me agrada, Knulp. Pois nós falamos muitas vezes que a vida tem de ter um sentido e que há de ter valor alguém ser bom e compassivo em vez de mau e hostil. Mas se é como dizes, dá tudo no mesmo; tanto podemos roubar como matar.
- Não, isto não podemos, meu caro. Se exigires de uma borboleta amarela que fique azul, rirão de ti.
- Não quero dizer isto. Mas já que tudo é igual, então não tem sentido que se queira ser bom e honesto. Já não existe bondade, se o azul é tão bom quanto o amarelo e o mau tão bom quanto o bom. Sendo assim, somos que nem um bicho do mato, agindo segundo a natureza, e nada sentindo a respeito, nem merecimento nem culpa.
Knulp suspirou. - Sim, que dizer a respeito! Talvez seja como dizes. E por causa disto fica-se estúpidamente aflito, pois se observa que o querer não tem valor algum e tudo segue seu caminho independente de nossa interferência. Mesmo quando alguém não pode ser senão mau, sente-se culpado se olhar para dentro de si. É por isso que o bem deve ser o correto, porque nos deixa satisfeitos e de consciência tranquila.
Vi, na sua fisionomia, que estava farto dessa conversa. Acontecia-lhe com frequência por-se a filosofar, a estabelecer conceitos, discuti-los, e de súbito interromper-se. Antes eu julgara que se cansava, de minhas respostas e objeções canhestras. Mas não era assim. Ao contrário, sentia que seu pendor para a especulação o levava a territórios onde seus conhecimentos e meios de expressão eram insuficientes. Na verdade lera muito, entre outros, Tolstoi, mas nem sempre era capaz de discernir entre proposições corretas e sofismas. Ele próprio o sentia. Falava dos sábios como uma criança, dotada fala dos adultos: tinha de reconhecer que possuíam mais poderes e meios do que ele, mas os desdenhava por não terem estabelecido a justiça e, com todas as suas habilidades, não terem podido decifrar nenhum enigma.
Estirava-se de novo, a cabeça sobre as mãos, cravando os olhos, através da negra fronde do sabugueiro, no ardente céu azul, e cantarolava para si mesmo uma velha canção popular do Reno. Ainda sei os últimos versos:
Agora, tenho vestido o casaco vermelho
Agora devo vestir o casaco prêto
Seis, sete anos, Até que meu amor se tenha corrompido.
No fim da tarde, sentados lado a lado na orla de um bosque, cada qual empunhando um grande pedaço de pão e meia linguiça, comíamos e contemplávamos o crepúsculo. Ainda por instantes os outeiros luziram com o dourado do revérbero do céu tardio e logo se desfizeram em flutuante pluma, de fumaça luminosa; agora, no entanto, erguiam-se bem escuros e severos e coloriam suas árvores, campos e brenhas com o negror do céu, todo de profundo azul noturno, sem que restasse ao menos a lembrança do azul do dia.
Enquanto havia luz lemos um para o outro coisas engraçadas de um folhetinlio intitulado Vozes das musas do realejo alemão, o qual continha tôlas e divertidas canções ligeiras, com pequenas xilogravuras. Isto só acabou com o fim da luz do dia. Ao terminarmos de comer, Knulp queria, ouvir música e eu puxei do bolso uma gaita de boca, cheia de migalhas de pão. Limpei-a e toquei outra vez as melodias mais conhecidas. A escuridão, que já há algum tempo nos envolvera, se espalhava longe, adentrando-se pela terra acidentada; o céu também perdera seu pálido brilho e no contínuo escurecer, uma estrela após outra lentamente se punha a luzir. As notas de nossa gaita, lépidas e tênues, voavam em direção aos campos e perdiam-se no espaço longínquo.
De qualquer jeito não poderíamos dormir agora. Pedi a Knulp me contasse uma história, mesmo inverídica, ou então um conto de fadas.
Knulp refletiu. - Está certo - disse. - Contarei um caso e também uma, história de fadas; um sonho. No outono passado sonhei o que te vou contar, e depois voltei a sonhar mais duas vezes o mesmo sonho, bem igual:
Era uma rua numa cidadezinha, bem igual à de minha terra; todas as casas de freixais expostos, à beira da rua, eram, no entanto, mais altas do que em geral se vê. Então fui andando por ela, e era como se, após muito, muito tempo, retornasse ao lar. Mas eu estava apenas meio alegre, porque nem tudo estava em ordem e eu não tinha certeza se estava em lugar errado ou em casa. Muitos cantos eram como deviam ser e eu desde logo os reconhecia, porém muitas casas eram estranhas e desabitadas. Não achei a ponte e o caminho para a praça do mercado e, em vez de chegar a ela, fui dar num jardim desconhecido, com uma igreja ao lado. Era uma igreja como a de Colônia ou de Basileia, com duas grandes torres. Acontece que nossa igreja, lá da terra, nunca teve torre, mas apenas um curto toco com telhado improvisado, porque há tempos tinham-na construído errado e não eram capazes de aprontar a torre.
O mesmo se dava com as pessoas. Muitas, ao vê-las de longe, eram-me bem conhecidas, sabia-lhes os nomes e os tinha na ponta da língua, para chamá-las. Mas umas entravam nalguma casa ou rua transversal e se mantinham distantes; quando outra vinha mais para perto e passava a meu lado, transmudava-se e tornava-se estranha. Depois de passar e já distante, julgava, ao segui-la com os olhos, que fosse ela mesma e eu devesse conhecê-la. Vi também duas mulheres postadas lado a lado em frente a uma venda; uma delas era que nem minha defunta tia. Quando me dirigi para elas, não mais as reconheci e as escutei falar em dialeto inteiramente estranho, que eu não entendia.
Finalmente pensei: se ao menos estivesse outra vez fora da cidade ... Assim corri sem cessar para uma casa conhecida ou ao encontro de um rosto conhecido, a ponto de todos me tomarem por louco. Não me senti irado e impaciente com o que me sucedia, mas apenas triste e cheio de angústia; queria dizer lima oração e concentrei-me com todas as forças, mas só me ocorriam tôlas frases inúteis, como, por exemplo, "muito honrado senhor" e "sob as presentes circunstâncias". E as repeti para mim, confuso e tristonho.
Demorou talvez umas duas horas; cheio de calor e cansaço, e como um autômato, ia, tropeçando sempre mais longe. Já era de tarde, e propus-me a perguntar, às próximas pessoas que encontrasse, onde ficava o albergue ou a estrada real, mas não pude falar com nenhuma, pois todas passavam por mim como se eu fosse ar. Em vão chorei de cansaço e desespero.
Em dado momento cheguei a uma esquina e vi à minha frente nossa velha rua, um tanto lavrada e adornada, o que agora, na verdade, não me perturbava nem um pouco. Dirigi-me direto para ela e reconheci uma casa após outra nitidamente, apesar do ornato do sonho, inclusive a velha casa paterna. Tinha, no entanto, altura sobrenatural, mas era, apesar disto, quase como nos velhos tempos. A alegria e a excitação provocaram-me um como que arrepio pelas costas.
Na porta de entrada estava minha primeira namorada, que se chamava Henriette. Estava um pouco maior e algo diferente de outros tempos, mas se tornara ainda mais bela. Ao aproximar-se percebi que sua beleza era como se fosse um milagre, conferindo-lhe aspecto angelical; constatei também, naquele momento, que era loura-clara e não castanha como a Henriette, mas lhe ficava bem, ainda que a transfigurasse.
- Henriette! - gritei-lhe, tirando o chapéu. Estava tão linda que não sabia se ainda iria me reconhecer.
Ela voltou-se e quando me fitou nos olhos, fiquei surpreso e envergonhado, pois não era de modo algum aquela por quem a tomara, mas sim a Lisabeth, minha segunda namorada, com quem eu andara por muito tempo.
- Lisabeth! - gritei também, acenando-lhe a mão.
Ela tocou-me o coração, como se Deus contemplasse alguém, não de modo austero e arrogante, mas tranquilo e límpido, espiritual e superior, que me tornei que nem um cão. E ela, se mostrava séria e triste; meneou a cabeça, não me tomou a mão e entrou em casa, empurrando silenciosamente a porta atrás de si. Escutei ainda o barulho da fechadura.
Voltei-me e prossegui. Apesar de meus olhos nada verem devido às lágrimas e à aflição, percebi como a, cidade havia se transformado. Agora cada rua, cada casa e tudo o mais era exatamente como nos tempos antigos; a irrealidade desaparecera, de todo. As cumieiras não eram mais tão altas e tinham as velhas cores; as pessoas eram elas realmente e fitavam-me alegres e surpresas, e quando me reconheciam também me chamavam pelo nome. Mas eu não podia responder, nem mesmo permanecer parado. Ao contrário, corri com todas as forças pelo conhecido caminho da ponte e para fora da cidade, e vi tudo apenas com olhos molhados pela dor no coração. Não sabia a razão. Parece-me agora que foi por estar tudo ali perdido para mim e eu tivesse de correr para longe em ignominia.
Então, como estivesse fora da cidade, sob os álamos, e precisasse parar um pouco, pela primeira vez senti que tinha estado na terra natal, em frente à nossa casa e que pensara em pai, mãe, irmãos e amigos sem nenhuma saudade. Senti, como nunca, embaraço, aflição e vergonha em meu coração. Mas não podia voltar e remediar tudo, pois o sonho se fora e eu estava acordado.
Knulp disse: - Cada ser humano tem uma alma que não se confunde com nenhuma outra. Dois homens podem ir um ao encontro do outro, podem falar-se e estar lado a lado. Mas suas almas são como flores, cada qual enraizada em sua árvore, sem poderem se aproximar, pois teriam de abandonar suas raízes. As flores trocam seu cheiro e suas sementes, porque gostam de encontrar-se; mas não podem fazer com que a semente chegue ao lugar certo. Isso cabe ao vento e ele chega e vai como e para onde quer.
E mais tarde: - Quem sabe seja este o significado do sonho que te contei. Conscientemente não agi errado nem com Henriette nem com Lisabeth. Como certa vez, em outros tempos, amara ambas e quisera possuí-las, tornaram-se elas para mim uma figura de sonho, guardando delas apenas o aspecto. A figura me pertence, mas sem vida. Também tive de pensar assim muitas vezes, em meus pais. Julgava que eu, por ser seu filho, fosse como eles. Embora eu devesse amá-los, sou para eles um ser humano estranho, que eles não podem compreender. E aquilo que é o essencial em mim - talvez justamente minha alma - eles o acham secundário e o atribuem à minha juventude ou fantasia. Contudo, gostam de mim. E me dedicam todo o amor. Um pai pode dar de herança a seu filho o nariz, os olhos e mesmo o entendimento, mas não a alma. Ela é única em cada ser humano.
Nada tinha a retrucar, pois ainda não percorrera esta estrada de ideias, pelo menos por necessidade própria. Para mim estes cismares eram pura pretensão, pois não me atingiam e eu presumia que também para Knulp fossem apenas mais uma brincadeira do que uma batalha. Além do mais, era tranquilo e belo ficarem duas pessoas na erva úmida, esperando pela noite e pelo sono, a contemplar as primeiras estrelas.
- Knulp, és um pensador. Deverias ter sido professor.
Ele riu e meneou a cabeça. - Seria bem mais possível eu entrar alguma vez no Exército da Salvação - ponderou de modo pensativo.
Isto foi demais para mim. - Por favor - disse-lhe - não brinques comigo! Não vais querer também ser um santo!
- Claro que quero. Cada ser humano é santo, quando é realmente sincero em pensamentos e ações. Caso se tenha algo como certo, deve-se fazê-lo. E se alguma vez julgasse certo entrar para o Exército da Salvação, não relutaria em fazê-lo.
- Sempre o Exército da Salvação! - Por certo. Quero contar-te a razão. Já falei com muita gente e também escutei muitos discursos. Ouvi falar párocos, professores, burgomestres, sociais-democratas e liberais, mas nenhum deles era, sincero de coração e não me fazia acreditar ser capaz em caso de necessidade, de sacrificar-se por sua filosofia. Contudo, no Exército da Salvação, com toda a música e algazarra, já vi e escutei bem, várias vezes, pessoas que eram sinceras.
- Como sabes isto? - Isto a gente vê. Cito, por exemplo, aquele que fez prédica numa aldeia, certo domingo, ao ar livre, enfrentando pó e calor, a ponto de ficar quase torrado. E nem notava. Quando não mais conseguia arrancar uma palavra de sua garganta, deixava que seus outros companheiros cantassem um verso, enquanto tomava um gole d'água. Metade da aldeia cercava-o, crianças e adultos, e o tomavam por louco e o criticavam. Mais atrás tinha-se postado um jovem criado, empunhando um chicote que de tempos em tempos, fazia estalar com fúria, só para irritar o orador e arrancar o riso dos demais. Mas o pobre sujeito não se zangava, conquanto não fosse tolo. Preferia acompanhar a algazarra. Sabes, isto não se faz por um salário de fome ou por gosto; pelo contrário, é preciso ter dentro de si uma grande santidade e certeza.
- Vá lá que seja. Mas um não vale por todos. E um ser humano bom e sensível como tu, não se mete na confusão.
- 'Talvez, quem sabe. Quando se sente e se tem algo que é ainda muito melhor do que toda a bondade e sensibilidade. Claro que um não vale por todos, mas a verdade, esta tem que valer para tudo.
- Ah, a verdade! Como se vai saber que justamente eles, com suas aleluias, têm a verdade
- Não se pode, é certo. Mas apenas digo: se alguma vez achar que isto é a verdade, então também os seguirei.
- Sim, se alguma vez! Mas tu descobres cada dia uma verdade, e no dia seguinte ela já não tem valor.
Ele fitou-me perturbado. - Disseste algo perverso. Queria me desculpar, mas não permitiu e permaneceu silencioso. Depois disse baixinho "boa noite" e ficou quieto, mas não creio que dormisse logo. Também eu não tinha sono e fiquei deitado bem uma hora apoiado nos cotovelos, olhos fixos na profundeza da terra, noturna.
Pela manhã pareceu-me que Knulp estava de bom-humor. Ele olhou-me, fixamente, com seus olhos infantis e falou:
- Certo. E sabes de onde vem meu bomhumor?
- Não, de onde? - Vem de têrmos dormido bem ontem à noite e tido tantos sonhos bonitos. Porém jamais nos é dado recordá-los. É o que me acontece hoje. Sonhei ao mesmo tempo com coisas luxuosas e divertidas, mas esqueci de tudo; sei apenas que foi de esplendorosa beleza.
E até que atingíssemos a aldeia mais próxima, e tivéssemos bebido o leite matinal, ele, no resplendente amanhecer, cantou com sua voz quente, suave e espontânea, três, quatro canções novinhas em folha, canções essas que, uma vez escritas e impressas, talvez pouco representassem. Se Knulp não era grande poeta, era-o, contudo, um poeta menor, e quando cantava suas cançõezinhas me pareciam mais bonitas que outras, muitas vezes semelhantes como belas irmãs. Algumas estrofes e versos, que guardei de cor, são verdadeiramente belos e me agradam sempre. Nada daquilo era para ser escrito, e seus versos brotaram, viviam e morriam descuidados e irresponsáveis como o vento; mas não só a mim e a ele trouxeram beleza e graça em muitas ocasiões, também a muitos outros, velhos e crianças.
Luminoso e de roupa domingueira,
Tal mocinha no portão fronteiro,
Vem ele vermelho e mesmo assim soberbo
Por sobre o bosque de pinheiros.
Assim cantava, cada dia a respeito do sol, que quase sempre aparecia e era louvado em suas canções. Surpreendentemente ele, que em suas conversas poucas vezes deixava de lado a especulação, fazia, versinhos tão ingênuos que lembravam uma criança asseada em claras roupas de verão. Com frequência eram também absurdos e engraçados e apenas serviam para dar vasão ao seu orgulho.
Naquele dia fui inteiramente contagiado por seu humor. Saudávamos e provocávamos toda a gente que encontrávamos, de modo que atrás de nós ora se ria ora se vituperava, e o dia inteiro correu como uma festa. Contamos um ao outro casos e brincadeiras do tempo de escola, arranjamos apelidos para os aldeões com quem cruzávamos e muitas vezes também para seus cavalos e bois; comemos até fartar, escondidos atrás de uma sebe, groselhas roubadas e poupamos nossas forças e as solas das botas, já que a todo instante parávamos para repousar.
Pareceu-me que desde o meu recente conhecimento com Knulp não o tinha encontrado assim tão bem disposto, amistoso e divertido, e regozijei-me pelo fato de que, a partir da véspera, esta genuína e agradável vida em comum ainda deveria ficar melhor.
O meio-dia tornou-se abafadiço e, em vez de andar, deixamo-nos ficar na grama; pela tarde, o tempo armou-se em tempestade e a atmosfera tornou-se opressiva, a ponto de concordarmos em procurar um teto para a noite.
Knulp foi ficando cada vez mais calado e demonstrando certo cansaço, o que não percebi desde logo, pois ele ria ainda de coração e se juntava, muitas vezes ao meu cantar. Eu próprio me sentia eufórico, com uma viva amizade pulsando pelo outro. Talvez Knulp não percebesse que nele as luzes festivas começavam a bruxulear. Comigo sempre aconteceu que, após dias alegres, me sentisse, ao chegar a noite, mais cheio de vivacidade e sem poder parar; muitas vezes arrastei-me pela noite em procura de diversão, rodando horas a fio, sozinho, quando os outros hà muito dormiam, exaustos.
Esta vespertina febre de amizade também me atacou nesta ocasião, e eu previ uma noite festiva, quando, descendo para o vale, chegássemos a uma aldeia, quase cidade. Primeiramente escolhemos um celeiro afastado, de fácil acesso, para nosso abrigo noturno, depois penetramos na aldeia e nos sentamos no bonito jardim de uma estalagem. Meu amigo era meu convidado e eu pensava mandar servir uns bolinhos e duas garrafas de cerveja, para comemorar um dia de contentamento.
Knulp aceitara com prazer o convite. No entanto, quando tomamos nosso lugar à mesa do jardim, debaixo de belo plátano, disse ele meio embaraçado:
- Sabes, não é? Não vamos tomar bebedeira nenhuma. De boa vontade tomo uma garrafa de cerveja, faz bem e é um prazer para mim, porém mais não posso suportar.
Concordei em boa paz e pensei: logo beberemos o quanto nos alegre. Comemos os filhoses quentes e um suculento e fresco pão de centeio. Pedi outra garrafa de cerveja, enquanto a de Knulp ainda estava pela metade. Fiz isto porque estava de novo a uma boa, mesa, regalado e senhoril, e pensava desfrutar um pouco mais a noite.
Knulp bebeu sua garrafa e não pediu outra, apesar de minha insistência, e instou para que perambulássemos um pouco pela aldeia e fôssemos dormir cedo. Não era esta minha intenção, mas não queria dizer-lhe diretamente. Como minha garrafa ainda, não estivesse vazia, não me importei que ele saísse, pois havíamos de nos encontrar novamente.
Ele saiu. Observei-o caminhar, com passo comodista e satisfeito, uma flor atrás da orelha; subiu os dois degraus que davam para a ampla rua e encaminhou-se vagarosamente em direção à aldeia. Embora lamentasse não houvesse ele esvaziado mais uma garrafa, pensei, alegre e terno, ao vê-lo pelas costas: Querido amigo!
Apesar de o sol já ter desaparecido, aumentava o mormaço. Gostaria de permanecer sentado, quieto, para novo trago vespertino, e resolvi demorar mais um pouco em minha mesa. Como eu era praticamente o único freguês, a empregadinha arranjou tempo para conversar comigo. Pedi-lhe que me trouxesse dois charutos, um dos quais destinava a Knulp, mas acabei fumando-o, por esquecimento.
Cerca de uma hora depois, Knulp voltou para levar-me. Não concordei, pois me sentia confortável. Knulp, cansado e com sono, dirigiu-se para a nossa pousada.
A empregada pôs-se logo a perguntar sobre ele, pois Knulp encantava as mocinhas. Isto não me desgostou, pois ele era meu amigo e ela não era minha namorada. Aumentei-lhe os méritos; sentia-me feliz e experimentava afeição por todos.
Começara a trovejar e a ventar de leve no plátano, quando, bem tarde, resolvi sair. Paguei, dei uma gorjeta à moça e pus-me a caminho; percebi que bebêra uma garrafa a mais, porque ultimamente não havia bebido nada. forte. Isto só me deixou alegre, pois suportava bem um pouco de álcool, e cantei durante todo o percurso até encontrar a nossa pousada. Subi de manso e encontrei Knulp afundado no sono, em mangas de camisa sobre o paletó marrom estendido no chão e respirando regularmente. Sua testa, o pescoço nu e a mão, que mantinha protegendo o rosto, produziam na semi-escuridão um pálido brilho.
Deitei-me com a roupa de baixo, mas a agitação e a cabeça carregada me mantiveram bom tempo acordado. Lá fora entreluzia o lusco-fusco quando, afinal, adormeci profunda e surdamente. O sono era pesado, embora inquieto. Sentia-me mal e debilitado e tive sonhos confusos, torturantes.
Acordei tarde, já em pleno dia, e a claridade feria-me os olhos. Minha cabeça estava vazia e turva e os membros cansados. Bocejei com vagar, esfreguei os olhos e estirei os braços a ponto de os cotovelos estalarem. Apesar da fadiga, conservava um resto de humor da véspera e pensei em lavar o ligeiro mal-estar na fonte clara mais próxima.
No entanto aconteceu diferente. Quando olhei em derredor, Knulp não estava por perto. Chamei e assobiei por ele, não me preocupando a princípio. Quando os chamados, assobios e buscas foram inúteis, tive a certeza de que me deixara. Sim, ele partira, partira às escondidas, não quisera permanecer mais a meu lado. Talvez porque minha bebedeira da véspera o desgostara, talvez porque hoje se envergonhasse de sua própria euforia da véspera, ou por uma questão de humor, ou por não ter confiança em minha companhia, ou ainda por uma necessidade de solidão surgida de súbito. Mas com toda a probabilidade minha bebedeira teria culpa nisso.
A alegria secou em mim, a vergonha e a tristeza me assoberbaram. Onde estava agora meu amigo? A despeito de suas palavras, julgara, compreender um pouco sua alma e ter com ele algo em comum. Agora Knulp se fora, ali estava eu sozinho e desiludido, restando-me apenas acusar-me. Só tinha a solidão, na qual, segundo ele, todos vivemos, e a qual jamais poderia acreditar fosse eu próprio experimentar. Ela era amarga, e não sOmente naqueles primeiros dias; com o decorrer do tempo foi se tornando mais leve, mas não me abandonou de todo, nem me abandonará.
O Fim
ERA um claro dia de outubro e o ar leve e ensolarado agitava-se por caprichosos e breves golpes de vento. Sôbre os campos e jardins estendiam-se as tênues e tardias estrias azul-claras da fumaça das fogueiras de outono, que enchiam a paisagem com odor agridoce de folha e madeira verde queimadas. Nos jardins das aldeias floriam multicoloridas moitas de malmequeres, pálidas rosas e dálias temporãs, e nas cercas vivas ardia ainda, aqui e acolá, uma ígnea flor de capuchinha por entre a reluzente folhagem já descorada.
Pela estrada real para Bulach se deslocava vagaroso o cabriolé do doutor Machold. O caminho seguia suavemente morro acima, tendo à esquerda lavouras e plantações de batatas ceifadas para a próxima colheita, à direita cerrado bosque de pinheiros jovens meio asfixiados, uma parede castanha de hastes densamente apertadas e ramos secos, o chão da mesma cor castanha repleto de agulhas murchas caídas. Dali a estrada penetrava diretamente no céu outonal, de suave azul, como se lá em cima o mundo chegasse ao fim.
O doutor segurava frouxamente as rédeas e deixava o cavalo velho andar como queria. Acabara de visitar uma mulher moribunda, por quem nada mais havia a fazer e, no entanto, lutara tenazmente pela vida até o último momento. Agora estava cansado e desfrutava a viagem silenciosa nesse dia agradável. Seus pensamentos entorpecidos seguiam, aturdidos e automaticamente, os apelos que vinham do cheiro das fogueirinhas dos campos, gratas lembranças confusas e esmaecidas de feriados outonais do tempo de escola, e outras bem mais recuadas da sonora e amorfa aurora da infância. Pois ele se criara no campo e seus sentidos seguiam todos os sinais campestres da estação e suas ocupações.
Estava dormindo quando o despertou a imobilidade do carro. Uma calha, despejava água no meio da estrada, fazendo as rodas dianteiras afundarem. O cavalo, agradecido, estacou, baixou a cabeça, fruindo, contente, o descanso.
Machold tomou as rédeas, viu, sorridente, que o bosque e o céu permaneciam como antes, em ensolarada claridade, e impeliu o animal, com familiares estalos de língua, a prosseguir na subida. Sentou-se ereto, pois não gostava de cochilar de dia, e acendeu um charuto. A viagem continuava a passos lentos, duas mulheres do campo saudaram-no, protegidas pela sombra de comprida fila de sacos cheios de batata.
O cume estava perto e o cavalinho levantou a cabeça, excitado ante a expectativa de trotar morro abaixo pelo outeiro natal, após estar tanto tempo selado. Eis que surge, no claro horizonte, um ser humano, um andarilho, rodeado de labaredas azuis. Aproxima-se; é um homem magro, com barbicha e roupas em mau estado. Evidentemente vindo da estrada real, caminhava exausto e a duras penas, mas tirou o chapéu com gentileza e saudou.
- Deus seja louvado - disse o doutor Machold, e observou o forasteiro, que já tinha passado. De repente parou o cavalo, curvou-se sóbre a rangente capota de couro e gritou: - Ei, você! Venha cá, por favor!
O empoeirado andarilho parou e olhou para trás. Riu dèbilmente para cima, virou-se outra vez e pareceu querer prosseguir. Então mudou de ideia e virou-se obediente.
Veio postar-se ao lado do minúsculo carro, o chapéu na mão.
- Para onde vai, se é que se pode perguntar? - indagou Machold.
- Para a estrada de Berchtoldsegg. - - Será que não nos conhecemos? Só não consigo me lembrar do seu nome. Mas você sabe quem eu sou?
- Parece-me que é o doutor Machold. - E então? O senhor como se chama? - O Sr. Doutor logo vai me reconhecer. O doutor e eu sentamos lado a lado na casa do preceptor Plocher. Naquele tempo, Sr. Doutor, o senhor copiava de mim os exercícios de latim.
Machold apeou-se ligeiro e fitou o homem nos olhos. Bateu-lhe, rindo, nos ombros.
Certo! - disse. - Então tu és o célebre Knulp, e nós fomos colegas de escola. Deixa que te aperte a mão, malandro velho! Faz bem uns dez anos que não nos vemos. Ainda e sempre na peregrinação?
- Ainda e sempre. A gente se apega aos hábitos quando vai ficando mais velho.
- Tens razão. E para onde viajas? De novo para a terra natal?
- Acertou. Vou para Gerbersau, tenho que fazer lá uma coisa sem importância.
- Bem, bem. Quer dizer que ainda vive lá gente tua?
- Mais ninguém. - Na verdade não tens mais aspecto juvenil, Knulp. Nós dois já chegamos à casa dos quarenta. Não foi direito de tua parte ter querido fugir assim de mim... Sabes, parece-me que talvez precises de um médico.
- Ora, o quê! Não me faltava mais nada, e o que tenho nenhum doutor pode curar.
- Isto já se verá. Agora sobe e vem comigo, para melhor conversarmos.
Knulp recuou um pouco e recolocou o chapéu. Com fisionomia embaraçada opôs-se quando o doutor quis ajudá-lo a entrar no carro.
- Ora, por causa disso não é preciso. O cavalinho não vai fugir de ti enquanto aqui estivermos.
Ao dizer isto acometeu-o um acesso de tosse e o médico, que já tinha prática, agarrou-o sem tardança e sentou-o no veículo.
- Bem - disse, enquanto prosseguiam - logo chegaremos lá em cima e depois vamos a trote. Em meia hora estamos em casa. Não precisas conversar, com esta tosse, lá em casa podemos continuar nosso bate-papo...
O quê... Não, isto não te serve mais, lugar de gente doente é na cama e não na estrada. Sabes, em outros tempos me ajudaste um bocado no latim, agora chegou minha vez.
Seguiram pelo espinhaço do morro e, com freios cantantes, a longa encosta abaixo. À frente já se divisava, por sobre as árvores frutíferas, os telhados de Bulach. Machold segurou curto as rédeas e foi a passo pelo caminho, e Knulp rendeu-se cansado, numa semi-alegria, ao prazer da viagem e à violenta hospitalidade. Amanhã, pensava, ou ao mais tardar depois de amanhã, me escapulo para Gerbersau, se os ossos ainda aguentarem. Ele não era, mais o cabeça-de-vento que desperdiçava os dias e os anos. Era um homem doente e velho, que não tinha mais nenhum desejo senão o de, antes de morrer, tornar a ver a terra natal.
Em Bulach seu amigo levou-o logo à sala-de-estar e deu-lhe leite para beber e pão com presunto para comer. Enquanto isso, tagarelavam e aos poucos reencontravam a intimidade. Somente então o médico examinou-o; o doente aturou o exame bem humorado e algo irônico.
- Sabes o que tens realmente? - indagou Machold ao final do exame.
Falou despreocupado sem dar muita importância, e Knulp foi-lhe grato por isto.
- Sim, já sei, Machold. É a tísica, e sei também que já não posso ir longe.
- Ora, quem sabe! Mas então deves compreender também que precisas de cama e cuidados. Podes bem ficar aqui comigo até que eu encontre um lugar no hospital mais próximo. Não estás bem, meu querido, e precisas poupar-te para que mais uma vez te recobres.
Knulp vestiu de volta o casaco. Volveu, com ar malicioso, seu macilento rosto cansado para o doutor e observou divertido:
- Tu te dás muito trabalho, Machold. Logo por mim. Não deves esperar jamais muito de mim.
- Já veremos. Agora vai te sentar ao sol, enquanto ele ainda brilha no jardim. A Lina vai arrumar o quarto de hóspedes. Não devemos perder-te de vista, Knulplein. Que ium homem como você, que passou a vida inteira ao sol e ao ar livre, tenha, calculadamente estragado os pulmões, verdadeiramente não está direito.
E com isto foi-se. A governanta mostrava-se descontente e era contrária a deixar que um tal vagabundo ficasse no quarto de hóspedes. Mas o doutor cortou-lhe a palavra:
- Deixe que se sinta bem, Lina. O homem não viverà muito, precisa ter um pouco de conforto aqui entre nós. Além do mais, sempre foi limpo, e antes que vá para a cama vamos dar-lhe um banho. Arranja-lhe uma de minhas camisas de dormir e - quem sabe - minhas pantufas de inverno. E não se esqueça: o homem é amigo meu.
Knulp dormira onze horas e a manhã nebulosa ele a passou na cama,, onde só pouco a pouco pôde lembrar-se de onde estava. Quando o sol saíra Machold permitiu-lhe que se levantasse. Agora, estavam ambos à mesa junto a um copo de vinho tinto, no ensolarado terraço. A boa comida e o meio copo de vinho haviam deixado Knulp alegre e conversador, e o doutor arranjara, uma hora livre para mais uma vez palestrar com seu singular colega de escola e talvez conhecer um pouco desta vida humana fora do comum.
- Estás satisfeito com a vida que tiveste - disse rindo. -- Então está tudo bem. Mas, do contrário, eu teria dito que é realmente pena para um sujeito como tu. Não precisavas ter feito de ti nenhum padre ou professor, mas talvez um naturalista ou mesmo um poeta. Não sei se aproveitaste e aperfeiçoaste teus dons, mas os usaste só para ti. Ou não?
Knulp apoiou o queixo coberto pela barbicha rala no oco da mão e fitou a claridade avermelhada que, atrás do copo de vinho, brincava sobre a toalha da mesa.
- Não é bera assim - disse devagar.. - Os dons, como tu chamas, não são tantos. Sei assobiar um pouquinho, tocar harmônica e às vezes fazer uns versinhos. Antigamente também fui um bom corredor e não dançava mal. E disto não tirei alegria só para mim, tinha sempre junto muitos camaradas, ou mocinhas e crianças, que se divertiam? e muitas vezes se mostravam gratos. Queremos ver as pessoas contentes e disso tirar nossa alegria.
- Sim - comentou o doutor - isto queremos. Mas ainda preciso perguntar-te uma coisa. Outrora chegaste comigo até a quinta classe da escola de humanidades. Lembro-me bem, fôste um bom estudante, se bem que não um garoto exemplar. De repente desapareces e sabe-se que estás na escola pública, e eis-nos estranhos. Como aluno da escola de humanidades não devias ter por amigo um da escola pública. Como aconteceu isto? Mais tarde, quando ouvia falar de ti sempre pensei que, se na ocasião tivesses continuado conosco na escola, tudo poderia ter sido diferente. Afinal, o que houve? Tu te desgostaste, ou teu pai não pôde mais pagar a escola? Ou o quê?
O doente tomou seu copo na descarnada mão morena, mas não bebeu; mirava apenas, através do vinho, a verde luz do jardim, e recolocou, com cuidado, a taça sobre a mesa.
Calado, fechou os olhos e abismou-se em pensamentos.
- É penoso para ti falar a respeito? - indagou o amigo. - Deixa então.
Ao que Knulp abriu os olhos e fitou-o demorada e inquiridoramente no rosto.
- Pois eu acho - respondeu ainda meditativo - que tem de ser. Jamais contei isto para nenhum ser humano. Mas agora talvez seja bom que alguém escute. A apenas uma história infantil, porém para mim foi importante e me trouxe consequências pelos anos seguintes. É estranho que exatamente tu perguntes por isto.
- Por quê? - Nos últimos tempos tenho de novo pensado muito a respeito e por causa disto estou a caminho de Gerbersau.
- Sim, então conta. - vês, Machold, outrora fomos bons amigos, pelo menos até a terceira ou quarta classe. Depois disso andávamos menos juntos e muitas vezes assobiaste em vão em frente de nossa casa.
- Meu Deus, é mesmo! Faz mais de vinte anos que não penso nisso. Homem, mas que memória! E depois?
- Agora posso te contar como se passaram as coisas. As meninas foram as culpadas. Bastante cedo tive curiosidade a respeito delas, e tu acreditavas ainda na cegonha e eu já sabia bem de que se ocupavam rapazes e moças. Foi esta a razão principal de não participar mais das brincadeiras de índio.
- Tinhas então dez anos, não?
- Quase treze, sou um ano mais velho que tu. Quando certa vez fiquei de cama, doente, estava de visita a nossa casa uma prima, mais velha do que eu três ou quatro anos. Ela começou a brincar comigo e quando fiquei bom, e pude me levantar, certa noite dirigi-me a seu quarto. Fiquei então conhecendo o aspecto de um quarto feminino; miseravelmente assustado fugi dali. Não quis mais trocar palavra com a prima, ela me desgostava e atemorizava, mas a coisa me ficara na cabeça e a partir de então andei uns tempos só atrás das meninas. Na casa do peliceiro Haasis havia duas irmãs de minha idade, e lá iam também outras meninas da vizinhança. Brincávamos de esconder no porão escuro e tínhamos sempre muito que rir à socapa, fazer cócegas e trocar segredos. Eu era, em geral, o único garoto nesse meio, e muitas vezes cabia-me trançar os cabelos de uma delas recebendo um beijo: não estávamos ainda crescidos e não tínhamos prática, mas tudo era namorico. Por ocasião do banho escondia-me atrás dos arbustos e as espiava... Um dia apareceu lá uma nova menina, do subúrbio. Seu pai era operário da malharia. Chamava-se Franziska e logo à primeira vista me agradou.
O doutor interrompeu-o: - Como se chamava o pai? Quem sabe a conheço.
- Perdoa, prefiro não dizer, Machold. Não interessa à história, e também não quero que contes isto a ninguém ... Pois bem. Era maior e mais forte que eu; volta e meia dávamo-nos encontrões ou brigávamos aos tapas. Quando ela, me apertava contra si, até me machucar, eu sentia vertigens e parecia bêbedo. Estava apaixonada por ela, e como era dois anos mais velha e já falava em arranjar namorado, tornou-se meu único desejo ser o escolhido... Certa vez estava ela sentada sôzinha no quintal do curtume, à beira do riacho, com os pés dentro d'água; tinha-se banhado e vestia apenas o corpinho. Cheguei, sentei-me ao lado. Afinal arranjei coragem e disse-lhe que queria e precisava ser seu namorado. Mas ela encarou-me com a piedade nos olhos castanhos e disse: "És apenas um gurizinho de calças curtas, que entendes de namôro e amor?"
Ora, disse eu, sabia tudo, e se ela não quisesse ser minha namorada eu me arrojaria nágua com ela. Então fitou-me atenta, com um lampejo de mulher feita, e disse: "Vamos ver. Já sabes, pois, beijar?"
Respondi-lhe que sim e pespeguei-lhe ligeiro beijo na boca, pensando ao mesmo tempo que era bom. Ela agarrou minha cabeça mantendo-a imóvel e beijava-me agora exatamente como uma mulher, a ponto de fugirem-me a audição e a visão. Aí riu com sua voz profunda e disse: "Tu já me servirias, guri. Mas não dá. Não posso arranjar namorado que ande na escola de humanidades; aquilo não dá gente boa. Preciso namorar um homem de verdade, um artesão ou operário, nada de estudante. Assim, nada feito". Enquanto falava me atraía para seu regaço, tão belo em sua rija quentura e tão bom de envolver com os braços, que eu não podia de jeito algum pensar em me afastar dela. Falei para Franziska que não iria mais para a escola de humanidades e queria, ser um artesão. Ela apenas riu. Por fim beijou-me de novo e prometeu-me que, quando eu não fosse mais aluno de humanidades, iria ser minha namorada e eu haveria de gostar.
Knulp deteve-se para tossir. Seu amigo olhava atento para cima. Ambos calaram um pouco. Depois Knulp prosseguiu:
- Bom, agora conheces a história. Naturalmente não foi tão fácil quanto eu imaginava. Meu pai deu-me uns puxões de orelha quando lhe comuniquei que 'não queria nem podia mais frequentar a escola de humanidades. Não sabia o que fazer; com frequência ocorreume incendiar nossa escola. Eram pensamentos infantis, mas mostram como o objetivo era sério para mim. Achei, finalmente, a única saída. Tratei de ir mal na escola. Não te lembras - verdade, vou me lembrando. Por uma temporada ficaste preso todos os dias.
- Sim. Gazeei as aulas, dei respostas erradas e perdi meus cadernos. Cada dia algo era perdido e, por fim, passei a sentir prazer nisso e não fiz a vida fácil para os professores. O latim e as notas, tudo para mim não tinha importância. Sabes, sempre tive bom faro, e quando estava atrás de algo novo, por algum tempo não existia nada, mais no mundo para mim. Assim aconteceu com a ginástica, com a pesca de truta e com a botânica. Ocupei-me naquele tempo com as meninas e, até que minha cabeça esfriasse e ficasse experimentado no assunto, nada mais teve valor para mim. É de fato tolo ficar um guri de escola agachado num banco a preparar conjugações, quando secretamente todos os sentidos só se dedicam ao que viram na tarde anterior, ao espionar o banho das meninas... Bem, seja como fôr... Os professores talvez percebessem isto, queriam-me muito bem e faziam o possível para que eu continuasse na escola; de meus propósitos nada resultaria se não começasse uma amizade com o irmão de Franziska. Estava na última classe da escola pública e era um péssimo indivíduo aprendi muito com ele, mas nada de bom.
Causou-me grande mal. Em meio ano alcançara meu alvo, o pai deixou-me meio morto de pancada, mas consegui ser expulso da escola e agora me sentava na mesma sala de aula que o irmão de Franziska.
- E ela? A mocinha? - indagou Machold.
- Sim, esta foi justamente a desgraça. Pois não se tornou minha namorada. Nas muitas vezes que ia a sua casa em companhia do irmão, sempre fui mal recebido por ela, mais do que antes. Já estava havia semanas na escola pública, e me acostumara, com frequência, a sair de casa à noite, quando tomei conhecimento da verdade. Certa feita, tarde da noite, andava a esmo pelo bosque e, como fizera várias vezes, espiava, um casal de namorados num banco; quando me aproximei, era a Franziska com um oficial mecânico. Não se tinham dado conta de mim. Ele passara-lhe o braço em torno do pescoço e tinha um cigarro entre os dedos. A blusa estava aberta e levantada. Era medonho. Tudo tinha sido em vão.
Machold bateu no ombro do amigo. - Ora, quem sabe não foi melhor para ti! Knulp sacudiu, enérgico, a cabeça. - Não, de jeito nenhum. Ainda hoje haveria de dar a minha mão direita para que tudo se tivesse passado diferente. Não me diga nada sobre Franziska, tomo o partido dela. Se tudo tivesse ido bem, então teria conhecido o amor de maneira bela e feliz, o que talvez me tivesse ajudado a acertar com a escola pública e com meu pai. Pois ... como devo dizer?... Veja, desde então tive muitos amigos, conhecidos e camaradas e também amores; mas nunca mais acreditei na palavra de um ser humano ou me comprometi, eu mesmo, pela palavra. Nunca mais. Vivi a minha vida ao acaso, não me faltou nem liberdade nem beleza, mas permaneci sempre sozinho.
Estendeu a mão para o copo, sugou com cuidado o último golezinho de vinho e pôs-se de pé.
- Se me permites, vou me deitar de novo, não quero nunca mais tocar neste assunto. Na certa ainda tens o que fazer.
O doutor assentiu. - Ora, tu! Hoje escreverei pedindo para ti um lugar no hospital. Talvez não gostes, mas não dá para ser de outro jeito. Tu te acabas, se não te tratares ligeiro.
- Nada disso - exclamou Knulp com involuntária violência - pois deixa que me acabe! Não vai adiantar mais nada, tu mesmo sabes. Por que devo me deixar encarcerar
- Assim não, Knulp, seja sensato! Eu seria um médico miserável se te deixasse escapar assim. Na certa arranjamos lugar para ti em Oberstetten. Levas além do mais uma carta minha, e daqui a oito dias eu mesmo vou te ver. Prometo.
O andarilho deixou-se cair de volta na cadeira, a ponto de chorar, e esfregou uma contra a outra suas mãos esquálidas, como se gelasse. Então fitou o doutor suplicante e puerilmente nos olhos.
- Desse modo - disse bem de manso - não é direito de minha parte. Fizeste tanto por mim, até vinho tinto... foi tudo muito bom e agradável para mim. Não deves zangar comigo, tenho ainda um grande pedido para fazer-te.
Machold tocou-lhe o ombro num afago. - Seja sensato, velho! Ninguém vai te pegar pelo pescoço. Bem, o que é?
- Não estás zangado comigo? - Por que haveria de estar? - Então te peço, Machold, deves me dar um grande gosto. Não me mandes para Oberstetten! Se precisar mesmo baixar ao hospital, que pelo menos seja em Gerbersau. Ali me conhecem e ali me sinto em casa. Talvez também seja melhor por causa da caridade pública, nasci lá e além do mais...
Seus olhos mendigavam com ardor, de tão agitado não conseguia falar.
Tem febre, pensou Machold. E. disse calmo:
- Se isto é tudo que tens para pedir... logo estará em ordem. Tens razão, escreverei para Gerbersau. Agora vai e deita, já falaste demais.
Observou-o como se arrastava, trôpego, para dentro da casa e de súbito veio-lhe à lembrança o verão em que Knulp o iniciara na pesca da truta, de sua maneira discreta e dominadora, de lidar com os camaradas, do bonito ardor daquele guri de raça aos doze anos.
Pobre sujeito, murmurou com uma comoção que o deixou perturbado, e levantou-se depressa para ir trabalhar.
A manhã seguinte foi de neblina, e Knulp passou o dia todo de cama. O doutor entregoulhe alguns livros, que ele nem folheou. Estava descontente e atormentado, pois muito embora desfrutasse de cuidados, enfermagem, boa cama e alimentos delicados, podia sentir claramente que estava chegando ao fim.
Se fico mais um pouco deitado, pensou mal-humorado, então não poderei mais me levantar. Faltava-lhe pouco mais para fazer na vida; a estrada, nos últimos anos, perdera muito de seu feitiço. Não queria morrer antes de rever Gerbersau e de tudo se despedir secretamente:
do riacho e da ponte, da praça, do mercado, do antigo jardim de seu pai, e também de Franziska. Seus outros amores estavam esquecidos, assim como a longa fileira de seus anos de peregrinação parecia-lhe agora pequeno e sem importância, ao mesmo tempo em que os tempos misteriosos de sua meninice ganhavam um novo brilho e encanto.
Mirou com atenção o singelo quarto de hóspedes; em muitos anos não morara em lugar assim confortável. Estudou, com olhos neutros e dedos tateantes, a tessitura do linho da roupa de 'cama, a alva e imaculada coberta de lã, as delicadas fronhas. Também o assoalho de madeira rija interessou-o. A fotografia na parede, mostrando a Praça dos Doges em Veneza, era emoldurada em mosaico de vidro.
Depois deixou-se estar de novo muito tempo de olhos abertos, sem nada ver, cansado e apenas ocupado com o que avançava em silêncio, no seu corpo doente. De súbito ergueu-se, curvou-se ligeiro para fora da cama e puxou, com dedosapressados, suas botas a fim de examiná-las com cuidado e conhecimento. Boas não estavam mais, porém era outubro e até a primavera nevada aguentariam. Depois disso, tudo se teria acabado. Ocorreu-lhe pedir a Machold um par de sapatos velhos. Mas não; só lhe despertaria a desconfiança. No hospital ninguém precisa de calçado. Cauteloso, apalpou os pontos rachados na parte de cima do sapato. Se fosse bem engraxado devia durar pelo menos um mês. Cuidado desnecessário, na certa o velho par de botas duraria mais do que ele e ainda estaria em ação quando ele próprio já tivesse desaparecido da estrada.
Deixou as botas caírem e tentou respirar fundo, mas isto doeu-lhe e fê-lo tossir. Ficou imóvel e estirado à espera; respirava em pequenos haustos e sentia medo, não queria piorar antes de ter realizado seu último desejo.
Procurou pensar na morte, como jà muitas vezes fizera, mas sentiu a cabeça pesada e caiu numa madorna. Acordando um hora mais tarde, julgou ter dormido um dia inteiro e sentiu-se aliviado e calmo. Pensou em Machold e achou que devia deixar ali, ao ir-se, um sinal de sua gratidão. Queria escrever-lhe um de seus poemas, porque, na véspera, o doutor indagara sobre eles. Mas não podia recordar-se direito de nenhum e nenhum lhe agradava. Contemplava pela janela aberta a neblina envolver o bosque próximo e ficou de olhos fixos muito tempo, até que lhe ocorreu um pensamento. Com um toco de lápis, que achara na véspera dentro de casa e de que se apossara, escreveu sobre o imaculado papel branco, que forrava a gaveta, de sua mesa de cabeceira, estas linhas:
As flores todas Têm de secar
Quando vem a névoa,
E os seres humanos Têm de morrer,
A gente os deita na cova.
Também os homens são flores,
Retornam todos Quando lhes chega a primavera.
De doença então nem leve sombra
E dissipado tudo estará.
Deteve-se e leu o que tinha escrito. Não era nenhuma canção completa, faltavam as rimas, mas abarcava o que tinha querido dizer. Umedeceu o lápis nos lábios e escreveu em baixo: "Para o Sr. Dr. Machold, Ilustríssimo, de seu grato amigo K."
Depositou a seguir a folha na gavetinha..
No outro dia a névoa se tornara mais espessa e havia um vento frio soprando. Ao meio-dia foi possível tomar sol. O doutor deixou Knulp levantar-se, o que ele encarecidamente desejava, e comunicou que havia um lugar para ele no hospital de Gerbersau onde era esperado.
- Logo depois do jantar me toco para lá - esclareceu Knulp. - Levo umas quatro horas, talvez cinco.
- De jeito nenhum! - exclamou, rindo, Machold. - Andar a pé não é bom para ti agora. Irás comigo de cabriolé, se não dermos outro jeito. Vou mandar falar com Schulze, que talvez vá com frutas ou batatas até a cidade. Por um dia não tem importância.
O hóspede conformou-se e quando se soube que o empregado de Schulze viajaria para GFerbersau com duas vitelas, ficou acertado que Knulp iria com ele.
- Bem podias levar um casaco mais quente, - disse Machold. - Será que te serve um dos meus? Ou é grande?
Ele não tinha nada contra, o casaco foi trazido, provado e achado bom. Mas Knulp, porque o casaco era de bom pano e bem conservado, pôs-se logo, com sua velha criancice, a trocar o lugar dos botões. O doutor, divertido, deixou-o agir e deu-lhe ainda um colarinho para a camisa.
A tarde, Knulp provou sua nova roupa, e como outra vez tivesse bom aspecto, começou a incomodar-se por não se ter barbeado, nos últimos tempos. Não ousava pedir à governanta a navalha do doutor, mas conhecia o ferreiro da aldeia e queria fazer uma experiência.
Logo achou o ferreiro; entrou na oficina e disse a velha saudação de ofício:
"Ferreiro de fora pede trabalho". O mestre fitou-o frio e inquiridor. - Tu não és nenhum ferreiro - disse impassível. - Nessa eu não caio.
- Certo - riu o andarilho. - Ainda tens bons olhos, mestre, e contudo não me reconheces. Sabes, antigamente fui músico e muitas vezes, em Haiterbach, passaste as noites de sábado dançando ao som de minha harmônica.
O ferreiro juntou as sobrancelhas e deu ainda uns golpes com a lima; depois empurrou Knulp para a luz e fitou-o com atenção.
- Sim, agora sei - riu de leve. - És o Knulp. A gente envelhece, quando passa tanto tempo sem se ver. Que estás fazendo em Bulach? Não me importaria em te emprestar uns trocados ou beber contigo um copo de vinho.
- É correto de tua parte, ferreiro, faz de conta que bebi. Mas eu quero outra coisa. Podias emprestar-me um pouco a navalha, quero ir a um baile hoje á noite.
O mestre apontou-lhe o indicador. - És um saco de mentiras, um velho. Acho que nunca mais te darás bem com a dança, pelo aspecto que tens.
Knulp deu um risinho satisfeito.
- Percebes tudo! Pena que não tenhas te tornado nenhum bailio*. Sim, eu preciso baixar o hospital amanhã. Machold me manda,, e vais compreender que não quero chegar lá feito um peludo. Dá-me a navalha, em meia hora te devolvo.
- É? E para onde queres levá-la? - Para a casa do doutor, eu durmo lá. Como é, me emprestas?
A coisa pareceu não muito crível para o ferreiro. Continuava desconfiado.
- Empresto já. Mas sabes, não é uma qualquer, é uma genuína Solinger Hohlklinge. Tenho de vê-la de volta.
- Não se preocupe. - Claro, claro. Estás com um bom casaco, amiguinho. Não precisas dele para te barbear. Vou dizer-te uma coisa: tira-o e deixa-o aí Quando voltares com a navalha pegas de novo o casaco.
O andarilho fechou a cara. - Pois bem. Não podes ser chamado de muito nobre, ferreiro. Mas de qualquer jeito está certo.
O mestre trouxe a navalha e Knulp deu o casaco em penhor, mas não permitiu que o homem, cheio de fuligem, o pegasse. Após uma
*Antigo magistrado provincial encarregado de defender as propriedades.
meia hora, voltou e devolveu a navalha Solinger; sua hirsuta barbicha se fora e êlé parecia inteiramente outro.
- Só falta um cravo atrás da orelha e podes ir namorar - disse o ferreiro cheio de reconhecimento.
Mas Knulp não estava mais para brincadeiras, vestiu outra vez o casaco, deu um seco obrigado e se foi.
Na volta deparou, em frente à casa, com o doutor, que o deteve surpreendido.
- Por onde andas? Sim, e o aspecto que tens! ... Ah, barbeado! Homem, tens uma cabeça de criança!
Mas ficou satisfeito. Nesta tarde Knulp teve licença de mais uma vez beber vinho tinto. Os dois colegas de escola celebravam a despedida, e cada um esteve o mais arrumado possível. Nenhum queria deixar perceber, o mínimo que fosse, a opressão que sentia.
De manhã cedinho veio o empregado de Schulze com o carro, dentro do qual, num engradado, estavam duas vitelas com os joelhos trementes e os olhos arregalados para, a manhã fria. Pela primeira vez a geada cobria os prados. Knulp sentou-se ao lado do criado no banco do cocheiro; foi-lhe colocada uma coberta sobre os joelhos e o doutor apertou-lhe a mão e deu-lhe meio marco. O carro retiniu em direção ao bosque, enquanto o criado acendia o cachimbo e Knulp, com olhos sonolentos, pestanejava ao azulado frescor matinal.
Mais tarde veio o sol e ao meio-dia já estava bem quente. Os dois, no banco da frente, conversavam com afabilidade; ao chegarem a Gerbersau o criado quis desviar do caminho o carro e dirigir-se logo para o hospital. Disso Knulp dissuadiu-o e se tocaram, amistosamente, para a entrada da cidade. Lá ficou Knulp, que acompanhou o carro com o olhar até que desaparecesse sob os bordos perto da feira de gado.
Riu e tomou um atalho entre os jardins, que só os da' terra conheciam. Era livre de novo! No hospital podiam esperar.
Mais uma vez o filho pródigo experimentou a luz e o hálito, o ruído e o cheiro da terra natal, e toda a íntima exaltação e saciedade da volta ao lar: azáfama de aldeões e burgueses na feira de gado, sombras dos castanheiros entremeadas de sol, voo fúnebre de tardias maripôsas outonais nos muros da cidade, eco dos quatro jatos da fonte do mercado, odor de vinho e matracolejar dos barris na carreta do mestre tanoeiro, familiares nomes de ruas, em cada um deles dependurado um inquietante enxame de recordações. O despatriado sugava com todos os sentidos o múltiplo feitiço do estar em casa, do conhecer as pessoas, do saber as coisas, da segurança, da camaradagem com cada esquina e cada pedra de alicerce. Em marcha vagarosa e incansável vagueou toda a tarde pelas ruas, espreitou o amolador de facas junto ao rio, observou pela janela o torneiro em sua oficina, leu nos caracteres pintados de novo os velhos nomes de famílias conhecidas. Mergulhou as mãos na gamela de pedra, da fonte do mercado, mas sua sede ele saciou junto à pequena fonte do Abade, que sempre misteriosa como em todos os anos pretéritos brotava no rés do chão de uma casa decrépita e sussurrava, entre as lajes à clara e estranha luz crepuscular do quartinho da nascente. Demorou-se junto ao riacho; reclinou-se no parapeito de madeira sobre a água caudalosa, onde flutuava a alga escura de compridos cabelos e onde se aquietavam as continhas dos peixes, negros e silenciosos, sobre os seixos trementes. Caminhou pela velha pinguela e no meio deixou-se afundar até o jarrete, para sentir, como quando rapaz, o vivo contrabalanço elástico da pontezinha.
Prosseguiu sem pressa o passeio e não se esqueceu de nada, nem da tília da igreja com pequenos tabuleiros de grama, nem da represa do moinho de cima, outrora seu lugar de banho preferido. Ficou parado diante da casinha em que por uns tempos seu pai morara e recostou-se um momento, com ternura, na velha porta da casa; procurou também o jardim e contemplou-o por sobre uma insensível cerca de arame nova que rodeava uma plantação disposta de modo diferente do de seu tempo ... Mas os degraus de pedra arredondados pela água da chuva e o redondo e gordo marmeleiro perto da ponte eram ainda os antigos. Aqui Knulp passara seus melhores dias; antes de se fazer enxotar da escola de humanidades tinha experimentado, em tempos passados, plena felicidade, alegrias sem sombras, bem-aventuranças sem amargura, alegre verão de cerejas furtadas, extasiante e fugidia felicidade de jardineiro a vigiar e cuidar de suas flores: queridos goivos amarelos, alegres campainhas, ternos e aveludados amores-perfeitos. E coelheiras e oficina e pandorgas, aquedutos feitos com o canudo do miolo do sabugueiro e rodas de moinho dos carreteis de linha, com pás de pedaços de ripas. Nenhum telhado cujos gatos não conhecesse, nenhum pomar cujos frutos não procurasse, nenhuma árvore em que não tivesse trepado, em cuja copa não se tivesse apossado de um verde ninho de sonhos. Este pedaço de universo lhe pertencera, fora conhecido e amado na mais profunda intimidade; aqui cada arbusto e cada moita tivera para ele significado, sentido e história; cada chuva e cada nevada lhe haviam falado; aqui o ar e a terra, tinham vivido em seus sonhos, correspondido e em conjunto lhes dado vida. E mesmo hoje, pensou Knulp, não houvesse aqui em torno nenhum morador e nenhum dono de jardim que tivesse, mais do que ele, cuidado de tudo isso, para quem tudo fosse mais valioso, mais respostas nem recordações poderiam despertar.
Entre os telhados próximos apontava a cumeeira alta e aguda de uma estreita casa. Lá, há tempos, morara o peliceiro Haasis, lá as brincadeiras infantis e os divertimentos de garoto encontraram seu fim nas primeiras intimidades e ternas relações com as meninas. De lá voltara para casa muitas vezes à tarde, pela rua semi-escura, com a noção do prazer do amor desabrochando; lá havia trançado as madeixas das filhas do peliceiro e tido vertigens sob os beijos da bela Franziska. Queria ir até lá, mais tarde, ou talvez amanhã. Mas agora estas recordações o atraíam pouco. Teria abandonado todas elas pela lembrança de uma única hora das mais antigas, da meninice. Demorouse junto à cerca uma hora ou mais olhando para baixo, e o que via não era o jardim novo, estranho, mostrando-se, apesar do jovem arbusto de groselha, já bem vazio e outonal. Viu o jardim de seu pai e suas flores de criança nos canteirinhos: aurículas plantadas no doming de Páscoa, vítreas balsâminas; e montículos de seixos, sobre os quais havia colocado, vezes sem conta, lagartixas apresadas, ficando infeliz porque nenhuma lá permanecia, nem se tornava seu animal de estimação. E cheio de expectativa e esperança renovadas trazia novo reptilzinho. Podiam hoje fazer-lhe presente de todas as casas e jardins, todas as flores e lagartixas e pássaros do mundo e isso nada, seria em comparação com o fulgor, cheio de sortilégio, de uma única flor estival das que outrora cresciam em seu jardinzinho e desmanchavam, de manso, suas preciosas pétalas. E o arbusto de groselha de outrora, cujos frutos ainda lembrava um por um! Tinha-se acabado, não fora, perpétuo e indestrutível. Um homem qualquer o arrancara e desenterrara, dele fizera uma fogueira, galhos e raízes e folhas murchas tinham ardido juntos e ninguém lamentara.
Sim, Machold tinha estado, com frequência, com eles. Machold era agora um doutor e um senhor, e se dirigia num cabriolé para ver as pessoas doentes, e certamente se conservava um ser humano bom e correto;
mas também ele, também este homem inteligente e severo, o que era ele em relação ao de outrora, em comparação com o rapaz terno, fiel, tímido e cheio de esperança que fora? Aqui Knulp lhe mostrara como se constroem gaiolas para moscas e prisões de grades para gafanhotos; ele fora o professor de Machold e tinha sido seu maior amigo, o mais esperto e admirável.
O pé de lilás vizinho ficara velho, secado pelos musgos, e a latada no outro jardim estava caindo aos pedaços; podia-se erguer em seu lugar o que se quisesse, nada jamais seria tão bonito e propiciador de felicidade como tudo havia sido antigamente.
Escurecia e começava a esfriar quando Knulp abandonou o caminho coberto de mato do jardim. Do alto da nova torre da igreja, que mudava o aspecto da cidade, um novo sino chamava bem alto.
Esgueirou-se pelo portão do curtume para dentro do terreno; era feriado e ninguém estava à vista. Pisou sobre o chão macio de cascas de carvalho em direção às covas bocejantes, onde as peles jaziam imersas na cenrada e foi até o moinho, onde o riacho, já escuro, corria para as verdes pedras musgosas. Fora este o lugar em que certa tarde estivera sentado durante uma hora com Franziska, os pés nus chapinhando na água.
Se ela, não me tivesse deixado esperar em vão, pensou Knulp, então tudo teria sido diferente. Mesmo que a escola de humanidades e o estudo estivessem perdidos, teria tido força e vontade suficientes para me tornar alguma coisa. Como a vida era simples e clara 1 Outrora ele se afastara do caminho e não quisera saber de nada mais. A vida por ali se desencaminhara e nada exigira dele. Ele se tornara por fora um vadio que dormia ao relento, amado nos bons anos juvenis e sozinho na doença, e na velhice.
Sentiu um grande cansaço, sentou-se no umrinho e o riacho murmurava sombrio em seus pensamentos. Uma luz que se acende acima dele o adverte que é tarde e não deve ser encontrado ali. Escapuliu-se, sem ruído, do terreno do curtume, transpôs o portão, abotoou o casaco e pensou em dormir. Tinha dinheiro, que lhe fora dado pelo doutor, e após breve hesitação entrou num albergue. Podia ter-se dirigido ao Engel ou Schwanen, onde o conheciam e onde teria encontrado amigos. Mas isto agora não lhe importava.
Tinha perambulado pela cidadezinha que antes o interessava até nas mínimas coisas, mas agora só queria ver e saber do que pertencera ao tempo antigo. E quando após breve interrogatório descobriu que Franziska, não vivia mais, tudo perdeu a graça, parecendo-lhe que viera tão só por sua causa. Não, não tinha sentido vagabundar assim pelas ruas e jardins e suportar gracejos compassivos daqueles que o conheciam. Ao encontrar, casualmente, na estreita ruazinha do correio o médico do grãobailio, ocorreu-lhe, de repente, que podiam sentir falta dele na casa de saúde e procurá-lo.
Comprou numa padaria dois pãezinhos, meteu-os no bolso do casaco e antes mesmo do meio-dia encaminhou-se para fora da cidade por um íngreme caminho no morro.
Lá em cima, na orla da floresta, na última grande curva da estrada, estava sentado sobre um monte de pedras um homem empoeirado, que fazia em pedaços, com martelo de cabo longo, a cal cinza-azulada.
Knulp fitou-o, saudou-o e ficou parado. - Deus seja louvado - disse o homem, e continuou a bater sem erguer a cabeça.
- Parece que o tempo vai mudar logo - arriscou Knulp.
- Pode ser - grunhiu o britador, e contemplou um instante ao longe, ofuscado com a luz do meio-dia sobre a estrada clara. - Para onde quer ir?
- Até Roma, ver o Papa - respondeu Knulp. - É muito longe.
- Hoje não chega mais, de qualquer jeito. Principalmente se ficar aí parado atrapalhando o trabalho das pessoas, aí mesmo é que não chega em tempo algum.
- É assim que o senhor pensa? Pressa não tenho mesmo, graças a Deus. O senhor é um homem trabalhador, Sr. Andres Schaible.
O britador pôs a mão em pala sobre os olhos e examinou o andarilho.
- Quer dizer que me conhece - observou pensativo -, e eu também o conheço, parece-me. Tenho o nome na ponta da língua.
- Devia perguntar ao velho estalajadeiro onde sempre tivemos nosso lugar reservado no ano de noventa. Mas por certo não vive mais.
- Hà muito que morreu. Mas agora descobri, velho amigo. Tu és o Knulp. Senta aqui um pouquinho, e que Deus seja louvado.
Knulp sentou-se. Subira muito ligeiro e respirava com dificuldade; percebeu agora, pela primeira vez, como a cidadezinha se estendia tão bela lá no fundo, riacho azul luzidio, telhados em ondulações vermelho-castanhos, entremeadas de ilhazinhas verdes de árvores.
- Vives bem aqui em cima - observou resfolegando.
- Vou indo, não posso me queixar. E tu? Antes era mais fácil escalar o morro, não é mesmo? Ofegas de uma maneira atroz, Knulp. Procuraste mais uma vez a, terra natal?
- Sim, Schaible, e será a última vez. -- E por quê? - Porque os pulmões estão em pedaços. Sabes o que fazer!
- Tivesses ficado em casa, meu querido, e trabalhado com empenho; tivesses mulher e filhos e cada noite tua cama, então talvez tua sorte fosse outra. Bem, conheces meu modo de pensar há muito tempo. Agora já não se pode fazer nada. Estás tão ruim assim?
- Ora, não sei ... Ou melhor, sei bem. Vou morro abaixo, e cada dia um pouquinho mais ligeiro. Em todo o caso é muito bom a. gente não ter ninguém por si e não molestar ninguém.
- Como se diz, é assunto teu. Mas me causa pena.
- Não é preciso. Um dia se tem de morrer, e o britador também. Sim, amigo velho, estamos agora sentados lado a lado, e ambos não podemos nos vangloriar de muito. Já tiveste, em outros tempos, outros pensamentos na cabeça. Outrora não quiseste trabalhar na estrada de ferro?
- Ora, são histórias antigas. - E teus filhos estão com saúde? - Pelo que sei, o Jakob já trabalha. - É? Ah, o tempo corre! Acho que agora vou um pouco mais adiante.
- Não se apresse assim. A gente não se vê há tanto tempo. Diga, Knulp, posso te ajudar com alguma coisa? Não tenho muito comigo, coisa de um meio marco.
- Pode te fazer falta,. velhinho. Não, muito obrigado.
Queria ainda dizer algo, mas sentiu-se mal do coração e calou-se. O britador deu-lhe de beber de sua garrafa de mosto. Contemplaram um tempo a cidade lá embaixo, e o sol se refletindo no espelho formado pelo canal do moinho resplandecia violento cá em cima; pela ponte de pedra passava, lenta, uma carruagem, e debaixo do dique nadava, indolente, uma branca esquadra de gansos.
- Agora descansei e devo ir adiante - recomeçou Knulp.
O britador pôs-se a pensar e meneou a cabeça.
- Ouve, tu poderias ter sido coisa melhor do que um pobre diabo - disse devagar. - É por causa dos pecados. Sabes, Knulp, por certo não sou nenhum agoureiro, mas acredito no que está na Bíblia. Deves também pensar nisso. Vais ter que te justificar, não vai ser tão fácil. Tiveste dons, mais do que outros, e não te tornaste ninguém.. Não me queiras mal por dizer-te isto.
Knulp ri e um lampejo da velha brejeirice descuidada surge em seus olhos. Bate amigavelmente no braço de seu camarada e pôs-se de pé.
- Já veremos, Schaible. O bom Deus talvez não me pergunte: "Por que não te tornaste um magistrado?" Talvez diga apenas: "Estás aqui de novo?" e me dê lá em cima um trabalho leve, como o cuidar de crianças ou coisa assim.
Andres Schaible sacudiu os ombros cobertos pela camisa de quadrados azuis e brancos.
- Contigo não se pode falar a sério. Quando o Knulp chegar, talvez o Senhor não possa fazer tudo fácil.
- Claro que não. Mas também pode, não é mesmo?
- Não fale assim. Apertaram-se as mãos e o britador aproveitou para passar uma moedinha que tirara, às escondidas, do bolso das calças. Knulp aceitou-a e não se opôs a fim de não tirar a alegria do amigo.
Lançou ainda um olhar ao velho vale natal, acenou mais uma vez para Andres Schaible, e começou a tossir e a andar mais ligeiro, logo desaparecendo na curva da floresta, lá em cima.
Duas semanas mais tarde, após úmidos dias nevoentos, mas iluminados por campânulas temporãns e amoras silvestres amadurecidas no frio, rompeu de repente o inverno. Provocou fortes geadas e, além do mais, no terceiro dia, com vento suave, uma queda de neve pesada e impiedosa.
Knulp estivera todo este tempo em marcha, andando sem rumo, sempre em torno da terra natal, e ainda duas vezes vira, e observara de perto, escondido na floresta, o britador Schaible, sem ao menos chamá-lo. Ele tivera muito em que pensar. Percorrendo caminhos longos, penosos, infrutíferos, fora bater sempre mais fundo no labirinto de sua desperdiçada vida, como de encontro a tenazes ramos de espinhos, sem encontrar sentido e consolo. Então a doença acometeu-o outra vez e pouco faltou para que, apesar de tudo, voltasse novamente a Gerbersau e batesse à porta do hospital. Ao ver de novo a cidadezinha lá embaixo, após dias a fio de solidão, foi tomado pela sensação de que tudo era estranho e hostil, e tornou-se-lhe claro que jamais pertencera ao lugar. Às vezes comprava numa aldeia um pedaço de pão, ou encontrava avelãs em quantidade. Varava as noites nas cabanas de tronco dos trabalhadores da floresta ou entre os amarrados de feno sobre os campos.
Agora se dirigia, sob espessa nevasca, do Wolfsberg para o moinho do vale, aos tropeções e num cansaço mortal, mas sempre de pé, como se não devesse desperdiçar a pequena sobra de seus dias e tivesse de correr, correr por todos os recantos da orla do bosque e geleiras. Por mais doente e exausto que estivesse, seus olhos e narinas tinham conservado a antiga mobilidade. Perquirindo e farejando como um sensível cão de caça intrometia-se também agora, sem mais nenhum alvo determinado, em cada depressão de terreno, como um sôpro de vento, como um rastro de bicho. Sua vontade não mais interferia e suas pernas iam por si mesmas.
Em seus pensamentos estava agora, outra vez, sem cessar desde alguns dias, diante do bom Deus e falava inaudìvelmente com ele. Temor não tinha; sabia, que Deus não pode nos fazer nada. Mas falavam um com o outro, Deus e Knulp, sobre a inutilidade de suas vidas, e como isso podia ter-se encaminhado diferente, e porque isto e aquilo foi assim e não de outro jeito.
- Aconteceu naquela ocasião - persistia Knulp sempre - naquela ocasião em que eu tinha quatorze anos e a Franziska me abandonou. Então ainda poderia ter feito tudo de mim. Aí alguma coisa arrebentou-se em mim ou foi posto a perder, e a partir de então não prestei mesmo mais... Ah, o erro foi unicamente não me teres deixado morrer com quatorze anos I Minha vida teria sido tão bela e plena como uma maçã madura.
Mas o bom Deus ria sem parar e muitas vezes escondia por completo seu rosto na neve que caía.
- Ora, Knulp - disse admoestando-o. - Pensa uma vez em tua mocidade, e no verão em Odenwald, e nos tempos de Lach stetten! Não dançaste feito um cabrito selvagem e não tiveste todos os pensamentos palpitantes de bela vida? Não soubeste cantar e tocar harmônica, a ponto de as mocinhas ficarem de olhos presos em ti? Lembras-te ainda dos dias ensolarados de Bauerswill? E tua primeira namorada, a Henriette
Sim, isto tudo nada representa?
Knulp teve de considerar - os longínquos fogos-fátuos luzindo lá em cima - as alegrias de sua mocidade, em sua sombria beleza embalsamando o ar com a fragrância pesada, e doce do mel e do vinho, ressoando profundas como o vento desfazendo a neve na noite que antecede a primavera. Senhor Deus, tinha sido belo, belo o prazer e belo o luto, e teria, sido uma lástima ter faltado um só dia.
- Ah, sim, foi bom - concedeu - e estava agora choramingas e teimoso como uma criança cansada. - Outrora foi bom, sem dúvida. Culpa e tristeza também estavam presentes. Mas, é verdade, foram anos bons e talvez poucos tenham sido os que bebêram tais copos e conduziram tais danças e gozaram tais noites de amor, como eu naquele tempo. Mas então, então tinha de ser! Ali estava um espinho na felicidade e nunca mais os tempos foram tão bons. Não, nunca mais.
O bom Deus se escondera longe, nas trilhas da neve. Foi só Knulp parar um pouco para arranjar fôlego e outra vez cuspir na neve duas manchinhas de sangue, já estava Deus, invisível, de novo ali, respondendo:
- Dize, Knulp, não és um pouco ingrato? Tenho de rir, porque te tornaste esquecido! Recordemos o tempo em que fôste o rei dos salões de dança e o que tua Henriette te concedeu! Foi bom e belo, foi pleno e fazia sentido. E se pensas assim em Henriette, como não pensar também em Lisabeth? Sim, pudeste esquecê-la por completo
Outra vez ergueu-se diante de Knulp, como um monte longínquo, como um pedaço do passado. Embora não lhe parecesse tão alegre e feliz como antes, mesmo assim brilhava intimamente, como risos femininos entre lágrimas. Entre eles se postava Lisabeth, com seus belos e tristes olhos, e o garotinho nos braços.
- Que sujeito ruim fui eu! - começou de novo a se lamentar. - Não, depois que Lisabeth morreu, também eu não devia ter vivido.
Mas Deus não o deixou ir adiante. Fitou-o penetrantemente, com olhos luminosos, e prosseguiu:
- Escuta, Knulp! Fizeste muito mal a Lisabeth, mas ela recebeu de ti mais ternura e beleza do que mal, e não te recriminou nem um instante sequer. Será que não vês ainda, ó cabeça-de-vento, qual é o sentido de tudo? Não vês que tiveste de ser um andarilho e um vagabundo para, por este meio, espalhares por toda a parte um pouco de insensatez infantil e riso de criança? Para que as criaturas, por toda parte, te amassem um pouco e fizessem um pouco de troça de ti e te fossem um pouco gratas
- É verdade - concordou Knulp, após algum silêncio. - Mas tudo isso foi antes, quando eu ainda era jovem! Por que não tirei lição de tudo isso, e não me tornei um homem direito? Ainda havia tempo.
Houve uma pausa na queda da neve. Knulp descansou outra vez um instante e queria sacudir a grossa camada de neve do chapéu e das roupas. Mas não pôde, estava desatento e cansado. Deus estava agora bem ´à sua frente, com seus claros olhos muito abertos e luzindo como o sol.
- Fica contente - Deus advertiu. Para que serve o lamento? Não podes mesmo compreender que tudo se desenrolou como devia, e que não podia ter sido diferente? Querias agora ser um senhor ou um mestre artesão, ter mulher e filhos e à noite ler o jornal? Ou querias correr outra vez pela floresta, dormir junto às rapôsas, armar laços para os pássaros e amansar lagartixas?
Knulp recomeçou a andar, cambaleando de cansaço mas sem o sentir. Tudo se lhe tornara agradável e ele concordava, agradecido, com o que Deus lhe falava.
- Vê - dizia Deus - para que fazer-te diferente do que és? Em meu nome perambulaste e levaste, sem cessar, às pessoas sedentárias, um pouco de anseio por liberdade. Em meu nome fizeste tolices e deixaste que zombassem de ti; eu próprio fui zombado em ti e amado em ti. És bem meu filho e meu irmão; és um pedaço de mim e não experimentaste nem sofreste o que eu não tenha provado contigo.
- Sim - disse Knulp, e sacudiu veemente a cabeça. - Sim, é bem isso, eu sempre o soube.
Knulp repousava na neve, seus músculos cansados tinham se tornado lassos e seus olhos ardentes riam. Quando os fechou para dormir um pouco, continuava a ouvir a voz de Deus e a fitar seus luminosos olhos.
- Tens mais alguma queixa? - indagou a voz de Deus.
- Nada mais - concordou Knulp, e riu trêmulo.
- Tudo está bom? Tudo está como deve ser?
- Sim - aquiesceu - tudo está como deve ser.
A voz de Deus foi ficando mais baixa e soava como a voz de sua mãe, quase como a voz de Henriette, quase como a voz da boa e terna Lisabeth.
Quando Knulp abriu os olhos outra vez o sol brilhava e resplandecia tanto, que ele teve de fechar as pálpebras rapidamente. Sentiu a neve pesar sôbre as mãos e quis sacudi-la, mas a vontade de dormir se tornara nele bem mais forte do que qualquer outra vontade.
Hermann Hesse
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