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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


KUNDU / Morris West
KUNDU / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

K U N D U

 

O conflito altamente dramático deste romance passa-se na Nova Guiné. Ao longo de suas páginas, assistimos, numa expectativa cheia de emoção, à luta de um branco com os velhos mistérios das tribos nativas.

Kurt Sonderfeld é médico. Faz parte dos serviços de combate à malária. Tem uma plantação de café e também uma esposa formosíssima - Gerda.

As tribos reúnem-se para festividades que consistem na exibição, no desenrolar de feitiços. E os atores do grande espetáculo, numa atmosfera carregada de suspense, desempenham os papéis que o destino lhes distribuiu: Kumo, o feiticeiro; N'Daria, a sensual nativa que partilha o mundo de Sonderfeld e de Kumo; Gerda e o homem por quem é amada, e o próprio Kurt Sonderfeld...

 

 

Quatro horas da tarde. O Sol percorria, já em declínio, o vale verdejante. Os primeiros castelos de nuvens levantavam-se para além dos montes situados ao norte, e os picos em que estes terminam colavam sombras de cobalto ao céu incendiado.

       Ali, no Capricórnio, era ainda verão.

       Ao longo da costa, em Lae, em Madang, em Wewak, eram desejadas e esperadas com impaciência as horas de frescura que os ventos da noite haviam de trazer. Mas nesta parte da montanha, a 1.700 metros de altitude, o calor era menos opressivo e, quando desciam as trevas, o frio tornava-se muitas vezes intenso.

Na larga varanda da pequena vivenda coberta de palma e armada com bambus, Kurt Sonderfeld, de pé, contemplava o vale, em que os arbustos ainda novos do cafeeiro cresciam sob filas de árvores. E seu olhar estendia-­se, de quando em quando, até às cabanas da aldeia chim­bu, que, com seu terreno reservado à dança, se encontrava logo a seguir à plantação.

Kurt sentia-se agitado por uma emoção muito grande. Contudo, teria sido difícil adivinhá-la. A faculdade de se dominar, que desde sempre cuidara de desenvolver em si, dava-lhe agora aquele sentido de segurança. Nada havia em seu aspecto que pudesse trair o tumulto que intimamente o fazia vibrar. Se, porém, tal coisa se tornasse possível, ainda resultaria muito difícil descobrir a causa. O que lhe faltava? Tinha uma esposa, cuja sombria beleza era célebre de Madang a Mount Hagen; florescentes plantações de café; um passado cuidadosamente esquecido. Estava nas boas graças da Administração. Naquele vale, a sessenta quilômetros dos olhares penetrantes do Comissário Distrital de Goroka, era dono e senhor.

Todavia, Kurt estava profundamente perturbado. O excelente charuto amargava-lhe na boca. A contemplação daquela paisagem que se estendia dos relvados da casa até aos contrafortes das montanhas cor de violeta, e cujos habitantes o serviam com um temor e uma diligência de que poucos brancos se gabavam, não o alegrava.

Nessa noite aspirava apenas à solidão. Mais do que nunca. Mas esta ser-lhe-ia recusada. Dai a uma hora chegariam os convidados. Haviam então de beber, comer e falar ruidosamente pela noite adentro, como costumam fazer os homens solitários. E, entretanto, o toque do tambor repetir-se-ia sempre e os cânticos da aldeia seriam levados pelo vento.

- Zum Telfel! Que venham!

       Jogou fora o charuto e ficou olhando a brasa que luzia na terra escura do jardim.

Era um homem alto, corpulento, de ombros quadrados, ereto como um pinheiro. Sua testa alta e rosada arqueava-se até à linha dos cabelos arruivados, cortados quase rentes. Uma cicatriz profunda acompanhava-lhe o maxilar, desde o lóbulo da orelha até à pequena cova que se lhe abria no queixo. A boca apertava-se-lhe como um torno.

Kurt permaneceu ali muito tempo, passando as mãos pela balaustrada de bambu como se pretendesse desfazer com este gesto a má disposição em que se encontrava. Pas­sados momentos, a boca distendeu-se-lhe e, logo a seguir, desceu os degraus da varanda, dirigindo-se por um cami­nho de areia para uma pequena cabana de bambus, situada na orla da plantação.

Tinha instalado aí um laboratório - tão rigoroso e eficaz como ele próprio. Aqui, deixava de ser Kurt Sonderfeld, emigrante por necessidade, médico por favor, plantador autorizado da Trustee Administration. Era Kurt Sonderfeld, doutor em Medicina - por Friburgo e Bonn -, consultor honorífico da comissão que se ocupava da malária no Oriente, correspondente das sociedades científicas da Europa e da América, colaborador de revistas eruditas.

Já perto da cabana, um sorriso amargo estampou-se em seu rosto. Era a resposta às imagens do passado que lhe tinham feito companhia até ali. O passado! Para muitos outros, que haviam sido seus colegas, esse passado constituía um obstáculo permanente, num país novo. Son­derfeld, pelo contrário, fizera de sua enigmática vida anterior uma apreciável fonte de benefícios.

       A porta do laboratório encontrava-se apenas encostada. Kurt empurrou-a e entrou.

Uma moça estava sentada num longo banco colocado perto da janela. Numa mesa tosca, à sua frente, um microscópio e, ao alcance da mão, um bloco de notas.

Quando o vulto de Sonderfeld se desenhou na entrada, ela levantou a cabeça e sua boca abriu-se num largo sorriso.

            A jovem tinha o nariz largo e os lábios proeminentes da gente da montanha. Sua pele era de um castanho quente e escuro semelhante ao do mel silvestre e os cabelos encrespados formavam uma massa densa.

Todavia, era bela... com essa beleza feita de mocidade e saúde. Na pele, acendiam-se-lhe reflexos vivos e o peito firme levantava provocadoramente a blusa de algodão cor-de-rosa.

            Sonderfeld observava-a, dominador, com um sorriso que tinha tanto de aprovação como de cinismo.

- Bem, o que encontrou, N'Daria? - Sua voz era forte e só quem o escutasse com atenção perceberia nela as entoações que revelam um europeu do Continente.

            A moça falou num inglês de missão, rouco mas correto.

       - São os ovos que apanharam no lago, lá embaixo.

       - E então?

       - Anófeles.       

       - Era o que eu esperava.

       - Vamos, portanto, ter febre no vale?

       - Ainda não. Mas, quando os trabalhadores vierem da costa, decerto, hão-de trazê-la. E esses seres minúsculos - tamborilou no microscópio - vão propagá-la a toda a tribo.

A moça ficou calada. Limitava-se a observá-lo, com os olhos muito abertos, a cabeça inclinada para trás, de modo a exibir todo o desenho da garganta, que se prolongava na curva suave do começo dos seios.

Sonderfeld contemplava-a, satisfeito e divertido. Era criação sua. Tinha-a moldado com paciência e saber, vigiando cada um de seus gestos e ações, até poder, enfim, dizer com uma certeza matemática: “Isto é meu... usan­do-a desta ou daquela maneira... o resultado será este ou aquele”.

Tinha-lhe sido mandada pela escola missionária do Padre Louis para ajudar Gerda nas coisas de casa, mas o verniz da missão era leve e havia estalado antes de es­tar completamente seco... Sob ele, encontrava-se logo o ser primitivo, imbuído dos terrores antigos, das velhas superstições, das antigas paixões. Mas Sonderfeld tinha-a adestrado com sutileza, severidade e uma rara ternura. Ao mesmo tempo, ele ensinou como a jovem podia trabalhar com exatidão, escrupulosamente, como ele próprio. E ali estava já preparada por suas mãos. Contudo, o trabalho que lhe destinara agora nada tinha a ver com o laboratório.

Sorrindo sempre, pousou a extremidade dos dedos no pescoço da moça, premindo suavemente a cavidade atrás das orelhas. Ela estremeceu, mas não se afastou. Com lentidão, aqueles dedos desceram ao longo da garganta, enquanto uma unha ia deixando um traço fino e brilhante na pele escura. Agora, ela tremia, e nos cantos de sua boca brotou uma pérola de suor que lhe umedeceu os lábios sombrios. Nos olhos, iluminados por súbito desejo, brilharam cintilações de estrelas. Sonderfeld disse, então, com brandura:

       - Se a aldeia morresse toda com a febre, você sen­tiria alguma coisa?

       A resposta veio num sussurro rouco:

       - Não.

       - Sentiria alguma coisa se Kumo morresse?

       - Não.

       - Bem.

            A moça inclinou-se para a frente, como para se lhe oferecer. Todo seu corpo vibrava de desejo. Sonderfeld sorriu, a cabeça.

       - Agora não, N'Daria.

       - Amanhã?

       - Talvez. Se você trabalhar como deve, esta noite.

       Submissa, mas com modos lentos de decepção, levan­tou-se e desapareceu por detrás de uma porta, na extremidade da cabana. Sonderfeld viu-a afastar-se, riu silencioso e inclinou-se sobre o microscópio. Sob as lentes poderosas, os pequenos nódulos formados pelas larvas de mosquitos pareciam monstruosos. N'Daria tinha razão. Eram anófeles, portadores da malária. Agora, que o vale se abria à circulação dos homens que vinham de Goroka e da costa, a segurança desaparecia. Os carregadores que desciam as montanhas com as mercadorias trariam a doença. Do mesmo modo, os oficiais das patrulhas, os homens da polícia e os prospectores do Ministério da Agricultura. Depois, a doença apareceria nas aldeias. As crianças morreriam. E os sobreviventes ficariam com o baço do tamanho de um ananás, como o tinham os lamentáveis espantalhos do delta do Sepik.

A não ser que Kurt Sonderfeld se levantasse contra o flagelo... Havia de fazê-lo, com certeza, porque a or­dem era necessária não só para ele próprio mas também para seus projetos. E, ainda, doença era desordem, o que lhe repugnava. No dia seguinte, esmaga-la-ia.

Naquela noite, havia coisas mais urgentes. Se N'Da­ria desempenhasse seu papel, os kundus tocariam a marcha do conquistador e esta havia de ressoar como o hino da vitória. Absorvido em seus pensamentos, permaneceu muito tempo imóvel. Depois, ouviu-se um leve ruído, e ele voltou-se com vivacidade.

       N'Daria estava a sua frente.

       Trazia enrolado aos rins um tecido de casca com um avental de ervas tingidas. Um cinto de bambu entrançado cingia-lhe a cintura. Filas de contas vermelhas e azuis pen­diam-lhe entre os seios nus, firmes e altos. A cartilagem do nariz estava apanhada por um crescente de nácar e a cabeça encrespada enfeitava-se com um capacete de coleóp­teros iridescentes, de onde brotavam as plumas escarlates da ave-do-paraíso. Untada com óleo vegetal, a pele nua brilhava.

Sonderfeld olhava-a com admiração. Um calor lento e insidioso invadiu-lhe os sentidos, mas conteve-se, cheio de cólera. Esta moça pertencia-lhe; podia exigir-lhe que se desse a qualquer momento... mas esta noite não. Viu que ela sorria de seu constrangimento e chamou-se imbecil a si próprio.

       - Venha aqui, N'Daria.

            Ela aproximou-se lentamente, bamboleando as ancas, com os seios estremecendo. Estava agora diante dele, de cabeça erguida, e de todo o seu corpo emanava o cheiro entorpecente do óleo vegetal com que se untara dos pés à cabeça. O grande Branco iria agora tomá-la nos braços, apesar de querer resistir?... Desapontada, dirigiu-lhe um olhar suplicante, que o fez rir.

       - Amanhã, N'Daria, amanhã. Agora mostre-me... Ela introduziu os dedos entre o cinto de bambu e a pele, e tirou um pedacinho de algodão.

       - Está bem. Coloque-o de volta.

       Ela obedeceu e esperou, serena e submissa.

       - Agora, repita o que tem de fazer.

       - Esta noite tenho de lhe trazer...

       - Não. Desde o princípio.

            A moça respirou profundamente e recomeçou. Sua voz rouca recitava minuciosamente a lição, lenta, na língua estranha:

- Esta noite, na aldeia, os solteiros fazem kunande. Sentamo-nos e ficamos assim cantando, e esfregamos nos­sos rostos uns nos outros. Kumo também lá estará e eu e ele faremos kunande juntos. Depois, iremos para casa doe minha irmã. Comemos, bebemos, e Kumo e eu fazemos jogo-de-pernas. Brincará comigo e eu brincarei com ele. Por fim, quando ele estiver cheio de desejo, iremos para o mato e ele me possuirá.

       - Tem certeza?

       A cabeça emplumada da moça levantou-se com altivez.

       - Tenho certeza. Kumo deseja-me. Sempre lhe agra­dei.

            - Arranje as coisas de maneira a agradar-lhe esta noite. E depois?

            - Quando ele me possuir... - continuou N'Daria com uma satisfação demorada.

       - Quando ele me possuir, porá saliva na minha boca. Farei sangrar seu peito e seus ombros. Depois, deixar-me-á.

       - E quando ele a deixar?

       - Voltarei para aqui, trazendo o sangue, a saliva e o sêmen de Kumo. E a vida dele estará nessas mãos ­concluiu, apontando para as mãos de Sonderfeld. Este disse apenas.

       - Bem.

            Contudo, esta palavra era um longo suspiro de alívio. Sua tensão afrouxou, sua irritação desvaneceu-se e o desejo de dominar voltou-lhe em vagas longas e fundas. Pousou a mão no ombro da moça e acariciou-o com meiguice.

       - O que faz por mim esta noite, N'Daria, é também para você mesma. Lembre-se de minhas palavras.

       - Lembrar-me-ei. E amanhã?

       Ele sorriu e, com o dedo, aflorou-lhe o bico dos seios.

       - Amanhã, como você diz. E agora, vá!

       A meio caminho da porta, tornou a chamá-la:

       - Esta noite, quando você regressar, estarei em casa com meus convidados. Acenda o candeeiro e coloque-o per­to da janela. Virei assim que puder.

Acompanhou-a até à porta e deixou-se ficar vendo-a descer o atalho Que levava à aldeia. Afastando-se, a moça parecia uma ave, uma pequena ave brilhante, emplumada de vermelho, esvoaçando sob as árvores tangket.

Sonderfeld fechou a porta do laboratório e voltou com passo firme para casa.

Na varanda, as cadeiras de descanso estavam abertas. Copos, um balde para gelo e garrafas de água da chuva gelada esperavam sobre a mesa de bambu. E Wee Geor­gie, com um cuidado cheio de ternura; tirava do balde ou­tra garrafa de scotch.

Quando Sonderfeld começou a subir os degraus, ele levantou a cabeça e o rosto empapuçado torceu-se num sor­riso que descobriu dentes ralos e podres. O seu sotaque, um cockney esganiçado, parecia inverossímil num homem de tal corpulência:

- Patrão, está tudo pronto para a festa. Quer um despejador de cachimbo?


       - Daqui a pouco.

       Sonderfeld observava-o com um aborrecimento cheio de cansaço. Wee Georgie era uma de suas empresas de menor êxito. Mais baixo que o patrão, tinha um corpo monstruoso e uma cabeça desgrenhada emergindo de rolos de gordura. O peito pendia-lhe como o de uma mulher e a camisa quase lhe rebentava sob a esfera obscena do ven­tre, por baixo do qual as calças estavam atadas por um cinto enrolado como um cordel. Veias azuis sulcavam-lhe as pernas, marcadas por úlceras; nos pés disformes, sapatilhas de pano esbeiçadas e fendidas de lado para maior comodidade. Quando ria, o que lhe acontecia com freqüência, tremia como geléia e os olhos desapareciam lhe nas pregas do rosto violáceo. Quando se mexia, o menos possível, ouvia-se um resfolegar de cavalo cansado.

        - Pelo amor de Deus, não se pode pentear?

            - Eu bem tento, Patrão! Que Deus me fulmine se minto. A garota também experimenta, mas não há nada a fazer. Só se metesse a cabeça em óleo. Mas gostaria que eu cheirasse a banha quando servisse as bebidas? Minha camisa está limpa, não é verdade? E as calças também, não é verdade?

       - Será preciso agradecer-lhe? Dê-me um copo. Bem cheio.

       Deixou-se cair pesadamente numa cadeira e ficou observando Wee Georgie com um divertimento sardônico.

As mãos do criado tremiam e, enquanto servia, molhava constantemente os lábios, aspirando o cheiro da bebida. Um dos pequenos prazeres de Sonderfeld era calcular o quanto Wee Georgie se continha sem pedir que o deixasse beber.

Wee Georgie era uma sobrevivência da pré-história. Suas origens perdiam-se na lenda. Tinha sido estivador nos barcos de transporte de copra, prospector, recrutador de pessoal, vivera à custa de mulheres de má vida e fora ainda uma dúzia de outras coisas, misericordiosamente enterradas no momento em que os japoneses lhe destruíram as fichas.

Sonderfeld tinha apanhado Wee perto da praia de Lae, curou-o de uma hemorragia, de cálculos nos rins e de muitas outras pequenas moléstias; depois, fê-lo capataz dos trabalhadores e emissário das tribos do vale.

O homem tinha acabado por se instalar num conforto sórdido, com duas mulheres da aldeia. Sonderfeld pen­sou então que uma cirrose do fígado o levaria dentro de doze meses, mas por milagre ia sobrevivendo, e o alemão não perdia nenhuma ocasião de tirar proveito deste Cali­ban alcoólico: Wee Georgie era um velho cavalo manhoso, indolente, mas pensava à maneira kanaka, e escrúpulos era coisa que não havia para ele. O patrão facilmente o levava a servir seus desígnios com habilidade, prudência e uma judiciosa ração de álcool.

       - Aqui está o copo, patrão.

       - Obrigado.

       - Eu... eu também podia beber um, dos pequenos?

       Sonderfeld sorriu e olhou o relógio.

       - Pode beber. Trinta segundos, não está mal.

       - Obrigado, Patrão, obrigado!

               Arquejando e deglutindo, aproximou-se da mesa, onde se serviu generosamente de uísque.

       - Patrão, saúde e moças bonitas para a cama!

       - Prosit - respondeu Sonderfeld, distraído.

   Wee Georgie bebeu com uma sofreguidão de viciado. O patrão bebia lentamente, saboreando o álcool e sentindo aquele insidioso calor queimar-lhe o ventre. Beber, para Sonderfeld, constituía um prazer principesco e era como um príncipe que ele o usufruía, requintadamente.

       - Lansing já chegou, Patrão.

       - Para você é o Sr. Lansing, Georgie.

       - O Sr. Lansing, então. Já chegou. Há cerca de meia hora.

       - Onde está?

            O alemão fez a pergunta com uma indiferença estudada, mas os olhinhos de Wee Georgie brilharam maliciosamente.

       - Lá embaixo. Está vendo as flores com a senhora.

       - Esse pobre-diabo tem poucos gostos - disse Sonderfeld com brandura. - Por que os recusar, então?

       Wee Georgie cuspiu de desprezo por cima da balaustrada.

- Com certeza, poucos gostos! O que faz ele, então, na aldeia? Vive como um kanaka, come como eles, senta­-se à roda das fogueiras, nunca toca numa mulher. Que quer isto dizer, os demônios?!

       - É um etnólogo.

       - Sim, bem sei. Mas que é que ele faz?

       Sonderfeld contemplava a bebida dourada. Então, disse com uma voz de veludo:

       - Estuda, Georgie. Estuda a língua, os costumes e os ritos matrimoniais da população indígena. Pagam-lhe para isso. É uma instituição americana que financia estes empreendimentos respeitáveis.

- Pagam-lhe?... Para este trabalho?... Com o dia­bo!... Pois eu seria capaz de lhes dizer duas vezes mais do que Lansing há-de saber algum dia... e por metade do preço.

       - Bem sei, bem sei - murmurou, brandamente, Sonderfeld. - Mas Lansing não emprega palavras feias.

       - O Patrão não gosta de Lansing, não é?

       O resto de uísque que havia no copo do alemão atingiu Wee em pleno rosto. E, como ele parecesse sufocar e gemesse esfregando os olhos, Sonderfeld ergueu-o num repelão. Agarrou-o pelos cabelos, aplicou-lhe um par de sopapos mesmo na boca e depois repreendeu-o tranqüilamente, sem cólera, como se briga com uma criança:

- Há-de lembrar-se sempre, Georgie, de que nesta casa você é um criado. Tem de se ocupar de meus convidados e das outras obrigações. Lembre-se também de que é um farrapo desprezível e de que se vive o deve a minha bondade. Esta noite você já não bebe mais nada. Agora vá limpar-se, mas antes dê-me outro copo. E ande logo. O Padre Louis deve estar chegando.

Wee Georgie recuou, com todo o aspecto de um animal tão aterrorizado como repugnante. Sonderfeld limpou as mãos no lenço de seda e esperou seu segundo convidado.

O padre, homem de pequena estatura, chegou cheio de pressa. Gesticulava, e sua barba quadrada tremia-lhe no peito. Quando se deslocava, um saco de pano que tra­zia pendurado do ombro oscilava-lhe ao longo das costas. Sonderfeld encarou aquele rosto enrugado e escorrendo suor, e pensou: “Parece uma cabra, uma cabra velha e sabida, com aquele pêlo cinzento e os olhos finórios brilhando.”

De todos os homens que esperava naquela noite, este era o que ele mais respeitava. O Padre Louis, já passando dos sessenta anos, mais forte como uma velha árvore nodosa, gastara mais de trinta nas montanhas da Nova Gui­né e da Papuásia. Quando, pelos vales do sul, chegaram os primeiros prospectores, o Padre Louis já ali estava para os receber. Quando os contratadores chegaram às montanhas para procurar mão-de-obra, o Padre Louis já ali se encontrava para velar pela segurança das mulheres.

O tempo não o tinha despojado de seu jovial feitio de camponês e, apesar do isolamento em que sua vida decorrera, era um europeu de espírito tão moderno como todos os que Sonderfeld conhecia.

Por ocasião de seu primeiro encontro, tinham falado em francês e depois em alemão sobre livros, medicina, política, moral e filosofia. Quando se separaram, Sonderfeld ficou com a impressão desagradável de que aquele homenzinho o havia sondado, procurando os vazios de sua alma, como um tanoeiro faz com seus tonéis. E, se o alemão temia um homem no mundo, era este modesto pastor de almas. Contudo, nem a si próprio o teria confessado. Tomava, por conseguinte, suas precauções, mostrando-se entretanto cortês, cheio de atenções e alegre, como se é com um camarada que se encontra nas linhas de frente.

- Sente-se, reverendo, sente-se e descanse. Minha mulher já vem. Foi mostrar o jardim ao nosso amigo Lan­sing.

       - A Sra. Sonderfeld está bem?

       - Muito bem, obrigado. Aqui o clima é melhor do que o da costa para as mulheres.

       - Continua a gostar do vale?

            Sonderfeld lançou-lhe um olhar penetrante. Não vendo, porém, qualquer sinal de malícia naqueles olhos vivos, sorriu e encolheu os ombros.

       - Se já não gosta, não me disse.

       - Bem, bem. Trago-lhe uma orquídea, uma grande, das amarelas. Meus rapazes encontraram-na esta tarde num desfiladeiro.

Meteu a mão cuidadosamente no saco, tirou a orquídea e colocou-a em cima da mesa. O longo caule carnudo ostentava uma flor bem aberta e uma fileira de botões prestes a abrir. As raízes estavam envolvidas por uma terra gorda, negra, contida num pedaço de casca. Sonderfeld sorriu.

            - Obrigado. Gerda vai ficar contente. Desejava esta espécie havia muito tempo.

            - Aqui tem uma bebida, Padre.

            Wee Georgie, arrastando as sapatilhas, veio pôr um copo diante do sacerdote. A mão tremia-lhe e algumas gotas salpicaram o tampo da mesa. Sonderfeld franziu o sobrolho, mas não disse nada. O Padre Louis levantou os olhos sorrindo.

       - Está outra vez com tremuras, Georgie?

       Este fungou, aborrecido.

       - Tenho-as sempre que estou de serviço, Padre. É normal, não lhe parece? Um homem é feito de carne e sangue.

- Experimente isto, Georgie. É menos prejudicial para o fígado do que o toddy indígena.

Os olhos do homem brilharam. O velho padre esten­deu-lhe uma garrafinha de vinho de missa. Georgie lançou um olhar de esguelha, triunfante, a Sonderfeld e enfiou o frasco no bolso rasgado das calças.

- É uma caridade, Padre, uma verdadeira caridade cristã. Só o senhor seria capaz de me fazer cantar vésperas nesta idade.       

       O Padre Louis riu e levantou o copo na direção de seu anfitrião.

       - À sua saúde, meu amigo.

       - À sua, meu padre.

       Beberam vagarosamente. Dois exilados, a milhares de quilômetros da pátria... Sonderfeld ofereceu um charuto, que o padre recusou com um sorriso, tirando o seu já muito velho cachimbo e uma caixa de tabaco um pouco grosseiro.

       - Era um charuto desperdiçado. Fumo desta palha há tanto tempo que já não sou capaz de apreciar o tabaco bom.

            Acendeu o cachimbo e aspirou-o com energia, continuando noutro tom:

            - As tribos encaminham-se para o vale de Lahgi.

            - Já sei - disse Sonderfeld com indiferença, mas, na realidade, interessadíssimo. - É o costume. Reúnem-­se para a Festa do Deus Porco.

O vale de Lahgi é uma cratera verdejante do outro lado da barreira norte. Aí se encontrava a aldeia principal, de onde haviam saído todas as colônias que se esgalhavam pelas montanhas em volta, à procura de terra fértil. De três em três anos, as tribos voltavam ao redil, para sua festa, e esta migração maciça durava semanas. Ter­minada a festa, voltavam às aldeias e retomavam uma vida independente.

Sonderfeld verificara que nas suas plantações todos estavam ainda sossegados. Mas, se não queria ver por terra os projetos que fizera, devia apressar-se.

       O Padre Louis mordiscava o cachimbo com irritação: - Como diz, é o costume. Mas, desta vez, há qualquer coisa de novo. Alguma coisa que se prepara.

“Eis aí”, pensou Sonderfeld. Docemente, com prudência, envolvendo sua inquietação no sorriso tolerante da sensatez, ia avançando.

- Com esta gente; há sempre qualquer coisa em preparação. São tão instáveis como as crianças. Antes, en­tregavam-se à guerra ou boas razias nas terras dos vivinhos. Agora, estão metidos numa prensa. A Administração não reconhece o assassínio como sistema catártico. ­

       Encolheu ironicamente os ombros.

       - Não se preocupe, Padre. Na festa, tanto se hão-de sacudir que largam as pulgas todas. Dançam, embebedam-se e regressam tranqüilamente a casa, para curar as dores de cabeça.

- Não - o missionário obstinava-se. - Não, meu amigo, as coisas não são assim tão simples. Conheço-os melhor do que o senhor. Não são crianças. São velhos, mais velhos do que a Grécia e Roma, mais velhos do que a Babilônia, tão velhos como os homens que deixaram suas pinturas nas grutas dos Pireneus. O mal está profundamente enraizado neles.

Um mal antiqüíssimo. E agora pre­para-se para dar sinal de si. Apesar de não ser capaz de lhe dar um nome apropriado, conheço-o bem.

       - Deve então haver sinais, rumores?

            - Há sinais, sim. - O padre franziu os sobrolhos.

Seu rosto curtido pareceu de súbito ter menos firmeza. - Meus cristãos contam-me o que dizem os velhos. O Espírito Vermelho aparecerá em pessoa na festa. Virá com forma humana, dando então a seu povo prosperidade e poderio sem igual.

       Sonderfeld riu, indulgente.

       - Esse velho, velhíssimo sonho! Renasce de mil maneiras entre os primitivos e sempre no momento dos ritos ou de uma crise tribal. Desaparece também rapidamente... assim que aparecer um pulso firme! Leve sua observação um pouco mais longe e verá que os boatos provêm de qualquer feiticeiro que quer arranjar fama lucrativa no momento em que os homens se reúnem.

       - Conheço esse feiticeiro - replicou o Padre Louis sem rodeios. - Chama-se Kumo e vive em sua aldeia.

       - Kumo? - Sonderfeld avançava com pés de lã. ­- Claro que tenho ouvido falar dele como de todos esses indivíduos. Um charlatão aqui da terra, um pouco mais inteligente do que os outros. Como pode um homem desses exercer qualquer influência?

       - Kumo - disse o padre com prudência - foi meu aluno na missão. É, com efeito, mais inteligente do que a média e eu esperava fazer dele um padre... O primeiro nestas montanhas. Mas um dia - o narrador hesitava, procurando cautelosamente as palavras - um dia surgiu um problema de consciência. Não o posso revelar, porque me foi confiado sob o segredo da confissão. Dei então um conselho a Kumo. Recusou-se a segui-lo e eu tive de lhe recusar também os Sacramentos. Abandonando a missão, foi juntar-se na montanha aos praticantes dos velhos mistérios negros. Tornou-se feiticeiro. - Um silêncio hesitante caiu, como se o padre temesse desvendar todo seu pensamento. - E tenho... tenho razões para crer que vendeu a alma ao Diabo.

       Sonderfeld soltou uma gargalhada.

       - Ah! isso não, padre; o senhor, não! Uma coisa dessas num homem como o senhor, não!... Se me falarem dos lobos de Caríntia, com seus curas ignaros, ou das madonas da Sicília, que choram diante de padres repelentes de porcaria, está bem, aceito. Mas esse tipo de história numa pessoa tão inteligente como o reverendo!... Vamos ser francos. No fim de contas...

       - Santa Mãe de Deus! - exclamou o Padre Louis, de semblante aceso numa cólera sagrada. - Que louco pode ser um homem!... E fica aí em sua cadeira, balou­çando-se e rindo. Rindo de quê?... Desse mal monstruoso, que subsiste há dez mil anos!

            Sonderfeld verificou que tinha ido longe demais e apressou-se a arrepiar caminho.

            - Perdoe esta falta de tato, meu amigo. Eu não que­ria...

            O Padre Louis meneou a cabeça. Sua cólera apaziguou­ se tão depressa como tinha nascido. E disse com tristeza:

- Sei muito bem o que pensa. O mal é um acidente do cosmos. O próprio cosmos é uma evolução imperfeito do caos primordial. Deus é um nome sem substância. Satã um mito medieval. - Tirou o cachimbo e colocou-o em cima da mesa. Suas mãos sublinhavam as palavras que proferia em voz baixa e apaixonada. - Vamos, Kurt, es­force-se por compreender. Sou velho demais para que a ironia me afete, mas receio pelo senhor. Não pode dispor do mistério da Criação assim com um encolher de ombros e uma frase. Não há homem que tenha esse direito.

            - O reverendo há-de perdoar-me se duvido da explicação que me dá.

            - Duvide, se quiser, mas não a esqueça.

            Veja! - Havia em sua voz um tom de prece. - O senhor conhece a maneira como vivo nesta terra e há quanto tempo aqui estou. Ao contrário do senhor, não tenho plantação nem mulher. Todavia, isso agradar-me-ia, bem o sabe. Por que escolho então renunciar? Porque creio em Deus e porque acredito no Diabo. Sei que existem, na realidade, em pessoa, ativamente. Todo o sentido da vida de um padre é isto: servir Deus, ajudar a comba­ter o Diabo e dar forças a seu rebanho, no seio do próprio serviço e da própria luta.

       - Que fé magnífica a sua, Padre! E exigente, também... Por minha infelicidade, não posso admitir tal coi­sa. Nunca encontrei Deus e o Diabo também não. E en­quanto isso não me acontecer... - Levantou-se, enco­lhendo os ombros num gesto significativo.

- A marca de Deus está em cada passo de seu vale. Sua obra está também aqui sobre esta mesa. - Pegou na orquídea dourada e estendeu-a a Sonderfeld, que a desviou:

       - E o Diabo, Padre, em que é que o vê?

       No olhar brilhante e cheio de sabedoria do velho sa­cerdote brilhou qualquer coisa a que se podia dar o nome de piedade.

- Terei de lhe contar, meu amigo, que vi mulheres esmagar a cabeça de filhos recém-nascidos e dar o sangue deles a beber a um porquinho, isto tudo feito com a maior serenidade?... Se lhe dissesse que há nas montanhas feiticeiros que se transformam em casuares e que circulam de aldeia em aldeia mais depressa do que po­deria fazê-lo qualquer homem, mesmo correndo!... Se lhe dissesse que vi suspensa no ar uma mulher que seis homens não foram capazes de puxar para o chão!... E que ouvi gritar blasfêmias no latim de São Jerônimo, enquanto eu pronunciava a fórmula do exorcismo a uma moça das montanhas que nem sequer sabia falar o pidgin!... Que diz a estes mistérios?...

- Direi, meu padre, que já viveu mais do que eu e em condições menos confortáveis. E agora, se me dá licença, vou chamar minha mulher.

       Levantou-se e preparou-se para ir chamá-la, mas o velho missionário fê-lo parar com um gesto:

       - Um momento, por favor.

       - Sim?

       - Nesta agitação atual das tribos há qualquer coisa que lhe diz respeito.

       - A mim? Como? - A voz com que pronunciou es­tas palavras era dura mas calma.

       - Quando subia o atalho encontrei N'Daria. Ia ador­nada para a bacanal desta noite.

       - E, então, o que posso contra isso? Essa jovem tra­balha aqui. É natural que queira divertir-se com os seus. Mesmo que o desejasse, nenhuma autoridade me assiste para o proibir.

- Ninguém fala de proibição - replicou o padre com uma voz cansada. - N'Daria é simplesmente a amante escolhida por Kumo. Supus que era melhor informá-la.

- Obrigado, Padre - respondeu Sonderfeld com frie­za. - Nada disso me interessa. Absolutamente nada, creia. Georgie, sirva o Padre Louis. Desculpe-me, demoro-me apenas um instante.

Voltou as costas e penetrou na sombra fresca da casa. Wee Georgie serviu-se de um uísque duplo e engoliu-o de um trago. O Padre Louis, enterrado na poltrona, contem­plava, para além do vale, as sombras das montanhas que iam envolvendo tudo.

 

O jardim de Gerda Sonderfeld era um milagre de cor e de vida estuante.

Dois jardineiros, as chuvas de verão, o calor tropical e as mãos competentes da jovem tinham transformado algumas centenas de metros quadrados de terra negra e vulcânica num éden privado.

Nesta região, no vale da montanha, não há estações nitidamente separadas, não há símbolos cíclicos de infância, juventude, maturidade, velhice. Há só chuvas diluvianas ou raras, o sol do Câncer, o sol do Capricórnio. Pode-­se plantar o que se quiser, no momento que se quiser. Tudo nasce e se desenvolve como numa estufa.

No jardim de Gerda Sonderfeld havia salvínias ver­melhas como brasas, gladíolos de longo caule e flores de veludo que teriam parecido monstruosas aos racionais jardineiros do Ocidente; dálias e delfínios, papoulas enormes, ásteres e campainhas brancas, cóleos gigantes de folhas salpicadas, crótones e lírios raiados, orquídeas dos rochedos, fetos de folhagem arrendada e uma trepadeira de cha­gas-de-crista que cobria o quiosque de bambu. Havia também casuarinas e tufos de caniços, bosquezinhos de bagas vermelhas, róseas e de um alaranjado violento, plantas que teriam honrado um jardim da Inglaterra, e outras, grotescas, vindas da floresta tropical e dos bosques úmidos.

O ar ali era tranqüilo, carregado de perfumes estonteantes, e a jardim uma obra-prima de contradições, à semelhança da mulher que o havia idealizado.

       Esta encontrava-se naquele momento em companhia de Max Lansing. Com um gesto maquinal, alisava no corpo firme nas ancas redondas, o vestido de algodão multicor.

       Depois, enxugou os lábios e penteou os cabelos escuros num severo rolo sobre a nuca.

       Lansing observava-a, impaciente e derrotado.

       Momentos antes, ela estivera em seus braços, cingin­do-se a ele, esmagando a boca de encontro à sua, excitan­do-o até à loucura pelas exigências daquele seu corpo juvenil. De repente, sem uma expressão de pesar ou de desculpa, repelira-o, para se entregar a este rito exasperante.

A paixão extinguira-se nela tão bruscamente como de­saparece a luz quando se dá volta ao interruptor... todo o rubor daquela pele se desvanecera deixando-a lisa como marfim velho.

Agora, as mãos frágeis entregavam-se sossegadamen­te à sua tarefa. Os olhos sombrios eram um enigma. Lan­sing não conseguia saber se havia neles mofa ou carinho. Os lábios bem desenhados entreabriam-se, cheias de frescor.

Todavia, esta mulher não era nem caprichosa nem coquete. Em seu desejo entrevia se qualquer coisa de selvagem, em seu abandono, submissão... o que primeiro cho­cara o jovem, para em seguida o estimular. Mas esta brusquidão na metamorfose irritava-o porque lhe atingia a vaidade. Agora, seus nervos estavam ao rubro e grita­vam de desejo, enquanto ela estava calma e mimosa como um gato novo ao fogo.

       Lansing quis tomá-la nos braços, mas ela afastou-o, continuando a pôr grampos no cabelo.

       - Não, Max. Kurt deve estar chegando. Seria embaraçoso para todos.

Embaraçoso! A palavra pareceu estrangulá-lo. Sua inexpressiva voz do Centro-Oeste denotava desgosto e có­lera. - Meu Deus, Gerda, que acha que há entre nós? Um namoro de domingo?... Amo-a, bem sabe!

- Não grite dessa maneira, Max! - disse ela com firmeza. - Não sou surda.

       - Não estou gritando. Estou tentando fazê-la com­preender...

       - Mas eu compreendo muito bem, querido.

       Gerda acabou de compor o cabelo, depois levantou­-se e colocou a mão fresca na face do jovem. Este gesto maternal irritou-o e fez um movimento de recuo.

- Vê tudo, compreende tudo, mas compreenderá a que ponto a amo? Sabe o que é estar perto de você e não poder tocar-lhe? Passar a noite em minha choupana, ouvindo esses malditos tambores, enquanto você está aqui com ele?... Se eu pudesse ao menos largar tudo e levá­-la para longe daqui!

            Ela sorriu com a expressão tolerante e apiedada do adulto perante a criança que bate o pé.

- Mas não pode fazer isso, Max. Tem de ficar aqui até o fim de sua missão, senão perde a bolsa da Universidade. E, mesmo que pudesse, para onde me levaria?

            - Para minha casa, nos Estados Unidos.

            - Uma pequena habitação numa grande cidade? ­- ripostou ela, mexendo a cabeça. - Uma casinha de campo perto do colégio? Havia de sentir-me abafar. Além disso, em sua terra dificilmente aceitariam uma pessoa como eu. Seja razoável, meu caro Max. Deixe-nos apro­veitar o pouco que temos. Olhe, se Kurt for esta noite à aldeia, pode vir ter comigo.

       - Pelo amor de Deus, Gerda!...

       Sua cólera extinguiu-se como a chama de uma vela que se sopra. E ficou ali, diante dela, de braços penden­tes, ombros caídos numa atitude de desespero acabrunhado, a ponto de ser impossível que alguém deixasse de ver como parecia doente e fatigado. As feições caídas, com a amarelidão da malária incubada, longos dedos ossudos manchados pelo tabaco, roupas que pendiam de um imenso esqueleto, olhas fundos e febris... “Em breve”, pensava ela, “será velho e todos os sonhos que alimenta agora o terão enganado. Em breve partirá, com seus apontamentos numa sacola de pano e seu coração vazio num corpo descarnado.” Redigiria sua tese, proferiria mo­destas conferências que não mudariam em nada o curso das coisas. Max Lansing seria sempre aquele homem que nunca está em seu lugar, que chega demasiado cedo ou demasiado tarde, com projetos fora de propósito, um trabalho à margem da agitação, uma vida solitária sem qualquer ponto de apoio.

       Gerda sentiu uma súbita piedade por ele, pegou-lhe nas mãos, levando-as docemente aos lábios. Lansing in­clinou-se para ela e aspirou-lhe o perfume dos cabelos.

- Escute, Max - sua voz era suave, com guturais fracas, indicando a estrangeira. - Tenho lhe dito e tor­no a dizer-lhe. Não é feito para a vida que leva aqui. Não é daqueles que conseguem ficar sempre sozinhos. Renun­cie, regresse, procure uma gentil americana, com quem fundará um lar e que lhe dê filhos.

- Mas não posso regressar! - gritou ele. - Não compreende que aqui está a minha grande chance? Não pode ver isso? Este é um dos poucos lugares do mundo onde um investigador pode ainda encontrar alguma coisa de novo. Se persistir, ganharei nome e terei então possibilidades de obter uma cátedra numa grande faculdade.

- Pois muito bem, Max, muito bem. - Ela não teve coragem de lhe tirar as últimas ilusões. - Aceite então o que a terra lhe oferece, se quer ficar. Descanse. Arranje uma jovem na aldeia. - Gerda sorriu. - Com ela aprenderia mais em oito dias do que sozinho num ano.

       Ele repeliu-a brutalmente.

       - E depois viria ter com você?

       Ela encolheu os ombros e abriu as mãos, num leve gesto de desânimo.

       - Por que não?... Não veria mal nisso. E, se fosse feliz, eu também o seria por você.

       - E diz que me tem amor! - Ele desviou-se, sacudindo maquinalmente um cigarro.

       - Eu nunca disse que lhe tinha amor, Max.

       Ele encarou-a.

       - Então, por que veio até junto de mim? Por que me permite... Quem, diabo, é?

       Gerda sorria ainda, resolvida a não ceder, a não trair um desejo igual ao dele. Tranqüilamente, disse:

- Meu marido diz que sou uma mulher fácil. Mas não creio que o seja. Tenho necessidade de ternura, como tenho necessidade de alimento e de flores em meu jardim. Kurt não me dá essa ternura. Vou buscá-la onde a encontro.      

- Em mim ou no vizinho?

       - Perfeitamente, Max, em você ou no vizinho. Tem de admitir que estou sendo honesta. 

            Ele suspirou e passou a ponta dos dedos pelos cabelos escorridos.

            - Ora bem, obrigado por me ter dito. Agora sei com que posso contar. É melhor que me vá.

            Uma voz elevou-se no limiar.

            - Não é caso para isso, caro amigo - disse Kurt Sonderfeld. - É nosso hóspede e seu quarto está pron­to. Todo mundo o espera. Vamos, Gerda?

Dois outros convidados, estendidos em cadeiras de convés, bebiam o uísque gelado que Wee Georgie lhes servira um jovem louro, de roupa cáqui toda mancha­da, e uma personagem gorducha, de tez vermelha, trajan­do irrepreensivelmente uma camisa engomada e um short tropical. Vinham ambos da casa Kiap, grande construção de colmo, na extremidade da aldeia, feita pela tribo para os oficiais da Administração que estavam de passagem.

O jovem chamava-se Lee Curtis e era oficial de pa­trulha sob as ordens do Comissário Distrital de Goroka. Essa graduação fazia dele polícia, juiz, recenseador e uma espécie de fiscal militar, reinando sobre quatro mil quilômetros quadrados de território e cinqüenta mil almas. Tinha um olhar azul, uma boca de criança e transpira­va de emoção naquela sociedade poliglota de gente mais velha. Sua admiração não dissimulada por Gerda diver­tia Sonderfeld prodigiosamente.

Seu companheiro era representante britânico de um consórcio internacional de café. O Ministério da Agricul­tura do território sob mandato encarregara-o de estudar os recursos das montanhas. Suas maneiras tranqüilas e distintas indicavam o viajante infatigável.

Tinha um eterno sorriso, que não impedia seu olhar circunspecto de fuzilar tudo por detrás dos óculos de tartaruga. Esta personagem usava um nome impossível: Theodore Nelson. Não havia quem rivalizasse com ele na avaliação da importância de uma colheita ou no diagnóstico das doenças dos cafeeiros. Mas sua qualidade principal, aos olhos dos superiores, era o poder de um julgamento infalível a respeito dos homens que podiam vir um dia reclamar uma ajuda financeira, justificada por uma razia dos Tripps ou por uma liquidação difícil.

Quando Gerda surgiu, levantaram-se sorrindo e mu­daram de lugar. Sonderfeld introduziu a mulher no gru­po com uma cortesia afetada. Todos manobravam para se sentar a seu lado e Kurt divertia-se vendo-a ignorar tais manejos para se instalar junto do Padre Louis, cuja orquídea dourada começou a admirar.

Nem um só daqueles homens despregava os olhos da bela criatura. Uma espécie de febre se apoderava deles à medida que os tambores kundus rompiam o pesado silêncio das montanhas.

“Como é estranho”, pensava amargamente Sonderfeld, “que uma mulher ponha os homens em fogo e seja de gelo para aquele que a desposou!” Irritado, expulsou este pensamento e esforçou-se por receber o melhor possível seus hóspedes.

       - Viu o meu café, Sr. Nelson? O que lhe parece?

       O inglês mostrou-se entusiasmado.­

            - Perfeito, perfeito! Posso afirmar que é uma das melhores plantações da montanha. A terra é boa e bem tratada. E, para sombra, escolheu as árvores mais pró­prias. Observei como as podaram. Bom trabalho.

       Sonderfeld meneou a cabeça, grato.

       - Pesei bem as coisas antes de meter mãos à obra. A terra é fértil, o clima excelente. Com algum cuidado, não há razão para que não se produza aqui o melhor café do mundo.

- Há só uma coisa aborrecida - replicou Nelson com precaução. - Pelo menos poderia aborrecer a Companhia, se tivéssemos de negociar um dia.

            - Que é?       

       - Não existe estrada e suas terras estão a sessenta quilômetros de Goroka. Como levará a colheita para o mercado?

Lee Curtis, que estava ansioso por entrar na conversa, interveio gaguejando um pouco:

- É... é o que toda a gente na montanha gostaria de saber. Isso tornou-se uma graça clássica desde que nosso anfitrião aqui chegou. Todos os outros colonos alu­garam terrrenos ao longo da estrada. De Lae a Mount­ Hagen vão quatrocentos quilômetros. Mesmo os que já conhecem a região há muito tempo não quiseram de modo algum vir instalar-se aqui tão longe.

Sonderfeld sorriu com indulgência. Havia muito que tal assunto deixara de o preocupar.

- Eis à resposta, em parte, a sua pergunta, Sr. Nel­son. Esta terra é a mais nova do mundo, a menos explo­rada. Foi primeiro dos alemães, mas, antes que a Alema­nha tivesse podido valorizá-la, tiraram-na dela, com o resto de seu império colonial. A Liga das Nações con­fiou-a, sob mandato, ao Commonwealth da Austrália. De­pois vieram os japoneses e ocuparam a costa norte e uma parte do interior durante quase toda a Guerra do Pacífico. Após a derrota do Japão, a Austrália retomou a adminis­tração, com um novo mandato das Nações Unidas.

      Nelson aparentou um ar confuso:

       - Não vejo qual possa ser a relação com o transpor­ do café.

       Sonderfeld continuava sorrindo.

            - Estamos mais perto do que pensa, caro amigo. A Administração age como curadora, não é proprietária. Como tal, seu primeiro dever é velar pelo bem-estar das tribos indígenas. Sob o mandato das Nações Unidas, a terra pertence às populações indígenas e não pode ser-lhes, retirada definitivamente a favor de particulares. Apenas alugada, ao cuidado do governo, por noventa e nove anos. Sou um dos últimos emigrantes. Quando requeri um ar­rendamento, a melhor terra, a que se encontra perto da estrada, já estava toda entregue. Fui, portanto, obrigado a procurar mais longe. E, como viu, não fui mal-suce­dido.

- Mas quanto ao transporte da colheita o problema continua por resolver. Se for muito dispendioso, seus preços ficam fora de competição.

       Sonderfeld meneou a cabeça.

       - Não sou assim tão estouvado, creia. Quando minha colheita estiver pronta terei uma estrada: a minha.

       - Vai construí-la o senhor mesmo?

       - Os meus indígenas para mim - respondeu Son­derfeld, muito calmo.

       O Padre Louis levantou a cabeça com vivacidade. Max Lansing saltou da cadeira como se tivesse ouvido uma coisa monstruosa. Só Nelson e o jovem oficial de pa­trulha pareceram nada achar de estranho naquela afirmação.

Nelson fixou Curtis com um olhar interrogativo. O jovem fez com a cabeça um sinal de assentimento:

- É uma coisa viável. Se as tribos consentirem, bem entendido. Neste momento, estão particularmente compreensivas - soltou uma gargalhada súbita, como um estudante tímido. - Espero que assim continuem. Isso facilita meu trabalho. Sonderfeld inclinou-se, numa aprovação irônica:

- Meus cumprimentos à Administração! Obrigado, meu amigo... Mas parece que o Padre Louis não é de nossa opinião.

- Oh! Por quê? - Curtis mordia a isca. As missões causavam ainda seus pruridos na pele da Administração. O dogma da imortalidade da alma suscita mais do que uma complicação para os oficiais das colônias.

O Padre Louis mordiscava o cachimbo. Os olhos nada exprimiam. A boca era um enigma por entre a barba qua­drada. Theodore Nelson observava-o com um leve ar de censura, a que se misturava a aversão totalmente britânica pelos clérigos que se aventuram até longe de sua catedral. Havia uma ocasião própria para tudo. O Evangelho de São João, para ser aceitável, precisava de cantochão e de penumbra gótica. Entre os homens da idade da pedra, o Padre Louis parecia uma indiscrição gálica.

O missionário levantou os olhos. Sua resposta foi branda e desprovida de ênfase:

- Acabo de informar nosso anfitrião de que as tri­bos se mostram muito agitadas. Como sabe, aproxima-se a Festa do Deus Porco. Os feiticeiros murmuram que o Espírito Vermelho aparecerá em pessoa no momento do grande sacrifício.

- É isso então! - Lansing quase pulou da cadeira. Sua voz ressoara como madeira estalando. Todos os olha­vam estupefatos. Quanto a Sonderfeld, parecia não experimentar qualquer emoção. Dirigiu-se a Lansing de um modo brincalhão:


       - Ora vamos lá! Não me diga que ficou surpreendido. Vive com essa gente. Seu ofício é estudar-lhes os costumes. Deve ter ouvido falar disso.

       - Certamente.

       - O Padre Louis afirma que esses rumores vêm de um certo Kumo, um feiticeiro de minha aldeia.

            - Não concordo.

            Todos perceberam que Lansing se encontrava num estado de tensão extrema. O queixo projetava-se num de­safio nervoso, como o de um combatente no momento do primeiro ataque. Sonderfeld continuava sorrindo, mas seu olhar tomara um brilho intenso.

            - Tenho certeza de que o Padre Louis gostaria de       conhecer sua opinião.

            Lansing esboçou um sorriso contrafeito:

            - A Administração também seria capaz de estar in­teressada.

            O oficial de patrulha ergueu a cabeça. Seu rosto in­fantil tomou um ar de cômica gravidade.

- A opinião das pessoas que vivem no ambiente in­teressa-nos sempre. Ajuda-nos enormemente a organizar as coisas.

Lansing estendeu suas longas mãos ossudas e uniu as pontas dos dedos, num gesto muito doutoral. Conservou se um instante calado, como que escolhendo as palavras. Toda a assistência permaneceu silenciosa. Os olhos de Gerda perturbaram-se.

Lentamente, com simplicidade e precisão, ele come­çou:

- Minha opinião formal... e eu aprofundei a questão... é que a Festa do Deus Porco, agora iminente, vai provocar, podemos dizer, uma exploração a reacender o culto do cargo.

            Estas palavras caíram no silêncio como pedras em água clara. Um estremecimento de interesse sacudiu o grupo. Foi Theodore Nelson quem falou primeiro:

            - O culto do cargo? O que vem a ser isso?

            Lee Curtis precipitou-se: - O culto do cargo é...

            Lansing ignorou a interrupção e prosseguiu em seu discurso:

       - O culto do cargo apresenta muitas formas, mas na essência a coisa é simples. Trata-se do resultado dire­to do choque que a civilização produz no homem pri­mitivo. A chegada do homem branco revelou às tri­bos um novo céu e uma nova terra, um gênero de vida situado fora de suas possibilidades. Houve tempo em que a fortuna de um indivíduo se media pelo número de por­cos que possuía ou por sua reserva de conchas orladas de ouro. Quanto à virilidade, esta dependia de sua destreza no combate e do número de inimigos que fizera tombar. Agora, o assassínio tribal tornou-se um crime. Os trabalhadores que voltam do litoral no fim dos contratos estão descontentes. Viram bicicletas, automóveis, frigoríficos, cinema. Os porcos e as conchas já não lhes bastam. A gló­ria do capacete emplumado e do traje ritual é já intima­mente desprezada. A ciência penetrou no Éden, e Adão envergonha se de sua nudez.

Parou, consciente da admiração geral e saboreando o secreto mal-estar de Sonderfeld.

- É este o princípio do culto - continuou Lansing. - Esse novo sonho, esse novo céu fora do alcance das mãos dos negros. A seguir, vem o profeta da nova promessa. Serve-se dos símbolos antigos: o porco divinizado, o Espírito Vermelho. Pratica a velha magia, os velhos ri­tos propiciatórios e de sacrifício. Mas a promessa, essa, é nova: “Sigam-me e dar-lhes-ei as riquezas do homem branco e uma parte do poderio do homem branco. Os grandes pássaros que fazem o grande zumbido voarão para mim. As cargas que eles trazem hão de pertencer­-lhes.” Perguntem às pessoas de idade. Ouvi-os falar de Cristos negros e de Reis negros. Dir-lhes-ão que as tro­pas negras americanas serão as legiões libertadoras. Per­guntem ao Oficial de Patrulha Curtis, aqui presente, se não há rádios com antenas feitas de cepas de vinha e se não há soldados que esculpem espingardas de pau semelhantes às da polícia indígena.

            Interrompeu-se, ligeiramente ofegante por este mo­nólogo apaixonado. Depois, resumiu seu pensamento:

- É assim que interpreto os rumores referentes ao Espírito Vermelho e a sua revelação, anunciada para o dia da Festa do Deus Porco. Suponho que o Padre Louis esteja de acordo comigo até aqui.

       O missionário, continuando a sugar o cachimbo, fez um sinal afirmativo.

- Mas, quanto ao fato de que o profeta seja esse Kumo, nisso deixo de concordar com ele. Kumo é apenas um porta-voz. Esta, a voz, vem de outro.

- Que outro? - A pergunta do Padre Louis era temerariamente insidiosa. Lansing voltou-se e estendeu com ênfase um dedo na direção dele:

- Vive aqui há mais tempo do que qualquer de nós, Padre. Sabe muito bem que essas histórias de tribo são freqüentemente fomentadas por certos brancos, com o úni­co fim de servir seus próprios interesses. São, por exemplo, os pesquisadores de ouro, os contratadores de mão­-de-obra, os ambiciosos, que ainda acreditam que uma ca­deia de montanhas pode sustar a marcha da civilização...

- Sei disso, com efeito - respondeu tranqüilamente, o Padre Louis. - Sei também que o poderio desses homens foi sempre pequeno e seu fim violento. Insinua que atrás de Kumo há um branco?

       - Afirmo-o - declarou, peremptoriamente, Lansing.          

       A obscuridade havia envolvido a cena. As primeiras estrelas brilhavam, aqui e ali, baixas, no céu violeta. Como para sublinhar a afirmação de Max Lansing com um certo dramatismo, os tambores negros bateram em cadência, do outro lado do vale. Tomados pelo súbito mistério do momento, nenhum deles falava.

       Foi a voz de Curtis que rompeu o encantamento:

       - Daqui ao vale da Lahgi, e numa distância de sessenta e cinco quilômetros para o norte, há apenas cinco brancos: o Padre Louis, o Sr. Lansing, a Sra. Sonderfeld, eu próprio...

            - E, bem entendido, eu! - concluiu Sonderfeld com um riso amável.

            E ria ainda, mas desta vez in petto, decidindo que Lansing tinha de desaparecer.

Jantaram à luz de velas, na longa sala de onde se via o vale, as montanhas e o céu suntuoso. Na mesa, vinho fino, pratas e flores do jardim de Gerda. Diante de cada lugar abria-se, escarlate, uma flor de hibisco. O vinho lan­çava cintilações rubras nos copos de pé alto de cristal da Boêmia.

       Serviam à mesa desempenados indígenas da monta­nha vestidos com o lap-lap engomado, que farfalhava conforme eles vinham e iam, descalços. A luz das velas fa­zia-lhes brilhar o peito escuro e os músculos das espáduas.

A tensão que se tinha gerado entre Sonderfeld e os convidados ia-se quebrando ao calor da boa mesa e dos vinhos, e a conversa cingia, para lá das montanhas, os horizontes dos velhos países de além mar. Na aldeia, os tambores continuavam a bater, mas surdos, longínquos, reduzidos a um ritmo monótono, semelhante ao murmúrio da ressaca numa praia escondida.

       Ali, na sala cheia de sombras sob o teto de colmo, era a Europa. A Europa dos esplendores passados, o mo­saico de reinos e de impérios sepultados. A Europa dos séculos sutis. Ali, a mulher era rainha. Suave sob a luz das velas, animada pelo vinho, ela sorria para sua pequena corte, em que havia o eclesiástico, o comerciante, o sábio e o funcionário, e era servida por escravos sombrios e mudos, vindos do exterior.

Sonderfeld, enquanto se inclinavam para a mulher, rindo de suas graças e fazendo a corte às suas coquetices, estudava- os a todos.

       Nelson, esquecendo sua habitual prudência, contou as viagens que fizera ao Brasil, à África e ao Ceilão. O Padre Louis narrou alguns episódios de sua vida de missionário, ao passo que Lee Curtis procurava, através de sua modesta experiência, qualquer fato que pudesse diver­tir Gerda. Apenas Lansing se recusava a brilhar. Entre o zumbido das vozes, permanecia calado e rancoroso. Son­derfeld, que o observava, fazia cálculos sobre as contrariedades que este infeliz poderia causar-lhe.

A própria Gerda estava transfigurada. A calma tranqüilidade que habitualmente exibia tombava, como um véu, revelando uma natureza ardente e viva. Seus olhos brilhavam, os gestos tinham-se tornado vivos, expressivos. Deixou até escapar alguns deslizes de linguagem que davam um certo picante à sua conversa. A luz das velas emprestava vida à sua pele de marfim e pintava-lhe som­bras profundas na curva do pescoço e na cavidade entre os seios. Não era de admirar, pensava Sonderfeld, que os outros ficassem enfeitiçados, visto que ele próprio era ainda atravessado por uma onda de desejo!

       Terminada a refeição, o rádio transmitiu-lhes músi­ca de Moresby, e Gerda dançou com os convidados, en­quanto o Padre Louis e Sonderfeld permaneciam à parte junto à larga sacada, diante do café e dos licores. Até eles chegavam os ecos da música, os passos dos que dan­çavam e, de quando em quando, uma gargalhada de Ger­da. Mas atingia-os, sobretudo, no seu bater agora mais forte e mais rápido, o ressoar dos tambores. Lá longe, os tocadores deviam escorrer de suor batendo nas negras pe­les de serpente.

Sonderfeld escolheu um charuto e cortou-lhe a ponta com desusada lentidão. Os tambores irritavam-no. O diá­logo insípido, de que lhe chegavam pedaços soltos, rete­sava-lhe os nervos. E a lembrança da conversa anterior inquietava-o, como se um perigo o ameaçasse. Precisava de solidão para refletir... e ali estava, obrigado a representar aquela comédia mundana!

Encaixado numa poltrona demasiada grande para ele, o Padre Louis fumava cachimbo com satisfação e obser­vava o companheiro através de uma nuvem de fumo. Tal personagem causava-lhe preocupações havia já muito tem­po. Visto de fora, parecia rijo e polido como madeira de teca, mas os vermes roíam-no até ao coração e o Padre Louis era o pastor de todos, mesmo dos que não parti­cipavam de sua fé. Que no lar de Sonderfeld não havia harmonia era visível, mas um casamento infeliz não che­gava para explicar o frio orgulho, a ambição refletida do homem. Prudente como um jogador de xadrez, o Padre Louis fez avançar o primeiro peão.

            - Kurt, estou-lhe profundamente agradecido por es­tes serões deliciosos.

            - Sinto-me feliz por ouvi-lo dizer - isso replicou Sonderfeld tranqüilamente.

- Depois de tão longos anos, poderia crer-se que a necessidade de tais coisas devia estar desvanecida. Pois bem, não é assim.

- A necessidade de que, Padre?

Esta troca de palavras solta e tranqüila acalmava-lhe a impaciência e dava-lhe tempo para juntar idéias. O Pa­dre Louis encolheu os ombros:

- A necessidade de conforto. A vida civilizada, os bons vinhos, a música, a companhia... A conversa com pessoas como o senhor... E até a contemplação de uma mulher tão bela.

       Sonderfeld sorriu:

       - Eu julgava, Padre, que tinha renunciado a tudo isso ao pronunciar seus votos.

       O sacerdote teve um gesto ambíguo:

       - Renunciar é uma coisa, abafar a necessidade é ou­tra. Esta creio que não morre senão com o corpo. Você deve estar reconhecido por tudo o que possui: uma bela esposa, uma casa confortável, uma vida serena.

- Reconhecido? - Sonderfeld repetiu a palavra com um desprezo cheio de irritação. - Reconhecido a respeito de quem? De mim próprio, pelo que realizei com meu cérebro, minha paciência e minha coragem?... De minha mulher, que se porta como uma meretriz sob meu próprio teto?... Daqueles que comem o que lhes ofereço, bebem meu vinho e cortejam minha esposa?... Dos indígenas, que roubariam meu material até a última pá, se não tremessem diante de mim?... Dos vizinhos, que saqueariam minha plantação, se eu não estivesse aqui para os impe­dir?                        ­

Se o Padre Louis ficou chocado com tal desabafo, não o mostrou. Rapidamente, por cima do ombro, lançou uma olhadela aos outros convivas para ver se eles teriam ou­vido, mas, enquanto Gerda lhes enchia de novo os copos, todos riam e conversavam. O Padre encarou de novo Son­derfeld. Seu olhar inteligente endurecera, sua boca aper­tou-se mais.

       - Meu amigo, é um homem muito infeliz.

       - Está enganado, Padre, não sou infeliz. Pelo con­trário, sou um homem a quem nada falta. Por quê? Porque contemplo a loucura dos outros tal como olho a falta de vergonha de minha mulher... com desprezo. Sou insensível a tudo isso. Continuo meu caminho, solitário e em paz.

            - Solitário, sim. Não, porém, em paz. E esse caminho aonde o conduz?

            Sonderfeld sorriu, contrafeito:

            - Oh, não, não conseguirá levar-me ao confessioná­rio, Padre. Tente isso com minha mulher. Noutros tem­pos era católica. Talvez a traga de novo ao redil. No dia em que a idade a acalmar, ela descobrirá, sem dúvida, seu gosto pela piedade. Quem sabe?

- O senhor é um louco, Kurt Sonderfeld. Conheço seu caminho, porque já vi muitos outros homens meterem-­se por ele. E ouvi-os depois gritar de desespero quando verificaram que era demasiado tarde para voltar atrás. Sei aonde ele conduz...

       - E aonde é?

       - A morte - disse, com simplicidade, o Padre Louis. - A morte e à condenação.

            Levantou-se, sacudiu a cinza do cachimbo e meteu-o no bolso.

            - Agora, tenho de o deixar. A missão é longe e rezo missa cedo.   

            Sonderfeld sorriu, irônico:

            - Fico desolado por vê-lo partir, Padre! Lembre-sede que é sempre recebido aqui com gosto.

            O Padre Louis meneou a cabeça. Em seu rosto enrugado refletia-se uma lassidão triste.

            - Não, Kurt, não voltarei. A não ser que precise de mim e que me chame. Mas vou avisá-lo de uma coisa...

            - Avisar-me?! - Os olhos de Sonderfeld eram de aço.

            - Kurt... - a voz do ancião formulava uma pre­ce, derradeira e prudente. - Diz-me que é agnóstico. As tribos, pelo contrário, são extremamente religiosas. Crêem de uma maneira intensa, apaixonada, nos mitos antigos. Que importa que sejam falsos e até cruéis, se fazem parte da vida destes seres? Por esta mesma razão, a fé deles é mais forte do que sua descrença. Se lhe tocar; se, por orgulho, ou ignorância, tentar explorá-la, ela destrui-lo-á. Acredite me, será aniquilado.

     - Mas que brincadeira! - gracejou Sonderfeld.

            Levantou-se. O Padre Louis ergueu-se também e mergulhou seu olhar no olhar escarninho do corpulento alemão. Nas pupilas do pastor flamejava a cólera, e sua voz carregou-se da ameaça bíblica dos Profetas:

- Não toque nas tribos, Kurt! Não toque em Kumo, nem nos feiticeiros! Tem de se defrontar com coisas que não compreende. Suscitar o Diabo é fácil, mas, para o exorcizar, são necessárias muita esperança, fé, caridade... e a abundante graça de Deus. Boa noite, meu amigo.

Sonderfeld apressou as despedidas com brusquidão e acompanhou o padre até à saída. Depois, deixou-se estar na varanda, escutando os tambores e olhando a pequena sombra, semelhante à de um morcego, que se estendia debaixo das casuarinas. Não experimentava qualquer remorso. Um possível obstáculo acabava de ser posto de lado. O próximo seria Max Lansing. Quanto a esse, era necessário esperar um pouco mais.

Lançou um olhar para a choupana do laboratório. Não viu luz. N'Daria estava ainda na aldeia. Encolheu os ombros com indiferença. As noites eram longas para os amantes da montanha, e o rufar dos tambores ainda não atingira o paroxismo.

      

       Na aldeia, havia kunande.

       Uns cem rapazes e moças estavam acocorados, aos pares, na choupana longa e baixa. Atrás deles, perdidos na sombra carregada de fumo, os tocadores inclinavam-­se para os kundus. O ar fétido vibrava sob um ritmo lancinante, que variava de cântico para cântico, sem que jamais houvesse uma pausa ou uma hesitação.

Os rapazes e as moças, à volta das fogueiras, estavam virados uns para os outros, rosto com rosto, peito com peito, cantando melopéias surdas e entontecedoras, que se transformavam, de quando em quando, em confidências sem palavras, mas cheias de paixão. Cantando sempre, esfregavam os rostos uns nos outros, e também os peitos, mamilos contra mamilos.

As chamas incertas das pequenas fogueiras faziam rebrilhar os corpos untados e dançavam nas carapaças verdes dos coleópteros que lhes ornavam as cabeças. Na atmosfera fumarenta, os penachos agitavam-se numa lentidão compassada; os colares de conchas e de pérolas tilintavam, num som rápido de castanholas, ao ritmo dos tambores.

O ar tornara-se fétido com o suor, o óleo, o fumo e as exalações eróticas de todas aqueles corpos - que iam atingindo, pouca a pouco, o paroxismo do delírio sensual.

Era kunande, o jogo público do amor daqueles que não estavam ainda casados, o momento em que o par se acasalava, o momento em que o homem sabia se sua parceira o desejava ou o desdenhava. Porque era a hora das mulheres. Na noite de kunande a moça escolhia aquele que desejava, abandonava-o, solicitava-o ou recusava-o.

N'Daria estava ali, mas seu companheiro não era Kumo. Este viria à sua hora. Então, ela abandonaria o par e iria juntar-se-lhe. Nesse momento, ela limitava-se a cantar e a excitar-se ao contato de outra carne, deixando as pancadas do tambor tomar posse de seu sangue.

Uma mulher vestida de modo diferente deslizava lentamente diante dos cantores. Tinha os seios pesados de leite, a cintura crescida pela gravidez. Agora, ela separava um par e formava outro, ou deitava água nas bocas abertas dos tocadores de tambor, quando eles lançavam a cabeça para trás, sem atrasar o ritmo das vaquetas so­bre os negras kundus. Era a matrona, a velha ama que favorecia os desejos de suas irmãs, lembrando-se das noites de kunande em que ela usara também a cinta de bambu, insígnia dos que não são casados.

O toque dos tambores tornou-se frenético; depois, de súbito, ensurdeceu num zumbido fraco. Os cânticos ces­saram. Os olhos dos assistentes dilataram-se. Imóveis, es­peravam...

Ao longe, mas aproximando-se cada vez mais, distin­guiu-se o ruído característico da corrida da casuar. Ouviu-­se pisar a terra com suas enormes patas de garras, descer o atalho na obscuridade da floresta úmida, atingir as plantações de tara e a própria aldeia. No outro dia, quando cada um saísse de suas casas, ver-se-iam as marcas no chão negro... Agora, porém, esperavam tensos, silenciosos, enquanto o ruído se aproximava, até que dominou a dos tambores. Parou bruscamente diante da choupana.

Kumo, o feiticeiro, apareceu no enquadramento da porta. Não entrou como os outros, curvando-se sob a mol­dura baixa. Permanecia ali, ereto, provocante, como se tivesse atravessado a própria parede. Trazia uma peruca dourada com franjas feitas de élitros de coleópteras cor de esmeralda. Tinha a testa pintada de verde e a parte superior do rosto de acre avermelhada. Um crescente enorme atravessava-lhe o nariz; o penacho da cabeleira parecia gritar em suas três cores - encarnado, azul, alaranjado; a panejamento que lhe cobria as coxas era de casca entrançada e o cinto estava recoberto de búzios brancos. Todo seu corpo luzia de gordura.

O companheiro de N'Daría levantou-se e desapareceu na sombra. N'Daria esperou. Kumo fez um sinal aos tocadores, que atacaram um ritmo selvagem, enquanto ele avançava pela choupana e se sentava à frente da jovem. Nenhuma palavra se trocou entre eles. Cantaram e esfregaram os rostos, como os demais. O corpo dela era uma chama e o sangue latejava-lhe no ventre, nos seios, sob as pálpebras cerradas.

Após um longo momento, os tambores calaram-se e o fogo morreu com eles. Os pares dispersaram-se silenciosamente: uns para o repouso do sono, outros para a continuação do jogo do amor na choupana da parceira; outros ainda para um breve dormitar à sombra das árvores tang­-ket.

Kumo e N'Daria dirigiram-se para a cabana da irmã desta. Havia lá de comer e de beber, e uma pequena fogueira. Chegaram dois tocadores com duas moças e sen­taram-se aos pares, com as costas apoiadas à parede de bambu. Iam todos entregar-se ao jogo-de-pernas, outra fase daqueles exercícios do amor.

Kumo sentou-se com as pernas estendidas para o cen­tro da choupana. N'Daria colocou-se a seu lado, com o cor­po meio virado para ele e as coxas por cima de sua perna esquerda. A perna direita de Kumo veio então pousar-lhe sobre as coxas, de maneira a segurá-las com firmeza, e seu braço esquerdo rodeou os ombros da moça, que ficou cingida contra o peito do feiticeiro. Começaram as carícias, longo e lento ritual de excitação, cada vez mais íntimo. A princípio, cantaram pedaços dos ritmos de kunande, narraram os acontecimentos escandalosos da aldeia ou ga­baram suas capacidades amorosas. Mas, pouco a pouco, as vozes baixaram de tom e murmúrios carregaram-se de de­sejo.

       - O Branco toca-a assim?

       - Não. - Ela mentia e quase acreditava no que di­zia, no calor do momento.

- O Branco é tão belo como eu - Os dedos penetravam dolorosamente na carne. - Se ele a tocar, ma­to-o!...

- Gostaria que o matasse.

       - Faço-lhe ferver o sangue e os ossos. Porei formi­gas em seu cérebro e uma serpente em suas entranhas. - E eu hei-de olhar e rir, Kumo!

       Num repente, ele cingiu-a, com as unhas lhe rasgando a pele. Ela estremeceu com a dor.

            - O que lhe ensina o Branco na pequena choupana?

      A moça escondeu o rosto no ombro do homem para dissimular um sorriso de triunfo. Kumo era um grande feiticeiro, o maior do vale. Podia transformar-se em ca­suar e correr com mais rapidez do que o vento. Mas nem o próprio Kumo conhecia os segredos que ela aprendia no laboratório de Sonderfeld.

       - O que lhe ensina o Branco? Diga-me.

       Ela riu e abraçou-se a ele:

       - O que me dá se eu disser?

       - Dou-lhe o amuleto que faz os filhos e o que os destrói. Farei de você a mulher desejada por todos os homens. Dar-lhe-ei o poder de ser superior a todas as mulheres.

       - Não quero nada disso.

       Sua boca estava junto do ouvido do feiticeiro. Este, cada vez mais insistentemente, murmurava:

- O que quer então?... - Diga-me e lhe darei! Não sou o maior feiticeiro dos vales?... Não vem o Espírito Vermelho falar-me no trovão e no vento?... Peça e dar-lhe-ei o que pedir. O que quer pelos segredos do homem branco?

       - Só uma coisa. Que me possua agora.

       Lisonjeado, o homem estremeceu.

       - E depois, você me diz?

       - Amanhã ou noutro dia, quando puder vir sem me verem. Agora não, agora não!

       Kumo soltou um riso de triunfo. Seu penacho osci­lou, os dentes luziram-lhe. Num só movimento, ergueu a maça e levou-a para fora da choupana. Foi um ato de furor selvagem, muito breve, que a deixou dolorida, insatisfeita e solitária, nas altas ervas kunai.

                   Os tambores tinham emudecido. As últimas fogueiras extinguiram-se. N'Daria, cambaleando pelo atalho, voltou ao laboratório e apressou-se a acender o candeeiro. Tinha o corpo magoado, a cabeça andava-lhe à roda de fadiga e embriaguez. Mas, entre sua carne e o cinto, estava o pe­daço de algodão sujo do sangue, da baba e do sêmen de Kumo, o feiticeiro. Numa pequena cavidade do seu corpo levava a vida do maior homem daqueles vales.

       Wee Georgie esperava o regresso de suas mulheres. Acocorado na cabana miserável, colocada à beira do cami­nho, tremia sob o seu agasalho esfarrapado e lamentava-se como Jó na estrumeira.

A primeira de suas infelicidades era sua situação tão irregular que nem a admitia a Igreja, nem a Administração, nem as tribos. As duas gordas e escuras irmãs sentiam-se felizes por partilhar suas rações e por poderem aquecer-se sob seus cobertores semelhantes a esfregões, mas continuavam a considerar-se como se não estivessem casadas e, quando havia kunande, iam sempre consolar-se com os celibatários da aldeia.

Wee Georgie era tolerante e não fazia qualquer mistério de sua impotência, mas as noites da montanha eram frescas e seu sangue estava enfraquecido pelo álcool: não conseguia dormir sem o calor misericordioso de dois cor­pos bem untados, um de cada lado do seu. Além disso, seus rins sofriam os efeitos de meio século de excessos e pre­cisava correr constantemente até ao pé da casuarina, onde o frio o fazia gelar até aos ossos.

O pior para Georgie era a falta de álcool. O vinho de missa do Padre Louis dera-lhe apenas um magro reconforto e a má disposição de Sonderfeld tinha-o privado do quinhão de aguardente forte. Restava-lhe um quarto de garrafa de uísque para lutar com os terrores da noite, mas era necessário guardá-lo para recompensar as mulhe­res. Quando chegassem haviam de lhe contar todos os di­tos e intrigas da aldeia, o que valeria talvez a Georgie, da parte de Sonderfeld, uma ração suplementar. O álcool, nestes seus dias de declínio, era o único prazer de que dis­punha e agarrava-se a ele ferozmente, maldizendo a desavergonhada luxúria, que fazia com que mantivesse ainda as duas mulheres em seus travesseiros.

Uma dor aguda na região da bexiga obrigou-o a le­vantar-se penosamente e a dirigir-se, titubeante, até junto da árvore. Exatamente nesse instante, N'Daria, cambaleando de fadiga, avançava pelo atalho. E quando Wee Georgie olhou para o grande bangalô viu a alta silhueta de Sonderfeld de encontro à balaustrada da varanda. Por detrás dele, as sombras de três homens gesticulavam na sala iluminada. O patrão retirara-se com certeza, deixando os convidados entregues as suas bebidas. O homem teve um sorriso lúbrico. Quanto tempo se demoraria ainda ali a senhora? Lansing devia dormir lá na casa, como de costume, e, quando todos tivessem partido, Sonderfeld desce­ria ao laboratório, onde a luz se conservaria acesa muito tempo para além da meia-noite. O que fazia ele lá?... Trabalhava?... Entregava-se a outra coisa?... Wee Geor­gie tinha sobre isso algumas idéias, mas era suficientemente sensato para as guardar para si. Constituía uma sorte de ter arranjado aquele lugar!... O melhor, havia muitos anos! Era absolutamente necessário conservá-la. Mais um erro como o daquela noite e seria um desastre.

Estremeceu e praguejou, vacilante. Longe, no atalho, ouviam-se os passos e os risos barulhentos das mulheres. Devia bater-lhes?... Resolveu não fazer nada. Tirando a rolha da garrafa, bebeu um gole longo e arquejante, que terminou por um arroto de satisfação. Depois, estendeu-­se nos cobertores sujos e esperou suas mulheres. Com uísque no estômago e mulheres na cama, Georgie era o califa destes altos vales. A expectativa das historietas escandalosas que Scherazade e a irmã deviam trazer-lhe enchia-o de satisfação. Não podia haver dúvida de que N'Daria e Kumo entrariam nelas com uma boa parte.

Sonderfeld viu a luz do laboratório acender-se e es­boçou um sorriso na sombra. Espicaçava-o um desejo fe­roz de conhecer a resposta de N'Daria, mas era demasiado prudente para deixar transparecer sua pressa.

Gerda dormia, mas os convidados ainda bebiam. Mais valia juntar-se a eles, para beber um último copo e con­tar-lhes uma história picante antes de os mandar embora. Conduziria Lansing com uma ironia cortês ao quarto de hóspedes, daria alguns passos com os outros no caminho da mansão Kiap e vê-los ia afastarem-se sob os enormes chorões da aléia. Só então iria para junto da jovem negra.

O alemão ergueu-se, jogou fora a ponta do charuto e entrou na sala brilhantemente iluminada. Theodore Nel­son, tão vermelho como volúvel, estava no mais pícaro de sua história. Lee Curtis ria a bandeiras despregadas. Max Lansing, com o rosto cinzento de lassidão e aborrecimen­to, olhava o copo. Todos ergueram o olhar para o anfitrião, que fez uma entrada sorridente.

- Perdoem-me, meus amigos. Fui apanhar um pouco de ar. E agora, que o clero e o belo sexo nos deixaram, ofereço-lhes um grogue da minha especialidade.

       - Se me permite - disse bruscamente Lansing - ­vou deitar-me. Estou muito fatigado e minha companhia nada teria de aprazível.

     - Mas com certeza, caro amigo! - Sonderfeld mos­trava-se cheio de atenções. - Será que você não apanhou a febre?... Quer comprimidos?...

- Não, não é febre. Apenas um pouco de cansaço. E, visto que me dá licença, boa noite, Sonderfeld. Boa noite, meus senhores.

Antes que qualquer deles tivesse tempo de responder, o investigador saiu, com a alta silhueta curvada sob o peso da sua má sorte.

- Que rapaz curioso! - exclamou Theodore Nelson, a quem Sonderfeld enchia generosamente o copo.

- São todos extravagantes estes rapazes da etnolo­gia - apoiou Lee Curtis, desdenhoso, com sua experiência recentíssima. - Encontro-os um pouco por toda a par­te nas montanhas. Extravagantes e levemente... patetas.

- Não seja demasiado severo com esse pobre tipo! - pediu Sonderfeld com um tom em que indulgência e afeição se misturaram em sábia dose. - É um investiga­dor inteligente, consciensioso. Realmente, um pouco desagradável em sociedade, mas isso é uma conseqüência da solidão. E acrescente-se que está bastante doente. Teve tifo. Se não fosse eu, já não estaria vivo, Gerda e eu gos­tamos muito dele e convidamo-lo sempre que possível.

                   Theodore Nelson pigarreou com simpatia e meteu o nariz no copo. Sua versão da história Lansing era um tanto diferente, mas quando um homem está tomando o uísque dos outros e comendo à mesa deles, faz bem em guardar seus pensamentos para si.         

Lee Curtis parecia um diplomata menos prático. O ponto de vista de Lansing sobre o culto do cargo toda a noite lhe tinha implicado com os nervos. Se o cientista via as coisas bem, isso significava para a Administração um máximo de aborrecimento, e o Comissário Distrital era um chefe duro e sutil, sem paciência nem misericórdia para com os administradores inábeis. Curtis abafou um soluço e encarou Kurt Sonderfeld:      

- Você diz que ele é inteligente? Então, por que es­carneceu de sua opinião sobre o culto do cargo?

       - Meu caro - respondeu Sonderfeld -, não há contradição. Lansing é com efeito um sábio, um homem de livros e de teorias. Mas falta-lhe experiência, prática... como a sua, por exemplo.

Nelson sorriu para dentro do copo. “Velhaco”, pensa­va ele, “extremamente velhaco. Que há indícios de complicações, sabe-o tão bem como Lansing. Mas você, ao me­nos, não arrisca profecias. Deixa isso para esse garoto a quem ainda não nasceram os dentes do siso. Se vai haver barulho entre as tribos, o melhor é ficar de parte e tirar o maior proveito que se puder do caso.”

       Lee, Curtis soluçou de novo. O cumprimento era ainda mais doce do que o uísque e tão embriagador como este. Meteu um dedo hesitante na camisa de Sonderfeld e falou com uma voz pastosa:

       - É o que sempre digo. São os homens a corrente dos fatos que os conduzem. O senhor, em ponto pequeno, em sua plantação; eu, em ponto grande, em meu território. Os outros todos... os missionários, os etnólogos... - Come­çou a rir. - Meu Deus, como estou bêbado! Nelson, é me­lhor que me leve para casa antes que dê comigo no chão.

Sonderfeld tomou-o a seu cargo habilidosamente, sem abandonar o sorriso lunático de um inglês que tivesse agüentado centenas de serões como aquele. Nelson, esse, não oferecia qualquer perigo. Era uma ave de arribação que estava ali de passagem, voando muito alto, acima das águas tumultuosas.

      Pegaram ambos em Curtis, de um lado e de outro, e saíram.

       Quando o ar frio o atingiu, o rapaz teve náuseas e vomitou no caminho. Na sombra, Sonderfeld esboçou uma careta de nojo, mas fez face à situação com a competência que uma longa experiência dá. Segurou Curtis com uma das mãos pela cintura e, com a outra, amparou-lhe a cabeça até o espasmo ter passado. Depois, sem alterar a boa disposição, limpou a boca do ébrio com seu próprio lenço.

       Nelson observava a cena com uma aprovação muda. Não havia dúvida de que aquele homem era um cavalheiro. Ao longo de sua movimentada carreira, o funcionário tinha encontrado algumas imitações imperfeitas, mas este merecia que lhe tirassem o chapéu. Se o plantador e a Administração acabassem por não se entender, Nelson sus­tentaria a empresa privada, apesar de tudo e contra tudo. Era exatamente com isto que Sonderfeld havia contado.

O alemão ficou longos minutos observando seus hóspedes, que se afastavam, e cujas sombras balouçavam na descida do atalho estreito. Depois, voltou-se e caminhou rapidamente para o laboratório.

N'Daria esperava-o. A moça trocara seus adornos de festa por um vestido simples que pertencera a Gerda. Caía de sono, e corpo cheirava a fadiga e a óleo rançoso. Seu sorriso não deixava transparecer o mais leve desejo. Ape­nas um clarão de triunfo brilhou nele quando estendeu a Sonderfeld o tubo de bambu que continha a presa daque­la noite.

Ele recebeu o objeto sem uma palavra, levantou a tam­pa e, com uma pinça, retirou delicadamente o pedaço de algodão.

       “Como é estranho!”, pensava. “Como é estranho!”

            Entre aquelas pequenas garras de aço segurava a cha­ve do poder. Aquela relíquia repelente de um ato animal era o talismã que ia levantar exércitos, erguer um trono na montanha e pôr, na fronte de quem detivesse esse talismã, a coroa de um novo império. Perspectiva que causava vertigens e, todavia, real! As tribos estavam secretamente sob o poder dos feiticeiros e estes obedeciam to­dos a Kumo. O homem que possuísse um pouco do sangue, da saliva e do sêmen de Kumo era mais poderoso do que ele, porque poderia, num momento qualquer, e por sua simples vontade, ditar a morte de Kumo.

Este considerar-se-ia um escravo desde o instante em que soubesse que seus humores vitais estavam na posse de outro homem.

Consumisse o fogo este tubo, e o corpo de Kumo seria vítima de uma horrível morte; fosse um machado a esma­gá-lo, e a cabeça de Kumo seria desfeita; aquecesse ou per­cutisse alguém o tubo, e o homem arderia em febre ou ouviria ruídos enlouquecedores. Era a velha magia negra, terrível e medonha magia do homem primitivo, que se voltava contra ele. Sonderfeld permaneceu imóvel por muito tempo, perdido na alegria secreta de seu triun­fo. A moça observava-o com um sorriso inquieto nos lábios. Bruscamente, o alemão fechou o tubo com um ges­to seco e meteu o no bolso. Levantou então a cabeça e riu, levemente constrangido.

       - Belo trabalho, N'Daria.

       Os olhos da jovem brilharam. Caminhou em sua dileção, mas ele recuou com uma expressão de desagrado. Foi como se a tivesse esbofeteado...

       - Mas tinha-me dito!...

       - Você cheira mal! - murmurou Sonderfeld. ­Cheira mal como um porco da aldeia. De manhã, tome um banho.

       O alemão saiu, brusco. N'Daria ouviu a porta fechar­-se e a chave girar na fechadura. Então, lançou-se sobre a cama de bambu, soluçando de desespero.

 

     Quando o marido entrou, Gerda dormia.

            Estendida de lado, tinha o rosto apoiado em uma das mãos e a outra abandonada ao longo da anca sinuosa.

Os cabelos eram uma cascata sombria sobre os lençóis brancos. Pele cor de nácar, um sorriso levíssimo en­treabrindo-lhe os lábios como os de uma criança inocente.

Kurt acendeu a luz e contemplou a mulher, que es­tremeceu e depois se ajeitou melhor, sempre sorrindo. Até no sono parecia troçar dele. Que Gerda se tivesse entre­gado a Lansing não era mistério e, com certeza, com um ardor igual à frieza que dedicava ao marido. Tão apaixo­nada, terna e lasciva para um parvo cujas lamúrias au­mentavam ainda sua sensaboria natural!...

Tinha ridicularizado o marido sob o seu próprio teto e ele nada podia a esse respeito... pelo menos por ora. Bater-lhe?... Ela rir-se-ia em suas bochechas. Matá-la, logo que tivesse liquidado Lansing?... Isso seria perder em vez de ganhar. Não tinha outro remédio senão engo­lir sua vergonha e ver desafiarem-lhe a autoridade, até ao triunfo final - até ao momento em que ela lhe esti­vesse novamente nas mãos, como já o tinha estado, num dia de inverno, havia exatamente doze anos.

Nesse dia, o Sturmbahnfürher Gottfried Reinach ba­tia com seu pingalim nas botas de verniz, examinando o novo lote de mulheres enviado da Polônia para o campo de Rehmsdorf. Eram mais de cinqüenta, velhas, novas, outras sem idade, todas sujas e esfarrapadas, com o rosto cavado pela fome, os olhos sombrios de terror, pés envol­tos em trapos, a pele enregelada.

E elas permaneciam ali, atônitas de pavor, sob o olhar inquisitorial de Gottfried Reinach.

     Um homem importante, esse Sturmbahnfürher, devo­rado de ambição e cheio de cuidados por sua carreira! Seus diplomas de medicina de duas universidades, a breve passagem pela clientela civil davam-lhe já um certo nome, mas sua repugnância pelo serviço militar e o desejo de rápida ascensão levaram seus pensamentos para política. Ao ingressar no Partido, preparado com altas relações até entre os colaboradores de Himmler, chegara ao posto de diretor de pesquisas, na categoria de Sturmbahnfürher, no campo de concentração de Rehmsdorf.         

Essas pesquisas diziam respeito à vacina contra o tifo e as ruínas humanas que formavam a população do campo forneciam as cobaias. Além disto, cabia ao Sturmbahnfür­her escolher os indivíduos que deviam ser enviados para a câmara de gás e esterilizar as mulheres de raça inferior, cuja maternidade pudesse vir a acrescentar a percentagem dos escravos entre os super-homens.

Para falar a verdade, ele tinha muito pouca vocação para esta tarefa, mas, havendo escolhido esta via, avançava resolutamente por ela. Suas fichas estavam cuidadosamente em ordem e seus êxitos eram apresentados às autoridades com a conveniente valorização. Quanto aos fracassos, sabia como fazer desaparecer os vestígios.

       Nessa manhã de inverno, observava as mulheres como um fazendeiro avalia o gado, designando com o pingalim as que ia escolhendo para os diversos fins: esta para o comando de trabalho, aquela para o lupanar, a outra para o trabalho dos oficiais, esta para outro local qualquer.

E assim por diante até ao fim da fila... e foi então que reparou em Gerda Rudenko. Tal como suas companheiras, estava suja e esfarrapada, e tinha no olhar o mesmo terror, mas sua beleza e sua juventude intatas serviam-­lhe de auréola. Pelo que dizia a lista, tratava-se de uma es­tudante, culpada de haver acompanhado suspeitos. Tinha dezenove anos.         

Reinach pensou que podia servir-lhe. Fê-la esterilizar como as outras. Verificou com mais cuidado que de costume se estava isenta de doenças venéreas ou de outras e escolheu-a para seu serviço. Secretária durante o dia, escrava dócil de noite, o medo que tinha dele e da câmara de gás tornava-a diligente. Como ele era, por vezes, amável e pouco freqüentemente cruel, mostrou-se grata, terna quando lhe permitia e apaixonada quando - cada vez com mais raridade - desejava seu corpo jovem. Houve até instantes em que se sentiu tentada a dar-lhe sua confiança. Mas os anos de servidão foram-se alongando, aprendeu a conhecê-lo melhor e amá-lo tornou-se impossível. Conti­nuou a servi-lo, mas com o ódio no coração.

Chegaram ao campo os últimos frenesis da derrota, a loucura do assassínio. Os corpos amontoavam-se por to­dos os cantos. As câmaras de gás e as fornalhas já não chegavam para engolir aquele combustível com que a todo o momento as carregavam.

Pela primeira vez em sua vida, Gottfried Reinach teve medo - medo daqueles animais enlouquecidos por detrás dos arames farpados, medo da vingança, que che­gava com os carros, as metralhadoras e as colunas dos libertadores.

Entre ele e Gerda Rudenko foi então selado um pacto. Fá-la-ia sair do campo, salvá-la-ia do holocausto final. Desposá-la-ia, não sob seu nome, mas sob o de Kurt Son­derfeld, doutor em medicina, solteiro, que morrera queimado havia muito tempo, mas cujos papéis existiam intactos no fichário. Quando soasse a hora fatídica, deixa­riam o campo como apátridas e pediriam proteção aos exércitos libertadores.

Nenhuma traição havia a temer da parte de Gerda. Por ter aproveitado durante tanto tempo da proteção do seu carrasco, estava tão comprometida como ele, votada ao mesmo castigo, apanhada na armadilha. Ela sabia-o. O pacto foi concluído.

Abandonaram o campo três dias antes da libertação de Rehmsdorf. Reinach era agora Sonderfeld. O número de infâmia do morto tinha sido tatuado em seu braço, a história dos trabalhos e da vida daquele cuidadosamente aprendida de cor. Enfiou os farrapos dos prisioneiros, jejuou uma semana e ordenou a Gerda que lhe raspasse o cabelo, tornando-se assim uma vítima apresentável.

O estratagema resultou. Lentamente, foram passando pelo mecanismo das organizações de socorro e dos campos de classificação. Responderam a questionários, preenche­ram papéis e viveram no terror quotidiano de serem reco­nhecidos até ao momento em que seus nomes foram afi­xados entre os dos imigrantes recebidos pela Austrália.

       Abria-se para Kurt e Gerda Sonderfeld uma vida nova; um novo futuro se oferecia à gélida ambição deste homem, mas agora agiria sozinho. Oito dias depois de par­tirem de Gênova, Gerda teve sua primeira ligação com outro emigrante. As censuras do marido fizeram-na sorrir e as ameaças causaram-lhe gáudio. Ele bateu-lhe. Então, ela disse-lhe, sem cólera:

- Se alguma vez tornar a fazer isto, denuncio-o. Fa­larei, resulte o que resultar para mim. Lembre-se. Esta­mos ligados um ao outro, mas de hoje em diante não par­tilharei sua cama e você não me tocará.

Kurt pensou no divórcio, mas refletiu que jamais dor­miria tranqüilo, pelo menos enquanto Gerda estivesse em condições de desvendar seu segredo. Arquitetou matá-la. Antes que pudesse executar o plano, ela preveniu-o. Mal chegara à Austrália, tinha depositado em lugar seguro declarações escritas mais do que suficientes para o antigo nazista ficar perdido, no caso de a mulher morrer primei­ro. Ei-lo, por sua vez, apanhado na armadilha, amarrado a um corpo que mutilara e cuja lascívia reservada a outros o cobria de vergonha.       

Quanto a Gerda, era mulher sem ilusões. Privada de amor e de maternidade, tinha feito um contrato que lhe garantia segurança, conforto e a amarga doçura de uma vingança ao longo da vida.

Kurt e a mulher tinham construído sobre estas frá­geis bases uma existência quase estável, quase em paz e de que não fora excluída a cortesia. Estudavam e aproveitavam juntos as ocasiões de benefícios e, se um procurava outros leitos para o amor, era com a discrição conveniente. E neste novo país, trepidante, pleno de atividade, eles foram, se não amados, pelo menos aceitos.

Uma das condições impostas pela Austrália aos imigrantes era a de servir num emprego imposto durante dois anos. Sonderfeld foi designado como guarda-livros numa empresa de construção de barragens. Gerda como serven­te na cantina.

Coisa curiosa, este trabalho não lhe diminuiu a personalidade. Aprendia a língua, adaptando-se a uma atmosfera rude e diferente. O menor ensinamento lhe servia e era anotado, em função do futuro. Tinha cometido um erro na vida, não cometeria outro. Um dia, uma porta se havia de abrir neste jovem país confiante e ele trata­ria de não perder a ocasião.

Esse dia chegou. O Diário Oficial publicou a notícia de que os médicos imigrantes que pudessem dar prova de seus diplomas europeus ficavam de futuro autorizados a exercer clínica no território sob mandato da Nova Guiné sem ter de repetir os estudos.

Ali estava sua oportunidade. Agarrou-a com ambas as mãos. No mês seguinte, Gerda e ele estavam em Lae. Em três anos, Sonderfeld fez uma clientela, uma conta no banco e uma reputação. Ofereceram-lhe um cargo na Administração, que recusou sorrindo. Para seu gosto, já tinha servido bastante tempo; agora, desejava comandar.

Estava-se no tempo em que se fazia a prospecção dos ricos vales da montanha. As terras eram arrendadas a colonos enérgicos e com boa fama. O pedido de Sonderfeld foi aceito facilmente por ele se declarar resolvido a ir para além das montanhas, região em que os antigos colonos não arriscariam seu dinheiro.

Foi assim que atingiu este vale, com Gerda e os car­regadores indígenas, pela senda da montanha. Seus cui­dados gratuitos de médico valeram-lhe a amizade das tri­bos e as boas graças do Comissário Distrital. Em um ano, o terreno estava desbravado, a casa construída, o café plantado à sombra benéfica das árvores e o sonho de Kurt muito próximo de ser realizado.

       Para que tal sonho pudesse vir a concretizar-se, era necessário primeiro do que tudo garantir a submissão das tribos, por intermédio de Kumo e dos demais feiticeiros de menor importância. Em seguida, exigir um tributo sob a forma de mão-de-obra, de gado, de ouro lavado nos ri­beiros das montanhas e de madeira das ricas florestas indígenas - o tributo ou dízimo de cada horta, de cada artesanato (verga, casca de cinchona, noz-de-galha) , tal como o recebiam as missões da costa. A lei obrigava o colono a pagar, a vestir e a alimentar a mão-de-obra que o ser­via; mas ele ganhava ainda nisso, mesmo incluindo uma gratificação aos feiticeiros por seus bons e leais serviços.

O ambicioso projeto parecia, contudo, realizável. Com uma condição: era necessário que entre as tribos houves­se paz. Antes que a Administração viesse meter o nariz no que se passava, Sonderfeld teria feito fortuna. Então, seria como que o regresso do corsário... seria realmente o regresso à vida luxuosa da Europa.

Mas, na realidade, a riqueza não bastava àquele orgulho ilimitado. Este visava mais alto, até aos cimos do poder. O desejo de domínio era em Kurt uma obsessão, uma cegueira, que não lhe permitia ver, apesar de sua aventura pessoal e dos desastres sofridos por seu país, se­não as ilusões douradas.

No isolamento dos altos vales, em que o poder se en­contrava na mão de garotos chorões - como Lee Curtis -, um sonho de domínio imperial parecia perigosamente possível. O território sob mandato não possuía guarnição, excetuando os contingentes dispersos da policia indígena.

Os aeródromos eram pouco numerosos e concebidos para aviões pequenos, as comunicações incertas.

Espaços imensos estavam por explorar e em muitos deles havia tribos que nunca tinham visto um branco. Um aventureiro ousado, com o apoio dos feiticeiros, não devia encontrar obstáculos para criar uma autoridade quase di­vina.

Tudo isso - e mais ainda - devia sair do pequeno tubo de bambu, cuja superfície brilhante reluzia fracamente na mão que o punha perto da luz.

Gerda agitou-se e murmurou palavras indistintas. O marido meteu o tubo no bolso. No dia seguinte, novo capítulo se abriria na vida extraordinária de Kurt Sonder­feld. Cinco minutos depois, este dormia também, sorrindo ao sonho que o deslumbrava.

Eram duas horas da madrugada quando o Padre Louis chegou à Missão - uma pobre e pequena aldeia, dispersa ao longo de um desfiladeiro estreito, entre as terras de Sonderfeld e o vale de Lahgi. Para a atingir, era necessário percorrer nove quilômetros pelo flanco da montanha, atravessar longas florestas úmidas e, de espaço a espaço, vencer troços cobertos de erva kunai, mais alta do que o velho sacerdote. Este, enquanto caminhava, rezava des­fiando as contas do rosário e, enquanto rezava, ia perguntando a si mesmo o que podia Sonderfeld saber acerca dos acontecimentos que fermentavam entre as tribos.

Muitas coisas pareciam ainda obscuras ao Padre Louis. Chegavam-lhe aos ouvidos pedaços soltos de notícias, ciciadas pelos seus convertidos no confessionário da minúscula capela. Um tinha sido ameaçado pelos feiticeiros e precisava que o tranqüilizassem; outro havia comprado ervas abortivas e pedia a absolvição; um rapaz vinha di­zer que tinha levado uma jovem para o mato, depois do kunande e do jogo-de-pernas. Sua catequista queria saber se tomar parte na Festa do Deus Porco era um ato de ido­latria ou um inofensivo prazer campestre. Mas todos estes murmúrios eram apenas os fragmentos de uma única e mesma história: a de uma minoria hesitante, agarrando-­se com desespero à nova fé, receando as mofas da maioria e ainda mais as potências do mal, de que os indígenas tinham todos os dias a terrível experiência.

O próprio missionário temia. Não as lendas, as superstições infantis e os encantamentos primitivos, mas sim o mal velho como os séculos que mostrava seu poder através destas coisas e por meio delas. Acreditava no pe­cado, no demônio que percorre os vales, não a rugir, como o leão de São Paulo, mas insinuante, ameaçador, minan­do as almas por intermédio dos feiticeiros.

Com certeza de que, como tinha dito Sonderfeld, muitos deles não passavam de charlatães e facilmente podiam ser desmascarados. Mas havia os outros, a exceção podero­sa... Kumo, por exemplo, orgulhoso, votado ao mal, príncipe do Mal. Lee e o Padre Louis tinham certeza disso: Sonderfeld fizera um pacto com eles, a agitação do vale poderia tornar-se em tempestade.

O alentado alemão desorientava-o. Não era mulheren­go, nem ébrio, nem um vagabundo maltrapilho em busca de ouro ou petróleo, como os aventureiros dos vales. Era um homem inteligente, culto, senhor de si. Se viesse a cor­rer qualquer risco, seria calculado, e o proveito também o seria... e este com o maior cuidado. Um orgulho frio, uma ambição desenfreada deviam devorar aquela miste­riosa personagem. Mas qual era seu alvo? O dinheiro? Para tal homem isso seria aspirar a muito pouco... O poder?

O Padre Louis estremeceu, se bem que a marcha o tivesse aquecido. O desejo de poderio era a tentação de Lúcifer, o pecado contra o Espírito Santo, a falta que es­tava para além de toda a misericórdia.

Na minúscula e ruinosa capela, iluminada por um pa­vio ardendo numa tigela de óleo, o padre prostrou-se dian­te do seu Deus. As tribos adoravam um porco animado pelo Espírito Vermelho, cujo símbolo era o membro viril e o órgão feminino entrecruzados. O Deus do Padre Louis estava ali, sobre o altar, sob a forma de uma hóstia. Os lábios do ancião murmuravam a salmodia familiar do Ofí­cio de Completas:

“Scuto circumdabit te veritas eius...” Sua verdade te envolverá como um escudo. Não temas os terrores da noite.

“A sagitta volante in die, a negotio perambulante in tenebris...” Nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha de noite, nem o demônio que fere em pleno meio-­dia...

No mistério do alto vale, enquanto os feiticeiros lan­çavam sortes e Kurt Sonderfeld sonhava com um império, o Padre Louis continuou a orar na capela de bambu, até ao momento em que as estrelas empalideceram perante o sol que inundava as cristas dos montes. Seu catequista veio encontrá-lo com o rosto encostado ao chão, vencido pela fadiga, nos degraus do altar.

 

       Sete horas e meia da manhã. Wee Georgie reunia os trabalhadores da plantação, que chegavam da aldeia como quem viesse de passeio, pesadamente, de mau aspecto e olhos vermelhos. Chegavam e acocoravam-se diante da choupana do contramestre.

Despojados de seus ouropéis rutilantes, os homens, com pele baça, dentes tingidos e boca suja de baba do suco de bétel, formavam um grupo de aspecto patibular.

Wee Georgie observava-os com um desprezo real e cuspiu na poeira junto dos pés deles. Apoiado à casuarina grande, oferecia uma silhueta obscena e derrotada, de olhos lacrimejantes e de beiços torcidos pela boca seca. Trazia uma camisa rasgada que flutuava sobre as calças e um cin­to oscilando por baixo do umbigo. Os pés descalços ras­pavam com irritação a terra ressequida do caminho. Numa das mãos, trêmula, segurava um cigarro, com a outra co­çava sem parar um sovaco escorrendo suor. Por detrás dele, à porta, suas duas mulheres espreitavam, rindo como meninas de colégio. Seu senhor estava de disposição mais viva que de costume. A cena merecia ser apreciada.

Os últimos retardatários chegavam torcendo-se com ares inquietos sob o olhar do capataz. Este aspirou uma última fumaça do cigarro, tossiu até ficar roxo e cuspiu de novo.

       - De pé, negros imundos! Em fila e rápido!

       Os trabalhadores foram-se levantando lentamente e alinharam-se diante de Wee Georgie, cujo rosto respulsivo se torceu num sorriso. Respirou profundamente e pôs-se a insultá-los, com uma voz monocórdia e sem a mínima cólera, em pidgin, em dialeto, em linguagem de truão. Amaldiçoou-lhes a cor da pele, o tamanho dos órgãos genitais e a luxúria das mulheres. Deu-lhes nomes de páss­aros, de animais ferozes e de outros rastejantes, de devoradores de cadáveres e de tripas. Disse-lhes que exala­vam um cheiro fétido pelas narinas, que eram uma ofen­sa para os olhos de todos e emporcalhavam o ar da montanha, que copulavam com marrãs, davam vida a mons­tros, e que, quando morressem, as próprias formigas fu­giriam de suas carcaças.

Quando ele acabou, tendo recuperado a boa disposição, os homens riram a bom rir, para mostrar o aplauso a este discurso. Mas isto eram apenas os preliminares.

Wee Georgie pigarreou de novo. Um enorme escarro foi ter aos pés dum rapagão, fazendo levantar a poeira até aos seus artelhos. O rapaz, contentíssimo, desatou a rir. As mulheres cacarejavam, divertidas. Georgie desen­costou-se do tronco da árvore e foi cambaleando até a seu bode expiatório. Lentamente, mediu-o da cabeça encarapi­nhada aos pés que raspavam o chão. Depois, exclamou:

- Venha aqui, Yaria! Yaria, que fala como uma raiz de taro e procede como um rebento de bambu.

Todos riam às gargalhadas. Yaria era um fanfarrão bem conhecido, que não conseguia satisfazer as mulheres. O branco, cheio de malícia, conhecia os mexericos todos da aldeia. Wee Georgie, deliciado, sorria. Seu número es­tava causando sucesso.

- Este Yaria ontem à noite estava no kunande. Mu­dou de parceria três vezes, sem conseguir encontrar uma moça que quisesse deitar-se com ele.

Fuzilaram os dichotes. Yaria curvava a cabeça esfre­gando os pés um no outro com atrapalhação.

- Yaria gostaria de se casar e de ter um filho, mas não tem posses para comprar uma esposa. E, mesmo que conseguisse isso, haveria de precisar de outro homem para lhe dar uma ajuda.                

Esta mistura ritual de motejos, de obscenidades e de insultos continuava até que aqueles seres morosos, cheios agora de boa disposição, tivessem com que ocupar o espírito até ao fim do dia.

       Quando deixou Yaria, o capataz começou com o se­guinte, e assim por diante até ao último, cuspindo-lhes aos pés, chamando a atenção para eles como se fossem cavalos que se exibissem e distribuindo o ridículo de um modo eqüitativo, mas sem que nenhum deles perdesse a cabeça.

Esta palhaçada de feira estimulava a boa vontade dos trabalhadores e permitia a Georgie ficar estendido à som­bra, com o chapéu lhe tapando a cara, enquanto os ho­mens sachavam e limpavam os renques dos cafeeiros ou as valas da rega, mascando o tabaco temperado da dis­tração matinal.

            Tinha chegado à última vítima quando viu Kumo. O alentado rapaz estava um pouco de parte, de braços cru­zados sobre o peito, rosto impassível, espelhando nos olhos um ódio frio. Wee Georgie estremeceu e as palavras mor­reram-lhe nos lábios. Apressou-se em distribuir as tarefas - estes para as valas de rega, aqueles para arrotear mais um pedaço de terra, aquela meia dúzia para os fossos de escoamento do lago superior, dois homens para cortar os relvados os outros para mondar e pôr palha nos alinhamentos das plantas.

Todos se dispersaram, rindo e tagarelando, em dire­ção ao trabalho. Kumo continuava de parte, como se es­tivesse desafiando o capataz, mas Wee Georgie era sabido demais para se meter com o feiticeiro.

   - Espere aí, rapaz, o patrão quer falar-lhe - disse Georgie resmungando, após o que cuspiu de desprezo e se dirigiu para a choupana, onde suas mulheres lhe prepara­vam o pequeno almoço.

       Kumo sentou-se de cócoras ao pé da casuarina e aguar­dou a chegada de Sonderfeld.

            Este descia lentamente o caminho batendo nas pernas com um chicotezinho flexível. Tal gesto, noutros tempos e noutro país, podia tê-lo deitado a perder. Teria lembra­do as botas bem engraxadas e o elegante uniforme de uma elite hoje desacreditada. Ali, naquela esplêndida manhã da serra, era uma coisa tão desprovida de sentido como tentar perseguir moscas.

Como sempre, Sonderfeld tinha preparado cuidadosa­mente sua aparição para a fazer coincidir com a disper­são dos trabalhadores. Vê-lo-iam ao longe e haviam de se empurrar uns aos outros na pressa de terem já começado quando o frio olhar do patrão pousasse neles. O temor des­tes homens lisonjeava-o e alimentava a chama que o con­sumia.

       Nessa manhã, a aparição de Sonderfeld foi prepara­da ainda com mais cuidado. Quando avistou Kumo aco­corado na poeira, parou e ficou longos minutos exami­nando os altos cóleos que ladeavam o caminho. Tirou um charuto do bolso e acendeu-o com lentidão antes de reco­meçar a marcha. Então, repetiu para si próprio o papel que ia representar. Não falaria pidgin, que era a língua dos subordinados, nem inglês, que era a da igualdade. In­terpelaria Kumo em seu idioma natal, e isso, mais do que as próprias palavras, significaria: “Conheço-o bem. Sua língua viperina não consegue enganar-me. Partilho seus”.

segredos e, contudo, sou mais poderoso do que você.”“.

Falariam a sós, à sombra dos tangkets, a fim de evi­tar que o feiticeiro, confundido, perdesse a serenidade diante dos seus. Era necessário dobrar-lhe a vontade pon­do-a a seu serviço, mas Sonderfeld queria igualmente pre­servar-lhe a influência.

O homem havia de respingar, com certeza. Revoltar­-se-ia contra a idéia do jugo, porque era altivo, e, como também era inteligente, tentaria sem dúvida usar de ma­nha. Começaria por ameaçar com uma denúncia à administração, mas Sonderfeld não cederia e dar-lhe-ia cabo da revolta. Merendo a mão no bolso para tocar o tubo de bambu, sorriu, cínico. O que faria Kumo?

Quando o alemão se aproximou, Kumo continuou imó­vel, acocorado de encontro à árvore, olhos baixos, maxila­res mastigando a noz de bétel. O outro parou um instante, observou-o, depois chicoteou-o na face. A cabeça de Kumo ergueu-se num repelão. Seus olhos deitavam chamas.

- Levante-se - disse Sonderfeld, baixo. - Venha comigo. Quero falar-lhe.

Voltou-se e encaminhou-se para a sombra das árvo­res, fora da vista das choupanas e de sua casa. Lentamen­te, Kumo ergueu-se e seguiu-lhe os passos. Sob as folhas violáceas, na sombra salpicada, encontraram-se cara a cara... homem de pele escura, homem de pele branca, cada um deles senhor no seu domínio.

       Sonderfeld sorria despreocupadamente.

       - Kumo, já lhe ofereci minha amizade. Quer acei­tá-la ?

       Uma cólera surda brilhou na expressão de Kumo.

       - Não. Você tira tudo e não dá coisa alguma. Isso não é amizade.

            - Disse que faria de você o chefe de todos os va­les.

       O rapaz endireitou-se com um ar provocante.

       - Já sou o chefe de todos os vales.

       Sonderfeld riu-lhe na cara.

       - Em cada aldeia há um Luluai nomeado pelo, Kiap de Goroka. Esse é que é o chefe. Você não é mais do que um trabalhador comendo os restos dos restos dos pobres.

       Kumo sorriu com desprezo:

       - Os Luluais fazem o que eu lhes digo. Mas você não passa de um servo do Kiap. Como faria por mim o que não seria capaz de fazer por você próprio?

- Você não sabe o que diz - replicou Sonderfeld. - Se soubesse, não teria falado às tribos a respeito da vinda do Espírito Vermelho. Eu não sou servo de ninguém. Sou o Espírito Vermelho que manda em todos, no Kiap e no próprio Deus Porco.

Kumo lançou uma cuspidela de bétel sobre um lagarto que passava.

            - Isso você diz. Mas não fala nos conselhos dos Kiaps. E nas tribos não faz magia.

            - Porque não estou ainda pronto para isso.

Agora era a vez de Kumo rir às gargalhadas, enchendo a garganta com um longo regougar que lhe rebentou por detrás os dentes escarlates. Sonderfeld levantou o pinga­lim e bateu-lhe com força na face, abrindo-lhe um longo e fino estilete desde a boca até à orelha.

            Kumo soltou um grito e levou a mão ao rosto.

            - Agora - disse Sonderfeld calmamente - ouvir­-me-á.

            O feiticeiro encarou-o com um furor vão.

       - Você é louco, Kumo. Mas estou disposto a esquecer suas loucuras e a fazer de você meu amigo.

- Não! Você não é meu amigo. Um irmão atacaria seu irmão? A lei do Kiap diz que o homem branco não deve ferir o homem negro. Contarei ao Kiap e você será castigado.

Sonderfeld encolheu os ombros e abriu as mãos num gesto de indiferença.

       - Conte ao Kiap. Mas primeiro ouça-me.

       - Não.

       Voltou-se e fez menção de partir. As primeiras pala­vras de Sonderfeld pregaram-no, porém, ao chão.

            - A noite passada, depois do jogo-de-pernas, esteve deitado na grama com uma mulher.       

            Lentamente, Kumo encarou-o, apreensivo. Sonderfeld riu, escarninho.

- Quando os mais velhos fizeram de você um homem, Kumo, não lhe disseram que todo aquele que dá sua semente a uma estranha põe a vida em grave perigo?

- Não é uma estranha. É uma mulher de minha al­deia.

            - Essa mulher é minha - disse Sonderfeld, calmo.- Chama-se N'Daria. Ela serve o Espírito Vermelho.

Nos olhos coléricos do feiticeiro brilhou de súbito um clarão de fatuidade. Lembrava-se das palavras da moça, de sua paixão, da maneira como mostrara desejá-lo.

- O Espírito Vermelho reparte então suas mulheres?

            - Não. Não as reparte. Serve-se delas. Olhe.

            O tubo de bambu estava em sua mão aberta. Colo­cou-o então quase sob o nariz do feiticeiro. Este recuou, estupefato.

            - O que é isso? - perguntou, com um ligeiro tremor de receio.         

            A voz de Sonderfeld elevou-se como um trovão pro­fético:

- Possuiu uma mulher, Kumo. Sua saliva ficou nos lábios dela, seu sangue sob as unhas dela, e seu sêmen escorreu-lhe nas coxas. Ela trouxe-me tudo isso. É o que tenho nesta mão, aqui a sua frente.

       A reação de Kumo foi súbita e horrível. Sua coluna vertebral dobrou-se para trás, a cabeça descaiu-lhe e os olhos ficaram revirados. Ruídos surdos escaparam-se-lhe dos lábios. Depois, como se tivesse apanhado um pontapé no ventre, dobrou-se em dois, vomitou e lançou-se por ter­ra aos pés de Sonderfeld, soltando sons inarticulados.

Sonderfeld ficou atônito, mas só por um instante. De­pois sorriu, olhou o corpo agitado de sobressaltos e teve certeza de que bastava virar as costas: o feiticeiro raste­jaria até à moita mais próxima e aí ficaria sem comer, sem beber, sem falar, até à morte. Kumo já matara outros de igual modo.

Agora, a arma terrível, essa arma de dois gumes, do terror e da velha magia, virava-se contra sua carne sem amparo!

Foi um momento de completo triunfo para Sonder­feld. Sozinho, lutara contra as potências negras e miste­riosas dos vales, e a prova de sua vitória ali estava, suja de pó e abjeta. Inclinou-se, agarrou Kumo pela carapinha espessa e encostou-o a uma árvore. Depois, de mãos nas ancas, olhou-o com ironia.

     - E agora acredita-me, Kumo?

       O feiticeiro fez um sinal.

       - Sim.

       - Reconhece que sou o Espírito Vermelho? E que tenho em minhas mãos a vida e a morte?

       - Sim.

       - Sabe que posso queimá-lo com o fogo, esmagá-lo com pedras ou fazer que as formigas o devorem, mesmo enquanto caminha?

       O rosto do feiticeiro convulsionava-se numa hipnose de sofrimentos.

       - Sim, sim.

       - Sabe também que posso, se quiser, poupar-lhe a vida?

       Kumo abriu os olhos. Neles não se lia a mínima esperança: apenas uma súplica animal.

       - Bem sei.

       - Se estiver pronto a servir-me, o pouparei.

       - Servi-lo-ei.

       - Se me servir bem, talvez lhe entregue um dia o que me dá este poder sobre você.

Kumo quis falar, mas não conseguiu articular uma só palavra. O choque desta ínfima esperança privara-o de qualquer assomo de vontade.

Satisfeito com sua comédia cruel, Sonderfeld apro­ximou-se e esbofeteou-o nas duas faces.

       - De pé!

       Kumo levantou-se.

       - Terá a vida salva enquanto for submisso.

       O feiticeiro sacudiu vigorosamente a cabeça, sem po­der ainda falar.

- Agora - prosseguiu Sonderfeld - vai escutar-me. Você é um grande feiticeiro. Sabe como se pode provocar a morte de um homem sem que seja possível adivinhar quem a causou.

       Kumo recuperou finalmente a palavra.

       - Compreendo.

       - Bem. Em minha casa está um homem que você conhece. É esse que vive na aldeia afastada, que se senta com vocês ao fogo e faz perguntas às mulheres.

       - Conheço-o.

       - Regressa hoje a sua aldeia. Quero que o mate esta noite. Mas de maneira que o Kiap Curtis pense que mor­reu dormindo. É capaz de fazer isso?

       - Sou. Há um bruxedo poderoso que...

       Sonderfeld cortou-lhe a palavra com um gesto:

       - Não quero ouvir nada. Faça o que tem a fazer e não fale disso a ninguém. Quando o chamar, virá. Antes não. E depois... - sua voz tornou-se tão leve como um fio de seda - quando o Espírito Vermelho aparecer, será você a anunciá-lo às tribos.

       - Assim farei.

       - Gut! - exclamou Sonderfeld na língua de seu país natal. - Wunderschön!!

Lançou a cabeça para trás e soltou uma risada que fez voar os pássaros da árvore, enquanto Kumo, o feiti­ceiro, o olhava-o com terror mortal no coração.

Na casa Kiap, o Oficial de Patrulha Lee Curtis, preso das conseqüências da bebedeira da véspera, gemia. Sentia as têmporas latejar, os olhos picavam-lhe como se estives­sem cheios de areia, tinha a língua colada ao palato. E seu estômago revoltou-se ao primeiro sorvo de chá amargo que lhe ofereceu o indígena da polícia.

Theodore Nelson extraía a polpa açucarada de uma papaia. Lançou um sorriso a Curtis por cima da casca amarela.

       - Experimente isto, meu caro. Limpa o palato, regu­la a digestão. É um remédio maravilhoso.

            - Vá para o diabo com isso!

            - Então beba esse chá. Você está seco como um ca­vaco. Enquanto não beber qualquer coisa não se sentirá melhor.

            Curtis gemeu apertando o estômago enquanto toma­va mais um gole de chá.

            - Realmente não sei por que bebo uísque. Faz-me sempre este efeito.

- Era um uísque excelente - disse Nelson, masti­gando o fruto tenro. - Pode dizer-se que Sonderfeld é um perfeito cavalheiro, um perfeito anfitrião.

            - Pois o considero um arrogante patife.

            Curtis enfiou o nariz no púcaro de estanho, sob o olhar inquisitor e vivo de Nelson. No fundo do uísque está a verdade, e é um prazer bem sutil discernir a verdade na existência dos outros, saborear suas loucuras ou seus dra­mas sem nos molharmos a nós próprios.

            - Arrogante, sim, mas patife?... Você o conhece melhor do que eu, lá isso é verdade!...

            Curtis mordeu a isca, como truta em mosca bem lan­çada.

            - Todo o homem que trata a própria mulher como Sonderfeld é um patife.

Nelson dissimulou um sorriso dando outra dentada no fruto. Então meneou a cabeça com o olhar cheio de simpatia pela alma atormentada e cavalheiresca do jovem. Curtis bebeu mais um pouco de chá e limpou a boca com um lenço sujo.

- Sonderfeld tem o sangue frio, como os peixes. Ger­da é uma mulher ardente, cheia de vida, sedenta de ter­nura.

       - Creio, todavia, que ela conta com pequenas com­pensações - cortou, secamente, Nelson.       

       O queixo de Curtis esticou-se, provocante:

       - O que quer insinuar?

       - O homem do momento é Lansing, não é verdade? Nelson julgou, por um instante, que o outro ia ati­rar-se a ele. Mas, de súbito, a cólera de Curtis apagou-se, seu rosto encheu-se de rugas de amuo, como uma criança, os olhos tornaram-se brilhantes de lágrimas. Era por si próprio que ele chorava.

- Sim, talvez, mas não censuro Gerda por isso. Ela está muito só e Lansing encontra-se à mão... Como po­demos censurar-lhe?

       - E por que razão isso lhe importa?

       Uma extraordinária e patética dignidade revestiu Cur­tis, que olhou Nelson de frente.

       - Porque eu próprio a amo.

       Nelson ficou petrificado, com a colher a meio cami­nho da boca, o grande fruto amarelo em precário equilí­brio na mão aberta. Esta confissão sem disfarces choca­va-o. Um devaneio tê-la-ia divertido, mas uma paixão, isso era outra coisa.

            - Bom Deus! - resmungou. - Você está então em         dificuldades.

            Curtis meneava a cabeça com um ar lamentável.

- Foi por isso que ontem me embebedei.          Nunca toco nessa porcaria. Não posso permitir-me tal coisa quando es­tou de serviço. Nunca se sabe se vamos acordar com uma flecha na barriga ou um machado a abrir-nos o crânio. Mas estar ali à mesa com ela, ouvi-la rir, saber que, quan­do nós viéssemos embora... - Tapou o rosto com as mãos e ficou assim, como para repelir uma visão torturante.

Nelson acabou de comer o fruto, jogou a casca no chão, limpou as mãos e acendeu um cigarro com todos os cuidados. Depois levantou-se.

            - Nada disso me diz respeito, é claro. Mas, se quer um conselho de um velho sabido...

            - Diga - pediu Curtis, levantando a cabeça.

- Deixe o vale ainda hoje, acabe sua ronda, volte para Goroka e peça transferência para outra área. Se não o fizer, estará daqui a pouco enterrado em complicações até ao pescoço.

- Julga que não sei isso?

       Nelson fixou aquele rosto jovem, amarelecido pela indisposição, devastado pelos tormentos do amor. Rara­mente tinha piedade fosse de quem fosse, mas, nesse mo­mento, sentia-a... piedade, desdém e desgosto pelas loucuras de que sua natureza cautelosa o tinha resguardado.

       - Se sabe, por que fica?         

       - Porque há barulho no ar e meu dever é averiguar de onde ele vem e pôr-lhe fim.

“Meu Deus”, - pensou Nelson, “temos um homem! Ainda um pouco verde, mas com qualquer coisa na ca­beça!”

- Barulho? - perguntou. - Você ontem à noite de­clarou que não havia nada a temer. Riu-se de Lansing e desse amigo missionário.

            - Ontem à noite estava bêbado - respondeu Curtis lentamente. - Fiz-me de imbecil de várias maneiras. Mas aquele vômito limpou-me. Fiquei acordado durante horas e refleti no que ia acontecer, tentando encontrar explicações para as coisas.

       - E o que concluiu?

       - Nada de preciso, a não ser que Sonderfeld está metido nelas. O que significa que Gerda também estará. Vou demorar-me nestas paragens, para visitar outras al­deias e ver se recolho algumas informações.

       - De quem?

       - Dos Luluais. Questiúnculas de tribos. E também - hesitou um instante - de Lansing e do Padre Louis.

       Nelson sorriu, saboreando a ironia da situação.

       - Supunha que você não gostasse nem de um nem do outro.

       - É possível, mas os sentimentos e as convicções re­ligiosas nada têm que ver com o trabalho. Lansing sabe coisas de que preciso. Quanto ao missionário, ele e todos os outros vivem mais perto das tribos do que ninguém. Principalmente os católicos romanos, porque não são ca­sados e têm de partilhar a vida dos indígenas ao fazer-se eremitas.

       - Por que não gosta dos missionários?

       - As missões não estão preparadas para esta gente. Faça de um indígena um cristão e ouvi-lo-á declarar que todos os homens são irmãos em Cristo. E depois pergun­tar-lhe-á por que não é então admitido à mesa de seus irmãos, por que não pode desposar uma mulher branca, falar nos conselhos dos Kiaps e ganhar tanto dinheiro como os trabalhadores brancos. É muito cedo para isto. Cedo de mais meio século.

       Nelson estava perplexo. Aquele rapaz já não era o agitado conviva do jantar da véspera. Era um funcioná­rio jovem, mas ponderado, que sabia do seu ofício e que estava pronto a exercê-lo, custasse o que custasse. Se con­fiassem nele, se adquirisse experiência e aprendesse a arte do silêncio, viria a ser um excelente administrador... desde que Dalila não o privasse de sua força, embrulhan­do-o em alguma história conjugal. Curtis sorriu levemente.

- Não se apoquente, Nelson. Voltarei inteiro a Go­roka. Perca essa preocupação e divirta-se. Isto talvez se vá tornar interessante.

       - Não pensava em mim - retorquiu Nelson, calmo -, mas em você.

       A expressão de Curtis tornou-se sombria.

       - Trate de seus negócios, que eu tratarei dos meus.

     - E dos da Sra. Sonderfeld.

       - Vá para o diabo!        

       Saiu imediatamente, e Nelson ouviu-o barafustar com os indígenas do posto. Quando olhou para o exterior, viu, ao sol ardente, o jovem nu. Dois rapazes, rindo, atiravam ­lhe água com grandes baldes de lona, à maneira de uma ducha.

A pele de Curtis brilhava, os músculos saltavam, en­quanto, sufocando, se esfregava com uma grande exuberância de movimentos. Seu ventre era liso e duro como madeira.

Aquela juventude, aquela vitalidade e força ardente encheram Nelson de uma admiração melancólica. Perguntou então a si próprio o que poderia acontecer se Gerda, por acaso, se apaixonasse pelo rapaz.

 

Sob o calor de unia luminosa manhã de montanha, Max Lansing regressava à sua aldeia, passando por uma profunda depressão situada entre a comunidade do Padre Louis e o vale de Lahgi. Para atingir a extremidade era preciso passar a oeste das terras de Sonderfeld e escalar duas saliências abruptas, antes de atingir a senda que cor­ria ao longo da borda da cratera e descia para as plantações de bananeiras. Lansing não esperava chegar ao fim da jornada antes do fim da tarde.

Do cinto pendia-lhe uma cabaça com água, assim como uma bolsa com as provisões, que Gerda lhe dera, acompa­nhadas do melhor uísque do marido.

Ao meio-dia, Lansing teria ultrapassado a primeira plataforma, contando refazer-se junto da água viva que brotava dos altos picos e que saltava alegremente de pe­dra em pedra. Depois, sem prazer, mas também sem im­paciência, continuaria o caminho até à pequena choupana de bambu na orla da aldeia, e que era seu lar durante aqueles anos de exílio pago.

Quando atingiu o cimo da encosta que dominava a plantação, parou um instante e lançou um olhar para trás. Avistava-se o jardim de Gerda, brilhante de cores, a casa com seu teto de colmo, as longas linhas cerradas das ár­vores da plantação. E também os trabalhadores, que se agitavam como formigas pouco diligentes, e a alta silhueta branca do dono da casa, à beira do pequeno bosque. Lan­sing olhava-os e, em comparação com a sua própria vida, desenraizada e totalmente desprovida de sentido, aqueles símbolos de permanência pareciam-lhe uma irrisão.

       Outrora, havia já muito tempo, a ciência tinha-o quei­mado com um fogo sagrado. A ciência em si mesma. Tendo por único proveito um acréscimo de dignidade humana e de enriquecimento espiritual.

Mas o fogo extinguira-se e Lansing ali estava, sem grandeza, entre os grandes solitários, pedante indigente, amontoando apontamentos como as crianças amontoam cubos de brincar, enquanto a vida passava a sua porta sem se deter. Perdida a fé em seu trabalho e em si mes­mo, já não sentia forças para se dedicar fosse ao que fosse. A companhia dos investigadores era-lhe tão indiferente como os propósitos comuns, e seu próprio amor parecia-­lhe seco perante a vitalidade que existia em Gerda.

De manhã, depois da partida de Sonderfeld, tinha fi­cado junto dele durante o pequeno almoço, servido na varanda, e tentara reatar a breve intimidade de sua ligação. Ela falara alegremente do jantar, dos convidados, dos me­xericos e das novidades de Goroka... mas recusara-se a falar de amor.

- Tudo o que pode ser dito já o foi. Por que rasgar então nossos corações com palavras vazias de sentido?

Nada havia a responder. Contudo, Max não tinha nem a coragem de romper nem a sabedoria de se calar. Gostava de atormentar seu coração sedento até pô-lo todo em cha­ga. Levantara-se com brusquidão para pegar em suas coi­sas e despedir-se. Gerda tinha vindo então até junto dele com aquela doçura maternal que o punha fora de si.

            - Não se zangue, Max. Aceite-me como sou. Mas, antes de partir, deixe-me dizer-lhe uma coisa.

            - O quê?

Que ela lhe falasse finalmente de seu amor, e seria feliz! Que lhe desse esperanças, e sua ambição chegaria à altura das montanhas!

- Seja prudente, Max, suplico-lhe. Seja prudente!

- Prudente!... Mas por quê?

       Gerda esboçou um vago gesto de impotência.

       - Não sei... e bem gostaria de o saber. Mas, depois do que disse ontem à noite a meu marido...

            - Quero que seu marido vá para o inferno!

       Agarrou-a, apertou a de encontro a si e esmagou-lhe brutalmente a boca. Depois, largou-a, apanhou o saco de pano e, sem mais um olhar, partiu a passos largos. Um homem perdido, amargurado, sozinho na vida!

       Ao chegar ao regato estava extenuado e escorrendo suor. Aquela caminhada era sempre fatigante, mas para um homem infeliz tornava-se duplamente dura. Aproxi­mou-se da beira do regato, cujo vapor úmido o envolveu. Uma nuvem de insetos rodeou-o e ele agitou o lenço para os expulsar com cólera.

       Atingiu, perto do vau, a margem arenosa, que lhe pa­receu um oásis. Depondo no chão a ligeira bagagem, Lan­sing bebeu longamente, debruçado sobre a água clara. Es­tendeu-se depois ao comprido na areia. Estava cansado demais para tirar as provisões e, deste modo, ali ficou, de costas, com a cabeça encostada ao saco e o olhar per­dido na verdura da copa das árvores, por entre as quais esvoaçavam borboletas de um azul muito vivo. Como um clarão rubro, uma ave-do-paraíso executava a dança do amor no ramo de uma albizzia. Um canguru arborícola extremamente pequeno lançava um olhar furtivo por entre duas largas folhas cor de púrpura. A poucos passos, um lagarto aquecia-se ao sol sobre um rochedo. Na sombra do bosque ouvia-se o estremecimento de pequenos animais em busca de alimento.

       Lansing reparou subitamente que no decurso desta marcha de quatro horas não encontrara um único ser hu­mano. O que era extraordinário, porque as sendas da montanha serviam de estradas às tribos daqueles luga­res, que se deslocavam para tratar de sua vida.

       Desde que as leis do branco tinham proibido a guer­ra e as razias assassinas, um comércio humilde de penas de aves-do-paraíso, látex, noz-de-galha, porcos e produtos hortícolas começara entre as aldeias.

       Ultimamente, aquele comércio aumentara, por causa da migração das tribos para a Festa do Deus Porco. Ape­sar disto, Lansing não encontrara ninguém, e talvez por­que se sentisse exausto este pensamento inquietou-o. Acen­deu um cigarro e ficou olhando a fumaça azulada subir em espirais para a catedral de verdura. Foi então que ou­viu, muito ao longe ainda mais distintamente - impossí­vel enganar-se!... -, a corrida do casuar. Este ruído era bastante raro para não interessar o jovem americano. O casuar vivia nos vales altos, mas hecatombes haviam di­zimado a raça e os sobreviventes tinham-se retirado para regiões ainda mais desertas.

       O barulho aproximava-se, ritmado como o rolar surdo do comboio sobre os brilhos de aço. Lansing levantou-se. A ave, desembocando pelo caminho que ele próprio toma­ra, chegaria até ao regato?

O jovem cientista não tinha medo; pelo contrário, sentia a curiosidade a espicaçá-lo. A enorme e desajei­tada ave assustava-se com facilidade e não atacava o homem, a não ser que se sentisse em perigo. ­

O ruído aproximou-se mais, depois cessou. O animal devia encontrar-se a uma dezena de metros, escondido pela espessa cortina da folhagem do bosque. Distinguia­-se o som de seus movimentos nos ramos baixos. Também este se extinguiu e Lansing, após uma breve espera, dei­xou-se cair de novo sobre o saco. Tinha a intenção de dormir um pouco, antes de comer, para se pôr em condi­ções de retomar a marcha. Abrindo uma cavidade na areia quente para apoiar a anca, voltou-se confortavelmente de lado.

De repente, a um metro do rosto, viu uma pequena serpente branca salpicada de preto. O rasto deixado pelo réptil estava patente na areia. Tinha saído da moita, por detrás do homem estendido. Era a espécie mais venenosa de toda a ilha!... Sua picada fazia morrer paralisado, sem remissão, em duas horas.

Com precauções infinitas, Lansing mexeu a mão para procurar apoio no solo e, de um só movimento, saltou de pés juntos. No mesmo segundo, veloz como o relâmpago, a serpente lançou-se sobre o lugar onde tinha estado a cabeça do homem. A face escancarada percutiu a grossa tela do saco. Antes que Lansing tivesse tempo de se ar­mar de uma pedra ou de um pau, a serpente havia desa­parecido. A morte deslizava agora por entre as folhas do bosque.

Petrificado de terror, Max Lansing contemplava o saco em que aparecia a nódoa minúscula do veneno. Es­tremeceu, apanhou o saco e transpôs o vau, sem se impor­tar com as pedras que o faziam estrebuchar na corrente gelada. As palavras de Gerda no momento da partida mar­telavam-lhe o cérebro: “Seja prudente, Max! suplicou-lhe, seja prudente!”

Ofegante, subiu a margem escarpada e voltou-se para olhar a pequena praia branca. Estava nua, despida de qualquer assomo de vida. A floresta parecia uma enorme decoração pintada, imóvel no ar pesado.

De súbito, no silêncio profundo, ouviu-se de novo a corrida do casuar.

Bruscamente, Lansing lembrou-se dos homens-casuar. Era a velha lenda do vale, o antigo terror das tribos. Ha­via feiticeiros que tinham, dizia-se, o poder de se trans­formar em casuares e de correr mais do que o vento. Como os lobisomens dos Cárpatos ou os homens-leopar­dos da África.

Os indígenas acreditavam piamente nessa lenda. Como prova, mostravam a marca das garras no chão, depois da visita noturna de um desses feiticeiros. Os colonos che­gados há pouco riam-se, naturalmente, de tal superstição, mas os antigos - comerciantes, missionários ou funcio­nários já de idade - eram menos céticos. Cada um deles tinha geralmente histórias para contar sobre os fenômenos aparentemente inexplicáveis. E todos experimentavam em comum o mesmo sentimento de salutar respeito e de receio assolapado acerca dessas zonas obscuras que rodeiam o misticismo primitivo.

Nos primeiros tempos, Lansing tinha considerado es­tas manifestações como simples e pura charlatanice, mas, quanto mais estudava, mais esta opinião se modificava. E agora, na desoladora solidão da montanha, também ele era invadido pelo terror do homem-pássaro.

A tarde ia já avançada quando atingiu a aldeia. As sombras dos cimos começavam a alongar-se e a primeira frescura descia sobre o vale. O cientista tinha fome, esta­va extenuado e cheio de frio, como no início de um ata­que de febre. Não prestou atenção aos olhares curiosos dos aldeões e foi direto a sua choupana. Engoliu dois com­primidos calmantes, despiu-se e salpicou-se com água que tinha num balde de tela. Depois, vestiu roupa limpa. Pôs o frasco do uísque de Sonderfeld na boca e bebeu um tra­go. Nova porção, agora com água. Então, de pé na soleira da porta, de copo na mão, observou o que se passava na aldeia.

As mulheres regressavam das hortas de taro, intei­ramente nuas, apenas com um cinto que lhes apertava as ancas. Seus corpos espessos dobravam-se sob o peso dos cestos de ráfia entrançada, cheios de batatas-doces, que transportavam suspensos de suas largas testas e apoiados aos rins. A uma certa distância, uma jovem dava de comer aos porcos, os quais eles cegavam para os impedir de fu­gir. Os animais, sentindo-a vir carregada de cascas de frutos e de polpa de banana ou taro, grunhiam impacientes.

       Os porcos, as hortas, as crianças - eis as preocupa­ções das mulheres, e nesta ordem de importância. Era fre­qüente ver uma mulher dando de mamar a um filho num seio e a um porquinho no outro. Os homens cavavam a terra das hortas e marcavam-nas com um montículo re­presentando o símbolo fálico, cruzado com um entalhe que simbolizava o elemento feminino. Em seguida, as mulhe­res cultivavam-nas, e eram elas que arrancavam os tubér­culos maduros, alimentação básica da tribo.

Quanto aos homens, permaneciam sentados, como na­quele momento. Um fazia um toucado de cerimônia com penas multicoloridas e élitros de coleópteros cor de esme­ralda; outro colocava um cabo de cana em sua machada de pedra vulcânica; um terceiro amoldava uma pedra re­donda destinada à cabeça da sua maça; um quarto estica­va o arco de bambu com que mataria aves e o opossum, cuja cauda espessa servia para fazer pulseiras para as jo­vens.

Lansing disse consigo mesmo que, dobrados assim em pequenas tarefas, eles pareciam crianças absortas, des­confiadas, ciosas. Todavia, retificou imediatamente seu pensamento. Não eram crianças, mas sim adultos, inteli­gentes, ligados por interdições mais antigas do que o Pen­tateuco; seres que o nascimento e a morte preocupavam... e no intervalo, a sua subsistência quotidiana.

Aos olhos de um estranho as ocupações a que se en­tregavam pareciam insignificantes. Porém, no microscos­mo da célula tribal eram de primeira importância. Se uma plantação de taro apresentasse sinais de destruição, toda a aldeia tinha de se deslocar para outro território. Se os porcos fossem dizimados pela febre, os homens ficariam privados das únicas proteínas a seu alcance, pois o velhís­simo continente da Nova Guiné estava desprovido de quais­quer outros animais comestíveis. Estas criaturas andavam nuas porque não dispunham de peles para se vestir; pra­ticavam o aborto e a limitação dos nascimentos porque as colheitas das pequenas hortas não eram ilimitadas e no decorrer das incessantes festas o povo, que tinha fome de carne, dizimava porcos sobre porcos. De resto, estas heca­tombes, que eram afinal propiciatórias, tinham o objeti­vo de lhes granjear as simpatias de um Deus Porco hos­til, que simbolizava a fertilidade.

Os indígenas não conheciam a escrita nem a roda. Suas tradições resumiam-se a antigas sentenças, que os próprios velhos já não eram capazes de decifrar. No seu mundo fechado, incerto, o amor, tal como o concebe o homem branco; não existia. A moça que se entregava ao jogo do amor quando havia kunande seria violada no dia do casamento e o marido carregaria o sobrolho se a visse usar outra coisa além dos mais simples ornamentos. Em certas aldeias, os homens escolhiam as esposas atirando-­lhes uma flecha à coxa - ato de domínio do senhor para com a escrava.

       No clima de temor que reinava por detrás da barreira das montanhas, a superstição florescia de uma maneira exuberante. A antiga magia dos primitivos era o castelo de cartas em que se refugiavam os simples, por preocupa­ção de segurança, e também o espantalho de que os am­biciosos se serviam para assegurar o poder.

Bebendo lentamente seu uísque e refletindo no desen­rolar desta vida limitada mas complexa, Lansing avaliava sua própria insignificância. Faria dentro em pouco dois anos que vivia com aquela gente. Seus cadernos estavam atafulhados de observações minuciosas a respeito de todos os aspectos daquela sociedade. Contudo, sentia-se tão lon­ge de os compreender como no dia de sua chegada. Pare­cia que entre ele e os arcanos da existência secreta daque­la gente se levantava uma cortina espessa. Ora, se não conseguisse levantar esse véu, seu trabalho não teria qualquer significado.

Os missionários faziam melhor, sobretudo os mais idosos, como o Padre Louis. Manejavam sem timidez al­mas e espíritos, opunham seus próprios mistérios a outros mistérios, ofereciam a proteção contra os feiticeiros e da­vam uma resposta à questão milenar a respeito da Criação.

Para aqueles para quem a alma era uma noção vazia de sentido, e que, desde o nascimento e por educação, per­maneciam ligados ao materialismo pragmático do século XX, o que restava? Eram excluídos do santuário, conde­nados a errar sob os pórticos, expulsos dos mistérios e dos sacrifícios.

Max bebeu o resto do uísque, lavou o copo cuidadosa­samente e colocou-o em cima da mesa. Depois, foi à aldeia procurar a moça que ele tinha ensinado a tratar-lhe da roupa, da casa e da comida, com uma limpeza aceitável, pois ainda não aparecera desde que Lansing entrara.

Dirigiu-se à choupana do pai. A filha não estava. O velho, sentado à porta, afiava um molho de flechas de bambu. Às perguntas de Lansing, respondeu olhando de lado, encolheu os ombros com indiferença e continuou o trabalho. Habituado ao temperamento indolente da gente da montanha, o investigador não insistiu e dirigiu-se a um grupo de mulheres curvadas sobre um fogareiro. Elas puseram se a rir, agitaram-se, trocaram olhares cúmplices, mas continuaram caladas. Lansing, irritado, teve de se do­minar para não perder a calma. Depois, interpelou as mu­lheres que desciam das plantações de taro, mas nenhuma vira a moça que procurava. As crianças afastaram-se e esconderam a cara por detrás das mães.

De repente, compreendeu que toda a aldeia o obser­vava. Ninguém cessara de trabalhar, mas rodos lhe se­guiam os gestos, com olhar deslizante, sorriso irônico nos lábios. Não pareciam hostis, mas divertidos. Olhavam um palhaço agitado por forças superiores. O furor - um furor que tinha um gosto amargo - subiu ao estômago de Lan­sing. Morria de desejo de os insultar, de lhes bater, de afirmar pelo menos sua presença mas sabia que isso era impossível. Ficaria desacreditado para sempre.

Girando nos calcanhares com uma lentidão calculada, voltou a casa, fechou a porta e acendeu o candeeiro. Das palmas das mãos, trêmulas, escorria suor. Aquela troça calculada da aldeia era para ele novidade. O mau humor dos indígenas, conhecia-o e tinha aprendido a ignorá-lo. Graças a um convívio diário, havia conseguido desvane­cer-lhes a desconfiança. Naquele dia, porém, acontecia ou­tra coisa. Era como se... - procurava analisar a estra­nha situação - como se o tivessem posto de quarentena. Mas por quê?

Conhecia suficientemente os ritos da aldeia para os respeitar. Não se tinha insurgido contra qualquer dos tabus antigos. Estava acima dos pequenos escândalos da tribo.

       Qual seria, pois, a razão de tal reviravolta?... E eis que, lembrando-se de Sonderfeld, de Kumo e de Gema, os avi­sos desta voltaram a soar-lhe aos ouvidos. Subitamente teve medo.

Pensou no Padre Louis, na serpente salpicada, no es­trondo do casuar invisível, e os receios transformaram-se em terror pânico. Estava sozinho, sem defesa, no meio deste povo misterioso, no vale agora mergulhado na som­bra. Com desespero, tentou dominar os nervos. Era neces­sário, custasse o que custasse, mostrar-se corajoso, en­frentar a ironia da aldeia. Era necessário manter a ordem habitual de sua existência de estudioso.

Abriu o embrulho de Gerda e tentou comer. Os ali­mentos frios sufocaram-no. Quis trabalhar à luz da lam­parina de álcool, mas as letras dançavam-lhe diante dos olhos e o dedos febris não conseguiam segurar a caneta.

A noite caiu totalmente e os kundus iniciaram seu ritmo entontecedor. Lansing sentia-os bater no interior do crânio, como se o cérebro fosse rebentar sob o choque de uma loucura monstruosa. Compreendeu então o que lhe restava a fazer, se quisesse sobreviver àquela noite.

Pôs na mesa à sua frente a garrafa de uísque e o balde da água, abriu um maço de cigarros, desviou a lam­parina para uma boa distância dos cotovelos e começou, cuidadosa e meticulosamente, a embebedar-se. Bebia de­vagar, com receio de que o estômago vazio, revoltando-se lhe roubasse aquele alívio. E, à medida que o líquido o aquecia e acalmava, pôs mais uísque e menos água, até beber álcool puro. Então, já o nível do líquido na garrafa descera bastante abaixo do meio.

Muito antes de os tambores se terem calado, muito antes de os cânticos se terem extinguido, Max Lansing estava caído sobre a mesa, com a cabeça tombada no ma­nuscrito inacabado. Uma das mãos, mole, descaíra-lhe so­bre a garrafa despejada, a outra oscilava na direção de um copo que se tinha partido ao cair no chão, onde uma poça de álcool penetrava lentamente na terra, batida.

       Foi neste instante que Kumo entrou.

       Enquanto durara aquela orgia solitária, tinha-se con­servado no exterior, junto à choupana, observando a queda do homem branco, que deslizava lentamente para a insen­sibilidade.

       O feiticeiro apresentava-se com os adornos de festa, o penacho e os colares de nácar. Seu grande enfeite nasal em forma de crescente dava-lhe o aspecto de um animal que tivesse chifres. Dissimulado no bracelete de pele, tra­zia um pequeno tubo de bambu, cuidadosamente bem ta­pado.

Por um longo momento observou o homem incons­ciente. Com um gesto repentino, levantou a cabeça de Max Lansing, agarrando-a pelos cabelos, e depois deixou-a cair de novo molemente na mesa. A cabeça não produziu qual­quer ruído e reencontrou seu equilíbrio, apoiada a uma face. Com um grunhido de satisfação, Kumo tirou o tubo de bambu.

Primeiro, rolou-o entre os dedos, depois bateu com ele na beira da mesa, o que originou dentro do tubo um som breve e surdo. Por fim, manteve-o longamente de encontro ao vidro quente da lamparina a fim de que o calor penetrasse até ao interior.

Estava tudo preparado. Com extrema precaução, o feiticeiro colocou-se entre a mesa e a porta aberta da choupana. Depois inclinou-se por cima de Lansing, segu­rando com uma das mãos a extremidade do tubo e com a outra a tampa, dirigida para baixo, a quinze centímetros do rosto do homem adormecido. Com um movimento brus­co, Kumo arrancou a tampa e recuou. Ouviu-se um ruído abafado e uma pequena serpente mosqueada caiu sobre a mesa.

Enfurecido pelo barulho e pelo calor, o réptil atingiu duas vezes as faces de Lansing, deslizou pela mesa e desa­pareceu na sombra. Anestesiada pelo álcool, a vítima nada ouviu e nem sequer fez um movimento. Por um instante, Rumo contemplou sua vítima e as picadas gêmeas, situadas por cima dos maxilares. Depois, tão silencioso como a ser­pente, esgueirou-se na obscuridade.

Seguidamente, sobrelevando o bater dos tambores, dis­tinguiu-se o estrondo surdo que produzia nas trevas da noite a corrida do casuar.

 

Um homem da aldeia de Lansing levou a notícia ao oficial de patrulha no momento em que este se ocupava do recenseamento diante da casa Kiap. O mensageiro tinha acorrido, em passo de ginástica, pelas sendas da montanha, para recitar, com gestos de orador, a mensagem do Luluai, cuidadosamente decorada.

O homem branco havia morrido. Toda a aldeia chorava a perda de um irmão. Todavia, como o Kiap não apro­vava o costume antigo, não tinham retalhado os dedos em sinal de luto. O homem branco morrera picado por uma serpente durante o sono. As mordeduras viam-se-lhe no rosto. De manhã cedo, a moça que cozinhava para o homem branco encontra -o na choupana. O homem branco bebera água e uma garrafa de álcool amarelo. A serpente entrara e saíra e o homem branco não se mexera. Se o Kiap dese­jasse, os habitantes da aldeia embalsamariam o corpo e trariam-no para ali, pela montanha. Se não, precisavam de ir buscá-lo depressa, porque começaria a cheirar mal. O Luluai ordenara que não lhe tocassem antes de receber instruções do Kiap. A porta da choupana estava fechada e o homem branco continuava lá como o tinham encontrado.

A história era aumentada a bel-prazer do mensageiro, porque ele, embriagado pela própria eloqüência, embeleza­va o relato para o Kiap, para os policiais e para o círculo de homens da aldeia que estavam ali, estupefatos. Contudo, despojada de sua retórica, constituía uma história bem construída. Nada faltava nela: nem o cenário, nem a mor­dedura da serpente, absolutamente aceitáveis. Os répteis abundam nos vales altos e tanto aparecem nas aldeias como entre as ervas kunai. São, na maioria, extremamente ve­nenosos.

No entanto, Lee Curtis não estava satisfeito. Por mui­to jovem que fosse, tinha recebido excelente formação na Escola de Administração do Pacífico e, depois, em Goroka, sob a orientação severa de George Oliver, A.D.O. Este homem, de olhar perfurante e língua rude, repetia aos alunos: “Desconfiem do que parecer simples e claro.” Na realidade, o espírito indígena adora as sutilezas, os des­vios, as coisas complexas, nem sempre compreensíveis para o homem branco. E esta história era demasiado simples, demasiado clara, demasiado bem arquitetada, para nela estar contida toda a verdade.           

Quando o mensageiro acabou sua peroração, Curtis ficou muito tempo observando-o em silêncio. Não fez qual­quer pergunta. As respostas não o teriam esclarecido. Aquele homem era apenas um parta-voz, que logo recairia em sua estupidez. E, sob este olhar penetrante e mudo, recomeçou a dar sinais de inquietação. Tentava observar furtivamente a sua volta, mas só encontrava as caras im­passíveis do pessoal da polícia e as bocas abertas dos in­dígenas. Baixando a cabeça, pôs-se a raspar nervosamen­te no chão com os dedos.

Curtis levantou-se e ordenou ao sargento que conti­nuasse o recenseamento e desse providências para que ne­nhum indígena saísse dali antes de seu regresso. E os ho­mens deviam estar prontos para partir dentro de uma hora.

O sargento, de cabelos em carapinha, fez uma con­tinência correta e sentou-se à secretária, enquanto o ofi­cial subia lentamente o caminho que levava à plantação de Sonderfeld.

Aparentemente, seu dever estava traçado. Tinha de se dirigir à aldeia da montanha, verificar que Lansing morrera da mordedura de uma serpente e enterrá-lo com uma cerimônia muito simples. Os objetos pessoais e os apontamentos do etnólogo, depois de inventariados, seriam mandados para a A.D.O., em Goroka. Então, redigiria um relatório e a questão ficava encerrada. Nada de com­plicações, nenhum ponto de vista pessoal por parte de um jovem funcionário que desejava fazer carreira.

Refletindo, compreendeu, porém, que as coisas não se passariam assim. A conversa do serão anterior, os comen­tários pessimistas de Lansing sobre a inquietação das tri­bos, a tensão oculta que reinava entre Sonderfeld, o mis­sionário e o próprio Lansing, tudo isso apoquentava Cur­tis como uma dor de dentes que não passa. Por detrás destes três homens, havia Gerda, a mulher que ele amava, a mulher cujo amante acabava de morrer. E mais longe ain­da, nos recôncavos das montanhas brilhantes e dos vales sombrios, erguia-se a silhueta tenebrosa de Kumo, o fei­ticeiro.

Antes de poder encerrar a questão, tornava-se necessário saber mais sobre esta gente e a relação que havia entre uns e outros. Tinha de organizar um inquérito, sem que parecesse fazê-lo. Era indispensável presumir um cri­me, exatamente porque os testemunhos o negavam. E, fi­nalmente, era necessário lembrar-se da situação embara­çosa da Trustee Administration, responsável perante as Nações Unidas e sensivel aos incidentes que pudessem sus­citar grandes cabeçalhos na imprensa mundial.

       A meio da ladeira, Curtis parou para acender um cigarro. Daquele ponto avistava-se a casa e a plantação. O oficial podia ver, a menos de oitocentos metros, Son­derfeld, Nelson e Wee Georgie, que estudavam a drena­gem de um novo pedaço de terra arroteado. Seu primeiro impulso foi dirigir-se em sua direção para lhes dar a no­tícia. Depois, fixou os olhos na casa. Gerda estava lá, so­zinha. Ela tinha o direito de saber da boca de um homem capaz de se compadecer. Talvez até, sob o choque, poderia ela fornecer um ponto de partida para uma delicada in­vestigação.

       Dirigiu o olhar novamente para a plantação. Os três homens afastavam-se da casa. Dispunha de vinte minutos, pelo menos. Com gesto decidido, jogou fora o cigarro e encaminhou-se rapidamente para o bangalô.

       Gerda tratava das orquídeas no pequeno pavilhão do jardim. Usava sandálias, um vestido de algodão estampado e um grande chapéu de palha atado com uma fita por bai­xo do queixo. Quando viu o rapaz, sorriu prazenteiramen­te, tirou as luvas sujas e estendeu-lhe a mão, acolhedora.

       - Caro Sr. Curtis! Mas que bela surpresa! Deve ter adivinhado que me sentia só!

Ele pegou-lhe na mão e, com um movimento gen­til, levou-a aos lábios. Este gesto inquietou- a. Recuou e apoiou-se às prateleiras dos vasos. No seu olhar brilhou uma certa perplexidade e a pele de marfim tingiu-se-lhe de um leve rubor.

Curtis ficou um longo momento sem dizer nada, irre­soluto, de olhos baixos. Por fim, levantou a cabeça. A voz tremia-lhe.

       - Trago-lhe - ... trago-lhe uma notícia má.

       Ela ficou surpresa:

       - Uma noticia má? O que se passa?

       - Max Lansing morreu ontem. Mordedura de serpen­te. Um mensageiro veio comunicar-me há dez minutos.

Gerda não soltou um grito, não teve uma lágrima, mas todo seu corpo se tornou de pedra, e seus olhos dila­taram-se de horror. Maquinalmente, encostou-se mais às prateleiras das flores como se procurasse uma defesa.

            Lee Curtis esperava, impotente, incapaz da menor ges­to de consolação.

Quando Gerda estremeceu e escondeu o rosto nas mãos, fez um gesto para lhe acariciar os cabelos sombrios, mas ela desviou-se vivamente.

- Por favor, não me toque.

            Ele retirou a mão e contemplou a jovem, que o enca­rou de lábios apertados, olhos secos, de onde já desapa­recera o horror. Agora, lia-se neles um ódio sem limites. Sua voz tensa, mas calma, tinha um tom de desafio.

       - Curtis... É o senhor quem representa a Adminis­tração?

       - Sim.

       - E que dispõe da polícia?

       - Nesta região, sim.

       - Então - fixou-o nos olhos e falou num tom duro como o aço -, então revelo-lhe que Max Lansing foi assas­sinado e que o assassino é meu marido.           

            A brutal acusação foi para Lee Curtis como um jato de água fria.

            - Lansing morreu a noite passada numa aldeia situa­da a vinte quilômetros e seu marido não saiu da plantação.

            - Bem sei. Isso era inútil. Mandou matar Max Lan­sing pelo feiticeiro Kumo.

            - Pode provar isso?

       - Não, mas é a minha convicção.

       - Por quê?

       - Pelo que foi aqui dito ontem à noite. Max desven­dou o fundo de seu pensamento. Acusou Kurt de fomen­tar a agitação das tribos.

       - Ainda não se verifica qualquer agitação...

       A cólera que inflamou Gerda paralisou o jovem.

       - Espere e verá. E por quê?... Porque você e os outros como você não querem nunca escutar os que sa­bem, como Max e o Padre Louis. Vocês chegam aqui com os agentes de polícia, espingardas e um caderno de apon­tamentos. Fazem uma encenação e depois desaparecem. E, entretanto, Kurt, Kumo e os demais riem de vocês!

Fora de si, afrontava-o, desafiando sua jovem autori­dade, e, antes que ele tivesse tempo de responder, pros­seguiu no mesmo tom:

- Agora, morre um homem picado por uma serpente. A explicação?... Acidente, desígnios de Deus ou pouca sorte, não é verdade? Pois afirmo-lhe que é um assassí­nio!... Um assassínio, compreende? E o homem que con­cebeu esse assassínio foi Kurt, o meu marido, um orgulho­so demente, que imagina ser o senhor de todos, o senhor da vida e da morte, como o Espírito Vermelho.

Subitamente, desatou em prantos... soluços enormes que lhe sacudiam todo o corpo, enquanto escondia o rosto nas mãos. Então, Curtis pegou-lhe no braço e,sem que ela opusesse resistência, atraiu-a a si e apertou-a de en­contro ao peito, até senti-la mais calma. Por fim, ela afas­tou-se.

            - O que fazer?... Que devo fazer para que me acre­dite?

            - Acredito em você, Gerda - respondeu ele bran­damente.

            - De verdade? - perguntou com o olhar cheio de uma luz que se podia chamar gratidão.

       - Acredito em você porque a amo, Gerda.

       A jovem afastou-se dele, como se lhe tivesse batido.

       - Você também... Ah, não! Suplico-lhe, deixe-me tranqüila. Sinto-me tão fatigada, absolutamente no extre­mo das forças! Tenho de suportar minha própria vida, já não posso carregar outras.

- Perdoe-me - articulou Lee, magoado. - Eu não devia ter... Prometo-lhe que não a importunarei. Acre­dito no que afirma. É verdade, sem dúvida. Mas tem de compreender que não posso agir imediatamente. É neces­sário que não dê o menor sinal de suspeita, antes de pos­suir algumas provas. Provas sólidas. Diga que me com­preende.

       Ela meneou a cabeça com um ar cansado.

       - Sim. Tentarei arranjá-las. Não sei como, mas ten­tarei. E... já disse a meu marido?

       - Não. Pensei que era melhor preveni-la primeiro.

       Ela estendeu a mão e acariciou-lhe a face, com aque­le gesto terno que irritava Max Lansing.   

       - Como é gentil... E jovem! Perdoe-me esta cena.

Curtis empertigou-se. Esta alusão a sua juventude trazia-lhe à memória a inquietação e o isolamento em que se sentia. Dissimulou o embaraço sob a secura das pala­vras que proferiu:

- Se for capaz de agüentar, gostaria de que seu ma­rido não soubesse que vim procurá-la. Está na plantação. Vou agora ter com ele.

       Gerda assentiu num gesto de cabeça:

       - Agüentarei, como diz.

       - Bem. Tudo o que puder descobrir comunique-me. Mas... - Hesitou; depois as palavras saíram-lhe de uma rajada: - Pelo amor de Deus, tome cuidado, Gerda. Seja prudente!

       E saiu, na claridade irisada do sol, para ir ao encon­tro de Kurt Sonderfeld.

      Sonderfeld afirmou que a notícia lhe causava a maior perturbação. Batendo na testa com o punho, praguejou à meia voz em alemão.

- Que pobre-diabo, que pobre-diabo! Gerda vai ficar muito impressionada. Tanto como eu. Imagine que naquele serão, zangou-se e foi-se embora sem se despedir de mim. A idéia de que a reconciliação é agora impossível põe-me doente. Estava embriagado, disse você?

                   - É o que se conclui do relato.

       - Absolutamente normal. Deve ter-se sentido de tal modo sozinho, quando regressou, que se pôs a beber, para adormecer cedo. A maldição dessas vidas é isso: o isola­mento, a depressão sombria... Sei-o bem por o ter expe­rimentado eu próprio.

Wee Georgie deixava ouvir sua respiração sibilante. Um interesse enorme brilhava-lhe nos olhinhos injetados de sangue.

- Uma serpente?... Parece-lhe um sonho, não é ver­dade? A região está cheia desses bichos perigosos. E, to­davia, os homens andam descalços e dormem a quinze centímetros do chão.

Theodore Nelson pigarreou num esforço de simpatia. Tinha visto países demais e levado uma vida demasiado confortável para ser afetado por este gênero de noticia. Lee Curtis interessava-o muito mais. O rapaz sabia mais do que dizia. Também ele teria medo? Era visível que qualquer coisa o enervava, mas dominava-se bem. Tinha as mãos firmes, os olhos frios, e o contorno do queixo penugento denunciava uma energia tranqüilizadora.

- Se há alguma coisa que eu possa fazer...? ­- propôs vagamente Sonderfeld.

- Sim, com efeito - a voz de Curtis mostrava-se cheia de autoridade. - Vou lá esta tarde. Tenho de ver o corpo, de dispor tudo para o funeral, de tomar conta das coisas de Lansing. E de fazer um relatório. Gostaria de que viesse comigo.

Sonderfeld não foi capaz de esconder sua surpresa.

       - Se o deseja, está combinado. Mas não vejo bem em que possa servi-lo.

- É médico - respondeu Curtis com brusquidão. ­- Quero uma certidão de óbito e uma autópsia. Mas, natu­ralmente, pode recusar-se.

- Meu caro amigo... - o homem importante tor­nava-se brando -, não pensei um só instante em recu­sar-me. A Administração tem sido sempre de tanta cor­reção para comigo que ficarei muito contente por poder prestar-lhe qualquer serviço. Quando conta partir?

            - Dentro de meia hora. E, mesmo assim, não esca­pamos à noite.

            Sonderfeld encolheu os ombros.

       - Estou pronto. Mas, se me permitissem, senhores, gostaria de passar antes alguns instantes junto de minha mulher. Ela era muito... dedicada ao nosso amigo Lan­sing. Venha, Georgie.

Afastou-se, patinhando na terra negra e mole. O gor­do capataz ofegava atrás dele, como um cocker já velho. Nelson e Curtis ficaram sozinhos.

       - Um cigarro? - propôs, baixinho, Nelson.

       - Obrigado.

       Curtis olhava a alentada silhueta de Sonderfeld afas­tando-se ao longo da plantação.

       - Aborrecimentos, Curtis?

       - É o ofício.

       Nelson sorriu, mas fazê-lo calar era difícil.

       - Isso não responde a minha pergunta.

       Curtis voltou-se sobre si mesmo. Sua paciência tinha limites e a ironia do outro punha-a rudemente à prova.

       - Já lhe perguntei como se cultiva o café?

       - Não, mas eu teria muito gosto em ensiná-lo.

       - Trata-se de uma questão de polícia.

       - O quê?... Uma mordedura de serpente?

       - Sim.

       - Diga lá, Curtis.... - Nelson, desta vez, falava com seriedade. Seus olhos baços tornaram-se penetrantes. ­- Uma das coisas que se aprendem no meu ofício é calar. E também andar de olhos abertos. Se quiser, é isso que vou fazer, exatamente. Não sou polícia. Não pertenço à Administração. Você pode fazer rebentar a ilha que eu terei sempre trabalho. Mas estou talvez em condições de o ajudar.

            - De que maneira?

       - Há barulho no ar. Tenho a respeito minhas idéias. Em todo o caso, existe uma coisa de que tenho certeza: a questão Lansing faz parte do barulho.

       - O que sabe?

       A pergunta denunciava um interesse profissional agu­do. Nelson encolheu os ombros.

       - Não sei nada. Adivinho. Adivinho que você vai le­var Sonderfeld de propósito. Adivinho que não está intei­ramente satisfeito com o relato vindo da aldeia e que vai fazer um inquérito pessoal. Proponho... oh!, é apenas uma proposta ... que me deixe penetrar um pouco no fun­do da questão. Na sua ausência, talvez seja capaz de obter alguma informação interessante. Penso que jantarei no bangalô. Wee Georgie é bastante tagarela. A Sra. Sonder­feld não deixará de corresponder a um pouco de simpatia. E, por vezes, o espectador vê o jogo melhor do que o par­ceiro que tem as cartas.

       Curtis meneava a cabeça com lentidão.

       - Está bem. Mas por quê?... Que interesse tem você nisto?...

       Nelson tossiu, fazendo um gesto cômico de derrota.

            - Não sei. Rompo com os hábitos de uma vida in­teira. Talvez porque você me agrada. Talvez porque Son­derfeld me desagrada. Talvez... - seus olhos carrega­ram-se de sombras - porque tenho medo de ficar assim num lugar onde um homem corre o risco de ser morto be­bendo seu uísque sem que jamais se saiba quem o atin­giu. Talvez eu precise, tanto como você, de um aliado. Seja como for, aqui tem. É pegar ou largar.

            Os segundos passavam e Curtis permanecia silêncio­so, pesando os prós e os contras, com o olhar pregado nos cumes que ficavam para além do vale. De súbito, suas feições crispadas distenderam-se num sorriso.

            - Pois bem, aceito. Venha comigo à casa Kiap. Fala­remos pelo caminho.

Enquanto atravessava a plantação e subia o carreiro que conduzia à casa, Kurt Sonderfeld recapitulava a situa­ção. Seu poder sobre o feiticeiro era um fato comprovado. A rápida morte de Lansing assim o demonstrava.

Desaparecido o americano, anulara-se um obstáculo de primordial importância para os projetos do alemão. Fe­chara-se uma boca; ficavam para sempre abafados os tes­temunhos que ela poderia fornecer. A não ser que... Um novo receio o fez parar num repente: as notas de Lan­sing!...

            Aquele homem era um sábio; Todas as suas observa­ções eram meticulosamente consignadas no papel. Haveria alguma referência às atividades de Sonderfeld nos cader­nos que Curtis iria encontrar no domicílio do morto... O plantador calculou as possibilidades, mediu os riscos. Depois seus receios desvaneceram-se. Não devia haver lá nada ou, quando muito, alguns hieróglifos, os delineamen­tos de uma tese que jamais seria escrita. Essas notas não lhe causariam mais dano, e até talvez muito menos, do que a brutal invectiva de Lansing no serão do jantar.

Percebeu que Wee Georgie o acompanhava, obser­vando-lhe o rosto com olhos inquisidores. Sonderfeld des­viou-se bruscamente e deu instruções sobre o que devia ser feito na propriedade durante sua ausência. Wee Geor­gie escutava abanando a cabeça, como uma estatueta de mandarim.

Ele sabia tudo aquilo de cor e salteado, assim como sabia também qual o limite de preguiça que não podia ultrapassar, se queria escapar à cólera do patrão. Son­derfeld falou de outro assunto.

       - Agora, há a moça.

       - N'Daria, Patrão?

       - Sim, N'Daria.

            - Eu a vigiarei, não tenha receio. Arranjarei as coi­sas de modo que ela não ande por aí badalando por toda a parte.

       - Cale-se! Ouça.

       - Sim, patrão - assentiu Wee Georgie com um fer­vor contrito.

- Vai deixar a moça em paz. Nada lhe dirá. Não se importe de que ela vá para onde quiser e faça a que qui­ser. Mas arranje-se de maneira que cada um de seus ges­tos seja vigiado por suas mulheres ou pelos trabalhado­res. Quando voltar, quero um relatório completo, hora por hora, tanto do dia como da noite. Está ouvindo?

- Sim, Patrão. Tenha confiança. Minhas mulheres têm olhos em toda a parte, até nas costas.

- Abra também os seus, Georgie, e os ouvidos. Não beba demais. Neste momento, há coisas que estão no choco e que você não compreende. Não quero complicações por causa de um imbecil com a barriga cheia de álcool.

       - Sempre o servi bem, Patrão, bem sabe.

       - Eu sei, Georgie. - Os lábios finos distenderam-se num sorriso ameaçador. - Sei que posso ter confiança em você. Se não fosse isso, por que lhe teria conservado a vida tanto tempo?

       Após estas palavras, avançou deixando atrás de si um ser trêmulo. O beberrão, apesar do sol quente, estreme­ceu e passou a língua pelos lábios secos. Nunca tinha de­sejado tanto um uísque.

Ao aproximar-se de casa, Sonderfeld teve subitamente consciência de que não sabia o que havia de dizer à mu­lher. Coisa estranha: pela primeira vez tinha medo dela. Quando planejara o aniquilamento de Lansing, uma parte de seu prazer tinha sido imaginar a reação de Gerda no momento em que lhe desse a notícia brutalmente, sem quaisquer precauções. Meditava num discurso irônico, num efeito de surpresa, revelando uma ligação que ela julgaria clandestina.

Mas, agora Curtis procedia as suas diligências e Nel­son metia o nariz em toda a parte. Sonderfeld não podia permitir-se o luxo da crueldade. De resto, a Festa do Deus Porco e o desfecho de seus planos estavam muito próxi­mos. Mais valia mostrar-se cheio de solicitude e até afe­tuoso, como se lamentasse o passado e tivesse uma vaga esperança no futuro de sua vida conjugal.

Que ela se iludisse, nisso não acreditava. Mas, pelo menos, esta comédia havia de intrigar Gerda o suficiente para que suas suspeitas adormecessem.

Mas depois da partida de Curtis e de Nelson, quando o vale e a montanha que o rodeava lhe pertencessem final­mente, soaria a hora da vingança - longa e sem perdão.

Deteve-se no começo das escadas para arranjar uma cara que exprimisse uma tristeza conveniente; depois, en­trou. Gerda compunha um grande ramo de gladíolos na sala de estar. Olhou para o marido com a polida indife­rença que lhe era habitual. Ele olhou-a, fixando depois, de uma ponta a outra, a mesa encerada. Sua expressão era grave, a boca quase piedosa.

- Gerda, tenho infelizmente uma notícia triste para você...

       - Uma notícia triste?

       Ela parecia levemente surpreendida. O marido hesi­tou, como procurando as palavras, e as primeiras foram quase balbuciadas. Grande arte.

       - Eu... Julgará talvez que o fato me alegra. Acre­dite, não é assim. Estou mesmo surpreendido por a notí­cia me ter afetado tanto e... Sinto pesar, por você: Max Lansing morreu.

       - Não é possível!

       Sua dissimulação igualava a do marido. A habilidade era a mesma.

Passou a mão pelos olhos, como se quisesse apagar uma visão monstruosa. Sua voz chegou a Kurt num mur­múrio abafado.

            - Como?... Quando morreu?

            - Ontem, de noite. Embriagou-se e foi mordido por uma serpente durante o sono. É pelo menos o que mandou dizer o Luluai. Curtis e eu vamos lá fazer um inquérito e enterrar o pobre homem.

       - Vão lá?

       Desta vez, sua surpresa não era simulada. Sonderfeld inclinou a cabeça.

- Sim. Curtis quer uma certidão de óbito e, sem dú­vida, também a autópsia. Não me pergunte por quê. Não o sei. Mas não posso recusar-me.

            - E quando partem?

            - É só mudar de roupa e preparar alguns instru­mentos.

       - Vou ajudá-lo.

       - Não é preciso.

       - Insisto nisso. Você foi bom para mim nesta cir­cunstância, melhor do que poderia ter suposto, e por isso agradeço-lhe. Deixe me ajudá-lo, Kurt.

Esta gratidão humilde divertiu-o. E, entusiasmado pelo êxito de seu estratagema, não protestou mais e dei­xou que Gerda o acompanhasse ao quarto. Aí, despiu os shorts e a camisa branca de mangas curtas, enfiou umas calças de cotim e uma camisa tipo militar, de mangas compridas, e calçou botas de couro. A jornada era longa, e os insetos, perigosos e abundantes; era prudente expor o menos possível a pele.

       Enquanto ele se vestia, Gerda metia a navalha de bar­ba, cigarros e uma muda de roupa numa mochila; juntou­-lhes também um estojo de couro, com instrumentos ci­rúrgicos. Depois, apanhou o vestuário disperso e colocou-o em cima da cama para os criados tratarem. Untou com óleo contra mosquitos as mãos e o rosto de Kurt; final­mente, ajoelhou-se para lhe afivelar as correias das polai­nas.

Não falavam. Sonderfeld olhava-a com uma satisfa­ção cínica, lembrando- se dos primeiros anos de sua servi­dão. E esse requinte de prazer absorveu-o a tal ponto que se esqueceu totalmente, no bolso dos calções brancos, da­quele tubo de bambu que, há alguns dias, não o deixava.

Foi em plena montanha, quando avançava ao lado de Lee Curtis, que se lembrou dele. Estavam já a meio cami­nho.

       O Padre Louis soubera da morte de Max Lansing muito antes do oficial da patrulha Lee Curtis.

As aldeias em que viviam distavam poucos quilôme­tros e suas visitas tinham sido sempre freqüentes. Um ho­mem carregado de canas de bambu cruzou com uma mu­lher que conduzia um porco cego. Segredaram receosa­mente por breves instantes e separaram-se. A mulher en­controu caçadores de aves-do-paraíso e confiou-lhes uma mensagem em voz baixa. A mensagem foi transmitida a outra mulher, que, por sua vez, a repetiu ainda a outra, a qual a comunicou ao sogro, que ia avistar-se com o Lu­luai. Este, sendo cristão, avisou o catequista. E, assim por diante, de boca em boca, a notícia chegou finalmente ao velho sacerdote: “O homem branco que morava na aldeia vizinha fora morto com a magia da serpente. E quem o matara fora Kumo, o homem-casuar.”

O Padre Louis ficou um longo momento na obscuri­dade fresca de sua choupana pesando as palavras que o catequista tinha repetido, com cautelas de segredo. O peso dos anos carregava-lhe já os ombros e o pecado alheio apoquentava-lhe a alma. A morte não lhe causava medo, mas compreendia o terror daqueles que a afrontavam sem confissão nem viático. No caso de Lansing, ela sobrevinha em pleno adultério, no dia mais afastado da graça do arre­pendimento. O fim chegara, não com o rosto de uma doce e misericordiosa libertação, mas violento como a vingança.

O Padre Louis curvou a cabeça nas mãos e recitou a última prece do Calvário: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem.”

       Lansing era um homem transviado e solitário, mas não era mau. O mal vinha desses que lhe tinham causado a morte, uma morte privada da absolvição de que neces­sitava. Em primeiro lugar, estava Sonderfeld, esse ambi­cioso sem entranhas, saído da monstruosa penumbra da Europa. E depois Kumo, um homem dessas velhas idades de antes do Decálogo, de antes da nova promessa... Kumo, a quem tinha sido oferecida a salvação e que a recusara pelas orgias de Baal, de Dagon e do Deus Porco!

Entre esses dois homens existia um laço, uma som­bria fraternidade, que nascia no orgulho e cujo fim era a morte e a condenação eterna.

O velho sacerdote perguntou a si mesmo o que pode­ria fazer. Sonderfeld e Kumo estavam fora de seu alcan­ce... mas não do alcance de Deus Todo Poderoso. Curtis servia uma causa diferente da sua. Restava Gerda, a mu­lher de coração frio e corpo ardente. E também N'Daria, a jovem de pele escura perdida no matagal do pecado.

Num relâmpago, a luz surgiu-lhe, clara, infalível. Que os mortos enterrassem os mortos! Que Curtis e sua polí­cia fizessem o que tinha de ser feito. Ele, o padre, ia vol­tar à casa do alemão.

Por diligências do catequista, o tambor chamou os cristãos. Quando estes se encontraram todos na pequena capela, o Padre Louis revestiu-se da estola e da casula negras e disse a missa dos defuntos.

Depois da comunhão, exortou os vivos a persevera­rem na fé e na prece, e a armarem-se de inocência contra as potências do Mal. Depois, lançou-lhes uma última bên­ção. No fim da ação de graças ouviu as vozes deles mis­turarem-se a sua na invocação a São Miguel, príncipe dos Espíritos do Céu e protetor das almas contra Satã.

Quando o últímo cristão deixou a capela, o Padre Louis despiu os paramentos e ajoelhou-se alguns minutos diante do altar.

Depois, levantou-se, saiu para o dia cheio de sol e pôs-se a caminho da plantação de Kurt Sonderfeld.

  

         - Já está pronto?

       Curtis, que acabara de ler o manuscrito de Lansing, dirigia esta pergunta ao companheiro. Sonderfeld, ainda inclinado sobre o corpo, estava absorvido pela penosa ta­refa que uma autópsia constitui.

- Falta pouco - respondeu uma voz fria e profissio­nal.

       Era de manhã. Os dois homens encontravam-se na choupana de Lansing: Curtis, ligeiramente na sombra, Sonderfeld trabalhando na réstia de luz da porta, sob os olhares curiosos de toda a aldeia - um amálgama, reti­do pela fileira dos policiais imóveis, de arma empunhada, como estátuas de ébano.

Tinham chegado já com a noite adiantada. Depois de uma rápida inspeção ao lugar, Curtis pusera sentinelas e tinha-se retirado com Sonderfeld, para esperar, na casa Kiap, que o dia nascesse. De manhã, o oficial reunira os indígenas e interrogara o Luluai na presença deles, e não pôde acrescentar uma vírgula à história. Todas as evidên­cias concordavam: a posição do corpo, as marcas das mor­deduras, o álcool e o copo partido. Nenhum júri teria sido capaz de duvidar de que a morte fora acidental.

Todavia, Curtis continuava a não estar satisfeito. Exa­minou o lugar com toda a minúcia, inventariou cuidado­samente o que pertencia a Lansing e mandou embalar as coisas todas para as levar primeiro até ao bangalô e depois para Goroka. Quanto aos cadernos de notas, colocou-os de parte para lhes dar uma olhadela enquanto Kurt fizes­se a autópsia.

       O corpo apresentava-se já inchado pelo veneno e em princípio de decomposição. As formigas começavam a in­vadi-lo e os grandes ratos do mato roíam-lhe as extremi­dades. Mas Sonderfeld, de luvas de borracha, trabalhava com calma e precisão, enquanto um dos rapazes da polí­cia escorrendo suor, lhe apresentava uma cabaça com água quente, uma toalha e sabão. Quando por fim ter­minou, tirou as luvas, lavou as mãos cuidadosamente e deu, em pidgin, instruções sobre a maneira como as luvas e os instrumentos deviam ser esterilizados. Depois, vol­tou-se para Curtis:

       - Terminei.

       - Conclusões?

       Sonderfeld encolheu os ombros.

       - Nada de novo. Devia estar muitíssimo bêbado. Tem o estômago ainda repleto de álcool.

       - Causa da morte?

       - Paralisia dos centros motores, em conseqüência da mordedura. Deve ter morrido uma ou duas horas depois.

      - Pode identificar o veneno?

       - Não. Não possuo os conhecimentos necessários. De resto, não sei se isso é possível.

Curtis fechou com uma pancada seca o manuscrito de Lansing e levantou-se. Apontou para a cadeira, agora vazia.

            - Poderia redigir um relatório?... Acabaremos com isto imediatamente.

Sonderfeld esboçou um gesto de indiferença. Sentou­-se à mesa desengonçada e explicou por escrito suas con­clusões usando o lápis e o papel de Lansing. A mão não lhe tremia. A caligrafia era firme como a de um homem de negócios.

     - Terminado o relatório, garatujou uma assinatura, do­brou a folha e estendeu-a a Curtis, que a meteu na car­teira.

            - E agora?

       - Vamos enterrá-lo - respondeu simplesmente Cur­tis. - E regressamos.

Enterraram Max Lansing à sombra das árvores de tangket que cresciam na orla da aldeia. Com muita pro­fundidade, para preservar o cadáver dos porcos, que fu­çavam por toda a parte. Curtis recitou a prece do Senhor. Sonderfeld deixou vir algumas lágrimas aos olhos e os in­dígenas choramingaram com ostentação, diante dos rapa­zes da polícia, em posição de sentido. O oficial lançou so­bre o corpo o primeiro punhado daquela terra negra, de­pois os indígenas acabaram de encher a cova com as mãos e calcaram o montículo com os pés descalços. Mas já en­tão tinham recomeçado em suas tagarelices e risos.

Marcaram o lugar da sepultura com uma grande pe­dra quadrada. E, finalmente, todos abandonaram Max Lan­sing, tão solitário na morte como tinha estado na vida ­sem interesses e sem amor, coroado de poeira, nu na terra nua da mais antiga ilha do mundo.

            Enquanto estas coisas se passavam, na varanda do bangalô estavam reunidos Gerda, Theodore Nelson e o Pa­dre Louis.

Sobre a mesa que os separava via-se o tubo de bambu entregue por N'Daria a Sonderfeld. O Padre Louis in­clinou-se e tomou-o entre o polegar e o indicador da mão direita. Os outros olhavam-no, fascinados. As pupilas do padre eram duras e a boca severa por entre a barba gri­salha.

       - Diga-me... diga-me de onde veio isto?

            - Apanhei-o no quarto - respondeu Gerda. - Es­tava no bolso dos shorts que Kurt vestia esta manhã e caiu quando o criado os foi buscar para lavar.

       - Sabe o que é? - perguntou Nelson.

       - Sim, sei o que é.

       - Já viu coisas deste gênero? - insistiu Gerda.

            - Tenho visto outras semelhantes - disse grave­mente o Padre Louis tirando a tampa e mostrando-lhes a ponta do pedaço de algodão fétido e rígido que estava no tubo. - Algumas vezes é um pedaço de musgo ou casca, mas a finalidade é sempre a mesma.

       Tapou o tubo e colocou-o na mesa.

       - E que finalidade é essa, Padre?

       O olhar ansioso de Gerda estava pregado ao rosto do sacerdote.

- Antes de lhe dizer, madame, eu gostaria de saber uma coisa. - Seus olhos severos pousaram em Theodore Nelson. - E o senhor, que papel é o seu em tudo isto?

       Gerda tomou espontaneamente a palavra, em nome de um aliado que lhe inspirava confiança:

- O oficial de patrulha pediu ao Sr. Nelson que me protegesse e tentasse obter alguns esclarecimentos em sua ausência.

A resposta pareceu satisfazer o missionário. Aparen­temente distraído, ficou um longo momento contemplando nas costas das mãos a pele com manchas e enrugada. De­pois, começou a falar com lentidão e dificuldade, como um homem no extremo de suas forças, para quem o simples fato de articular umas quantas palavras constituísse um imenso esforço.

- O conteúdo deste tubo representa a vida de um homem. O algodão está impregnado da saliva, do sangue e, penso-o, do sêmen de um ser vivo. Segundo a crença indígena, quem possuir isso tem na mais completa escra­vidão, o ser de que foi tirado, porque é senhor de sua vida e de sua morte.

- Meu marido! - Estas palavras foram articuladas num longo sussurro. O Padre Louis fez um sinal de assen­timento.

            - É o que parece...

            - Mas... mas - balbuciava Nelson no cúmulo da excitação - de quem terá vindo este horror?

            O Padre Louis pousou em Gerda seu olhar fatigado.

            - Pode responder a esta pergunta, minha senhora?

- Creio que sim. Creio que isso vem de Kumo, o feiticeiro. Esse homem foi mandado por meu marido para matar Max Lansing.

- Deus do Céu! - suspirou Nelson limpando o suor da testa.

       O Padre Louis continuava contemplando suas velhas mãos nodosas. Algum tempo se passou antes que qualquer deles quebrasse o silêncio.

            - E... é eficaz?

     - Sim, meu amigo, é eficaz, não tenha a mínima dúvida. Eficaz como o terror e a superstição naqueles que não conhecem Deus.

     - Mas como diabo conseguiu ele arranjar tal coisa?

     O missionário pousou as mãos abertas sobre a mesa, como se quisesse sublinhar a simplicidade da resposta:

- Graças a uma mulher. Uma mulher a quem ele tenha mandado seduzir esse homem e fornicar com ele. É assim, brutal e simples.

Nelson lançou um olhar de esguelha a Gerda. Depois, atrapalhado e com vergonha, desviou os olhos.

O Padre Louis acendeu o cachimbo, aspirou-o com energia e atirou grandes fumaças de cheiro desagradável por cima da mesa. Apenas Gerda se mantinha calma e senhora de si.

- Essa mulher é N'Daria. Trabalha para meu marido e está apaixonada por ele. Será capaz de fazer tudo o que ele lhe ordenar.

O Padre Louis fez um sinal de concordância, mas não disse nada. As conclusões foram tiradas por Nelson:

- Era então isso o que queria dizer Lansing quando falava do culto do cargo e do domínio das tribos. E foi por isso que morreu, porque estava demasiado próximo da verdade.

- E é também por isso que nós não devemos dizer nada até que eu possa falar com Curtis e resolvamos o que há a fazer. - O velho sacerdote pegou no tubo e me­teu-o no bolso. Empurrando a cadeira, levantou-se.- Se me dá licença, meu caro amigo, quero dizer uma palavra em particular à Sra. Sonderfeld. Desculpe e fique um bo­cadinho no jardim. O ar fresco há-de fazer-lhe bem.

Theodore Nelson, que continuava limpando a testa suada, saiu num passo hesitante. Gerda ficou só com o Padre Louis.

O missionário, com um gesto meigo e cheio de sim­patia, pousou a mão na da jovem.

- E agora, minha filha, falemos de coisas que só a nós dois dizem respeito. Mas primeiro... - Seu rosto en­rugado alegrou-se com um sorriso infantil. - Primeiro, gostaria de um copo bem cheio.

Gerda foi buscar uísque e água. Depois, esperou pa­cientemente que ele bebesse o primeiro copo de um trago e saboreasse com vagar o segundo. Seu silêncio e sua len­tidão não a incomodavam de modo algum. Naquele mo­mento de vergonha e perigo, o Padre Louis era, de todos os homens que a rodeavam, quem lhe inspirava maior confiança. Naquele corpo velho e ressequido habitava uma força admirável. O missionário era dotado de uma sabe­doria feita de piedade paciente, sentimento que ela não conhecera em qualquer outra pessoa; tinha ao mesmo tem­po a brusquidão daqueles que ousam afrontar as conse­qüências extremas de sua fé e a ternura do pastor que sabe avaliar o fardo que a mesma fé põe sobre os ombros dos fracos. A presença do Padre Louis dava a Gerda a paz, o tempo e a coragem necessários para lançar um ape­lo às forças dispersas.

       O padre acabou de beber e colocou o copo em cima da mesa.

            - Agora - disse brandamente - falemos um pouco de você.

- De mim, Padre? - A voz da jovem era tranqüi­la, mas sua atenção tornou-se viva e sutil como a de um gato.

       - De você e de sua alma imortal.

       Ela sorriu com amargura.

       - O senhor é o primeiro homem que se interessa por minha alma.

            O Padre Louis não sorriu. Seus olhos estavam cheios de doçura e gravidade.

       - Max Lansing... Amava-o?

       - Não.

       - Ama seu marido?

       - Odeio-o.

       - É, portanto, mulher de um homem que odeia e cometeu o adultério com um homem que não amava.

       - Com muitos homens, Padre.

       - E foi mais feliz, minha filha?

            Ela encolheu os ombros, sorrindo sempre com a mes­ma expressão triste e sarcástica.

- Há já muito tempo, Padre, que aprendi a não pro­curar a felicidade. Tenho tentado contentar-me com o que me resta.

            - Crê em Deus, minha filha?

            - Não.

       - Mas é polaca, não é verdade? Nasceu, pois, no seio da Igreja. Foi batizada?

       - Sim.

       - O que aconteceu, então, para que perdesse a única coisa que teria podido fazê-la feliz?

Naquela voz cansada de velho não havia qualquer censura: nada além de uma atenção cheia de gravidade, como a do médico que sondasse uma chaga funda e dolorosa.

Gerda não iludiu a resposta. Abandonava-se, respon­dendo às perguntas sem disfarce, porque nada tinha a es­conder.

            - Houve tempo em que tive necessidade de Deus: não O encontrei. Houve tempo em que chamei por Ele:          não me respondeu. As coisas foram assim, simplesmente.

            - Conte-me tudo.

            Gerda começou. Disse-lhe da guerra e do ataque às cidades do Leste, do longo horror que a tinha levado ao encontro com Reinach e do novo horror que daí resulta­ra. Disse-lhe de sua mutilação e de sua escravidão, da me­tamorfose de Reinach em Sonderfeld, do monstruoso con­trato que tinham concluído, da vida comum e de seus amo­res separados. E, quando terminou, pareceu-lhe que um peso lhe deslizara dos ombros e que alguém alargava o tomo em que seu coração estava apertado.

O Padre Louis baixou os olhos para esconder a piedade e a ternura que os enchiam de lágrimas. Tomou en­tre as suas a longa mão branca da jovem e acariciou-a com brandura.

- Se lhe dissesse que me enche de piedade, minha filha, diria uma coisa sem sentido. Sou padre, um pastor indigno do rebanho de Cristo. Pertence a esse rebanho e pertence-me, se bem que se tenha afastado para bem longe do redil. Não precisa, porém, de piedade, mas sim de força e de amor. E também da graça do perdão... esse perdão que Deus está pronto a conceder-lhe.

       Ela teve um gesto de desespero.

       - Força? Possuo-a, creio. Se não, como teria podido suportar tanto tempo esta vida que levo?... Mas amor...? Certamente serei incapaz desse sentimento, como sou in­capaz de ter filhos.

       - Não! - A voz do Padre Louis tomou-se eloqüen­te. - Julga-se incapaz de amar porque, durante todos es­tes anos, tem feito da consumação do amor um ato hu­milhante a seu próprio respeito e uma vingança para com o homem que a prejudicou. Pecar num momento de amor e de paixão é outra coisa. É uma falta, mas que traz em si mesma o germe da redenção. Pecar sem amor é uma per­versão, uma contradição monstruosa, que a avilta ainda mais a si do que ao homem que pretende atingir. Minha filha... - A voz do padre estava repassada de compaixão. - Minha filha, sou um velho. Como Salomão na sua velhice, vi muito mal neste mundo, mas também vi bem, muito bem, tanto que todos os dias fico maravilhado e dou graças a Deus. Acredite-me, não estou aqui a ofere­cer-lhe frases feitas. Não sou um caixeiro-viajante do Evangelho. Sou um homem que chegou ao fim do cami­nho e que só tem uma paixão: a da Verdade. Abra os olhos, minha filha, e descubra o amor de Deus, tão mag­nífico e deslumbrante como as flores de seu jardim.

Gerda escondeu o rosto nas mãos e chorou. O velho sacerdote acariciava-lhe os cabelos sombrios, como um pai consola o filho que sofre. Quando as lágrimas começaram a deixar de correr, ele ergueu aquele rosto transtornado, tirou um lenço do bolso e estendeu-o a Gerda com um sorriso malicioso.

- Ora vê! Isso já vai melhor. Limpe os olhos e va­mos ver o que está a nosso alcance para curarmos a lou­cura destes vales.

O Padre Louis pensou que estava numa encruzilhada de dificuldades. A posse do tubo de bambu dava-lhe um duplo poder sobre Sonderfeld e sobre Kumo, mas seu ca­ráter sacerdotal privava-o do direito de se servir dele.

Por outro lado, a região estava sob a autoridade úni­ca do Oficial de Patrulha Lee Curtis, bastante jovem e inexperiente para se ofender com a intromissão da Igreja em suas questões. Curtis teria evidentemente de sofrer as conseqüências, se a Igreja cometesse erros, e estes eram de prever quando estavam em causa almas anormais, pa­ranóicas ou primitivas.

   Como tantas vezes no decorrer dos últimos dias, o missionário desejou mais uma vez, intensamente, a pre­sença de George Oliver. Era bem melhor que este se en­contrasse ali, em vez de vegetar em Goroka entre a pa­pelada do gabinete do Comissário Distrital.

       George Oliver teria compreendido e aprovado o que o Padre Louis desejava fazer. Mas entre ambos havia dois dias de marcha, com a barreira sul de permeio.

       Outro problema, e este moral: Gerda, que odiava o marido, estava pronta a vingar a morte do amante. So­licitar sua cooperação contra Sonderfeld não equivaleria a carregá-la com outra falta?... Tinha esse direito? Era padre antes de tudo e, a seus olhos, um pecado constituía a pior das desordens. Era, pois, necessário agir sem o co­nhecimento de Gerda. Esperar um pouco, orar muito, permanecer sozinho para aclarar idéias.

       Abandonando Gerda a sua curiosidade decepcionada, afastou-se para o maciço de bambus que servia de cortina entre a choupana dos criados, a casa e o jardim. Sentou-­se num tronco coberto de musgo, fez uma prece e fumou uma longa cachimbada apaziguadora. Então, pensou no caminho a seguir.

       Chamou um criado. Em troca de uma porção de ta­baco, o negro arranjou-lhe um pedaço de bambu, abso­lutamente igual ao tubo maléfico e deu-lhe um pedaço de algodão. Com um pouco de saliva, suco de tabaco e algu­mas gotas de sangue tiradas de seu próprio dedo, o Padre Louis obteve uma cópia aceitável do tampão impregnado das secreções de Kumo. A cópia foi introduzida no tubo de Sonderfeld, o original no novo tubo.

       Operada a troca, colocou os dois tubos de bambu na mão aberta, refletindo na maneira de os utilizar. O tam­pão falso seria restituído a Gerda, a fim de que Sonder­feld o encontrasse no regresso. O original ficaria em sua posse, até se ver o desenrolar dos fatos.

       Esse desenrolar tentava ele adivinhá-lo em todos os pormenores: a assembléia das tribos no vale de Lahgi, os penachos ao vento, sangue derramado, a pirâmide dos por­cos sacrificados perante a choupana do Espírito Vermelho. Sonderfeld proclamado por Kumo como sendo a encarna­ção do Espírito. Via-se a si próprio chamando impostor a Sonderfeld, tonto a Kumo, e estendendo-lhe o tubo, como prova de seu desafio.

       Assistia antecipadamente à perturbação de Kumo, porque o próprio grande feiticeiro não saberia quem era o farsante e quem tinha sua vida entre as mãos.

Em seguida... O que se passaria? Seria o instante do desafio final, o instante em que o manhoso primitivo oporia o sacerdote a Sonderfeld, o instante da misericor­diosa proteção de Deus. Porque, se fosse vencido, o Padre Louis seria feito em postas pelos machados de pedra e seu sangue iria misturar-se com o sangue dos porcos.

Apesar do calor, estremeceu. Metendo um dos tubos no bolso e levando o outro na mão, voltou lentamente para junto de Gerda.

Na obscuridade fresca e suntuosa de uma noite de montanha, Kurt Sonderfeld regressou a casa. Fatigado pela longa caminhada, com o corpo cheirando a suor e a roupa coberta de pó, sua disposição era deplorável. Além disso, a extrema reserva de Curtis inquietava-o. A despeito de sua juventude e de sua inexperiência, o oficial tinha conduzido o inquérito com um cuidado minucioso e, mesmo sem nada ter descoberto que diferisse da versão forneci­da, continuava desconfiado. Se Sonderfeld o interrogava, não escondia sua impaciência.

Na primeira paragem do regresso, o alemão havia pe­dido que o deixasse ver as notas de Lansing. Curtis as entregara sem hesitação. Mas, enquanto percorria as li­nhas cerradas, escritas em linguagem profissional, Kurt deu conta de que o outro o observava atentamente, esprei­tando a menor de suas reações. Por que tal desconfian­ça?... À primeira vista, nada havia naquelas notas que pudesse fornecer matéria para acusar fosse quem fosse. Por fim, Sonderfeld expulsou os receios, mas o aborreci­mento que experimentava não o deixou até ao fim da via­gem.

Na realidade, outra preocupação o dominava: o es­quecimento do tubo de bambu. Tudo dependia para ele desse execrável Kumo e era também necessário que esse assunto do tubo ficasse secreto. Se ao menos tivesse sido encontrado por Gerda! Tais objetos deixavam-na indife­rente: estava habituada a ver muitos, nas mãos do ma­rido, fabricados pelos indígenas. Mas os criados causa­vam-lhe uma inquietação muito maior. Se um deles apa­nhasse o tubo, abri-lo-ia - porque o indígena das alturas é curioso como uma pega - e, quando desse com o con­teúdo, seria um autêntico pânico ou, então, no caso de ser esperto, faria do tubo moeda de câmbio em suas re­lações com Kumo ou outro feiticeiro. De qualquer modo, a coisa seria um desastre para Sonderfeld.

       No quarto, onde Gerda dormia profundamente, viu logo, bem em evidência sobre a mesa, em cima de uma pilha de roupa lavada, o tubo de bambu. Gerda tinha-o encontrado! E, como todas as esposas cuidadosas que en­contram no quarto conjugal um relógio ou um botão de camisa, ela colocara o objeto de modo que fosse visto pelo marido ao primeiro olhar.

Sonderfeld sorriu, satisfeito. Sua má disposição des­vaneceu-se instantaneamente. Meteu o tubo no bolso das calças. Lembrando-se, porém, de seu descuido, mudou de idéia e colocou-o no fundo de uma gaveta; debaixo de uma pilha de lenços, onde estaria em segurança até o momento em que precisasse dele.

Liberto do vestuário sujo, pôs uma toalha no braço e foi tomar um banho de chuveiro para se refrescar antes de adormecer. Ao passar pela porta do quarto de visitas, que estava entreaberta, ouviu uma respiração profunda, entrecortada de um ressonar ligeiro. Sonderfeld empurrou a porta e lançou um olhar à cama. Viu então o Padre Louis, que dormia o sono de um justo. Franzindo o so­brolho, retirou-se, cauteloso.

A presença do padre causava-lhe extraordinária ad­miração. Lembrava-se do último encontro que tinham tido. O sacerdote dissera que não voltaria ali, a não ser que o chamassem. Gerda tê-lo-ia feito? Afinal de contas, a aldeia do missionário era muito próxima da de Max Lansing e devia ter sabido a notícia primeiro do que ninguém. Mas por que não fora então diretamente à casa de Lansing?

Enquanto a água lhe escorria pelo corpo, Sonderfeld ruminava a questão. E, como não era capaz de admitir o menor obstáculo em seu caminho, chegou à conclusão de que o padre tinha vindo trazer sua simpatia aos amigos do morto. Gesto bem natural no isolamento da montanha, onde todas as ocasiões de se reunirem eram aproveitadas pelos que tinham vindo de um mundo semelhante. Talvez também o velho quisesse reconciliar-se e uísque devia faltar-lhe e ele não deixava de gostar de uma refeição civilizada, de quando em quando.

Sonderfeld trazia nos lábios um sorriso amargo de triunfo quando regressou ao quarto. Por que se estava inquietando com tais ninharias? Podiam suspeitar dele, po­diam odiá-lo à vontade, mas ninguém seria capaz de se lhe opor. Deitou-se, puxou a coberta até aos ombros e caiu imediatamente num sono sem sonhos. Não ouviu a corrida do casuar, que descia da montanha, passava diante da aldeia com o ruído do rufar de um tambor e se dirigia para o laboratório, onde N'Daria, inquieta e angustiada, dava voltas no leito solitário.

Mas o Padre Louis ouviu o casuar. Acordado em so­bressalto, sentou-se na cama. O hábito das longas noites de vigia tinha-o marcado, em tempos, em lugares em que a morte percorria as sendas do mato e em que mais de um missionário isolado caíra sob o machado de pedra da­queles que vinha salvar.

O sacerdote sabia que de noite o casuar não sai, mas dorme, como todas as aves. Ansioso, pôs-se à escuta. O ruído aproximava-se, passava além da aldeia, dirigia-se para a plantação. O Padre Louis jogou os cobertores para o lado, vestiu-se rapidamente e saiu sem ser ouvido.

A noite vazia continha apenas estrelas e árvores, mas a atmosfera repercutia um rolar ritmado, que se aproxi­mava cada vez mais. O padre fez o sinal-da-cruz, invocou a proteção de Cristo e da Virgem Maria, e começou a descer lentamente o atalho ao encontro do Mal.

            Havia mais alguém que escutava. Era N'Daria, tre­mendo de terror na obscuridade que a envolvia.

A moça escondeu a cabeça debaixo dos cobertores, mas nada poderia impedir esse encontro inexorável. Ela sabia o que aquele ruído significava. Kumo vinha procurá­-la, como ela sempre pensara, agora que Sonderfeld a tinha rejeitado.

Traíra o amante e fora, por sua vez, traída. Agora, esse amante vinha exercer sua vingança, a terrível e som­bria vingança que só os feiticeiros sabem infligir.

     Desde a noite fatal, vivia num pavor constante. Já ninguém a via, nem no kunande nem na aldeia. Escondia-­se até dos homens que trabalhavam na plantação. Isola­da no laboratório, tentava absorver-se nas tarefas que Son­derfeld lhe havia prescrito. Mas para ela nada mais tinha sentida. Estava perdida e não o ignorava.

N'Daria tentara conciliar dois mundos... e falhara em ambos. Rejeitara seu povo, e o branco a rejeitara. A ciência que este lhe dera não constituíra uma arma con­tra a secreta sabedoria dos feiticeiros.

Sozinha, aterrorizada, cheia de remorsos, nada mais podia fazer senão permanecer ali, trêmula e sem defesa, enquanto os passos se aproximavam, mais e mais, e se de­tinham finalmente diante da janela da choupana.

 

A princípio, houve apenas um leve mas insistente arranhar. Ter-se-ia julgado que era um ramo de árvore batido pelo vento de encontro à vidraça.

N'Daria, rígida, metida debaixo dos cobertores, fingia dormir. Depois, aquele raspar tornou-se num bater com­passado de dedos com pressa, mas ainda leve como o rufar de um tambor minúsculo. Ela quis ainda ignorá-lo. Con­tudo, o ritmo não abrandava e parecia propagar-se pelos caules ocos dos bambus da parede, até encher todo o com­partimento e prolongar-se em vibrações através de cada nervo do corpo da jovem.

N'Daria não foi capaz de o suportar por mais tempo. Desviando o cobertor, levantou os olhos para a janela. Rumo olhava-a através da vidraça. Suas pupilas pareciam duas brasas; os lábios, arrepanhados num trejeito de ódio, mostravam dentes tingidos de vermelho; sua face, pres­sionada de encontro ao vidro, deformava-se numa más­cara monstruosa.

       A moça sufocou um grito e tentou desviar o olhar da visão terrível. Mas as pupilas de Rumo fascinavam-na. Não era capaz de despregar as suas e pareceu-lhe que ia abafar. Então, como em transe, atravessou o laboratório, abriu a porta e esperou que o feiticeiro entrasse.

A atmosfera estava quente, imóvel. O choque causa­do por esta aparição produziu, porém, o efeito de uma ra­jada violenta, que cortou a respiração de N'Daria e a lan­çou para trás, colocando-a à madeira dura do banco, que se lhe fixava às coxas. A desgraçada arqueava o dorso, numa tentativa inútil de fuga, à medida que sobre ela cres­ciam, gigantescos e ameaçadores, o horrível rosto pintado, o penacho que estremecia, o peito nu, brilhante de suor e gordura.

       Assim que lhe tocasse, ela cair-lhe-ia aos pés. Mas Kumo permanecia, com esse rito de fera, de olhar em sua presa e esta não podia desviar o seu, de modo que a máscara parecia aumentar, aumentar, até encobrir as estrelas que brilhavam no retângulo da porta aberta... até apenas haver dois olhos chamejantes, acusadores e ter­ríveis.

       Depois, vinda de muito longe, soou a voz:

       - Aqui está N'Daria, que roubou minha vida para a dar ao homem branco!

Ela tentou responder, mas tinha a garganta cheia de um vapor pegajoso e nenhum som passava através dele. Tentou debater-se, mas os membros recusavam-se a qual­quer movimento. No peito e no ventre pesava-lhe uma pedra.

- Aqui está N'Daria, que pensou que a magia do homem branco era mais poderosa que a de Kumo! O ho­mem branco dorme, N'Daria. Está cansado da viagem que fez até além das montanhas. Não virá para junto de você antes do amanhecer.

O riso que chegou aos ouvidos da moça assemelhava-­se ao trovão, e aqueles olhos chamejantes não abandona­vam os dela, que se reviravam de terror.

            - O homem branco tem a minha vida, mas nada pode fazer-me enquanto dorme. Esta é a hora do poder de Kumo. Não o sente, N'Daria?... No seu ventre está uma fle­cha... Está sentindo-a, não é verdade?

Kumo não fez qualquer movimento, nem lhe tocou. Mas, subitamente, ela começou a torcer-se com dores atrozes, segurando o ventre com as mãos, o rosto destroçado por gritos silenciosos.

O homem observava-a, sorrindo de prazer. Depois, quando o anunciou, ela deixou de sentir dores e ficou cal­ma, imóvel, como em catalepsia. O olhar terrível do fei­ticeiro transbordava de ironia, sua voz retumbava:

- Ainda há mais, N'Daria, ainda há mais! Sua boca está cheia de espinhos e sua garganta atafulhada de pe­dras. Está sentindo, não está?

Os olhos da vitima saltaram das órbitas, as faces in­charam, as artérias da garganta dilataram-se, os pulmões pareciam prestes a rebentar. Atingia a última fase da as­fixia quando ele a libertou de novo. A jovem vomitou de alívio. Seu rosto cor de cinza escorria suor.

E, assim, durante um espaço de tempo irreal, foi sen­do conduzida de tortura em tortura. Sua carne ficou em sangue com a mordedura de formigas vermelhas; suas meninges inflamaram-se; no estômago, alojou-se um ani­mal roedor; as articulações estalaram, como se estives­se sendo sujeita ao suplício da polé; foi chicoteada com bambus, profundamente golpeada. E nem por um segun­do as mãos de Kumo pousaram nela.

A cena tinha durado apenas alguns minutos, no de­correr dos quais a moça sofrera toda a espécie de tormen­tos possíveis e suportara as dores de uma vida inteira. E agora estava por terra, trêmula e quebrada, as faces inundadas de lágrimas, a boca aberta, babando-se, com o corpo sacudido por movimentos convulsivos.

Kumo, observando-a, passava a língua pelos lábios, como se tomasse o gosto salgado da vingança. De repen­te, tirou da pulseira de pele um tubo de bambu igual àque­le em que levara a morte a Max Lansing. Sob o choque deste terror final, a moça ficou sufocada, sem forças para qualquer movimento.

       - Sabe o que é isto, N'Daria?

       - Sim - respondeu ela num murmúrio rouco.

- Você me roubou a vida, N'Daria. Roubou minha vida e a deu ao homem branco. Agora, vou dar sua vida à serpente mosqueada. E o homem branco jamais o sa­berá.

A moça sentia-se incapaz de fazer o minimo gesto ou de soltar um grito de socorro. Nada mais podia senão esperar, petrificada, que ele aproximasse o tubo, até que, suficientemente perto de seu corpo, e a serpente saltasse, rápida como o relâmpago, e lhe mordesse a pele do peito. De olhos fora das órbitas, viu os dedos de Kumo contraírem-se sobre a tampa do tubo, e sentiu o hálito fétido do delírio febril que o exaltava nesse instante de triunfo.

       Então, metálica e súbita, soou a voz do Padre Louis:

       - Kumo, pare! Pare!

     O tubo de bambu rolou na sombra até à parede. N'Da­ria mergulhou, de corpo mole, numa síncope.

       Kumo e o sacerdote ficaram frente a frente. O feiti­ceiro dominava o ancião, como um ídolo grotesco. Em seu rosto pintado, tenso de furor, os olhos refletiam o Mal no estado puro.

O Padre Louis sentiu o sangue gelar-se nas veias. Sua carne arrepiou-se de horror. À sua frente tinha Satã.

Eis que ali estava patente, em toda sua verdade, o fenômeno da posse dos demônios, em presença do qual, durante um segundo trágico, o padre estremecia e a fé vacilava até a aresta viva do desespero. Mas durante um segundo apenas...

No bolso, a mão do Padre Louis crispou-se sobre o rosário. Com um movimento rápido e decidido, aplicou a pequena cruz de madeira ao rosto do feiticeiro. Sua voz soou, clara como a lâmina de uma espada:

       - Vade retro, Satanás! Afasta-te, Satanás!

       Imediatamente o corpo de Kumo se retorceu num tre­mor frenético! Uivou como um animal. Depois, girou so­bre os calcanhares e fugiu.

O sacerdote, imóvel, ouviu de novo a corrida dura e compassada do casuar afastando-se debaixo das árvores tangket.

            Na casa Kiap, Lee Curtis acordou sobressaltado. O Padre Louis curvava-se sobre ele.

            - Levante-se. Vista-se. Acenda uma luz. Preciso fa­lar-lhe.

- Mas o que é? - Curtis esfregava os olhos, tentan­do concatenar as idéias. O missionário não devia estar ali àquela hora, mas sim em sua aldeia, a quilômetros de dis­tância. Sua presença ali era a coroação das fadigas, das preocupações e dos mistérios daquele dia. - O que se pas­sa? O que faz aqui?

- Fale mais baixo e proceda como lhe digo. Contar-­lhe-ei tudo quando estiver completamente acordado.

Praguejando intimamente e pouco seguro das pernas, Lee Curtis vestiu-se e acendeu uma lâmpada. Nelson, que havia despertado com as vozes, sentava-se na cama e pro­curava com os olhos.

       Quando, enfim, os três se encontraram reunidos no pequeno círculo de luz, o oficial exclamou de forma brusca.

            - Então, Padre?

            - Primeiro - respondeu ele -, vou mostrar-lhes o que matou Lansing. - E exibiu o tubo de bambu.

            - Deus do Céu! - gaguejou Nelson. - Mais outro tubo? ­

            Curtis esboçou um movimento para se apoderar do objeto, mas o padre desviou-o vivamente.

            - Cuidado!... Isto é perigoso. Olhe.

            Colocando o tubo perto da luz, mostrou-lhes a tampa cheia de pequenos buracos, para que entrasse ar, sem dú­vida.

            - E, agora, escutem.

            Sacudiu o fragmento de bambu e aproximou-o do ou­vido de Curtis e depois do de Nelson. Ambos distingui­ram uma leve fricção no interior.

            - O que é isto? - Era Nelson quem fazia a per­gunta. Curtis, pensativo, continuava calado.

- É o feitiço da serpente - respondeu o Padre Louis - No interior deste tubo há uma, minúscula e mortal. Os feiticeiros apanham esses répteis e metem-nos em tu­bos, às vezes com um fragmento do vestuário da vitima designada. Depois, irritam o réptil fazendo-o passar fome e agitando o tubo. Claro que o animal, uma vez libertado, morde imediatamente o que encontra à frente.

            - Onde arranjou isso? - perguntou o oficial, num tom severo.

            - Não faz ainda dez minutos, Kumo tentou assassi­nar N'Daria no laboratório. Felizmente, ouvi-o chegar e pude impedir este novo crime.

            - Ele... ele deu-lhe isso? - perguntou Nelson, ga­guejando de emoção.

            - Não exatamente... Falei-lhe em nome de Deus. Fugiu então, largando o tubo.

      - Apenas assim? - articulou Curtis, com brandura.

       - O senhor o disse. Apenas assim!

       - E a moça?

       - Deixei-a na choupana, sã e salva, se bem que ater­rorizada. Mas estão vendo! - O Padre Louis inclinou-se para a frente e gesticulou com nervosismo. - Possuímos agora a solução do mistério. Nelson não lhe disse que Son­derfeld tinha em seu poder a vida de Kumo?

       Curtis assentiu.

       - Por intermédio de Kumo, assassinou Lansing.

       - E tentou desembaraçar-se da moça?

     O missionário fez um gesto negativo.

            - Não. Isto, para Kumo, foi uma questão pessoal. Uma vingança contra a mulher que o traiu. O resto é evi­dente. Graças a Kumo, Sonderfeld pode dominar as tribos. E suponho que vai aproveitar a Festa do Deus Porco para se fazer proclamar pelo feiticeiro a encarnação do Espíri­to Vermelho.

       - Foi isso o que pensou Lansing e foi isso o que lhe custou a vida.

       - Com certeza.

       Nelson, excitadíssimo, interveio.

       - Mas, qual é a dificuldade? Tem tudo na mão! Prenda­ Sonderfeld. Prenda Kumo. E a questão morre no ovo.

       - Impossível - declarou Curtis.

       - Por que, diga-me.

            - Falta de provas. Não tenho qualquer prova con­tra Sonderfeld. E contra Kumo apenas uma tentativa de assassínio, pela qual não o posso incriminar sem mostrar o jogo ao alemão.

       - Mas não pode ficar assim!

       - Ora, vamos, Nelson! - O rosto juvenil e cansado cavava-se de ansiedade. - Você, quando está aqui, sente-­se mil anos recuado no tempo. E, em certo sentido, isso é verdade. Mas, sessenta quilômetros para além destas montanhas, fica Goroka, a civilização, o século XX e as Nações Unidas. E estas têm o braço longo... Seja qual for minha opinião, estou às ordens de tudo isso. Sonder­feld é com toda a evidência o culpado que procuro, mas não posso pôr-lhe a mão se não apresentar ao mesmo tem­po a um júri a prova do crime. E, até este momento, não tenho nada.

       - Tem Kumo.

       - É preciso ter Sonderfeld.

       - Curtis está com a razão - disse gravemente o Padre Louis. - Eliminem Sonderfeld e haverá paz no vale. Mas não podem neutralizá-lo sem arranjar provas. E acreditem no que lhes digo: nunca as terão.

       - A moça. Se ela quisesse falar...

      - Depois do que suportou esta noite, não falará, afirmo-lhe. Podem levá-la para mil léguas daqui. Não abri­rá a boca com medo dos feitiços.

       - Mas o tempo! - disse, subitamente, Curtis. - O tempo que corre! Isso é que é terrível!... Tudo tem de ser feito antes da Festa do Deus Porco, se não nos vere­mos a braços com um barulho como nenhum outro nestes últimos vinte anos. Expedição punitiva e toda essa agita­ção! Se ao menos tivéssemos tempo!

       Desesperado, bateu com a mão na testa.

       - Quando é a Festa do Deus Porco? - perguntou Nelson.

       - Aí é que está a dificuldade. Nada sabemos a esse respeito. Porque, veja, não é uma questão de data. As tribos reúnem-se no vale de Lahgi. Primeiro, chegam as que vivem mais longe, depois as outras, de acordo com a proximidade. As daqui podem pôr-se a caminho amanhã ou depois de amanhã. Quando todas chegarem, os velhos e os feiticeiros fixam um dia para a grande festa, depois de tudo preparado e após a organização de um certo ce­nário. No ponto em que as coisas estão, suponho que Son­derfeld e Kumo se arranjarão de modo que as cerimônias comecem logo. E isto é que me irrita! Não posso afastar-­me daqui. Preciso tanto de me aconselhar com meus su­periores e é-me impossível ir a Goroka!

       - Permite que lhe dê uma idéia? - perguntou o Padre Louis.    

       - Pois não, Padre. Vê maneira de sair deste beco?

       - Bem. - A voz do ancião era cheia de autoridade. - Eis o que é preciso fazer. Em primeiro lugar, e ime­diatamente, um relatório escrito. Dar-lhe-ei uma ajuda para ser mais depressa. A seguir, deve mandar o seu me­lhor mensageiro, aquele em quem tiver mais confiança, a Goroka. E tem de partir antes de que Sonderfeld des­confie de algo. Quanto tempo o mensageiro pode levar?

       - Um dia e meio. Digamos... quarenta horas. É lon­ge, mesmo para um homem treinado.

       - Muito bem. Em Goroka, quem se ocupa da ques­tão?

- Oliver, com certeza. George Oliver. É o adjunto do Comissário Distrital. Foi Oliver quem pacificou esta região.

- Bem. Enquanto espera por Oliver, entregue-se às suas ocupações, como se nada tivesse havido. E você, Nel­son, observe as plantações, e pronto. Vou regressar a mi­nha aldeia e esta boca não se abrirá acerca dos aconteci­mentos desta noite. A moça também nada dirá; velarei por isso. Antes da Festa do Deus Porco nada acontecerá.     

Curtis, pouco satisfeito, franziu o sobrolho.

- Mas, afinal, toda a questão está nisso! Em que nada aconteça! Para ir são precisos dois dias, e outros dois para voltar. Quatro, no mínimo! O que sucederá, se Oliver não chegar a tempo?

            O Padre Louis permaneceu silencioso por um longo momento antes de responder:

- Então, meu amigo, levará seus rapazes para o vale de Lahgi. Para lá chegar tem de passar por minha aldeia. Eu espero e vou com você.

            - Bem. E depois?

            - Depois - disse o Padre com um sorriso de misté­rio - confiar-nos-emos à proteção de Deus e a um peque­no estratagema pessoal. Confesso que não tenho qualquer desejo de recorrer a ele. Mas, se surgir o pior, decidir­-me-ei.

       - Posso saber do que se trata?

       - Prefiro nada dizer por enquanto. Se seu superior chegar a tempo, ele sabê-lo-á.

       - Por que ele e não eu? - insistiu Curtis, vexado.

       - Porque é ainda muito novo, meu filho, e já está suportando, e com muita coragem, uma pesada responsa­bilidade. Não quero acrescentar a essa responsabilidade uma decisão grave.

       - Que decisão?

       - A vida ou a morte de um homem.

       - Mas, e Oliver?

       - Sim. Deixarei que Oliver faça o que entender. Co­nheço-o e ele conhece-me. E ambos conhecemos bem as tribos. Agora, vamos redigir esse relatório para enviar pelo mensageiro.

Quarenta minutos depois, um velho policial indígena corria pelas sendas em montanha-russa que conduziam a Goroka.

O homem não levava espingarda. A baioneta estava fixada entre os ombros e, no boldrié lustroso, ia escondi­do o relatório de Curtis e do Padre Louis. Os olhos rola­vam-lhe, assustados, nas órbitas e passava com freqüência a língua pelos lábios secos, sempre subindo encostas e franqueando descidas.

Era um indígena do Madang. Esta região parecia-lhe estranha, aterrorizadora. Não conhecia o idioma e os ta­lismãs de sua terra não deviam ter qualquer poder sobre estes feiticeiros. Ia tão cheio de medo que cobriu os ses­senta quilômetros em trinta e três horas.

 

       George Oliver era um homem-desiludido. Com qua­renta e cinco anos, tinha atingido o limite de sua carrei­ra - oficial assistente de distrito, terceiro posto na re­duzida pirâmide da autoridade cujo vértice era o Comis­sário Distrital e cuja base era constituída pela frágil linha de oficiais de patrulha dispersos por quinze mil quilôme­tros quadrados de território só meio pacificado.

Oliver sabia a razão por que não havia subido mais - e esta nada tinha de consolador para ele. Passara em território sob mandato mais de vinte anos. Sua folha de serviço era impecável. Estreante, tendo desembarcado quando no mapa da ilha as montanhas eram ainda espaço branco sobre fundo verde, havia, sozinho, desvendado e submetido mais terra do que ninguém ali. Seu comporta­mento durante a guerra, quando os japoneses ocuparam a região, valeu-lhe a D.S.O. e a Cruz Militar; sendo que possuía um conhecimento ilimitado das tribos. E, contu­do, a promoção era para outros. Nunca atingiria os graus superiores. Só uma pessoa tinha, porém, a culpa: ele pró­prio. Não era diplomata.

As decisões que tomava pareciam freqüentemente a seus chefes difíceis de tragar; sua língua acerada causa­va-lhe bastantes inimigos. Todavia, possuía encanto, o dom da simpatia, um extraordinário sentido de justiça e uma coragem cheia de calma. Além de tudo isto, amava aque­la ilha suntuosa e os negros habitantes com uma intensi­dade que a frustração de suas legítimas ambições não havia diminuído. Mostrava-se generoso para os novos, co­brindo-lhes os erros e remediando as conseqüências destes.

Neste momento, este homem magro e nervoso, de ros­to estreito, maxilar proeminente, lia, em seu austero ga­binete de Goroka, o relatório do Padre Louis e de Lee Curtis sobre a situação no vale em que habitava Kurt Sonderfeld.

O mensageiro, que chegara alagado em suor e caindo de fadiga, tinha sido mandado para. o aquartelamento, cheio de alegria com o breve elogio que recebera do Kiap George Oliver agora estava só... e contente por estar só.

O relatório de Curtis, escrito às pressas e sob a in­fluência da emoção, tinha poucas probabilidades de agra­dar ao Comissário Distrital, homem circunspecto que gos­tava de conservar os dossiês convencionais e regulamen­tares ao abrigo de possíveis investigações vindas de Mo­resby, de Camberra ou de qualquer missão enviada das Nações Unidas. O comentário do Padre Louis, escrito igualmente às pressas, não tornava as coisas melhores. O Comissário Distrital simpatizava pouco com as missões, e a magia dos feiticeiros parecia-lhe uma extravagância antropológica que mais valia ignorar.

Mas este aspecto da questão era ainda pouco impor­tante ao lado do problema Sonderfeld. Em relação a este, a Administração só tinha. tido de se congratular. Os ser­viços do alemão estavam devidamente registrados. Quan­do ele alugara a terra, todo o apoio lhe fora dado, e a Ad­ministração não deixaria de ficar comprometida se hou­vesse histórias. Além disto, poder-se-ia, na realidade, levar em conta a frágil evidência apresentada pelo francês, que era, pelo menos, um homem singular?

No entanto, George Oliver sabia que eles tinham ra­zão. Conhecia aquela terra demasiado bem para conside­rar com ceticismo qualquer agitação indígena instigada pelos feiticeiros. Quanto a Sonderfeld, não seria o primei­ro aventureiro cujos manejos tortuosos ficassem gravados a sangue na história do território.

Colocou o relatório na secretária, ocultou-o cuidado­samente sob um mata-borrão e acomodou-se bem na pol­trona. Em primeiro lugar, tinha que pôr o comissário a corrente dos acontecimentos, e a essa exposição acrescen­taria ele próprio seu ponta de vista. Seu superior não le­vantaria objeções, porque daquele modo a responsabilida­de seria endossada a um subordinado, talvez impopular, porém mais qualificado do que ninguém para enfrentar uma situação explosiva.

George pensava em partir imediatamente para o vale, apenas acompanhado por dois agentes e dois carregadores. Aliás, contra a violência das tribos reunidas, cinqüenta homens não fariam melhor. O oficial sorriu com ironia. Seus superiores dirigiam-lhe poucos cumprimentos, raras vezes lhe agradeciam fosse o que fosse, mas, sempre que surgia uma embrulhada, todos diziam: “George resolverá o assunto!” Pois bem, que fossem para o diabo! O que era preciso era falar depressa com o Comissário!...

       Ali, só o que prendia Oliver era a papelada e a rotina.

       Ia já perto da saída quando se lembrou de Gerda Son­derfeld. Lentamente, voltou até junto da secretária, tirou um maço de cigarros da gaveta, acendeu um e sentou-se no tampo, contemplando pela janela a relva bem aparada e com sálvias gritantes de cor à volta.

Gerda Sonderfeld... Tinha-o repelido, havia já bas­tante tempo, com uma espécie de indiferença terna, mas ela permanecia no sangue de Oliver como o fogo sob as cinzas. De todas as mulheres que tinha conhecido, aquela fora a única que não esquecera.

Era uma velha história. Uma história antiga e que o tempo esfriara. Começara por ocasião de uma viagem a Lae e tinha terminado com o regresso de Sonderfeld de uma exploração ao norte do vale. Nessa época, o Jornal do Governo que então saíra não incluía seu nome na lista dos promovidos. Seu estado de espírito era o de uma so­lidão como nunca experimentara. Logo na primeira noite, Gerda entregara-se a ele sem reservas. O ardor daquela mulher ainda tão jovem encantava George, sua inteligên­cia e extraordinária ternura acalmavam- no, sua genero­sidade era para ele uma surpresa constante. Quando ela o repeliu, sentiu-se, vazio, solitário e velho.

Agora, ia encontrá-la de novo, e seu papel era o do justiceiro que ia julgar-lhe o marido! Como a vida era uma irrisão constante!

Aquela idéia não causou o mínimo prazer a Oliver. Gerda não escondera nunca a gélida antipatia que tinha pelo homem cujo nome usava. Porque permanecia ligada a ele? Outros, muitos, sentir-se iam bastante felizes se pudessem desposá-la. George Oliver, por exemplo...

       O que ia acontecer era um ponto de interrogação. Perguntava a si próprio como seria recebido e como deve­ria portar-se com ela. Se Sonderfeld fosse preso, Gerda defenderia o marido ou voltar-se-ia contra o homem que lho enviava a julgamento?

O cigarro consumiu-se até lhe queimar os dedos. Um longo tubo de cinza caiu no tampo da secretária. Oliver impeliu-o cuidadosamente para o cinzeiro, apagou a ponta do cigarro e atravessou o corredor, para ir entregar o relatório ao Comissário Distrital.

O Comissário tinha o olhar duro dos políticos e a voz untuosa de um bispo. Parecia um coronel reformado, que, aliás, não era, e falava como um homem de negócios, que realmente era.

- Este relatório - e bateu com a ponta dos dedos nas folhas amassadas - não tem qualquer utilidade! Diz tudo e não diz nada. Curtis espera que haja uma renovação do culto do cargo na região que vigia. Crê que Son­derfeld está ligado a um certo Kumo, que teria sido en­carregado de voltar a lançar esse culto. Esta opinião é confirmada pelo testemunho, bastante confuso, do missio­nário local, Padre não sei quê. Curtis espera graves per­turbações para o dia da Festa do Deus Porco e pede que verifiquemos o passado de Sonderfeld. O que pretende ele com isso?... O passado desse indivíduo foi verificado e tomado a verificar, antes de o mesmo ser aceito como imigrante na Austrália. Se esse passado tem alguma coisa de sujo, isso é com a Imigração e não com os Serviços do Território.

       - De fato - assentiu Oliver, sem entusiasmo.

            A seus pés, acabava de se rasgar um abismo. Se o passado do alemão era duvidoso, também o de Gerda de­via sê-lo. Se Sonderfeld fosse expulso, ela também o seria, e George Oliver teria agido como instrumento de sua per­da. Quando o Comissário lhe entregou novamente o rela­tório, sentiu um alívio enorme.

       - Não quero isso em meus dossiês. Guarde-o, Oli­ver, e faça-me... vejamos, um resumo de meia página, com suas conclusões. E então participaremos. Está bem?

       - Não - disse, peremptório, George Oliver.

       - Não?... Por quê?

       Oliver esticou as mãos e uniu as pontas dos dedos num gesto desaprovador muito clerical.

       - Porque as responsabilidades vêm então para cima de mim e não me pagam para isso. Ao senhor, sim.

            - Não vejo como possa aproveitar isto para ser in­delicado, Oliver.

- Não sou indelicado. Verifico um fato, e já estou farto de servir como bode expiatório. Aqui está o relató­rio. O que vai fazer dele?

       - Mas, Deus do céu, trata-se de sua região!

       - E da sua.

        - Mas você é quem vela por seus assuntos direta­mente! Enfim, o que propõe?

       - Ir lá ver. Minhas conclusões virão depois.

       - Que... Que forças levaria?

       - Dois agentes da polícia e dois carregadores.

       O Comissário pareceu aliviado de um grande peso. Aparentemente, Oliver não temia demasiados aborreci­mentos.

       - Pensa então que não há motivo para inquietações?

       - Não disse isso. Curtis tem lá seu destacamento. Em conjunto, deveremos ser capazes de manter a situa­ção, se necessário.

       - Sim. Você conhece a região, certamente.

       O Comisário estendeu o lábio e franziu o sobrolho. Refletia. Oliver observava-o de um modo divertido e irô­nico. Seu superior estava atormentado.

       - Ah, sim!... E no que diz respeito a Sonderfeld...

       - Sim?

       - Esse relatório está em absoluta contradição com o que sabemos do homem.

       - O que sabemos nós?

       - Enfim, o pessoal da Imigração deve ter verificado os antecedentes dele antes de o aceitar. Quando foi médi­co em Lae, fez excelente trabalho na luta contra a malá­ria. Isso não é grande coisa, evidentemente, mas...

       - Não, de fato.

       - Mas, que diabo, aonde quer chegar?... Condenar o homem sem provas?... Previno-o de que rebentaria uma autêntica bomba, se alguma vez...

- Não condenarei ninguém - replicou Oliver, com brandura. - Vou fazer um inquérito sobre certa situação e mais nada. Antes de ter observado com meus próprios olhos o que há para ver, não lhe posso garantir o que farei, nem mesmo se há alguma coisa a fazer. Isto digo-lhe eu, bem claro, antes de partir. Alguma coisa mais?

       O Comissário fora batido, mas não o admitia.

            - Não, mais nada. Quer partir esta tarde?... Con­tudo, aviso-o, Oliver, se fizer uma confusão, paga-a com a cabeça.         - Virei trazer-lhe numa bandeja...

       George Oliver sorriu com amargura e saiu. A vitória que alcançara tinha um gosto a cinza.

Hora e meia depois encaminhava-se para o norte, através dos primeiros contrafortes, direto para a planta­ção de Sonderfeld. Levaria dois dias para chegar. O men­sageiro tinha feito a caminhada em trinta e três horas, mas George Oliver era obrigado a poupar o coração e as artérias.

Kurt Sonderfeld andava cada vez mais inquieto. Seus planos estavam urdidos desde há muito. Mas quanto mais se aproximava o momento final mais a tensão de seus ner­vos o privava do habitual domínio que possuía sobre si mesmo. Tinha-os preparado no isolamento e na medita­ção, e eis que descobria a sua volta seres desconfiados, se bem que sempre polidos, e insensíveis a sua cortesia plena de encanto.

O Padre Louis havia tomado o café da manhã, almo­çado e jantado. Dormira uma segunda noite na sala de vi­sitas. Partiu na madrugada do dia seguinte. Com muita emoção, evocara a memória de Lansing, partilhando do desgosto de. seus amigos. De resto, recusando-se a qual­quer discussão com Sonderfeld, tinha-se interessado ape­nas pelo jardim de Gerda, pelos mexericos da plantação e pela comédia do recenseamento organizado por Curtis. Sonderfeld tentara mais de uma vez puxar a conversa para a efervescência das tribos, mas o ancião esquivara-se. Pa­recia não querer arriscar-se a outra escaramuça.

O alemão tinha a impressão de que o missionário la­mentava ter-se excedido, mas que não ousava envergo­nhar-se apresentando desculpas. Sua atitude em relação a. Gerda era muito paternal. Desejaria, por acaso, recondu­zi-la ao seio da Igreja? Sonderfeld sentiu um alívio quan­do ele se foi embora.

As maneiras de Curtis inquietavam-no mais. O oficial parecia distante e recusava qualquer convite, como se qui­sesse desligar-se de compromissos com um anfitrião que não lhe agradava. Nem já saia de seu domínio, a Casa da Administração e a aldeia, à maneira de um monge, em seu claustro.

Por sorte, Theodore Nelson não tinha mudado. Esse, ao menos, como britânico avisado que era, evitava meter-se nos negócios dos clientes de sua Companhia. Passeava com Sonderfeld, falava de um modo cheio de volubilidade e competência sobre a profilaxia da peste, sobre as co­lheitas duplas e os problemas do mercado, mas desinte­ressava-se, como um rei, de tudo o mais. Espessas lentes velando uns olhos atentos escondiam o receio que teria sido possível ler-se neles. E também este mostrava mais solicitude para com a jovem, mais atenção por sua con­versa sossegada. Sonderfeld perguntava a si próprio se isto significaria uma nova atração... ele, o marido, ter-­se-ia regozijado com isso, como se se tratasse de uma di­versão útil.

Quanto a Gerda, continuava tão distante e fria como a Lua. Se a morte de Lansing a afetava, nada deixava transparecer e também não mostrava suspeitar do marido. Ocupava-se da casa, tratava das flores e dormia tranqüilamente, na convicção de que Sonderfeld não se sentia ainda preparado para atacar.

Parecia a Sonderfeld que Wee Georgie era o único que não mudara sua atitude para com ele. Intrigante como um bobo, sempre esfarrapado e sempre regurgitando de histórias obscenas, regougando de contentamento quando Sonderfeld, na falta de melhor companhia, se dignava mos­trar algum interesse por seu miserável escravo. Mas, assim que se tocava no assunto N'Daria, o rosto do ébrio despia­-se de toda a expressão.

- Não houve nada, Patrão. Absolutamente nada. Foi duas vezes a casa buscar mantimentos, e pronto. No resto do tempo não deixou o laboratório. É a pura verdade.

            - Mas, de noite, o que fez ela?     

       - O mesmo, Patrão. Esteve sempre na choupana. Não pôs os pés fora da porta.

       Sonderfeld agarrou-o pelo colarinho e sacudiu-o. Os olhos dilataram-se no enorme rosto violáceo.

       - Está mentindo, Georgie.

            - Por que mentiria, Patrão? - pigarreava e parecia sufocar. - Por que teria eu vontade de mentir?

            - Porque esteve sempre bêbado. Porque não sabe o que ela fez.

       - Mesmo que estivesse bêbado, e não estava, as mi­nhas mulheres não andaram dormindo, garanto-lhe. Julga que elas não a teriam visto!... Foram ao jogo-de-pernas, todas as noites, na aldeia, como fazem sempre. A moça não esteve lá. Tê-la-iam visto com certeza. Se não me acredita, vá perguntar-lhes.

            O raciocínio parecia lógico, mas Sonderfeld continua­va céptico.

            - Ninguém falou com ela?... Nem o padre? Curtis? Nelson? Nem minha mulher?

- Como é que poderiam falar-lhe, se ela não saiu do laboratório? A senhora ter-lhe-ia falado quando ela foi buscar a comida? Não me parece. Não se falam há muito tempo, não é verdade? Mas, por que me pergunta quando pode fazê-lo a ela própria... Se julga que estou mentindo, reduza minha ração de álcool... Não posso dizer-lhe mais nada.

- Muito bem, Georgie. - A boca de Sonderfeld aper­tou-se num fino sorriso. - E sabe que eu seria capaz disso, não é verdade? Haveria de gritar de angústia du­rante quarenta e oito horas. Sabe, não é verdade?

Girou nos calcanhares e caminhou em direção do la­boratório. Wee Georgie seguiu-o, com o olhar, lambendo os lábios secos. Acabara de ser submetido à prova. Sua história era verdadeira, e ele não tinha. ido muito longe. Somente havia omitido o que se passara no silêncio da noite... essa noite ao longo da qual suas mulheres e ele próprio, todos tremendo apavorados, se tinham encolhido debaixo dos cobertores, quando ouviram a corrida do ca­suar e o ruído de vozes que vinha do laboratório.

            A meio caminho, Sonderfeld parou para acender um charuto. De súbito, percebeu com espanto que a mão lhe tremia. Jogando fora o fósforo, estendeu o braço a todo o comprimento, com o pulso rígido e os dedos abertos em leque. Um estremecimento que não era capaz de dominar agitava-o todo. Franziu o sobrolho e deixou cair o braço.

Esta fraqueza encheu-o de vergonha. Isso talvez fosse bom para os outros, mas não para Kurt Sonderfeld. Esta­va fatigado, bem entendido. Não tinha tomado na devida conta a tensão imposta por aqueles últimos dias. Mas um leve sedativo havia de bastar para recuperar o domínio dos nervos. Um sedativo ou então...

A simplicidade de seu próprio diagnóstico fê-lo sorrir. Há já bastante tempo que não tinha mulher. Se bem que fosse muito viril, uma atividade absorvente fizera-o negli­genciar as exigências da natureza. A frieza de Gerda aju­dava-o à continência, e o desejo que N'Daria lhe inspira­va era abafado pela necessidade de a manter ansiosa. Ago­ra, esta ia servir-lhe de uma maneira diferente.

Despreocupado, saboreou o charuto, deixando-se inva­dir por outro calor que conhecia muito bem. Trabalhara com afinco. Seus planos estavam minuciosamente prepa­rados. Tinha por adversários a cegueira e a tolice dos ho­mens que desprezava. Mais um pouco de paciência e o êxito viria a seu encontro. Presentemente, desejava repouso e prazer. E ali estava uma mulher pronta a dar-lhe ambas as coisas. Jogando fora o que restava do charuto, Sonder­feld entrou no laboratório.

O primeiro olhar que lançou sobre N'Daria encheu-o de espanto. A moça tinha os olhos inchados, a pele acin­zentada e rugosa. Seus movimentos traduziam uma pro­funda lassidão e, ao cumprimento do plantador, respondeu maquinalmente, com uma voz sem alegria nem ódio, vol­tando em seguida ao trabalho. O alemão recordou como, havia ainda poucos dias, N'Daria era juvenil e ardente. Que diferença!

     Porém, o desejo era nele calmo e forte, e o alemão pensou como poderia fazer sucumbir uma mulher apenas com o toque de sua mão. Com brandura, refreando a im­paciência, pôs-se a acariciá-la. Ela estremeceu e quis afas­tar-se, mas a luta era desigual. Então, uma náusea a to­mou, enquanto ele soltava um riso calmo e a mantinha de encontro a si. Pouco a pouco, o corpo da moça desper­tava. Sentimentos contraditórios se agitavam nela: o hor­ror e o medo misturavam-se ao desejo, à pressa de acabar com tudo aquilo, como se esperasse, finalmente, na sono­lência, fugir a tirania do homem.

De repente, agarrou-se a ele,o apertando-o à maneira indígena, batendo o corpo contra o dele e arrepanhando­-lhe o peito. Ele pegou-lhe e levou-a para o outro comparti­mento. E, então, a jovem revelou-lhe os ritos primitivos e dolorosos da união, como se ele fosse Kumo e ela, bri­lhante mulher-ave, coroada de escaravelhos verdes e de grandes penas escarlates.

Saciado por fim, o alemão ficou estendido junto da moça indígena, invadido pelo doce e triste triunfo que acompanha sempre o amor. O odor da pele negra já não o incomodava. Ele conhecia o destino de todos os conquis­tadores, que, conscientes de sua fraqueza, acabam por se deitar com os vencidos.

Passado um longo período, levantou-se, vestiu-se e entrou no laboratório, sem uma palavra nem um olhar para aquela que acabava de deixar. Estendeu o braço. Agora estava firme como um penedo... Sorriu e disse para si mesmo que, homem razoável, sabia conservar a justa medida entre a disciplina e o prazer.

Kurt Sonderfeld não compreendera que sua força acabava de ceder.

 

       - Aquiles retirou-se para sua tenda! - Sonderfeld sorria indulgente, apontando com o charuto a casa Kiap. - Infelizmente, é demasiado novo para este lugar. Só o que consegue é tornar-se ridículo.

       A tarde avançava - era a tarde em que Oliver saía de Goroka; a tarde do ato de amor com N'Daria.

Kurt Sonderfeld, sentado na varanda, na companhia de Gerda e de Nelson, estava relaxado, expansivo, à von­tade consigo próprio e com o pequeno mundo que o ro­deava. Wee Georgie também ali estava, arrastando os pés, mas ativo. Somente a ausência de Curtis lançava uma sombra nesta euforia.

       Para falar a verdade, coisa de pouca importância. Um rapazelho sem a mínima experiência!

O que irritava Sonderfeld não era, porém, a ausência do oficial. O fato de ele ter recusado atendê-lo é que o alemão considerava uma afronta à sua hospitalidade e aborrecia-o como um ligeiro recuo em sua ascensão vito­riosa.

Gerda e Nelson nada diziam, mas observavam dis­cretamente Sonderfeld, fingindo concentrar a atenção nos copos. Havia nele qualquer coisa de diferente. O quê? Não teria sido possível dizê-lo. O autodomínio absoluto, que era de regra em si, parecia afrouxar; seu riso era mais ruido­so, sua irritação mais visível; os gestos um tanto sacudi­dos. A bela máquina que tão bem girara parecia um pouco desregulada; de quando em quando rangia.

                   Kurt bebeu seu copo, fez sinal a Wee para que o en­chesse de novo e depois virou-se para Nelson.

       - Em que pensa, Nelson, que eu tenha podido ofen­der Curtis?

       O interpelado encolheu os ombros:

       - Não sei. Ele não me disse nada. Tem muito que fazer, bem sabe.

            - Muito que fazer! Muito que fazer! - A voz estava dura de cólera. - Um escriturário de missão faria em meio dia o que esses rapazolas fazem com uma dúzia de policiais e toda essa engrenagem de autoridade militar! Não, acreditem-me, é um dos absurdos do sistema atual isso de mandar garotos, meio treinados, meio instruídos, para regiões isoladas. Como querem que façam um traba­lho de homens? Não estão preparados para isso, nem fí­sica nem mentalmente. Em primeiro lugar, não é são vi­ver só naquela idade. E, depois, investem-nos de uma autoridade acima de suas forças. Não é de admirar que se tornem impertinentes!... É uma coisa penosa para eles e para quem é obrigado a tratar com eles.

       Wee Georgie colocou o copo, de novo cheio, diante do patrão. Sonderfeld bebeu de um trago até o meio. Ger­da olhava-o, inquieta. Nunca o vira beber tão imoderadamente. Sabia manejá-lo em seu estado normal. Até que ponto, porém, ele se tornaria perigoso sob o império do álcool era o que, naquele momento, perguntava a si pró­pria. Estremeceu e olhou Nelson com ar interrogador. Um pequeno movimento com a mão significou que ele nada podia fazer.

       Nesse instante, os olhos de Wee Georgie cruzaram-se com os de Gerda. Permanecia por trás da cadeira de Son­derfeld e, com o polegar, indicava a direção da casa Kiap. O sentido do gesto era claro: tornava-se necessário ir bus­car Curtis.

       Sonderfeld, com as sobrancelhas carregadas, ti­rava a cinta de outro charuto, cuja extremidade costuma­va cortar com um cuidado ritual. As mãos agora tremiam­ lhe também e manobrava desajeitadamente o pequeno ins­trumento pontiagudo.

       Gerda levantou-se. Disfarçando sua ansiedade com um sorriso frio, dirigiu-se a Theodore Nelson:

       - Se Kurt está vendo bem as coisas, o que é muito possível, mais vale sermos gentis com esse rapaz. Nós é que somos os mais velhos. Compete- nos dar o primeiro passo. Vou eu mesma falar com Curtis.

       Sonderfeld lançou-lhe um olhar agudo. Depois, o rosto abriu-se num sorriso de tolerante aprovação.

- Palavra de honra, se ele quiser vir, estou pronto a acolhê-lo e a esquecer suas desatenções! Minha mulher tem muitos defeitos, Nelson, mas possui também todos os talentos de um diplomata. Vá, minha querida, e encante esse Aquiles para o fazer sair da tenda. Georgie, drinques para o Sr. Nelson e para mim.

            Gerda alisou o vestido, deu uma penteada no cabelo e desceu rapidamente até à casa Kiap.

            Lee Curtis acolheu-a com surpresa e prazer. Levou-a para a fresca penumbra do campartimento e disse-lhe:

            - Gerda!... Sua visita é o instante mais agradável de minha vida aqui. Venha, sente-se, esteja à vontade.

O tom caloroso deste acolhimento tocou-a. Aceitou a cadeira de encosto enquanto ele se instalou sobre o fun­do de uma caixa. Via-se que estava encantada com aque­la amabilidade.

- Desejava muito vê-la, Gerda, mas tinha de passar sem isso. Não sei esconder lá muito bem meus sentimen­tos e... assim é mais prudente.

            - Concordo. Mas agora sou eu que lhe peço que ve­nha.

            - Por quê?

            - Porque acho meu marido muito irritável. Não consegue manter-se sossegado e está bebendo de um modo que me inquieta.

- Oh! - A decepção do jovem era tão visível que, inclinando-se para a frente, Gerda pôs sua mão sobre a dele.

- Esta não é a única razão, acredite. Preciso de você também. Sua companhia deixa-me muito contente. E, se você estivesse, lá, não teria medo.

- Medo de quê?

- Não sei e gostaria bem de saber. Kurt está muda­do... Vi-o sempre tão calmo, tão senhor de si! Nada pa­recia atingi-lo. Agora, está inquieto, agitado. Fala alto e nem sequer mede as palavras. Eu...

       - Ele tem medo?!

       - Talvez, mas não mais do que eu. Conheço-o muito bem! Sei de que crueldades é capaz.

       - Foi cruel para você?

      - Não, mas há mais. Estou tão isolada! Quando a Festa do Deus Porco começar, você nos deixará e ficarei inteiramente só. Se Kurt tiver êxito em seus projetos lou­cos, o que se passará?

       - Velarei por você, Gerda. Prometo-lhe.

       Estava muito perto dela, com os braços a enlaçarem­-lhe os ombros, com os lábios junto de seu rosto. Então, ergueu- a, segurou-a de encontro a si e beijou-lhe a boca, puxando a cabeça dela desajeitadamente para o ombro. Ela fez-se terna, mas sem nenhum ardor, e desviou-se em seguida.

- Amo-a, Gerda. - E tentou beijá-la de novo. ­Não permitirei que lhe aconteça seja o que for. Nesta al­tura, já possuímos mais do que uma razão para prender seu marido, assim que George Oliver chegue.

As palavras saltaram-lhe e só depois se lembrou de que prometera segredo, a este respeito, ao Padre Louis e a Nelson. Gerda empalideceu.

       - George Oliver?

       - Sim. O Adjunto do Comissário Distrital, em Go­roka. É meu chefe. Estou quebrando um segredo ao re­velar sua vinda, mas não creio que possa haver inconve­niente em dizê-lo a você. Oliver já deve estar a caminho a estas horas. O que tem? Não se sente bem?

- Não... Mas, não é nada... Deixe-me sentar... Dê-me um copo de água.

Instalou-a na cadeira de repouso e foi buscar água no recipiente de lona pendurado perto da entrada. Gerda fechou as olhos, tentando pôr um pouco de ordem nos pensamentos.

“George Oliver... Seu único amor! Um momento ar­dente no decorrer daqueles anos estéreis. E eis que ele voltava... não por ela, mas contra seu marido! Os olhos melancólicos, a boca dolorosa, os ombros vergados... Gerda não conseguira esquecê-lo.”

       - Beba, que vai sentir-se melhor.

       Curtis estava ajoelhado à sua frente, oferecendo-lhe o copo como uma prenda de amor. Ela bebia, em peque­nos goles.

       - Obrigada. Já me sinto melhor.

Ele recebeu o copo de suas mãos e afastou-se um pouco para o colocar em cima da mesa. Quando se voltou, Gerda já estava de pé, arranjando o vestido e os cabelos, com um movimento muito feminino. Foi então que lhe re­velou toda a verdade:

- Lee, o que me disse lisonjeia-me muito, mas, acre­dite, nunca poderei pertencer-lhe. Em primeiro lugar, sou muito velha para você. Depois, sei que nunca o tornaria feliz. Não, por favor, ouça-me. - Fechou-lhe a boca com sua mão fina. - Tenho conhecido muitos homens. Estou casada com um ser que odeio. O peso de tal passado es­magá-lo-ia e você acabaria por me odiar. Além disso... Além disso, amo George Oliver.

O oficial permaneceu por algum tempo, diante dela, aniquilado, com os dedos arranhando maquinalmente a cos­tura das calças. Quando, finalmente, recuperou o ânimo, fa­lou-lhe com um sorriso triste.

            - Pois bem, é o destino! Espero agüentar, com o tempo. Agora queira aguardar que me ponha bonito para ir embebedar-me com o uísque de seu marido.

       Lavou o rosto, penteou-se, mudou de camisa e aper­tou o cinturão. Depois, subiu com ela até à varanda, no estado de um homem que desperta após um pesadelo.

       Mais uma vez se jantava à luz de velas na grande sala aberta para as montanhas mergulhadas em sombra, enquanto os kundus batiam no vale seu ritmo, estrondoso ou débil, segundo o momento.

Mais uma vez os convivas saboreavam o aroma dos vinhos, a delicadeza das iguarias, o perfume das flores e o jogo das luzes nos cristais e nas pratas.

Mas agora havia fantasmas sentados à mesa do ban­quete: Max Lansing, lamentoso, exigente, decepcionado; o Padre Louis interpretando com a sua voz esganiçada os sinais e as presságios; Kumo, o feiticeiro, monstruoso sím­bolo do Mal naquelas terras. Todos estes fantasmas ali se encontravam. Impossível abafar-lhes as vozes.

A conversa arrastava-se penosamente de conviva para conviva. Morria, mas ganhava de novo interesse, quando Sonderfeld, vermelho e volúvel, lançava um assunto novo ou retomava um tema já tratado. Tendo bebido sem parar desde o fim da tarde, mostrava-se alternadamente li­cencioso, provocante e hilário.

Gerda, chocada, mas sem nada poder fazer, receava muito irritá-lo e tentava esconder sua vergonha. Theodo­re Nelson, de olhos pregados no prato, fazia em vão todo o possível por escapar às invectivas de seu anfitrião, que, espicaçando-o com um prazer perverso, o levou em breve a um gaguejar confuso.

            Foi, em seguida, a vez de Curtis. O alemão atacou-o com uma grossa voz de borracho bem disposto:

- Vamos lá, Curtis, estamos entre amigos. Podemos ser francos. Diga-me: nunca foi tentado pelas mulheres da aldeia?

- Peço-lhe o favor...

- Meu caro, nada de melindres, isso não lhe fica bem. Nosso amigo Curtis é jovem e vive sozinho. Penso que todos acham muito natural a satisfação da carne... E então?

       Curtis, rubro de cólera, dominava-se com dificuldade.

       - Até agora, imagine o senhor, isso não me interes­sou.

- Contudo, há coisinhas que não são nada más. Se lhes raspar o unto de porco, se lhes despiolhar a carapi­nha e depois lhes der uma boa esfregadela com água e sa­bão, juro que fariam honra a sua cama, tanto como... Gerda, por exemplo!

- Eu... penso que... - Nelson, muito contra sua vontade, via-se obrigado a protestar. Curtis interrompeu-o com um gesto.

- Se quiser deixar sua mulher fora desta conversa, responderei a sua pergunta, Sonderfeld.

- Bem! Desculpe-me se impliquei com você. - O plantador fazia com uma das mãos um gesto de indolên­cia. - Eu falava de Gerda por comparação. É muito bo­nita, não é verdade? Creio que os homens a acham apetecível, como eu, aliás, outrora. Mas não falemos mais nisso. Admite que, em determinadas circunstâncias, a pele negra possa ser desejável?

       - É possível.

       - Para você?

       - Tenho minhas dúvidas.


       - E, todavia, em alguns de seus colegas houve... di­gamos, erros, não é assim?

       - Que eu saiba, não.

       - Mas... - A voz de Sonderfeld, voluntariamente contida, destilava os insultos. - É tão novo, Curtis, e tem tão pouca experiência! Como saber o que lhe reservam os anos?... Julga que não chegará um dia em que se aborreça dos frutos de estufa, preferindo a vinha silvestre ou os pomos de Sodoma?... O que diria se lhe confessasse que já os provei e que os achei bons?

       - Lembrar-lhe-ia - declarou bruscamente Curtis ­- que a lei do território proíbe coabitar com as mulheres indígenas. Lembrar-lhe-ia também que bebeu demais e que são horas de ir cozer sua bebedeira.

       - Gott in Himmel! - O punho fechado de Sonder­feld bateu com tal violência na mesa que se partiram al­guns vidros e as pratas chocaram-se umas nas outras, à luz dançante das velas. - Em minha própria mesa... re­ceber lições de um colegial!

- Não fui eu que insisti para vir e, com certeza, não esperava ser insultado.

       - Reconheço-o.

       A cólera do plantador pareceu desvanecer-se tão de­pressa como havia rebentado. Seu rosto e maneiras mos­traram então um ar de aprovação contrita. Sem se preo­cupar com os restos que juncavam a mesa, inclinou-se para a frente e tomou a atitude do grande senhor que de­bita um elogio condescendente.

- Fique sabendo, Curtis, que gosto bastante de você. É mais inteligente do que eu pensava e coragem não lhe falta. Mas não tem a impressão de estar desperdiçando sua vida nesta tarefa rotineira que lhe mandam reali­zar?... Servindo de árbitro em querelas pueris, ouvindo mentiras, e escrevendo relatórios que ninguém lê?

       - De modo nenhum.

- Mas a está estragando, e quem lhe diz sou eu! - Com um movimento pouco seguro, voltou-se na cadeira e estendeu o braço para a janela, que emoldurava um pe­daço de céu estrelada e a barreira negra das montanhas. - Além, esconde-se a última região desconhecida dos ho­mens. Para lá daquelas montanhas, há riquezas de que não se faz idéia: ouro, petróleo, mão-de-obra capaz de trans­formar esta terra num paraíso. Nos vales, um milhão de homens espera um chefe e dez mil tambores aguardam a ordem de atacar a marcha do conquistador. E você, de que dispõe? De dez mil europeus e de um pedaço de papel... a Carta das Nações Unidas. Abra os olhos, meu rapaz!... Qual é o bom caminho, o seu ou o meu?

       - E qual é o seu, Sonderfeld?

       A pergunta foi feita com voz calma e desprovida de malícia, mas seu efeito foi o de uma bomba.

       A atitude majestosa de Sonderfeld mudou instantaneamente. O sorriso e o olhar encheram-se de manhã e desconfiança, como os de um homem cercado.

Oh! Não me tome por imbecil! Por que razão iria desvendar meu sonho aos cegos e gritar minha mensagem aos surdos? Trate de voltar para seu pouso, pegue na ca­neta e continue a garatujar suas notas, esperando o raio que vai cair sobre vocês.

Levantou-se pesadamente da cadeira e dirigiu-se cambaleando para a porta. Quando a atingiu, voltou-se. Seu rosto estava desfigurado, da boca escorria-lhe baba, veios de sangue riscavam-lhe os olhos.

- Os homens-casuares percorrem os vales - decla­rou numa voz que a excitação e o álcool tornavam rouca. - Correm de aldeia em aldeia, levando a nova de um gran­de acontecimento. Um nome é pronunciado, o qual soa mais alto que os tambores. Um chefe lhes está prometido. Ele levantará o tributo nos vales. Voará desde o Sepik até ao golfo de Huon. Esse chefe é... é...

A voz quebrou-se. De repente, pareceu compreender onde estava e o que dizia. Viram-no então recuperar pouco a pouco seu auto-domínio, sacudir a cabeça para dissipar os vapores do álcool e, finalmente, encobrir suas feições congestionadas sob a máscara de um sorriso vago. Encos­tou-se à ombreira da porta e olhou-os, aos três, com uma expressão em que se podia descobrir um pouco de sua an­tiga ironia. Depois, feita uma breve saudação, desapare­ceu.

Imóveis, ouviram-no descer com passadas irregulares os degraus da varanda e depois afastar-se pelo caminho que levava ao laboratório.

       Como se um sinal tivesse sido dado, olharam-se com alívio e horror. Nos semblantes de todos lia-se o mesmo diagnóstico. Gerda tapou o rosto com as mãos, soluçando. Lee Curtis tentava consolá-la, batendo-lhe levemente no ombro. Com um gesto, ordenou a Nelson que fosse para a varanda.

O homenzinho hesitou um pouco, como se tivesse medo de ficar sozinho; depois, saiu limpando os óculos. Ansioso, perscrutou a sombra à medida que avançava, parecendo recear que Sonderfeld estivesse ali acocorado, prestes a saltar-lhe em cima.

Gerda recompunha-se com dificuldade. Aceitou o lenço de Curtis para enxugar os alhos e o cigarro que ele lhe estendia. Depois, fumou em silêncio até o momento em que suas mãos deixaram de tremer. Começava a dominar os nervos. Voltou-se então para o companheiro.

            - O que devo fazer, Lee? - perguntou, num tom patético. - Diga-me, por favor!

            - Esperar. Mais nada por agora. Esperar que Geor­ge Oliver chegue.

            - Mas Kurt?... Bem o viu!... Não...

            - Estava embriagado. Amanhã, já terá as idéias mais claras.

            - Não, não estava embriagado. Enlouqueceu. Sabe-o tão bem como eu.

            - Ninguém aqui quererá testemunhar tal coisa, Gerda.

- O que fazer, então? - Era um grito de terror, arrancado pela brusca irrupção de recordações que ela su­punha enterradas para sempre. O campo de Rehmsdorf, as câmaras de gás, tormentos infinitos e seres que tinham perdido tudo, até o próprio nome.

- Ainda não se pode fazer nada. Nelson e eu dormi­mos aqui esta noite. Basta que levante a voz e acorrere­mos imediatamente. De resto, é muito possível que seu marido fique chocando a bebedeira no laboratório.

De súbito, pareceu a Gerda que o oficial se transfor­mara numa nova criatura, com a têmpera do aço, a que o fogo e a água dão sua dureza. As doces linhas da juven­tude tinham-se desvanecido naquele rosto. A boca e o olhar ganharam rispidez num rosto de músculos tensos. O mes­mo devia ter acontecido a George ali ver no dia em que as ilusões da primavera lhe abandonaram o coração para lá deixarem apenas a força.

Então, aproximou-se dele, tomou este novo rosto en­tre as mãos e beijou-o com ternura nos lábios. Lee aper­cebeu-se de que era como se ela beijasse outro, mas não lhe levou a mal. Depois, amparou-a até à varanda, onde Nelson os esperava.

Sob a manha do homem de negócios e o brilhante ver­niz do viajante, Nelson, tão atarracado como míope, dis­simulava uma coragem menos do que média. Em nome de sua Companhia, mostrava-se duro quando negociava, indo até ao ponto de, se as circunstâncias se ofereciam, tirar proveito de uma aventura galante. Tinha um cérebro que era um autêntico fichário de toda a gente suscetível de lhe ser útil. Mostrava-se espirituoso quando lhe convinha e até exibia um certo encanto, se isso fosse necessário para seu conforto. Este viajante infatigável seguia apenas uma estrela, sem perceber que era de cartão pintado e estava pregada a seu umbigo. A alma de Theodore Nelson era tão vazia como uma noz de côco.

Este homem aliara-se a Curtis porque, apesar de sua juventude, o oficial de patrulha estava do lado da força, mas agora que o tratado parecia exigir ação colaborante, o homenzinho estava em ânsias para o denunciar o mais depressa possível. E eis que, sentado ali na obscuridade e, ouvindo os tambores, acabara de achar uma fórmula bas­tante satisfatória.

            - Falou à Sra. Sonderfeld de nossas... combinações? - perguntou, cauteloso.      .

            - Da vinda de Oliver?... Sim, falei. Não havia razão para lhe ocultar.

            - Bem. Quando chegará? 

            - Talvez amanhã, no princípio da noite. Em todo o caso, depois de amanhã sem falta.

            - Pensa que trará um destacamento?

            - É muito possível. Tudo depende do que houver em Goroka. Por que faz essa pergunta?

       - Porque meu programa de trabalho, como sabe, está muito sobrecarregado. Tenho de visitar ainda muitos lu­gares antes de voltar a Sydney, onde devo tomar o barco para Colombo.

       - E então?

       O tom nada tinha de encorajador, mas Theodore Nel­son seguia sua idéia.

- Pois bem, creio que já não lhe sou de qualquer utilidade aqui. Pensei, por conseguinte... que, após a che­gada de Oliver, poderia dar- me dois rapazes da polícia para    me servirem de escolta até Goroka. Partiria ao alvorecer.

       - Nada o impede de partir já esta noite.

       - Oh! Não há assim essa pressa toda! Mas, de fato, se pensa que...

- Quer saber o que penso, Nelson? - A voz de Cur­tis tornara-se cortante de cólera e desprezo. - Penso que você é um medroso. Penso também que partirá quando desejar... mas sozinho.

       - Lembro-lhe de que tem obrigação de me proteger. Foi mesmo a palavra que a Companhia...

       - Você está protegido. Dispõe de uma boa poltrona, tem no estômago um excelente jantar e uísque. O que mais quer?

- Há barulho no ar. Se não pode garantir minha se­gurança, exijo que me mande de volta sob escolta.

- Não tenho escolta para lhe fornecer. De resto, as sendas do sul são tão seguras como as ruas de Londres. Mais ainda, até. As confusões são para o norte, a vinte ou trinta quilômetros daqui. Você vai para o outro lado. Dou-­lhe rações para dois dias. Fica nas casas da Administração. É o que posso fazer. É pegar ou largar.

Antes que Nelson tivesse podido abrir a boca de novo, os tambores calaram-se subitamente. O silêncio brutal pa­receu tão solene e autoritário como um ruído de trombetas. Com todos os sentidos alerta, dirigiram o olhar para o fundo do vale. Mas nenhum movimento ali se descobria. As árvores e até os próprios bambus, tão leves, estavam eretos no ar calmo. De súbito, ao longe, distintamente, ouviu-se a corrida do casuar, que se aproximava.

       - O que é isto? - sussurrou Gerda ao ouvido de Curtis.

       - É o casuar.

       - Kumo?

       - Provavelmente.

       - O que está dizendo... Kumo! - A voz de Nelson estava rouca de apreensão. - Um homem não consegue correr assim, é impossível.

       - Bem sei.

       - Então, por que diabo... ?

       Curtis continuou silencioso, por momentos, meditando na resposta a dar. Depois, falou compassada e calmamente:

- Não posso dizer-lhes mais do que sei. Os indígenas acreditam firmemente que certos feiticeiros têm o poder de se transformar nesse animal, circulando de aldeia em aldeia com uma velocidade que nenhum homem seria ca­paz de atingir. Existem relatórios feitos por gente digna de fé: velhos colonos, missionários. Afirmam todos que isso acontece. E, de resto, nunca ouvi que alguém negas­se o fenômeno de um modo absoluto. Pessoalmente, só posso dizer-lhes duas coisas. Primeiro, o ruído que estão ouvindo é de fato o do casuar, quando corre. Depois, o casuar jamais sai de noite.

       - Mas, então, o que significa isto?

       - Não sei. E quase desejo ir ver.

       - Não! Suplico-lhe!

       Gerda aproximou-se mais dele e o outro interpelou-o:

       - Seu dever é proteger-nos.

       - Oh! Nelson, basta! - ripostou Curtis, com impa­ciência.

            Mas, na realidade, hesitou um instante. Depois, disse para consigo mesmo que não havia vantagem, antes talvez mesmo graves inconvenientes, em provocar um encontro com o feiticeiro. O que lhe diria?... O homem que devia ser abatido era Sonderfeld, e esse estava-lhe quase nas mãos.

       O oficial recostou-se na cadeira, acendeu um cigarro, ofereceu outro a Gerda e ficou escutando o ruído compas­sado da grande ave áptera, que jamais circula de noite.

No limite da aldeia, o ruído cessou. Durante cerca de vinte minutos, reinou silêncio, apenas quebrado pelo cre­pitar da misteriosa vida noturna e pelas poucas palavras trocadas naquela varanda. De repente, um clamor de triun­fo elevou-se da aldeia e o eco repercutiu-se pelo vale ador­mecido. Depois, os tambores voltaram a bater, e cânticos de um ritmo novo, selvagem, exultante rolaram como um trovão infindo pelo flanco da montanha.

       - Começam os problemas! - exclamou Curtis. ­Para a cama!... Nelson, nós vamos para o quarto de vi­sitas. De quatro em quatro horas, cada um de nós faz o turno de vigia. Se Gerda chamar, acorreremos logo.

       - Não pode dar-me ordens - replicou Nelson, colé­rico.

       - Dou-as e você as executa, senão vai passar a noite sozinho na casa Kiap. Vamos, Gerda! Já passou por muita coisa hoje. Amanhã, tudo lhe há-de parecer menos terrí­vel.

       Entraram em casa. Nelson, atrás deles, parecia um cachorro assustado. Na porta de seu quarto, Gerda beijou Curtis e desapareceu. No quarto de hóspedes, o oficial, deixando Nelson dormir as primeiras horas da noite, es­tendeu-se vestido na poltrona.

Às duas da madrugada, Sonderfeld não voltara ainda. Curtis acordou Nelson e colocou-o, de muito mau humor, na poltrona, enquanto ele próprio iniciava suas horas de um repouso que não podia deixar de ser agitado.

Mas Nelson queria dormir mais. Cochilava por ins­tantes e, por fim, perdeu inteiramente a consciência, não se lembrando mais de acordar o companheiro para fazer a troca.

De manhã, souberam que Sonderfeld tinha partido com N'Daria, e que toda a aldeia se pusera a caminho para a Festa do Deus Porco.

 

Saíram do vale como um exército que se põe em mar­cha.

       Com a cabeça alteada por penachos pintados com cores berrantes e tendo por armas machados de pedra, maças, arcos e flechas, os guerreiros avançavam ao ritmo dos negros kundus. Marchando sempre, soltavam gritos ululantes que, por instantes, abafavam os tambores de pele de serpente. E os ecos, repetidos pelas montanhas, assemelhavam-se a uma franja ondulando de cume em cume.

Atrás dos guerreiros vinham as mulheres solteiras, vestidas com magnificência. Seu sangue batia ao ritmo dos kundus. Sua carne estava excitada pela presença dos corpos masculinos, que marchavam balouçando-se.

Entre estes dois grupos apareciam os porcos, uns dis­postos em compridas varas, outros atados e conduzidos por garotos barulhentos que os empurravam para que fos­sem mais depressa. Os grunhidos dos animais e os gri­tos agudos dos garotos acrescentavam um timbre novo à selvagem orquestração do triunfo tribal.

As casadas fechavam a marcha, velhas e novas, cur­vadas sob o peso dos filhos e de cestos enormes cheios de taro, de papaias e bananas. Também elas levavam, com uma elegância desusada, cintos franzidos feitos de folhas frescas de taro e colares de caracóis verdes. Riam, taga­relavam e associavam-se de quando em quando, ofegan­tes, ao canto geral. Para elas, a Festa do Deus Porco re­presentava um intervalo na escravidão doméstica em que se transformava sua vida logo que deixavam o cinto de bambu e os ornamentos de amor da última noite de kunande .

O cortejo ondulava através dos desfiladeiros como uma longa serpente rebrilhando. No momento em que saindo da floresta, atingiu os grandes espaços de erva kunai e se elevou, ao som dos tambores, para os últimos picos das montanhas, formou uma falange compacta e ondulante. A tribo era a última a dirigir-se à assembléia. Essa entrada espetacular na grande cratera verde do vale de Lahgi constituía uma manifestação de orgulho.

No cimo da última crista, os negros pararam e fica­ram olhando a seus pés a farta concha que era o berço de sua raça. Lá embaixo estendia-se a aldeia original, duas vezes maior do que antes, povoada de novas choupanas e de enormes casas kunandes para a recepção dos que che­gavam. Avistavam-se as grandes culturas de taro, que fos­sos de irrigação dividiam numa rede apertada. Via-se ainda longo caminho, que ia até ao terreno das danças, e, numa das extremidades, uma grande vedação feita com paus de casuarina, destinada aos porcos que seriam abatidos na hora da festa.

A aldeia era um vespeiro de silhuetas pintadas e de altos penachos. A atmosfera, a partir de certa altura, na descida, espessava-se com a fumaça de uma centena de fo­gueiras, à qual vinha misturar-se, indistinto, o zumbido da multidão.

Um pequeno grupo de anciãos dirigia-se com soleni­dade ao encontro dos caminhantes, para os saudar, rece­bendo os porcos e as raízes de taro que constituíam sua contribuição para a festa.

Quando os esculcas espalhados pela montanha avis­taram a tribo, soltaram um grito enorme, que repercutiu pelos flancos da montanha e despertou outro grito no seio da povoação.

Os Luluais da tribo em marcha deram uma ordem breve. Então, os tocadores de tambor puseram-se em fila, os guerreiros empunharam os machados e as maças, as mulheres ataram melhor os filhos e os cestos, os ho­mens e moças que não eram casados ergueram acima das cabeças as varas que sustentavam os porcos.

Todos esperaram. O silêncio pairou, breve. Mas logo os tambores soaram. E um clamor imenso avançou, como a tempestade, pelas alturas sobranceiras ao vale, enquan­to o exército empenachado se desenrolava, como uma onda multicor, ao longo das encostas verdes, para ir juntar­-se às outras tribos.

Lee Curtis, de pé, na varanda da residência de Son­derfeld, contemplava o vale deserto. A seu lado, Gerda, e depois, Nelson e Wee Georgle. No relvado, os homens, irrepreensivelmente alinhados, esperavam a ordem da partida. Eram três horas da tarde. O silêncio parecia es­tranho e inquietante compando a disciplinada atividade do trabalho diário na plantação. Entre as filas de cafeei­ros agora, nem um só operário. A terra, arroteada de novo, estava deserta. Na aldeia, nem um só penacho de fumaça. Nos relvados e nas sebes não se viam os jardi­neiros tagarelas. Os próprios criados da casa tinham par­tido e esta parecia uma concha vazia num mar de solidão e abandono.

Curtis acabou de fumar, jogou a ponta do cigarro por cima da balaustrada e deu as últimas instruções.

- Não se afastem da casa enquanto Oliver não che­gar. É possivel que seja esta noite, mas, quanto a mim. não deve ser antes do começo do dia. Penso que nada vai acontecer-lhes. Melhor, tenho mesmo certeza. Contudo, não se separem. Entendido?

Seus interlocutores aquiesceram com um sinal de ca­beça. Não havia nada a opor. Curtis prosseguiu com vi­vacidade:

- Nelson, durma aqui. E você também, Georgie. E nem uma gota de álcool, senão acuso-o de fornicar com mulheres indígenas.

       Wee Georgie sorriu, afastando uma madeixa da testa.

       - Deixo-lhes um rifle e cinqüenta cartuchos. É o máximo que posso fazer. Gerda, tome conta disso.

            Nelson corou sob a afronta, mas não disse uma pa­lavra. O oficial continuou:

- Assim que Oliver chegar, previna-o de que fui di­reto ao vale de Lahgi. De passagem, levo o Padre Louis e acampamos no bordo da cratera. Oliver que vá lá jun­tar-se a nós. Se por acaso a bacanal começar mais cedo do que se supõe, diga-lhe que descemos para a aldeia. Entendeu bem?

            - Muito bem - respondeu Gerda. - Nada mais?

       - Nada mais. E não se apoquente. O que acontecer será a trinta quilômetros. E tudo se terá resolvido antes aqui o saberem.      

       - Sr. Curtis... não deseja beber qualquer coisa an­tes da partida? - perguntou Wee Georgie.

- Agora estou de serviço. - Sorriu como um garo­to travesso, ajeitou o talabarte e estendeu a mão a Gerda.

- Sorte, Gerda. E felicidades com Oliver.

            - Agradecida, Lee.

            Passando por Nelson sem corresponder à despedida para a qual este se preparava e depois de uma pancada amigável no ombro de Georgie, o oficial desceu, rápido, os degraus da varanda. Os homens puseram-se em posi­ção de sentido. O sargento negro fez continência, gritou uma ordem, e o pequeno batalhão ultrapassou o atalho - minúsculo exército de mercenários conduzido por um comandante de extrema juventude.

Gerda Sonderfeld seguiu-os com o olhar até terem de­saparecido na curva do vale. Depois, sem uma palavra, entrou em casa e fechou-se no quarto.

Wee Georgie enfiou os polegares no barbante que lhe servia de cinto e inchou a barriga como um sapo satis­feito.

       - O que lhe parece um drinque, Sr. Nelson?

       Georgie Oliver avançava pelas gargantas altas das montanhas do sul. Esperava atingir a plantação de Sonder­feld um pouco antes da meia-noite, caminhando depressa.

Ele tinha censurado muitas vezes os jovens oficiais de patrulha, demonstrando-lhes que, nos trópicos, as mar­chas forçadas eram verdadeira loucura. Se o destaca­mento vai ao encontro de aborrecimentos, convém estar preparado para eles. Os espíritos fatigados cometem erros de discernimento e de tempo mais facilmente; os corpos igualmente fatigados são presa fácil para as infecções pa­rasitárias nos vales selvagens.

George Oliver estava extenuado. O cansaço punha-­lhe chumbo na medula e encharcava-lhe a pele; os pés, inchados, pareciam querer rebentar as batas macias; a garganta estava tão seca como um poço de marga. Enquanto ia avançando, bochechava a boca com água, que tornava a jogar fora. Isto era outra das suas regras: um homem cansado não pode caminhar quando leva líquido chocalhando no estômago.

       Lançou um olhar aos agentes e aos carregadores, que arrastavam os pés, ofegantes com o esforço que tinham de realizar para seguir as passadas largas do chefe. Apli­cava-lhes tanta dureza como a si próprio, mas os pobres­ diabos carregavam os rifles e os sacos, ao passo que seus ombros iam livres.

O pequeno grupo chegou à beira de um regato, na sombra de um vale estreito, e fez uma parada para um breve repouso. Os homens deixaram cair as cargas, en­costaram os rifles em um rochedo e deitaram-se de bar­riga para baixo, para beber água empregando as mãos como conchas.

George Oliver apoiou também as costas em uma ro­cha e acendeu um cigarro.

Tais instantes contavam-se entre os mais felizes de sua existência. Era então senhor de si mesmo e de uma dada situação, liberto da peia dos colegas inexperientes, dos díplomatas e dos políticos. O êxito tinha um sabor muito mais agradável quando o devia apenas a seus es­forços. O próprio fracasso tornava se mais suportável se era causado pela força do destino e não pela estupidez ou pela cegueira dos homens.

Mas um ser humano não pode ficar só. Para Oliver, como para todos, havia de chegar o momento em que as forças em declínio o forçariam a regressar ao conforto da vida em sociedade - em cujo seio ele não tinha lugar - e à doçura das amizades, tão raras na vida solitária. O casamento facilita tais coisas. Traz a afeição de uma companheira, talvez uma família, em qualquer caso um refúgio, o minúsculo e maravilhoso reino do lar.

Assim, por uma inevitável associação, seu pensamen­to retornou a Gerda Sonderfeld. Ele sabia que continua­va a amá-la. Se assim não fosse, ter-se-ia lançado nesta marcha forçada através de uma região desumana?... En­contros mais urgentes, com o Padre Louis ou com Cur­tis, permitiam ainda um prazo razoável. Podia muito bem acampar naquela noite e chegar igualmente a tempo para a cena crítica da Festa do Deus Porco.

Ergueu-se com esforço penoso, gritou uma ordem aos homens, que levantaram as cargas e ajustaram as cor­reias. Tinham na frente a última ascensão e também a mais difícil. Com um sorriso, Oliver apontou para a al­deia que barrava o horizonte.

- Coragem! Vamos mostrar a essa gente das mon­tanhas como se avança!

A marcha recomeçou no mesmo ritmo. A senda ia ficando para trás à medida que as sombras se alongavam e o frio penetrante da montanha os traspassava até aos ossos. Quando atingiram o maciço que marcava como uma sentinela negra o limite do domínio Sonderfeld, Oli­ver deu ordem para nova parada.

No veludo do céu, as estrelas brilhavam tão baixas que pareciam ao alcance da mão, como se fossem frutos de prata. Não havia luar. A atmosfera estava fria como uma lâmina de aço. Oliver estremeceu, surpreendido por esta friagem, após o calor do esforço.

Contentes com o repouso concedido, os homens aco­coraram-se, perguntando se o Kiap os deixaria descansar no vale ou se os forçaria a continuar subindo as monta­nhas sombrias. Viram-no aproximar-se da beira do pla­nalto e contemplar o vale, que a seus pés dormia entre os braços negros dos montes.

Ao primeiro olhar parecia um lago, cuja opacidade hostil se recusasse a refletir as estrelas geladas. Depois, transformava-se na concretização do próprio silêncio, um silêncio imenso, porque os tambores já lá não estavam, e de tudo só ficara um vácuo insondável, do seio do qual até a fumaça nauseabunda das fogueiras indígenas havia desaparecido.

Então, Oliver viu a luz. A minúscula cabeça de um alfinete, muito longe, lá no fim das sombras. Era tão fraca, tão desamparada, que quase o levou às lágrimas; como se fosse uma estrela no fundo de um poço, ou uma derradeira esperança no deserto negro do desespero.

As tribos tinham deixado o vale. Ele chegou mais tarde do que desejara, para manter a autoridade do Kiap. Mas Gerda estava naquela casa. E Oliver perguntou a si próprio, com uma ironia triste, se não chegaria também demasiado tarde para o amor.

Homem de realidades, substituiu este pensamento pe­las informações do relatório de Curtis. Juntando a essas sua experiência pessoal, fez o exame da situação.

       Os indígenas tinham, evidentemente, seguido pela pista que chega ao vale de Lahgi. E, como iniciavam sem­pre a viagem ao romper da manhã, a partida devia ter sido dois dias antes, ou na véspera. Se já não estava ninguém, Sonderfeld também fora, visto que o bom resultado­ dos projetos que imaginara dependia de sua presença na festa. Curtis devia ter-se juntado ao Padre Louis, que o esperava na aldeia. Em casa estariam, pois,Wee Geor­gie, o negociante de café - como, diabo, se chamava ele? - e Gerda. Dois homens e uma mulher esperando o de­senlace de um drama de ambição e feitiço.

E, depois, bolas! Estava dramatizando a situação a seu bel-prazer. Fantasia perigosa, que tinha levado mui­tos outros a levar uma flechada nas tripas ou uma ma­chadada no crânio!

Deu a ordem e os homens reuniram-se para come­çar a descida da longa senda sinuosa que os levava até à minúscula luz, no centro do vale.

Wee Georgie, com uma bebedeira de morte, roncava debaixo da varanda.

Theodore Nelson voltou-se, agitado, na cama, por de ­trás da porta bem aferrolhada. Gerda, sozinha junto da luz, esperava George Oliver.

Ao contrário do que Curtis previra, tinha certeza de que ele chegaria durante a noite. Sua imaginação seguia-o, jornada após jornada, situando-o num ou noutro ponto de­terminado, à hora necessária, de modo que pudesse fazer a última descida antes da meia-noite. Isto era uma lou­cura, ela bem o sabia. Mas outra loucura maior a obce­cava: esperar que o amor tivesse sobrevivido à humilhação que ela infligira àquele homem.

Era uma loucura também, pensar que, depois de tal profanação em nome do amor, ela pudesse ter as alegrias de seus frutos. Amor, realidade tão simples para os ou­tros, mas que para ela era um cume verdadeiramente ina­cessível...

O que lhe restava, além dos sonhos?... Kurt, deli­rando em perseguição de suas quimeras; Curtis, que par­tira; o Padre Louis, que se devia a seu rebanho.

O que restava a Gerda, excetuando a loucura de um sonho, enquanto dormitava, encostada desamparadamente a mesa, à espera de George Oliver?

         Um ruído de passos na varanda despertou-a de sú­bito. Aterrada, saltou da cadeira. Ele estava ali, no en­quadramento da porta!

       - Olá, Gerda!

       - George!... Deus seja louvado!

       Viu-o titubeando de fadiga, de rosto desfeito, olhos injetados, roupa suja de poeira e suor, e, contudo, foi-lhe impossível um movimento para aquele homem. Suas mãos, das quais fugira toda a força, estavam inertes, vazias de reconforto...

Ele olhou-a longamente, curvado ao peso do cansaço. Depois, endireitou-se e falou com uma voz rouca de exaus­tão:

       - Quando partiram as tribos?

       - Esta manhã.

       - Onde está Curtis?

       - Partiu esta tarde. De passagem levava o Padre Louis. Os dois esperam-no junto à cratera.

       - E seu marido?

       - Partiu também.

       - Quando?

       - Esta manhã, cedo. Ele está louco, George. Supomos­ que partiu com o feiticeiro Kumo e...

       - Por ora basta-me saber isso.

       Ficou alguns minutos, de olhos fechados, pesando a situação. Depois, aparentemente satisfeito, deixou que no rosto se lhe espelhasse um reflexo tranqüilo. E, vacilan­do de cansaço, encaminhou-se para uma cadeira, onde se deixou cair pesadamente.

- Não há nada para beber? Já não agüento! - En­treabriu os lábios num magro sorriso, enquanto limpava o rosto com as costas da mão.

- Sessenta quilômetros em trinta e oito horas. Nada mal para um velho soldado.

Gerda caminhou para ele vagarosamente, ficando ao lado da mesa. Queria abraçá-lo e beijá-lo nos lábios, mas não ousou. Aproximando-se, libertou-o do chapéu de mato, desprendeu-lhe o cinturão que sustentava o revólver e ajoelhou-se para desatar as botas que lhe apertavam os pés inchados. Oliver aceitou aquela solicitude com a resignação de um homem. demasiado exausto para se preocupar com qualquer coisa - um homem de respiração ofegante caído sobre a mesa, com a cabeça sobre os bra­ços Gerda pousou a mão tímida sobre seus cabelos gri­salhos cobertos de poeira, mas, se teve consciência do gesto, ele não lhe correspondeu com o mais ligeiro movimento.

Ela então, trouxe uísque e soda. Oliver bebeu de um trago dois copos bem cheios, depois do que esperou em silêncio que a força ilusória do álcool lhe reanimasse o corpo dorido.

       - Obrigado - disse por fim. - Precisava bem disto. - Comeu alguma coisa, George?

- Sim. No caminho. A propósito, disse a meus ho­mens que ficassem nas instalações de seus criados. Está bem?

            - Certamente. Então... fica... aqui? - pergun­tou ela sem esconder a emoção que a fazia tremer.

            Oliver respondeu num tom neutro:

            - Sim. Durmo esta noite e parto de manhã. Só de­pois de amanhã se passará alguma coisa.

            - Tem certeza?

            - Tenho. A grande cerimônia desenrola-se por úl­timo. De começo, há uma preparação ritual.

            - Parece-me que Lee Curtis supunha...

            - Lee Curtis é um novato. Ainda ignora muitas coi­sas.

Em sua voz transparecia uma certa hesitação e, sem esperar que o incitassem, serviu-se mais uma vez, beben­do devagar. Depois, pousou o copo quase vazio sobre a mesa, ergueu os olhos e estudou a jovem, traço por traço, como se a estivesse vendo pela primeira vez.

            “É agora”, disse ela no seu espírito e no seu cora­ção. “É este o momento.”

       Silenciosa e rígida, com os olhos baixados, ela espe­rou. Quando George falou, sua voz parecia vir de uma grande distância.

       - Poderia contar-me toda a história? Os relatórios estão imprecisos.

       Havia, assim, assuntos profissionais a resolver. George Oliver era um bom oficial. Tratava dos negócios de Es­tado, antes de seus interesses particulares.

Gerda não sentiu qualquer alívio, mas sim o sentimen­to gelado de uma dilação. Quando ele acendeu um cigar­ro, viu que as mãos lhe tremiam.

- Tome! - disse ele, sem tom na voz. Impeliu os cigarros na direção da jovem, mas não fez um gesto para acender o que ela tirou.

Gerda começou a fumar lentamente, reunindo as idéias. Então, contou sua história, desde o início, desde o dia em que Sonderfeld era Reinach e ela Gerda Ruden­ko, quando ainda existia um pouco de esperança neste mundo e o amor não se tinha transformado num fantasma evanescente.

Ele escutava-a, fumando ou bebendo o uísque em pe­quenos goles, mas quase todo o tempo de olhos fechados, como se tivesse adormecido. Contudo, não dormia. Quan­do Gerda chegou aos acontecimentos mais recentes­ - N'Daria, Kumo, Lansing, o Padre Louis - e à súbita lou­cura de Sonderfeld durante o jantar, Oliver despertou para fazer perguntas claras, precisas, sobre os pormeno­res mais insignificantes.

      Finalmente, a longa história acabou.

       - É tudo, George. Não tenho mais segredos.

       - Ainda uma pergunta. - Ele calou-se por um longo momento. Depois, uma após outra, deixou cair as palavras, como no jogo se deixam cair os dados no pano verde: - Disse-lhe um dia que a amava. Continuo a amá-la. Se pu­desse libertar-se de Sonderfeld, quereria casar-se comigo?

       De um salto, ela achou-se em seus braços, rindo e cho­rando ao mesmo tempo.

            - Sim! Oh! Sim!... Do fundo do coração!

 

       George Oliver gemia no sono, virava-se e tornava a virar-se na cama. Gerda debruçou-se sobre ele para o observar.

Estava deitado de costas, com uma das mãos sob a cabeça e a outra a arrepanhar convulsivamente a colcha. Tinha as feições tensas, e o peito moreno e nu levantava­-se sob a opressão sufocante do pesadelo.

A piedade, o amor e o desejo ocupavam igual espa­ço no coração da jovem. Sentia impulsos de ir para junto dele, de o acalmar, de se estender a seu lado, até que o sol se mostrasse acima das montanhas inundando o vale. Mas não ousava tocar-lhe.

Um dia, tinha-o despertado de um pesadelo semelhan­te. Então, ele erguera-se de um salto, de olhos desvaira­dos, soltando pragas, enquanto suas mãos abafavam um grito de terror na boca da companheira. Mais tarde, ad­moestara-a ternamente.

            - Nunca faça isso, querida! Jamais volte a me cha­mar de repente, conserve-se fora de meu alcance.

            - Mas por quê? - Por quê? - perguntara-lhe, tão assustada como magoada.

- Porque, minha querida, quando se leva a vida que eu levo, está-se sempre sob a espada de Dâmocles. Em meu caso, é um machado de pedra ou uma enorme maça de cinco quilos. Sobressaltamo-nos ao menor ruído e a rea­ção instintiva é defendermo-nos. Aliás, boa reação. Já me salvou a vida mais de uma vez. Mas - um soriso irônico alegrou-lhe os traços - compreendo que para quem dor­me a nosso lado deva ser uma coisa bem desagradável.

Ela continuava estendida em sua cama, lembrando aquela noite e observando-o com um amor cheio de solicitude. Compreendia agora o que esta terra fazia aos ho­mens. Provocava-lhes úlceras fungóides, tinha infecciosa, baços hipertrofiados ou tifo do mato. Apodrecia-lhes o sangue e expulsava-lhes a juventude do corpo. Originava pesadelos, em que se agitavam monstros empenachados e tambores selvagens... pesadelos que tinham como fim a morte e uma sepultura sem epitáfio.

E, todavia, amavam esta terra. Todos. Com a paixão cheia de vergonha de um amante por uma mulher levia­na ou de um esposo por uma mulher ingrata. Não pos­suiam uma única parcela de solo, ao contrário de Kurt e dos negociantes do Sul, para quem trabalham as serra­rias, as oficinas de pasta para papel, as concessões de ouro, de transportes, as grandes empresas de aterro. Eram os desenraizados, os mal pagos, os esquecidos, os primeiros a desembarcar, os últimos a partir, desprezados pelos ho­mens de negócios, malvistos pelos colonos, sem recebe­rem um só agradecimento das tribos, cujas mulheres e culturas de taro defendiam. Eram funcionários no exílio.

George Oliver continuava a agitar-se em seu pesade­lo, lutando com a almofada, puxando o lençol até ao pes­coço. De repente, a aflição desvaneceu-se e ele distendeu-­se, respirando com regularidade. Parecia agora uma crian­ça adormecida, com uma sombra de sorriso nos lábios.

O coração e os sentidos de Gerda chamavam por aquele homem. Através do espaço, ela se recordou de to­das as noites que passara com ele, e não era esta a mais doce, se bem que fosse apenas preenchida por um repou­so pacífico e fraterno! Depois do beijo apaixonado que se seguira à revelação de seu amor, George Oliver dissera, com ar travesso:

            - É tempo de nos deitarmos, minha querida. Vou tomar um banho e dormir.

            - Bem. E eu vou preparar a cama.

- Oh! Gerda, é que... - Pegou-lhe no queixo e beijou-a levemente. - É que, esta noite, eu não seria ca­paz de fazer honra à própria Rainha de Sabá! Além disso, terei de enfiar um pijama de seu marido...

Gerda tornou-se subitamente grave. Puxou-o para si e pousou lhe a cabeça no ombro, para que ele não pudes­se ler o temor que experimentava ao ser repelida naquele instante supremo.

       - George, gostaria de lhe dizer uma coisa.

       - Mas depressa, por piedade. Já não posso manter-­me em pé.

- Será depressa. Amo-o, querido, tenho necessidade de você desejo-o, mas não quero voltar a pertencer-lhe senão como sua mulher legítima, liberta, enfim, de todas as vergonhas passadas. Será talvez ambição demasiada para uma mulher como eu; todavia, é a minha maior as­piração.

       - Compreendo muito bem, querida. Agora, suplico-lhe deixa-me ir dormir.

       Ela levou-o para o quarto, ajudou-o a despir-se e ocupou-se dele com o coração cheio de uma alegria nunca experimentada.

Na obscuridade fria que precede a aurora, via dor­mir o homem que lhe era querido e refletia nos milagres fabulosos que tinham de se realizar para que fossem ao menos possíveis as primícias de sua felicidade.

Em primeiro lugar, era necessário apaziguar as tri­bos, antes que rebentasse, nos altos vales das montanhas hostis, uma loucura sangrenta. O que, aliás, era fácil ­mas só de falar, quando os funcionários davam as instru­ções em linguagem convencional. Havia dez mil homens na cratera do Lahgi, dez mil guerreiros entregando-se simbolicamente às antigas lutas de sua raça. De hora em hora, aproximava-se o instante do paroxismo, que logo ia acalmar-se no abate ritual de mil porcos. Mas, em se­guida, as tribos, de novo mais ululantes e frenéticas, es­pezinhariam as entranhas espalhadas pelo solo, pintando o corpo de sangue, ao ritmo furioso dos tambores.

Frente a estes dez mil seres tomados de fúria, apenas George Oliver, o Padre Louis, Lee Curtis e um punhado de agentes da polícia da raça motu. Em outros tempos, em outros lugares, era talvez suficiente. George Oliver con­tara a Gerda muitas histórias de lutas tribais que tinham sido sustadas pela presença e pela coragem de um único homem. Mas, agora, por trás daqueles dez mil primitivos escondia-se um homem do século XX ... um demente sem qualquer dúvida, louco de orgulho e de megalomania, mas inteligente e sem escrúpulos. Uma só palavra desse ho­mem, e os cantos transformar-se-iam em gritos bélicos e os guerreiros de faces pintadas calcariam aos pés George Oliver e seu ridículo exército, misturando os despojos com as carcaças fumegantes dos porcos sacrificados.

Perante esta visão, Gerda sentiu o sangue gelar-lhe nas veias e voltou a deitar se estremecendo. Compreen­dia agora os pesadelos de George Oliver e a impossibili­dade de lutar contra seus fantasmas. Depois, surgiu-lhe um novo pensamento na cabeça angustiada. Se as coisas corressem bem, se Oliver conseguisse dominar a loucura desenfreada das tribos, restaria ainda o pior. Restaria Kurt, seu marido pela lei. E, se a lei a libertasse, have­ria uma coisa de que jamais alguém seria capaz de a li­bertar: o ódio que Kurt Sonderfeld nutria, por ela.

Sonderfeld tinha-se atribuído aquela falsa identidade, fazendo de Gerda sua cúmplice. Sabido o fato, expulsá-la-­iam da Commonwealth?... Seria então o fim de seu amor, o fim de sua esperança, e o alemão saborearia sua última e mais doce vingança.

       Coube a Gerda a vez de dar voltas na cama, gemendo nas garras de um pesadelo. George Oliver dormia sosse­gadamente. Em breve, a aurora viria lançar no vale um clarão de incêndio, reaquecendo os lagartos nas rochas e restituindo o canto às aves multicolores abrigadas nas casuarinas.

       Theodore Nelson acordara com uma péssima dispo­sição. Tinha bebido demais, dormido pouco, e as insolên­cias repetidas de Curtis haviam-lhe posto a vaidade em carne viva. E também não podia olhar com simpatia aque­le indivíduo magro e sarcástico que tomava serenamente o pequeno almoço depois de uma noite de amor num leito usurpado. Para expor suas queixas, aproveitou uma ida de Gerda à cozinha.

       - Oliver, tenho um protesto a apresentar.

       - Como? - As sobrancelhas de Oliver levantaram-­se, num arremedo de surpresa divertida.

- Perfeitamente. Pedi a Curtis uma escolta para re­gressar a Goroka. Tentei fazê-lo compreender que tinha obrigações para com minha Companhia, e que a Adminis­tração é responsável por minha segurança. Pois bem, foi grosseiro.

       - Realmente?

       - Foi até ao ponto de me chamar de covarde.

       - Ora bem... e não é?

       Nelson tomou o aspecto de quem acabava de levar em pleno rosto um copo de água gelada. Corou, come­çou a andar de um lado para o outro e tartamudeou, enquanto Oliver o olhava com um desprezo irônico.

- Vocês... vocês... Não tenho de suportar insul­tos de burocratas inchados com sua importância! Assim que regressar, minha Companhia e a Administração vão receber um relatório destes fatos. E arranjarei as coisas de maneira que esse relatório chegue ao Ministério.

- Não se esteja então tão incomodado dessa ma­neira - replicou Oliver, com calma. - Também tenho um relatório a fazer. E também arranjarei as coisas de maneira que esse relatório chegue ao Ministério. Escre­verei nele que ontem à noite, quando cheguei, o senhor dormia de porta fechada à chave, deixando a Sra. Son­derfeld sem proteção. Além disto, chamarei a atenção para o fato de a sua Companhia ser uma das três socie­dades que disputam nestas regiões o mercado do café, e do comportamento de seu representante não honrar a si próprio nem a seus diretores. E falarei de desobediência à autoridade local. No serviço, Sr. Nelson, nem sempre nos entendemos uns com os outros, como bons colegas. Mas, logo que um homenzinho de sua espécie se atreve a pisar-nos, acredite que todos cerramos fileiras. Agora, tome o pequeno almoço e deixe de se fazer de tolo.

Theodore Nelson soltou um grunhido de desconten­tamento raivoso e enfiou o nariz no fruto que tinha na mão.

Nesse momento, Wee Georgie entrou com atrapalha­ção. E ficou sorrindo, estupidamente, a uma boa distân­cia de George Oliver.

- Bom dia, Sr. Oliver. Ontem chegou tarde, não é? Estou desolado por não ter podido recebê-lo.

       Oliver fixou-o com um certo azedume.

       - Você é um bêbado, Georgie.

       - Bem sei, Sr. Oliver, bem sei. - Puxava o cabelo para o lado e nele tudo dizia que dava o que lhe pedissem para estar a um quilômetro dali.      

       - Georgie! - aquela voz não era feita para recon­fortar um bêbado. - Perdôo-lhe por esta vez, pois você é bastante esperto para ter compreendido que nada se pas­saria. Mas esta noite e a de amanhã ficará perto da se­nhora. E não beba. Terá uma ração de meia garrafa e nada mais. O resto estará fechado à chave. E a desobe­diência custar-lhe-á caro, sou eu quem o diz.

Wee Georgie meneou a cabeça com desespero. O assis­tente do Comissário Distrital sabia tornar-se duro quando lhe desobedeciam. Ninguém ainda o vira faltar a sua pro­messa ou proferir uma ameaça em vão.

- Não beberei. Se mentir, pode matar-me - ume­deceu os lábios, tremendo. - Pensa que vai haver confu­são, Sr. Oliver?

- Tenho certeza disso. Grande ou pequena? Isso é o que resta ver. Deixo aqui um homem. Quando descermos ao vale, colocarei outro no cimo da crista do Lahgi. Se nos acontecer alguma coisa, este terá ordem de correr aqui e de levar imediatamente a senhora, o Sr. Nelson e você, para o sul, até Goroka.

            - Meu Deus! - Wee Georgie sentiu um nó na gar­ganta. - As coisas estão nesse ponto?

- Em que ponto, Georgie? - perguntou Gerda, que entrava com alguns pratos nas mãos. Oliver não tentou sequer tranqüilizá-la.

- Digo que amanhã ou depois pode muito bem acon­tecer qualquer coisa. No caso de chegar um mensageiro de minha parte, fujam a toda a pressa. Levem víveres, água, um cobertor. Calcem sapatos de marcha e alcancem Goroka o mais depressa possível. Lá, vão ter com o Co­missário e contem-lhe tudo. Compreendido?

       - Sim.

       - Bem. Estou falando com uma mulher corajosa. - Sorriu e apontou uma cadeira. - Agora, vamos aprovei­tar este nosso pequeno almoço. Vivo já há muito nesta região. Fiquem sabendo que o pior que me aconteceu fo­ram os pesadelos e a febre.

Gerda colocou os pratos na mesa e sentou-se. Wee Georgie palitava os dentes cariados. Theodore Nelson co­mia sem levantar os olhos. A presença de Oliver e sua força davam ânimo a todos.

       Os carregadores esperavam no relvado. Nelson fuma­va com ar infeliz, um cigarro insípido. Wee Georgle en­trava e saía para tirar a mesa. Gerda tinha acompanhado Oliver ao quarto.

O oficial ajustou o talabarte, suspendeu do ombro a correia do estojo do binóculo e enfiou o capacete colonial, com modo prazenteiro, até aos olhos maliciosos. Depois, aproximou-se dela e pegou-lhe nos ombros mantendo-a um pouco afastada de si. Sua voz tornou-se mais grave:

       - Tenho ainda uma coisa a dizer-lhe, Gerda.

       - O que é, George?

       - Sabe que a amo e que quero casar-me com você. É o que mais desejo na vida.

            Os olhos dela brilharam com lágrimas contidas. E esperou o que devia seguir-se.

- Perdoe-me, se tenho de ser brutal. Confesso que a morte de seu marido me encheria de satisfação, porque nada de melhor poderia acontecer-nos.

            - Eu sei.

            - Ora, meu dever consiste em trazê-lo vivo e em fazer com que seja submetido a julgamento, dando-lhe uma oportunidade de provar sua inocência. Esse dever, se pu­der, hei-de cumpri-la.

Gerda quis aproximar-se a fim de que um beijo tra­duzisse as palavras que não conseguia pronunciar, mas ele mantinha-a a distância.

- Sirvo meu país há muito tempo. Tenho sido mal pago. Mas conservei as mãos limpas e assim as conserva­rei até o fim. Compreende-me?

       - Compreendo-o, querido.

       O olhar de Oliver suavizou-se e a boca severa dis­tendeu-se num sorriso triste.

- É possível, e até provável, que não consiga o que desejo. Se for obrigado a anunciar-lhe a morte de seu ma­rido, fique sabendo que não terei tomado a mínima parte nessa morte. Se duvidar de mim em relação a isso um só instante, será a ruína do nosso amor. Sabe disso, não é verdade?

- Sei.

Largou-a então, vendo com remorso que suas mãos crispadas lhe tinham deixado marcas nos braços. Gerda lançou-se ao pescoço dele, beijando-o com paixão. Abra­çada a ele, compreendeu, nesse instante de alívio e triun­fo, que não era pelo marido que temia, mas sim por Oliver.

Este soltou-lhe os braços e saiu.

       Gerda ficou vendo-o descer o caminho, à frente do minúsculo exército, dizendo consigo própria que via par­tir seu primeiro amor e sua última esperança.

Sem se preocupar com aqueles que a rodeavam, caiu em pranto.

 

            Já com a tarde bastante adiantada, Oliver atingiu o cume onde o esperavam Lee Curtis e o Padre Louis.

            Tinham acampado ao pé de uma parede de rocha, ex­posta ao sol, fora da vista das tribos.

Com receio de que as fogueiras os traíssem, só co­miam rações frias e dormiam no chão gelado, apertados uns contra os outros.

Durante todo o dia, uma sentinela, instalada entre duas grandes rochas alongadas, tinha assestado o binó­culo sobre a aldeia, vigiando a preparação ritual da gran­de cerimônia. Ao anoitecer, o catequista do Padre Louis subira até lá, em segredo, para os informar sobre o pro­cedimento dos feiticeiros.

Assim que chegou, Oliver, seguido do Padre e de Cur­tis, dirigiu-se ao posto de observação e olhou, durante al­gum tempo, lá embaixo no vale, as choupanas dispostas entre os retalhos das culturas. A toda a volta da aldeia e ao longo do terreno das danças, haviam sido levantados postes brancos, o que indicava estar próximo o sacrifício dos animais. No centro da aglomeração, duas novas cons­truções, uma grande e outra pequena, acabavam de sur­gir.

A maior era dedicada ao Espírito da Fertilidade: suas madeiras provinham de uma árvore sagrada e foram cor­tadas por um homem a quem o encargo cabia por direito hereditário.

No momento em que a choupana ficara pronta, qua­tro escultores tinham decorado com imagens simbólicas do sexo feminino os paus em que ela assentava. Naquela altura, fora sacrificado um porco e o toucinho pendurado da trave transformara-se numa homenagem ao Espírito que permitia a fecundidade dos porcos, das hortas e das mulheres.

            A pequena choupana, que era circular, constituía a mansão do Espírito Vermelho. O pilar central, emblema fálico, fora trazido de um lugar secreto, onde permanecia enterrado de uma festa a outra.

Diante desta choupana haviam colocado, bem firme no solo, uma grande árvore, cujos ramos, despojados de folhas, ostentavam os toucados de penacho destinados aos homens, no momento da solenidade. Vista a uma certa dis­tância, era um poleiro gigantesco em que tivessem vindo pousar aves-do-paraíso honrando com suas cores brilhan­tes - escarlate e ouro, violeta e esmeralda - a morada do maior de todos os espíritos.

A aldeia em si era toda uma enorme vaga de movi­mento, ruído e cor. Entre as choupanas e os quintais, de­senrolava-se uma procissão contínua de mulheres. Cantan­do e tagarelando, transportavam cargas de taro, de kau­kau e de cachos de bananas douradas, que iam sendo dis­postos em longas filas diante das casas dos espíritos, si­multaneamente com as oferendas das tribos reunidas.

As moças não trabalhavam. Para estas era o tempo dos encontros amorosos, que toda a vida recordariam. Re­brilhantes em suas plumas e ruidosas em seus ornamen­tos de conchas, acompanhadas pelos rapazes, pavoneavam­-se pela aldeia, entregando-se ao jogo do amor onde quer que encontrassem um abrigo.

Sentados ao sol, os fabricantes de toucados davam uma última demão às obras. De parte, sobre os túmulos dos antepassados, recolhidos e escondidos entre as árvores umbrosas, os feiticeiros e os velhos interrogavam os es­píritos sobre o desenrolar da festa.

George Oliver ficou muito tempo observando aquela trama colorida que se fundia numa estranha harmonia, to­talmente nova aos olhos de um branco, porém mais anti­ga do que a pompa com que Salomão acolheu a Rainha de Sabá. Por fim, baixou o binóculo, deixou a sentinela em seu posto e juntou-se aos companheiros.

       - Sentemo-nos. Tenho de lhes falar.

       E virou o polegar indicando a aldeia. Sentaram-se ao sol, para recolher o calor dos últimos raios, porque as pri­meiras sombras desciam já dos cimos. Oliver e Curtis acen­deram cigarros, e o Padre Louis, o cachimbo, expondo-o por momentos ao ar fino e vivo. Foi ele quem iniciou a conversa.

            - Penso que está informado de tudo a respeito de Sonderfeld.

            Oliver inclinou a cabeça:

            - Digamos, de quase tudo. Onde ele está neste momento?

       Curtis fez um gesto na direção do vale:

       - Algures, lá embaixo. Mas ainda ninguém o viu. - E como se pode saber?

            - A gente de minha aldeia também lá está - disse o Padre. - Meu catequista veio aqui ontem à noite e volta hoje de novo. Contou que vira Kumo em conferência com os anciãos e com os outros feiticeiros, mas de N'Daria e de Sonderfeld nem rastros.

       - Tem certeza de que não foi morto?

            - Absoluta. Em primeiro lugar, continuam anuncian­do a vinda do Espírito Vermelho. Depois, estes indivíduos têm o sentido do teatro. Kumo está tratando do efeito es­petacular da cena. Penso que fará aparecer o Espírito Vermelho no momento supremo, isto é, quando os porcos forem chacinados, o que se faz justamente diante da choupana sagrada.

- É então ai que ele se esconde! - exclamou Curtis, dando estalos com os dedos, como se tivesse verificado que acabava de receber uma revelação súbita.

       O Padre Louis meneou, lentamente, a cabeça.

            - Não, meu amigo. Sonderfeld é sabido demais para ir encerrar-se numa gaiola, como um pássaro pronto a deixar-se apanhar. Deve estar escondido em qualquer gru­ta, nas encostas perto do vale, ou talvez em outra aldeia menos importante. Quando estiver tudo pronto, Kumo vai buscá-lo, na calada da noite.

- O ponto importante - disse Curtis, por sua vez - é que Sonderfeld parece continuar senhor da situação. Segundo o rapaz do Padre Louis, uma parte das cerimô­mas está sendo abreviada e outras serão pura e simples­mente suprimidas, para que chegue mais depressa o mo­mento supremo. Isto parece significar que é Sonderfeld quem dirige as operações e não Kumo.      

- E, enquanto tiver a vida do feiticeiro entre as mãos, será ele o senhor.

            - Mas é que já não a tem! - declarou o Padre Louis, com um sorriso de triunfo.

            - O que diz?

            Oliver e Curtis olhavam, estupefatos, para o missio­nário. Tão divertido como um prestidigitador numa festa infantil, o velho sacerdote exibiu o tubo de bambu.

            - Gerda SonderfeId deve ter-lhe dito que encontrara o irmão gêmeo deste tubo no bolso do marido.

            - Com efeito, mas parece que o reverendo lhe tinha recomendado que tomasse a pô-lo no mesmo lugar.

- É certo. Ela ignora porém, que eu substituira o conteúdo por outro pedaço de algodão, absolutamente igual, manchado de saliva, sangue e suco de tabaco.

- Bravo! - exclamou Oliver com um gesto de vitó­ria. - Desta vez, temos o homem.

Deitou a cabeça para trás e riu até às lágrimas. Mas seu olhar cruzou-se com o do Padre Louis, e o riso extin­guiu-se como um fósforo que se apaga. O missionário não ria. Suas pupilas graves e o rosto cansado velavam-se de tristeza perante as loucuras de um mundo em que tinha vivido tanto tempo.

- Conforme diz, meu amigo, nós o temos. Seu poder é agora ilusório, porque nós estamos, por nossa vez, se­nhores da vida de Kumo. Compete-nos, pois, a mim e a você, decidir o que devemos fazer.

       - Eis então o segredo a que se referia!

       Era Curtis quem falava. Oliver parecia entregue a novo e desagradável pensamento.

       - Sim, meu filho, era este o segredo.

       - Mas tinha dito...

       - Disse que desse segredo dependia a vida ou a morte de um homem. - Apontou com o cachimbo para Oliver. - Pergunte-lhe. Logo verá o que ele lhe diz.

            George Oliver ergueu os olhos e aquiesceu com um sinal de cabeça.

            - É verdade.

            - Mas não compreendo...

       - Explique-lhe, Padre.

       O missionário levantou-se penosamente e percorreu alguns metros na encosta virada para o vale. Encostou-se a um rochedo, depois voltou-se para o rapaz, que continua­va atônito.

- Para compreender a gravidade dessa questão, é preciso considerar primeiro que nada podemos empreender antes do grande momento da cerimônia. Se descêssemos agora ao vale, com Oliver e seus homens, se exigissemos a entrega de Sonderfeld e de Kumo, receber-nos-iam com olhares vazios e com murmúrios hostis... e nada conse­guiríamos daquela gente. Podíamos bater a região em to­dos os sentidos, não os encontraríamos e ficariamos de­finitivamente desacreditados.

- Sei disso por experiência. Procurei um dia um ho­mem acusado de um assassínio tribal... e bem podia ter poupado o couro das botas.

- Eis aí - o Padre Louis tirou uma boa fumaça. ­Falemos então do instante em que Kumo proclamar que Sonderfeld é a encarnação do Espírito Vermelho. Lembre-­se de que estarão em plena loucura. Os indígenas, em­briagados pela matança dos porcos, untam a pele de san­gue. O odor do sangue inebria-os e o frenesi assassino das guerras de outrora volta-lhes à memória. Estaremos lá como espectadores, encobertos na sombra. Mas nada ha­verá a fazer, absolutamente nada, até o momento da pro­clamação.

       - E então?

       - Então, um de nós, George Oliver ou eu, avança­rá brandindo este tubo e clamando que Sonderfeld não é o Espírito Vermelho, mas sim um mentiroso e um impos­tor.

       - Não deve bastar gritá-lo - disse Curtis com ar céptico. - Será necessário prová-lo a Kumo.

       - Essa é, com efeito, a dificuldade - admitiu Oli­ver. - Mas nós somos o Kiap e o Padre, dois homens que nunca mentiram às tribos.

       - Suponhamos, portanto - continuou o sacerdote -, que, como espero, consigamos persuadir Kumo. O que acontecerá nesse instante?

       - Nesse instante - respondeu lentamente Curtis ­- alguém será morto.           

            - Sem dúvida alguma. Mas quem?... Kumo ou Son­derfeld ?

            - Ah! - exclamou o oficial num tom despreocupa­do. - Não vejo que...

Seu olhar caiu sobre George Oliver, que parecia no extremo das forças. A evidência fulminou o rapaz como uma bofetada violenta.

- Pobre-diabo! - murmurou. - Pobre-diabo!... Não pode mais!

            - Bem sei - disse o Padre Louis, no mesmo tom. - O amor é um fardo terrível. E o da justiça pesa mais ainda.

Pouco depois do cair da noite, o catequista do Padre Louis, suando de medo e de fadiga, apareceu no cimo da encosta. Os olhos rolavam-lhe comicamente no rosto. Oliver ofereceu-lhe um cigarro e o homem acocorou-se para contar, com uma grande abundância de gestos, meio em pidgin meio em dialeto, o que tinha visto.

Nessa noite, começavam os ritos mágicos. Já tinham trazido os primeiros porcos, para serem sacrificados em honra dos espíritos ancestrais. E com seu sangue pinta­riam os postes e as portas das casas dedicadas aos espí­ritos. O povo comeria aquela carne, mas daria também alguma aos restantes porcos, reservados para o grande sa­crifício.

Depois, toda a gente se sentaria em silêncio à volta das grandes fogueiras. Entrementes, no interior das cons­truções sagradas, os feiticeiros tocariam flauta para que os espíritos compreendessem que eram também convida­dos para a festa. As mulheres, quase em monte umas junto das outras, apertariam os filhos nos braços para os impe­dir de chorar e, se alguma criança se admirasse da sono­ridade das flautas, explicar-lhes-iam que era a voz desses pássaros enormes chamados Ka, que batem as asas na tempestade e no vento.

Após o concerto de flautas, travar-se-ia entre os clãs uma batalha fictícia. Os guerreiros, ululantes, batendo fu­riosamente os pés no chão, fingiriam carregar uns contra os outros, parando no momento do choque. Lembrariam velhas querelas e cobrir-se-iam de insultos, naturalmente, como recordação dos tempos antigos - antes da vinda do homem branco - e das rivalidades sangrentas que então opunham as tribos.

A seguir, todos se sentariam no chão para o festim e comer-se-iam a carne dos porcos, o taro e o kau-kau en­volto em folhas de bananeira e cozido sob a cinza. Canta­riam em coro, narrariam histórias, e os novos fariam ku­nandu e jogo-de-pernas, até que a Lua aparecesse. Os fei­ticeiros conduziriam, naquele momento, a multidão até à frente das cabanas, para que toda a gente ali esperasse a aparição do Espírito Vermelho. As flautas tocariam ao longo da noite. E, ao amanhecer, seria a grande matança dos porcos, seguida da suprema revelação.

O catequista calou-se. Oliver estendeu-lhe outro ci­garro e os quatro homens ficaram fumando em silêncio, apenas quebrado pelos ruídos da noite e pelos murmúrios dos homens que se instalavam para dormir. George Oli­ver falou, enfim:

       - A que horas é a grande matança?

        O catequista levantou os braços para o céu.

       - Amanhã, quando o Sol estiver alto.

       - Em pleno dia! - resmungou Oliver. - Isso compli­ca as coisas.

       - Espere - disse o Padre Louis. - Há um meio.

       Com o cachimbo apontou para os cumes rendilhados que fechavam a leste o círculo das montanhas.

            - Para começar, teremos de nos levantar bem cedo e descrever um meio círculo pelo cume. Dali, desceremos até à base, junto à parede de rocha. Seguindo o regato que corre aí, pode-se descer na erva kunai, sem que nos vejam.

       - E aonde vamos desembocar?

       - A cerca de cem metros da aldeia.

            - Excelente idéia. Curtis dará ordem aos homens para estarem prontos ao alvorecer. Agora, vamos dormir. A jornada de amanhã será dura.

Lee Curtis levantou-se para dar as instruções. O Pa­dre Louis mandou o catequista embora, com uma palmada amigável no ombro. Depois, voltou-se para George Oliver. Este aproximou-se e estendeu a mão.

       - Se não vê inconveniente nisso, Padre, gostaria que me entregasse seu talismã.

       - É mais do que um talismã, meu amigo, é a vida de um homem.      

       - Julga que não o sei?

       - Desejaria ter a certeza de que, nas circunstâncias, o senhor tem plena consciência de seus deveres.

       Qualquer pessoa poderia crer que esta alusão a seus sentimentos irritaria Oliver. Mas ele limitou-se a sorrir com tristeza.

       - E que deveres são esses, Padre?

       - Manter a paz entre as tribos, fazer justiça equita­va, sem a mais leve consideração pessoal.

      - Isso é fácil de dizer! E como saber onde está a justiça?

       - Em caso de dúvida, convém limitar-se à decisão que parecer mais sensata.

       - O que não é grande ajuda para um exame de consciência.

       - Efetivamente. E é por isso que... - O Padre Louis pareceu hesitar. Inclinou-se um pouco, dobrado para trás, e bateu com o cachimbo no salto do sapato, para o despejar. - É por isso que - disse, reerguendo-se ­ ofereço-me para conservar esta... coisa em minha posse, de modo a servir-me dela quando se apresentar a melhor ocasião, assumindo plena responsabilidade das conseqüências.

       - Quer dizer, tornando-se bode expiatório em vez de mim?

       O missionário esboçou seu sorriso habitual, cheio de sabedoria e cansaço... o sorriso de um velho isento de toda a maldade.

       - Sou um pastor de Deus. Não há em minha vida um amor terrestre, não tenho qualquer futuro neste mun­do. O que mais posso desejar do que ser um bode expia­tório para meus irmãos e para meus amigos? E isso não é grande coisa, creia. Estou já demasiado velho para me atormentar, e a misericórdia de Deus não tem limite. Aceita, meu amigo?

       - Não! - disse, bruscamente, Oliver. - Não. Fico­-lhe profundamente reconhecido, mas não posso aceitar. - ­Estendeu de novo a mão e insistiu: - Dê-me isso, Padre Louis.

       Sem mais uma palavra, o padre entregou-lhe o tubo de bambu, o tubo que continha a vida de um homem.

            Oliver contemplou-o por um instante, depois enfiou-o no bolso, com gesto decidido e seguro.

            - Obrigado, Padre.

            O olhar do missionário estava velado de compaixão.

            - É um homem duro, George Oliver. Porém, ainda mais duro para si próprio do que para os outros. Esta noite não o esquecerei em minhas orações.

            - Reze por nós dois, Padre - respondeu, simples­mente, George Oliver.

 

Os feiticeiros tiveram muito que fazer durante toda aquela noite.

Começaram por dançar ao som das flautas diante da choupana do Espirito Vermelho. Untaram as traves com banha e suspenderam, à volta do teto, os maxilares dos animais sacrificados. Este costume significava que os es­píritos dos antepassados recebiam a oferenda e se alimen­tavam dela.

Depois, tiraram de um esconderijo misterioso tabui­nhas de casuarina, com vários buracos abertos e besunta­dos do musgo de que se serviam as mulheres por ocasião do ciclo menstrual. E um homem empoleirado na cabana do Espírito enfiou estas tabuinhas no pau central, que ul­trapassava o teto.

Assim, era simbolizado o ato da união, graças ao qual a semente germina e cresce na matriz da terra, das porcas e das mulheres.

Enquanto se fez isto, os feiticeiros evocaram os es­píritos, as flautas tocaram e as tribos, amendrontadas e impedidas de aparecer, aplicaram o ouvido, no seio da obscuridade fumarenta dos abrigos.

Mais tarde, quando as flautas emudeceram e os pró­prios feiticeiros se retiraram para repousar um pouco e recuperar forças, de um maciço de bambus, na orla da aldeia, emergiu uma sombra.

Era um homem que não usava qualquer ornamento e que, ao avançar, baixava a cabeça, com receio de ser reconhecido por algum par de amorosos retardatários. Mas o apelo das flautas assustou os próprios amante que se retiraram para dormir nos braços uns dos outros até ao nascer do sol, quando os fantasmas da noite já ti­nham fugido todos, varridos pelas grandes folhas da plan­ta sagrada que se chama bombo.

Tendo recuperado a serenidade, a silhueta curvada fez um sinal com a mão e outras duas sombras saíram dos bambus. Também estas se inclinaram para não serem reconhecidas, mas traziam nos braços toucados de festa, pequenas cabaças pintadas e algumas provisões, na expec­tativa de longas horas de espera. Atrás do guia, as som­bras tomaram apressadas o caminho da choupana do Es­pírito Vermelho, enfeitada com os símbolos da cópula e com maxilares de porcos que o vento fazia entrechocar­-se. A cortina de ervas foi levantada, para dar passagem às duas últimas sombras, que cuidadosamente a baixaram de novo. O guia lançou ainda olhares furtivos às outras choupanas, todas dispostas em círculo. Então, completa­mente tranqüilizado pelo silêncio, desapareceu nas trevas.

Kumo, o feiticeiro, tinha realizado a tarefa. O penhor de sua vida estava quase pago. Daí a poucas horas, na manhã clara, o Espírito Vermelho revelar-se-ia ao povo.

Na obscuridade nauseabunda da cabana sagrada, Kurt Sonderfeld e N'Daria uniram-se sem amor. Depois, assim que a primeira claridade do dia penetrou através dos bambus, N'Daria entregou-se ao trabalho de untar com banha o corpo de seu senhor e de lhe pintar o rosto, de maneira a estar preparado para a suprema revelação.

Na aldeia, todos se levantaram quando o sol nasceu. Purgaram-se, vestiram-se para a festa, e as próprias mu­lheres casadas se adornaram, por sua vez, de coroas de penas e de élitros ou com toucados de folhas de batata­-doce, ostentando ainda colares de caracóis verdes ou de conchas orladas de ouro.

Os rapazes e as moças tinham cintos de bambu e de penas de ave-do-paraíso, mas os chefes, os feiticeiros e os bailarinos exibiam autênticas perucas de fibras entrança­das, cobertas de uma goma cor de ouro, rebrilhantes de coleópteros cor de esmeralda e de penachos escarlates, cor de laranja, roxos ou de um verde iridescente.

Quando deram os arranjos por terminados, os homens pegaram em maças de cabo de madeira da árvore sagra­da e que só eram utilizadas no grande sacrifício. As mu­lheres saíram para o sol levando a provisão familiar de taro, kau-kau e bananas, que dispuseram em pequenos montes diante da casa dos espíritos. Aí, acocoraram-se no chão e, de boca aberta perante as queixadas dos porcos, deram cotoveladas umas nas outras indicando os símbolos eróticos que ornamentavam o teto. As crianças, assusta­das com esta agitação, agarravam-se às mães. E cada vez se excitavam mais como barulho, as cores e a tensão ge­ral. Também tinham cintos de folhas e as meninas cin­giam a fronte ou o pescoço com o diamante das mulhe­res, pois assim seus seios cresceriam e elas atingiriam a maturidade rapidamente.

Mas os homens não apareciam ainda. Estavam escon­didos na erva kunai para se revestir dos últimos enfeites, terminar a pintura do rosto e aquecer os tambores desti­nados à dança do Espírito Vermelho. E os feiticeiros da­vam as últimas instruções sobre o ritual da cerimônia.

A reunião começou, encaminhando-se todos para o lo­cal escolhido. À frente, os feiticeiros e os chefes, com as grandes cabeleiras douradas; a seguir, os tocadores dos negros kundus e, atrás, os guerreiros armados de maças, lanças e machados de pedra.

Kumo precedia-os a todos - ele, o maior dos feiti­ceiros, o chefe supremo dos vales secretos, pois tinha aliança com o próprio Espírito Vermelho.

Seu aspecto era imponente e de uma pródiga extra­vagância. O toucado compunha-se de uma tripla coroa, espécie de tiara de penas de ave-do-paraíso, azuis, cor de laranja e escarlates. A peruca caía-lhe quase até ao peito e era ainda acrescida de franjas verdes de que pendiam duas conchas com a forma de um crescente. A fronte apre­sentava-se pintada com um verde mosqueado de amarelo, as faces cobertas de vermelhão, e o ornamento nasal, feito de uma meia-lua de nácar, era do tamanho de um pires. À volta do pescoço, enrolava-se uma pele de opossum. A mão erguida empunhava uma maça verde, com o cabo feito de pau sagrado e a cabeça de obsidiana negra.

Como se fora um símbolo monstruoso e provocante, parava de quando em quando para vigiar as fileiras cer­radas das tribos. Defrontava-as então, brandindo a clava de pedra acima da cabeça e mantendo os homens rígidos e atentos, até que, por fim, seu braço descaísse e os tam­bores, num estrondo de trovão, fizessem rolar um clamor imenso em todo o espaço à volta das montanhas.

       Chegados ao terreno das danças, guiou-os numa carga louca, efetuando-se depois a apresentação preparatória das tribos ao Espírito que ia ser revelado. O feiticeiro caía: de joelhos e todo aquele exército o imitava; erguia-se, ulu­lando, e todos se erguiam num reflexo monstruoso; avan­çava cinco passos e a multidão progredia igualmente. Pros­trava-se de novo, depois mais três passadas, outra genu­flexão, dois passos, um passo... E assim se encontrou a horda diante da cabana do espírito: os tambores rufavam e o canto prosseguia, monótono: “Ho-ho-ho-ho”.

       A meio da descida, George Oliver ouviu-os e olhou na direção do Padre Louis, que vinha mais atrás. O velho sacerdote agitou a mão e gritou, ofegante:

       - Não se preocupe. Ainda não chegou a hora.

       Oliver fez sinal de que tinha ouvido e continuou a descer, demorando-se no matagal espesso, pois ora se pren­dia aos cipós rastejantes ora tropeçava e caía algumas ve­zes até. Por fim, começou a surgir a erva kunai, que pro­tegia a aproximação de Oliver e dos companheiros.

Fortemente enlaçados e escorrendo suor na penumbra da choupana sagrada, Kurt Sonderfeld e N'Daria abando­navam-se à excitação crescente do ritual. Os tambores martelavam o cérebro do alemão e faziam correr fogo em suas artérias. A energia que lhe era natural parecia acumular nele uma reserva explosiva, guardada para o instante da revelação.

De vez em quando, espreitava por entre os bambus. Vendo então os penachos oscilantes por cima dos corpos suados e cobertos de poeira, mais se entontecia com aque­las homenagens, chegando ao ponto de acreditar que eram dispensadas em sua honra - frenesi bárbaro e louco que mais alimentava ainda outra loucura.

Seu corpo estava nu como o de todos, sua cabeleira era ainda maior que a de Kumo e também adornada de penas mais ricas. Tinha o rosto pintado de um ocre bri­lhante, que lhe escorria pelo pescoço até ao peito untado. Peles douradas envolviam-lhe os braços. Nos tornozelos, tilintavam argolas que, a cada passo, se agitavam como se tivessem vida própria. O cinto estava recoberto de conchas orladas de ouro. Na mão, uma enorme queixada de porco.

       N'Daria apresentava-se também com os mais belos ornamentos, como era próprio daquela que ia ser despo­sada pelo Espírito Vermelho. Acocorada perto dele, cobria o alemão com um olhar deslumbrado. No delírio que au­mentava, como uma onda que sobe, ao ritmo dos tambo­res, dos cânticos e das danças, tinha esquecido todos os sofrimentos e todos os terrores.

De súbito, os tambores calaram-se. Os dançarinos fi­caram imóveis e os cantores emudeceram; não havendo mais qualquer ruído, apenas os grunhidos e gritos agudos dos porcos, presos na grande paliçada.

Kumo levantou sua clava e fez um sinal. Duzentos homens saltaram a vedação, prendendo cada animal com um nó corredio. Aberta a barreira, um grito enorme se elevou no momento em que os porcos começaram a ser puxados para fora.

Quando já todos tinham saído, fecharam a vedação e impeliram-nos para o espaço que se conservava livre em frente da casa do Espírito Vermelho.

Mais uma vez Kumo ergueu a maça. Um grupo de guerreiros avançou, estacando a determinada distância. Os homens apertavam violentamente as maças, lambiam os beiços, retesavam os músculos para o assalto final. A at­mosfera estava carregada de eletricidade. Então, a clava de Kumo descreveu um grande arco de círculo e fendeu o crânio do animal mais próximo.

Um grito selvagem se elevou da assembléia. Os guer­reiros saltaram para o meio dos porcos, as maças abate­ram-se abrindo crânios, esmigalhando vértebras. Os ho­mens soltavam urros de alegria, patinhavam no sangue, recolhiam-no a mancheias, atirando-o sobre a multidão desenfreada, que se comprimia à volta do matadouro.

Abatidos todos os animais, amontoaram as carcaças num semicírculo fronteiro à casa sagrada, com os foci­nhos virados nessa direção. Depois, trouxeram novo con­tigente, logo chacinado com o mesmo ritual. E a cerimô­nia repetiu-se até que cerca de um milhar de animais formou uma pirâmide no meio do campo. O ar estava sa­turado do cheiro de sangue, que causaria agonias mortais a quem não estivesse integrado naquele pandemônio. O solo ficou coberto de moscas.

A multidão, entontecida pelo sangue e pelo prazer orgíaco da crueldade, atingira o paroxismo da embria­guez.

       O instante supremo chegara.

       A um sinal de Kumo, caiu o silêncio, e uma expecta­tiva maravilhosa parecia constituir ali a única presença.

De olhos atentos, ansiosos, todos viram a silhueta monstruosa do feiticeiro içar-se até ao vértice da pirâmi­de sangrenta e ficar aí imobilizado, de braços abertos, numa pose de êxtase hierático. Segundos depois, sua voz ecoou sobre a multidão, como um rufar de tambores.

- Eis aqui, meu povo! Eis aqui o Espírito Verme­lho! Levante seus olhos e veja o portador das riquezas e de toda a fertilidade!

Imediatamente, num silêncio em que se teria ouvido o zoar de uma mosca, desviou-se a cortina de ervas da Casa Sagrada e Kurt Sonderfeld apareceu, como um deus, sobre o limiar. A seus pés, N'Daria prostrava-se numa atitude de adoração.

Durante segundos de glória e de terror, a multidão contemplou o corpo branco que o sol fazia brilhar, o es­plendor colorido do rosto, as mãos que acreditavam cheias de promessas, o sorriso ameaçador. Mas logo todos es­conderam os rostos, soltando um gemido de temor e de súplica.

Foi neste instante que George Oliver avançou para o centro do campo. E, no próprio momento em que se sus­pendeu, sua voz estridente soou como o estalar do raio sobre aquelas cabeças pendidas:

- Cegos! Imbecis!... Homens enganados por um im­postor!... Seduzidos por um covarde! Encheu-lhes a boca de poeira e vocês acreditaram que era alimento, besun­tou-lhes o rosto de porcaria e acreditaram que era rique­za. Levantem os olhos e vejam!...

       “O Espírito Vermelho é um homem branco como eu.” ·

       “O feiticeiro Kumo aliou-se a ele e teme-o porque ele possui sua saliva, seu sangue e sua semente, num tubo como este!”

       Lentamente, as cabeças ergueram-se. George Oliver, sozinho, sem armas, estava no meio deles, mostrando-lhes um pequeno tubo de bambu. Atrás, mas longe, o Padre Louis e, depois ainda, Lee Curtis e os agentes da polícia esperavam, imóveis, prontos para todas as eventualidades.

       A multidão desviou os olhos para Kumo, que perma­necia de boca aberta, braços caídos, pupilas fixas, como diante de uma aparição. Em seguida, todos os rostos se levantaram para Sonderfeld. Mais senhor de si do que o feiticeiro, gritou:

       - Matem-nos! Matem-nos! Eles mentem para nos roubar nossas riquezas. Matem-nos todos!

Porém, em sua demência, o grande Espírito Vermelho falava sua língua, a língua de Gottfried Reinach. A mul­tidão ouvia, boquiaberta. mas não entendia nada. Os in­dígenas voltaram suas faces para Kumo, esperando que este interpretasse aquelas palavras.

Lentamente, Kumo foi adquirindo o próprio domínio. Olhou para Sonderfeld e lembrou-se do poder que o alemão detinha em suas mãos. Depois, olhou para Oliver e veri­ficou que o Kiap estava sem armas. Olhou seu povo e calculou sua imensidão, ao pé daquela meia dúzia de agen­tes da ordem.

Então, levantou a clava de madeira da árvore sagra­da e começou a descer lentamente a instável pirâmide de carcaças, na direção de George Oliver.

Este, imóvel, olhava-o também. A mão que segura­va o tubo elevou-se, bem alto, para o mostrar a todos, e sua voz trovejou:

       - Espere!

       Kumo parou. Oliver fez uma pausa de dois segundos, para que todas as suas energias o sustentassem no momen­to fatal.

- O homem branco mentiu-lhe, Kumo! Disse que possuía sua vida encerrada num tubo. Era verdade, mas agora é falso. Esse tubo está aqui em minhas mãos. Veja, Kumo!

Um grito apavorado subiu da multidão, quando Oli­ver estendeu o braço para o feiticeiro. Este recuou, pa­rando a pequena distância, hirto, enquanto a voz de Oli­ver se elevava de novo.

            - Restituo-lhe a vida, Kumo. Vou-lhe dar já, se dei­xar cair sua maça e vier até junto de mim.

Nesse instante, Sonderfeld saltou na direção do fei­ticeiro, gritando, num urro que lhe pôs os olhos fora das órbitas e a boca escorrendo baba.

            - Ele mente, imbecil! Ele mente! Sou eu quem tem sua vida. Olhe!

Com os braços estendidos, mostrava numa das mãos um tubo de bambu e na outra a enorme queixada de por­co. Era o minuto trágico, o instante da escolha entre o culto antigo e o novo, entre a autoridade recente e o poder velhíssimo nos feiticeiros.

A decisão pertencia a Kumo. Bastava-lhe elevar a mão para Sonderfeld e os recém-vindos seriam espezinha­dos pelos indígenas em furor. Que poder teriam aquelas armas contra dez mil homens? Seus detentores depressa seriam esmagados, como a erva dos campos que as hordas percorrem.

Kumo, paralisado pela dúvida, demorava-se, hesitava. Daqueles dois homens que o desafiavam, um não era mais do que um mentiroso e outro tinha o poder de destruí-lo.

O feiticeiro olhou para um e para o outro. Ele conhe­cia a violenta fúria de Sonderfeld e a impassível calma de Oliver. Lembrou-se de que, uma vez, Sonderfeld o ha­via atraiçoado com N'Daria, e que o segundo jamais men­tira às tribos ou formulara uma ameaça vã. Mas isto não bastava. Era sua vida que estava em jogo. Precisava de uma prova e ninguém a podia dar.

Nesse minuto, o Padre Louis adiantou-se e elevou a voz naquele silêncio de morte.

       - Olhe para mim, Kumo!

       Este apertou ainda mais a clava e voltou-se para o velho sacerdote.

       - Olhe para mim, Kumo, e diga-me se alguma vez me viu mentir. Já alguma vez tomei o que não me per­tencia? Já alguma vez causei dano fosse a quem fosse, homem, mulher ou criança?... Não tenho cuidado de vocês, tratando os doentes e ocupando-me dos velhos?            

       Kumo, desorientado, silencioso, parecia um animal cercado pelos caçadores. A voz do missionário, vibrante, recomeçou:

- Sabe que não sou um mentiroso. Escute, pois o que lhe digo é a verdade. Quem possui sua vida é o Kiap Oliver. Fui eu próprio quem a deu. Apanhei-a em casa do homem que você chama o Espírito Vermelho e que é apenas um mentiroso e um velhaco.

Houve novamente um silêncio trágico. Com lentidão, Kumo virou-se para Sonderfeld, procurando uma resposta do homem que acabara de proclamar Deus. O alemão abriu a boca para falar, mas o terror e a raiva estrangularam-­lhe a voz. Quis fazer um gesto, mas os membros recusaram-se a obedecer-lhe. E, de súbito, o tubo de bambu e a queixada de porco escaparam de suas mãos trêmulas e caíram-lhe aos pés.

N'Daria soltou um uivo de terror, fugiu do limiar da choupana e foi esconder-se, cambaleante, na sombra pro­tetora dos bambus.

Kumo, sem lhe conceder um olhar, precipitou-se para o Espírito Vermelho e descarregou-lhe a maça sobre o crânio. O homem caiu e ele continuou a bater, perante as tribos mudas de estupefação.

       George Oliver, sozinho no meio do terreiro, ouviu atrás de si a voz de Curtis e viu os rapazes da polícia che­garem correndo. Apoderaram-se do feiticeiro, arrancaram-­lhe a arma sangrenta, a cabeleira dourada e o penacho de plumas. Em seguida, empurraram-no através das mu­lheres acocoradas e o forçaram a ficar junto de Oliver.

Por um longo momento, o Kiap ficou olhando para o feiticeiro; depois, orgulhosamente, virou sua face para a multidão. Estendeu o braço com majestade e falou com ênfase.

- Vejam o que acontece àqueles que se desviam da lei do homem branco para seguir pelos falsos caminhos dos feiticeiros. Vejam, o mau guia está morto. Mas tam­bém para Kumo chegará sua hora. Ele e o homem branco profanaram a festa das tribos. Por isso, a voz dos ante­passados se há-de elevar contra todos. Seus espiritos hão ­de vaguear pelos vales, cairão calamidades sobre as co­lheitas e as mulheres ficarão estéreis. Eu também os vou punir. Pagarão taxa dobrada dos porcos e as hortas e construirão uma nova estrada sem receber salário. Tiro o poder dos Luluais e vou nomear outros. E contarei estas loucuras ao Kiap de Goroka e à gente dos vales longínquos, para que todos os homens se riam quando alguém falar de vocês.

Estendeu-se pelos espaços em volta um longo gemido e todas as cabeças se curvaram, mas a voz retumbava sempre, impiedosa:

- A festa acabou. Saiam deste vale e voltem para suas casas. Quando todos tiverem partido, meus homens porão fogo nesta aldeia, porque seu Luluai foi um insen­sato que escutou a voz da mentira. Mas ele não partirá. Ficará aqui e tornará a construí-la com seu povo, pois desta hora em diante deixa de ser um Luluai. Agora, par­tam todos! E que minha cólera os persiga e morram como o homem branco, como há-de morrer Kumo, porque ma­tou um homem com sua arma e outro pelo feitiço da ser­pente.

Afastou-se. A multidão não se mexeu. O terror dos espíritos e o pensamento de que todos aqueles animais sacrificados iam ficar ali, apodrecendo ao sol, paralisa­vam toda a assistência.

O pulso vigoroso dos homens de Oliver tinha obriga­do Kumo a manter-se de pé. Este não tentava resistir, mas espumava, devorando seu furor.    

            - Levem-no - mandou Oliver com uma voz cansada.

            - Não! - gritou o Padre Louis. - Esperem.

            George Oliver voltou-se bruscamente. O missionário estendeu a mão.

            - Contraiu uma dívida para comigo, Oliver. Quero o pagamento.

Ficaram um diante do outro, olho no olho, confor­tando-se. George Oliver foi o primeiro a ceder. Apanhou no bolso da calça o tubo de bambu e colocou-o na palma da mão do velho sacerdote.

       - Está bem, Padre, ei-lo. E agora?

O sacerdote não respondeu. Estava já em frente de Kumo, com o tubo na palma da mão. Com voz baixa, disse no idioma local.

       - Kumo, você foi outrora um de meus filhos. É um homem inteligente. Houve tempo em que ajoelhou perante o altar e recebeu o corpo do Senhor. Mas fugiu d'Ele para dar sua alma ao Diabo. Veja aonde ele o conduziu, à mor­te, a que não poderá escapar, e talvez à condenação. Olhe, tenho sua vida em minha mão. Dou-a em troca de sua al­ma. Volte para Deus e eu pedirei por você ao Kiap. E, se não conseguir que ele me escute, estarei com você na hora de sua morte e prometo-lhe a salvação da alma. Es­cute, Kumo, recupere sua vida e dê-me sua alma.

            Kumo levantou a cabeça. Seu olhar não tinha expres­são. Foi com uma voz sem timbre que respondeu:

       - Como posso recuperar minha vida, se estou preso?

       - Larguem-no - ordenou o padre.

            Oliver fez um sinal de assentimento, e os homens largaram o feiticeiro, que dominou o padre com toda sua altura.

       - Dê-me minha vida.

            O Padre Louis pousou o tubo na mão estendida. Os dedos de Kumo fecharam-se lentamente sobre o pequeno cilindro. Depois, num gesto repentino, lançou a cabeça para trás e desatou a rir.

- Oferece-me a vida que me tinham roubado? A minha vida? E pensa comprar Kumo, o maior dos feiti­ceiros do vale?... Quer minha alma?... Pois nunca a terá, nunca a terá... - E, como se fosse um senhor dan­do suas ordens com desprezo, acrescentou: - Volte para casa, missionário. Volte para sua aldeia e vá falar às mu­lheres!

Uma tristeza imensa invadiu o coração do velho sa­cerdote. O orgulho original repelia a misericórdia, repelia a própria vida, para não ficar malvisto perante as tribos. O ancião elevou ao Céu uma prece desesperada pelo ho­mem que tinha sido seu irmão em Cristo, para que ele se inclinasse perante a misericórdia. Mas Kumo até a misericórdia recusava.

No último momento, o feiticeiro traçou o ato final de rejeição. Levantou sua mão e lançou o tubo de bambu na fogueira. Depois, riu novamente e deu uma estrondosa bofetada no rosto do velho sacerdote. Antes que os policiais, atônitos, pudessem impedi-lo, deu um salto e correu para o matagal.

       O Padre Louis limpou o rosto e permaneceu imóvel. Oliver e Curtis olhavam-no com curiosidade. Melhor do que eles o missionário compreendia o significado da ati­tude de Kumo. Este sabia agora, com uma funda certe­za, qual era o conteúdo daquele pedacinho de bambu: o princípio de sua existência... tudo o que aquele homem primitivo conhecia da alma.

O feiticeiro acabava de sacrificar essa alma... Quando o fogo tivesse consumido o invólucro de bambu, também sua vida o seria, tão infalivelmente como se um ma­chado de pedra lhe abrisse o crânio em dois. A fé antiga era mais forte. Suas raízes mergulhavam obscuramente nas origens da vida primitiva.

Lenta, inexoravelmente, os segundos escoavam-se. De súbito, a assistência fez convergir todos os olhares para um só ponto, num sobressalto comum. O tubo acabava de explodir na fogueira. O silêncio do vale foi quebrado como se um fuzil de grande alcance acabasse de disparar. An­tes que os ecos se extinguissem; um uivo se levantou ao longe - era um uivo rouco capaz de arrancar as entra­nhas. Homens brancos e indígenas teriam jurado que esta­vam ouvindo o grito do casuar ferido de morte.

A multidão empenachada permanecia inerte. O pavor esmagava-a e parecia esperar um guia que a levasse para longe daquele vale maldito, onde não houvesse espíritos vingadores e Kiaps irritados. Mas ninguém se mexia.

Viram então o Padre Louis afastar-se, mais velho ainda, vencido, curvado. Lentamente, saiu da aldeia e co­meçou a subir a montanha.

Um a um, amendrontados, os poucos cristãos saíram das fileiras e seguiram-no, como ovelhas conduzidas ao redil por um pastor no extremo das forças. Mais tarde, iriam ao confessionário acusar-se de adultério, de forni­cação, de reincidência na idolatria antiga, e o sacerdote havia de absolvê-las e reconfortá-los com uma homilia so­bre o poder do Maligno e o destino que espera os que fa­zem aliança com ele.

Mas para o Padre Louis não haveria nem conforto nem confissão. O colega mais próximo estava a sessenta quilômetros de marcha pelas montanhas. Portanto, tinha de suportar sozinho o peso de sua presunção. Mais uma vez, ficou patente que a vida, como a graça do arrepen­dimento, só a Deus pertence. Tinha-se associado a um ato de desespero, a uma recusa manifesta da. salvação, a um suicídio do corpo e do espírito. Restava-lhe somente a es­perança da misericórdia. Mas sentia-se tão velho, tão gas­to, de tal modo inútil, que perguntava a si próprio se Deus se daria ao trabalho de a conceder.

George Oliver, enquanto a multidão continuava sus­pensa de seus gestos, só tinha olhos para o Padre Louis, que ia subindo com dificuldade a encosta de seu calvário, seguido por seu pequeno exército. E o coração do oficial corria para junto do missionário, porque também ele se sentia cansado e começava a envelhecer.

Acabara de restituir a paz às tribos. Estaria sua pró­pria alma em paz?... Até ao fim de seus dias, haveria de perguntar a si próprio, se não seria responsável pela morte de Sonderfeld. George Oliver quebrara os ídolos, mas a sombra destes alongava-se sobre a estrada.

       Curtis bateu-lhe no ombro:

       - Regresse - disse o jovem com brandura. - Vá dar a boa notícia a Gerda. Tratarei do resto.

            Oliver olhou-o demoradamente. Depois, sorriu e es­tendeu-lhe a mão:

            - Boa sorte, Curtis. Agora é a sua vez.

Depois, voltou-se para a montanha e começou a longa marcha que o reconduziria para Gerda. A um sinal de Lee, um dos homens seguiu-lhe os passos, como fiel servidor que, após um combate esgotante, cumpre a missão de ve­lar pelo regresso do chefe.

No final do caminho, jazia o cadáver de Kumo, o feiticeiro. N'Daria, perdida e trêmula, escondia-se no mato que cercava o campo. E o corpo de Kurt Sonderfeld, caído entre as carcaças sangrentas dos porcos, ali ficara já com as moscas lhe cobrindo o rosto esmagado.

Apenas o Oficial de Patrulha Lee Curtis permanecia sozinho frente à multidão silenciosa - senhor de dez mil homens, cobrador de imposto, encarnação da lei, juiz da vida e da morte daqueles vales. E tinha vinte e quatro anos.

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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