Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


LABIRINTO - P.2 / Kate Mosse
LABIRINTO - P.2 / Kate Mosse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

L A B I R I N T O

Segunda Parte

 

A noite havia caído sobre o acampamento dos cruzados.

Guy d'Evreux limpou as mãos engorduradas no pano que um criado nervoso lhe estendia. Bebeu o que restava no copo e olhou de relance para o abade de Cíteaux, na cabeceira da mesa, para ver se ele estava pronto para se levantar.

Não estava.

Altivo e presunçoso em suas vestes brancas, o abade havia se acomodado entre o duque da Borgonha e o conde de Nevers. A constante disputa de poder en­tre os dois homens e seus seguidores havia começado antes mesmo de a Hoste deixar Lyon.

Pela expressão congelada em seus rostos, estava claro que Arnald-Amalric os estava repreendendo outra vez. Heresia, os fogos do inferno, os perigos da língua vernacular: todos temas sobre os quais ele era capaz de censurar seus ouvintes durante horas a fio.

Evreux não tinha respeito por nenhum dos dois. Achava suas ambições patéticas — algumas moedas de ouro, vinho e putas, um pouco de combate, e então a volta para casa cobertos de glória, depois de servir seus quarenta dias. Apenas de Montfort, sentado um pouco mais adiante à mesa, parecia estar escutando. Seus olhos ardiam com um zelo religioso desagradável, equiparado apenas pelo fanatismo do próprio abade.

Evreux só conhecia de Montfort de reputação, muito embora fossem vizinhos próximos. Evreux havia herdado terras ao norte de Chartres, onde a caça era abundante. A combinação de um casamento estratégico e impostos repressivos havia garantido o crescimento regular da fortuna da família ao longo dos últimos cinqüenta anos. Ele não tinha irmãos para disputar seu título e nenhuma dívida significativa.

As terras de Montfort ficavam nos arredores de Paris, a menos de dois dias a cavalo da propriedade de Evreux. Era sabido que de Montfort havia abraçado a cruz por causa de um pedido pessoal do duque da Borgonha, mas sua ambição era conhecida por todos, assim como sua devoção e coragem. Ele era veterano das campanhas orientais da Síria e da Palestina, e um dos poucos cruzados a ter se recusado a participar do cerco à cidade cristã de Zara durante a Quarta Cruzada na Terra Santa.

Embora estivesse agora na casa dos quarenta, de Montfort ainda era forte como um boi. De humor instável, introspectivo, inspirava uma lealdade ex­travagante em seus homens, mas era objeto da desconfiança de muitos dos barões, segundo os quais sua dubiedade e ambição iam muito além de seu status. Evreux o desprezava, assim como desprezava todos aqueles que procla­mavam que as próprias ações eram obra de Deus.

Evreux havia abraçado a cruz por um só motivo. Assim que tivesse cum­prido seu propósito, voltaria a Chartres com os livros que passara a vida inteira caçando. Não tinha intenção de se sacrificar no altar das crenças de outros homens.

O que foi? — rosnou para o criado que surgira às suas costas.

Um mensageiro para o senhor.

Evreux ergueu os olhos.

Onde ele está? — perguntou, incisivo.

Esperando do lado de fora do acampamento. Não quis dizer seu nome.

De Carcassonne?

Ele não quis dizer, senhor.

Fazendo uma rápida reverência para a mesa principal, Evreux pediu li­cença e retirou-se discretamente, o rosto pálido agora corado. Caminhou apres­sado por entre as barracas e animais até a clareira na extremidade leste do acampamento.

De início, só conseguiu distinguir formas indistintas na escuridão entre as árvores. Conforme foi se aproximando, reconheceu o homem: era o criado de um informante seu em Béziers.

Então? — perguntou, o desapontamento a lhe endurecer a voz.

O mensageiro caiu de joelhos.

Encontramos seus corpos na floresta perto de Coursan.

Os olhos cinzentos de Evreux se apertaram.

Coursan? Eles deveriam estar seguindo Trencavel e seus homens. O que estavam fazendo em Coursan?

Não sei dizer, meu senhor — gaguejou o homem.

A um olhar seu, dois outros homens de Evreux surgiram de trás das árvores, as mãos pousadas de leve sobre os cabos das espadas.

O que foi encontrado no local?

Nada, meu senhor. Túnicas, armas, cavalos, até as flechas que os mataram foram... não estavam mais lá. Os corpos tinham sido despidos. Leva­ram tudo.

— Então a identidade deles foi revelada?

O criado deu um passo para trás.

Os boatos que correm pelo castellum falam apenas sobre a coragem de Amiel de Coursan, e não sobre quem eram os homens. Havia uma moça, filha do intendente do visconde Trencavel. Alaïs.

Ela estava viajando sozinha?

Não sei, meu senhor, mas de Coursan a escoltou pessoalmente até Besièrs. Ela se reuniu ao pai no bairro judaico. Passaram algum tempo lá. Em uma casa particular.

Evreux pensou um pouco.

Foi mesmo? — murmurou ele, um sorriso a se formar nos lábios finos. — E qual o nome desse judeu?

Não me disseram o nome dele, meu senhor.

Ele fez parte do êxodo para Carcassonne?

Fez.

Evreux ficou aliviado, mas não deixou transparecer. Tocou a adaga que trazia no cinto.

Quem mais sabe disto?

Ninguém, meu senhor, eu juro. Não contei a ninguém.

Evreux agiu sem aviso, mergulhando a faca com um só golpe na garganta do homem. Com os olhos abertos de surpresa, ele começou a sufocar enquan­to os últimos arquejos lhe escapavam sibilando do ferimento, e o sangue, muito vermelho, borrifava sobre a terra ao seu redor. O mensageiro caiu de joelhos, tentando freneticamente retirar a lâmina da garganta, cortando as mãos, até desabar para frente.

Por um instante ainda, seu corpo se debateu em violentos espasmos so­bre a terra manchada, então ele estremeceu pela última vez e se imobilizou.

O rosto de Evreux não traiu nenhuma emoção. Ele estendeu a mão, com a palma para cima, esperando que um de seus soldados lhe devolvesse a adaga. Limpou-a na borda da túnica do morto e tornou a embainhá-la.

— Livrem-se dele — disse, cutucando o corpo com o bico da bota. — Quero que encontrem o judeu. Quero saber se ele ainda está aqui ou se já foi para Carcassonne. Vocês sabem como ele é fisicamente?

O soldado aquiesceu.

— Bom. A menos que haja alguma novidade sobre esse assunto, não tornem a me incomodar esta noite.

 

                   Carcassonne

                   Quarta-feira, 6 de julho de 2005.

Alice deu vinte voltas a nado na piscina do hotel, depois tomou o café-da-manhã na varanda, vendo os raios de sol surgirem sorrateiros acima das árvo­res. Às nove e meia, já estava na fila esperando o Château Comtal abrir. Pagou e recebeu um folheto que contava a história do castelo em um inglês esquisito.

Plataformas de madeira haviam sido construídas em duas porções das ameias, à direita do portão e ao redor do formato de ferradura da Tour de Casernes, como o ninho de um cesto de gávea em um navio.

Um silêncio a dominou quando ela adentrou o pátio através das formi­dáveis portas de metal e madeira do Portão Oriental.

A Cour d'Honneur estava quase inteiramente imersa nas sombras. Já havia vários visitantes que, assim como ela, perambulavam, liam e olhavam em volta. Na época da dinastia Trencavel, aparentemente havia um olmo no centro do pátio, debaixo do qual gerações de viscondes haviam dispensado sua justiça. Agora não havia mais sinal dele. Em seu lugar erguiam-se dois pláta­nos perfeitamente proporcionais, e as sombras de suas folhas projetavam-se no muro ocidental do pátio à medida que o sol ia surgindo acima das ameias dos muros opostos.

A extremidade mais ao norte da Cour d'Honneur já estava inteiramente banhada pela luz do sol. Alguns pombos haviam se aninhado nos vãos de porta, nas rachaduras das paredes e nos arcos abandonados da Tour du Major e da Tour du Degré. Um clarão de memória — a sensação de uma escada de madeira áspera, com degraus revestidos de corda, e de subir e descer de um andar ao outro como uma criança de rua.

Alice olhou para cima, tentando distinguir em sua mente entre o que estava diante de seus olhos e a sensação física na ponta de seus dedos.

Havia pouca coisa para ver.

Então um sentimento devastador de perda abateu-se sobre ela. O pesar fechou-se em volta de seu coração como um punho.

Ele se deitou aqui. Ela chorou por ele aqui.

Alice olhou para baixo. Duas linhas de bronze que saíam do chão marca­vam o ponto onde um dia houvera uma construção. Uma fileira de letras marcava o chão. Ela se agachou e leu que ali havia sido o local da capela do Château Comtal, dedicada a Sainte-Marie. Sant-Maria.

Nada restava dela.

Alice sacudiu a cabeça, incomodada pela força das próprias emoções. O mundo que existira oitocentos anos antes debaixo daqueles vastos céus meridio­nais ainda existia ali, por baixo da superfície. A sensação de alguém em pé junto ao seu ombro era muito forte, como se a fronteira entre seu presente e o passado de outra pessoa estivesse se desintegrando.

Ela fechou os olhos, impedindo a entrada das cores, formas e sons mo­dernos, imaginando as pessoas que haviam morado ali, permitindo que suas vozes falassem com ela.

Um dia, aquele havia sido um lugar bom para se viver. Velas vermelhas tremeluzindo em um altar, azarolas em flor, mãos unidas em matrimônio.

As vozes dos outros visitantes chamaram Alice de volta ao presente, e o passado foi se desvanecendo à medida que ela concluía o passeio. Agora que estava dentro do Château, podia ver que as galerias de madeira construídas ao longo das ameias eram abertas para o ar livre na parte de trás. Encravados bem fundo na rocha havia outros daqueles buracos pequenos, quadrados, que ela notara ao passear pelo Lices na tarde anterior. O folheto lhe dizia que eles marcavam o ponto de inserção das vigas onde antes ficavam os pisos superiores.

Alice deu uma olhada na hora e ficou feliz ao ver que tinha tempo sufici­ente para visitar o museu antes de seu compromisso. Os aposentos dos séculos XII e XIII, tudo que restava das construções originais, abrigavam uma coleção de bancos de pedra, colunas, modilhões, chafarizes e lápides, que iam do período romano ao século XV.

Ela andou por ali, sem muito interesse. Não experimentava mais as po­derosas sensações que a haviam dominado no pátio e sentia-se vagamente in­quieta. Seguiu as setas de um aposento ao outro até chegar ao Salão Redondo, que, apesar do nome, era retangular.

Os cabelos de sua nuca se arrepiaram. O cômodo tinha um teto abobadado cilíndrico, e resquícios de um afresco retratando uma cena de batalha nas duas paredes mais compridas. A tabuleta informava que Bernard Aton Trencavel, que participara da Primeira Cruzada e combatera os mouros na Espanha, ha­via encomendado o afresco no final do século XI. Dentre as fabulosas criaturas e pássaros que decoravam a frisa havia um leopardo, um boi zebu, um cisne, um touro e um animal que parecia um camelo.

Maravilhada, Alice ergueu os olhos para o teto azul celeste, gasto e racha­do, mas ainda bonito. No painel do afresco à sua esquerda, dois chevaliers lutavam, um vestido de preto e segurando um escudo redondo, destinado a cair para sempre sob a lança do outro. Na parede oposta desenrolava-se uma batalha entre cavaleiros sarracenos e cristãos. Essa parte estava mais bem pre­servada e mais completa, e Alice se aproximou para ver melhor. No centro, dois chevaliers se enfrentavam, um deles montado em um cavalo ocre, e o outro, o cristão, em um cavalo branco, empunhando um escudo em forma de amêndoa. Sem pensar, ela ergueu a mão para tocar a imagem. A funcionária fez que não, estalando os lábios, e sacudiu a cabeça.

O último lugar que ela visitou antes de sair do castelo foi um pequeno jardim adjacente ao pátio principal, a Cour du Midi. Estava em ruínas, e somente os vestígios das altas janelas arqueadas ainda estavam de pé. Ramos verdes de hera e outras plantas enroscavam-se nas colunas vazias e nas rachaduras das paredes. O lugar tinha um ar de grandeza perdida.

Enquanto caminhava devagar por ali, depois voltava para onde batia o sol, Alice foi dominada por outra sensação; desta vez não era tristeza, mas saudade.

Quando Alice emergiu do Château Comtal, as ruas da Cité estavam ainda mais movimentadas.

Ainda havia tempo antes de sua reunião com a advogada, então ela virou na direção oposta à da noite anterior e caminhou até a Place St-Nazaire, que era dominada pela basílica. Foi a fachada fin-de-siècle do Hôtel de la Cité, discreta, mas ao mesmo tempo grandiosa, que atraiu seu olhar. Coberta de hera, com portões de ferro fundido, altas janelas de vitrais e toldos vermelho-escuro da cor de cerejas maduras, tinha um ar de riqueza circunspecta.

Enquanto ela olhava, as portas se abriram, revelando paredes revestidas de painéis de madeira e tapeçarias, e uma mulher apareceu. Alta, com as maçãs do rosto proeminentes e os cabelos pretos de corte impecável afasta­dos do rosto por óculos de sol de aro dourado. Sua camisa sem mangas marrom clara e calças do mesmo tecido pareciam cintilar e refletir a luz quando ela se movia. Com uma pulseira de ouro e uma gargantilha, ela parecia uma princesa egípcia.

Alice teve certeza de já tê-la visto antes. Em uma revista ou filme, talvez na televisão?

A mulher entrou em um carro. Alice ficou olhando até ela sumir de vista, depois andou até a porta da basílica. Havia uma mendiga em pé na entrada, com a mão estendida. Alice enfiou a mão no bolso e depositou uma moeda na mão da mulher, depois fez menção de entrar.

Congelou, com a mão na porta. Teve a sensação de estar presa em um túnel de ar frio.

Deixe de ser boba.

Alice tentou outra vez se forçar a entrar, determinada a não ceder a sen­timentos tão irracionais. O mesmo terror que havia se apoderado dela em Saint-Etienne, em Toulouse, a impediu.

Desculpando-se com as pessoas atrás, Alice saiu da fila e deixou-se cair sentada sobre um parapeito de pedra na sombra, junto à porta norte.

Que diabo está acontecendo comigo?

Seus pais lhe haviam ensinado a rezar. Quando teve idade suficiente para questionar a presença do mal no mundo e descobriu que a Igreja era incapaz de prover respostas satisfatórias, ela havia aprendido sozinha a parar de rezar. Mas se lembrava da sensação de significado que a religião é capaz de proporcio­nar. A certeza, a promessa de salvação em algum lugar além das nuvens, nunca a havia abandonado de todo. Como o poeta Philip Larkin, sempre que tinha tempo ela entrava em igrejas. Elas a faziam se sentir em casa. Despertavam nela uma sensação de história e de um passado compartilhado, presente na arquitetura, nas janelas, nos bancos do coral.

Mas não ali.

Naquelas catedrais católicas do Midi, ela não se sentia em paz, e sim ameaçada. O cheiro ruim do mal parecia sangrar dos tijolos. Ela levantou os olhos para as gárgulas hediondas que a olhavam lá de cima, suas bocas tortas deformadas e zombeteiras.

Alice se levantou depressa e foi embora da praça. Não parava de olhar por sobre o ombro, dizendo a si mesma que estava imaginando aquilo tudo, e ao mesmo tempo incapaz de se livrar da sensação de que havia alguém em seu encalço.

E apenas a sua imaginação.

Mesmo depois de sair da Cité e começar a descer a rue Trivalle em dire­ção à cidade moderna, continuava nervosa. Não importava o que dissesse a si mesma para se convencer do contrário: tinha certeza de que alguém a estava seguindo.

O escritório de advocacia de Daniel Delagarde ficava na rue George Brassens. A placa de bronze pendurada na parede resplandecia à luz do sol. Ela estava um pouco adiantada para a reunião, então parou para ler os nomes antes de entrar. O nome de Karen Fleury estava mais ou menos no meio; ela era uma das duas únicas mulheres do escritório.

Alice subiu os degraus de pedra cinza, empurrou a porta dupla de vidro para abri-la e entrou em uma área de recepção com piso de cerâmica. Apresentou-se à mulher sentada diante da mesa alta de mogno encerado e foi conduzida a uma sala de espera. O silêncio era opressivo. Um homem de aparência um tanto bucólica, de quase sessenta anos, cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça ao vê-la entrar. Exemplares de Paris-Match, Immo Média e várias edições atrasadas da Vogue estavam cuidadosamente empilhadas sobre uma grande mesa de centro no meio do aposento. Havia um relógio de ouropel no parapeito em cima da lareira de mármore branco, e dentro dela um vaso alto e retangular cheio de girassóis.

Alice sentou-se em uma poltrona de couro preto ao lado da janela e fingiu ler.

— Sra. Tanner? Sou Karen Fleury. Muito prazer.

Alice se levantou, gostando imediatamente da cara da advogada. Com trinta e poucos anos, a sra. Fleury exalava um ar de competência em seu terni­nho preto e blusa branca sóbrios. Seus cabelos louros bem arrumados estavam cortados curtos. Ela usava uma cruz de ouro no pescoço.

Minha roupa de enterro — disse ela, reparando no olhar de Alice. — Quente demais para este calor.

Posso imaginar.

Ela segurou a porta para Alice passar.

Vamos?

Há quanto tempo a senhora trabalha aqui? — perguntou Alice en­quanto desciam um labirinto de corredores cada vez mais caquéticos.

Nos mudamos para cá alguns anos atrás. Meu marido é francês. Vá­rios ingleses estão se mudando para cá, e todos eles precisam da ajuda de advogados, então está dando bastante certo.

Karen a conduziu até uma pequena sala nos fundos do prédio.

Foi ótimo a senhora poder vir pessoalmente — disse ela, indicando uma cadeira para Alice se sentar. — Imaginei que fôssemos fazer quase tudo pelo telefone.

Foi coincidência. Logo depois que recebi sua carta, uma amiga que está trabalhando perto de Foix me chamou para vir fazer uma visita. Parecia uma oportunidade boa demais para deixar passar. — Ela fez uma pausa. — Além disso, visto o tamanho e natureza da herança, parecia que o mínimo que eu podia fazer era vir pessoalmente.

Karen sorriu.

— Bom, isso facilita as coisas do meu ponto de vista, e também vai tornar tudo mais rápido. — Puxou uma pasta marrom na própria direção. — Pelo que a senhora disse ao telefone, não parecia saber muita coisa sobre sua tia.

Alice fez uma careta.

— Na verdade, eu nunca tinha ouvido falar nela. Não fazia idéia que papai tivesse algum parente vivo, muito menos uma meia irmã. Eu tinha a impressão de que tanto meu pai quanto minha mãe eram filhos únicos. Com certeza nunca encontrei nenhuma tia nem tio em nenhum Natal ou aniversário.

Karen espiou as próprias anotações.

Seus pais morreram algum tempo atrás

Morreram, em um acidente de carro quando eu tinha 18 anos — disse ela. — Em maio de 1993. Logo antes de eu terminar o colégio.

Deve ter sido horrível.

Alice assentiu. O que mais havia a ser dito?

A senhora não tem irmãos?

Acho que meus pais deixaram para ter filhos muito tarde. Os dois já eram bem velhos, relativamente falando, quando eu nasci. Tinham quarenta e poucos anos.

Karen assentiu.

Bom, nesse caso, acho que a melhor coisa a fazer é eu simplesmente repassar tudo que tenho no meu relatório sobre as propriedades da sua tia-avó e os termos do testamento dela. Quando tivermos terminado por aqui, a senhora pode ir dar uma olhada na casa, se quiser. Fica em uma cidadezinha a mais ou menos uma hora de carro daqui, Sallèles d'Aude.

Parece ótimo.

Então, o que tenho aqui — continuou Karen, tamborilando os de­dos sobre o relatório — são coisas bem básicas, nomes, datas, coisas assim.

Tenho certeza de que, quando a senhora visitar a casa, vai ter uma idéia melhor de como era a sua tia, a partir dos papéis e objetos particulares que ela deixou. Depois que tiver dado uma olhada, pode decidir se quer que tiremos tudo da casa ou se prefere fazer isso sozinha. Quanto tempo a senhora vai ficar aqui?

Tecnicamente até domingo, mas estou pensando em ficar mais. Não tem nada de desesperadamente urgente que me obrigue a voltar agora.

Karen assentiu enquanto olhava as anotações.

— Bom, vamos começar e ver como as coisas andam. Grace Alice Tanner era meia-irmã do seu pai. Ela nasceu em Londres, em 1912, a caçula e única sobrevivente de cinco filhos. Duas outras meninas morreram ainda pequenas, e os dois meninos morreram na Primeira Guerra Mundial. A mãe dela faleceu em... — ela fez uma pausa, correndo o dedo pela página até encontrar a data que estava procurando — ... 1928, depois de uma longa doença e da família se separar. A essa altura, Grace já tinha saído de casa, e o pai dela tinha se muda­do da região e acabou se casando de novo. No ano seguinte, nasceu um filho desse casamento: seu pai. Até onde posso deduzir a partir dos nossos registros, daí em diante parece que não houve nenhum contato, ou então muito pouco, entre a srta. Tanner e o pai dela, avô da senhora.

Eu não sabia, mas a senhora acha provável que meu pai soubesse que tinha uma meia-irmã?

Não faço idéia. Eu diria que não.

Mas Grace sabia dele?

Sim, embora eu também não saiba como nem quando ela descobriu.

Mais especificamente, ela sabia sobre a senhora. Revisou o testamento em 1993, depois da morte dos seus pais, e nomeou a senhora como única beneficiária. A essa altura, ela já morava na França havia algum tempo.

Alice franziu o cenho.

— Se ela sabia sobre mim e sobre o que tinha acontecido, não entendo por que não nos procurou.

Karen deu de ombros.

— É possível que ela tenha pensado que a senhora não fosse gostar. Já que não sabemos o que causou a separação da família, ela pode ter pensado que o seu pai tivesse lhe dito coisas negativas sobre ela. Em casos como este, não é raro se supor que qualquer tentativa de contato vá ser rejeitada; e algumas vezes essa suposição é correta. Quando o contato é rompido, pode ser difícil consertar o estrago.

— Estou supondo que não foi a senhora quem fez o testamento?

Karen sorriu.

Não, isso foi muito antes do meu tempo. Mas eu conversei com o colega que fez. Ele agora está aposentado, mas se lembra da sua tia. Ela foi muito direta, sem delongas nem sentimentalismo. Sabia exatamente o que queria, e o que queria era deixar tudo para a senhora.

Então a senhora não sabe por que ela veio morar aqui?

Infelizmente, não. — Ela fez uma pausa. — Do nosso ponto de vista, é tudo relativamente simples. Então, como eu disse, acho que o melhor a fazer é a senhora ir até a casa e dar uma olhada. Assim pode descobrir mais coisas sobre a sua tia. Já que ainda vai ficar aqui por mais alguns dias, podemos nos encontrar de novo mais tarde esta semana. Amanhã e sexta estou no fórum, mas poderia me encontrar com a senhora com prazer no sábado de manhã, se puder. — Ela se levantou e estendeu a mão. — Deixe recado com a minha assistente dizendo o que resolveu.

Eu gostaria de visitar o túmulo dela enquanto estou aqui.

É claro. Vou pegar os detalhes. Se bem me lembro, as circunstâncias foram estranhas. — Ao sair da sala, Karen parou na mesa da assistente. — Dominique, tu peux me trouver le numero du lot de cimetière de madame Tanner?

Le cimetière de la Cité. Merci.

Como assim, estranhas?

Madame Tanner não foi enterrada em Sallèles de l'Aude, mas aqui em Carcassonne, no cemitério que fica além dos muros da Cité, no mausoléu da família de um amigo. — Karen pegou a folha impressa da mão da assisten­te e passou os olhos pela informação. — Isso mesmo, agora estou lembrando.

Jeanne Giraud, uma mulher daqui da cidade, embora não parecesse haver indícios de que as duas mulheres se conhecessem. Aqui também tem o endere­ço de madame Giraud, junto com os detalhes do túmulo.

Obrigada. Eu ligo para a senhora.

Dominique vai lhe acompanhar — disse ela sorrindo. — Me mantenha informada.

 

                                   Ariège

Paul Authié esperava que Marie-Cécile fosse usar a viagem Ariège adentro para continuar a conversa da noite anterior, ou então para lhe perguntar sobre o relatório. Porém, a não ser por comentários ocasionais, ela não disse nada.

No espaço confinado do carro, ele se sentia muito consciente dela, fisica­mente falando. Seu perfume entrava-lhe pelas narinas, o cheiro de sua pele. Nesse dia, ela vestia uma camisa marrom clara sem mangas e calças do mesmo tecido. Óculos escuros escondiam seus olhos, e seus lábios e unhas estavam pintados do mesmo tom fechado de vermelho.

Authié sacudiu o punho da camisa, espiando o relógio com discrição. Contando uma ou duas horas na escavação, mais a viagem de volta, era pouco provável que estivessem de volta a Carcassonne muito antes do final da tarde. Aquilo era muito frustrante.

Alguma notícia de Shelagh O'Donnell? — perguntou ela.

Authié ficou surpreso ao ouvir seus pensamentos ditos em voz alta.

Até agora, não.

E o policial? — perguntou ela, virando-se para olhar para ele.

Não é mais um problema.

Desde quando?

Desde hoje de manhã cedo.

Soube mais alguma coisa por ele?

Authié fez que não com a cabeça.

Contanto que não consigam ligar nada a você, Paul.

Não vão ligar.

Ela permaneceu um instante em silêncio, depois perguntou:

— E a inglesa?

Chegou em Carcassonne ontem à noite. Tenho um homem atrás dela.

Você não acha que ela foi a Toulouse para deixar o anel ou o li­vro lá?

—A menos que tenha entregue as coisas a alguém dentro do hotel, não. Ela não recebeu nenhuma visita. Não falou com ninguém, nem na rua nem na biblioteca.

Chegaram ao Pic de Soularac pouco depois da uma. Uma paliçada de madeira havia sido erguida em torno do estacionamento. O portão estava fechado com um cadeado. Como combinado, não havia ninguém de plantão para vê-los chegar.

Authié abriu o portão e entrou com o carro. O lugar estava estranhamente silencioso depois da atividade de segunda à tarde. Um ar de abandono pairava sobre tudo. As laterais das barracas estavam abaixadas, as vasilhas, panelas e fileiras de ferramentas meticulosamente etiquetadas.

— Onde fica a entrada?

Authié apontou para onde uma fita de cena do crime ainda se debatia na brisa.

Ele pegou uma lanterna no porta luvas. Os dois subiram as encostas mais baixas em silêncio, com o calor opressivo da tarde a pesar sobre eles. Authié apontou para a pedra grande, ainda caída de lado como a cabeça de um ídolo vencido, e então conduziu a mulher pelos últimos metros que os separa­vam da caverna em si.

— Eu gostaria de entrar sozinha — disse ela quando chegaram ao topo.

Ele ficou irritado, mas não deixou transparecer. Estava confiante de que não havia mais nada na câmara que ela pudesse encontrar. Ele mesmo passara o pente-fino em cada centímetro da caverna. Entregou-lhe a lanterna.

— Como quiser — disse.

Authié ficou olhando enquanto ela desaparecia no túnel, o facho de luz cada vez mais fraco e distante até desaparecer por completo.

Ele se afastou da entrada até um lugar onde ela não pudesse mais escutá-lo.

O simples fato de chegar perto da câmara o deixava irritado. Levou a mão até o crucifixo em seu pescoço, como um talismã para afastar o mal que havia naquele lugar.

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — disse, benzendo-se.

Authié esperou a respiração se normalizar antes de ligar para o escritório.

O que você tem para mim?

Um olhar de satisfação espalhou-se por seu rosto enquanto escutava.

— No hotel? Eles se falaram? — Escutou a resposta. — O.K. Continue com ela e veja o que ela faz.

Sorriu e desligou. Mais uma coisa a acrescentar a sua lista de perguntas para a dra. O'Donnell.

Sua secretária havia descoberto surpreendentemente pouco sobre Baillard. Ele não tinha carro, não tinha passaporte, não estava registrado em nenhum cartório de imóveis, não tinha telefone, nada constava no sistema. Não tinha sequer um número de sécurité sociale. Oficialmente, ele não parecia existir. Era um homem sem passado.

Passou pela cabeça de Authié que Baillard pudesse ser um membro dissi­dente da Noublesso Véritable. Sua idade, seu histórico, seu interesse pela histó­ria dos cátaros e seu conhecimento de hieróglifos o relacionavam à Trilogia do Labirinto.

Authié sabia que havia uma ligação. Era só uma questão de tempo para descobri-la. Ele destruiria a caverna agora mesmo, sem um instante de hesita­ção, não fosse pelo fato de ainda não ter conseguido os livros. Ele era o instru­mento de Deus por meio do qual a heresia de 4 mil anos finalmente seria varrida da face da Terra. Só quando os pergaminhos profanos fossem devolvi­dos à câmara é que ele agiria. Então, entregaria todos e tudo ao fogo.

A lembrança de que tinha só dois dias para encontrar o livro o estimulou a voltar à ação. Com os olhos cinzentos aguçados pela convicção, Authié deu outro telefonema.

— Amanhã de manhã — disse. — Deixe ela preparada.

Enquanto percorriam em silêncio o hospital de Foix, Audric Baillard prestava atenção no estalo produzido pelos sapatos marrons de Jeanne sobre o piso de linóleo cinza.

Todo o resto daquele lugar era branco. Suas roupas cor de giz, o unifor­me dos técnicos, seus sapatos de sola de borracha, as paredes, os quadros, as pranchetas. O inspetor Noubel, amarrotado e desarrumado, destacava-se na­quele ambiente estéril. Parecia não trocar de roupa há dias.

Um carrinho estava sendo empurrado pelo corredor em sua direção, as rodas rangendo dolorosamente no ar silencioso. Eles recuaram para deixá-lo passar. A enfermeira agradeceu a gentileza com um leve movimento de cabeça.

Baillard tinha consciência de que estavam tratando Jeanne com um cui­dado especial. Sua empatia, sem dúvida genuína, estava mesclada de preocu­pação pela maneira como ela lidaria com o choque. Ele deu um sorriso amar­go. Os jovens sempre esqueciam que a geração de Jeanne vira e vivera muito mais do que eles. A guerra, a Ocupação, a Resistência. Haviam matado, morrido e visto seus amigos morrerem. Eram tenazes. Nada os surpreendia, exceto, talvez, a infinita capacidade de recuperação do ser humano.

Noubel parou na frente de uma grande porta branca. Abriu-a com um empurrão e recuou para deixá-los passar primeiro. Um ar frio e um cheiro forte de desinfetante os acolheram. Baillard tirou o chapéu e o segurou contra o peito.

As máquinas agora estavam silenciosas. No meio do quarto, debaixo da janela, havia uma cama, e em cima dela um volume coberto por um lençol que pendia torto nas beiradas.

Eles fizeram tudo que podiam — murmurou Noubel.

O meu neto foi assassinado, inspetor? — perguntou Jeanne. Era a primeira vez que ela falava desde que havia chegado ao hospital e sabido que já era tarde demais.

Baillard viu as mãos do inspetor, caídas ao lado de seu corpo, serem percorridas por um espasmo.

E cedo demais para dizer, madame Giraud, mas...

Estão tratando a morte dele como morte suspeita, inspetor, sim ou não?

Sim.

Obrigada — disse ela no mesmo tom de voz. — É só isso que eu queria saber.

Se não precisarem de mais nada, vou deixar vocês aqui para se despe­direm — disse Noubel, começando a tomar a direção da porta. — Vou estar com madame Claudette na sala dos parentes, se precisarem de mim.

A porta se fechou com um estalo nítido. Jeanne deu um passo em dire­ção à cama. Tinha o rosto cinza e a boca contraída, mas suas costas e ombros estavam retos como nunca.

Ela afastou o lençol. A imobilidade da morte encheu o quarto. Baillard pôde ver como Yves parecia moço. Sua pele era muito branca e lisa, sem rugas. O alto de sua cabeça estava coberto de gazes. Fios de cabelo preto saíam pelas bordas. Suas mãos, com as juntas vermelhas e arranhadas, estavam unidas sobre o peito como as de um faraó menino.

Baillard ficou olhando para Jeanne enquanto ela se inclinava e beijava o neto na testa. Então, com a mão firme, ela cobriu seu rosto e se virou.

— Vamos? — disse, segurando o braço de Baillard.

Tornaram a sair para o corredor vazio. Baillard olhou para a esquerda e para a direita, e em seguida conduziu Jeanne até uma fileira de cadeiras de plástico presas à parede. O silêncio era opressivo. Automaticamente, eles bai­xaram a voz, mesmo não havendo ninguém ali para escutá-los.

— Já fazia algum tempo que eu estava preocupada com ele, Audric — disse ela. — Eu tinha visto uma mudança nele. Ele se tornou retraído, ansioso.

Você perguntou para ele o que estava acontecendo?

Ela assentiu.

Ele disse que não era nada. Só estresse, trabalho demais.

Audric pousou a mão no braço dela.

Ele amava você, Jeanne. Talvez não estivesse acontecendo nada. Talvez estivesse. — Ele fez uma pausa. — Se o Yves estava metido em alguma coisa errada, isso ia contra a natureza dele. A consciência dele estava atormen­tada. No final, na hora mais importante de todas, ele fez a coisa certa. Man­dou o anel para você, sem ligar para as conseqüências.

O inspetor Noubel me perguntou sobre o anel. Ele queria saber se eu tinha falado com o Yves na segunda-feira.

O que você respondeu?

— A verdade: que não.

Audric suspirou aliviado.

— Mas você acha que o Yves estava sendo pago para passar informações, não acha, Audric? — A voz dela hesitava, mas continuava firme. — Me diga.

Eu prefiro ouvir a verdade.

Ele ergueu a mão.

Como posso falar a verdade, quando eu não sei qual é a verdade?

Então me diga do que você desconfia. Não saber... — Ela se interrom­peu. — Não tem nada pior.

Baillard imaginou o instante em que a pedra havia fechado a entrada da caverna, encurralando os lá dentro. Não saber o que estava acontecendo com ela. O cheiro da caixa, o rugido das chamas, os soldados gritando enquanto eles corriam. Lugares e imagens recordadas pela metade. Não saber se ela estava viva ou morta.

Es vertat — disse ele baixinho. — É o não saber que é insuportável.

— Ele tornou a suspirar. — Tudo bem. Eu acho, sim, que o Yves estava sendo pago para dar informações, em primeiro lugar sobre a Trilogia, mas provavel­mente sobre outras coisas também. Imagino que no começo tudo tenha pare­cido inofensivo: um telefonema aqui, outro ali, detalhes sobre onde alguém iria estar, com quem poderia conversar; mas desconfio que eles logo tenham começado a pedir mais do que ele estava disposto a dar.

"Eles"? Então você sabe quem são os responsáveis?

E só especulação — disse ele depressa. — A raça humana não muda muito,Jeanne. Na superfície, parecemos diferentes. Evoluímos, desenvolve­mos novas regras, novos padrões de vida. Cada geração afirma valores moder­nos e dispensa os antigos, orgulhosa de sua sofisticação, de seu conhecimento.

Parece que temos pouca coisa em comum com aqueles que vieram antes de nós. — Ele bateu no peito. — Mas, dentro destas vestes de carne, o coração humano bate do mesmo jeito que sempre bateu. A ganância, o desejo de po­der, o medo da morte, essas emoções não mudam. — A voz dele se abrandou.

— As coisas boas da vida também não mudam. O amor, a coragem, a dispo­sição para dar a vida pelas coisas em que se acredita, a gentileza.

Será que isso vai terminar um dia?

Baillard hesitou.

Eu rezo para que sim.

Acima de suas cabeças, o relógio marcava o passar do tempo. Na outra ponta do corredor, vozes abafadas, passos, o chiado de solas de borracha sobre o piso, ouvidos por um instante, depois mais nada.

Você não vai falar com a polícia? — perguntou Jeanne depois de algum tempo.

Não acho sensato.

Você não confia no inspetor Noubel?

Benlèu. — Talvez. — A polícia devolveu a você os objetos pessoais do Yves? As roupas que ele estava usando quando foi trazido, as coisas que tinha no bolso?

As roupas estavam... não deu para salvar. O inspetor Noubel disse que ele não tinha nada no bolso a não ser a carteira e as chaves.

Nada? Nem a carte d'identité, nenhum documento, nenhum telefone? O inspetor não achou isso estranho?

Ele não disse nada.

— E o apartamento dele? Encontraram alguma coisa lá? Algum documento?

Jeanne deu de ombros.

— Não sei. — Ela fez uma pausa. — Pedi a um dos amigos dele para me fazer uma lista de quem estava na escavação na segunda à tarde. — Ela lhe entregou um pedaço de papel com alguns nomes escritos em caligrafia apres­sada. — Não está completa.

Ele baixou os olhos.

— E isto? — perguntou, apontando para o nome de um hotel.

Jeanne olhou.

Você queria saber onde a inglesa estava hospedada. — Ela fez uma pausa. — Ou, pelo menos, foi essa a informação que ela deu ao inspetor.

Dra. Alice Tanner — murmurou ele entre os dentes. Depois de tanto tempo, ela havia chegado até ele. — Então é para lá que vou mandar a mi­nha carta.

Eu posso entregar a carta para você quando voltar para casa.

Não — disse ele, abrupto. Jeanne ergueu os olhos, surpresa. — Des­culpe — disse ele depressa. — É gentileza sua oferecer, mas... Não acho seguro você voltar para casa. Pelo menos por enquanto.

Por que não?

Eles não vão demorar muito tempo para descobri que o Yves mandou o anel para você, se é que já não sabem. Por favor, fique na casa de algum amigo. Saia da cidade e vá para algum lugar, com a Claudette, qualquer lugar.

Aqui não é seguro.

Para surpresa dele, ela não discutiu.

Desde que chegamos aqui que você fica olhando por cima do ombro.

Baillard sorriu. Pensava ter conseguido dissimular a própria ansiedade.

E você, Audric?

— Para mim é diferente — disse ele. — Eu estou esperando este mo­mento há... há mais tempo do que sou capaz de dizer, Jeanne. E assim que tem de ser,aconteça o que acontecer.

Por um instante, Jeanne não disse nada.

— Quem é ela, Audric? — perguntou baixinho. — Essa moça inglesa?

Por que ela é tão importante para você?

Ele sorriu, mas não conseguiu responder.

— E daqui, você vai para onde? — perguntou ela afinal.

Baillard soltou um arquejo. Veio-lhe à mente uma imagem de seu vilarejo, como um dia tinha sido.

— Oustâou — respondeu ele, suave. — Vou voltar para casa. A la perfin.

— Finalmente.

 

Shelagh havia se acostumado com o escuro.

Estava presa em um estábulo, ou algum tipo de curral para animais. Havia um cheiro forte e azedo de fezes, urina, palha, e um odor adocicado e enjoativo, como carne rançosa. Uma faixa de luz branca entrava por debaixo da porta, mas ela não conseguia dizer se era o final da tarde ou o início da manhã. Não tinha sequer certeza do dia em que estavam.

A corda em volta de suas pernas ardia, irritando a pele esfolada e arra­nhada de seus tornozelos. Seus pulsos estavam amarrados juntos, e ela estava presa a uma das várias argolas de metal chumbadas na parede.

Shelagh mudou de posição, tentando ficar mais confortável. Insetos ras­tejavam por suas mãos e rosto. Ela estava coberta de picadas. Seus pulsos esta­vam doloridos por causa do atrito da corda, e seus ombros enrijecidos, já que os braços estavam puxados para trás havia muito tempo. Camundongos ou ratos corriam pela palha nos cantos do curral, mas ela havia se acostumado com eles do mesmo modo que havia deixado de reparar na dor.

Se ao menos ela tivesse ligado para Alice. Outro erro. Shelagh pergun­tou-se se Alice havia continuado, ou desistido. Se tivesse telefonado para a sede da escavação e descoberto seu desaparecimento, ela perceberia que algu­ma coisa estava errada, ou não? E Yves? Será que Brayling havia chamado a polícia...?

Shelagh sentiu os olhos se encherem de lágrimas. O mais provável era que não tivessem se dado conta de que ela havia desaparecido. Vários de seus colegas haviam anunciado a intenção de se afastar por alguns dias até a situa­ção se resolver. Talvez achassem que ela houvesse feito a mesma coisa.

Já fazia algum tempo que a fome deixara de incomodá-la, de tão intensa, mas ela estava com sede. Tinha a sensação de ter engolido uma lixa. A pequena quantidade de água que tinham lhe dado havia terminado, e seus lábios estavam rachados de tanto que ela os lambera. Tentou se lembrar de quanto tempo uma pessoa normal, saudável, podia sobreviver sem água. Um dia? Uma semana?

Shelagh ouviu o barulho do cascalho sendo esmigalhado. Seu coração se contraiu e a adrenalina disparou por suas veias, como sempre que ouvia algum barulho lá fora. Até agora, ninguém havia entrado.

Ela se ergueu até ficar sentada enquanto o cadeado era destrancado. Ou­viu-se um barulho forte de metal quando a corrente caiu, dobrando-se sobre si mesma em espirais de ruído seco, depois o som da porta girando com dificul­dade nas dobradiças. Shelagh desviou o rosto quando a luz do sol, agressiva­mente intensa, invadiu a penumbra do barracão, e um homem moreno e atarracado abaixou-se para passar pelo vão da porta. Apesar do calor, ele usava uma jaqueta, e seus olhos estavam escondidos atrás de óculos escuros. Instin­tivamente, Shelagh se encolheu junto à parede, envergonhada com o nó aper­tado de medo no próprio estômago.

O homem atravessou o barracão em duas passadas. Agarrou a corda e puxou para pô-la de pé. Tirou uma faca do bolso.

Shelagh se retraiu, tentou se afastar.

— Non — murmurou. — Por favor. — Desprezava o tom de súplica da própria voz, mas não conseguia evitar. O terror havia levado embora todo o seu orgulho.

Ele sorriu enquanto aproximava a lâmina de sua garganta, revelando dentes apodrecidos e amarelados pelo fumo. Levou as mãos às costas dela e cortou a corda que a prendia à parede, depois deu-lhe um safanão, puxando-a para a frente. Fraca e desorientada, Shelagh perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente de joelhos.

— Não consigo andar. Você vai ter que me desamarrar. — Ela olhou para os próprios pés. — Mes pieds.

O homem hesitou por um instante, depois cortou as cordas mais grossas que prendiam seus tornozelos como se desossasse um pedaço de carne.

— Lève-toi. Vite!— Ele ergueu o braço como se fosse bater nela, mas depois tornou a puxar a corda, arrastando a em sua direção. — Vite. — As pernas dela estavam rígidas, mas ela estava assustada demais para desobedecer.

Seus tornozelos estavam rodeados de pele ferida que repuxava a cada passo, fazendo a dor subir por suas canelas como uma corrente elétrica.

O chão subia e descia debaixo de seus pés enquanto ela saía para a clari­dade. O sol estava forte. Ela o sentiu queimar-lhe a retina. O ar estava quente e úmido. Parecia estar sentado sobre o quintal e os prédios como um Buda maligno.

Enquanto percorria a pequena distância para sair de sua prisão improvi­sada, um dos vários currais abandonados que ela agora podia ver, Shelagh se forçou a olhar em volta, percebendo que aquela poderia ser a única chance que teria de descobrir para onde a tinham levado. E quem eram eles, acrescentou mentalmente. Apesar de tudo, ela não tinha certeza.

Tudo havia começado em março. Ele tinha sido encantador, gentil, e quase pedira desculpas por estar incomodando. Trabalhava para outra pessoa, explicou, alguém que desejava permanecer anônimo. Tudo que queria era que ela desse um telefonema. Informação, só isso. Estava disposto a pagar muito bem. Pouco depois, a combinação mudou: metade pela informação, o resto contra a entrega. Pensando no assunto agora, Shelagh não tinha certeza de quando havia começado a ter dúvidas.

O cliente não se encaixava no perfil normal do colecionador que pode ser facilmente enganado e está disposto a pagar mais do que o necessário, sem fazer nenhuma pergunta. Para começar, tinha uma voz jovem. Geralmente aquelas pessoas mais pareciam caçadores de recompensas medievais: supersti­ciosas, suscetíveis, burras, obcecadas. Ele não era nenhuma dessas coisas. Só isso já deveria ter bastado para fazer disparar seu alarme.

Retrospectivamente, parecia absurdo ela nunca ter se perguntado por que, se o anel e o livro tinham apenas um valor sentimental, ele estava disposto a fazer tanto sacrifício.

Qualquer objeção moral que Shelagh pudesse ter tido quanto ao fato de roubar e vender artefatos havia desaparecido anos atrás. Ela já tinha sofrido o suficiente nas mãos de museus antiquados e instituições acadêmicas elitis­tas para acreditar que eles fossem guardiães mais adequados para os tesouros antigos do que colecionadores particulares. Ela pegava o dinheiro; eles con­seguiam o que queriam. Todo mundo ficava feliz. O que acontecia depois não era problema dela.

Olhando para trás, percebeu que havia ficado com medo muito antes do segundo telefonema, e certamente semanas antes de convidar Alice para ir ao Pic de Soularac. Então, quando Yves Biau tinha entrado em contato com ela e eles haviam comparado suas histórias... O nó em seu peito se apertou.

Se alguma coisa acontecesse com Alice, seria culpa sua.

Chegaram à sede da fazenda, uma construção de tamanho médio, rodeada de outras construções secundárias em péssimo estado, uma garagem e um de­pósito de vinho. A tinta das persianas e da porta da frente estava descascando, e as janelas vazias escuras pareciam bocas escancaradas. Dois carros estavam estacionados na frente da casa, mas fora isso tudo estava inteiramente deserto.

A toda volta estendiam-se horizontes ininterruptos de montanhas e va­les. Pelo menos ela ainda estava nos Pireneus. Por algum motivo, aquilo lhe deu esperança.

A porta estava aberta, como se estivessem sendo aguardados. Lá dentro estava fresco, embora, à primeira vista, não houvesse ninguém. Uma camada de poeira cobria tudo. Parecia que um dia aquele lugar havia sido um hotel ou auberge. Havia uma mesa de recepção logo na entrada, encimada por uma fileira de ganchos, todos vazios, que pareciam um dia ter guardado chaves.

O homem puxava a corda para fazê-la continuar andando. Assim tão de perto, cheirava a suor, loção após barba barata e tabaco rançoso. Shelagh ou­viu o som de vozes vindas de um cômodo à sua esquerda. A porta estava entre aberta. Ela desviou os olhos para tentar distinguir alguma coisa e viu, de relance, um homem em pé na frente da janela, de costas para ela. Sapatos de couro e pernas cobertas por calças claras de verão.

Ela foi forçada a subir as escadas até o segundo andar, depois a cruzar um corredor e subir outro lance de escadas confinadas, estreitas, até chegar a um sótão abafado que ocupava praticamente todo o último pavimento da casa. Pararam diante de uma porta aberta no forro.

Ele soltou as trancas e empurrou-a na base das costas, arremessando a para a frente. Ela aterrissou pesadamente, batendo com o cotovelo no chão, enquanto ele fechava a porta com violência atrás de si. Apesar da dor, Shelagh atirou-se contra a porta, gritando e esmurrando o revestimento de metal, mas a porta havia sido especialmente adaptada e era possível ver o metal cintilando nas bordas.

Acabou desistindo e se virou para examinar a nova casa. Havia um col­chão encostado na parede dos fundos. Em cima dele, um cobertor cuidadosa­mente dobrado. Em frente à porta havia uma pequena janela. Barras de metal haviam sido pregadas na parte interna. Shelagh atravessou o aposento com dificuldade e viu que agora estava na parte dos fundos da casa. As barras eram sólidas e não se moveram nem um centímetro quando ela as puxou. De toda forma, a altura era muito grande.

No canto havia uma pequena pia, com um balde ao lado. Ela o usou como penico e, com esforço, abriu as torneiras. Os canos gorgolejaram e tos­siram como um fumante de dois maços de cigarro por dia, mas, depois de alguns alarmes falsos, um fino filete de água apareceu. Unindo as mãos imun­das em concha, Shelagh bebeu até sentir cãibras na barriga. Depois lavou-se o melhor que pôde, molhando os pulsos e tornozelos machucados pelas cordas, que estavam cobertos de sangue seco.

Um pouco depois, o homem lhe trouxe algo para comer. Mais do que o normal.

— Por que eu estou aqui?

Ele pousou a bandeja no meio do quarto.

Por que você me trouxe para cá? Pourquoi je suis là?

Il te le dira.

Quem quer falar comigo?

Ele indicou a comida com um gesto.

Mange.

Você vai ter que me desamarrar. -— Depois ela repetiu. — Quem?

Me diga.

Ele empurrou a bandeja para a frente com o pé.

— Coma.

Depois que ele saiu, Shelagh atirou-se sobre a comida. Comeu cada mi­galha, até o miolo e os caroços da maçã , e em seguida voltou à janela. Os primeiros raios do sol irromperam acima do cume da montanha, fazendo o mundo passar de cinza para branco.

Ao longe, ela ouviu o barulho de um carro dirigindo-se lentamente para a sede da fazenda.

 

As instruções de Karen eram precisas. Uma hora depois de sair de Carcassonne, Alice chegou aos arredores de Narbonne. Seguiu as placas que indicavam Cuxac d'Aude e Capestang por uma estrada bonita, ladeada por bambuzais altos e mato sacudidos pelo vento, abrigando campos verdes e férteis. A paisagem era muito diferente das montanhas da Ariège ou da garrigue das Corbières.

Eram quase duas horas quando Alice chegou a Sallèles d'Aude. Estacio­nou debaixo das limeiras e pinheiros que margeavam o Canal du Midi, logo abaixo da eclusa, depois foi andando por ruas bonitas até chegar à rue des Burgues.

A pequenina casa de três andares de Grace ficava na esquina e dava dire­tamente para a rua. Uma roseira, com brotos cor de carmim pendendo pesa­dos dos galhos, emoldurava a antiquada porta de madeira e as grandes janelas de persianas marrons. A fechadura estava emperrada, e Alice teve de sacudir a pesada chave de latão até conseguir fazê-la girar. Deu um bom empurrão e um rápido pontapé na porta. Esta se abriu gemendo, arrastando-se sobre o chão de lajotas pretas e brancas e os jornais gratuitos que a prendiam pelo lado de dentro.

A porta dava para um único cômodo no térreo, com a cozinha à esquerda e uma grande área de estar à direita. A casa estava fria e úmida, com o cheiro estagnado de um lugar que passou muito tempo fechado. O ar frio se enroscou em suas pernas nuas como um gato. Alice tentou o interruptor de luz, mas a força havia sido desligada. Recolhendo a correspondência não-solicitada e os folhetos e pondo-os sobre a mesa para tirá-los do caminho, ela se inclinou sobre a pia, abriu a janela e lutou com a trava complicada até conse­guir prender as persianas.

Uma chaleira elétrica e um fogão modelo antigo com uma grelha alta eram o mais próximo que sua tia conseguira chegar dos confortos modernos. O escorredor de louça estava vazio e a pia, limpa, embora algumas esponjas, rígidas como velhos ossos ressequidos, estivessem presas atrás das torneiras.

Alice atravessou a sala e abriu a grande janela da sala de estar, afastando as pesadas persianas marrons. Imediatamente, o sol inundou o aposento, trans­formando-o. Inclinando-se para fora, ela inalou o aroma das rosas, relaxando por um instante sob o toque do ar quente de verão, deixando que ele levasse embora as sensações de desconforto. Sentia-se uma intrusa, bisbilhotando a vida de outra pessoa sem permissão.

Duas poltronas de encosto alto estavam dispostas de um lado e de outro da lareira. O revestimento da chaminé era de pedra cinza, e alguns enfeites de porcelana estavam dispostos sobre o parapeito, cobertos de poeira. Dentro da lareira ainda havia os resquícios enegrecidos de um fogo. Alice os cutucou com o pé e eles desabaram, fazendo subir uma nuvem de cinza fina que flu­tuou sobre tudo em volta.

Pendurado na parede ao lado da lareira havia um quadro a óleo retratan­do uma casa de pedra com um telhado oblíquo de telhas vermelhas, localizada entre campos de girassol e vinhedos. Alice espiou o garrancho de assinatura no canto inferior direito: BAILLARD.

Uma mesa de jantar, quatro cadeiras e um aparador ocupavam os fundos da sala. Alice abriu as portas e encontrou um conjunto de porta copos e jogos americanos, decorados com imagens de catedrais francesas, uma pilha de guardanapos de pano e um faqueiro de prata, que tilintou bem alto quando ela fechou a gaveta. A louça de melhor qualidade — travessas de mesa, jarra de creme, tigelas para sobremesa e uma molheira — estava guardada nas pratelei­ras mais baixas.

Bem no fundo da sala havia duas portas. A primeira revelou-se um armá­rio de serviço — tábua de passar, pá e vassoura de lixo, outra vassoura de cabo comprido, alguns ganchos para casacos e vários sacos plásticos do supermerca­do Géant enfiados uns dentro dos outros. A segunda porta escondia a escada.

Suas sandálias estalaram nos degraus de madeira quando ela subiu a es­cada no escuro. Logo adiante havia um banheiro funcional, ladrilhado de rosa, com um pedaço de sabão ressecado na pia e uma flanela dura de tão seca pendurada em um gancho ao lado do espelho sem ornamentos.

O quarto de Grace ficava à esquerda. A cama de solteiro estava feita, com lençóis, cobertores e um pesado edredom de penas. Sobre uma cômoda de mogno na cabeceira havia um velhíssimo frasco de Leite de Magnésia com uma crosta branca ao redor do gargalo e uma biografia de Eleonora da Aquitânia escrita por Alison Weir.

A visão de um antigo marcador de livro assinalando a página tocou seu coração. Podia imaginar Grace apagando a luz para ir dormir, inserindo o marcador na página em que havia parado a leitura. Mas o tempo havia se esgotado. Ela morrera antes de ter tempo de terminar. Sentindo-se atipicamente sentimental, Alice separou o livro. Pretendia levá-lo consigo e dar-lhe um lar.

Na gaveta da mesinha-de-cabeceira havia um sachê de lavanda, a fita cor de rosa que o fechava desbotada de tão velha, assim como uma receita médica e uma caixa de lenços de papel. Vários outros livros estavam enfileirados no espaço abaixo da gaveta. Alice se agachou e inclinou a cabeça para o lado de modo a ler as lombadas, como sempre incapaz de resistir a bisbilhotar o que outras pessoas tinham em suas estantes. Os livros eram em sua maioria o que ela esperava. Um ou dois de Mary Stewart, alguns de Joanna Trollopes, uma velha edição de clube do livro de Peyton Place e um livro fino sobre os cátaros. O nome do autor estava impresso em maiúsculas: A. S. BAILLARD. Alice arqueou as sobrancelhas. Seria o mesmo autor do quadro do térreo? O nome da tradutora estava impresso logo abaixo: J. GIRAUD.

Alice virou o livro e leu a quarta capa. O autor havia escrito uma tradu­ção do Evangelho de São João para o occitano, bem como vários livros sobre o Egito Antigo e uma biografia premiada de Jean-François Champollion, o es­tudioso do século XIX que havia decifrado o segredo dos hieróglifos.

Algo se acendeu na mente de Alice. A biblioteca em Toulouse com os mapas, quadros e ilustrações piscando na tela diante de seus olhos. Outra vez o Egito.

A ilustração de capa do livro de Baillard era uma fotografia de um castelo em ruínas envolto em uma bruma cor de púrpura, perigosamente empoleirado no alto de uma rocha íngreme. Alice o reconheceu pelos postais e guias como Montségur.

Folheou o livro. As páginas se abriram por conta própria onde começava o último terço do volume, no lugar em que um pedaço de cartolina fora inse­rido na lombada. Alice começou a ler:

A cidadela fortificada de Montségur fica no alto da montanha, a quase uma hora de subida do vilarejo de Montségur. Muitas vezes escondida por nuvens, três lados do castelo foram escavados na própria rocha. Trata-se de uma fortaleza natural extraordinária. O que resta dela não remon­ta ao século XIII, mas às guerras de ocupação mais recentes. Mesmo as­sim, o espírito do lugar continua a lembrar o visitante de seu passado.

São muitas as lendas associadas à Montségur — a montanha segura. Alguns acreditam que ela seja um templo solar, outros que ser­viu de inspiração para o Munsalvaesche de Wagner, seu Refugio ou Montanha do Graal na maior de suas obras, Parsifal. Outros acredi­tavam que ali fora o último lugar de descanso do Graal. Já foi sugerido que os cátaros eram os guardais do Cálice de Cristo, junto com muitos outros tesouros do Templo de Salomão em Jerusalém, ou talvez do ouro dos visigodos e de outras riquezas de origem não especificada.

Embora se acredite que o tesouro cátaro tenha sido contrabandeado para fora da cidadela cercada em janeiro de 1244, pouco antes da derrota final, a fortuna jamais foi encontrada. Os boatos de que esse tesouro precioso dentre todos os outros se perdeu são imprecisos. *

Alice seguiu o asterisco até o pé da página. Em vez de uma nota, o que havia era uma citação do Evangelho de São João, capítulo oito, versículo 32: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”.

Ela arqueou as sobrancelhas. Aquilo não parecia ter muito a ver com o texto.

Alice pôs o livro de Baillard junto com os outros que pretendia levar e, em seguida, foi até o quarto dos fundos.

Nele havia uma velha máquina de costura Singer, estranhamente inglesa naquela casa francesa de grossas paredes. Sua mãe tinha uma igualzinha àque­la, e passava horas sentada costurando, enchendo a casa com as reconfortantes batidas e roncos do pedal.

Alice passou a mão sobre a superfície empoeirada. A máquina parecia em bom estado. Abriu os compartimentos um de cada vez e encontrou carretéis de linha de algodão, agulhas, alfinetes, pedaços de renda e fitas, uma carteia de antiquados fechos de pressão prateados e uma caixa de botões sortidos.

Virou-se para a escrivaninha de carvalho perto da janela, que dava para um pequeno quintal fechado atrás da casa. As primeiras duas gavetas esta­vam forradas de papel de parede, mas completamente vazias. A terceira, sur­preendentemente, estava trancada, embora a chave houvesse sido deixada na fechadura.

Com uma mistura de força e sacudidelas na pequena chave prateada, Alice conseguiu abri-la. No fundo havia uma caixa de sapatos. Ela a tirou da gaveta e pôs em cima da escrivaninha.

Dentro da caixa estava tudo muito bem arrumado. Havia uma pilha de fotos presa por um barbante. Por cima, uma única carta solta. Estava endereçada a Mme. Tanner em uma caligrafia preta e miúda. O selo do correio dizia Carcassonne, 16 Mars 2005, e a palavra PRIORITAIRE estava carimbada por cima em vermelho. Não havia endereço do remetente atrás, apenas um nome impresso na mesma caligrafia da frente: Expéditeur Audric S. Baillard.

Alice enfiou os dedos no envelope e tirou lá de dentro uma única folha de papel grosso cor de creme. Não havia data, endereço nem explicação, ape­nas um poema escrito na mesma caligrafia:


Bona nuèit, bona nuèit... Braves amics, pica mièja-nuèit Cal finir velhada Ejos la flassada.

Uma lembrança tênue varreu a superfície de sua mente como uma canção há muito esquecida. As palavras gravadas no alto dos degraus da caverna. Ela podia jurar que era a mesma língua, sua mente inconsciente fazendo a conexão que sua mente consciente era incapaz de fazer.

Alice recostou-se na cama. Dezesseis de março, poucos dias antes da morte de sua tia-avó. Será que ela mesma pusera a carta na caixa, ou alguma outra pessoa fizera isso? O próprio Baillard?

Deixando o poema de lado, Alice desatou o barbante.

Eram dez fotografias ao todo, todas em preto-e-branco e organizadas em ordem cronológica. O mês, local e data estavam escritos atrás a lápis, em maiús­culas. A primeira era um retrato de estúdio de um menino sério vestido com um uniforme escolar, cabelos penteados rente à cabeça com um repartido bem visível. Alice virou a foto. Atrás estava escrito com tinta azul FREDERICK WILLIAM TANNER, SETEMBRO DE 1937. Em uma caligrafia diferente.

Seu coração deu um salto. A mesma foto de seu pai havia ficado exposta acima da lareira de sua casa, ao lado do retrato de casamento dos pais e de uma foto da própria Alice aos seis anos de idade, usando um vestido inteiriço de festa de mangas bufantes. Ela acompanhou os contornos de seu rosto com o dedo. Aquilo provava, no mínimo, que Grace sabia da existência do irmão caçula, mesmo que os dois nunca tivessem se encontrado.

Alice pôs a foto de lado e passou à seguinte, percorrendo a pilha de forma metódica. A primeira foto que encontrou da tia era surpreendentemen­te recente, tirada em um festival de verão em julho de 1958.

A semelhança de família era nítida. Assim como Alice, Grace era uma mulher mignon, com traços delicados, quase etéreos, embora seus cabelos fos­sem lisos e grisalhos e estivessem cortados bem curtos. Grace encarava a câmera de frente, a bolsa segura com firmeza diante do corpo como uma barreira.

A última foto era outra de Grace, alguns anos mais velha, em pé ao lado de um homem também idoso. Alice franziu o cenho. Ele lhe lembrava al­guém. Ela inclinou ligeiramente a foto, para mudar o modo como a luz incidia sobre a imagem.

Os dois estavam em pé na frente de uma velha parede de pedra. Havia algo formal na pose, como se não se conhecessem bem. Pelas roupas, devia ser final de primavera ou verão. Grace usava um vestido de mangas curtas, com uma faixa na cintura. Seu companheiro era alto e muito magro, e usava um terno de verão claro. Seu rosto estava oculto pela sombra do panamá, mas suas mãos manchadas e enrugadas denunciavam-lhe a idade.

Na parede atrás deles, podia-se ver parte de uma placa de rua francesa. Alice olhou com atenção para a pequena placa e conseguiu decifrar as palavras Rue des Trois Degrés. A legenda atrás da foto estava escrita na caligrafia miú­da de Baillard: A.B. e G.T.,junh 1982, Chartres.

Chartres de novo. Grace e Audric Baillard, tinha que ser. E 1982, o ano em que seus pais haviam morado.

Deixando aquela de lado também, Alice retirou o único objeto que falta­va da caixa, um pequeno livro antigo. O couro preto estava rachado e fechado por um zíper cor de bronze corroído, e as palavras BÍBLIA SAGRADA esta­vam gravadas em dourado na frente.

Depois de várias tentativas, Alice conseguiu abri-la. A primeira vista, parecia mais uma edição padrão da tradução inglesa. Foi só quando chegou ao último quarto do livro que descobriu que um buraco havia sido aberto nas páginas para criar um esconderijo raso e retangular, com cerca de dez centíme­tros por sete.

Lá dentro, bem dobradas, havia várias folhas de papel que Alice retirou com cuidado. Um disco de pedra claro, do tamanho de uma moeda de um euro, caiu do meio dos papéis e aterrissou em seu colo. Era chato e muito fino, feito de pedra, não de metal. Surpresa, ela o equilibrou entre os dedos. Havia duas letras gravadas. NS. Seriam pontos cardeais? As iniciais de alguém? Al­gum tipo de moeda?

Alice virou o disco. Gravado do outro lado estava o labirinto, idêntico em todos os detalhes às marcas na parte interna do anel e na parede da caverna.

O bom senso lhe disse que devia haver uma explicação perfeitamente aceitável para aquela coincidência, embora naquele momento ela não conse­guisse pensar em nenhuma. Olhou apreensiva para os papéis que abrigavam o disco. Estava nervosa com o que poderia descobrir, mas também curiosa de­mais para não abri-los.

Você não pode parar agora.

Alice começou a desdobrar as folhas. Precisou se conter para não dar um suspiro de alívio. Era apenas uma genealogia. A primeira folha trazia o título ARBRE GÉNÉALOGIQUE. A tinta estava desbotada e difícil de ler em alguns trechos, mas algumas palavras se destacavam. A maioria dos nomes estava em preto mas, na segunda linha, um deles estava escrito em tinta vermelha: ALAÏS PELLETIER DUMAS (1193-). Alice não conseguiu decifrar o nome escrito ao lado desse, mas na linha de baixo, ligeiramente mais à direita, havia outro nome, SAJHË DE SERVIAN, escrito em verde. Ao lado dos dois nomes havia um pequeno e delicado emblema doura­do. Alice pegou o disco de pedra e o pôs ao lado do símbolo na página, com o lado do desenho para cima. Eram idênticos.

Uma por uma, ela foi virando as páginas até chegar à última. Lá encon­trou um registro para Grace, com a data de sua morte acrescentada em tinta de cor diferente. Abaixo disso, e mais para o lado, apareciam os pais de Alice.

O último registro era o seu. ALICE HELENA (1976-), escrito em tinta vermelha. Ao lado, o símbolo do labirinto.

Com os joelhos dobrados junto ao queixo e os braços em volta das per­nas, Alice perdeu a conta de quanto tempo permaneceu sentada no quarto silencioso e abandonado. Por fim, compreendeu. O passado estava lhe esten­dendo a mão. Quer ela quisesse ou não.


 

A viagem de volta de Sallèles d'Aude a Carcassonne passou em um borrão. Quando Alice entrou no hotel, o saguão estava lotado de recém-chegados, então ela mesma pegou a chave do gancho e subiu sem ninguém notar.

Quando ia destrancar a porta, reparou que estava entreaberta.

Alice hesitou. Pôs a caixa de sapato e os livros no chão, depois abriu a porta com cuidado.

—Allô? Olá?

Passeou os olhos pelo quarto. Tudo lá dentro parecia estar como ela havia deixado. Ainda apreensiva, Alice passou por cima dos objetos que havia deixado no vão da porta e deu um passo cauteloso para dentro do quarto. Parou. Flutuava no ar um cheiro de baunilha e tabaco rançoso.

Houve um movimento atrás da porta. Seu coração pulou até a boca. Ela se virou depressa, bem a tempo de ver uma jaqueta cinza e cabelos pretos refletidos no espelho, antes de levar um empurrão no peito e cair para trás com violência. Sua cabeça bateu na porta espelhada do guarda-roupa, fazendo os cabides de arame no cabideiro lá dentro chacoalharem como bolas de gude em um telhado de zinco.

As bordas do quarto ficaram embaçadas. Tudo dançava, fora de foco. Alice piscou. Podia ouvi-lo descer o corredor correndo. Vá atrás dele. Depressa.

Alice se levantou titubeando e foi atrás do homem. Desembestou-se es­cada abaixo e chegou ao saguão, onde um grande grupo de italianos impedia sua saída. Em pânico, correu os olhos pelo aposento movimentado, bem a tempo de ver o homem desaparecer pela entrada lateral.

Foi empurrando a floresta de pessoas e bagagens, tropeçando em malas e sacolas, e saiu atrás dele para o jardim. Ele já estava no alto da subida. Reu­nindo seus últimos resquícios de energia, Alice saiu correndo, mas ele era rápido demais.

Quando ela chegou à rua principal, não havia nem sinal do homem. Ele desaparecera em meio às hordas de turistas que desciam da Cité. Alice levou as mãos aos joelhos, tentando recuperar o fôlego. Depois se endireitou e tocou a parte de trás da cabeça com os dedos. Um galo já estava se formando.

Com um último olhar para a rua, Alice virou as costas e caminhou de volta à recepção. Pedindo desculpas, foi direto para a frente da fila.

Pardon, mais vous l´avez vu?

A moça da recepção fez cara de contrariada.

Vou atender a senhora assim que terminar com este senhor — disse.

Infelizmente não vai dar para esperar — disse Alice. — Alguém en­trou no meu quarto. Ele acabou de sair correndo. Faz poucos minutos.

Madame, por favor, se a senhora puder esperar um minutinho... Alice levantou a voz para todo mundo poder ouvir.

Il y avait quelqu´un dans ma chambre. Un voleur.

Um silêncio se abateu sobre a recepção lotada. Os olhos da moça se arregalaram. Ela deslizou para fora do banco onde estava sentada e desapare­ceu. Segundos depois, o dono do hotel surgiu e conduziu Alice para longe do saguão principal.

— Qual foi o problema, madame? — perguntou ele em voz baixa. Alice explicou.

— A porta não foi forçada — disse ele, verificando o trinco, depois de acompanhá-la até seu andar.

Com o dono do hotel a observá-la do vão da porta, Alice verificou se alguma coisa estava faltando. Para sua surpresa, estava tudo lá. Seu passaporte continuava no fundo do armário, embora tivesse sido mexido. O mesmo se aplicava ao conteúdo de sua mochila. Nada estava faltando, mas tudo estava ligeiramente fora do lugar. Não chegava a ser uma prova convincente.

Alice verificou o banheiro. Por fim, encontrou alguma coisa.

— Monsieur, s´il vous plaît — chamou. Apontou para a pia. — Regardez.

Era possível sentir um forte cheiro de lavanda no lugar onde seu sabone­te fora despedaçado. O tubo de sua pasta de dentes também havia sido rasga­do, e o conteúdo espremido para fora.

— Voilà. Comme je vous ai dit. — Como eu lhe disse.

Ele parecia preocupado, mas ainda em dúvida. Madame gostaria que ele chamasse a polícia? É claro que ele perguntaria aos outros hóspedes se eles haviam escutado alguma coisa, mas já que nada parecia estar faltando...? Ele deixou a pergunta no ar.

Subitamente, o choque a atingiu. Aquilo não era um roubo aleatório. Quem quer que fosse, estava procurando alguma coisa específica, alguma coi­sa que pensava que estivesse com ela.

Quem sabia que ela estava naquele hotel? Noubel, Paul Authié, Karen Fleury e sua equipe, Shelagh. Até onde ela sabia, mais ninguém.

Não — disse ela depressa. — A polícia, não. Já que nada foi roubado. Mas eu quero me mudar para outro quarto. — Ele começou a protestar que o hotel estava lotado, depois parou ao ver a expressão no rosto dela.

Vou ver o que posso fazer.

Vinte minutos depois, Alice estava acomodada em outra parte do hotel.

Estava nervosa. Pela segunda ou terceira vez, verificou que a porta estava trancada e as janelas bem fechadas. Sentou-se na cama rodeada por suas coisas, tentando decidir o que fazer. Levantou-se, caminhou pelo pequeno quarto, tornou a se sentar, tornou a se levantar. Ainda não tinha certeza de que não deveria se mudar para outro hotel.

E se ele voltar hoje à noite?

Um alarme disparou. Alice deu um pulo, antes de perceber que era só o seu celular, tocando no bolso de sua jaqueta.

Allô, oui?

Foi um alívio ouvir a voz de Stephen, um dos colegas de Shelagh na escavação.

— Oi, Steve. Não, desculpe. Acabei de chegar. Ainda não tive tempo de olhar os recados. Está tudo bem?

Enquanto escutava, seu rosto foi perdendo a cor enquanto ele lhe conta­va que a escavação estava sendo fechada.

Mas por quê? Que motivo o Brayling deu?

Ele disse que não podia fazer nada.

Só por causa dos esqueletos?

A polícia não disse.

O coração dela começou a bater forte.

A polícia estava lá quando o Brayling anunciou isso? — perguntou.

Eles estavam lá em parte por causa da Shelagh — disse ele, depois parou. — Eu queria te perguntar, Alice: você falou com ela alguma vez desde que foi embora?

Não tenho notícia dela desde segunda-feira. Tentei ligar várias vezes ontem, mas ela não retornou nenhuma das minhas ligações. Por quê?

Alice percebeu que tinha se levantado enquanto esperava Stephen responder.

Parece que ela sumiu — disse ele, por fim. — O Brayling está tenden­do a interpretar o sumiço dela de um jeito meio sinistro. Ele desconfia que ela roubou alguma coisa da escavação.

A Shelagh não faria isso! — exclamou Alice. — De jeito nenhum. Ela não é do tipo...


Porém, enquanto falava, lembrou-se novamente da imagem do rosto pálido e irado de Shelagh. Sentia-se desleal, mas subitamente estava menos confiante.

É isso que a polícia pensa também? — perguntou.

Não sei. Só sei que está tudo um pouco esquisito — disse ele, vago. — Um dos policiais que estava na escavação segunda-feira morreu atropelado em Foix, e o carro fugiu — continuou ele. — Saiu no jornal. Parece que a Shelagh e ele se conheciam.

Alice desabou sobre a cama.

Desculpe, Steve. Estou achando difícil absorver tudo isso. Alguém está procurando por ela? Alguém está fazendo alguma coisa?

Tem uma coisa que podemos fazer — disse ele, hesitante. — Eu mesmo faria, mas vou voltar para casa amanhã bem cedo. Não tenho por que ficar aqui.

O que é?

Antes da escavação começar, sei que a Shelagh estava hospedada na casa de uns amigos em Chartres. Pensei que talvez ela pudesse ter ido para lá e esquecido de avisar.

Alice achava aquilo pouco provável, mas era melhor do que nada.

— Eu liguei para o número. Um cara atendeu e disse que nunca tinha ouvido falar na Shelagh, mas eu tenho certeza de que foi esse o telefone que ela me deu. Estava gravado na memória do meu celular.

Alice pegou um lápis e um papel.

— Me dê o número. Vou tentar também — disse, preparada para escrever.

Sua mão congelou.

Desculpe, Steve. — Sua voz soava oca, como se ela estivesse falando de um lugar muito distante. — Pode repetir, por favor?

É 02 68 72 31 26 — repetiu ele. — Você me avisa se descobrir alguma coisa?

Era o mesmo número que Biau lhe dera.

— Pode deixar — disse ela, mal consciente do que estava dizendo. — Eu te ligo.

Alice sabia que deveria telefonar para Noubel. Contar-lhe sobre o não-roubo e sobre seu encontro com Biau, mas hesitava. Não tinha certeza de que podia confiar em Noubel. Ele não havia feito nada para deter Authié.

Pôs a mão dentro da mochila e tirou lá de dentro seu mapa rodoviário da França. A idéia é maluca. São pelo menos oito horas de estrada.

Alguma coisa a incomodava, bem no fundo de sua mente. Tornou a olhar as anotações que havia feito na biblioteca.


Em meio à montanha de palavras sobre a catedral de Chartres, havia uma referência passageira ao Santo Graal. Lá também existia um labirinto. Alice encontrou o parágrafo que estava procurando. Leu-o duas vezes, para garantir que não havia entendido mal, depois puxou a cadeira de baixo da mesa com violência e sentou-se com o livro de Audric Baillard, abrindo-o na página marcada.

"Outros acreditavam que ali fora o último lugar de descanso do Graal. Já foi sugerido que os cátaros eram os guardiões do Cálice de Cristo...”.

O tesouro cátaro tinha sido contrabandeado para fora de Montségur. Para o Pic de Soularac, talvez? Alice voltou a atenção para o mapa no início do livro. Montségur não ficava muito longe dos Montes Sabarthès. E se o tesouro esti­vesse escondido lá?

O que liga Chartres a Carcassonne?

Ao longe, ouviu os primeiros rugidos do trovão. O quarto agora estava banhado em uma estranha luz laranja, que vinha dos postes da rua e se refletia na parte de baixo das nuvens noturnas. Um vento havia começado a soprar, fazendo estremecer as persianas e varrendo dejetos pelos estacionamentos.

Quando Alice estava fechando as cortinas, os primeiros pesados pingos de chuva começaram a cair, explodindo como gotas de tinta preta sobre o parapeito da janela. Sua vontade era ir embora naquele mesmo instante. Mas já estava tarde, e não queria se arriscar dirigindo sob o temporal.

Trancou as janelas e portas, ajustou o despertador e, em seguida, deitou-se de roupa e tudo para esperar pela manhã.

No início, foi tudo a mesma coisa. Conhecido, pacífico. Ela flutuava em um mundo branco e etéreo, transparente e silencioso. Então, como a porta do alçapão que se abre sob o cadafalso, sentiu um súbito puxão e foi caindo pelo céu aberto em direção à encosta arborizada da montanha, que subia veloz a seu encontro.

Ela sabia onde estava. Em Montségur, no começo do verão.

Alice começou a correr assim que seus pés tocaram o chão, tropeçando por uma trilha de floresta íngreme e acidentada entre duas colunas de árvores altas. As árvores eram densas, imensas, e pairavam acima dela. Ela se agarrava aos galhos para diminuir o ritmo, mas suas mãos passavam direto por eles, e punhados de pequenas folhas, desprendendo-se como cabelos de uma escova, manchavam de verde as pontas de seus dedos.

A trilha continuava a descer sob seus pés. Alice tinha consciência do chacoalhar de seixos e pedregulhos, que haviam substituído a terra macia, o musgo e os gravetos da trilha mais acima na montanha. Mesmo assim, o silên­cio continuava total. Nenhum pássaro cantava, nenhuma voz chamava, não havia nada, exceto sua própria respiração entrecortada.

A trilha se dobrava e tornava a se voltar sobre si mesma, fazendo-a correr para um lado e para outro, até ela fazer uma curva e ver o muro de fogo silen­cioso que bloqueava o caminho adiante. Ergueu as mãos para proteger o rosto das chamas vermelhas, alaranjadas e amarelas que tremeluziam e inflavam, golpeando e rodopiando no ar como juncos sob a superfície de um rio.

Então, o sonho começou a mudar. Dessa vez, em vez da multidão de rostos tomando forma nas chamas, havia apenas um: uma moça de expressão suave, porém decidida, que estendia o braço e pegava o livro da mão de Alice.

Ela estava cantando, com a voz límpida como prata.

"Bona nuèit, bona nuèit."

Dessa vez, nenhum dedo frio agarrou seus tornozelos nem a jogou no chão. O fogo não a atraía mais. Então ela começou a girar em espiral pelo ar como uma coluna de fumaça, com os braços magros e fortes da mulher a abraçá-la, segurando-a firme. Ela estava segura.

"Braves amics, pica mièja-nuèit."

Alice sorriu enquanto, juntas, elas continuavam a subir cada vez mais alto em direção à luz, deixando o mundo bem longe lá embaixo.

 

                           Carcassona

 

                           JULHET 1209

Alaïs acordou cedo, despertada pelos barulhos de serras e martelos no pátio lá embaixo. Olhou pela janela e viu as galerias e parapeitos de madeira que esta­vam sendo construídos sobre as muralhas do Château Comtal.

O impressionante esqueleto de madeira tomava forma rapidamente. Como uma passarela coberta no céu, ele era o posto perfeito de onde os arqueiros podiam fazer chover uma saraivada de flechas sobre o inimigo, na eventualidade improvável de que as muralhas da Cité em si fossem invadidas.

Ela se vestiu depressa e desceu correndo para o pátio. Na ferraria, as fogueiras rugiam. Martelos e bigornas ressoavam enquanto armas eram afia­das e modeladas; sapadores gritavam uns com os outros em frases curtas e incisivas enquanto os eixos, cordas e contrapesos das pèireras, as balistas, eram preparados.

Alaïs viu Guilhem em pé do lado de fora do estábulo. Seu coração deu um pulo. Repare em mim. Ele não se virou nem ergueu os olhos. Alaïs levantou a mão para chamá-lo, mas então foi dominada pela covardia e deixou o braço tornar a cair ao lado do corpo. Não se humilharia implorando pela afeição dele quando ele não estava disposto a dá-la.

As cenas de trabalho no interior do Château Comtal se reproduziam na Cité. Pedras de Corbières estavam sendo empilhadas bem alto na praça cen­tral, prontas para as balistas e catapultas. Um fedor azedo de urina vinha dos curtumes, onde peles de animais estavam sendo preparadas para proteger as galerias do fogo. Uma procissão constante de carroças entrava pela Porte Narbonnaise, trazendo comida para o abastecimento da Cité: carne salgada de La Piège e do Lauragais, vinho do Carcassès, cevada e trigo das planícies, feijões e lentilhas das hortas de Sant-Miquel e Sant-Vicens.

Havia um sentimento de orgulho e determinação por trás de toda aquela atividade. Somente as nuvens de fumaça preta malcheirosa acima do rio e dos brejos ao norte — onde o visconde Trencavel havia ordenado que os moinhos fossem queimados e as colheitas, destruídas — serviam de lembrete do quão iminente e real era a ameaça.

Alaïs esperou por Sajhë no ponto de encontro combinado. Tinha a cabe­ça cheia de perguntas que queria fazer a Esclarmonde, e estas entravam e saíam de sua mente, primeiro uma, depois a outra, como pássaros sobre um rio. Quando Sajhë chegou, ela já estava muda de tanta expectativa.

Seguiu-o por ruas sem nome até o subúrbio de Sant-Miquel, onde che­garam a uma porta baixa aberta nas muralhas externas. O barulho de homens cavando trincheiras para evitar que o inimigo se aproximasse o suficiente para minar as muralhas era muito alto. Sajhë teve de gritar para que ela o ouvisse.

Menina está esperando lá dentro — disse ele, com uma expressão subitamente solene.

Você não vai entrar?

Ela me disse para trazer você, depois voltar para o Chatêau para en­contrar o intendente Pelletier.

Procure-o na Cour d´Honneur — disse ela.

Está bem — respondeu ele, novamente sorrindo. — Vejo você mais tarde.

Alaïs abriu a porta com um empurrão e chamou, ansiando por ver Esclarmonde, depois deteve o passo. Nas sombras, pôde ver uma segunda figura sentada em uma cadeira no canto da sala.

— Entre, entre — disse Esclarmonde, o sorriso transparecendo na voz. — Acho que você já conhece Simeon.

Alaïs ficou atônita.

— Simeon? Já? — exclamou, encantada, correndo até ele e segurando-lhe as mãos. — Que novidades você traz? Quando chegou em Carcassona?Onde está hospedado?

Simeon deu uma risada gostosa e genuína.

— Quantas perguntas! Quanta pressa de saber tudo, e tão rapidamente!Bertrand disse que, quando você era pequena, nunca parava de fazer perguntas.

Alaïs reconheceu a verdade disso com um sorriso. Deslizou pelo banco em frente à mesa e aceitou a caneca de vinho que Esclarmonde oferecia, escu­tando enquanto ela e Simeon continuavam a conversar. Já parecia haver uma ligação entre os dois, uma familiaridade.


Ele era um ótimo contador de histórias, tecendo lembranças de sua vida em Chartres e Besièrs com reminiscências de sua vida na Terra Santa. O tem­po passou depressa, enquanto ele falava sobre as colinas da Judéia na primavera, contava-lhes sobre as planícies de Sepal, cobertas de lírios, íris amarelas e roxas e amendoeiras cor-de-rosa, que se estendiam como um tapete até os confins da Terra. Alaïs estava fascinada.

As sombras ficaram mais compridas. À medida que a tarde caía, a atmos­fera foi mudando, sem que Alaïs tivesse consciência de que isso acontecia. Percebeu um tremor nervoso no próprio estômago, uma preparação do que estava por vir. Imaginou se seria assim que Guilhem ou o pai se sentiam na véspera de uma batalha. Aquela sensação de tempo em precário equilíbrio.

Desviou os olhos para Esclarmonde, que tinha as mãos unidas no colo e o rosto sereno. Parecia composta e controlada.

Tenho certeza de que meu pai logo estará aqui — disse ela, sentindo-se responsável pela demorada ausência dele. — Ele me deu sua palavra.

Sabemos disso — disse Simeon, afagando sua mão. A pele dele era dura como pergaminho.

Pode ser que não possamos esperar muito mais — disse Esclarmonde, olhando para a porta que permanecia firmemente fechada. — Os donos desta casa logo vão voltar.

Alaïs notou que os dois trocavam um olhar. Incapaz de suportar a tensão por mais tempo, inclinou-se para frente.

— Ontem você não respondeu à minha pergunta, Esclarmonde. — Fi­cou espantada ao ouvir a firmeza da própria voz. — Você também é uma guardiã? O livro que meu pai procura está guardado com você?

Por um instante, suas palavras pareceram ficar suspensas no ar entre eles, sem que ninguém as assumisse. Então, para surpresa de Alaïs, Simeon deu uma risadinha.

Quanto seu pai lhe contou sobre a Noublesso? — perguntou ele, os olhos pretos brilhando.

Que havia sempre cinco guardiões, que juraram proteger os livros da Trilogia do Labirinto.

— E ele explicou por que eram cinco?Alaïs fez que não com a cabeça.

— O Navigatairé, o líder, tem sempre a ajuda de quatro iniciados. Jun­tos, eles representam os cinco pontos do corpo humano e o poder do número cinco. Cada guardião é escolhido por sua fortitude, sua determinação e sua lealdade. Cristão, sarraceno, judeu: é nossa alma e nossa coragem que impor­tam, não o sangue ou a raça. Isso também reflete a natureza do segredo que juramos proteger, que pertence a todas as fés e a nenhuma. — Ele sorriu. —Há mais de 2 mil anos a Noublesso de los Seres existe, embora nem sempre com esse nome, para guardar e proteger o segredo. Algumas vezes nossa presença esteve oculta, outras vezes vivemos abertamente. Alaïs virou-se para Esclarmonde.

Meu pai não está querendo aceitar a sua identidade. Ele não consegue acreditar.

Vai contra o que ele esperava.

Sempre foi assim com Bertrand — disse Simeon, rindo.

-— Ele nunca poderia esperar que o quinto guardião fosse uma mulher

— disse Alaïs, saindo em defesa do pai.

— Isso era menos incomum no passado — disse Simeon. — O Egito, a Assíria, Roma, Babilônia, essas culturas antigas de que você já ouviu falar demonstravam mais respeito com as mulheres do que estes nossos tempos obscuros.

Alaïs pensou por um instante.

— Você acha que Harif tem razão em acreditar que os livros ficarão mais seguros nas montanhas? — perguntou.

Simeon ergueu as mãos.

Não cabe a nós buscar a verdade nem questionar o que vai ou não acontecer. Nossa tarefa é simplesmente guardar os livros e protegê-los do peri­go. Para garantir que estejam prontos quando forem necessários.

Foi por isso que Harif escolheu seu pai para levar os livros, em vez de um de nós dois — continuou Esclarmonde. — Sua posição faz dele o envoi mais indicado. Ele tem acesso a homens e cavalos, e pode viajar com mais liberdade do que qualquer um de nós.

Alaïs hesitou, sem querer ser desleal com o pai.

Ele está relutante em deixar o visconde. Está dividido entre suas anti­gas lealdades e as novas.

Todos temos conflitos assim — disse Simeon. — Todos já nos vimos em uma situação em que nos esforçamos para escolher o melhor caminho a seguir. Bertrand tem sorte por ter vivido tanto tempo sem precisar fazer a escolha dele.

— Ele segurou a mão de Alaïs entre as suas. — Bertrand não pode demorar, Alaïs. Você precisa insistir com ele para que assuma suas responsabilidades. O fato de Carcassona nunca ter caído não significa que jamais vá cair.

Alaïs sentiu os olhos dos dois a observá-la. Levantou-se e foi até onde o fogo estava aceso. Seu coração disparava à medida que uma idéia se formava em sua mente.

— E permitido que outra pessoa aja no lugar dele? — perguntou com a voz firme.

Esclarmonde entendeu.


— Não acho que seu pai vá permitir isso. Você é preciosa demais para ele. Alaïs tornou a se virar de frente para eles.

— Antes de viajar para Montpelhièr, ele me julgava capaz dessa tarefa. Em princípio, ele já me deu permissão.

Simeon aquiesceu.

— Isso é verdade, mas a situação muda a cada dia. À medida que os franceses se aproximam das fronteiras das terras do visconde Trencavel, as estradas se tornam mais perigosas, como eu mesmo constatei. Não vai demo­rar muito para qualquer viagem ficar arriscada demais.

Alaïs insistiu.

— Mas eu estarei indo na direção oposta — disse ela, olhando de um para o outro. — E vocês não responderam à minha pergunta. Se as tradições da Noublesso não proíbem que eu tire esse fardo dos ombros do meu pai, então eu ofereço meus serviços no lugar dele. Sou mais do que capaz de proteger a mim mesma. Sou excelente amazona, sei manejar a espada e o arco. Ninguém nunca vai desconfiar que eu...

Simeon ergueu a mão.

Você está interpretando mal a nossa hesitação, filha. Eu certamente não duvido de sua coragem nem de sua resolução.

Então me dê sua bênção.

Simeon suspirou e virou-se para Esclarmonde.

Irmã, o que você diz? Se Bertrand concordar, é claro.

Eu lhe imploro, Esclarmonde, aprove o meu pedido — suplicou Alaïs.— Eu conheço meu pai.

Não posso prometer nada — disse ela por fim, mas não vou me opor a você. — Alaïs permitiu que um sorriso surgisse em seu rosto. — Mas você deve respeitar a decisão dele — continuou Esclarmonde. — Se ele não lhe der permissão, você precisa aceitar.

Ele não pode dizer não. Eu não vou deixar.

— Vou obedecer, é claro — disse ela.

A porta se abriu e Sajhë irrompeu sala adentro, seguido por Bertrand Pelletier.

Pelletier abraçou Alaïs, cumprimentou Simeon com grande alívio e afei­ção, e então prestou suas homenagens mais formais a Esclarmonde. Alaïs e Sajhë foram buscar vinho e pão enquanto Simeon explicava o que havia acon­tecido entre eles até então.

Para surpresa de Alaïs, seu pai escutou em silêncio e sem comentários.

Sajhë de início arregalou os olhos, mas logo ficou com sono e enroscou-se junto da avó. Alaïs participou da conversa, sabendo que Simeon e Esclarmonde defenderiam seu caso melhor do que ela própria. Mas, de vez em quando, lançava um olhar na direção do pai. Seu rosto estava cinza e enrugado, e ele parecia exausto. Ela podia ver que ele não sabia o que fazer.

Por fim, não havia mais palavras a dizer. Um silêncio ansioso abateu-se sobre o pequeno aposento. Todos esperavam, e ninguém tinha certeza da de­cisão que seria tomada.

Alaïs pigarreou.

Então, paire. Qual é a sua decisão? O senhor me dará permissão para ir? Pelletier suspirou.

Não quero colocar você em risco.Alaïs desanimou.

Eu sei, e sou grata pelo amor que tem por mim. Mas eu quero ajudar.Sou capaz disso.

Eu tenho uma sugestão que talvez satisfaça vocês dois — disse Esclarmonde baixinho. — Permita que Alaïs viaje com a Trilogia, mas so­mente parte do caminho, até Limoux, digamos. Tenho amigos que podem lhe dar hospedagem segura. Quando seu trabalho aqui estiver terminado e o vis­conde Trencavel puder dispensá-lo, o senhor poderá ir encontrá-la e os dois farão juntos a viagem até a montanha.

Pelletier fez uma cara zangada.

— Não vejo como isso pode ajudar. A loucura de fazer uma viagem assim nestes tempos inseguros vai atrair atenção, que é justamente o que que­remos evitar. Além disso, não sei dizer até quando minhas responsabilidades vão me manter em Carcassona.

Os olhos de Alaïs brilharam.

Isso é fácil. Eu poderia anunciar que estou cumprindo um juramento particular feito na ocasião do meu casamento — disse ela, improvisando con­forme ia falando. — Poderia dizer que desejo dar um presente ao abade de Saint-Hilaire. Daqui até Limoux, a distância é bem pequena.

Essa súbita demonstração de devoção não vai convencer ninguém,muito menos o seu marido — disse Pelletier, em um repentino rompante de bom humor.

Simeon sacudiu o dedo.

— E uma excelente idéia, Bertrand. Ninguém questionaria uma peregri­nação assim em um momento destes. Além do mais, Alaïs é filha do intendente de Carcassona. Ninguém ousaria questionar suas intenções.

Pelletier se remexeu na cadeira, a expressão obstinada e impassível.

— Ainda acho que a Trilogia está mais bem protegida aqui, dentro da Ciutat. Harif não pode estar tão bem informado sobre a situação quanto nós.Carcassona não vai ser tomada.


— Qualquer cidade, por mais forte, por mais inexpugnável que seja,pode cair. Você sabe disso. As instruções do Navigatairé são para lhe entregar os livros nas montanhas. — Ele encarou Pelletier com seus olhos negros. —Entendo que não se sinta capaz de abandonar o visconde Trencavel neste mo­mento. Você já disse isso, e nós aceitamos. É a sua consciência que está ditan­do seu comportamento, para o bem ou para o mal. — Ele fez uma pausa. —Mas, se você não pode ir, outra pessoa precisa ir no seu lugar.

Alaïs podia ver como era difícil para o pai conciliar as emoções contradi­tórias. Comovida, estendeu a mão e a pousou por cima da dele. Ele não disse nada, mas reconheceu o gesto da filha apertando-lhe os dedos.

— Aquò es vòstre — disse ela baixinho. Deixe-me fazer isto por você.Pelletier deixou um longo suspiro escapar de seus lábios.

— Você correrá grande perigo, filha. — Alaïs aquiesceu. — Mesmo as­sim quer fazer isto?

Será uma honra servir assim ao senhor.Simeon pousou a mão no ombro de Pelletier.

Ela é corajosa, esta sua filha. Leal. Como você, meu velho amigo.Alaïs mal se atrevia a respirar.

— Meu coração me diz para não concordar com isto — disse Pelletier por fim. — Minha cabeça diz o contrário, então... — Fez uma pausa, como se temesse o que estava prestes a dizer. — Se seu marido e dama Agnès a deixa­rem ir, e Esclarmonde também irá como acompanhante, então darei minha permissão.

Alaïs se inclinou por cima da mesa e beijou o pai nos lábios.

Você fez a escolha certa — disse Simeon, os olhos brilhando.

Quantos homens pode nos arrumar, intendente Pelletier? — pergun­tou Esclarmonde.

Quatro homens armados, seis no máximo.

E em quanto tempo isso pode ser organizado?

Em menos de uma semana — respondeu Pelletier. — Agir depressa demais vai atrair atenção. Preciso pedir permissão a dama Agnès e você, Alaïs,a seu marido. — Ela abriu a boca para dizer que Guilhem mal perceberia sua ausência, mas depois resolveu não dizer nada. — Para esse seu plano funcio­nar,filha, é preciso respeitar a etiqueta. — Sem mais nenhuma indecisão aparen­te no rosto ou na atitude, ele se levantou para ir embora. — Alaïs, volte para o Château Comtal e procure François. Informe-o sobre seus planos, sem dar nenhum detalhe, e diga-lhe para vir ao meu encontro o quanto antes.

O senhor não vem?

Irei agora mesmo.

Muito bem. Devo levar comigo o livro de Esclarmonde?


Pelletier deu um sorriso torto.

Já que Esclarmonde vai acompanhá-la, Alaïs, tenho certeza de que o livro ficará seguro com ela por mais algum tempo.

Não foi minha intenção sugerir...

Pelletier deu um tapinha na bolsa debaixo de sua capa.

— Mas quanto ao livro de Simeon... — Enfiou a mão dentro da roupa e retirou a capa de pele de carneiro que Alaïs vira de relance em Besièrs, quando Simeon a entregara. — Leve-o para o Château. Costure-o dentro de sua capa de viagem. Mais tarde irei buscar o Livro das Palavras.

Alaïs pegou o livro e o pôs na bolsa, depois ergueu os olhos para o pai.

— Obrigada, paire, por depositar sua confiança em mim.Pelletier enrubesceu. Sajhë pôs-se de pé desajeitadamente.

Vou cuidar para que dama Alaïs chegue bem em casa — disse ele.Todos riram.

Faça isso, gentilòme — disse Pelletier, dando-lhe um tapinha nas cos­tas. — Todas as nossas esperanças repousam nos ombros dela.

Vejo nela as suas qualidades — disse Simeon enquanto caminhavam na direção dos portões que conduziam para fora de Sant-Miquel até o subúr­bio judaico, mais além. — É corajosa, obstinada, leal. Não desiste com facili­dade. Sua filha mais velha também é tão parecida com você?

Oriane puxou a mãe — respondeu Pelletier, sucinto. — Tem a apa­rência e o temperamento de Marguerite.

Muitas vezes acontece assim. Algumas vezes um filho puxa a um dos pais, outras vezes ao outro. — Ele fez uma pausa. — Ela é casada com o escrivan do visconde Trencavel?

Pelletier suspirou.

— Não é um casamento feliz. Congost não é moço, e é intolerante como jeito dela. Apesar de tudo isso, é um homem de boa posição dentro da casa.

Caminharam mais alguns passos em silêncio.

— Se ela puxou a Marguerite, deve ser bonita.

— Oriane tem um charme e uma graça que atraem o olhar. Muitos homens gostariam de cortejá-la. Alguns não fazem nenhuma questão de es­conder isso.

— Suas filhas devem ser um grande conforto para você.Pelletier lançou um olhar para Simeon.

— Alaïs, sim. — Hesitou. — Talvez a culpa seja minha, mas acho a companhia de Oriane menos... Tento ser imparcial, mas infelizmente acho que as duas não se gostam muito.

— Uma pena — murmurou Simeon.Haviam chegado aos portões. Pelletier parou.


— Gostaria de poder convencê-lo a ficar dentro da Ciutat. Em Sant-Miquel, pelo menos. Se nossos inimigos estão próximos, não serei capaz de protegê-lo fora dos muros...

Simeon pôs a mão sobre o braço de Pelletier.

— Você se preocupa demais, meu amigo. Meu papel agora terminou.Eu lhe dei o livro que me havia sido confiado. Os outros dois livros também estão dentro desses muros. Você tem Esclarmonde e Alaïs para ajudá-lo. O que alguém iria querer comigo agora? — Ele encarou o amigo com olhos escuros e cintilantes. — Meu lugar é junto ao meu povo.

Algo no tom de voz de Simeon deixou Pelletier alarmado.

Não vou aceitar nada de definitivo nesta despedida — disse ele, im­petuoso. — Estaremos bebendo vinho juntos antes do final do mês, ouça o que eu digo.

Não é de suas palavras que desconfio, meu amigo, mas das espadas dos franceses.

Aposto que na primavera que vem tudo já vai estar terminado. Os franceses terão voltado mancando para casa, com o rabo entre as pernas, o conde de Toulouse estará buscando uma nova aliança, e você e eu estaremos sentados junto ao fogo recordando nossa juventude perdida.

Pas a pas, se va luènh — disse Simeon, abraçando-o. — E dê minhas lembranças afetuosas a Harif. Diga-lhe que ainda estou esperando aquela par­tida de xadrez que ele me prometeu trinta anos atrás!

Pelletier ergueu a mão em despedida enquanto Simeon atravessava os portões. Ele não olhou para trás.

— Intendente Pelletier!

Pelletier continuava a olhar para a multidão de pessoas caminhando em direção ao rio, mas não conseguia mais distinguir Simeon.

Messire!— repetiu o mensageiro, com o rosto vermelho e sem fôlego.

O que foi?

Precisam do senhor na Porte Narbonnaise, messire. Surgiram problemas.


 

Alaïs abriu a porta de seu quarto e entrou correndo.

— Guilhem?

Embora quisesse ficar sozinha e não tivesse esperanças de que fosse acon­tecer outra coisa, ainda assim ficou desapontada ao encontrar o quarto vazio.

Alaïs trancou a porta, desafivelou a bolsa da cintura, pousou-a sobre a mesa e retirou o livro de sua capa protetora. Tinha o tamanho de um saltério fe­minino. As capas externas de madeira eram revestidas de couro, bem simples e um pouco gastas nos cantos.

Alaïs desamarrou as tiras de couro e o livro se abriu em suas mãos, como uma borboleta exibindo as asas. A primeira página estava vazia, com exceção de um pequenino cálice impresso no centro em folha de ouro, brilhando como uma jóia sobre o grosso pergaminho cor de creme. Não era maior do que o símbolo no anel de seu pai ou o merel que ela havia segurado nas mãos por tão pouco tempo.

Ela virou a página. Quatro linhas pretas surgiram diante de seus olhos, escritas em caligrafia rebuscada e elegante.

Nas bordas do livro havia imagens e símbolos, um padrão repetido como uma costura em volta da bainha de uma capa. Pássaros, animais, figuras de braços compridos e dedos pontudos. Alaïs soltou uma exclamação.

São os rostos e figuras dos meus sonhos.

Uma por uma, foi virando as páginas. Estavam todas cobertas por linhas de caligrafia preta, sem nada no verso. Ela reconheceu palavras na língua de Simeon, embora não as compreendesse. A maior parte do livro estava escrita na sua própria língua. A primeira letra de cada página era iluminada, em ver­melho, azul ou amarelo debruado de ouro, mas fora isso as letras eram sim­ples. Não havia nenhuma ilustração nas margens, nenhuma outra letra desta­cada dentro do corpo do texto, e as palavras seguiam umas às outras com poucas lacunas ou indicações para mostrar onde terminava um pensamento e onde começava outro.


Alaïs chegou ao pergaminho escondido no meio do livro. Era mais gros­so e mais escuro do que as páginas ao seu redor, feito de pele de cabra em vez de velino. Em vez de símbolos ou ilustrações, havia apenas umas poucas pala­vras, acompanhadas por fileiras de números e medidas. Parecia um tipo de mapa.

Ela mal conseguia distinguir pequenas flechas que apontavam em dife­rentes direções. Algumas eram douradas, mas a maioria era preta.

Alaïs tentou ler a página desde o cabeçalho, da esquerda para a direita, mas nada fez sentido e ela acabou desistindo. Em seguida tentou decifrar a página de baixo para cima, da direita para a esquerda, como a janela de vitral de uma igreja, mas isso também não fez sentido. Finalmente, leu as linhas alternadamente, ou escolheu palavras de uma linha a cada três, mas ainda assim não entendeu nada.

Olhe além das imagens visíveis para os segredos escondidos por trás delas.

Ela se concentrou. Cada guardião tinha sua habilidade e seu conhecimen­to. Esclarmonde tinha sua capacidade de curar e cuidar, então Harif lhe havia confiado a guarda do Livro das Poções. Simeon era estudioso de um antigo sistema judaico de números, portanto coubera a ele o Livro dos Números.

O que levara Harif a escolher seu pai como guardião do Livro das Palavras?

Profundamente imersa em seus pensamentos, Alaïs acendeu a lamparina e foi até sua mesa de cabeceira. Pegou um pergaminho, tinta e uma pena. Pelletier fizera questão de que as filhas aprendessem a ler e escrever, já que na Terra Santa havia aprendido o valor dessas coisas. Oriane só dava importância a conhecimentos adequados a uma senhora do lar — dança, canto, falcoaria e bordado. A escrita, como ela sempre dizia, era para velhos e padres. Alaïs, porém, havia agarrado a oportunidade com as duas mãos. Aprendera depres­sa e, embora tivesse poucas oportunidades de utilizar seus conhecimentos, ti­nha-os em grande estima.

Alaïs espalhou seu material de escrever sobre a mesa. Não entendia o per­gaminho, e tampouco poderia esperar reproduzir a técnica apurada, as cores e o estilo. Mas podia pelo menos fazer uma cópia enquanto tinha oportunidade.

Levou algum tempo, mas finalmente terminou e estendeu a cópia em pergaminho para secar sobre a mesa. Então, consciente de que o pai poderia voltar ao Château Comtal a qualquer momento com o Livro das Palavras, Alaïs logo se concentrou em esconder o livro como ele havia sugerido.

Sua capa vermelha preferida não servia. O tecido era delicado demais e a bainha, saliente. Em vez disso, escolheu uma pesada capa marrom. Era uma roupa de inverno, destinada à caça, mas não tinha jeito. Com dedos hábeis, Alaïs desfez a passementerie na frente até abrir um buraco grande o bastante para pode inserir o livro lá dentro. Em seguida pegou o fio que Sajhë lhe trouxera do mercado, que correspondia exatamente à cor do tecido, e costu­rou o livro na parte de trás, bem firme.

Alaïs ergueu a capa e a pôs sobre os ombros. Ainda estava desigual mas, quando tivesse também o livro do pai, ficaria equilibrada.

Tinha só mais uma tarefa a cumprir. Deixando a capa dobrada sobre o espaldar da cadeira, Alaïs voltou à escrivaninha para ver se a tinta havia secado. Sabendo que a qualquer momento poderia ser interrompida, dobrou o pergaminho e o inseriu dentro de um sachê de lavanda. Costurou a abertura, de forma que ninguém encontrasse o pergaminho por acaso, e tornou a pôr o sachê debaixo do travesseiro.

Alaïs olhou em volta, satisfeita com seu trabalho, e começou a guardar seu material de costura.

Alguém bateu na porta. Alaïs correu para abrir, esperando ver o pai. Em vez disso, deparou-se com Guilhem em pé diante da porta, sem saber se seria bem recebido. O conhecido meio sorriso, os olhos de menino perdido.

— Posso entrar, dama? — perguntou ele baixinho.

O instinto dela era correr para abraçá-lo. A cautela a impediu. Coisas demais haviam sido ditas. E muito pouco havia sido perdoado.

Posso?

O quarto também é seu — disse ela, casual. — Eu não poderia impe­dir a sua entrada.

Que formalidade — disse ele, fechando a porta atrás de si. — Eu gostaria que a sua resposta fosse motivada pelo prazer, não pelo dever.

Estou... — Ela hesitou, desestabilizada pelo desejo intenso que a in­vadia. — Estou feliz em vê-lo, messire.

Você parece cansada — disse ele, estendendo a mão para tocar-lhe o rosto.

Como seria fácil ceder. Entregar-se inteira a ele.

Ela fechou os olhos, quase sentindo os dedos dele se movendo sobre sua pele. Uma carícia, leve como um sussurro, natural como a respiração. Alaïs se imaginou inclinando-se na direção dele, permitindo que ele a tomasse em seus braços. A presença dele a deixava tonta, fazia-a se sentir fraca.

Não posso. Não devo.

Alaïs forçou-se a abrir os olhos e deu um passo para trás.

— Não — sussurrou. — Por favor, não.

Guilhem pegou a mão dela e a segurou entre as suas. Alaïs podia ver que ele estava nervoso.

— Em breve... a não ser que Deus intervenha, teremos de enfrentá-los.Quando chegar a hora, Alzeu, Thierry, os outros, nós todos iremos. E pode­mos não voltar.


Sim — disse ela baixinho, desejando que um pouco da antiga vivacidade retornasse ao rosto dele.

Desde que você chegou de Besièrs, eu me comportei mal com você,Alaïs, sem motivo nem justificação. Estou arrependido e venho pedir o seu perdão. Muitas vezes sinto ciúmes, e o meu ciúme me leva a dizer coisas...coisas... de que me arrependo.

Alaïs manteve o olhar firme mas, insegura quanto às próprias sensações, não se sentiu confiante o bastante para dizer nada. Guilhem chegou mais perto.

— Mas não está contrariada por me ver.Ela sorriu.

Você está afastado de mim há tanto tempo, Guilhem. Nem sei muito bem o que sentir.

Quer que a deixe sozinha?

Alaïs sentiu lágrimas brotando dos olhos, o que lhe deu coragem para continuar firme. Não queria que ele a visse chorar.

Acho que seria melhor. — Enfiou a mão dentro da gola do vestido e tirou um lenço, que pôs na mão dele. — Ainda há tempo para as coisas se acertarem entre nós.

Tempo é a única coisa que não temos, pequena Alaïs — disse ele,suave. — Mas, se Deus e os franceses permitirem, voltarei amanhã.

Alaïs pensou nos livros e na responsabilidade que pesava sobre seus om­bros. Pensou em como poderia partir logo. Talvez nunca mais volte a vê-lo. Seu coração se partiu em dois. Ela hesitou, e então o abraçou com fúria, como para imprimir em si o contorno dele.

Então, tão depressa quanto o havia abraçado, soltou-o.

Estamos todos nas mãos de Deus — disse. — Agora, por favor,Guilhem, vá embora.

Amanhã?

Veremos.

Alaïs ficou parada como uma estátua, as mãos apertadas na frente do corpo para impedir que tremessem, até a porta se fechar e Guilhem ir embo­ra. Então, perdida nos próprios pensamentos, caminhou de volta até a mesa, perguntando-se o que o levara até ela. Amor? Arrependimento? Ou alguma outra coisa?


 

Simeon ergueu os olhos para o céu. Nuvens cinza brigavam por espaço, escon­dendo o sol. Já havia percorrido uma boa distância desde que saíra da Cité, mas queria voltar para onde estava hospedado antes que desabasse o temporal.

Quando chegou aos arredores da mata que separava as planícies do lado de fora de Carcassonne do rio, diminuiu o passo. Estava ofegante, também, velho demais para viajar tão longe a pé. Apoiou-se pesadamente na bengala e afrouxou o colarinho da túnica. Não faltava muito agora. Esther o estaria esperando com uma refeição, talvez um pouco de vinho. A idéia lhe devolveu as forças. Quem sabe Bertrand tinha razão? Talvez na primavera estivesse tudo terminado.

Simeon não percebeu os dois homens que surgiram atrás dele no cami­nho. Não teve consciência do braço erguido, do porrete descendo sobre sua cabeça, até sentir o golpe e perder os sentidos.

Quando Pelletier chegou à Porte Narbonnaise, uma multidão já havia se juntado.

— Deixem-me passar — gritou, afastando todos aos empurrões até che­gar à frente da turba. Um homem estava caído de quatro no chão. O sangue jorrava de um corte em sua testa.

Dois homens armados estavam em pé junto dele, as lanças apontadas para seu pescoço. O homem era obviamente um músico. Seu tambor estava rasgado, e sua flauta havia sido partida em dois e jogada para o lado, como ossos em um banquete.

O que está acontecendo, em nome de Sant-Foy? — perguntou Pelletier.— O que este homem fez?

Não parou quando mandamos — respondeu o mais velho dos solda­dos. Seu rosto era uma colcha de retalhos de cicatrizes e ferimentos antigos. —Ele não tem autorização.

Pelletier se agachou ao lado do músico.


— Sou Bertrand Pelletier, intendente do visconde. O que está fazendo em Carcassona?

Os olhos do homem se abriram por uma fração de segundo.

Intendente Pelletier? — murmurou ele, apertando o braço de Pelletier.

Sou eu. Fale, amigo.

Besièrs es presa. — Béziers foi conquistada.

Ali perto, uma mulher conteve um grito e levou a mão à boca. Profundamente chocado, Pelletier pôs-se instintivamente de pé.

— Vocês — ordenou —, vão buscar reforços para substituí-los aqui e ajudem a levar este homem para o Château. Se ele não recuperar a fala devido aos seus maus-tratos, será pior para vocês. — Pelletier se virou para a multi­dão. — Ouçam bem o que vou dizer — gritou. — Nenhum cidadão deve falar sobre o que escutou aqui. Logo vamos saber a verdade.

Quando chegaram ao Château Comtal, Pelletier ordenou que o músico fosse levado às cozinhas para cuidar de seus ferimentos, enquanto ele próprio ia imediatamente informar o visconde Trencavel. Pouco tempo depois, fortale­cido por vinho doce e mel, o músico foi levado até o donjon.

Estava pálido, mas no controle de suas emoções. Temendo que as pernas do homem não o sustentassem, Pelletier mandou buscar um banco para que ele pudesse fazer seu relato sentado.

Diga-nos seu nome, amic — falou ele.

Pierre du Murviel, messire.

O visconde Trencavel estava sentado no meio, com os aliados em semicírculo ao seu redor.

— Benvenguda, Pierre du Murviel — disse ele. — Você tem notícias para nós.

Sentado muito ereto, com as mãos nos joelhos, rosto branco como leite, ele pigarreou e começou a falar. Nascera em Béziers, embora houvesse passado os últimos anos nas cortes de Navarra e Aragão. Era músico, e havia aprendido seu ofício com ninguém menos do que Raimon de Mirval, o melhor trovador do Midi. Fora por isso que recebera um convite do suserano de Béziers. Vendo ali uma oportunidade de tornar a visitar a família, havia aceitado e vol­tado para casa.

Sua voz estava tão baixa que os ouvintes precisavam se esforçar para escu­tar o que ele dizia.

Conte-nos sobre Besièrs — disse Trencavel. — Não deixe nenhum detalhe de fora.

O exército francês chegou aos muros na véspera da festa de Santa-Maria Magdalena, e montou acampamento ao longo da margem esquerda do rio Orb. Mais perto do rio ficaram os peregrinos e mercenários, mendi­gos e desafortunados, uma mistura sem nexo de homens, descalços e vestin­do apenas calças e camisas. Mais longe, as cores dos barões e religiosos flutua­vam acima de seus pavilhões formando uma massa de verde, dourado e ver­melho. Eles construíram mastros e derrubaram árvores para fazer cercados para os animais.

Quem foi enviado para parlamentar?

O bispo de Besièrs, Renaud de Montpeyroux.

Dizem que ele é um traidor, messire — falou Pelletier, inclinando-se para frente e sussurrando em seu ouvido —, e que ele já abraçou a cruz.

O bispo Montpeyroux voltou com uma lista de supostos hereges estabelecida pelos legados papais. Não sei quantos nomes havia no pergaminho, messire, mas certamente eram centenas. Os nomes dos mais influentes,mais ricos e mais nobres cidadãos de Besièrs estavam escritos ali, assim como os dos seguidores da nova igreja e daqueles acusados de serem bons homes. Se os cônsules entregassem os hereges, Besièrs seria poupada. Caso contrário...— Ele deixou as palavras no ar.

Qual foi a resposta dos cônsules? — perguntou Pelletier. Aquela era a primeira indicação se sua aliança iria ou não resistir contra os franceses.

Que prefeririam ser afogados no mar de sal a se render ou trair seus co-cidadãos.

Trencavel deu um leve suspiro.

— O bispo saiu da cidade, levando consigo um pequeno número de padres católicos. O comandante de nossa guarnição, Bernard de Servian, co­meçou a organizar as defesas.

Ele parou e engoliu em seco. Até mesmo Congost, inclinado sobre seu pergaminho, parou de escrever e ergueu os olhos.

— A manhã do dia 22 de julho surgiu calma. Fazia calor, mesmo ao amanhecer. Um grupo de cruzados, meros acompanhantes, que sequer eram soldados, foram até o rio, logo abaixo das fortificações ao sul da cidade. Era possível vê-los dos muros. Insultos foram trocados. Um dos routiers andou até a ponte, fanfarrão, berrando insultos. Aquilo irritou tanto nossos rapazes nos muros que eles se armaram de lanças, porretes, até mesmo um tambor e uma bandeira improvisados. Determinados a dar uma lição nos franceses, abriram o portão e investiram encosta abaixo antes que alguém percebesse o que estava acontecendo, gritando a plenos pulmões, e atacaram o homem. O ataque du­rou poucos instantes. Eles atiraram o corpo do routier morto de cima da ponte para dentro do rio.

Pelletier olhou de relance para o visconde Trencavel. Ele estava pálido.


— Dos muros, o povo da cidade gritava para os rapazes voltarem, mas eles estavam embriagados demais pela própria valentia para escutar. O baru­lho da confusão atraiu a atenção do capitão dos mercenários, o roi, como seus homens o chamam. Vendo o portão aberto, ele deu ordem para atacar. Os rapazes enfim perceberam o perigo, mas era tarde demais. Os routiers os mata­ram ali mesmo. Os poucos que conseguiram voltar tentaram trancar o portão,mas os routiers foram rápidos demais, e estavam demasiado bem armados.Forçaram a passagem e mantiveram o portão aberto.

“Em instantes, soldados franceses começaram a golpear os muros, armados de picaretas e enxadas, e armaram escadas”. Bernard de Servian fez o melhor que pôde para defender os baluartes e manter o controle da torre, mas tudo aconteceu depressa demais. Os mercenários assumiram o controle do portão.

"Uma vez dentro da cidade, os cruzados deram início ao massacre. Havia corpos por toda parte, mortos e mutilados; o sangue subia até nossos joelhos. Crianças foram arrancadas dos braços das mães e espetadas em pontas de lan­ças e espadas. Cabeças foram cortadas e penduradas nos muros para os corvos bicarem, e era como se uma fileira de gárgulas sangrentas, feitas de carne e osso, não de pedra, observassem a nossa derrota. Massacraram quem estivesse pela frente, sem distinção de idade ou sexo."

O visconde Trencavel não conseguiu mais ficar calado.

— Mas como os legados ou os barões franceses não impediram esse ba­nho de sangue? Eles não sabiam o que estava acontecendo?

Du Murviel levantou a cabeça.

Sabiam, messire.

Mas um massacre de gente inocente vai contra qualquer noção de honra, qualquer convenção de guerra — disse Pierre-Roger de Cabaret. —Não posso acreditar que o abade de Cîteaux, por maior que seja sua devoção e seu ódio pela heresia, tenha permitido a matança de mulheres e crianças cris­tãs, sem confissão?

Dizem que perguntaram ao abade como ele distinguiria os bons cató­licos dos hereges. "Tuez-les tous. Dieu reconnaîtra les siens" — disse du Murviel com a voz oca. — "Mate-os todos. Deus reconhecerá os seus." Pelo menos é o que dizem que ele falou.

Trencavel e de Cabaret trocaram olhares.

— Continue — ordenou Pelletier, sombrio. — Termine sua história.

— Os grandes sinos de Besièrs deram o alarme. Mulheres e crianças encheram as igrejas de Sant-Jude e Santa-Maria Magdalena na cidade alta,milhares de pessoas aglomeradas como animais em um curral. Os padres católicos envergaram suas vestes e cantaram o réquiem, mas os cruzados derruba­ram a porta e mataram todo mundo. A voz lhe faltou.

Em poucas horas, toda a nossa cidade havia sido transformada em um abatedouro. A pilhagem começou. Todas as nossas belas casas foram destruídas pela ganância e pela barbárie. Só então, por ganância, não por cons­ciência, foi que os barões franceses tentaram controlar os routiers. Estes, por sua vez, ficaram furiosos ao serem privados dos saques que haviam conseguido,então incendiaram a cidade para que ninguém pudesse sair ganhando. As ca­sas de madeira dos bairros pobres queimaram como uma fogueira. As vigas da catedral pegaram fogo e desabaram, matando todos que estavam lá dentro. As chamas foram tão violentas que a catedral se partiu ao meio.

Diga-me uma coisa, amic. Quantos sobreviveram? — perguntou o visconde.

O músico abaixou a cabeça.

Nenhum, messire. Fora os poucos que conseguiram fugir da cidade,como eu. Todos os outros morreram.

Vinte mil mortos em uma única manhã — murmurou Raymond-Roger horrorizado. — Como pode ser?

Ninguém respondeu. Não havia palavras para traduzir aquilo. Trencavel levantou a cabeça e olhou para o músico ainda sentado.

Você viu coisas que nenhum homem deveria ver, Pierre du Murviel.Demonstrou grande bravura e coragem ao trazer-nos estas notícias. Carcassona está em débito com você e tomarei providências para que seja bem recompensa­do. — Ele fez uma pausa. — Antes de ir embora, eu gostaria de lhe fazer mais uma pergunta. Meu tio, o conde de Toulouse, participou do saque à cidade?

Acredito que não, messire. Segundo os boatos, ele ficou no acampa­mento francês.

Trencavel olhou para Pelletier.

Pelo menos é alguma coisa.

E na viagem até Carcassona, você cruzou com alguém na estrada? —perguntou Pelletier. — A notícia desse massacre se espalhou?

Não sei, messire. Fiquei longe das estradas principais, e segui os antigos passos pelos desfiladeiros de Lagrasse. Mas não vi nenhum soldado.

O visconde Trencavel olhou para seus cônsules, para ver se tinham algu­ma pergunta a fazer, mas ninguém falou nada.

— Muito bem — disse ele, voltando-se para o músico. — Pode ir. Mais uma vez, obrigado.

Assim que du Murviel foi conduzido para fora do aposento, Trencavel se virou para Pelletier.


Por que não fomos avisados? Não posso acreditar que não ouvimos sequer rumores. Já se passaram quatro dias desde o massacre.

Se a história de du Murviel for verdade, quem sobrou para espalhar a notícia? — perguntou de Cabaret, desconsolado.

Mesmo assim — disse Trencavel, desdenhando o comentário comum gesto da mão. — Mandem cavaleiros imediatamente, tantos quanto for possível. Precisamos saber se a Hoste continua em Besièrs ou se já está mar­chando para o leste. Sua vitória os fará andar mais rápido.

Todos fizeram uma mesura quando ele se levantou.

— Ordenem aos cônsules que publiquem a má notícia pela Ciutat. Vou para a capela Santa-Maria. Mandem minha mulher me encontrar lá.

Pelletier tinha a sensação de ter as pernas imobilizadas dentro de uma armadu­ra ao subir a escada para a ala residencial do castelo. Parecia haver alguma coisa em volta de seu peito, uma faixa ou atadura, que o impedia de respirar livremente.

Alaïs o estava esperando na porta.

O senhor trouxe o livro? — perguntou, ansiosa. A expressão no rosto dele a fez parar. — O que houve? Aconteceu alguma coisa?

Não foi a Sant-Nasari, filha. Chegaram notícias. — Pelletier sentou-se pesadamente sobre uma cadeira.

Que notícias? — Ele ouviu o temor na voz dela.

Besièrs caiu — disse ele. — Há três, quatro dias. Ninguém sobreviveu.Alaïs cambaleou até o banco.

Todos mortos? — disse, horrorizada. — Mulheres e crianças também?

— Agora estamos à beira do abismo — disse ele. — Se eles são capazes de tamanha atrocidade com pessoas inocentes...

Ela se sentou ao lado dele.

— O que vai acontecer agora? — perguntou.

Pela primeira vez em sua lembrança, Pelletier ouviu medo na voz da filha.

— Só podemos esperar para ver — disse ele.

Sentiu, mais do que ouviu, a filha tomar fôlego antes de falar.

Mas isso não faz diferença para o que combinamos — disse ela, cau­telosa. — Você vai permitir que eu leve a Trilogia para um lugar seguro.

A situação mudou.

Uma expressão de determinação apoderou-se dela.

— Com todo respeito, paire, há ainda mais razão para nos deixar ir. Senão formos, os livros vão ficar presos dentro da Ciutat. Não pode ser isso que o senhor quer. — Ela fez uma pausa. Ele não respondeu. — Depois de tudo que o senhor, Simeon e Esclarmonde sacrificaram, todos estes anos se escon­dendo, mantendo os livros seguros, tudo para fracassar no final.

— O que aconteceu em Besièrs não vai acontecer aqui — disse ele, fir­me. — Carcassona é capaz de resistir a um cerco. Vai resistir. Os livros estarão seguros aqui.

Alaïs estendeu o braço por cima da mesa e segurou a mão dele.

Eu lhe suplico, não volte atrás em sua palavra.

Arèst, Alaïs — disse ele, incisivo. — Não sabemos onde o exército está. A tragédia que se abateu sobre Besièrs já é notícia velha. Vários dias se passaram desde esses acontecimentos, mesmo que para nós eles sejam novida­de. Uma guarda avançada já pode estar a distância de ataque da Ciutat. Se eu a deixasse ir, estaria assinando sua sentença de morte.

Mas...

Eu a proíbo de ir. É perigoso demais.

Estou preparada para correr o risco.

Não, Alaïs! — gritou ele, o medo a alimentar-lhe a raiva. — Não vou sacrificar você. O dever é meu, não seu.

Então venha comigo! — gritou ela. — Hoje à noite. Vamos pegar os livros e ir embora, agora, enquanto ainda temos chance.

E perigoso demais — repetiu ele, teimoso.

O senhor acha que eu não sei disso? Sim, pode ser que nossa viagem termine na ponta de uma espada francesa. Mas certamente é melhor morrer tentando do que deixar o medo do que pode acontecer tirar nossa coragem.

Para sua surpresa e frustração, ele sorriu.

— Seu destemor lhe faz jus, filha — disse ele, embora soasse derrotado.— Mas os livros ficam na Ciutat.

Alaïs ficou olhando para ele boquiaberta, depois deu-lhe as costas e saiu correndo do quarto.


 

                                     Besièrs

Durante dois dias após sua inesperada vitória em Béziers, os cruzados perma­neceram nos pastos férteis e no campo opulento que cercavam a cidade. Ter conseguido tamanho prêmio com tão poucas baixas era um milagre. Deus não poderia ter lhes dado sinal mais claro do valor de sua causa.

Acima deles fumegavam as ruínas da outrora imponente cidade. Frag­mentos de cinza subiam em espiral pelo azul incongruente dos céus de verão e eram espalhados pelo vento sobre a terra derrotada. De vez em quando, podia-se ouvir o som inconfundível de casas caindo e de vigas se espatifando e se partindo.

Na manhã seguinte, a Hoste levantou acampamento e tomou o rumo do sul, pelo campo aberto, em direção à cidade romana de Narbonne. À frente da coluna de homens ia o abade de Cîteaux, ladeado pelos legados papais, sua autoridade temporal fortalecida pela derrota devastadora da cidade que havia ousado abrigar uma heresia. Todas as cruzes brancas e douradas pareciam reluzir como o mais rico dos tecidos sobre as costas dos guerreiros de Deus. Cada crucifixo parecia capturar os raios do sol brilhante.

O exército conquistador serpenteou como uma cobra pela paisagem de salinas, poças de água parada e grandes extensões de vegetação baixa e amarela, castigada pelo vento feroz que soprava vindo do Golfe du Lion. Vinhedos cresciam livremente à margem da estrada, assim como oliveiras e amendoeiras.

Os soldados franceses, inexperientes e desacostumados ao clima rigoroso do sul, jamais tinham visto terreno como aquele. Benziam-se, vendo naquilo a prova de que de fato haviam entrado em uma terra abandonada por Deus.

Uma comissão liderada pelo arcebispo de Narbonne e pelo visconde da cidade encontrou os cruzados em Capestang no dia 25 de julho.

Narbonne era um rico porto mercantil do Mediterrâneo, embora o cora­ção da cidade ficasse mais para o interior. Com os boatos sobre os horrores cometidos em Béziers frescos na memória — e esperando poupar Narbonne de destino semelhante —, tanto Igreja quanto Estado estavam dispostos a sacrificar sua independência e sua honra. Diante de testemunhas, o bispo e o visconde de Narbonne se ajoelharam aos pés do abade e juraram total e com­pleta submissão à Igreja. Aceitaram entregar todos os hereges conhecidos aos legados, confiscar qualquer propriedade pertencente a cátaros ou judeus, e até mesmo pagar uma taxa sobre suas possessões para financiar a cruzada.

Poucas horas depois, os termos do acordo foram ratificados. Narbonne seria poupada. Nunca um financiamento de guerra fora obtido com tamanha facilidade.

Se o abade e seus legados ficaram surpresos com a velocidade com a qual os narbonenses abriram mão de seu direito de nascença, não deram mostras disso. Se os homens que marchavam sob os vermelhos vivos do conde de Toulouse ficaram envergonhados com a falta de coragem de seus conterrâneos, nada disseram.

A ordem de mudar de curso foi dada. Eles acampariam perto de Narbonne naquela noite, em seguida rumariam para Olonzac pela manhã. Depois disso, eram só alguns dias de marcha até Carcassonne.

No dia seguinte, a cidade fortificada de Azille, no alto de uma colina, se ren­deu, escancarando seus portões para os invasores. Várias famílias denunciadas como hereges foram queimadas em uma pira construída às pressas na praça central do mercado. A fumaça preta rodopiava pelas ruas estreitas e íngremes e se derramava por cima das grossas muralhas da cidade, até os campos planos mais adiante.

Um a um, os pequenos châteaux e vilarejos se rendiam sem que uma só espada fosse erguida. A cidade vizinha de La Redorte seguiu o exemplo de Azille, assim como a maior parte das aldeias e aglomerações de pequenas residências entre as duas cidades. Outras places fortes foram encontradas abandonadas.

A Hoste pegava o que bem entendia nos silos abarrotados e nos depósi­tos de frutas repletos, e seguia em frente. Qualquer pequena resistência encon­trada pelo exército era enfrentada com represálias violentas e rápidas. A repu­tação de selvageria do exército ia se espalhando cada vez mais, como uma sombra maligna espalhando-se, negra, à sua frente. Aos poucos, o antigo laço entre o leste do Languedoc e a dinastia Trencavel foi rompido.

Na véspera do dia da festa de Sant-Nasari, uma semana depois de sua vitória em Béziers, a guarda avançada chegou a Trèbes, dois dias na frente do exército principal.


Durante a tarde, o tempo foi ficando cada vez mais úmido. A luz brumosa da tarde cedeu lugar a um cinza de borrasca. Alguns roncos de trovão rugiram no céu, seguidos por um violento estalo de relâmpago. Enquanto os cruzados atravessavam os portões da cidade, abertos e desguarnecidos, os primeiros pingos de chuva começavam a cair.

As ruas estavam estranhamente desertas. Todos haviam desaparecido, desmaterializados como espectros ou espíritos. O céu era uma extensão infini­ta de preto e roxo, e nuvens escuras cruzavam velozes o horizonte. Quando o temporal desabou, espalhando-se pelas planícies em volta da cidade, o trovão começou a estalar e rugir como se o próprio céu estivesse se desintegrando.

Os cavalos derrapavam e escorregavam sobre as pedras do calçamento. Cada beco, cada passagem transformou-se em um rio. A chuva desabava feroz sobre escudos e capacetes. Ratos subiam correndo os degraus da igreja, bus­cando abrigo das torrentes desgovernadas. A torre foi atingida por um raio, mas não pegou fogo.

Soldados do norte caíam de joelhos, fazendo o sinal da cruz e rezando para que Deus os poupasse. As terras planas ao redor de Chartres, os campos da Borgonha ou o interior cheio de florestas da Champagne não tinham nada tão extremo assim.

Da mesma forma que havia começado, como um animal que adormece, o temporal passou. O ar tornou-se fresco e agradável. Os cruzados ouviram os sinos de um monastério ali perto começarem a bater, agradecendo por terem passado incólumes pela tempestade. Tomando aquilo como um sinal de que o pior havia passado, eles emergiram do meio das árvores e começaram o traba­lho. Escudeiros procuraram pastos seguros para os cavalos. Criados começa­ram a desempacotar os pertences de seus senhores e a procurar lenha seca para as fogueiras.

Aos poucos, o acampamento foi tomando forma.

A tarde caiu. O céu era uma colcha de retalhos cor-de-rosa e roxa. À medida que os últimos vestígios de nuvens brancas se dissipavam, os forastei­ros tiveram sua primeira visão das torres e torretas de Carcassonne, reveladas subitamente no horizonte.

A Cité parecia se erguer da própria terra, como uma fortaleza de pedra no céu olhando para o mundo dos homens lá embaixo, grandiosa. Nada que houvessem escutado preparara os cruzados para a primeira imagem do lugar que tinham vindo conquistar. Palavras não tinham o poder de descrever seu esplendor.

A cidade era magnífica, majestosa. Inexpugnável.


 

Quando recuperou os sentidos, Simeon não estava mais na mata, mas em algum tipo de estábulo. Tinha uma lembrança de viajar por uma longa distân­cia. Suas costelas doíam por ter sido transportado no lombo de um cavalo.

O cheiro era terrível: uma mistura de suor, cabras, palha úmida e alguma coisa que ele não conseguia identificar muito bem, algo enjoativo, como flores apodrecidas. Havia vários arreios pendurados nas paredes e uma forquilha estava apoiada no canto mais perto da porta, que não chegava à altura do ombro de um homem. Na parede oposta, havia cinco ou seis argolas para prender animais.

Simeon olhou para baixo. O capuz com o qual lhe haviam coberto a cabeça estava jogado ao seu lado no chão. Suas mãos ainda estavam amarra­das, assim como seus pés.

Tossindo e tentando cuspir as fibras ásperas do material do capuz, ele se ergueu até uma posição sentada. Sentindo-se dolorido e enrijecido, Simeon recuou devagar pelo chão até chegar à porta. Levou algum tempo, mas o alívio de sentir alguma coisa sólida contra seus ombros e costas foi imenso. Paciente­mente, ele se ergueu até ficar de pé, a cabeça quase encostando no teto. Bateu na porta. A madeira rangeu e estalou, mas a porta estava bloqueada pelo lado de fora e não se abriu.

Simeon não fazia idéia de onde estava, se ainda perto de Carcassonne ou mais longe. Tinha uma vaga lembrança de ser carregado no lombo de um cavalo pelas florestas, depois por um terreno plano. Pelo pouco que conhecia da região, supôs que aquilo significava que estivesse em algum lugar perto de Trèbes.

Podia ver uma nesga de luz debaixo do pequeno vão sob a porta, um azul-escuro, mas não ainda o breu da noite. Quando apertou o ouvido de encontro ao chão, pôde ouvir o murmúrio de seus captores bem próximo.

Estavam esperando alguém chegar. A idéia o fez estremecer; era uma prova de que aquilo não era um rapto aleatório, embora ele não precisasse muito de provas.


Simeon tornou a caminhar até o outro extremo do curral, arrastando os pés. Com o tempo, adormeceu, caindo de lado e acordando com um susto, depois tornando a dormir.

O som de alguém gritando tornou a despertá-lo. Imediatamente, todos os nervos de seu corpo se puseram em alerta. Ele ouviu o ruído de homens pondo-se de pé, seguido por uma pancada quando a pesada barra que manti­nha a porta fechada foi removida.

Três figuras envoltas em sombra surgiram no vão da porta, destacadas contra a brilhante luz do sol mais atrás. Simeon piscou, sem conseguir ver muita coisa.

— Où est-il?— Onde ele está?

Era uma voz educada de um homem do norte, fria e imperiosa. Houve uma pausa. A tocha foi erguida mais alto, iluminando Simeon, que piscava nas sombras.

— Tragam-no até mim.

Simeon mal teve tempo de reconhecer o líder da emboscada quando foi agarrado pelos braços e jogado de joelhos na frente do francês.

Devagar, Simeon ergueu os olhos. O homem tinha um rosto cruel e fino, e olhos sem expressão da cor do sílex. Sua túnica e suas calças eram de boa qualidade, cortadas ao estilo do norte, embora não dessem indicação de seu status ou posição.

Onde está? — perguntou ele.Simeon levantou a cabeça.

Não estou entendendo — respondeu ele em iídiche.

O chute o pegou desprevenido. Ele sentiu uma das costelas se partir e caiu para trás, as pernas cedendo sob o peso do corpo. Sentiu mãos duras sob as axilas pondo-o novamente em pé.

— Eu sei quem você é, judeu — disse o homem. — Não faz sentido jogar este jogo comigo. Vou perguntar de novo. Onde está o livro?

Simeon tornou a levantar a cabeça sem dizer nada.

Dessa vez, o homem mirou em seu rosto. A dor explodiu dentro da cabeça de Simeon quando seu lábio se abriu e os dentes se quebraram. Ele sentiu gosto de sangue e saliva, e ardor na língua e na garganta.

— Eu o persegui como um animal, judeu — disse ele —, desde Chartres até Béziers, e agora até aqui. Eu o cacei como um animal. Você me fez perder muito tempo. Minha paciência está se esgotando. — Ele deu um passo mais para perto, para que Simeon visse o ódio em seus olhos cinza e mortos. —Mais uma vez: onde está o livro? Você o entregou a Pelletier? C´est ça?


Dois pensamentos surgiram ao mesmo tempo na mente de Simeon. O primeiro foi que não conseguiria se salvar. O segundo, que precisava proteger os amigos. Ainda tinha esse poder. Seus olhos estavam fechados de tão incha­dos, e o sangue se acumulava nas bolsas rasgadas de suas pálpebras.

— Tenho o direito de saber o nome de quem me acusa — disse ele por uma boca machucada demais para falar. — Rezarei por você.

Os olhos do homem se apertaram.

— Não se engane, você vai me dizer onde esconderam o livro.Ele fez um sinal com a cabeça.

Simeon foi erguido com violência. Arrancaram-lhe as roupas e o arre­messaram deitado sobre uma carroça, com um homem a segurar-lhe as mãos, o outro as pernas, para deixar as costas à mostra. Simeon ouviu o estalo distin­to do couro no ar logo antes da fivela golpear sua pele nua. Seu corpo se arqueou de agonia.

— Onde está o livro? — Simeon fechou os olhos enquanto o cinto tornava a cortar o ar. — Já está em Carcassonne? Ou ainda está com você, judeu? — Ele gritava na mesma cadência dos golpes. — Você vai me dizer. Você. Ou eles.

O sangue corria dos lanhos em suas costas. Simeon começou a rezar segundo o costume de seus pais, palavras ancestrais e sagradas lançadas à escu­ridão, distraindo sua mente da dor.

— Où... est... le... livre?— insistia o homem, cada palavra um golpe.Foi a última coisa que Simeon ouviu antes de a escuridão estender a mão e arrebatá-lo.


 

A guarda avançada da cruzada chegou diante de Carcassonne no dia da festa de Sant-Nasari, vinda da estrada de Trèbes. Os guardas da Tour Pinte acende­ram as fogueiras. Os sinos de alarme badalaram.

Na tarde de 1º de agosto, o acampamento francês do outro lado do rio já havia crescido tanto que parecia outra cidade feita de barracas e pavilhões, bandeiras e cruzes douradas cintilando ao sol. Barões do norte, mercenários gascões, soldados de Chartres, da Borgonha e de Paris, sapadores, arqueiros, religiosos, gente que acompanhava o exército.

Ao chegar das vésperas, o visconde Trencavel subiu aos baluartes, acom­panhado de Pierre-Roger de Cabaret, Bertrand Pelletier e mais um ou dois homens. Ao longe, trilhas de fumaça subiam pelo céu em espiral. O rio pare­cia uma fita de prata.

São tantos.

Não mais do que esperávamos, messire — respondeu Pelletier.

Quando tempo, você acha, até o exército principal chegar?

Difícil dizer com certeza — respondeu ele. — Uma força de combate tão grande assim viaja devagar. O calor também vai diminuir seu ritmo.

Vai atrasá-los, sim — disse Trencavel. — Mas não vai detê-los.

Estamos prontos para eles, messire. A Ciutat está bem abastecida. As hourds foram concluídas para proteger as muralhas dos sapadores deles; todas as partes faltantes ou pontos fracos dos muros foram consertados e tampados;todas as torres estão ocupadas por homens. — Pelletier fez um gesto indicando ao seu redor. — Todas as cordas que mantinham os moinhos presos no lugar no rio foram cortadas, e as colheitas queimadas. Os franceses encontrarão pouca coisa de que se alimentar por aqui.

Com os olhos faiscando, Trencavel voltou-se subitamente para Cabaret.

— Vamos selar nossos cavalos e fazer uma sortie. Antes de a noite cair e de o sol se pôr, vamos levar quatrocentos de nossos melhores homens, os mais hábeis com a lança e com a espada, e expulsar os franceses das nossas encostas.Eles não esperam que nós partamos para a batalha. O que acham?


Pelletier se identificava com o desejo dele de atacar primeiro. Mas sabia também que seria um ato de extrema temeridade.

— Há batalhões nas planícies, messire, routiers, pequenos contingentes da guarda avançada.

Pierre-Roger de Cabaret também se opôs.

Não sacrifique seus homens, Raymond.

Mas se pudéssemos atacar primeiro...

Nós nos preparamos para um cerco, messire, não para uma batalha aberta. A guarnição é forte. Os chevaliers mais corajosos e experientes estão aqui, esperando a oportunidade de demonstrar seu valor.

Mas? — suspirou Trencavel.

O senhor os estaria sacrificando para nada — disse ele com firmeza.

Seu povo confia no senhor, seu povo o ama — disse Pelletier. —Darão a vida pelo senhor se for preciso. Mas devemos esperar. Deixe que eles tragam a batalha até nós.

Tenho medo de ter sido meu orgulho a nos colocar nesta situação —disse ele em voz baixa. — De alguma forma, eu não esperava que isto fosse acontecer, e tão cedo. — Ele sorriu. — Lembra-se de como minha mãe costu­mava encher o Château de cantos e danças, Bertrand? Todos os melhores trovadores e jongleurs vinham se apresentar a ela. Aiméric de Pegulham, Arnautde Carcassès, até mesmo Guilhem Fabre e Bernat Alanham de Narbonne.Estávamos sempre em festa, celebrando.

Ouvi dizer que era a corte mais bonita do Pays d´Oc. — Ele pôs a mão no ombro de seu senhor. — E tornará a ser.

Os sinos silenciaram. Todos os olhos estavam cravados no visconde Trencavel.

Quando ele falou, Pelletier sentiu orgulho ao constatar que qualquer vestígio de dúvida havia desaparecido da voz de seu patrão. Ele não era mais um menino recordando a infância; era um capitão às vésperas de uma batalha.

Bertrand, ordene que todos os postigos sejam fechados e os portões,bloqueados, e convoque o comandante da guarnição ao donjon. Quando os franceses chegarem, estaremos prontos para eles.

Talvez também fosse bom enviar reforços para Sant-Vicens, messire— sugeriu de Cabaret. — Quando a Hoste atacar, é por lá que vai começar. E não podemos perder nosso acesso ao rio.

Trencavel assentiu.

Pelletier ficou mais algum tempo depois de os outros se retirarem, fitando a terra lá embaixo, como se quisesse gravar sua imagem na mente.


Ao norte, os muros de Sant-Vicens eram baixos e defendidos por poucas torres. Se os invasores entrassem nos subúrbios, poderiam chegar a uma dis­tância suficiente para atacar a Cité com arco e flecha sob a proteção das casas. O subúrbio ao sul, Sant-Miquel, resistiria mais tempo.

Era verdade que Carcassonne estava preparada para o cerco. Havia fartu­ra de comida — pão, queijo, feijões — e cabras para dar leite. Mas havia gente demais dentro dos muros, e Pelletier estava preocupado com o suprimento de água. Por ordem sua, um guarda estava postado junto a cada poço e um racio­namento estava em vigor.

Enquanto descia da Tour Pinte para o pátio, Pelletier viu-se mais uma vez pensando em Simeon. Mandara François duas vezes ao quartier judaico para saber notícias, mas em ambas as vezes o rapaz voltara de mãos vazias, e a aflição de Pelletier crescia a cada dia que passava.

Deu uma olhada rápida pelo pátio e decidiu que poderia se ausentar por algumas horas.

Tomou o rumo dos estábulos.

Pelletier seguiu o caminho mais direto pelas planícies e florestas, inteiramente consciente da Hoste acampada ao longe.

Embora o bairro judaico estivesse apinhado e houvesse gente nas ruas, estava estranhamente tranqüilo e silencioso. Havia medo e apreensão em cada rosto, fosse ele jovem ou velho. Todos sabiam que a batalha logo iria começar. Enquanto Pelletier seguia pelos becos estreitos, mulheres e crianças o fitavam com olhos aflitos, procurando esperança em sua expressão. Ele nada tinha a lhes oferecer.

Ninguém tinha qualquer notícia de Simeon. Foi fácil encontrar o lugar onde ele estava hospedado, mas a porta estava presa por uma barra. Ele des­montou e bateu na casa em frente.

— Estou procurando um homem chamado Simeon — disse quando uma mulher atendeu amedrontada. —A senhora sabe de quem estou falando?

Ela aquiesceu.

Ele veio com os outros de Besièrs.

A senhora se lembra da última vez em que o viu?

Alguns dias atrás, antes de sabermos as notícias de Besièrs, ele foi a Carcassona. Um homem veio buscá-lo.

Pelletier franziu o cenho.

Como era esse homem?

O criado de alguém rico. Ruivo — disse ela, torcendo o nariz. —Simeon parecia conhecê-lo.


O espanto de Pelletier aumentou ainda mais. Pela descrição, parecia ser François, mas como podia ser? Ele dissera não ter encontrado Simeon.

Foi a última vez que o vi.

A senhora está dizendo que Simeon não voltou de Carcassona?

— Se ele tiver algum juízo, terá ficado lá. Estará mais seguro lá do que aqui.

É possível que Simeon tenha voltado sem que a senhora o tivesse visto? — perguntou, desesperado. — A senhora podia estar dormindo. Pode não ter percebido a volta dele.

Olhe, messire — disse ela, apontando para a casa do outro lado da rua. — O senhor mesmo pode ver. Vuèg. — Vazia.


 

Oriane atravessou o corredor, pé ante pé, até o quarto da irmã.

— Alaïs! — Guirande tinha certeza de que a irmã estava outra vez com o pai, mas ela era cautelosa. — Sòrre?

Quando ninguém respondeu, Oriane abriu a porta e entrou. Com a habilidade de um ladrão, começou rapidamente a vasculhar os pertences de Alaïs. Garrafas, jarros e vasilhas, seu guarda-roupa, as gavetas cheias de teci­dos, perfumes e ervas de cheiro adocicado. Oriane apalpou os travesseiros e encontrou um sachê de lavanda, que não a interessou. Depois verificou em cima e debaixo da cama. Não havia nada a não ser insetos mortos e teias de aranha.

Quando se virou de volta para o quarto, percebeu uma pesada capa de caça estendida no espaldar da cadeira de costura de Alaïs. Suas linhas e agulhas estavam espalhadas por toda parte. Oriane sentiu uma onda de excitação. Por que uma capa de inverno naquela época do ano? Por que Alaïs estava conser­tando as próprias roupas?

Levantou a capa e sentiu imediatamente que algo estava errado. A roupa estava torta e caía de um jeito estranho. Oriane levantou a borda e viu que algo havia sido costurado dentro da bainha.

Desfez a costura depressa, enfiou os dedos lá dentro e tirou um objeto pequeno e retangular, enrolado em um pedaço de linho.

Estava prestes a examiná-lo quando um barulho no corredor do lado de fora chamou sua atenção. Rápida como um corisco, Oriane escondeu o pacote debaixo do vestido e tornou a dobrar a capa sobre o espaldar da cadeira.

A mão de alguém caiu sobre seu ombro, pesada. Oriane sobressaltou-se.

— O que você acha que está fazendo? — perguntou uma voz.

— Guilhem! — exclamou ela, levando as mãos ao peito. — Você me assustou.

— O que está fazendo no quarto da minha mulher, Oriane?Oriane ergueu o queixo.


— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta.

No quarto já escuro, viu a expressão dele endurecer e percebeu que o comentário surtira efeito.

— Tenho todo o direito de estar aqui, enquanto você não... — Ele olhou para a capa, depois novamente para o rosto dela.

O que está fazendo?Ela o encarou.

Nada que lhe diga respeito.Guilhem fechou a porta com um chute.

Está perdendo a compostura, dama — disse ele, agarrando seu pulso.

Não seja tolo, Guilhem — disse ela em voz baixa. — Abra a porta.Vai ser ruim para nós dois se alguém entrar e nos encontrar juntos.

Não brinque comigo, Oriane. Não estou com humor para os seus joguinhos. Não vou deixar você ir embora até me dizer o que está fazendo aqui. Ele a mandou?

Oriane olhou para ele, genuinamente intrigada.

— Não sei do que você está falando, Guilhem, palavra.Os dedos dele pressionavam sua pele com força.

— Você achou que eu não fosse perceber, P. Eu vi vocês dois juntos,Oriane.

O alívio a dominou. Agora entendia o motivo da irritação dele. Contanto que Guilhem não tivesse reconhecido seu companheiro, ela podia virar o mal-entendido a seu favor.

Solte-me — disse, tentando se desvencilhar dele. — Se está lembra­do, messire, foi você quem disse que não podíamos mais nos encontrar. —Jogou os cabelos pretos para trás e olhou para ele, arrebatada, os olhos faiscando. — Então, se decidi buscar conforto em outro lugar, o que você tem com isso? Não tem nenhum direito sobre mim.

Quem é ele?

Oriane pensou depressa. Precisava de um nome que o satisfizesse.

Antes de eu lhe dizer, quero que me prometa que não vai fazer nada impensado — suplicou ela, tentando ganhar tempo.

Neste momento, dama, você não está em condições de fazer exigências.

Então pelo menos vamos para outro lugar: meu quarto, o pátio, qual­quer lugar menos aqui. Se Alaïs chegar...

Pela expressão no rosto dele, Oriane soube que o havia atingido. O maior medo dele agora era que Alaïs descobrisse sua infidelidade.

— Muito bem — disse ele, ríspido. Abriu a porta com a mão livre,depois foi meio empurrando, meio arrastando Oriane pelo corredor. Quando chegaram ao quarto dela, Oriane já sabia o que fazer.

— Fale, dama — ordenou ele.

Com os olhos fixos no chão, Oriane confessou que havia aceitado as atenções de um novo pretendente, filho de um dos aliados do visconde. Havia tempo que ele a admirava.

É verdade? — perguntou ele.

Eu juro, pela minha vida — sussurrou ela, levantando para ele os olhos de cílios molhados de lágrimas.

Ele ainda estava desconfiado, mas havia uma centelha de indecisão em seus olhos.

Isso não explica o que você estava fazendo no quarto da minha mulher.

Eu só estava protegendo a sua reputação — disse ela. — Devolvendo uma coisa sua a seu devido lugar.

Que coisa minha?

Meu marido achou uma fivela de homem no meu quarto. — Ela imitou uma forma com os dedos. — Mais ou menos deste tamanho, feita de cobre e prata.

Eu perdi uma fivela assim — reconheceu ele.

Jehan pôs na cabeça que iria identificar o proprietário e divulgar seu nome. Sabendo que era sua, eu decidi que o mais seguro era pô-la de volta em seu quarto.

Guilhem tinha o cenho franzido.

Por que não devolver a fivela a mim?

Você está me evitando, messire — disse ela, suave. — Eu não sabia quando, nem mesmo se, o veria. Além disso, se houvessem nos visto juntos,poderia ter sido uma prova do que aconteceu entre nós. Pode achar que agi como uma tola. Mas não duvide da minha intenção.

Oriane podia ver que ele não estava convencido, mas que não se atrevia a insistir. Sua mão tocou a espada que trazia na cintura.

Se disser uma palavra a este respeito para Alaïs — disse — eu mato você, Oriane, que Deus me carregue se não matar.

Por mim ela não saberá de nada — disse ela, então sorriu. — A não ser, é claro, que eu não tenha escolha. Preciso me proteger. E... — Ela fez uma pausa. Guilhem respirou fundo. — E, falando nisso — continuou —, tenho um favor a lhe pedir.

Ele apertou os olhos.

— E se eu não quiser?

Tudo que quero saber é se nosso pai deu a Alaïs algo de valor para guardar, só isso.

Você está me pedindo para espionar minha mulher — disse ele, er­guendo a voz de incredulidade. — Eu não vou fazer isso, Oriane, e você não vai fazer nada que possa perturbá-la, está claro?


Eu, perturbá-la. É o seu medo de ser descoberto que o torna assim tão cavalheiro. Foi você quem a traiu todas aquelas noites em que se deitou comi­go, Guilhem. Tudo que eu quero é informação. Descobrirei o que quero sa­ber, com ou sem a sua ajuda. Mas se você dificultar as coisas... — Ela deixou a ameaça pairando no ar.

Você não se atreveria.

Não seria difícil contar a Alaïs tudo que fizemos juntos, compartilhar com ela os segredos que você sussurrou para mim, os presentes que me deu.Ela acreditaria em mim, Guilhem. A sua alma transparece demais no seu rosto.

Enojado por ela, Guilhem abriu a porta com violência.

— Maldita seja você até o inferno, Oriane — disse ele, e saiu irado pelo corredor.

Oriane sorriu. Ela o havia encurralado.

Alaïs passara a tarde inteira tentando encontrar o pai. Ninguém o vira. Ela fora até a Cité, esperando ao menos poder falar com Esclarmonde. Mas ela e Sajhë não estavam mais em Sant-Miquel e não pareciam ter voltado para casa.

No fim das contas, exausta e apreensiva, Alaïs voltou sozinha para o quarto. Não conseguia ir dormir. Estava nervosa demais, ansiosa demais, en­tão acendeu uma lamparina e sentou-se à mesa.

Foi depois de os sinos soarem a uma que ela foi despertada por passos do lado de fora da porta. Levantou a cabeça de cima dos braços e olhou indistin­tamente na direção do som.

Rixende? — sussurrou no escuro. — É você?

Não, não é Rixende — disse ele.

Guilhem?

Ele surgiu na luz, sorrindo, como quem não tem certeza se será bem recebido.

— Perdoe-me. Prometi deixá-la em paz, eu sei, mas... posso?Alaïs sentou-se.

— Estive na capela — disse ele. — Rezei, mas não acho que minhas palavras tenham chegado lá em cima.

Guilhem sentou-se na beirada da cama. Depois de hesitar por um ins­tante, ela foi juntar-se a ele. Ele parecia estar querendo dizer alguma coisa.

— Venha — sussurrou ela. — Deixe-me ajudá-lo.

Desafivelou as botas dele e o ajudou com a armadura e com o cinto. O couro e a fivela caíram no chão com um baque.

— O que o visconde Trencavel acha que vai acontecer? — perguntou ela.Guilhem deitou-se de costas na cama e fechou os olhos.


— Que a Hoste vai primeiro atacar Sant-Vicens, depois Sant-Miquel,tentando conseguir chegar mais perto das muralhas da Ciutat.

Alaïs sentou-se ao lado dele e afastou-lhe os cabelos do rosto. A sensação da pele dele sob seus dedos a fez estremecer.

— Deveria dormir, messire. Vai precisar de toda sua força para a batalha que está por vir.

Preguiçosamente, ele abriu os olhos e sorriu para ela.

— Você poderia me ajudar a descansar.

Alaïs sorriu e pegou um preparado de alecrim que guardava na mesinha-de-cabeceira. Ajoelhou-se ao lado dele e massageou a loção fresca em suas têmporas.

Quando estava procurando por meu pai mais cedo, fui ao quarto daminha irmã. Acho que havia alguém com ela.

Provavelmente Congost — disse ele, ríspido.

Acho que não. Ele e os outros escribas agora dormem na Tour Pinte,caso o visconde precise deles. — Ela fez uma pausa. — Eles estavam rindo.

Guilhem pousou o dedo sobre os lábios dela para fazê-la calar.

Chega de falar de Oriane — sussurrou ele, passando o braço pela cintura dela e a aproximando de si. Ela pôde sentir gosto de vinho nos lábios dele. — Você tem cheiro de camomila e mel — disse ele. Levantou a mão e soltou-lhe os cabelos, fazendo-os cair como uma cascata em volta de seu rosto.

Mon còr.

Os cabelos da nuca dela se eriçaram com seu toque, com o contato da pele dele na sua, tão surpreendente e íntimo. Devagar, com cuidado, sem tirar os olhos castanhos do rosto dela, Guilhem baixou-lhe o vestido dos ombros, depois até a cintura. Alaïs mudou de posição. O tecido se soltou e escorregou da cama até o chão, como uma pele de inverno que não tem mais serventia.

Guilhem ergueu as cobertas para ela entrar na cama e a fez se deitar ao seu lado, sobre os travesseiros ainda impressos com a lembrança dele. Por um instante, ficaram assim, os braços e flancos se tocando, os pés frios dela con­trastando com o calor da pele dele. Ele se inclinou sobre ela. Então Alaïs pôde sentir seu hálito, sussurrando na superfície de sua pele como uma brisa de verão. Os lábios dele se moviam, sua língua escorregava, deslizando sobre seus seios. Alaïs soltou um arquejo quando ele pôs seu mamilo na boca, lambendo, atiçando.

Guilhem levantou a cabeça. Deu um meio sorriso.

Então, ainda sem tirar os olhos dela, abaixou o corpo no espaço entre suas pernas nuas. Alaïs fitava seus olhos castanhos, sem piscar, muito séria.

— Mon còr — repetiu ele.


Com delicadeza, Guilhem a penetrou, aos poucos, até ela o absorver por completo. Por um instante, ficou parado, abrigado dentro dela, como se descansasse.

Alaïs se sentiu forte, poderosa, como se naquele momento pudesse fazer qualquer coisa, ser qualquer pessoa. Um calor hipnótico, pesado, tomou con­ta de seus membros, preenchendo-a, devorando seus sentidos. Sua cabeça es­tava tomada pelo ruído do sangue pulsando. Ela não tinha noção de tempo nem de espaço. Havia apenas Guilhem, e as sombras tremeluzentes da lamparina.

Devagar, ele começou a se mexer.

— Alaïs. — As palavras escaparam-lhe dos lábios.

Ela pôs as mãos nas costas dele, com os dedos abertos formando estrelas. Podia sentir sua força, a força de seus braços bronzeados e de suas coxas firmes, os pêlos macios de seu peito roçando em sua pele. Sua língua arremetia entre seus lábios, quente, molhada, faminta.

Ele respirava mais depressa, mais fundo, movido pelo desejo e pela ne­cessidade. Alaïs o abraçou com força quando Guilhem gritou seu nome. Ele estremeceu, em seguida ficou imóvel.

Aos poucos, o rugido na mente dela foi se extinguindo, até não sobrar nada a não ser o completo silêncio do quarto.

Mais tarde, depois de conversarem e murmurarem promessas no escuro, os dois adormeceram. O óleo se acabou. A chama da lamparina diminuiu e morreu. Alaïs e Guilhem não perceberam. Não repararam na marcha prateada da lua no céu, nem na luz púrpura da aurora que se esgueirava janela adentro. Nada conheciam a não ser eles próprios a dormir abraçados, uma mulher e seu marido, amantes outra vez.

Reconciliados. Em paz.


 

                         Quinta-feira, 7 de julho de 2005

Alice acordou segundos antes de o despertador tocar e viu-se esparramada sobre a cama, rodeada por papéis espalhados.

A árvore genealógica estava na sua frente, junto com anotações da biblio­teca de Toulouse. Ela deu um sorriso. Parecia seus dias de estudante, quando ela estava sempre adormecendo sobre a escrivaninha.

Mas ela não estava se sentindo mal. Apesar do roubo na noite anterior, nessa manhã ela estava bem-humorada. Contente, feliz até.

Alice espreguiçou os braços e pescoço, depois se levantou e abriu as persianas e a janela. O céu estava entrecortado por claras listras de luz e nuvens brancas chapadas. As encostas da Cité estavam na sombra, e as encostas cober­tas de grama abaixo das muralhas cintilavam com o orvalho da manhã. Acima das torretas e torres, o céu estava azul, como uma peça de seda. Carriças e cotovias conversavam cantando entre os telhados. Por toda parte via-se vestí­gios do temporal da véspera. Lixo amontoado junto a cercas, caixas de papelão encharcadas e reviradas nos fundos do hotel, jornais empapados ao pé dos postes de luz do estacionamento.

A idéia de sair de Carcassonne afligia Alice, como se o ato de partir fosse precipitar alguma coisa. Mas ela precisava agir e, àquela altura, Chartres era sua única pista para chegar a Shelagh.

O dia estava bom para viajar.

Enquanto guardava seus papéis, admitiu que também estava sendo racio­nal. Não queria ficar sentada como uma vítima, esperando o intruso da noite anterior voltar.

Explicou ao recepcionista que iria sair da cidade por alguns dias, mas pediu para reservarem o quarto.

Uma mulher está esperando pela senhora, madame — disse a moça,apontando para o saguão. — Eu ia telefonar para o seu quarto agora mesmo.

Ah, é? — Alice se virou para olhar. — Ela disse o que queria?


A recepcionista fez que não com a cabeça.

O.K. Obrigada.

Também chegou isto para a senhora mais cedo — acrescentou a moça,estendendo uma carta. Alice olhou o carimbo do correio. Tinha sido postada em Foix na véspera. Ela não reconheceu a caligrafia. Estava prestes a abri-la quando a mulher que a estava esperando se aproximou.

 

Dra. Tanner? — disse a mulher. Ela parecia nervosa.Alice guardou a carta no bolso da jaqueta para ler mais tarde.

Pois não?

— Tenho um recado de Audric Baillard. Ele queria saber se a senhora poderia se encontrar com ele no cemitério?

A mulher parecia vagamente familiar, embora Alice não tenha conseguido identificá-la de imediato.

Eu conheço a senhora de algum lugar? — perguntou.A mulher hesitou.

Do Daniel Delagarde — disse, apressada. — Notaires.

Alice tornou a olhar. Não se lembrava de tê-la visto na véspera, mas havia muitas pessoas no escritório central.

Monsieur Baillard está esperando a senhora no jazigo da família Giraud-Biau.

Ah, é? — disse Alice. — Por que ele mesmo não veio me chamar?

Eu preciso ir agora.

A mulher então deu meia-volta e desapareceu, deixando Alice a olhar boquiaberta para onde ela estivera. Ela se virou para a recepcionista, que deu de ombros.

Alice olhou para o relógio. Queria ir embora logo. Tinha muita estrada pela frente. Por outro lado, dez minutos não fariam nenhuma diferença.

— À demain — disse à recepcionista, mas esta já havia retornado ao que quer que estivesse fazendo.

Alice passou pelo carro para deixar a mochila e então, ligeiramente irrita­da, atravessou a rua e encaminhou-se apressada para o cemitério.

A atmosfera mudou no instante em que Alice cruzou os altos portões de me­tal. A agitação da Cité no início da manhã foi substituída pela imobilidade.

À sua direita havia um prédio baixo, caiado. Do lado de fora, uma fileira de regadores de plástico pretos e verdes pendurados em ganchos. Alice espiou pela janela e viu uma jaqueta velha pendurada no encosto de uma cadeira e um jornal sobre a mesa, como se alguém houvesse acabado de sair.

Alice subiu devagar a aléia central, sentindo-se repentinamente tensa. Achava aquela atmosfera opressiva. Lápides cinza esculpidas, camafeus brancos de porcelana e inscrições em granito preto datando nascimento e morte, sepulturas adquiridas à perpetuité por famílias da região para marcar a data de seu faleci­mento. Fotografias dos que haviam morrido ainda jovens disputavam espaço por trás dos rostos dos mais velhos. Ao pé de muitas das lápides havia flores, algumas de verdade e já murchas, outras feitas de seda, plástico ou porcelana.

Seguindo as direções que Karen Fleury lhe dera, Alice encontrou com bastante facilidade o jazigo da família Giraud-Biau. Era uma sepultura larga e plana que ficava no fim da aléia central, encimada por um anjo de pedra de braços abertos e asas desfraldadas.

Ela olhou em volta. Não havia sinal de Baillard.

Alice correu os dedos pela lápide. Ali descansava a maior parte da família de Jeanne Giraud, uma mulher sobre quem ela nada sabia, a não ser que era um elo entre Audric Baillard e Grace. Só então, fitando os nomes gravados de uma das famílias, foi que Alice percebeu como era estranho que tivessem en­contrado um lugar para enterrar sua tia ali.

Um barulho em uma das aléias perpendiculares chamou sua atenção. Ela olhou em volta, esperando ver o homem idoso da fotografia caminhando em sua direção.

— Dra. Tanner?

Eram dois homens, ambos em ternos claros de verão, ambos de cabelos escuros e com os olhos escondidos por óculos de sol.

— Pois não?

O mais baixo dos dois mostrou-lhe um crachá por um breve instante.

Polícia. Temos algumas perguntas para fazer à senhora.O estômago de Alice se revirou.

Sobre que assunto?

Não vai demorar, madame.

Eu gostaria de ver um documento de identificação de vocês.

Ele pôs a mão no bolso do paletó e mostrou um cartão. Ela não fazia idéia se aquilo era autêntico ou não. Mas a arma no coldre debaixo do paletó parecia bem real. O pulso de Alice começou a disparar.

Ela fingiu examinar o cartão enquanto olhava discretamente para o ce­mitério à sua volta. Não havia ninguém por perto. As aléias se estendiam vazias em todas as direções.

Qual é o assunto? — repetiu ela, tentando manter a voz firme.

Se a senhora pudesse vir conosco.Eles não podem fazer nada à luz do dia.

Tarde demais, Alice percebeu que a mulher que dera o recado era de fato conhecida. Tinha as feições parecidas com o homem que ela vira de relance em seu quarto na noite anterior. Aquele mesmo homem que estava ali.


Pelo canto do olho, Alice pôde ver um lance de degraus de pedra que conduzia à parte mais recente do cemitério, um nível abaixo. Mais além havia um portão.

Ele pôs a mão no braço dela.

— Maintenant, Dra. Tan...

Alice se projetou para frente, como um corredor ao sinal da partida, pegando-os de surpresa. Eles demoraram para reagir. Gritaram, mas a essa altura ela já tinha descido os degraus e atravessava o portão correndo, desem­bocando no Chemin des Anglais.

Um carro que subia a ladeira resfolegando freou com força. Alice não parou. Conseguiu pular a frágil cerca de madeira de uma fazenda e correu por entre as fileiras de vinhas, tropeçando na terra revirada. Podia sentir os ho­mens logo atrás, ganhando terreno. O sangue latejava em seus ouvidos, e os músculos de suas pernas estavam retesados como as cordas de um piano, mas ela continuou.

Na parte mais baixa do vinhedo havia uma cerca de malha fina de arame, alta demais para pular. Alice olhou em volta, em pânico, e descobriu um bu­raco na outra ponta. Jogando-se no chão, rastejou pela terra de bruços, sentin­do os seixos e pedregulhos afiados enterrando-se nas palmas das mãos e nos joelhos. Esgueirou-se por baixo do arame, cujas pontas se prenderam em sua jaqueta, segurando-a com tanta força quanto uma teia de aranha. Ela puxou com uma força sobre-humana e conseguiu se soltar, deixando um pedaço de brim azul preso no arame.

Viu-se no meio de uma horta, cheia de compridas fileiras de grades altas de bambu que sustentavam berinjelas, abobrinhas e vagens trepadeiras, atrás das quais ela podia se esconder. Mantendo a cabeça baixa, Alice prosseguiu em ziguezague pelos canteiros, dirigindo-se para o abrigo das construções junto da horta. Um enorme mastim preso a uma pesada corrente de metal avançou sobre ela ao vê-la surgir, latindo feito um louco e abocanhando com os dentes de fera. Ela reprimiu um grito e recuou.

A entrada principal do sítio conduzia diretamente à movimentada rua principal no pé da colina. Ao sentir asfalto sob os pés, ela se permitiu olhar por sobre o ombro. O vazio e o silêncio se estendiam atrás dela. Eles não a estavam seguindo mais.

Alice pôs as mãos nos joelhos e dobrou o corpo para frente, ofegando de cansaço e alívio, esperando os braços e pernas pararem de tremer. Sua men­te já começava a funcionar.

O que você vai fazer? Os homens iriam para o hotel e a esperariam lá. Ela não podia voltar. Apalpou os bolsos, e ficou aliviada ao constatar que, no pânico da fuga, não havia perdido as chaves do carro. Sua mochila estava socada debaixo do banco da frente.

Você precisa ligar para Noubel.

Podia visualizar o pedaço de papel com o telefone de Noubel na mochila debaixo do banco do carro, junto com suas outras coisas. Alice limpou as roupas com as mãos. Seus jeans estavam cobertos de terra e rasgados em um dos joelhos. Sua única chance era voltar para o carro e rezar para que não a estivessem esperando lá.

Alice percorreu depressa a rue Barbacane, mantendo a cabeça baixa toda vez que vinha um carro. Passou pela igreja, depois tomou um atalho descendo uma pequena rua à direita chamada rue de la Gaffe.

Quem tinha mandado aqueles homens atrás dela?

Caminhava depressa, mantendo-se na sombra. Era difícil dizer onde ter­minava uma casa e começava outra. Alice sentiu uma súbita comichão na nuca. Parou, olhou para a direita, para a bonita casa de paredes amarelas, esperando ver alguém a observá-la da porta. Mas a porta estava firmemente fechada e as persianas trancadas. Depois de hesitar por um instante, Alice continuou.

Será que deveria mudar de idéia com relação a Chartres?

Na verdade, Alice percebeu que a confirmação de que corria perigo — de que aquilo não era apenas sua imaginação — a tornava mais decidida. Enquanto pensava nisso, teve mais certeza de que Authié estava por trás do que vinha acontecendo. Ele achava que ela havia roubado o anel. Obviamente estava determinado a recuperá-lo.

Ligue para Noubel.

Novamente, ignorou o próprio alerta. Até ali, o inspetor não havia feito nada. Um policial estava morto, Shelagh desaparecida. Melhor não confiar em ninguém a não ser nela mesma.

Alice chegara aos degraus que ligavam a rue Trivalle aos fundos do esta­cionamento, raciocinando que, se estivessem à sua espera, era mais provável que estivessem na entrada principal.

Os degraus eram íngremes e havia um muro alto do lado de cá do estacio­namento, o que a impedia de vê-lo, mas dava uma boa visão para qualquer pessoa que estivesse olhando de cima. Se eles estivessem lá, ela só saberia quan­do fosse tarde demais.

Só tem um jeito de descobrir.

Alice tomou fôlego e subiu os degraus correndo, as pernas movidas pela adrenalina que corria em suas veias. No alto, parou e olhou em volta. Havia alguns ônibus e carros, mas muito pouca gente.


O carro estava estacionado onde ela o havia deixado. Ela se esgueirou entre as fileiras de carros, mantendo-se agachada. Suas mãos tremiam quando sentou-se no banco do motorista. Ainda esperava que os homens se materiali­zassem na sua frente. Ainda podia ouvir suas vozes na cabeça, gritando. Assim que entrou, trancou as portas e enfiou a chave na ignição com violência.

Com os olhos a disparar em todas as direções, e as mãos brancas de tanto apertar o volante, Alice esperou até um trailer sair da vaga e o atendente levan­tar a cancela. Acelerou e saiu chispando pelo asfalto, rápido demais, mirando em cheio na saída. O atendente gritou e deu um pulo para trás, mas Alice não prestou atenção.

Continuou dirigindo.


 

Audric Baillard estava em pé com Jeanne na plataforma da estação ferroviária de Foix, esperando o trem para Andorra.

— Dez minutos — disse Jeanne, olhando para o relógio. — Ainda dá tempo. Você poderia mudar de idéia e vir comigo?

Ele sorriu diante da insistência dela.

— Você sabe que eu não posso fazer isso.Ela fez um gesto de impaciência com as mãos.

Você dedicou trinta anos a contar a história deles, Audric. Alaïs, o pai dela, sua irmã, seu marido... Passou a vida na companhia dessas pessoas. — A voz dela ficou mais suave. — Mas e quem está vivo?

A vida deles é a minha vida, Jeanne — disse ele, com uma dignidade contida. — As palavras são as únicas armas contra as mentiras da história.Precisamos ser testemunhas da verdade. Se não, as pessoas que amamos mor­rem duas vezes. — Ele fez uma pausa. — Não vou encontrar a paz até desco­brir como tudo terminou.

Depois de oitocentos anos? Pode ser que a verdade esteja enterrada fundo demais. — Jeanne hesitou. — E talvez seja melhor assim. No caso de alguns segredos, é melhor ficarem escondidos.

Baillard olhava para as montanhas à sua frente.

Eu sinto muito pela dor que causei na sua vida, você sabe disso.

Não foi o que eu quis dizer, Audric.

 

Mas descobrir a verdade de uma vez por todas — continuou ele,como se ela não houvesse dito nada. — É para isso que eu vivo, Jeanne.

Verdade! Mas e essas pessoas contra quem você está lutando, Audric? O que elas estão procurando? A verdade? Duvido.

Não — reconheceu ele por fim. — Não acho que o objetivo delas seja esse.

Então, qual é? — perguntou ela, impaciente. — Eu vou embora,como você me aconselhou. Que mal pode haver em me dizer agora?

Ainda assim, ele hesitava.


Jeanne insistiu.

Noublesso Véritable e Noublesso de los Seres são só nomes diferentes para uma mesma organização?

Não. — As palavras lhe escaparam dos lábios com mais severidade do que ele pretendia. — Não.

— Então o que são?Audric suspirou.

— Os membros da Noublesso de los Seres eram os guardiões eleitos dos pergaminhos do Graal. Durante milhares de anos, eles cumpriram esse papel.Até que um dia os pergaminhos foram separados. — Ele fez uma pausa, esco­lhendo as palavras com cuidado. — A Noublesso Véritable, por sua vez, só foi criada 150 anos atrás, quando a linguagem perdida dos pergaminhos come­çou mais uma vez a ser compreendida. O nome Véritable, que quer dizer guardiães verdadeiros, reais, foi uma tentativa deliberada de dar validade à organização.

— Então a Noublesso de los Seres não existe mais?Audric fez que não com a cabeça.

— Quando a Trilogia foi separada, a razão da existência dos guardiães também desapareceu.

Jeanne franziu o cenho.

Mas eles não tentaram recuperar os pergaminhos perdidos?

No começo, sim — admitiu ele —, mas não conseguiram. Com o tempo, ficou mais difícil continuar tentando, por medo de sacrificar o único pergaminho restante na tentativa de recuperar os outros dois. Já que ninguém mais sabia ler os textos, o segredo não podia ser revelado. Só uma pessoa... —Baillard hesitou. Sentia os olhos de Jeanne sobre ele. — A única pessoa que tinha capacidade para ler os pergaminhos decidiu não passar seu conhecimento adiante.

O que mudou então?

Durante centenas de anos, nada mudou. Então, em 1798, o impera­dor Napoleão partiu por mar rumo ao Egito, levando consigo, além de solda­dos, sábios e estudiosos. Lá, eles descobriram os restos das antigas civilizações que haviam governado aquelas terras milhares de anos antes. Centenas de ar­tefatos, tábulas sagradas, pedras, foram levados de volta para a França. Dali em diante, foi só uma questão de tempo até as línguas antigas serem decifra­das: o demótico, o cuneiforme, os hieróglifos. Como você sabe, Jean-François Champollion foi o primeiro a perceber que os hieróglifos deviam ser lidos não como símbolos de idéias ou letras, mas como uma escrita fonética. Em 1822,ele quebrou o código, para usar a expressão vulgar. Para os antigos egípcios, a escrita era uma dádiva dos deuses... na verdade, a palavra hieróglifo quer dizer fala divina.


— Mas se os pergaminhos do Graal estão escritos na língua do Egito antigo... — Ela deixou a frase em suspenso. — Se você estiver dizendo o que acho que está dizendo. Audric... — Ela sacudiu a cabeça. — Que uma socie­dade como a Noublesso tenha existido, tudo bem. Que tenham pensado que a Trilogia continha um segredo ancestral, tudo bem também. Mas o resto? É inconcebível.

Audric sorriu.

Mas qual o melhor jeito de proteger um segredo do que deixar que ele se esconda debaixo de outro segredo? E assim que as civilizações sobrevivem,apropriando, assimilando os símbolos, as idéias de outras.

Como assim?

As pessoas procuram a verdade. Pensam que a encontraram. E então param de procurar, sem nunca imaginar que debaixo do que encontraram existe algo ainda mais espantoso. A história está cheia de símbolos religiosos,ritualísticos, sociais, roubados de uma sociedade para ajudar a construir outra.Por exemplo, o dia em que os cristãos comemoram o nascimento de Jesus de Nazaré, 25 de dezembro, é na verdade o dia da festa de Sol Invictus, e é tam­bém o solstício de inverno. A cruz cristã, assim como o Graal, é na verdade um antigo símbolo egípcio, o ankh, apropriado e modificado pelo imperador Constantino. In hoc signo vinces: por este símbolo vencerás, são as palavras atribuídas a ele quando viu a forma de uma cruz surgir no céu. Mais recente­mente, os seguidores do Terceiro Reich se apropriaram da suástica para sim­bolizar a sua ordem. Ela é na verdade um símbolo hindu de renascimento.

O labirinto — disse ela, compreendendo.

— L´antica simbol del Miègjorn. — O antigo símbolo do Midi.Jeanne ficou sentada em um silêncio compenetrado, com as mãos unidas no colo, os pés cruzados nos tornozelos.

— E agora? — perguntou por fim.

Quando a caverna foi aberta, tudo passou a ser só uma questão de tempo, Jeanne — disse ele. — Eu não sou a única pessoa que sabe disso.

Mas os Montes Sabarthès foram escavados pelos nazistas durante a guerra — disse ela. — Os caçadores nazistas do Graal conheciam os boatos de que o tesouro cátaro estava enterrado em algum lugar das montanhas. Eles passaram anos escavando qualquer lugar de possível interesse esotérico. Se essa caverna é tão importante, como é que não foi descoberta sessenta anos atrás?

Nós garantimos que não fosse descoberta.

— Você estava lá? — perguntou ela, com a voz aguda de surpresa.Baillard sorriu.

— Existem conflitos na Noublesso Véritable — disse ele, esquivando-se da pergunta dela. — A líder da organização é uma mulher chamada Marie-Cécile de l´Oradore. Ela acredita no Graal e quer recuperá-lo. Ela acredita na Busca. — Ele fez uma pausa. — Mas existe outra pessoa dentro da organiza­ção. — O rosto dele se obscureceu. — Os motivos dele são diferentes.

Você precisa falar com o inspetor Noubel — disse ela, aflita.

Mas e se, como eu disse, ele também estiver trabalhando para eles? É um risco grande demais.

O som estridente do apito rompeu o silêncio da estação. Os dois se vira­ram em direção ao trem que entrava na plataforma com um guinchar dos freios. Era o fim da conversa.

Não quero deixar você aqui sozinho, Audric.

Eu sei — disse ele, segurando a mão dela para ajudá-la a subir no trem. — Mas é assim que tem de terminar.

Terminar?

Ela abriu a janela e estendeu a mão para segurar a dele.

— Por favor, tome cuidado. Não se arrisque demais.

Por toda a plataforma, as pesadas portas se fecharam, e o trem foi se afastando, no início devagar, depois cada vez mais rápido, até desaparecer nas fendas das montanhas.


 

Shelagh podia sentir que havia alguém no quarto com ela.

Esforçou-se para levantar a cabeça. Sentia-se mal. Sua boca estava seca e havia um latejar difuso em seu crânio, como o zumbido monótono de um aparelho de ar condicionado. Ela não conseguia se mexer. Levou alguns se­gundos para perceber o fato de que agora estava sentada em uma cadeira, os braços puxados com força para trás das costas e os tornozelos presos às pernas de madeira.

Houve um ligeiro movimento, um estalo das tábuas do piso quando alguém mudou de posição.

— Quem está aí?

As palmas de suas mãos estavam úmidas de medo. Um filete de suor escorria pela base de suas costas. Shelagh forçou-se a abrir os olhos, mas mes­mo assim não conseguiu ver. Entrou em pânico, sacudindo a cabeça, piscan­do, tentando fazer a luz voltar, até perceber que o capuz estava novamente cobrindo sua cabeça. Recendia a terra e mofo.

Será que ela ainda estava na casa da fazenda? Lembrou-se da agulha, da surpresa da picada da injeção. O mesmo homem que lhe trazia comida. Com certeza alguém viria salvá-la? Ou não?

— Quem está aí? — Ninguém respondeu, embora ela pudesse senti-los bem perto. O ar estava pesado com cheiro de loção pós barba e cigarro. — O que você quer?

A porta se abriu. Passos. Shelagh sentiu a mudança na atmosfera. Um instinto de auto preservação tomou conta dela, e por um instante ela se deba­teu freneticamente para se libertar. A corda só fez ficar mais apertada, pressio­nando mais ainda seus ombros, fazendo-os doer.

A porta se fechou com um baque agourento, pesado.

Ela ficou parada. Por um instante, houve apenas silêncio, depois o som de alguém caminhando em sua direção, cada vez mais perto. Shelagh se retraiu na cadeira. Ele parou bem na sua frente. Ela sentiu o corpo inteiro se contrair, como se milhares de pequenos fios repuxassem sua pele. Como um animal rodeando a presa, ele deu algumas voltas ao redor da cadeira, depois pousou as mãos sobre os ombros dela.

Quem é você? Por favor, pelo menos tire esta venda.

Precisamos ter outra conversa, Dra. O'Donnell.

Uma voz que ela conhecia, fria e precisa, varou seu corpo como se fosse uma faca. Ela percebeu que era aquele homem que estava esperando. Era dele que tinha medo.

De repente, ele empurrou a cadeira para trás.

Shelagh gritou enquanto caía de costas, incapaz de evitar a própria que­da. Não chegou a tocar o chão. Ele a deteve centímetros antes do piso, de modo que ela estava quase deitada, com a cabeça pendendo para trás e os pés suspensos no ar.

— Você não está em posição de pedir nada, Dra. O´Donnell.

Ele a segurou naquela posição pelo que pareceram ser horas. Então, sem avisar, subitamente pôs a cadeira de pé. Com a força do movimento, o pescoço de Shelagh se projetou para frente. Ela estava ficando desorientada, como uma criança que brinca de cabra cega.

Para quem está trabalhando, Dra. O´Donnell?

Não consigo respirar — sussurrou ela.

Ele a ignorou. Ela o ouviu estalar os dedos e o ruído de uma segunda cadeira sendo posicionada na sua frente. Ele se sentou e puxou-a em sua dire­ção até seus joelhos encostarem nas coxas dela.

Vamos voltar para a tarde de segunda. Por que deixou sua amiga ir para aquela parte da escavação?

A Alice não tem nada a ver com isso — choramingou ela. — Eu não a deixei trabalhar lá. Ela foi por vontade própria. Eu nem sabia. Foi só um erro. Ela não sabe de nada.

Então me diga o que você sabe, Shelagh. — Seu nome na boca dele soava como uma ameaça.

Eu não sei de nada — gemeu ela. — Já disse a você tudo que eu sabia na segunda, juro.

O tapa veio do nada, atingindo-a bem na bochecha e jogando sua cabeça para trás. Shelagh sentiu gosto de sangue na boca, escorrendo por sua língua e pelo fundo de sua garganta.

— A sua amiga pegou o anel? — perguntou ele com a voz normal.

— Não, não, eu juro que não pegou.Ele apertou com mais força.

Então quem pegou? Você? Você ficou sozinha com os esqueletos por tempo suficiente. A Dra. Tanner me disse.

Por que eu pegaria? Ele não vale nada para mim.


Por que tem tanta certeza de que a Dra. Tanner não pegou o anel?

Ela não faria isso. Não faria — gemeu Shelagh. — Várias outras pessoas entraram lá. Qualquer um podia ter pego o anel. O Dr. Brayling, a polícia... — Ela se calou de repente.

Como você diz, a polícia — falou ele. Ela reteve a respiração. —Qualquer um deles poderia ter pego o anel. Yves Biau, por exemplo.

Shelagh congelou. Podia ouvir o subir e descer da respiração dele, calma e sem pressa. Ele sabia.

O anel não estava lá.Ele suspirou.

O Biau entregou o anel para você? Para dar para a sua amiga?

Eu não sei do que você está falando — ela conseguiu dizer.

Ele tornou a bater nela, dessa vez com o punho, não com a mão aberta. O sangue jorrou de seu nariz e escorreu por seu queixo.

— O que eu não entendo — dizia ele como se nada tivesse acontecido — é por que ele também não entregou o livro para você, Dra. O´Donnell.

— Ele não me entregou nada — disse ela, sufocando.

O Dr. Brayling disse que você saiu da escavação na segunda-feira car­regando uma bolsa.

Ele está mentindo.

Para quem você está trabalhando? — perguntou ele baixinho, suave.

— Isto vai parar. Se a sua amiga não estiver envolvida, não tem motivo para ela se machucar.

— Ela não está — disse Shelagh com a voz chorosa. — A Alice não sabe...

Shelagh se retraiu quando ele pôs a mão em sua garganta, afagando-a primeiro, em uma paródia de afeição. Então começou a apertar, cada vez mais forte, até ela sentir que havia uma coleira de aço em volta de seu pescoço. Ela se debateu de um lado para o outro, tentando aspirar algum ar, mas ele era forte demais.

— Você e o Biau estavam trabalhando para ela? — perguntou.

No exato instante em que ela sentiu que começava a perder os sentidos, ele a soltou. Ela o sentiu mexendo nos botões de sua blusa, abrindo-os um por um.

O que você está fazendo? — sussurrou ela, depois se encolheu quan­do ele tocou sua pele, um toque frio e clínico.

Ninguém está procurando você. — Ouviu-se um estalo, e Shelagh sentiu cheiro de fluido de isqueiro. — Ninguém vai vir.

Por favor, não me machuque...

— Você e o Biau estavam trabalhando juntos?Ela assentiu.


— Para madame de l´Oradore?Ela tornou a assentir.

— Para o filho dela — conseguiu articular. — François-Baptiste. Eu só falei com ele...

Ela podia sentir a chama próxima de sua pele.

E o livro?

Não consegui encontrar. Nem o Yves.Ela o sentiu reagir, então ele retirou a mão.

— Então por que o Biau foi para Foix? Você sabe que ele foi ao hotel da Dra. Tanner?

Shelagh tentou sacudir a cabeça, mas o gesto fez uma nova onda de dor percorrer seu corpo.

Ele passou alguma coisa para ela.

Não foi o livro — ela conseguiu dizer.

Antes que pudesse expelir o resto da frase, a porta se abriu e ela ouviu vozes abafadas no corredor, depois a combinação de cheiro de loção pós-barba e suor.

Como é que você deveria entregar o livro para madame de 1'Oradore?

François-Baptiste. — Falar doía. — Encontrar com ele no Pic de... eu tinha um número de telefone. — Ela recuou quando ele pôs a mão em seu seio.

Por favor, não...

Está vendo como é bem mais fácil quando você coopera? Agora, da­qui a pouquinho, você vai dar esse telefonema para mim.

Shelagh tentou sacudir a cabeça, aterrorizada.

Se eles descobrirem que eu contei para você, eles vão me matar.

E eu vou matar você e mademoiselle Tanner se você não ligar — disse ele, calmo. — Você decide.

Shelagh não tinha como saber se ele havia pego Alice. Se ela estava segu­ra, ou se estava ali também.

— Ele está esperando você ligar quando estiver com o livro, não é?Ela não tinha mais coragem de mentir. Aquiesceu.

— Eles estão mais preocupados com um pequeno disco, do tamanho do anel, do que com o anel em si.

Horrorizada, Shelagh percebeu que havia contado a ele a única coisa que ele não sabia.

Para que serve o disco? — perguntou ele.

Não sei.

Shelagh ouviu a própria voz gritar quando a chama lambeu sua pele.

— Para... que... serve? — ele tornou a perguntar. Não havia emoção na voz dele. Ela estava gelada de frio. Um cheiro ruim de carne queimada pairava no ar, doce e enjoativo.


À medida que a dor a levava embora, ela não conseguia mais distinguir um mundo do outro. Estava flutuando, caindo. Sentiu o pescoço ceder.

— Ela está apagando. Tire o capuz.

O material foi arrancado, prendendo-se nos cortes e na pele ferida.

— Encaixa dentro do anel...

A voz dela parecia estar vindo de baixo da água.

Como uma chave. Para o labirinto...

Quem mais sabe disto? — gritava ele, mas ela sabia que ele não podia alcançá-la agora. Seu queixo desabou por cima de seu peito. Ele puxou-lhe a cabeça para trás. Um de seus olhos estava fechado de tão inchado, mas o outros e entreabriu. Tudo que ela conseguiu ver foi um emaranhado de rostos emba­çados, entrando e saindo de sua linha de visão.

Ela não percebe...

Quem? — perguntou ele. — Madame de l´Oradore? Jeanne Giraud?

Alice — sussurrou Shelagh.


 

Alice chegou a Chartres no final da tarde. Encontrou um hotel, depois com­prou um mapa e foi direto para o endereço que conseguira no auxílio à lista. Alice olhou surpresa para a casa requintada, com sua aldrava e caixa de correio de bronze reluzente e suas plantas elegantes nas jardineiras, e os vasos margeando os degraus. Ela não podia imaginar Shelagh hospedada ali.

Que diabo você vai dizer se alguém atender?

Alice respirou fundo, depois subiu os degraus e tocou a campainha. Nin­guém atendeu. Ela esperou, deu um passo para trás e olhou para as janelas lá em cima, depois tentou de novo. Ligou para o número. Segundos depois, pôde ouvir um telefone tocando lá dentro.

Pelo menos era o lugar certo.

Aquilo era um anticlímax mas, para ser honesta consigo mesma, era tam­bém um alívio. O confronto, se era isso que estava por vir, podia esperar.

A praça em frente à catedral estava abarrotada de turistas, todos agarrados com câmeras, e guias de turismo empunhando flâmulas ou sombrinhas coloridas levantadas bem alto. Alemães bem comportados, ingleses pouco à vontade, italianos glamourosos, japoneses calados, americanos entusiasmados. Todas as crianças pareciam entediadas.

Em algum ponto da longa viagem para o norte, ela havia parado de achar que descobriria alguma coisa com o labirinto de Chartres. Tudo parecia tão obviamente ligado — a caverna no Pic de Soularac, Grace, ela própria —, era tudo óbvio demais. Parte dela tinha a sensação de estar correndo atrás de uma pista falsa.

Mesmo assim, Alice comprou ingresso e juntou-se à excursão de língua inglesa, marcada para começar dali a cinco minutos. A guia era uma mulher eficiente, de meia-idade, com modos excepcionais e uma voz bem marcada.

— Para o olhar moderno, as catedrais são estruturas altas e cinzentas de devoção e fé. Mas, na época medieval, elas eram muito coloridas, mais pareci­das com os santuários hindus da Índia ou da Tailândia. As estátuas e pedestais que adornavam os grandes portais, aqui em Chartres ou em outras catedrais, eram policromáticos. — A guia apontou para a fachada com a sombrinha. — Se vocês olharem de perto, ainda poderão ver fragmentos de rosa, azul e ama­relo colados nas rachaduras das estátuas.

Em volta de Alice, as pessoas aquiesciam, obedientes.

— Em 1194 — continou a mulher —, um incêndio destruiu a maior parte da cidade de Chartres, assim como a própria catedral. No início pensa­ram que a relíquia mais sagrada da catedral tivesse sido destruída: a sancta camisia, a túnica supostamente usada por Maria no nascimento de Cristo.Mas, três dias depois, a relíquia foi encontrada: tinha sido escondida na cripta pelos monges. Isso foi visto como um milagre, um sinal de que a catedral devia ser reconstruída. O edifício que vemos hoje foi concluído em 1223, e em 1260foi consagrado como igreja catedral da Assunção de Nossa Senhora, a primei­ra catedral da França a ser dedicada à Virgem Maria.

Alice escutava com um ouvido só, até chegarem à parte norte da catedral. A guia apontou para a sinistra procissão de pedra de reis e rainhas do Antigo Testamento, esculpida acima do portal norte.

Alice sentiu um calafrio de nervosismo.

— Esta é a única representação significativa do Antigo Testamento na catedral — disse a guia, chamando-os para mais perto. — Neste pilar existe um alto-relevo que muitas pessoas acreditam representar a Arca da Aliança sendo levada embora de Jerusalém por Menelik, filho de Salomão e da rainha de Sabá, apesar do fato de os historiadores alegarem que a história de Menelik só ficou conhecida na Europa no século XV. E aqui — ela abaixou um pouco o braço — temos outro mistério. Quem tiver bons olhos vai conseguir distin­guir, com esforço, as palavras latinas HIC AMITITUR ARCHA CEDERIS. —Ela olhou em volta para o grupo e sorriu, como quem sabe das coisas. —Quem souber latim vai perceber que a inscrição não faz sentido. Alguns guias impressos traduzem ARCHA CEDERIS como "É preciso ir até a Arca", e a inscrição inteira como "Aqui as coisas seguem seu curso: é preciso ir até a Arca." Mas se tomarmos CEDERIS por uma corruptela de FOEDERIS, con­forme sugeriram alguns comentadores, então a inscrição pode ser traduzida como "Aqui ela se foi, a Arca da Aliança".

Ela olhou em volta para o grupo.

— Esta porta, entre outras coisas, é um dos motivos para os inúmeros mitos e lendas que surgiram em torno da catedral. Não se sabe os nomes dos mestres de construção responsáveis pela catedral de Chartres, o que é raro. É provável que, por alguma razão, nenhum registro tenha sido mantido e os nomes tenham simplesmente sido esquecidos. No entanto, aqueles com ima­ginações mais, digamos, férteis, interpretaram essa ausência de informação de outra forma. O mais persistente dos rumores é que a catedral foi construída por descendentes dos Pobres Cavaleiros de Salomão, os Templários, como um livro de pedra codificado, um quebra-cabeça gigante que só os inicia­dos eram capazes de decifrar. Muitos acreditavam que os ossos de Maria Madalena haviam sido enterrados debaixo do labirinto. Ou até mesmo o pró­prio Santo Graal.

— Alguém procurou? — perguntou Alice, arrependendo-se das palavras no instante em que saíram de sua boca. Olhos desaprovadores voltaram-se para ela como um canhão de luz.

A guia arqueou as sobrancelhas.

— Certamente. Em mais de uma ocasião. Mas a maioria de vocês não vai ficar surpresa se eu disser que não descobriram nada. Outro mito. — Ela fez uma pausa. — Vamos entrar?

Sentindo-se esquisita, Alice seguiu o grupo até a Porta Oeste e entrou na fila para entrar na catedral. Imediatamente, todos baixaram a voz enquanto o cheiro característico de pedra e incenso realizava sua magia. Nas capelas late­rais e perto da entrada principal, fileiras bruxuleantes de velas devocionais reluziam na escuridão.

Ela se preparou para algum tipo de reação, visões do passado, como havia sentido em Toulouse e Carcassonne. Não sentiu nada, e depois de al­gum tempo relaxou e começou a aproveitar o passeio. Graças a suas pesquisas, sabia que a catedral de Chartres era conhecida por ter a mais bela coleção de vitrais coloridos do mundo, mas não estava preparada para o brilho ofuscante das janelas. Um caleidoscópio de cores cintilantes inundou a catedral, mos­trando cenas da vida cotidiana e bíblica. A Janela da Rosa e a Janela da Virgem Azul, a Janela de Noé retratando o dilúvio e os animais entrando na arca aos pares. Enquanto andava, Alice tentou imaginar como deveria ter sido aquele lugar quando as paredes eram cobertas de afrescos e adornadas com ricas tape­çarias, os tecidos orientais e flâmulas de seda todos bordados de ouro. Aos olhos medievais, o contraste entre os esplendores do templo de Deus e o mun­do do lado de fora do claustro devia ter sido impressionante. Prova irrefutável, talvez, da glória de Deus sobre a Terra.

— E, finalmente — disse a guia —, chegamos ao famoso piso do labirin­to de 11 circuitos. Completado em 1200, é o maior da Europa. A peça central original desapareceu há muito tempo, mas o resto está intacto. Para os cristãos medievais, o labirinto era uma oportunidade de fazer uma peregrinação espi­ritual, em vez de uma viagem de verdade a Jerusalém. Daí o fato de os labirintos desenhados no piso, por oposição àqueles encontrados nas paredes de igrejas e catedrais, serem muitas vezes conhecidos como chemin de Jerusalém, ou seja, a estrada ou caminho para Jerusalém. Peregrinos seguiam o circuito em direção ao centro, às vezes repetidas vezes, o que simbolizava uma compreensão ou uma proximidade cada vez maior de Deus. Os penitentes muitas vezes percor­riam o caminho de joelhos, e algumas vezes levavam vários dias.

Alice chegou até a frente do grupo, com o coração disparado, perceben­do em seu subconsciente que estava adiando aquele instante.

Chegou a hora.

Ela respirou fundo. As fileiras de cadeiras dos dois lados da nave, dispos­tas em frente ao altar para a missa, destruía a simetria. Mesmo assim, e apesar de conhecer as dimensões depois de sua pesquisa, Alice ficou espantada com o tamanho do labirinto. Ele dominava inteiramente a catedral.

Devagar, como todos os outros, Alice começou a percorrer o labirinto, dando voltas e mais voltas, em círculos cada vez menores, como em um jogo de siga-o-líder, até chegar ao centro.

Não sentiu nada. Nenhum tremor na espinha, nenhum momento de iluminação ou de transformação. Nada. Agachou-se e tocou o chão. A pedra era lisa e fresca, mas não lhe causou nenhum efeito.

Alice deu um sorriso de ironia. O que você estava esperando?

Sequer precisou tirar da bolsa o desenho do labirinto da caverna para saber que ali não havia nada que a interessasse. Sem fazer alarde, Alice pediu licença ao grupo e se retirou discretamente.

Depois do calor intenso do Midi, o suave sol do norte era um alívio, e Alice passou a hora seguinte explorando o pitoresco centro histórico da cidade. In­conscientemente, procurava a esquina onde Grace e Audric Baillard haviam posado para a foto.

A esquina parecia não existir, ou então ficava fora da área coberta pelo mapa. A maioria das ruas havia sido batizada em homenagem aos ofícios pra­ticados ali antigamente: relojoeiros, curtidores, palafreneiros e copistas, teste­munhas da importância de Chartres como grande centro francês de fabricação de papel e encadernação nos séculos XII e XIII. Mas não havia nenhuma rue des Trois Degrés.

Por fim, Alice tornou a chegar ao ponto onde havia começado, na frente da Porta Oeste da catedral. Sentou-se no muro apoiada nas grades. Imediatamente, seu olhar foi atraído para a esquina da rua logo em frente. Ela pulou de cima do muro e correu para ler a placa na parede: RUE DE L´ÉTROIT DEGRÉ, DITE AUSSI RUE DES TROIS DEGRÉS (DES TROIS MARCHES).

A rua havia mudado de nome. Sorrindo para si mesma, Alice recuou alguns passos para ver melhor e esbarrou em um homem que tinha o rosto enterrado em um jornal.

— Pardon — disse, afastando-se para o lado.


Não, sou eu quem peço desculpas — respondeu ele com um agradá­vel sotaque americano. — Foi culpa minha. Eu não estava prestando atenção para onde estava indo. Tudo bem com você?

Tudo.

Para sua surpresa, ele olhava para ela com interesse.

Algum...

Alice, não é?

É...? — disse ela, cautelosa.

Alice, claro. Oi — disse ele, passando os dedos pela cabeleira loura desgrenhada. — Que incrível!

Desculpe, mas eu...

William Franklin — disse ele, estendendo a mão. — Nos conhece­mos em Londres, 1994 ou 95. Um grupo grande. Você namorava um cara...como era o nome dele... Oliver. E isso? Eu estava visitando a minha prima.

Alice tinha uma vaga lembrança de uma tarde em um apartamento abar­rotado com os amigos de universidade de Oliver. Achava que, com esforço, era capaz de se lembrar de um rapaz americano, simpático, bonito, embora naquela época estivesse completamente apaixonada e não reparasse em mais ninguém.

Será este cara?

— Você tem boa memória — disse ela, apertando a mão dele. — Faz muito tempo.

Você não mudou muito — disse ele, sorrindo. — Como vai o Oliver?Alice fez uma careta.

Não estamos mais juntos.

— Que pena — disse ele. Houve uma pausa curta, e ele acrescentou: —Quem é essa aí na foto?

Alice baixou os olhos. Esquecera-se de que ainda a estava segurando.

— Minha tia. Encontrei isto no meio das coisas dela e, já que estava aqui, pensei em ver se conseguia descobrir onde tinha sido tirada. — Ela deu um meio-sorriso. — Foi mais difícil do que você poderia imaginar.

Will olhou por sobre o ombro dela.

E o cara?

Um amigo. Escritor.

Outra pausa, como se ambos quisessem continuar a conversa, mas não soubessem muito bem o que dizer. Will tornou a olhar para a fotografia.

Ela parece legal.

Legal? Para mim ela parece bem determinada, mas eu não tenho como ter certeza disso. Nunca nos conhecemos.


É mesmo? Então por que você está carregando uma foto dela por aí?Alice tornou a guardar a foto na bolsa.

É complicado.

— Eu gosto de histórias complicadas — disse ele, gozador. — Olhe... —ele hesitou. — Quer tomar um café ou coisa assim? Se você não tiver nenhum outro compromisso.

Alice ficou surpresa, mas na verdade estava pensando a mesma coisa.

Você costuma abordar mulheres assim, aleatoriamente?

Não — disse ele. — Mas a pergunta é: você costuma aceitar?

Alice tinha a sensação de que estava olhando aquela cena do alto. Vendo um homem e uma mulher, parecida com ela, entrarem em uma pâtisserie antiqua­da, com os bolos e doces expostos em vitrines compridas.

Não acredito que estou fazendo isto.

Imagens, cheiros, sons. Garçons indo e vindo entre as mesas, o cheiro amargo de queimado do café, o chiado do leite na máquina, o tilintar de gar­fos sobre os pratos, tudo era especialmente vivido. Acima de tudo, o próprio Will: o modo como ele sorria, seu virar de cabeça, o jeito como seus dedos tocavam a corrente de prata em seu pescoço quando ele falava.

Sentaram-se em uma mesa do lado de fora. Era possível ver a pontinha da agulha da catedral por cima dos telhados das casas. Quando se sentaram, foram ambos tomados por um leve mal-estar. Os dois começaram a falar ao mesmo tempo. Alice riu, Will se desculpou.

Cautelosos, hesitantes, começaram a contar um ao outro a história de suas vidas desde o último encontro, seis anos antes.

— Você parecia mesmo entretido quando veio dobrando aquela esquina— disse ela, virando o jornal dele para poder ler a manchete.

Will deu um meio-sorriso.

— É, desculpe de novo por aquilo — falou. — O jornal daqui nem sempre é muito estimulante. Um homem foi encontrado morto no rio, bem no centro da cidade. Tinha sido apunhalado nas costas, as mãos e os pés dele estavam amarrados, a estação de rádio daqui está. ficando maluca. Parece que pensam que foi algum tipo de morte ritualística. Agora estão ligando a morte dele ao desaparecimento de uma jornalista na semana passada, uma mulher que estava escrevendo um exposé sobre sociedades secretas religiosas.

O sorriso desapareceu do rosto de Alice.

Posso ver o jornal? — pediu ela, estendendo a mão.

Claro. À vontade.

Seu mal-estar aumentou quando ela leu a lista de nomes. Noublesso Véritable. Havia algo familiar naquele nome.


Está tudo bem? — Alice ergueu os olhos e viu Will olhando para ela fixamente.

Desculpe — disse ela. — Eu estava com a cabeça longe. É que recentemente encontrei uma coisa parecida com isto. Estou chocada com a coincidência.

Coincidência? Parece interessante.

E uma história comprida.

Eu não estou com pressa — disse Will, apoiando os cotovelos na mesa e sorrindo para ela, incentivando-a.

Depois de passar tanto tempo presa nos próprios pensamentos, Alice sentiu-se tentada pela oportunidade de finalmente conversar com alguém. E ela praticamente o conhecia. Só conte a ele o que você quiser.

— Bom, eu não tenho certeza se isto vai fazer muito sentido — começou ela. — Alguns meses atrás, eu descobri, totalmente por acaso, que uma tia de quem eu nunca tinha ouvido falar tinha morrido e deixado tudo para mim,inclusive uma casa na França.

— A senhora da foto. Ela aquiesceu.

O nome dela é Grace Tanner. Eu já vinha para a França de qualquer jeito, para visitar uma amiga que estava trabalhando em uma escavação arqueo­lógica nos Pireneus, então resolvi juntar as duas viagens. — Ela hesitou. —Aconteceram umas coisas na escavação... não vou chatear você com detalhes...mas o fato é que parecia... Bom, não importa. — Ela tomou fôlego. — On­tem, depois de encontrar a advogada, eu fui à casa da minha tia e encontrei umas coisas... uma coisa, um desenho, que tinha visto na escavação. — Ela gaguejou, sem conseguir articular. — Lá também tinha um livro escrito por um autor chamado Audric Baillard, que tenho quase cem por cento de certeza que é o homem da foto.

Ele ainda está vivo?

Até onde eu sei, está. Ainda não consegui encontrá-lo.

Qual é a relação dele com a sua tia?

Não tenho certeza. Tenho esperança de que ele vá me dizer. Ele é o meu único vínculo com ela. E com outras coisas.

Com o labirinto, com a árvore genealógica, com o meu sonho. Quando ela ergueu os olhos, viu que Will tinha no rosto uma expressão confusa, mas interessada.

Não posso dizer que entendi muita coisa — disse ele com um meio-sorriso.

Eu não estou explicando muito bem — admitiu ela. — Vamos falar de alguma coisa menos complicada. Você ainda não me disse o que está fazen­do em Chartres.


Como qualquer outro americano na França, tentando escrever.Alice sorriu.

O mais tradicional não é Paris?

— Eu comecei por lá, mas devo ter achado muito... bom, muito impessoal, se é que você me entende. Meus pais conheciam gente lá. Acabei ficando um tempo.

Alice assentiu, esperando que ele continuasse. Em vez disso, ele voltou a algo que ela dissera antes.

— Esse desenho que você mencionou — disse ele, casual. — Que você encontrou na escavação e depois na casa da Grace, o que ele tinha de especial?

Ela hesitou.

É um labirinto.

É por isso então que você está em Chartres? Para visitar a catedral?

Não é exatamente o mesmo labirinto... — Ela se deteve, novamente cautelosa. — E parte por isso que estou aqui, mas também estou planejando encontrar uma amiga. Shelagh. Existe uma... possibilidade de que ela possa estar em Chartres. — Alice enfiou a mão dentro da bolsa e passou para Will por cima da mesa o pedaço de papel com o endereço escrito. — Eu fui lá mais cedo, mas não tinha ninguém. Então resolvi ver um pouco a cidade, e voltar dali a uma hora ou alguma coisa assim.

Alice ficou chocada ao ver que Will havia ficado pálido. Ele parecia atônito.

— Está tudo bem com você? — perguntou ela.

Por que você acha que a sua amiga pode estar neste endereço? —perguntou ele com a voz tensa.

Não sei muito bem — disse ela, ainda intrigada pela mudança que havia se operado nele.

 

É a mesma amiga que você foi visitar na escavação?Ela assentiu.

E ela também viu esse desenho do labirinto? Como você?

 

Imagino que sim, mas ela não disse nada. Estava mais obcecada com uma coisa que eu tinha encontrado, que... — Alice se interrompeu ao ver que Will se punha de pé abruptamente.

O que você está fazendo? — perguntou ela, assustada pela expressão no rosto dele enquanto a segurava pela mão.

Venha comigo. Tem uma coisa que você precisa ver.

— Onde estamos indo? — ela tornou a perguntar, apressando o passo para acompanhá-lo.

Então dobraram a esquina e Alice percebeu que estavam do outro lado da rue du Cheval Blanc. Will dirigiu-se para a casa a passos largos, depois subiu correndo os degraus até a porta da frente.


Ficou maluco? E se chegar alguém?

Não vai chegar.

Mas como é que você sabe?

Alice ficou olhando, espantadíssima, enquanto Will tirava do bolso uma chave e abria a porta da frente.

Rápido, antes que alguém nos veja.

Você tem a chave — perguntou ela, incrédula. — Que tal se come­çasse a me dizer que diabo está acontecendo?

Will tornou a descer os degraus correndo e agarrou a mão dela.

— Aqui dentro tem uma versão do seu labirinto — sibilou ele. — OK? Agora você vai entrar ou não?

E se for outra armadilha?

Depois de tudo que havia acontecido, ela seria louca se o seguisse. Era arriscado demais. Ninguém sequer sabia que ela estava ali. Mas a curiosidade derrotou o bom senso. Alice ergueu os olhos para o rosto de Will, que se mostrava ao mesmo tempo apressado e nervoso.

Decidiu lhe dar mais uma chance e confiar nele.


 

Alice se viu de pé em um grande hall de entrada, que mais parecia um museu do que a casa de alguém. Will foi direto até uma tapeçaria bem em frente à porta e a afastou da parede.

— O que você está fazendo?

Correu atrás dele e viu uma pequena maçaneta de bronze incrustada no painel de madeira. Will a sacudiu e empurrou, depois se virou, frustrado.

Que saco. Alguém trancou pelo outro lado.

É uma porta? É.

E o labirinto que você viu está lá dentro? Will fez que sim com a cabeça.

— Você desce um lance de escadas e um corredor, que leva até uma espécie de câmara. Lá tem símbolos egípcios nas paredes e uma tumba com o símbolo do labirinto esculpido em cima, exatamente como você descreveu.Agora... — Ele se interrompeu. — Aquela história no jornal. O fato de a sua amiga ter este endereço...

—Você está tirando um monte de conclusões sem fundamento nenhum — disse ela.

Will soltou o canto da tapeçaria e andou até um aposento do lado oposto do hall. Depois de hesitar por um instante, Alice foi atrás.

— O que você está fazendo? — sibilou ela enquanto Will abria a porta.

Entrar na biblioteca foi como recuar no tempo. Era um aposento for­mal, com a atmosfera de um clube exclusivamente masculino. As persianas estavam parcialmente fechadas, e feixes de luz amarela riscavam o tapete como tiras de tecido dourado. Havia um ar de permanência, um cheiro de antigüidade e cera.

Estantes fechadas corriam do chão até o teto em três das quatro paredes, com escadas deslizantes para dar acesso às mais. altas. Will sabia exatamente o que estava procurando. Havia uma seção dedicada aos livros sobre Chartres, composta tanto de volumes ilustrados quanto de ensaios mais sérios sobre arquitetura e história social.

Virando-se ansiosa para a porta, com o coração disparado, Alice viu Will tirar da prateleira um livro com um brasão de família gravado na capa e levá-lo até a mesa. Alice olhou por cima do ombro dele enquanto ele virava as pá­ginas. Fotografias coloridas em papel cuchê, antigos mapas de Chartres, dese­nhos a traço e tinta foram passando, até Will chegar à parte que lhe interessava.

O que é isto?

Um livro sobre a casa da família de l´Oradore. Esta casa — respondeu ele. — A família mora aqui há centenas de anos, desde que ela foi construída.O livro tem as plantas baixas e os cortes verticais da casa inteira.

Will foi passando até chegar à página que queria.

Olhe — disse, virando o livro para ela poder ver bem. — E isto aqui?Alice perdeu o fôlego.

Ai, meu Deus — sussurrou.

Era um desenho perfeito de seu labirinto.

O barulho da porta da frente sendo fechada com um baque fez os dois sobressaltarem-se.

— Will, a porta! Deixamos aberta!

Ela pôde distinguir vozes abafadas no hall, um homem e uma mulher.

— Estão vindo para cá — sibilou ela.Will empurrou o livro para ela.

— Rápido — sibilou, apontando para um grande sofá de três lugares debaixo da janela. — Deixe que eu cuido disto.

Alice pegou sua mochila, correu até o sofá e esgueirou-se para o espaço entre o móvel e a parede. Um cheiro pungente de couro rachado, fumaça de charuto velha e poeira fez cócegas em seu nariz. Ela ouviu Will fechar a porta da estante com estrépito, depois posicionar-se no meio do aposento no exato instante em que a porta da biblioteca se abriu.

— Qu´est-ce que vous foutez lá?

Uma voz de homem. Inclinando um pouco a cabeça, Alice pôde com esforço vê-los refletidos nas portas envidraçadas das estantes. O rapaz era jo­vem e alto, mais ou menos da mesma idade de Will, embora mais magro. Cabelos pretos encaracolados, testa larga e nariz aristocrático. Ela franziu o cenho. Ele lhe lembrava alguém.

— François-Baptiste. Oi — disse Will. Mesmo aos ouvidos de Alice, sua alegria soava fingida.

— Que porra você está fazendo aqui? -— repetiu o rapaz em inglês.Will acenou com a revista que havia pego em cima da mesa.


— Vim só procurar alguma coisa para ler.

François-Baptiste passou os olhos pelo título e deu uma risada curta.

Não parece o seu estilo.

Mal sabe você.

O rapaz deu um passo na direção de Will.

Você não vai durar muito mais — disse ele em uma voz baixa, amar­ga. — Ela vai se cansar de você e te chutar como todos os outros. Você nem sabia que ela ia sair da cidade, sabia?

O que acontece entre nós não é da sua conta, então se você não se importar...

François-Baptiste interpôs-se na frente de Will.

— Por que a pressa?

Não me provoque, François-Baptiste, estou avisando.François-Baptiste pôs a mão no peito de Will para impedi-lo de passar.

Não toque em mim.

Senão você vai fazer o quê?

Ça suffit.

Os dois homens se viraram. Alice se esforçou para ver melhor, mas a mulher não havia entrado totalmente no aposento.

O que está acontecendo? — perguntou ela. — Brigando feito duas crianças. François-Baptiste? William?

Rien, maman. Je lui demandais...

Will fez uma cara de espanto quando finalmente percebeu quem havia entrado junto com François.

— Marie-Cécile. Eu não fazia idéia... — Ele hesitou. — Não estava esperando você voltar tão cedo.

A mulher entrou mais no aposento e Alice deu uma boa olhada em seu rosto.

Não pode ser.

Nesse dia ela estava vestida com mais formalidade do que na vez anterior em que Alice a vira, com uma saia ocre na altura dos joelhos e uma jaqueta combinando. Tinha os cabelos soltos em volta do rosto, e não presos para trás com um lenço.

Mas não havia como confundi-la. Era a mesma mulher que Alice vira na frente do Hotel de la Cité em Carcassonne. Aquela era Marie-Cécile de l´Oradore.

Ela olhou da mãe para o filho. A semelhança familiar era forte. O mes­mo perfil, o mesmo ar imperioso. O motivo do ciúme de François-Baptiste e do antagonismo entre ele e Will agora fazia sentido.


Mas, de fato, meu filho tem razão — dizia Marie-Cécile. — O que você está fazendo aqui?

Eu estava... estava só procurando alguma coisa diferente para ler.Tenho me sentido... sozinho sem você.

Alice se retraiu. Ele não soava nada convincente.

— Sozinho — ecoou ela. — A sua cara está contando uma outra histó­ria, Will.

Marie-Cécile se inclinou para frente e beijou Will na boca. Alice sentiu o embaraço invadir o aposento. A cena era desconfortavelmente íntima. Ela podia ver que Will tinha os punhos cerrados.

Ele não quer que eu veja isto.

O pensamento, por mais surpreendente que fosse, entrou e saiu de sua mente como um piscar de olhos.

Marie-Cécile o soltou, com um brilho de satisfação no rosto.

Nos falamos depois, Will. Agora, infelizmente, eu e o François-Baptistetemos um assunto para cuidar. Désolée. Então com licença.

Aqui?

Rápido demais. Obvio demais. Marie-Cécile apertou os olhos.

Por que não aqui?

Por nada — disse ele, abrupto.

Maman. Il est dix-huit heures déjà.

J´arrive — disse ela, ainda olhando desconfiada para Will.

Mais, je ne...

— Va le chercher — disse ela, ríspida. Vá buscar.

Alice ouviu François-Baptiste sair da biblioteca com raiva, depois viu Marie-Cécile passar o braço pela cintura de Will e puxá-lo para perto de si. Suas unhas destacavam-se em um vermelho vivo contra o branco da camiseta dele. Alice quis desviar os olhos, mas não conseguiu.

Tiens — disse Marie-Cécile. — À bientôt.

Você vem agora? — perguntou Will. Alice pôde ouvir o pânico em sua voz quando ele percebeu que teria de deixá-la encurralada.

Tout à l´heure. — Daqui a pouco.

Alice não pôde fazer nada. A não ser escutar o barulho dos passos de Will se afastando.

Os dois homens se cruzaram na porta.

Tome — disse François-Baptiste, entregando para a mãe um exem­plar do mesmo jornal que Will estava lendo mais cedo.

Como eles descobriram a notícia tão rápido?


— Não faço idéia — respondeu ele, contrariado. — Desconfio que te­nha sido o Authié.

Alice ficou rígida. O mesmo Authié?

—Você tem mesmo certeza disso, François-Baptiste? — dizia Marie-Cécile.

Bom, alguém deve ter contado para eles. A polícia mandou mergu­lhadores procurarem no Eure na terça-feira, exatamente no lugar certo. Eles sabiam o que estavam procurando. Pense um pouco. Quem foi que disse que tinha um vazamento de informação em Chartres, para começo de conversa? O Authié. Ele algum dia apresentou alguma prova de que o Tavernier tivesse falado com a jornalista?

Tavernier?

O homem do rio — disse ele, ácido.

Ah, claro. — Marie-Cécile acendeu um cigarro. — A matéria cita a Noublesso Véritable pelo nome.

O próprio Authié pode ter contado para eles.

Contanto que não tenha nada ligando o Tavernier a esta casa, não tem problema — disse ela, soando entediada. — Alguma notícia?

Eu fiz tudo que você me mandou fazer.

E preparou tudo para sábado?

Preparei — admitiu ele —, mas sem o anel ou o livro, não sei por que estamos nos dando ao trabalho.

Um sorriso passou pelos lábios vermelhos de Marie-Cécile.

— Bom, é por isso que ainda precisamos do Authié, entendeu, mesmo que você obviamente não confie nele — disse ela com a voz calma. — Ele diz que, miracle, encontrou o anel.

Por que diabo você não me contou isso antes? — perguntou ele,furioso.

Estou contando agora — retrucou ela. — Ele diz que os homens dele encontraram o anel no quarto de hotel da inglesa em Carcassonne, ontem à noite.

Alice sentiu a pele ficar fria. Isso é impossível.

Você acha que ele está mentindo?

Deixe de ser idiota, François-Baptiste — cortou ela. — É claro que ele está mentindo. Se a Dra. Tanner tivesse pego o anel, o Authié não teria levado quatro dias para encontrar. Além disso, eu mandei revistar o aparta­mento e o escritório dele.

Então...

Ela o interrompeu.

— Se... se... o Authié estiver com o anel, coisa de que eu duvido, então das duas uma: ou ele pegou com a avó do Biau, ou então estava com ele o tempo todo. É possível que ele próprio tenha pego o anel da caverna.


— Mas por quê?

O telefone tocou, intrusivo, alto. O coração de Alice pulou até a boca. François-Baptiste olhou para a mãe.

Atenda — disse ela.Ele fez o que ela mandava.

Oui.

Alice mal se atrevia a respirar por medo de que a descobrissem.

— Oui, je comprends. Attends. — Ele cobriu o fone com a mão. — É a Shelagh O´Donnell. Ela diz que está com o livro.

— Pergunte por que ela não ligou antes.Ele assentiu.

— Onde você está desde segunda-feira? — Ele escutou. — Alguém mais sabe que ele está com você? — Ele escutou. — OK. A vingt-deux heures.Demain soir.

Tornou a pôr o fone no gancho.

Tem certeza de que era ela?

Era a voz dela. Ela sabia o que estava combinado.

Ele deve ter grampeado os telefones.

Como assim? — perguntou ele, inseguro. — Quem?

Quem você acha que pode ser? — disparou ela. — O Authié, claro.

Eu...

Shelagh O´Donnell está desaparecida há dias. Na mesma hora em que eu estou fora de Chartres, ela reaparece! Primeiro o anel, depois o livro.

François-Baptiste finalmente perdeu a paciência.

Mas você acabou de defender o Authié! — gritou ele. — Me acusou de tirar conclusões apressadas. Se você sabe que ele está trabalhando contra nós, então por que não me contou, em vez de me deixar fazer papel de bobo?Mais especificamente, por que você não faz ele parar? Você algum dia se per­guntou por que ele quer tanto esses livros? O que ele vai fazer com eles? Um leilão para quem pagar mais?

Eu sei muito bem, sei exatamente por que ele quer os livros — disse ela com a voz gelada.

Por que você sempre faz isso? Você me humilha o tempo todo!

Esta conversa está encerrada — disse ela. — Vamos viajar amanhã.Assim conseguimos chegar lá a tempo de encontrar a Dra. O´Donnell e de eu me preparar. A cerimônia vai acontecer à meia-noite conforme o combinado.

Você quer que eu me encontre com ela? — perguntou ele, incrédulo.

Bom, é claro — disse ela. Pela primeira vez, Alice ouviu algum tipo de emoção na voz de Marie-Cécile. — Eu quero o livro, François-Baptiste.

E se o anel não estiver com ele?


— Eu não acho que ele se daria a todo este trabalho se não estivesse como anel.

Alice ouviu François-Baptiste atravessar o aposento e abrir a porta.

E ele? — perguntou o rapaz, com um pouco de energia retornando a sua voz. — Você não pode deixar ele aqui para...

Deixe que eu cuido do Will. Ele também não é problema seu.

Will estava escondido no armário do corredor da cozinha.

O armário era apertado e cheirava a casacos de couro, botas velhas e jaquetas enceradas, mas era o único lugar de onde tinha uma visão desimpedi­da das portas da biblioteca e do escritório. Viu François-Baptiste sair primeiro e entrar no escritório, seguido instantes depois por Marie-Cécile. Will esperou até a pesada porta se fechar, então imediatamente emergiu do armário e atra­vessou o hall correndo até a biblioteca.

— Alice — sussurrou. — Rápido. Você tem de sair daqui. — Ouviu-se um leve ruído, e então ela apareceu. — Mil desculpas — disse ele. — Isto tudo é culpa minha. Tudo bem com você?

Ela aquiesceu, embora estivesse pálida como a morte.

Will estendeu a mão para segurar a dela, mas ela se recusou a segui-lo.

— Que história toda é esta, Will? Você mora aqui. Você conhece essas pessoas, e mesmo assim está disposto a jogar tudo para o alto para ajudar uma desconhecida. Não faz sentido.

Ele quis dizer que ela não era uma desconhecida, mas se controlou.

— Eu...

Ele não sabia o que dizer. O aposento pareceu se desintegrar. Tudo que Will via era o rosto em forma de coração de Alice e seus olhos castanhos deci­didos, que pareciam estar olhando bem dentro dele.

— Por que não me contou que você... que você e ela...? Que você mora­va aqui?

Will foi incapaz de encará-la. Alice ficou olhando para ele por mais al­guns instantes, depois cruzou a biblioteca depressa e saiu para o hall, deixando-o sem outra opção a não ser ir atrás dela.

O que você vai fazer agora? — perguntou ele, desesperado.

Bom, eu descobri o que liga a Shelagh a esta casa — disse ela. — Ela trabalha para eles.

Eles? — disse Will, estupefato, abrindo a porta da frente para os dois poderem sair. — Como assim?

Mas ela não está aqui. Madame de l´Oradore e o filho também estão procurando por ela. Pelo que eu ouvi, acho que ela está presa em algum lugar perto de Foix.


Subitamente, Alice se virou em pânico no pé da escada.

— Will, eu deixei minha mochila na biblioteca — disse ela horrorizada.— Atrás do sofá, junto com o livro.

Mais do que tudo, Will queria beijá-la. A hora não poderia ser pior, eles estavam no meio de uma situação que ele não entendia, Alice sequer confiava nele de verdade. Mesmo assim, parecia a coisa certa.

Sem pensar, Will se adiantou para tocar a lateral do rosto dela. Tinha a sensação de saber exatamente que a textura da pele dela seria lisa e fresca, como se aquele fosse um gesto que já tivesse feito milhares de vezes. Então a lem­brança da maneira como ela havia se afastado dele no café o deteve e ele parou, com a mão a um milímetro do rosto dela.

Desculpe — ele começou a dizer, como se Alice fosse capaz de ler seu pensamento. Ela o olhava fixamente, e então um sorriso passageiro cruzou seu rosto contraído e ansioso.

Eu não quis ofender você — gaguejou ele. — E que...

Não tem problema — disse ela, mas sua voz era suave.

Will deu um suspiro de alívio. Sabia que ela estava errada. Aquilo para ele era mais importante do que qualquer outra coisa no mundo, mas pelo menos ela não estava brava com ele.

Will — disse ela, dessa vez um pouco mais incisiva. — E a minha mochila? Está tudo lá dentro. Todas as minhas anotações.

Sim, claro — disse ele imediatamente. — Desculpe. Vou pegar. Eu levo para você. — Ele tentou recuperar a concentração. — Onde você está hospedada?

No Hotel Petit Monarque. Na Place des Épars.

Está certo — disse ele, tornando a subir os degraus correndo. — Me dê meia hora.

Will ficou olhando para ela até não conseguir mais vê-la, então tornou a en­trar. Uma réstia de luz era visível por baixo da porta do escritório.

De repente, a porta do escritório se abriu. Will tornou a se esconder entre a porta e a parede. François-Baptiste saiu e foi em direção à cozinha. Will ouviu a porta de comunicação abrir e fechar, depois mais nada.

Will aproximou o rosto da fenda para poder ver Marie-Cécile. Ela estava sentada em frente à escrivaninha olhando para alguma coisa, alguma coisa que cintilava e refletia a luz quando ela se mexia.

Will se esqueceu do que deveria estar fazendo enquanto observava Marie-Cécile se levantar e retirar um dos quadros pendurados na parede atrás de si. Era sua obra de arte preferida. Um dia, no começo, ela havia contado a ele tudo sobre o quadro. Era uma tela dourada com manchas de cores vivas representando soldados franceses olhando para os pilares e palácios oblíquos do Egito Antigo. "Olhando para as areias do tempo — 1798", lembrou-se ele. Era isso.

Atrás de onde o quadro estava pendurado havia uma pequena porta pre­ta de metal recortada na parede, com um teclado eletrônico ao lado. Ela digitou seis números. Ouviu-se um estalo nítido e a porta se abriu. Ela retirou dois pacotes pretos de dentro do cofre e colocou-os sobre a mesa com cuidado. Will mudou de posição, desesperado para ver o que havia lá dentro.

Estava tão entretido que não ouviu os passos chegando por trás dele.

Não se mexa.

François-Baptiste, eu...

Will sentiu o cano frio de uma arma apertado contra seu flanco.

— E ponha as mãos onde eu possa ver.

Tentou se virar, mas François-Baptiste agarrou seu pescoço e bateu com seu rosto na parede.

— Qu´est-ce qui se passe? — perguntou Marie-Cécile do escritório.François-Baptiste tornou a empurrar o rosto de Will.

—Je m´en occupe— disse ele. Está tudo sob controle.

Alice tornou a olhar para o relógio.

Ele não vem.

Estava em pé no saguão do hotel, olhando para as portas envidraçadas como se pudesse fazer Will se materializar do nada. Quase uma hora havia passado desde que saíra da rue du Cheval Blanc. Não sabia o que fazer. Sua carteira, seu telefone e as chaves do carro estavam no bolso da jaqueta. Todo o resto estava na mochila.

Não tem. importância. Saia daqui.

Quanto mais ela esperava, mais começava a duvidar dos motivos de Will. O fato de ele ter surgido de lugar nenhum. Alice repassou na mente a seqüên­cia dos acontecimentos.

Será que tinha sido só uma coincidência eles terem esbarrado um no outro daquele jeito? Ela não dissera a ninguém onde estava indo.

Como ele podia saber?

Às oito e meia, Alice decidiu que não podia mais esperar. Explicou que no final das contas não iria precisar do quarto, escreveu um bilhete apressado para Will caso ele aparecesse, deixando seu telefone, e foi embora.

Atirou a jaqueta sobre o banco do carona do carro e percebeu o canto do envelope aparecendo de dentro do bolso. A carta que haviam lhe entregado no hotel, de que ela se esquecera inteiramente. Alice a pegou e pôs sobre o painel do carro, para ler quando parasse para descansar.


A noite caiu enquanto ela rumava para o sul. Os faróis dos carros que vinham na pista oposta brilhavam em seus olhos, ofuscando-lhe a visão. Árvo­res e arbustos passavam como fantasmas pela escuridão. Orléans, Poitiers, Bordeaux: as placas passavam em um clarão.

Isolada em seu próprio mundo, hora após hora, Alice fazia as mesmas perguntas a si própria. A cada vez, encontrava uma resposta diferente.

Por quê? Para obter informação. Ela com certeza lhes dera informação, não havia dúvida. Todas as suas anotações, desenhos, a fotografia de Grace e Baillard.

Ele prometeu mostrar a você a câmara do labirinto.

Ela não tinha visto nada. Só uma imagem em um livro. Alice sacudiu a cabeça. Não queria acreditar naquilo.

Por que ele a havia ajudado a escapar? Porque havia conseguido o que queria; ou melhor, o que madame de l´Oradore queria.

Para eles poderem seguir você.


 

                                   Carcassona

                                   Agost 1209

Os franceses atacaram Sant-Vicens na madrugada da segunda-feira, 3 de agosto.

Alaïs subiu aos tropeços a escada da Tour du Major ao encontro do pai, para olhar de cima das ameias. Procurou Guilhem na multidão, mas não con­seguiu achá-lo.

Agora, por cima do barulho das espadas e do grito de batalha dos solda­dos que atacavam os muros baixos de defesa, ela mal podia distinguir o som de um cântico flutuando pela planície, vindo da colina de Gravèta.

Veni creator spiritus Mentes tuorum visita!

— Os padres — disse Alaïs, chocada. — Estão cantando para Deus enquanto vêm nos matar.

O subúrbio começou a arder. Enquanto a fumaça subia pelo céu em espiral por trás dos muros baixos, pessoas e animais corriam em pânico em todas as direções.

Ganchos eram atirados por cima do parapeito mais depressa do que os defensores conseguiam cortá-los. Dúzias de escadas eram jogadas em direção às muralhas. A guarnição as derrubava com chutes, ou punha fogo nelas, mas algumas ficavam no lugar. Soldados de infantaria franceses surgiam como for­migas. Quanto mais eram repelidos, mais numerosos pareciam ser.

No pé das fortificações, dos dois lados, os feridos e mortos estavam amon­toados uns por cima dos outros, como pilhas de lenha. A cada hora que passa­va, seu número aumentava.

 


Os cruzados trouxeram uma catapulta e começaram o bombardeio às fortificações. Os impactos faziam Sant-Vicens tremer até as bases, incansáveis, implacáveis na chuva de flechas e mísseis lançados de cima.

Os muros começaram a ruir.

— Eles passaram! — gritou Alaïs. — Romperam as defesas!

O visconde Trencavel e seus homens estavam prontos para eles. Bran­dindo espadas e machados, atacaram os sitiantes em grupos de dois ou três. Os imensos cascos dos cavalos de guerra pisoteavam tudo pela frente, suas pesadas ferraduras de aço espatifando crânios como cascas de nozes e transformando membros em uma massa disforme de pele, sangue e ossos. Rua após rua, o combate foi se espalhando pelo subúrbio, aproximando-se cada vez mais das muralhas da Cité em si. Alaïs podia ver uma multidão de habitantes aterrori­zados inundando a Cité pela Porte de Rodez para fugir da violência da bata­lha. Velhos, doentes, mulheres e crianças. Todos os homens em condição de combater estavam armados, lutando ao lado dos soldados da guarnição. A maioria era abatida no mesmo lugar onde estava; seus porretes não eram páreo para as espadas dos cruzados.

Os defensores lutaram com bravura, mas estavam em desvantagem nu­mérica de dez contra um. Como uma maré que enche castigando a praia, os cruzados invadiram tudo, rompendo as fortificações e demolindo blocos in­teiros das muralhas.

Trencavel e seus chevaliers tentaram desesperadamente não perder o con­trole do rio, mas foi impossível. Ele deu o sinal para a retirada.

Com as triunfantes cornetas francesas a ecoar em seus ouvidos, os pesa­dos portões da Porte de Rodez foram abertos para que os sobreviventes voltas­sem para dentro da Cité. Enquanto o visconde Trencavel conduzia seu grupo derrotado de soldados de volta ao Château Comtal, em fila indiana pelas ruas, Alaïs olhava horrorizada para a cena de devastação e destruição lá embaixo. Já vira a morte muitas vezes, mas não naquela escala. Sentia-se maculada pela realidade da guerra, por seu desperdício sem sentido.

Sentia-se também enganada. Agora percebia como as chansons à geste que tanto amara na infância haviam mentido. Não havia nobreza na guerra. Só sofrimento.

Alaïs desceu das ameias para o pátio e juntou-se às outras mulheres que espe­ravam no portão, rezando para Guilhem estar entre os sobreviventes.

Volte são e salvo.

Por fim, ouviu o barulho de cascos sobre a ponte. Alaïs viu o marido imediatamente e ficou mais animada. O rosto e a armadura de Guilhem estavam manchados de sangue e cinzas, e seus olhos refletiam a ferocidade da bata­lha, mas ele estava ileso.

— Seu marido lutou com bravura, dama Alaïs — disse o viscondeTrencavel ao vê-la de pé ali. — Abateu muitos homens e salvou a vida de muitos outros. Somos gratos tanto por sua perícia quanto por sua coragem. — Alaïs enrubesceu. — Diga-me, onde está seu pai?

Ela apontou para o canto nordeste do pátio.

— Nós vimos a batalha do ambans, messire.

Guilhem havia desmontado e entregado as rédeas a seu écuyer. Alaïs se aproximou dele, tímida, sem saber como seria recebida.

Messire?

Ele segurou sua mão branca e pálida e a levou aos lábios. —Thierry foi atingido — disse ele com a voz oca. — Eles o estão trazendo agora. Ele está muito ferido.

Messire, eu sinto muito.

Éramos como irmãos — continuou ele. — Alzeu também. Mal tínha­mos um mês de diferença de idade. Sempre protegemos um ao outro, trabalha­mos para pagar nossas cotas de malha e nossas espadas. Fomos feitos cavaleiros na mesma Quaresma.

Eu sei — disse ela com delicadeza, puxando a cabeça dele para perto da sua. — Venha, deixe-me ajudá-lo, depois farei o que puder por Thierry.

Ela viu os olhos dele marejados de lágrimas. Apressou-se, sabendo que ele não iria querer que ela o visse chorar.

— Venha, Guilhem — disse baixinho. — Leve-me até ele.

Thierry fora carregado para o Grande Salão junto com todos os outros casos graves. As fileiras de moribundos e feridos tinham até três homens de pro­fundidade. Alaïs e as outras mulheres faziam o possível. Com os cabelos arrumados em uma trança por cima do ombro, ela não parecia mais do que uma criança.

Conforme as horas passavam, o ar dentro do aposento confinado ia fi­cando mais pútrido e as moscas, mais persistentes. Durante a maior parte do tempo, Alaïs e as outras mulheres trabalhavam em silêncio e com determina­ção constante, sabendo que haveria pouca trégua antes de o ataque recomeçar. Padres caminhavam entre as filas de soldados agonizantes e feridos, ouvindo confissões, conferindo os últimos sacramentos. Por baixo do disfarce de suas túnicas escuras, dois parfaits administravam o consolament a seus fiéis cátaros.

Os ferimentos de Thierry eram sérios. Ele havia sido atingido várias ve­zes. Seu tornozelo estava quebrado, e uma lança havia perfurado sua coxa, espatifando o osso dentro da perna. Alaïs sabia que ele havia perdido sangue demais; por Guilhem, porém, fez tudo que podia. Aqueceu uma de cocção de raiz e folhas de erva do cardeal em cera quente, que em seguida aplicou em compressa depois de frio.

Depois de deixar Guilhem fazendo companhia ao amigo, Alaïs voltou sua atenção para os que tinham as melhores chances de sobreviver. Dissolveu pó de raiz de angélica em água de cardo e, com a ajuda dos meninos da cozinha, que carregavam o líquido em tinas, deu colheradas do remédio na boca de quem conseguisse engolir. Se fosse capaz de evitar infecções e fazer com que o sangue deles continuasse puro, então seus ferimentos teriam chance de cicatrizar.

Alaïs voltava a Thierry sempre que podia para refazer os curativos, mes­mo estando claro que não havia esperança. Ele já havia perdido a consciência, e sua pele adquirira o tom azul esbranquiçado da morte. Ela pôs a mão sobre o ombro de Guilhem.

— Eu sinto muito — sussurrou. — Não vai demorar muito agora.Guilhem apenas assentiu.

Alaïs foi até os fundos do salão. Quando ela passou, um jovem chevalier, pouco mais velho do que ela, chamou-a com um grito. Ela parou e se ajoelhou ao lado dele. Seu rosto de criança estava contorcido pela dor e pela confusão, seus lábios estavam rachados, e seus olhos, outrora castanhos, estavam ator­mentados de medo.

— Shh — murmurou ela. — Você não tem ninguém?

Ele tentou sacudir a cabeça, fazendo que não. Alaïs afagou sua testa com a mão e levantou o lençol que cobria seu braço da espada. Deixou-o cair no mesmo instante. O ombro do menino estava esmagado. Fragmentos de osso branco emergiam da pele rasgada, como destroços na maré vazante. Havia um rombo aberto em seu flanco. O sangue escorria da ferida sem parar, criando «ma poça onde o menino estava deitado.

A mão direita do chevalier estava congelada no cabo da espada. Alaïs sentou retirar a arma, mas os dedos rígidos não queriam soltar. Ela rasgou um pedaço de pano da saia e estancou a ferida profunda. De um frasco que trazia na bolsa, pingou duas medidas de tintura de valeriana sobre os lábios dele, para aliviar a dor de seus instantes finais. Não havia nada mais a fazer.

A morte não foi gentil. Demorou a chegar. Aos poucos, o chiado no leito dele foi ficando mais alto, e sua respiração mais difícil. À medida que seus olhos se obscureciam, seu terror aumentava, e ele começou a gritar. Alaïs ficou ali, cantando para ele e acariciando sua testa, até a alma do menino abandonar seu corpo.

— Que Deus leve a sua alma — sussurrou ela, fechando os olhos dele.Cobriu-lhe o rosto, depois passou ao seguinte.


Alaïs trabalhou o dia inteiro, administrando ungüentos e fazendo curati­vos, até seus olhos doerem e suas mãos estarem manchadas de sangue. Ao final do dia, feixes de luz vespertina entravam pelas altas janelas do Grande Salão. Os mortos haviam sido levados embora. Os vivos estavam tão confortáveis quanto seus ferimentos permitiam.

Ela estava exausta, mas lembranças da noite anterior, quando se deitara outra vez nos braços de Guilhem, a revigoravam. Seus ossos doíam e suas costas estavam rígidas de tanto se inclinar e se agachar, mas aquilo não parecia mais ter importância.

Aproveitando o frenesi de atividade no resto do Château Comtal, Oriane esgueirou-se até seu quarto para esperar por seu informante.

Já não era sem tempo — disparou. — Diga-me o que descobriu.

O judeu morreu antes de descobrirmos muita coisa, embora meu senhor acredite que ele já tenha entregado o livro que estava com ele para seu pai guardar.

Oriane deu um meio-sorriso, mas não disse nada. Não havia contado a ninguém o que descobrira costurado dentro da bainha da capa de Alaïs.

— E Esclarmonde de Servian?

— Ela foi corajosa, mas no fim disse a ele onde o livro podia ser encontrado.

Os olhos verdes de Oriane brilharam.

E está com você?

Ainda não.

Mas está aqui na Ciutat? O senhor Evreux sabe disso?

— Ele confia na senhora, dama, para lhe fornecer essa informação.Oriane pensou por um instante.

— A velha morreu? O menino também? Ela não pode interferir nos nossos planos? Não podemos deixar que ela avise meu pai.

Ele deu um sorriso contraído.

— A mulher está morta. O fedelho fugiu, embora eu duvide que ele possa fazer qualquer estrago. Assim que o encontrar, eu o mato.

Oriane assentiu.

E você falou ao senhor Evreux sobre o meu... interesse.

Falei, dama. Ele ficou honrado pelo fato de a senhora ter se oferecido para lhe servir dessa forma.

E as minhas condições? Ele vai conseguir uma saída segura da Ciutat

 

Sim, contanto que a senhora lhe entregue os livros, dama.Ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro.

Bom, isso tudo é muito bom. E você pode cuidar do meu marido?


Se a senhora me disser quando e onde ele vai estar na hora determina­da, dama, será coisa fácil. — Ele fez uma pausa. — Vai ser mais caro do que antes, porém. Os riscos são consideravelmente maiores, mesmo nestes tempos de guerra. O escrivan do visconde Trencavel. Ele é um homem de posição.

Eu tenho consciência disso — disparou ela com a voz fria. — Quanto?

Três vezes o que foi pago por Raoul — retrucou ele.

Isso é impossível! — exclamou ela imediatamente. — Não tenho como conseguir essa quantidade de ouro.

Mas é esse o meu preço, dama.

E o livro?

Dessa vez ele sorriu de verdade.

— Isso é assunto para uma negociação à parte, dama.


 

O bombardeio recomeçou e continuou noite adentro, um despejar constante de mísseis, pedregulhos e pedras, que erguia nuvens de poeira no ar sempre que atingia o alvo.

De sua janela, Alaïs podia ver que as casas das planícies haviam sido reduzidas a ruínas fumegantes. Uma nuvem maligna pairava sobre as copas das árvores como uma bruma negra, como se estivesse presa entre os galhos. Alguns dos habitantes haviam conseguido percorrer o terreno aberto e chegar aos destroços de Sant-Vicens, e de lá haviam buscado abrigo na Cité. Mas a maioria fora abatida enquanto fugia.

Na capela, velas queimavam no altar.

Na madrugada da terça-feira, 4 de agosto, o visconde Trencavel e Bertrand Pelletier subiram mais uma vez às ameias.

O acampamento francês estava envolto na bruma que cobria o rio na aurora. Barracas, estábulos, animais, pavilhões, toda uma cidade parecia ter criado raízes ali. Pelletier ergueu os olhos. Seria mais um dia de forte calor. A perda do rio assim no início do cerco era um golpe devastador. Sem água, eles não poderiam resistir por muito tempo. A sede os derrotaria, mesmo que os franceses não o fizessem.

Na véspera, Alaïs lhe contara que corriam boatos sobre o primeiro caso de mal do cerco relatado no quartier próximo à Porte de Rodez, que havia acolhi­do a maior parte dos refugiados de Sant-Vicens. Ele fora ver com seus próprios olhos e, embora o cônsul do quartier negasse, temia que Alaïs estivesse certa.

Você está pensativo, meu amigo.Bertrand se virou para ele.

Perdoe-me, messire.

Trencavel fez um gesto, dispensando o pedido de desculpas.

— Olhe para eles, Bertrand! São numerosos demais para que possamos derrotá-los... e sem água.


— Dizem que Pedro II de Aragão está a apenas um dia de viagem daqui— falou Pelletier. — O senhor é vassalo dele, messire. Ele deve vir em seu socorro.

Pelletier sabia que seria um pedido difícil — Pedro era católico fervoro­so, além de cunhado de Raymond VI, conde de Toulouse, embora os dois homens não se dessem bem. Mesmo assim, o laço histórico entre a casa de Trencavel e a casa de Aragão era forte.

— As ambições diplomáticas do rei estão intimamente ligadas ao desti­no de Carcassona, messire. Ele não deseja ver o Pays d´Oc controlado pelos franceses. — Pelletier fez uma pausa. — Pierre-Roger de Cabaret e seus alia­dos são a favor desse plano de ação.

Trencavel pousou as mãos na muralha à sua frente.

Foi o que disseram, sim.

Então vai mandar o aviso?

Pedro atendeu ao chamado e chegou no final da tarde da quarta-feira, 5 de agosto.

— Abram os portões! Abram os portões para lo Rei!

Os portões do Château Comtal foram escancarados. Alaïs foi atraída para sua janela pelo barulho e desceu correndo para ver o que estava aconte­cendo. No início, tinha apenas a intenção de saber notícias. Mas, quando ergueu os olhos para o Grande Salão, sua curiosidade com o que estava ocor­rendo lá dentro a venceu. Era muito comum escutar notícias de terceira ou quarta mão.

Havia uma pequena alcova atrás das cortinas que separavam o Grande Salão da entrada dos aposentos particulares do visconde Trencavel. Alaïs não tentava entrar naquele espaço desde que era menina, e ficava escondida vendo o pai trabalhar. Não tinha sequer certeza se seria capaz de se enfiar no pequeno vão.

Alaïs subiu no banco de pedra e estendeu a mão para a janela mais baixa da Tour Pinte, que dava para a Cour du Midi. Içou o corpo para cima, passou pelo parapeito de pedra e enfiou-se no estreito vão.

Estava com sorte. O salão estava vazio. Alaïs pulou para o chão, toman­do cuidado para fazer o mínimo de barulho possível, depois abriu a porta devagar e esgueirou-se para o espaço atrás da cortina. Avançou até ficar o mais perto que se atrevia do vão. Estava tão perto de onde o visconde Trencavel se encontrava em pé, com as mãos unidas atrás das costas, que poderia ter esten­dido a mão e tocado nele.

Chegou bem a tempo. Na outra ponta do Grande Salão, as portas foram abertas de par em par. Ela viu seu pai entrar a passos largos, seguido do rei de Aragão e de vários dos aliados de Carcassonne, incluindo os seigneurs de Lavaur e Cabaret.

O visconde Trencavel caiu de joelhos diante de seu senhor lígio.

— Não há necessidade disso — disse Pedro, fazendo sinal para ele se levantar.

Fisicamente, os dois homens eram muito diferentes. O rei era muitos anos mais velho do que Trencavel, regulando em idade com o pai de Alaïs. Alto e largo, forte como um touro, trazia no rosto as marcas de muitas campanhas militares. Suas feições eram pesadas, sérias, e o bigode grosso e preto em contras­te com a pele clara aumentava ainda mais sua sisudez. Os cabelos, embora ainda pretos, estavam ficando grisalhos nas têmporas, como os de seu pai.

Peça para que seus homens se retirem — disse ele, conciso. — Quero falar a sós com você, Trencavel.

Com sua licença, senhor rei, gostaria de pedir permissão para meu intendente ficar. Valorizo a opinião dele.

O rei hesitou, e em seguida assentiu.

— Não há palavras para expressar adequadamente nossa gratidão...Pedro o interrompeu.

Eu não vim para apoiar você, mas sim para ajudá-lo a ver o erro em sua atitude. Foi você mesmo quem se colocou nesta situação por causa de sua recusa obstinada em lidar com os hereges em seus domínios. Você teve quatro anos... quatro anos... para cuidar desse assunto, mas mesmo assim não fez nada. Permite que bispos cátaros preguem livremente em suas vilas e cidades.Seus vassalos apóiam abertamente os bons homens...

Nenhum vassalo...

Você nega que ataques a homens santos e padres tenham ficado sem punição? Nega a humilhação dos homens de Igreja? Nas suas terras, os hereges celebram livremente. Seus aliados os protegem. Todos sabem que o conde de Foix insulta as Sagradas Relíquias negando-se a se curvar diante delas, e a irmã dele se afastou da fé a ponto de prestar votos como parfaite, cerimônia à qual o conde achou por bem assistir.

Não posso responder pelo conde de Foix.

Ele é seu vassalo e seu aliado — devolveu-lhe Pedro. — Por que você permite que essa situação continue?

Alaïs sentiu o visconde tomar fôlego.

— O senhor já respondeu à própria pergunta. Vivemos lado a lado com aqueles que o senhor chama de hereges. Crescemos juntos, nossos parentes mais próximos estão entre eles. Os parfaits levaram vidas boas e honestas mi­nistrando a um rebanho cada vez mais numeroso. Eu não poderia expulsá-los,da mesma forma que não poderia impedir o sol de nascer a cada dia!


As palavras dele não comoveram Pedro.

Sua única esperança é reconciliar-se com a Santa Madre Igreja. Você tem a mesma posição de qualquer um dos barões do norte que o abade traz consigo, e eles o tratarão como tal se você se mostrar disposto a se redimir.Mas se, nem que seja por um só instante, você lhe der motivos para acreditar que também arvora esses pensamentos hereges, mesmo que só no coração, e não nas ações, ele irá esmagá-lo. — O rei deu um suspiro. — Você acredita mesmo que pode resistir, Trencavel? Sua desvantagem numérica é de cem contra um.

Temos bastante comida.

Comida, sim, mas água não. Vocês perderam o rio.

Alaïs viu o pai lançar um olhar para o visconde, obviamente temendo que ele perdesse a paciência.

— Não desejo desafiá-lo nem me alienar de sua boa vontade, mas será que o senhor não vê que eles vieram lutar por nossa terra, não por nossas almas?Esta guerra não está sendo travada em nome da glória de Deus, mas sim em nome da ganância dos homens. Este é um exército de ocupação, senhor. Se eu falhei para com a Igreja, e por isso o ofendi, peço-lhe perdão. Mas não devo lealdade ao conde de Nevers nem ao abade de Cîteaux. Eles não têm nenhum direito, espiritual ou temporal, sobre as minhas terras. Não vou entregar o meu povo aos chacais franceses por uma causa tão reles.

Alaïs sentiu uma onda de orgulho. Pela expressão no rosto de seu pai, viu que ele sentia o mesmo. Pela primeira vez, um pouco da coragem e da energia de Trencavel pareceu afetar o rei.

— São palavras nobres, visconde, mas elas não vão ajudá-lo agora. Pelo bem do seu povo, a quem você ama, deixe-me ao menos dizer ao abade de Cîteaux que você deseja ouvir as condições dele.

Trencavel caminhou até a janela e falou por entre os dentes.

Não temos água suficiente para todas as pessoas que estão na Ciutat?Seu pai sacudiu a cabeça.

Não.

Somente suas mãos, brancas contra o parapeito de pedra da janela, traíam o quanto lhe custava pronunciar aquelas palavras.

— Muito bem. Ouvirei o que o abade tem a dizer.

Durante algum tempo depois que Pedro se foi, Trencavel não disse nada. Ficou onde estava, vendo o sol despencar do céu. Por fim, quando as velas foram acesas, ele se sentou. Pelletier ordenou que trouxessem comida e bebida das cozinhas.


Com medo de ser descoberta, Alaïs não ousava se mexer. Sentia cãibras nos braços e nas pernas. As paredes pareciam se juntar, apertando-a, mas não havia nada que ela pudesse fazer.

Do outro lado das cortinas, podia ver os pés de seu pai enquanto ele andava de um lado para o outro, e ouvia de vez em quando os murmúrios baixos das conversas.

Já era tarde quando Pedro II voltou. Pela expressão em seu rosto, Alaïs soube imediatamente que a missão havia fracassado. Sentiu-se desanimada. Aquela era a última chance de tirar a Trilogia da cidade antes que o cerco começasse para valer.

O senhor traz notícias? — perguntou Trencavel, levantando-se para recebê-lo.

Nenhuma que me dê prazer transmitir, visconde — respondeu Pedro.— Fico ofendido até mesmo de repetir as palavras insultuosas dele. — Ele aceitou uma caneca de vinho e a sorveu de um gole só. — O abade de Cîteaux permitirá que você e 12 homens de sua escolha deixem o Château esta noite,sem serem molestados, levando tudo que conseguirem carregar.

Alaïs viu os punhos do visconde se cerrarem.

E Carcassona?

A Ciutat com tudo dentro, todas as outras pessoas serão entregues à Hoste. Depois do que aconteceu em Besièrs, os barões irão querer alguma recompensa.

Por alguns instantes depois de ele falar, tudo ficou era silêncio. Então Trencavel finalmente cedeu à raiva e arremessou a caneca contra a parede.

Como ele se atreve a oferecer tamanho insulto! — rugiu ele. — Como ousa ofender nossa honra, nosso orgulho! Não vou abandonar um único súdi­to meu a esses chacais franceses.

Messire — murmurou Pelletier.

Trencavel pôs-se de pé, mãos nos quadris, ofegante, esperando a raiva passar.

Então tornou a se virar para o rei.

— Senhor, fico grato por sua intercessão e pelos esforços que fez por nós.Porém, se não quiser, ou não puder, lutar conosco, então devemos nos separar.O senhor precisa ir embora.

Pedro aquiesceu, sabendo que não havia mais nada a dizer.

Fique com Deus, Trencavel — disse ele, infeliz.Trencavel o encarou.

Acredito que estou — disse, desafiador.


Enquanto Pelletier escoltava o rei para fora do salão, Alaïs aproveitou a oportunidade para sair de onde estava.

A festa da Transfiguração da Virgem passou sem alarde, e houve pouco avanço em qualquer um dos lados. Trencavel continuou a fazer chover flechas e mís­seis sobre os cruzados, enquanto os baques incessantes da catapulta faziam pedregulhos e pedras explodirem contra as muralhas. Homens caíram de am­bos os lados, mas pouco terreno foi conquistado ou perdido.

As planícies mais pareciam um abatedouro. Corpos apodreciam onde haviam sido abatidos, inchados pelo calor e infestados por uma nuvem de moscas pretas. Milhafres e gaviões, voando em círculos acima do campo de batalha, devoravam o que restava de carne sobre os ossos.

Na sexta-feira, sete de agosto, os cruzados lançaram um ataque contra o subúrbio meridional de Sant-Miquel. Durante algum tempo, conseguiram ocupar o fosso junto às muralhas, mas foram repelidos por uma chuva de flechas e pedras. Depois de várias horas de empate, os franceses se retiraram sob um ataque constante, debaixo de vivas e salves dos carcassonenses.

Ao amanhecer do dia seguinte, enquanto o mundo cintilava prateado sob a luz da aurora e uma delicada névoa flutuava mansamente sobre as encostas onde mais de mil cruzados estavam postados diante de Sant-Miquel, o ataque recomeçou.

Capacetes e escudos, espadas, lanças e olhos brilhavam ao sol pálido. Cada homem trazia presa ao peito uma cruz, que se destacava branca sobre as cores de Nevers, da Borgonha, de Chartres e da Champagne.

O visconde Trencavel havia se posicionado sobre os muros de Sant-Miquel, ombro a ombro com seus homens, pronto para repelir o ataque.

Os arqueiros e dardasiers estavam a postos, arcos esticados. Lá embaixo, soldados de infantaria armados com machados, espadas e lanças. Atrás deles, a salvo dentro da Cité até o momento de serem chamados, estavam os chevaliers.

Ao longe, os tambores franceses começaram a soar. Os atacantes batiam com as lanças sobre a terra dura, um som constante e pesado, que ecoava sobre a terra tensa.

Então assim começa.

Alaïs estava no muro ao lado do pai, com a atenção dividida: ao mesmo tempo procurava o marido e olhava os cruzados descerem as encostas.

Quando a Hoste chegou ao alcance das armas, o visconde Trencavel levantou o braço e deu a ordem. Uma tempestade de flechas escureceu o céu no mesmo instante.


Dos dois lados, homens começaram a cair. A primeira escada já estava sobre o muro. A flecha de uma balista zuniu pelo ar e enterrou-se na madeira dura, pesada, derrubando-a. A escada pendeu para o lado, depois se desequili­brou. Começou caindo devagar, depois cada vez mais rápido, atirando os ho­mens no chão em uma confusão de sangue, ossos e madeira.

Os cruzados conseguiram aproximar uma gata, uma máquina de cerco, das muralhas do subúrbio. Abrigados por ela, encharcados de água, os sapadores começaram a retirar pedras das muralhas e cavar um buraco para enfraquecer as fortificações.

Trencavel gritou para os arqueiros, mandando-os destruir a estrutura. Outra tempestade de mísseis e flechas em chamas projetou-se pelos ares sobre a estrutura de madeira. O céu se tingiu de piche e fumaça preta até finalmente a gata pegar fogo, fazendo os homens saírem correndo de seu abrigo em chamas, com as roupas pegando fogo, apenas para serem abatidos pelas flechas.

Era tarde demais. Nada restou aos defensores senão olhar enquanto a mina que os cruzados vinham preparando por muitos dias era detonada. Alaïs levantou as mãos para proteger o rosto enquanto a explosão lançava pelos ares uma violenta chuva de pedra, poeira e chamas.

Os cruzados atacaram pela brecha. O rugido do fogo abafava até os gri­tos das mulheres e crianças que tentavam escapar daquele inferno.

O pesado portão entre a Cité e Sant-Miquel foi aberto, e os chevaliers de Carcassonne iniciaram seu primeiro ataque. Faça com que ele não se machuque, Alaïs se viu murmurando para si mesma, como se palavras pudessem deter flechas.

Então os cruzados começaram a catapultar por cima das muralhas as cabeças decapitadas dos mortos, para causar pânico e medo. Os gritos e la­mentos foram ficando mais altos à medida que o visconde Trencavel conduzia seus homens para o meio da batalha. Ele foi um dos primeiros a atingir um inimigo, passando a espada com um só golpe pelo pescoço de um cruzado e empurrando o corpo para longe da lâmina com um chute.

Guilhem não vinha muito atrás dele no ataque, conduzindo seu cavalo de batalha pelo meio da multidão de cruzados, pisoteando todos na sua frente.

De relance, Alaïs viu Alzeu de Preixan ao lado do marido. Ficou olhando horrorizada enquanto o cavalo de Alzeu tropeçava e caía. Imediatamente, Guilhem fez seu cavalo dar meia-volta e foi ajudar o amigo. Aterrorizado pelo cheiro de sangue e pelo ruído do aço batendo, o potente cavalo de batalha de Guilhem ergueu-se sobre as patas traseiras, esmagando um cruzado sob os cascos e dando a Alzeu tempo bastante para se levantar aos tropeços e sair da zona de perigo.


Sua desvantagem numérica era enorme. Hordas de homens, mulheres e crianças que fugiam aterrorizados e feridos em direção à Cité os atrapalhavam. A Hoste avançava, implacável. Uma após a outra, as ruas iam sendo controla­das pelos franceses.

Por fim, Alaïs ouviu o grito.

— Repli! Repli! — Recuem.

Sob o abrigo da noite, um punhado de defensores voltou a entrar no subúrbio devastado. Mataram os poucos cruzados que estavam de guarda e puseram fogo nas casas que ainda estavam de pé, impedindo assim, pelo me­nos, que os franceses tivessem um abrigo de onde recomeçar seu bombardeio à Cité.

Mas a verdade era dura.

Sant-Vicens e Sant-Miquel haviam caído. Carcassonne estava sozinha.


 

Atendendo aos desejos do visconde Trencavel, mesas haviam sido postas no Grande Salão. O visconde e dama Agnès andavam entre elas, agradecendo aos homens pelos serviços que haviam prestado e que ainda prestariam.

Pelletier sentia-se cada vez pior. O aposento estava tomado pelo cheiro de cera queimada, suor, comida fria e cerveja quente. Ele não sabia se poderia agüentar muito mais. As dores em seu estômago estavam ficando mais inten­sas e mais freqüentes.

Tentou endireitar o corpo, mas, sem avisar, as pernas cederam sob seu peso. Agarrando-se à mesa para não cair, Pelletier tombou para frente, fazen­do voar travessas, canecas e ossos de carne. Tinha a sensação de que um animal selvagem lhe devorava as entranhas.

O visconde Trencavel deu meia-volta. Alguém começou a gritar. Ele teve consciência dos criados que corriam para ajudá-lo e de alguém que cha­mava Alaïs.

Sentiu mãos a erguê-lo e levá-lo em direção à porta. O rosto de François entrou em foco, depois tornou a se embaçar. Ele pensou estar ouvindo Alaïs ditar ordens, embora a voz dela viesse de muito longe, e ela parecesse estar falando uma língua que ele não compreendia.

Alaïs! — gritou, tentando achar a mão dela na escuridão.

Estou aqui. Vamos levar o senhor para o quarto.

Ele sentiu braços fortes o levantarem, e o ar da noite em seu rosto, en­quanto era carregado pela Cour d´Honneur, depois escada acima.

Prosseguiram devagar. Os espasmos em seu estômago pioravam, cada qual mais violento do que o anterior. Ele podia sentir a pestilência tomando conta de si, envenenando seu sangue e seu hálito.

— Alaïs — sussurrou, dessa vez com medo.

Assim que chegaram ao quarto de dormir do pai, Alaïs mandou Rixende en­contrar François e buscar em seu próprio quarto os remédios de que precisava. Despachou outros dois criados para as cozinhas para buscar a preciosa água.


Fez com que deitassem seu pai na cama. Despiu-o das roupas externas manchadas e as pôs em uma pilha para serem queimadas. A pestilência parecia brotar dos poros da pele dele. Os ataques de diarréia estavam ficando mais freqüentes e mais severos, agora formados praticamente só por sangue e pus. Alaïs mandou queimar ervas e flores para tentar disfarçar o cheiro, mas nenhu­ma quantidade de lavanda ou alecrim era capaz de esconder a verdade sobre o estado de seu pai.

Rixende chegou logo com os ingredientes e ajudou Alaïs a misturar os mirtilos vermelhos secos com água quente para fazer uma pasta líquida. De­pois de despi-lo do resto das roupas sujas e de cobri-lo com um fino lençol limpo, Alaïs ministrou-lhe o líquido por entre os lábios pálidos.

Ele engoliu a primeira colherada, e imediatamente a vomitou. Ela ten­tou de novo. Dessa vez ele conseguiu engolir, embora com muito esforço, o corpo percorrido por espasmos.

O tempo perdeu o significado, movendo-se nem depressa nem devagar, enquanto Alaïs tentava deter o avanço da doença. A meia-noite, o visconde Trencavel foi até o quarto.

Quais são as notícias, dama?

Ele está muito doente, messire.

Precisa de alguma coisa? Médicos, remédios?

Um pouco mais de água, se for possível? Mandei Rixende encontrar François há algum tempo, mas ele não voltou.

Será feito.

Trencavel olhou por cima do ombro para a cama.

Como a doença o dominou tão depressa?

É difícil dizer por que um mal assim atinge uma pessoa com tanta força e não causa nada a outra, messire. A constituição de meu pai foi muito enfraquecida por sua estada na Terra Santa. Ele é particularmente suscetível a males do estômago. — Ela hesitou. — Se Deus quiser, não vai se espalhar.

Não há dúvida de que é o mal do cerco? — perguntou ele, sombrio.Alaïs fez que não com a cabeça. — Sinto muito por ouvir isso. Mande me chamar se houver alguma mudança no estado dele.

À medida que as horas sucediam lentamente às outras, a força vital de seu pai ia ficando mais fraca. Ele tinha momentos de lucidez, quando parecia consciente do que estava lhe acontecendo. Em outras ocasiões, parecia não saber mais onde estava ou quem era.

Pouco antes do amanhecer, a respiração de Pelletier ficou mais rasa. Alaïs, que cochilava ao seu lado, detectou a mudança e pôs-se imediatamente em estado de alerta.


— Filha...

Ela avaliou seu pulso e sentiu a temperatura de sua testa, e soube que não demoraria muito. A febre havia cedido, deixando sua pele fria. A alma dele está lutando para se libertar.

— Ajude-me... a sentar — ele conseguiu dizer.

Com a ajuda de Rixende, Alaïs conseguiu pô-lo sentado. A doença o fizera envelhecer vários anos em uma só noite.

Não fale — sussurrou ela. — Guarde sua força.

Alaïs — repreendeu ele, manso. — Você sabe que a minha hora chegou. — Enquanto ele lutava para respirar, em seu peito ouviam-se gargarejos e chiados. Seus olhos estavam ocos e cercados de amarelo, e man­chas marrom-claras se formavam em suas mãos e pescoço. — Pode mandar chamar um parfait? — Ele forçou os olhos encovados a se abrirem. — Que­ro ter um bom fim.

— O senhor quer ser consolado, paire? — perguntou ela, cautelosa.Pelletier conseguiu dar um sorriso fraco e, por um instante, o homem que fora em vida surgiu.

— Eu escutei com atenção as palavras dos bons chrétiens. Aprendi as palavras do melhorer e do consolament... — Ele se deteve. — Nasci cristão e vou morrer cristão, mas não no abraço corrupto daqueles que investem contra nossos portões em nome de Deus. Com a graça de Deus, se vivi uma vida boa o bastante, vou me juntar à gloriosa companhia dos espíritos no paraíso.

Um acesso de tosse o dominou. Alaïs olhou em volta do quarto, desespe­rada. Mandou um criado informar ao visconde Trencavel que a condição de seu pai havia piorado. Assim que ele se foi, ela chamou Rixende.

— Preciso que você vá buscar os parfaits. Eles estavam perto do pátio mais cedo. Diga-lhes que tem uma pessoa que deseja receber o consolament.

Rixende fez cara de terror.

— Você não vai correr nenhum risco por levar um recado — disse ela,tentando reconfortar a moça. — Não precisa voltar com eles.

Um movimento de seu pai atraiu sua atenção de volta para a cama.

Rápido, Rixende. Apresse-se.Alaïs se inclinou para frente.

O que foi, paire? Estou aqui com o senhor.

Ele estava tentando falar, mas as palavras pareciam secar em sua garganta antes de ele ser capaz de pronunciá-las. Ela molhou a boca dele com um pouco de vinho e enxugou seus lábios ressequidos com um pano molhado.

— O Graal é a palavra de Deus, Alaïs. Foi isso que Harif tentou me ensinar, embora eu não compreendesse. —A voz dele gaguejou. — Mas sem o merel... a verdade do labirinto é um caminho falso.

 


O que tem o merel? — sussurrou ela com urgência, sem entender.

Você tinha razão, Alaïs. Fui tão teimoso. Eu deveria ter deixado você ir enquanto ainda havia uma chance.

Alaïs se esforçava para encontrar sentido nas palavras incompreensí­veis dele.

Que caminho?

Eu não a vi — murmurava ele —, nem verei agora. A caverna...poucos a viram.

Alaïs virou-se para a porta, desesperada.

Onde está Rixende?

No corredor do lado de fora, ouviu-se o ruído de passos apressados. Rixende apareceu seguida por dois parfaits. Alaïs reconheceu o mais velho, um homem de feições morenas, com uma barba espessa e uma expressão gentil, que ela conhecera certo dia na casa de Esclarmonde. Ambos vestiam túnicas azuis-escuras e usavam cintos de corda torcida com fivelas de metal na forma de um peixe.

Ele fez uma mesura.

— Dama Alaïs. — Olhou para a cama atrás dela. — É o seu pai, o intendente Pelletier, que precisa de consolo?

Ela aquiesceu.

Ele consegue falar?

Ele vai encontrar forças.

Houve outra movimentação no corredor, e o visconde Trencavel surgiu no vão da porta.

— Messire — disse ela, alarmada. — Ele chamou os parfaits... meu pai deseja ter um bom fim, messire.

Seus olhos foram atravessados por um brilho de surpresa, mas ele orde­nou que a porta fosse fechada.

— Mesmo assim eu vou ficar — disse.

Alaïs o encarou por alguns instantes, depois tornou a se virar para o pai quando o parfait que ministraria o sacramento a chamou para mais perto.

O intendente Pelletier está sentindo muita dor, mas sua mente ainda está lúcida e sua coragem, firme. — Alaïs assentiu. — Ele não fez nada para prejudicar a nossa igreja nem nos deve nada?

Ele é um protetor de todos os amigos de Deus.

Alaïs e Raymond-Roger deram um passo para trás enquanto o parfait andava até a cama e se inclinava sobre o moribundo. Os olhos de Bertrand se moveram enquanto ele sussurrava o melhorer, a bênção.

— Você jura seguir a regra da justiça e da verdade e se dedicar a Deus e à igreja dos bons chrétiens?


Pelletier forçou as palavras a saírem de seus lábios.

— Eu... juro.

O parfait pousou sobre sua testa uma cópia em pergaminho do Velho Testamento

— Que Deus o abençoe, faça de você um bom cristão e o conduza a um bom fim. — Ele recitou o benedicté, seguido por três adoremus.

Alaïs ficou comovida com a simplicidade do sacramento. O visconde Trencavel mantinha o olhar fixo à frente. Parecia estar se controlando às cus­tas de uma enorme força de vontade.

— Bertrand Pelletier, está pronto para receber a dádiva da Oração do Senhor?

Seu pai emitiu um murmúrio de afirmação.

Com a voz límpida, firme, o parfait declamou o pater noster sete vezes, parando apenas para que Pelletier pudesse dar suas respostas.

— Esta é a prece que Jesus Cristo trouxe para o mundo e ensinou aos bons homes. Nunca torne a comer ou beber sem antes repetir esta prece; e caso falhe neste dever, deve fazer nova penitência.

Pelletier tentou assentir. O silvo oco em seu peito agora estava mais alto, como o vento nas árvores do outono.

O parfait começou a ler trechos do Evangelho de João.

— No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. — A mão de Pelletier tremia sobre as cobertas enquanto o parfait prosseguia a leitura. —... E conhecereis a verdade,e a verdade vos libertará.

Os olhos de Pelletier se abriram subitamente.

— Vertat — sussurrou. — Sim, a verdade.

Alaïs agarrou a mão dele, alarmada, mas ele estava indo embora. A luz havia desaparecido de seus olhos. Ela teve consciência de que o parfait agora falava mais depressa, como se temesse não haver tempo suficiente para com­pletar o ritual.

Ele precisa pronunciar as palavras finais — disse o parfait para Alaïs,aflito. — Ajude-o.

Paire, o senhor precisa. — O pesar a fez perder a voz.

Para cada pecado... que cometi... em palavras ou atos — balbuciou ele —, peço... peço perdão a Deus e à Igreja... e a todos aqui presentes.

Com alívio evidente, o parfait pousou a mão sobre a cabeça de Pelletier e lhe deu o beijo da paz. Alaïs soltou uma exclamação de surpresa. Uma ex­pressão de alívio havia transformado o rosto do pai quando a graça do consolament o iluminou. Foi um momento de transcendência, de compreensão. Seu espírito agora estava pronto para deixar seu corpo doente e a terra que o havia sustentado.

— A alma dele está preparada — disse o parfait.

Alaïs assentiu. Sentou-se na cama, segurando a mão do pai. O visconde Trencavel ficou em pé do outro lado. Pelletier estava praticamente inconsci­ente, embora parecesse sentir a presença deles.

Messire?

Estou aqui, Bertrand.

Carcassona não deve cair.

Eu lhe dou minha palavra, em homenagem ao amor e ao dever que existiu entre nós durante todos estes anos, que farei tudo que puder.

Pelletier tentou levantar a mão de cima da coberta.

— Foi uma honra servi-lo.

Alaïs viu que os olhos do visconde estavam marejados de lágrimas.

Sou eu quem deve lhe agradecer, meu velho amigo.Pelletier tentou levantar a cabeça.

Alaïs?

 

Estou aqui, pai — disse ela depressa. A cor agora havia se esvaído do rosto de Pelletier. Sua pele pendia em dobras cinzentas debaixo de seus olhos.

Nenhum homem jamais teve uma filha como você.

Pareceu suspirar enquanto a vida deixava seu corpo. Então, silêncio.

Por um instante, Alaïs não se mexeu, não respirou, não teve nenhum tipo de reação. Então sentiu uma dor tremenda crescer dentro de si, dominando-a, possuindo-a, até irromper em um pranto lancinante.


 

Um soldado surgiu no vão da porta.

Senhor Trencavel?Ele virou a cabeça.

O que foi?

Um ladrão, messire. Roubando água da Place du Plô.Ele fez sinal de que já estava indo.

Dama, preciso deixá-la.

Alaïs aquiesceu. Estava exausta de tanto chorar.

Tomarei providências para que ele seja enterrado com a honra e ceri­mônia condizentes com sua condição. Ele foi um homem valoroso, conselhei­ro leal e amigo de confiança.

A fé dele não exige isso, messire. A carne dele não é nada. Seu espírito já se foi. Ele preferiria que o senhor pensasse apenas nos vivos.

Então considere isso um ato de egoísmo meu, o fato de eu desejar prestar minhas últimas homenagens de acordo com a grande afeição e estima que tinha por seu pai. Farei seu corpo ser transportado para a capela Santa-Maria.

Ele ficaria honrado por essa sua prova de amor.

Posso mandar alguém para ficar com você? Não posso mandar seu marido, mas sua irmã? Mulheres para ajudá-la a preparar o corpo?

Ela ergueu a cabeça em um susto, só então percebendo que não havia pensado em Oriane sequer uma vez. Esquecera-se até mesmo de informá-la que seu pai havia adoecido.

Ela não o amava.

Alaïs silenciou a voz em sua mente. Havia falhado em seu dever, tanto para com o pai quanto para com a irmã. Levantou-se.

— Irei ter com minha irmã, messire.

Fez uma reverência quando ele saiu do quarto, depois tornou a se virar. Não conseguia deixar o pai sozinho. Começou ela mesma o processo de pre­paração do corpo. Ordenou que a cama fosse desfeita e arrumada com lençóis limpos, mandando as cobertas contaminadas embora para serem queimadas. Então, com a ajuda de Rixende, Alaïs preparou a mortalha e os óleos para o enterro. Limpou ela mesma o corpo e afastou os cabelos da testa dele de modo que, na morte, ele se parecesse com o homem que havia sido em vida.

Ficou mais algum tempo olhando para o rosto vazio. Você não pode esperar mais.

— Informe ao visconde que o corpo está pronto para ser levado para a capèla, Rixende. Preciso avisar à minha irmã.

Guirande dormia no chão do lado de fora do quarto de Oriane.

Alaïs passou por cima da criada e tentou abrir a porta. Dessa vez, estava destrancada. Oriane estava deitada sozinha na cama com as cortinas afastadas. Seus cachos pretos espalhavam-se em desordem sobre o travesseiro e sua pele tinha um branco leitoso à luz daquele início de manhã. Alaïs não entendia como a irmã conseguia dormir.

— Irmã!

Oriane abriu os olhos verdes de gato de um estalo, o rosto registrando alarme, depois surpresa, antes de adotar a costumeira expressão de desdém.

Trago más notícias — disse Alaïs. Sua voz estava morta, fria.

Não podia esperar? Ainda não pode ter soado o sino de prima.

— Não podia esperar. Nosso pai... — Ela parou.Como essas palavras podem ser verdade?

Alaïs respirou fundo para se controlar.

— Nosso pai morreu.

O rosto de Oriane registrou o choque, antes de voltar à expressão habitual.

O que você disse? — perguntou ela, apertando os olhos.

Nosso pai faleceu hoje de madrugada. Logo antes do amanhecer.

Como? Como ele morreu?

É só isso que você consegue dizer? — gritou Alaïs.Oriane saiu da cama voando.

Diga-me do que ele morreu!

Uma doença. Foi muito rápido.

Você estava com ele quando ele morreu?Alaïs aquiesceu.

 

E mesmo assim não achou que deveria me avisar? — perguntou,furiosa.

Desculpe-me — sussurrou Alaïs. — Tudo pareceu acontecer tão de­pressa. Eu sei que deveria ter...

Quem mais estava lá?

Nosso senhor Trencavel e...


Oriane ouviu a hesitação da irmã.

Nosso pai confessou seus pecados e recebeu a extrema-unção? — per­guntou. — Ele morreu na Igreja?

Nosso pai não morreu sem confissão — retrucou Alaïs, escolhendo as palavras com cuidado. — Ele fez as pazes com Deus.

Ela adivinhou.

Que importância tem isso? — gritou ela, horrorizada pela maneira como Oriane reagia à notícia. — Ele morreu, irmã. Isso não significa nada para você?

Você fracassou em seu dever, irmã — disse Oriane, apontando um dedo acusador. — Como filha mais velha, eu tinha mais direito de estar lá do que você. Eu deveria ter estado lá. E se, além disso, eu descobrir que você permitiu que hereges pusessem as mãos nele enquanto ele estava morrendo,então pode ter certeza, vou fazer de tudo para você se arrepender.

— Você não sente a perda, não sente tristeza?Alaïs pôde ver a resposta no rosto de Oriane.

— Não sinto mais dor pela morte dele do que sentiria por um cão na rua. Ele não me amava. Já faz muitos anos que eu não deixo esse fato me atingir. Por que eu deveria lamentar agora? — Ela deu um passo à frente. —Era você que ele amava. Ele via a si próprio em você. — Ela deu um sorriso desa­gradável. — Era em você que ele confiava. Era com você que compartilhava seus segredos mais íntimos.

Mesmo em seu estado entorpecido, Alaïs sentiu-se corar.

Do que você está falando? — perguntou, temendo a resposta.

Você sabe perfeitamente do que estou falando — sibilou ela. — Acha mesmo que eu não sei das suas conversas à meia-noite? — Ela se aproximou mais um passo. — A sua vida vai mudar, irmãzinha, sem ele aqui para protegê-la. Você passou tempo demais fazendo as coisas do seu jeito. — Oriane esten­deu uma das mãos depressa e agarrou Alaïs pelo pulso.

Diga-me. Onde está o terceiro livro?

 

Não sei do que você está falando.Oriane a esbofeteou com a mão aberta.

Onde está? — sibilou ela. — Eu sei que está com você.

Solte-me.

— Não brinque comigo, irmã. Ele deve ter dado o livro para você. Em quem mais confiaria? Diga-me onde está. Eu o quero para mim.

Um frio correu pela espinha de Alaïs.

Você não pode fazer isto. Vai chegar alguém.

Quem? — perguntou ela. — Você se esquece de que nosso pai não está mais aqui para protegê-la.


— Guilhem.Oriane riu.

— Claro, esqueci que você tinha se reconciliado com seu marido. Você sabe o que seu marido realmente pensa de você? — continuou. — Sabe?

A porta se abriu com um safanão e bateu contra a parede.

Agora chega! — gritou Guilhem. Oriane largou imediatamente o pulso de Alaïs enquanto o marido desta última cruzava o quarto com poucas passadas e a tomava nos braços. — Mon còr, vim assim que soube a notícia da morte do seu pai. Eu sinto tanto.

Que comovente! — A voz ríspida de Oriane rompeu a intimidade entre os dois. — Pergunte a ele o que o fez voltar para a sua cama — disse ela com desdém, sem tirar os olhos do rosto de Guilhem. — Ou será que tem medo demais do que ele tem a dizer? Pergunte a ele, Alaïs. Não foi amor nem desejo. Essa reconciliação tem a ver com o livro, nada mais.

Estou avisando, segure sua língua!

Por quê? Está com medo do que eu posso dizer?

Alaïs pôde sentir a tensão entre eles. A cumplicidade. E imediatamente compreendeu.

Não. Isso não.

— Não é você que ele quer, Alaïs. Ele procura o livro. Foi isso que o fez voltar para o seu quarto. Como você pode ser tão cega?

Alaïs afastou-se de Guilhem um passo.

— É verdade o que ela diz?

Ele se virou de frente para ela, desespero faiscando nos olhos.

Ela está mentindo. Eu juro, pela minha vida, que não ligo para o livro. Eu não contei nada para ela. Como poderia?

Ele revistou o quarto enquanto você dormia. Não vai poder negar.

 

Eu não fiz isso! — gritou ele.Alaïs olhou para ele.

Mas você sabia da existência do livro?

O alarme que atravessou os olhos dele deu-lhe a resposta que ela temia.

Ela tentou me chantagear para fazer com que eu a ajudasse, mas eu recusei. — A voz dele se partiu. — Eu recusei, Alaïs.

O que ela sabia sobre você para poder fazer um pedido desses? —perguntou Alaïs baixinho, quase em um sussurro.

Guilhem tentou estender a mão para a mulher, mas ela recuou. Mesmo agora, eu queria que ele negasse. Ele deixou a mão cair.

Uma vez, sim, eu... Perdoe-me.

E um pouco tarde para remorso.


Alaïs ignorou a interrupção de Oriane.

— Você a ama?

Guilhem sacudiu a cabeça, negando.

— Você não vê o que ela está tentando fazer, Alaïs? Está tentando jogar você contra mim.

Alaïs ficou pasma ao ver que ele pensava que ela algum dia confiaria nele de novo.

Guilhem estendeu a mão.

Por favor, Alaïs — implorou ele. — Eu amo você.

Chega disto — falou Oriane, entrando no campo de visão de Alaïs.— Onde está o livro?

Não está comigo.

 

Com quem está? — perguntou Oriane com a voz ameaçadora.Alaïs agüentou firme.

Por que você quer o livro? O que é tão importante?

Só me diga onde ele está — cortou ela — e tudo isto termina aqui.

E se eu não disser?

— É tão fácil adoecer — disse ela. — Você cuidou de nosso pai. Talvez até já esteja doente. — Ela se virou para Guilhem. — Está entendendo o que estou dizendo, Guilhem? Se você se opuser a mim.

— Não vou permitir que você a machuque!Oriane riu.

— Você não está em condições de me ameaçar, Guilhem. Tenho provas suficientes de sua traição para mandar enforcar você.

Provas que você mesma inventou! — gritou ele. — O viscondeTrencavel não vai acreditar em você.

Você está me subestimando, Guilhem, se acha que deixei alguma margem para dúvida. Será que vai correr esse risco? — Ela tornou a se virar para Alaïs. — Diga-me onde escondeu o livro ou eu vou falar com o visconde.

Alaïs engoliu em seco. O que Guilhem fizera? Ela não sabia o que pen­sar. Apesar da raiva, não conseguia se forçar a denunciá-lo.

— François — disse ela. — Nosso pai deu o livro a François.

Uma expressão de confusão atravessou os olhos de Oriane, depois sumiu tão depressa quanto havia surgido.

Muito bem. Mas estou avisando, irmã, se estiver mentindo para mim,vai se arrepender. — Ela se virou e andou até a porta.

Aonde você vai?

Prestar meus respeitos a nosso pai, onde mais? Porém, antes disso,vou acompanhá-la até seu quarto para garantir que chegue lá sã e salva.

Alaïs levantou a cabeça para encarar a irmã.


Isso é totalmente desnecessário.

Ah, não, é inteiramente necessário. Se François não conseguir me ajudar, eu vou querer poder falar com você de novo.

Guilhem estendeu a mão para tentar tocá-la.

Ela está mentindo. Eu não fiz nada de errado.

O que você fez ou não fez, Guilhem, não é mais problema meu —disse Alaïs. — Você sabia o que estava fazendo quando se deitou com ela.Agora me deixe em paz.

De cabeça erguida, Alaïs cruzou o corredor e entrou em seu quarto, com Oriane e Guirande atrás.

Volto sem demora. Assim que tiver falado com François.

Como quiser.

Oriane fechou a porta. Instantes depois, como Alaïs temia, a chave foi girada na fechadura. Ela pôde ouvir Guilhem repreendendo Oriane.

Fechou os ouvidos para não escutar suas vozes. Tentou manter afastadas da mente as imagens venenosas, ciumentas. Alaïs não conseguia parar de pen­sar em Guilhem e Oriane enlaçados, não conseguia se proteger contra a idéia de Guilhem sussurrando para a irmã as palavras íntimas que um dia dissera a ela, pérolas que ela guardava junto ao coração.

Alaïs apertou a mão trêmula contra o peito. Podia sentir o coração ba­tendo com força dentro das costelas, assustado e traído. Engoliu em seco.

Não pense em si mesma.

Abriu os olhos e deixou os braços penderem ao lado do corpo, as mãos cerradas de angústia. Não podia se permitir ser fraca. Se o fizesse, Oriane teria lhe tirado tudo. A hora do arrependimento e da recriminação haveria de che­gar. Por ora, a promessa que fizera a seu pai, de proteger o Livro, importava mais do que seu coração partido. Por mais difícil que fosse, ela precisava tirar Guilhem da cabeça. Havia se deixado trancar no próprio quarto por causa de alguma coisa que Oriane dissera. O terceiro livro. Oriane lhe perguntara onde ela havia escondido o terceiro livro.

Alaïs correu até a capa, ainda pendurada nas costas da cadeira, arreba­tou-a e apalpou a bainha onde o livro deveria estar escondido.

Não estava mais lá.

Alaïs desabou sobre a cadeira, cada vez mais desesperada. Oriane estava com o livro de Simeon. Logo saberia que Alaïs havia mentido sobre ter entre­gado um livro para François e voltaria.

E Esclarmonde?

Alaïs percebeu que Guilhem não estava mais gritando do lado de fora da porta.

Será que ele está com ela?


Ela não sabia o que pensar. De qualquer forma, não tinha importância. Ele a havia traído uma vez. Iria traí-la novamente. Ela precisava trancar os sentimentos feridos em seu coração despedaçado. Precisava ir embora enquanto ainda podia.

Alaïs rasgou o sachê de lavanda para recuperar a cópia do pergaminho do Livro dos Números, depois deu uma última olhada pelo quarto que pensava que seria seu lar para sempre.

Sabia que não iria voltar.

Então, com o coração na boca, foi até a janela e olhou por sobre o telha­do. Sua única chance era sair antes que Oriane voltasse.

Oriane não sentiu nada. A luz bruxuleante das velas, parou ao pé do ataúde e olhou para o corpo do pai.

Mandando os ajudantes saírem, Oriane se inclinou como se fosse beijar a cabeça do pai. Sua mão fechou-se sobre a dele e ela retirou de seu polegar o anel do labirinto, mal conseguindo acreditar que Alaïs houvesse sido tão estú­pida a ponto de deixá-lo em sua mão.

Oriane se endireitou e pôs o anel no bolso. Tornou a arrumar o lençol, ajoelhou-se diante do altar e fez o sinal da cruz, depois saiu à procura de François.


 

Alaïs apoiou o pé sobre o parapeito e subiu na janela, a cabeça girando com o que estava prestes a fazer.

Você vai cair.

Se caísse, que importância tinha isso agora? Seu pai estava morto. Guilhem não era mais seu. No fim das contas, o juízo do pai sobre o caráter de seu marido havia se mostrado correto.

O que mais tenho a perder?

Tomando fôlego com uma respiração funda, Alaïs passou o peso do cor­po para o outro lado do parapeito com cuidado, até seu pé direito encontrar as telhas. Então, balbuciando uma prece, contraiu os braços e pernas e soltou o corpo. Caiu com um leve baque. Seus pés escorregaram. Alaïs se lançou para a frente enquanto deslizava pelas telhas, tentando desesperadamente se agarrar em alguma coisa. Rachaduras nas telhas, fendas no muro, qualquer coisa que a impedisse de despencar.

Pareceu-lhe que a queda nunca terminava. De repente, Alaïs sentiu um violento puxão e parou abruptamente. A bainha de seu vestido havia se agarra­do a um prego, e a estava segurando. Ela ficou deitada, imóvel, sem ousar se mexer. Podia sentir a tensão do tecido. Era de boa qualidade, mas estava esti­cado como a pele de um tambor e poderia se rasgar a qualquer momento.

Alaïs ergueu os olhos para o prego. Mesmo que conseguisse esticar a mão até lá em cima, precisaria das duas mãos para soltar o vestido, que havia se enrolado em várias voltas ao redor da ponta de metal. Não podia correr o risco de soltar as duas mãos. A única alternativa era abandonar a capa e tentar subir rastejando pelo telhado, que se unia à muralha externa do Château Comtal pelo lado ocidental. Provavelmente conseguiria se esgueirar por entre as tábuas de madeira das hourds. As frestas nas defesas eram estreitas, mas ela era magra. Valia a pena tentar.

Tomando cuidado para não fazer movimentos bruscos, Alaïs estendeu a mão para cima e foi esfiapando o tecido até ele começar a se rasgar. Puxou, primeiro de um lado, depois do outro, até arrancar um quadrado da saia. Deixando um pedaço do pano para trás, viu-se novamente livre.

Alaïs ergueu um dos joelhos, depois o outro, e foi subindo. Podia sentir gotas de suor se formando em suas têmporas e entre os seios, onde havia guarda­do os pergaminhos. Sua pele estava esfolada pelo contato com as telhas ásperas.

Aos poucos, foi içando o corpo até conseguir alcançar o ambans.

Alaïs esticou os braços e agarrou as vigas de madeira, cuja solidez pareceu reconfortante sob seus dedos. Ergueu os joelhos de modo a ficar quase agachada em cima do telhado, encolhida no canto entre as ameias e a muralha. A fenda era menor do que ela esperava, não mais profunda do que o palmo de um homem, e talvez três vezes mais larga. Alaïs estendeu a perna direita, girou a esquerda por baixo do corpo para se apoiar com firmeza, e então empurrou o corpo para dentro da fenda. A bolsa que continha as cópias dos pergaminhos do labirinto a atrapalhava, e não parava de se enroscar entre suas pernas, mas ela continuou.

Ignorando os membros doloridos, levantou-se depressa e começou a an­dar pela barricada. Embora soubesse que os guardas não a denunciariam para Oriane, quanto antes conseguisse sair do Château Comtal e chegar a Sant-Nasari, melhor.

Olhando para baixo para se certificar de que não havia ninguém, Alaïs desceu rapidamente as escadas de corda até o pátio. Pulou os últimos degraus e, ao aterrissar, as pernas cederam sob o peso de seu corpo e ela se estatelou de costas, perdendo o pouco de fôlego que lhe restava.

Ergueu os olhos para a capela. Nenhum sinal de Oriane nem de François. Mantendo-se encolhida junto às paredes, Alaïs passou pelos estábulos, paran­do um instante na baia de Tatou. Estava desesperada de sede, e queria tam­bém dar de beber à égua, que estava sofrendo, mas o pouco de água que havia ia toda para os cavalos de batalha.

As ruas estavam repletas de refugiados. Alaïs cobriu a boca com a manga para manter afastado o fedor do sofrimento e da doença que pairava como um nevoeiro acima das ruas. Quando ela passava, os homens e mulheres feridos, os despossuídos carregando crianças nos braços, erguiam para ela seus olhos inexpressivos e sem esperança.

A praça em frente a Sant-Nasari estava cheia de gente. Com um olhar por cima do ombro para ter certeza de que ninguém a tinha seguido, Alaïs abriu a porta da catedral e entrou. Pessoas dormiam na nave. Na terrível situa­ção em que se encontravam, prestaram pouca atenção nela.

Velas ardiam no altar-mor. Alaïs subiu depressa o transepto norte até uma capela lateral pouco visitada, com um pequeno aliar simples, onde seu pai a havia levado. Camundongos correram em busca de abrigo, suas patas diminutas arranhando as pedras do piso. Alaïs se ajoelhou e esticou a mão por trás do altar, como ele havia lhe mostrado. Apalpou com os dedos a superfície da parede. Perturbou o esconderijo de uma aranha, que correu pela pele ex­posta de sua mão, depois sumiu.

Ouviu-se um pequeno clique. Devagar, com cuidado, Alaïs retirou a pedra e a pôs de lado, depois esticou a mão para dentro do buraco empoeirado que ficava atrás. Encontrou a chave comprida e fina, seu metal opaco pelo tempo e pela falta de uso, e a inseriu na fechadura da porta de madeira trança da. As dobradiças gemeram quando a madeira arranhou o chão de pedra.

Nesse momento, sentiu a presença do pai com força. Alaïs mordeu o lábio para não se deixar desmoronar.

Isto é tudo que você pode fazer por ele agora.

Alaïs pôs a mão lá dentro e tirou a caixa, como o vira fazer. Mais ou menos do tamanho de um guarda jóias, era simples e sem decorações, com um fecho comum. Ela ergueu a tampa. No interior havia uma bolsa de pele de carneiro, como no dia em que seu pai havia lhe mostrado aquele lugar. Ela deu um suspiro de alívio, só agora percebendo o quanto temia que Oriane de alguma forma, houvesse estado ali antes dela.

Consciente do pouco tempo que lhe restava, Alaïs escondeu rápida mente o livro debaixo do vestido e tornou a pôr tudo exatamente no mesmo lugar de antes. Se Oriane ou Guilhem conhecessem o esconderijo, pelo menos o fato de pensarem que a caixa ainda estava no mesmo lugar os faria perder tempo.

Atravessou a igreja correndo, com a cabeça coberta pelo capuz, empurrou a pesada porta e foi tragada pela enxurrada de pessoas que se lamentavam e se aglomeravam sem destino pela praça. A doença que havia levado seu pai estava se espalhando depressa. Os becos estavam abarrotados de carcaças podres e em decomposição — ovelhas e cabras, e até mesmo vacas, cujos corpos inchados despejavam no ar fétido um gás malcheiroso.

Alaïs viu-se tomando o rumo da casa de Esclarmonde. Não havia motivo para ter esperanças de encontrá-la lá àquela altura, depois de tanto tentar nos últimos. dias, mas Alaïs não conseguia pensar em nenhum outro lugar para onde ir.

A maioria das casas no quartier sul tinha as janelas fechadas e as portas tapadas com tábuas de madeira, inclusive a de Esclarmonde. Alaïs ergueu a mão e bateu na porta.

Esclarmonde?

Ela tornou a bater. Tentou ,abrir a porta, mas estava trancada. Sahjë?


Dessa vez ouviu alguma coisa. O barulho de passos correndo, e um trin­co se abrindo.

Dama Alaïs?

Sajhë, graças a Deus, Depressa, deixe-me entrar.

A porta se abriu o suficiente para permitir que ela se esgueirasse para dentro.

— Por onde você andou? — perguntou ela, abraçando-o apertado. — O que está acontecendo? Onde está Esclarmonde?

Alaïs sentiu a mãozinha de Sajhë segurar a sua.

— Venha comigo.

Ele a conduziu até o outro lado da cortina, para o quarto nos fundos da casa. Um alçapão estava aberto no chão.

— Você estava aqui o tempo todo? — perguntou ela. Espiou para den­tro da escuridão e viu uma calèlh acesa embaixo da escada. — No porão?Minha irmã voltou...

— Não foi ela — disse ele com a voz trêmula. — Depressa, dama.Alaïs desceu primeiro. Sajhë soltou a trava e o alçapão se fechou acima de suas cabeças. Ele desceu atrás dela, pulando os últimos degraus de corda da escada para o chão de terra batida.

— Por aqui.

Ele a conduziu por um corredor comprido e úmido até uma pequena área mais larga, e então levantou a lamparina para que Alaïs pudesse ver Esclarmonde, deitada imóvel em cima de uma pilha de peles e cobertores.

— Não! — exclamou ela, correndo para junto da amiga.

A cabeça de Esclarmonde estava envolta em ataduras. Alaïs levantou a ponta do curativo e cobriu a boca. O olho esquerdo de Esclarmonde estava vermelho, todo coberto por uma película de sangue. Havia curativos limpos sobre o ferimento, mas a pele pendia solta em volta da órbita esmagada.

— Pode ajudá-la? — perguntou Sajhë.

Alaïs levantou a coberta. Seu estômago se revirou. Sobre o peito de Esclarmonde havia uma fileira de queimaduras vermelhas inflamadas; a pele estava amarela e preta no ponto onde as chamas haviam encostado.

— Esclarmonde — sussurrou, inclinando-se sobre ela. — Está me ou­vindo? Sou eu, Alaïs. Quem fez isto com você?

Pensou ter visto um movimento no rosto de Esclarmonde. Os lábios da mulher se moveram de leve. Alaïs se virou para Sajhë.

Como você a trouxe até aqui?

Gaston e o irmão dele ajudaram.

Alaïs tornou a se virar para a mulher desfigurada sobre a cama.

— O que aconteceu com ela, Sajhë?Ele fez que não sabia com a cabeça.


Ela não lhe disse nada?

Ela... — Pela primeira vez, o autocontrole dele falhou. — Ela não consegue falar... a língua dela...

Alaïs empalideceu.

— Não... — sussurrou horrorizada, depois controlou a voz. — Conte-me o que você sabe, então — pediu mansamente.

Pelo bem de Esclarmonde, os dois precisavam ser fortes.

Depois que ficamos sabendo que Besièrs tinha caído, menina ficou preocupada que o intendente Pelletier fosse mudar de idéia quanto a deixar você levar a Trilogia para Harif.

Ela estava certa — disse Alaïs, sombria.

Menina sabia que você tentaria convencê-lo, mas pensava que Simeonera a única pessoa que o intendente Pelletier escutaria. Eu não queria deixá-la ir — gemeu ele —, mas mesmo assim ela foi até o quartier judaico. Fui atrás,mas já que não podia deixar ela me ver, acabei ficando para trás, então a perdi de vista quando ela entrou na floresta. Fiquei com medo. Esperei até o pôr do sol, mas depois, imaginando o que ela diria se voltasse para casa e visse que eu a tinha desobedecido, voltei. Foi aí que... — Ele se interrompeu, os olhos cor de âmbar queimando no rosto pálido.

Eu logo vi que era ela. Estava caída, do lado de fora dos portões. Seus pés estavam sangrando como se ela houvesse percorrido um longo caminho.— Sajhë ergueu os olhos para Alaïs. — Eu quis ir procurar você, dama, mas não me atrevi. Com a ajuda de Gaston, trouxe-a para cá. Tentei me lembrar do que ela faria, de quais ungüentos usar. — Ele deu de ombros. — Fiz o melhor que pude.

— Você fez um excelente trabalho — disse Alaïs, impetuosa. —Esclarmonde vai ficar muito orgulhosa de você.

Um movimento na cama chamou a atenção deles. Ambos se viraram imediatamente.

Esclarmonde — disse Alaïs. — Está me ouvindo? Estamos os dois aqui. Você está segura.

Ela está tentando dizer alguma coisa.

Alaïs viu as mãos da mulher se mexerem freneticamente.

Acho que ela quer pergaminho e tinta — disse ela.Com a ajuda de Sajhë, Esclarmonde conseguiu escrever.

Está escrito François, acho eu — disse Alaïs, franzindo o cenho.

O que isso quer dizer?

— Não sei. Talvez ele possa nos ajudar — disse ela. — Ouça-me, Sajhë.Tenho más notícias. É quase certo que Simeon está morto. Meu pai... meu pai também morreu.


Sajhë segurou a mão dela. O gesto foi tão carinhoso que fez os olhos de Alaïs se marejarem de lágrimas.

— Eu sinto muito.

Alaïs mordeu o lábio para não chorar.

Então, por ele... e também por Simeon e Esclarmonde... eu preciso manter minha palavra e encontrar Harif. Estou com... — Ela hesitou nova­mente. — Infelizmente tenho apenas o Livro das Palavras. O livro de Simeon foi perdido.

Mas o intendente Pelletier entregou o livro a você.

Minha irmã pegou. Meu marido a deixou entrar no nosso quarto —disse ela. — Ele... ele deu seu coração a minha irmã. Não podemos mais confiar nele, Sajhë. É por isso que eu não posso voltar para o Château. Com meu pai morto, nada poderá detê-los.

Sajhë olhou para a avó, depois novamente para Alaïs.

Ela vai viver? — perguntou ele em voz baixa.

Os ferimentos dela são graves, Sajhë. Ela ficou cega do olho esquerdo,mas... não há infecção. Ela é muito forte. Vai se recuperar, se quiser.

Ele assentiu, subitamente mais velho do que seus 11 anos.

Mas eu vou pegar o livro de Esclarmonde, com a sua licença, Sajhë.Por um instante, pareceu que as lágrimas dele finalmente iriam correr.

O livro dela também foi perdido — disse ele por fim.

Não! — exclamou Alaïs. — Como?

 

As pessoas que... pegaram o livro dela — disse ele. — Menina levou o livro quando saiu para ir ao quartier judaico. Eu a vi tirá-lo do esconderijo.

Somente um livro — disse Alaïs, ela também à beira das lágrimas. —Então estamos perdidos. Foi tudo em vão.

Durante os cinco dias seguintes, eles levaram uma vida estranha.

Alaïs e Sajhë se revezavam para subir à ruas sob a proteção da noite. Logo ficou claro que não havia como saírem de Carcassonne sem serem vistos. O cerco era intransponível. Havia um guarda em cada porta lateral, em cada portão e debaixo de cada torre, um anel sólido de homens e aço em volta dos muros. Dia e noite, as máquinas de cerco bombardeavam os muros, de modo que os habitantes da Cité não sabiam mais se estavam escutando o barulho dos mísseis ou apenas o eco em suas cabeças.

Era um alívio voltar para os túneis frescos e úmidos, onde o tempo não avançava e não havia noite nem dia.


 

Guilhem estava em pé à sombra do grande olmo no centro da Cour d´Honneur.

Em nome do abade de Cîteaux, o conde de Auxerre fora até a Porte Narbonnaise e oferecera um salvo-conduto a um grupo de negociadores. Com essa surpresa, o otimismo natural do visconde Trencavel havia retornado. Ele transparecia em seu rosto e em sua atitude quando se dirigiu aos membros da casa. Sua esperança e força moral contagiaram um pouco todos aqueles que o escutavam.

Os motivos por trás da súbita mudança de idéia do abade eram questionáveis. Os cruzados estavam progredindo pouco, mas o cerco só começara havia pouco mais de uma semana, o que não era nada. Será que as motivações do abade tinham importância? O visconde Trencavel dizia que não.

Guilhem mal escutava. Estava preso em uma teia que ele mesmo havia tecido, e não conseguia ver nenhuma saída, nem pelas palavras, nem pela es­pada. Vivia no fio de uma navalha. Alaïs estava desaparecida havia cinco dias. Guilhem despachara discretas equipes de busca pela Cité, e vasculhara o Château Comtal de alto a baixo, mas não conseguira descobrir onde Oriane a manti­nha prisioneira. Estava preso em uma teia forjada por sua própria traição. Quando percebera como Oriane havia preparado bem o terreno, já era tarde demais. Se não fizesse o que ela queria, seria denunciado como traidor, e Alaïs sairia prejudicada.

— Então, meus amigos? — concluiu Trencavel. — Quem me acompa­nhará nesta viagem?

Guilhem sentiu o dedo pontudo de Oriane em suas costas. Viu-se dando um passo à frente. Ajoelhou-se, com a mão no cabo da espada, e ofereceu seus serviços. Quando Raymond-Roger apertou seu ombro em uma mostra de gra­tidão, Guilhem corou de vergonha.

— Você tem nossos sinceros agradecimentos, Guilhem. Agora, quem irá com você?


Seis outros chevaliers juntaram-se a Guilhem. Oriane se esgueirou entre eles e curvou-se diante do visconde.

— Messire, com sua licença.

Congost não havia percebido a presença de sua mulher entre o grupo de homens. Ficou muito vermelho e sacudiu as mãos, embaraçado, como quem espanta os corvos de uma plantação.

— Para trás, dama — gaguejou com a voz aguda. — Isto aqui não é lugar para você.

Oriane o ignorou. Trencavel ergueu a mão e acenou para que ela se aproximasse.

O que tem a dizer, dama?

Perdoe-me, messire, honrados chevaliers, amigos... marido. Com sua licença e a bênção de Deus, gostaria de me oferecer para juntar-me a esse grupo. Acabo de perder o pai, e parece que agora também perdi uma irmã.Uma tristeza assim é difícil de suportar. Mas, se meu marido me autorizar, eu gostaria de compensar minha perda e demonstrar meu amor pelo senhor.messire, por meio deste ato. É o que meu pai gostaria que eu fizesse.

Congost parecia querer que o chão se abrisse para engoli-lo. Guilhem mantinha os olhos fixos no chão. O visconde Trencavel não conseguia escon­der sua surpresa.

Com respeito, dama Oriane, isto não é tarefa para uma mulher.

Nesse caso, messire, eu me ofereço como refém voluntária. Minha presença será prova de suas boas intenções, uma indicação clara de que Carcassona vai respeitar as condições da negociação.

Trencavel pensou por um instante, depois se virou para Congost.

— Ela é sua mulher. Permite que ela se junte ao nosso grupo?

Jehan gaguejou e esfregou as mãos suadas na roupa. Queria negar sua permissão, mas era evidente que o visconde considerava que a proposta ti­nha mérito.

— Meus desejos são meros subordinados dos seus — balbuciou ele.Trencavel fez um gesto, mandando Oriane se levantar.

— Seu falecido pai, meu estimado amigo, ficaria orgulhoso da sua atitu­de hoje.

Oriane ergueu os olhos para ele de baixo dos cílios negros.

— E, com sua permissão, posso levar François comigo? Ele também ficaria grato pela oportunidade de ser útil, unidos que estamos na dor pela morte do meu pai.

Guilhem sentiu a bile subir-lhe pela garganta, incapaz de acreditar que algum dos presentes fosse se deixar convencer pela demonstração de afeto filial de Oriane, mas eles acreditaram. Todos os rostos, com exceção do de Jehan,


mostravam admiração. Só ele e Congost sabiam o que Oriane de fato valia. Todos os outros estavam enfeitiçados pela beleza dela, por suas palavras gen­tis. Como ele ficara um dia.

Enjoado até o último grau, Guilhem ergueu os olhos para onde François estava de pé na periferia do grupo, impassível, seu rosto uma máscara perfeita.

— Se a senhora acredita que isso irá ajudar nossa causa, dama, então tema minha permissão — respondeu o visconde Trencavel.

Oriane fez outra mesura.

Obrigada, messire.Ele bateu palmas.

Selem os cavalos.

Oriane se manteve próxima a Guilhem enquanto atravessavam a terra devasta­da até o pavilhão do conde de Nevers, onde aconteceria a negociação. Da Cité, aqueles com força suficiente para subir nos muros observavam em silên­cio seu progresso.

No instante em que entraram no acampamento, Oriane se esquivou. Ignorando os chamados obscenos e rudes dos soldados, seguiu François pelo mar de barracas e cores, até chegarem ao verde e prata de Chartres.

Por aqui, dama — murmurou François, apontando para um pavi­lhão erguido um pouco afastado dos outros. Os soldados se empertigaram quando eles chegaram perto, e estenderam as lanças para barrar sua entrada.Um deles reconheceu François com um aceno de cabeça.

Diga a seu patrão que dama Oriane, filha do falecido intendente de Carcassona, está aqui e deseja uma audiência com o senhor Evreux.

Oriane corria um risco enorme ao procurá-lo. François lhe contara sobre sua crueldade e seu pavio curto. Ela estava apostando alto.

Qual o assunto? — indagou o soldado.

Minha senhora só falará com o senhor Evreux em pessoa.

O homem hesitou, em seguida se abaixou para passar pela abertura e desapareceu dentro da barraca. Instantes depois, saiu e fez um gesto para que o seguissem.

A primeira visão que ela teve de Guy d´Evreux não contribuiu em nada para aplacar seus temores. Quando ela entrou na tenda, ele estava de costas para ela. Virou-se, e olhos cinza como sílex ardiam em seu rosto pálido. Seus cabelos pretos estavam penteados para trás com óleo, ao estilo francês. Ele parecia um gavião prestes a atacar.

— Ouvi falar muito na senhora. — A voz era calma e firme, mas havia um quê de aço por trás. — Não esperava ter o prazer de conhecê-la pessoal­mente. O que posso fazer pela senhora?


— Espero que seja uma questão do que eu posso fazer pelo senhor —disse ela.

Antes de ela se dar conta, Evreux havia agarrado seu pulso.

— Aconselho-a a não fazer joguinhos de palavras comigo, senhora Oriane. Seus modos de camponesa do sul não lhe servirão de nada aqui. — Atrás de si, ela percebeu que François tentava não reagir. — A senhora tem notícias para mim, sim ou não? — perguntou ele. — Fale.

Oriane manteve a calma.

— Que maneira cruel de tratar alguém que lhe traz as notícias que o senhor mais deseja — disse ela, encarando-o.

Evreux ergueu o braço.

— Eu poderia arrancar a informação da senhora à força, em vez de ficar esperando, e poupar tempo a nós dois.

Oriane manteve o olhar firme.

— Nesse caso, só ficará sabendo da metade do que eu tenho para dizer— disse ela com a voz mais determinada possível. — O senhor investiu muito em sua busca pelo Labirinto. Posso lhe dar o que deseja.

Evreux ficou olhando para ela por um instante, em seguida abaixou o braço.

— É muito corajosa, senhora Oriane, devo reconhecer isso. Ainda resta saber se é também sensata.

Ele estalou os dedos e um criado trouxe uma bandeja de vinho. As mãos de Oriane tremiam demais para que ela se arriscasse a aceitar uma caneca.

Não, obrigada, meu senhor.

Como quiser — disse ele, gesticulando para que ela se sentasse. — O que deseja, minha senhora?

Se eu lhe entregar o que o senhor procura, desejo que me leve para o norte quando voltar para casa. — Pela expressão no rosto dele, Oriane soube que havia por fim conseguido surpreendê-lo. — Como sua mulher.

A senhora já tem marido — disse Evreux, olhando por cima da cabe­ça dela para François, em busca de confirmação. — O escriba de Trencavel,ouvi dizer. Não é isso?

Oriane continuou a encará-lo.

Lamento informar que meu marido foi morto. Foi abatido dentro do castelo enquanto cumpria seu dever.

Meus pêsames. — Evreux apertou os dedos compridos e finos uns contra os outros, formando um abrigo com as mãos. — O cerco ainda pode durar anos. O que lhe dá tanta certeza de que eu voltarei para o norte?

Eu acredito, meu senhor Evreux, que a sua presença aqui tem um único propósito — disse ela, escolhendo as palavras com cuidado. — Se, com a minha ajuda, conseguir concluir rapidamente o que veio fazer aqui no sul, não vejo motivo para que o senhor queira ficar além de seus quarenta dias. Evreux deu um sorriso contraído.

— A senhora não confia no poder de persuasão de seu senhor Trencavel?

— Com todo o respeito devido àqueles sob a bandeira de quem está combatendo, meu senhor, não acredito que a intenção do reverendo abade seja concluir este conflito por meio da diplomacia.

Evreux continuou a encará-la. Oriane prendeu a respiração.

— Sabe jogar com as cartas que tem, senhora Oriane — disse ele por fim.Ela inclinou a cabeça, mas não disse nada. Ele se levantou e aproximou-se dela.

— Aceito a sua proposta — disse ele, estendendo- lhe um copo.Dessa vez, ela aceitou.

— Mais uma coisa, meu senhor — disse ela. — No grupo do viscondeTrencavel há um chevalier, Guilhem du Mas. Ele é marido da minha irmã.Seria aconselhável, se estiver ao seu alcance, tomar providências para conter a influência dele.

— De forma permanente?Oriane fez que não com a cabeça.

— Pode ser que ele ainda tenha um papel a desempenhar em nossos planos. Mas seria aconselhável limitar sua influência. O visconde Trencavel o favorece, e, sem meu pai aqui...

Evreux aquiesceu e despachou François.

— Agora, minha senhora Oriane — disse ele assim que ficaram a sós. —Chega de delongas. Diga-me o que tem a oferecer.


 

— Alaïs! Alaïs! Acorde!

Alguém sacudia seus ombros. Aquilo estava errado. Ela estava sentada na margem do rio, sob a luz pacífica e filtrada pelas folhas de sua clareira particu­lar. Podia sentir a água fresca escorrendo entre os dedos, fria e amena, e o toque suave do sol acariciando sua face. Podia sentir o gosto do vinho encor­pado de Corbières na língua, e suas narinas estavam tomadas pelo forte aroma do pão branco recém-saído do forno que ela levava à boca.

Ao seu lado, Guilhem dormia deitado na grama.

O mundo era tão verde, o céu tão azul.

Ela acordou com um pulo, e viu que ainda se encontrava na semi-escuridão úmida do túnel. Sajhë estava em pé ao seu lado.

— Precisa acordar, dama.

Alaïs sentou-se desajeitadamente.

O que houve? Esclarmonde está bem?

O visconde Trencavel foi capturado.

Capturado — disse ela, embasbacada. — Capturado onde? Por quem?

Estão dizendo que foi traição. As pessoas estão dizendo que os france­ses o atraíram até seu acampamento, e depois o pegaram à força. Outros di­zem que ele se sacrificou para salvar a Ciutat. E...

Sajhë se interrompeu. Mesmo à meia-luz, Alaïs percebeu que ele estava corando.

O que foi?

Estão dizendo que dama Oriane e o chevalier du Mas faziam parte do grupo do visconde. — Ele hesitou. — Eles também não voltaram.

Alaïs pôs-se de pé. Olhou de relance para Esclarmonde, que dormia tran­qüilamente.

— Ela está descansando. Vai ficar bem sozinha por algum tempo. Ve­nha. Precisamos descobrir o que está acontecendo.

Correram depressa pelo túnel e subiram a escada de corda. Alaïs abriu o alçapão e suspendeu Sajhë depois de subir ela própria.


Do lado de fora, as ruas estavam abarrotadas, cheias de pessoas atônitas correndo sem rumo de um lado para o outro.

Pode me dizer o que está acontecendo? — gritou ela para um homem que passava correndo. Ele fez que não com a cabeça e continuou a correr.Sajhë pegou-a pela mão e a arrastou até uma casinha do outro lado da rua.

Gaston saberá.

Alaïs o seguiu para dentro da casa. Gaston e o irmão, Pons, se levanta­ram quando ela entrou.

— Dama.

— É verdade que o visconde foi capturado?Gaston assentiu.

Ontem de manhã, o conde de Auxerre foi propor um encontro entre o visconde Trencavel e o conde de Nevers, na presença do abade. Ele foi comum grupo pequeno, do qual fazia parte a sua irmã. Ninguém sabe o que acon­teceu depois disso, dama Alaïs. Ou nosso senhor Trencavel se rendeu de von­tade própria para conseguir nossa liberdade, ou então foi enganado.

Ninguém voltou — acrescentou Pons.

De toda forma, não haverá luta — disse Gaston em voz baixa. — A guarnição se rendeu. Os franceses já ocuparam os principais portões e torres.

O quê! — exclamou Alaïs, olhando incrédula do rosto de um para o outro. — Quais são os termos da rendição?

Que todos os cidadãos, cátaros, judeus e católicos, terão permissão para deixar Carcassona sem temer por suas vidas, sem levar nada a não ser a roupa do corpo.

Não haverá interrogatórios? Nem fogueiras?

— Parece que não. A população inteira será exilada, mas não será ferida.Alaïs deixou-se desabar sobre uma cadeira antes de suas pernas perderem a força.

— E dama Agnès?

— Ela e o jovem príncipe ganharão um salvo-conduto e ficarão sob a custódia do conde de Foix, contanto que ela renuncie a qualquer exigência em nome do filho. — Gaston pigarreou. — Sinto muito pela perda de seu marido e de sua irmã, dama.

Alguém sabe o que foi feito de nossos homens?Pons sacudiu a cabeça.

Você acha que é um truque? — perguntou ela, impetuosa.

Não há como saber, dama. Só quando o êxodo começar é que vere­mos se os franceses vão cumprir sua palavra.

Todos devem sair por um só portão, a Porte d'Aude, a oeste da Cité,quando os sinos soarem no crepúsculo.

Então está terminado — disse ela, quase num sussurro. —A Ciutat se rendeu.

Pelo menos meu pai não viveu para ver o visconde nas mãos dos franceses.

— Esclarmonde está cada dia melhor, mas ainda está fraca. Posso abusar mais um pouco de vocês e lhes pedir que a acompanhem na saída da Ciutat?

— Ela fez uma pausa. — Por motivos que não me atrevo a compartilhar, para o bem de vocês assim como para o de Esclarmonde, seria mais sensato se saíssemos separadamente.

Gaston assentiu.

— A senhora teme que as mesmas pessoas que a machucaram dessa for­ma brutal ainda estejam procurando por ela?

Alaïs olhou para ele, surpresa.

Bem, sim — admitiu.

Será uma honra ajudá-la, dama Alaïs. — Ele ficou muito vermelho.

— Seu pai... Ele era um homem justo.

Ela aquiesceu.

— Era sim.

A medida que os últimos raios do poente pintavam os muros externos do Château Comtal de uma viva cor laranja, o pátio, as passarelas e o Grande Salão estavam silenciosos. Tudo estava abandonado, vazio.

Na Porte d'Aude, uma multidão de pessoas assustadas e atônitas se aglo­merava, tentando desesperadamente continuar a ver seus parentes e desviando os olhos dos rostos desdenhosos dos soldados franceses, que olhavam para eles como se não os considerassem humanos. Suas mãos seguravam os cabos das espadas, como se esperassem apenas um pretexto.

Alaïs esperava que seu disfarce fosse bom o suficiente. Avançou arrastan­do os pés, sem conseguir andar direito, calçada com botas masculinas grandes demais para ela, tentando se manter próxima do homem à sua frente. Havia amarrado o peito para esconder as curvas de seu corpo, e os livros e pergami­nhos. Vestindo calças, camisa e um chapéu de palha dos mais comuns, ela se parecia com qualquer outro rapaz. Carregava seixos na boca para modificar o formato de seu rosto, e havia cortado os cabelos e os sujado de lama para escurecê-los.

A fila andou. Alaïs mantinha a cabeça baixa, com medo de cruzar olhares com qualquer pessoa que pudesse reconhecê-la e denunciá-la. Quanto mais se aproximavam do portão, mais a fila se reduzia a uma fila indiana. Havia qua­tro cruzados guardando a saída, as expressões toscas e ressentidas. Eles para­vam as pessoas, forçando-as a despirem as roupas para provar que não levavam nada por baixo.


Alaïs pôde ver que os guardas haviam parado a liteira de Esclarmonde. Segurando um lenço sobre a boca, Gaston explicava que sua mãe estava muito doente. O guarda afastou a cortina e recuou imediatamente. Alaïs escondeu um sorriso. Ela havia costurado carne podre dentro de uma bexiga de porco e amarrado os pés de Esclarmonde com ataduras manchadas e ensangüentadas.

O guarda os mandou passar.

Sajhë vinha várias famílias atrás, viajando na companhia de sénher e na Couza e seus seis filhos, que tinham a mesma compleição que a sua. Alaïs também havia enchido seus cabelos de sujeira para escurecê-los. A única coisa que não conseguira disfarçar haviam sido seus olhos, então ele tinha instruções expressas para não erguê-los a não ser em caso de necessidade.

A fila andou mais um pouco. Chegou a minha vez. Eles haviam combina­do que ela fingiria não entender se alguém falasse com ela.

— Toi! Paysan. Qu´est-ce que tu portes lá?

Ela manteve a cabeça baixa, resistindo à tentação de tocar as amarras que lhe envolviam o corpo.

— Eh, toi.

A lança varou o ar e Alaïs se preparou para um golpe que nunca veio. Em vez disso, a menina à sua frente foi derrubada. Ela rastejou no chão para pegar seu chapéu. Ergueu o rosto assustado para seu acusador.

Canhòt.

O que ela está dizendo? — resmungou o guarda. — Não entendo uma palavra do que eles dizem.

Chien. Ela está com um cachorrinho.

Antes de qualquer um deles perceber o que estava acontecendo, o solda­do arrancou o cachorro dos braços da menina e o transpassou com a espada. O sangue jorrou sobre a frente do vestido dela.

— Allez! Vite.

A menina estava chocada demais para se mexer. Alaïs a ajudou a se levan­tar e instou-a a continuar andando, empurrando-a portão afora, resistindo ao impulso de se virar para trás e ver como estava Sajhë. Em pouco tempo, estava do outro lado do portão.

Agora posso vê-los.

Na colina que se erguia acima do portão estavam os barões franceses. Não os líderes, que Alaïs supunha estivessem esperando a evacuação terminar antes de entrar em Carcassonne, mas cavaleiros vestindo as cores da Borgonha, de Nevers e de Chartres.

No final da fila, mais perto da trilha, um homem alto e magro estava montado em um corpulento garanhão cinza. Apesar do longo verão meridio­nal, ainda tinha a pele branca como leite. Ao seu lado estava François. Ao lado deste, Alaïs distinguiu o conhecido vestido vermelho de Oriane.


Mas não viu Guilhem.

Continue andando, mantenha os olhos colados no chão.

Estava tão perto agora que podia sentir o cheiro dos arreios e das bridas dos cavalos. Os olhos de Oriane pareciam furar-lhe a pele.

Um homem velho, com olhos tristes e cheios de dor, a tocou no braço. Precisava de ajuda para descer a encosta íngreme. Alaïs permitiu que ele se apoiasse em seu ombro. Foi a sorte de que precisava. Parecendo aos olhos do mundo inteiro um neto acompanhado do avô, ela passou bem debaixo dos olhos de Oriane sem ser reconhecida.

O caminho parecia não ter fim. Finalmente, chegaram à área sombreada no pé da encosta onde o terreno ficava plano e começavam as florestas e pân­tanos. Alaïs viu seu companheiro tornar a se reunir ao filho e à nora, depois separou-se do grupo maior e esgueirou-se por entre as árvores.

Assim que saiu do campo de visão dos nobres, Alaïs cuspiu as pedras da boca. O interior de suas bochechas estava esfolado e seco. Ela esfregou a mandíbula, tentando diminuir o desconforto. Tirou o chapéu e correu os dedos pelos cabelos cortados rentes. Pareciam palha úmida, espetando e pinicando sua nuca.

Um grito no portão chamou sua atenção.

Não, por favor. Ele não.

Um soldado segurava Sajhë pelo colarinho. Ela podia vê-lo chutando, tentando se soltar. Segurava alguma coisa na mão. Uma pequena caixa.

O coração de Alaïs despencou do peito. Ela não podia correr o risco de tornar a subir, então estava impotente para fazer o que quer que fosse. Na Couza discutia com o soldado, que lhe deu um tapa na cabeça, derrubando-a no chão. Sajhë aproveitou a deixa. Desvencilhou-se dos braços do homem e desceu a encosta às carreiras. Sénher Couza ajudou a mulher a se levantar.

Alaïs prendeu a respiração. Por um instante, pareceu-lhe que tudo iria ficar bem. O soldado havia perdido o interesse. Mas então Alaïs ouviu uma mulher gritar. Aos berros, Oriane apontava para Sajhë, ordenando aos guar­das para detê-lo.

Ela o reconheceu.

Sajhë podia não ser Alaïs, mas era o mais perto que Oriane podia chegar.

Houve uma explosão imediata de atividade. Dois dos guardas despenca­ram encosta abaixo atrás de Sajhë, mas ele corria depressa, tinha a pisada firme e segura. Atrapalhados com o peso das armas e armaduras, os soldados não eram páreo para um menino de 11 anos. Em silêncio, Alaïs torcia por ele, vendo-o correr para lá e para cá, pulando e saltando por cima dos trechos irregulares do terreno, até alcançar o abrigo das árvores.


Percebendo que estava prestes a perdê-lo, Oriane mandou François atrás do menino. Seu cavalo desceu o caminho desabalado, escorregando e desli­zando na terra íngreme e ressecada, mas cobriu a distância depressa. Sajhë atirou-se entre a vegetação baixa, com François logo atrás.

Alaïs percebeu que Sajhë estava rumando para o terreno pantanoso onde o Aude se desdobrava em diversos afluentes. O chão era verde e parecia uma campina no verão, mas por baixo era mortal. Os habitantes evitavam aquela parte do terreno.

Alaïs subiu em uma árvore para ver melhor. Ou François não estava percebendo para onde Sajhë estava indo, ou então não ligou, porque esporeou o cavalo sem dó. Ele o está alcançando. Sajhë tropeçou e quase perdeu o equi­líbrio, mas conseguiu continuar correndo, ziguezagueando pelo mato, atra­vessando arbustos de mirtilo e cardo.

De repente, François soltou um uivo de raiva, que se transformou imedia­tamente em alarme. A lama movediça havia engolido as patas traseiras de seu cavalo. O animal aterrorizado relinchava, debatendo-se. Todas suas tentativas desesperadas só faziam acelerar seu mergulho na lama traiçoeira.

François jogou-se para fora da sela e tentou nadar até a borda do pântano, mas seu corpo foi afundando cada vez mais, tragado pela lama, até somente as pontas de seus dedos ficarem visíveis.

Então veio o silêncio. Alaïs teve a impressão de que até mesmo os pás­saros haviam parado de cantar. Temendo por Sajhë, desceu da árvore no exato instante em que ele reaparecia. Tinha o rosto branco como cera, seu lábio superior tremia de tanto esforço, e ele ainda estava agarrado à caixa de madeira.

Eu o levei para a areia movediça — disse ele.Alaïs pousou a mão sobre o ombro dele.

Eu vi. Você foi esperto.

Ele também era um traidor?Alaïs assentiu.

Acho que era isso que Esclarmonde estava tentando nos dizer. —Alaïs contraiu os lábios, satisfeita por seu pai não ter vivido para saber que fora François quem o traíra. Obrigou-se a não pensar naquilo. — Mas o que você estava pensando, Sajhë? Por que diabo estava carregando esta caixa? Ela quase causou a sua morte.

Menina me disse para guardá-la.

Sajhë esticou os dedos pela parte de baixo da caixa até conseguir apertar os dois lados ao mesmo tempo. Ouviu-se um clique distinto, e então ele girou a base para revelar uma gaveta chata e escondida. Enfiou a mão lá dentro e tirou um pedaço de pano.

— É um mapa. Menina disse que iríamos precisar.Alaïs entendeu imediatamente.

— Ela não vem conosco — disse, pesarosa, lutando contra as lágrimas que lhe subiam aos olhos.

Sajhë sacudiu a cabeça, fazendo que não.

Mas por que ela não me disse? — perguntou Alaïs, com a voz trêmu­la. — Ela não confiava em mim?

Você não teria deixado ela ir.

Alaïs deixou a cabeça cair para trás, apoiada na árvore. A magnitude de sua tarefa era demais para ela. Sem Esclarmonde, não sabia como encontraria forças para fazer o que tinha de fazer.

Como se pudesse ler seus pensamentos, Sajhë disse:

— Eu cuido de você. E não vai ser por muito tempo. Depois que entre­garmos o Livro das Palavras para Harif, voltaremos para encontrá-la. Si es a tal es a tal — O que tiver de ser, será.

— Quem dera fossemos todos tão sábios quanto você.Sajhë ficou vermelho.

— É para cá que temos de ir — disse, apontando para o mapa. — O lugar não aparece em nenhum mapa, mas Menina chama a aldeia de Los Seres.

E claro. Aquele não era apenas o nome dos guardiães, mas também de um lugar.

Está vendo? — disse ele. — Nos Montes Sabarthès.Alaïs aquiesceu.

Sim, sim — disse ela. — Acho que estou vendo, enfim.

 


                                                                 A Volta às Montanhas

 

                       Montes Sabarthès

                       Sexta-feira, 8 de julho de 2005

Audric Baillard estava sentado diante da mesa de madeira escura e muito ence­rada de sua casa, à sombra da montanha.

O teto do aposento principal era baixo, e o chão revestido de grandes quadrados de cerâmica da cor da terra vermelha da montanha. Ele havia feito poucas mudanças. Ali, tão longe da civilização, não havia eletricidade, água corrente, carros ou telefones. O único ruído era o tique-taque do relógio mar­cando as horas.

Sobre a mesa havia uma lamparina a óleo, agora apagada. Ao seu lado, um copo de vidro, cheio quase até a borda de guignolet, espalhava pelo cômo­do um cheiro sutil de álcool e cerejas. Na outra ponta da mesa havia uma bandeja de cobre com dois copos e uma garrafa de vinho tinto, fechada, assim como uma pequena travessa de madeira de biscoitos salgados coberta com um pano de linho branco.

Baillard havia aberto as persianas para poder ver o pôr do sol. Na prima­vera, as árvores nos arredores do vilarejo ficavam salpicadas de botões fecha­dos, prateados e brancos, e flores amarelas e cor-de-rosa espiavam tímidas das sebes e encostas. Mas, naquela época do ano, a cor que restava já era pouca; eram somente o cinza e o verde da montanha, em cuja presença eterna ele havia vivido por tanto tempo.

Uma cortina separava o canto onde ele dormia do aposento principal. Toda a parede dos fundos estava coberta por prateleiras estreitas, agora qua­se vazias. Um velho pilão, algumas vasilhas e conchas, alguns jarros. Livros também: os que ele havia escrito, assim como as grandes vozes da história cátara — Delteil, Duvernoy, Nelli, Marti, Brenon, Rouquette. Obras de filosofia disputavam espaço com traduções de antigos textos judaicos e monografias de autores antigos e modernos. As fileiras de livros de capa mole, incongruentes naquele contexto, enchiam o espaço antes ocupado por remédios, poções e ervas.


Ele estava preparado para esperar.

Baillard levou o copo aos lábios e sorveu um grande gole.

E se ela não viesse? E se ele nunca ficasse sabendo o segredo daquelas últimas horas?

Ele suspirou. Se ela não viesse, então ele seria forçado a dar sozinho os últimos passos de sua longa jornada. Como sempre tivera medo de precisar fazer.


 

Quando a aurora rompeu, Alice estava a alguns quilômetros de Toulouse. Encostou em um posto de gasolina e bebeu duas xícaras de café quente e doce, para acalmar os nervos.

Tornou a reler a carta. Postada em Foix na manhã de quarta-feira. Uma carta de Audric Baillard com instruções detalhadas para chegar à sua casa. Ela sabia que era verdadeira. Reconhecia a caligrafia preta e miúda.

Sentia que não tinha outra escolha senão ir.

Alice desdobrou o mapa em cima do balcão, tentando descobrir exata­mente onde estava indo. O hameau onde Baillard morava não aparecia no mapa, embora ele houvesse mencionado pontos de referência e nomes de cidades próximas em número suficiente para ela conseguir localizar a área mais ampla.

Ele estava certo, escrevia, que Alice reconheceria o lugar quando o visse.

No aeroporto, Alice trocou o carro alugado por outro, de cor e marca diferen­tes, precaução que percebeu que deveria ter tomado mais cedo, caso estives­sem à sua procura, e em seguida continuou a viagem para o sul.

Passou por Foix na direção de Andorra, depois atravessou Tarascon an­tes de começar a seguir as indicações de Baillard. Saiu da estrada principal em Luzenac e atravessou Lordat e Bestiac. A paisagem mudou. Lembrava a Alice as encostas dos Alpes. Pequenas flores de montanha, grama alta, casas como chalés suíços.

Ela passou por uma grande pedreira, que parecia uma enorme cicatriz branca encravada no flanco da montanha. Imensos postes de eletricidade e os cabos pretos e grossos das estações de esqui dominavam o horizonte, em con­traste com o céu azul de verão.

Alice cruzou o rio Lauze. Foi forçada a passar a segunda marcha à medi­da que a estrada ia ficando mais íngreme e as curvas, mais fechadas. Estava começando a ficar enjoada por causa das curvas constantes, quando subita­mente chegou a uma pequena aldeia.


Havia duas lojas e um café com algumas mesas e cadeiras espalhadas pela calçada. Após decidir que seria bom confirmar se estava indo na direção certa, Alice entrou no café. O ar lá dentro estava espesso de fumaça, e homens de costas curvas, com um ar obstinado, os rostos maltratados pelo tempo e ves­tindo macacões azuis ocupavam todo o balcão.

Alice pediu um café e desdobrou o mapa sobre o balcão ostensivamente. A reticência para com forasteiros, especialmente os do sexo feminino, fez com que ninguém lhe dirigisse a palavra por algum tempo, mas ela finalmente conseguiu entabular uma conversa. Ninguém nunca tinha ouvido falar em Los Seres, mas eles conheciam a região e ajudaram como podiam.

Ela continuou a subir, localizando-se aos poucos. A estrada virou um caminho de terra batida, e por fim desapareceu de todo. Alice estacionou e saiu do carro. Só agora, em meio à paisagem familiar, com as narinas cheias dos cheiros da montanha, foi que ela percebeu que na verdade dera uma gran­de volta e estava, de fato, do outro lado do Pic de Soularac.

Alice subiu até o ponto mais alto e protegeu os olhos. Identificou o étang de Tort, uma lagoa com formato bem característico que os homens no bar haviam citado como ponto de referência. Perto dali havia outro lago conheci­do pelos habitantes da região como Lago do Diabo.

Finalmente, ela tomou a direção do Pic de Saint-Barthélemy, que ficava entre o Pic de Soularac e Montségur.

Bem à sua frente, uma trilha única serpenteava colina acima em meio ao mato verde, à terra marrom e aos arbustos amarelo vivos. As folhas verde-escuras dos arbustos eram cheirosas e pontiagudas. Ela tocou as folhas e pôde sentir o orvalho entre os dedos.

Alice subiu por dez minutos. Então o caminho se abriu em uma clareira, e ela chegou.

À sua frente erguia-se uma casa de um andar só, cercada de ruínas, a pedra cinza camuflada em relação à montanha mais atrás. Na porta da casa havia um homem em pé, muito magro e muito velho, com os cabelos inteiramente brancos, usando o terno claro que ela se lembrava de ter visto na fotografia.

Alice sentiu que suas pernas caminhavam sozinhas. Quando ela deu os últimos passos em direção a ele, o chão tornou-se plano. Baillard a encarava em silêncio e completamente imóvel. Não sorriu nem ergueu a mão para cumprimentá-la. Mesmo quando ela chegou perto, ele não disse nada nem se mexeu. Seus olhos não se desgrudavam do rosto dela. Tinham uma cor muito surpreendente.

Cor de âmbar misturada com flores de outono.

Alice parou na sua frente. Por fim, ele sorriu. Seu sorriso era como o sol surgindo de trás das nuvens, transformando os vincos e rugas de seu rosto.


— Madomaisèla Tanner — disse ele. Sua voz soava grave e velha, como o vento no deserto. — Benvenguda. Eu sabia que viria. — Ele recuou para deixá-la entrar. — Faça o favor.

Nervosa, pouco à vontade, Alice se abaixou para passar pela porta e en­trou no aposento, ainda sob o efeito da intensidade do olhar dele. Era como se ele estivesse tentando memorizar cada um de seus traços.

— Monsieur Baillard — disse ela, depois se calou.

Não conseguia pensar em nada para dizer. A alegria dele, seu arrebata-mento ao vê-la chegar, misturado à sua certeza de que ela viria, tornavam impossível uma conversa normal.

— Você se parece com ela — disse ele vagarosamente. — O seu rosto tem muito dela.

— Eu só vi fotografias, mas também achei.Ele sorriu.

— Eu não estava falando de Grace — disse baixinho, depois se virou para o outro lado, como se houvesse falado demais. — Por favor, sente-se.

Alice deu uma espiada pela sala, reparando na falta de comodidades modernas. Não havia eletricidade, nem calefação, nem nenhum aparelho ele­trônico. Ela se perguntou se haveria uma cozinha.

— Monsieur Baillard — recomeçou ela. — É um prazer conhecer o senhor. Eu estava pensando... como soube onde me encontrar?

Ele tornou a sorrir.

— Isso tem importância?

Alice pensou no assunto, e percebeu que não.

— Madomaisèla Tanner, eu sei o que aconteceu no Pic de Soularac.Antes de irmos adiante, preciso fazer uma pergunta. Você encontrou um livro?

Mais do que tudo, Alice queria responder que sim.

Sinto muito — respondeu ela, negando com a cabeça. — Ele tam­bém me perguntou sobre isso, mas eu não vi livro nenhum.

Ele?

Ela franziu o cenho.

— Um homem chamado Paul Authié.Baillard assentiu com a cabeça.

Ah, sim — disse ele, de tal maneira que Alice sentiu que não precisava explicar.

Mas você encontrou isto, acho?

Ele levantou a mão esquerda e a pousou sobre a mesa, como uma moça exibindo um anel de noivado, e ela viu, para sua admiração, que ele usava o anel de pedra. Alice sorriu. Aquele objeto era tão familiar, muito embora ela só o tivesse segurado por alguns segundos.


Ela engoliu em seco.

— Posso?

Baillard retirou o anel do polegar. Alice o pegou e girou entre os dedos, novamente desconcertada com a intensidade do olhar dele.

— Este anel é do senhor? — ela ouviu a própria voz perguntar, embora tivesse medo de que ele dissesse sim e de tudo que isso poderia significar.

Ele fez uma pausa.

Não — disse, por fim —, mas eu já tive um anel assim.

Então de quem era este anel?

Você não sabe?

Por uma fração de segundo, Alice pensou que sabia. Então a centelha de compreensão desapareceu, e sua mente turvou-se outra vez.

— Não tenho certeza — disse ela, hesitante, sacudindo a cabeça —, mas acho que falta isso. — Ela tirou do bolso o disco do labirinto. — Estava junto com a árvore genealógica na casa da minha tia. — Ela lhe entregou o objeto.— Foi o senhor quem mandou isto para ela?

Baillard não respondeu.

A Grace era uma mulher encantadora, bem-educada e inteligente.Durante nossa primeira conversa, descobrimos que tínhamos vários interesses em comum, várias experiências em comum.

Para que serve isto? — perguntou ela, recusando-se a se deixar distrair.

— Isto é um merel. Já houve muitos iguais a ele. Agora só sobrou este.Ela ficou olhando assombrada enquanto Baillard inseria o disco no bu­raco no corpo do anel.

Aqui. Pronto. — Ele sorriu e tornou a pôr o anel no polegar.

E decorativo, ou tem alguma utilidade?

Ele sorriu, como se ela houvesse passado em algum tipo de teste.

E a chave necessária — disse, baixinho.

Necessária para quê?

Mais uma vez Baillard não respondeu.

— A Alaïs visita você durante o sono às vezes, não é?

Ela foi surpreendida pela súbita mudança de assunto. Não soube como reagir.

— Nós carregamos o passado dentro de nós, em nossos ossos, em nosso sangue — disse ele. — Alaïs a acompanhou durante toda a sua vida, protegen­do você. Vocês têm muitas qualidades em comum. Alaïs tinha grande cora­gem, uma determinação tranqüila, assim como você. Era fiel e devotada, como suspeito que você também seja. — Ele parou e tornou a sorrir para ela. — Ela também tinha sonhos. Sobre os primeiros dias, o começo. Foram esses sonhos que revelaram a ela o seu destino, mesmo que ela relutasse em aceitar isso, assim como os seus sonhos agora iluminam o seu caminho.

Alice sentiu que as palavras a alcançavam vindas de muito longe, como se nada tivessem a ver com ela, com Baillard nem com qualquer outra pessoa, mas sempre houvessem existido no tempo e no espaço.

Os meus sonhos sempre foram sobre ela — disse Alice, sem saber onde suas palavras a estavam levando. — Sobre o incêndio, a montanha, o livro. Esta montanha? — Ele aquiesceu. — Tenho a sensação de que ela está tentando me dizer alguma coisa. O rosto dela ficou mais claro nestes últimos dias, mas ainda não consigo ouvir ela falar. — Ela hesitou. — Não entendo o que ela quer de mim.

Ou o que você quer dela, talvez — disse ele, casual. Baillard serviu ovinho e estendeu um copo para Alice.

Apesar de ainda ser cedo, ela tomou vários goles, sentindo o líquido aquecê-la ao descer por sua garganta.

— Monsieur Baillard, eu preciso saber o que aconteceu com a Alaïs. En­quanto não souber isso, nada vai fazer sentido. O senhor sabe, não é?

Uma expressão de infinita tristeza se apoderou dele.

— Ela sobreviveu — disse ela devagar, temendo ouvir a resposta. —Depois de Carcassonne... eles não... ela não foi capturada?

Ele pousou as mãos abertas sobre a mesa. Magras, cobertas de manchas marrons em virtude da idade, Alice pensou que pareciam as garras de um pássaro.

— Alaïs não morreu antes da hora — disse ele, cauteloso.

— Isso não explica... — ela começou a dizer.Baillard ergueu a mão.

— No Pic de Soularac, foram acionados determinados acontecimentos que vão dar a você, vão dar a nós, as respostas que procuramos. Somente enten­dendo o presente é que a verdade do passado será conhecida. Você está procu­rando a sua amiga, oc?

Alice foi mais uma vez surpreendida pela forma como Baillard passava de um assunto para o outro.

Como o senhor sabe sobre a Shelagh? — perguntou ela.

Eu sei sobre a escavação e sobre o que aconteceu lá. Agora a sua amiga desapareceu. Você está tentando encontrá-la.

Depois de decidir que não adiantava tentar entender como ou o quê ele sabia, Alice respondeu.

— Ela foi embora da escavação alguns dias atrás. Não foi vista por nin­guém desde então. Eu sei que o desaparecimento dela está ligado à descoberta do labirinto. — Ela hesitou. — Na verdade, acho que sei quem pode estar por trás disso tudo. No início, eu achava que a Shelagh pudesse ter roubado o anel.


Baillard negou com a cabeça.

— Yves Biau pegou o anel e mandou para a avó, Jeanne Giraud.

Os olhos de Alice se arregalaram enquanto outra peça do quebra-cabeça se encaixava no lugar.

— O Yves e a sua amiga trabalhavam para uma mulher chamada madame de l´Oradore. — Ele fez uma pausa. — Felizmente, o Yves reconsiderou essa aliança. Talvez a sua amiga tenha feito a mesma coisa.

Alice assentiu.

O Biau me deu um número de telefone. Então descobri que Shelagh tinha ligado para o mesmo número. Encontrei o endereço e, quando ninguém atendeu o telefone, resolvi ver se ela estava lá. Na verdade era o telefone da casada família de l´Oradore. Em Chartres.

Você foi a Chartres? — perguntou Baillard, com os olhos brilhando.

— Conte. Conte. O que você viu?

Ele escutou em silêncio até Alice terminar de lhe contar sobre tudo que tinha visto e escutado.

— Mas esse rapaz, Will, ele não lhe mostrou a câmara?Alice sacudiu a cabeça, negando.

Depois de algum tempo, comecei a pensar que talvez a câmara nem exista de verdade.

Existe, sim — disse ele.

Eu deixei minha mochila lá. Todas as minhas anotações sobre o labi­rinto estavam guardadas nela, a fotografia do senhor com a minha tia. Desse jeito, ela vai chegar direto a mim. — Ela fez uma pausa. — Foi por isso que o Will voltou para pegar a mochila para mim.

E agora você está com medo de ter acontecido alguma coisa com ele também?

Para dizer a verdade, não tenho certeza. Passo a metade do tempo preocupada com ele. Na outra metade, acho que ele provavelmente também está metido na história.

Por que você achou que poderia confiar nele quando se conheceram?

— Alice ergueu os olhos, alertada pela mudança no tom da voz de Baillard.Sua expressão normalmente bonachona e gentil havia sumido. — Você sente que deve alguma coisa a ele?

Que devo alguma coisa? — repetiu Alice, surpresa com a escolha de palavras dele. — Não, isso não. Eu mal o conheço. Mas acho que gostei dele.Me senti à vontade com ele. Senti...

Qué? — O quê?

Foi mais o contrário. Parece loucura, mas era como se ele sentisse que devia alguma coisa a mim. Como se estivesse me compensando por alguma coisa.


Sem aviso, Baillard empurrou a cadeira para trás e andou até a janela. Estava obviamente perturbado.

Alice esperou, sem entender o que estava acontecendo. Finalmente, ele se virou de frente para ela.

— Vou contar a você a história de Alaïs — disse ele. — E, conhecendo essa história, talvez encontremos coragem para enfrentar o que vem pela fren­te. Mas saiba o seguinte, madomaisèla Tanner. Depois de escutar essa história,você não terá outra escolha a não ser seguir o caminho até o final.

Alice franziu o cenho.

Isso parece um aviso.

Não — disse ele depressa. — Longe disso. Mas não podemos deixar de pensar na sua amiga. Pelo que você escutou, podemos supor que a integri­dade dela está garantida pelo menos até hoje à noite.

Mas eu não sei onde o encontro vai acontecer — disse ela. — O François-Baptiste não disse. Só disse que seria amanhã às nove e meia da noite.

Eu posso adivinhar onde vai ser — disse Baillard, calmo. — Quando a noite cair, nós vamos estar lá, esperando por eles. — Ele olhou para o sol que nascia através da janela aberta. — Então temos algum tempo para conversar.

Mas e se o senhor estiver errado?Baillard deu de ombros.

Precisamos torcer para que eu não esteja.Alice ficou calada por alguns instantes.

— Eu só quero saber a verdade — disse ela, espantada ao ver como sua voz estava firme.

Baillard sorriu.

— Ieu tanben — disse ele. Eu também.


 

Will teve consciência de ser arrastado para baixo pelos degraus de uma escada estreita até o porão, depois por um corredor de concreto e através de duas portas. Sua cabeça pendia para a frente. O cheiro de incenso não estava tão forte, embora ainda pairasse, como uma lembrança, na obscuridade silenciosa do subterrâneo.

Primeiro, Will pensou que o estivessem conduzindo para a câmara, e que iam matá-lo. Lembrou-se em um clarão do bloco de pedra ao pé da tumba, do sangue no chão. Mas então sentiu que o jogavam por cima de um degrau. Sentiu no rosto o ar fresco do início da manhã e percebeu que estava do lado de fora, em alguma espécie de beco que passava atrás da rue du Cheval Blanc. No ar havia os cheiros matutinos de grãos de café torrados e dejetos, e os barulhos do caminhão de lixo não muito longe dali. Will percebeu que fora assim que eles provavelmente haviam tirado o corpo de Tavernier da casa e levado até o rio.

Um espasmo de medo varou-lhe o corpo, e ele se debateu um pouco, o suficiente para perceber que seus braços e pernas estavam amarrados. Will ouviu o barulho do porta-malas de um carro sendo aberto. Foi meio erguido, meio jogado lá para dentro. Não era um porta-malas convencional. Ele estava no interior de algum tipo de caixa grande. Podia sentir um cheiro de plástico.

Quando rolou desajeitadamente o corpo para se deitar de lado, Will bateu com a cabeça nos fundos da caixa e sentiu a pele ao redor do ferimento se abrir. O sangue começou a escorrer por sua têmpora, irritando e fazendo arder o local. Ele não conseguia mexer as mãos para enxugá-lo.

Will agora se lembrava de estar em pé do lado de fora da porta do escri­tório. Depois, do impacto fulminante da dor quando François-Baptiste bateu com a coronha da arma em sua têmpora; dos próprios joelhos cedendo ao peso de seu corpo; da voz imperiosa de Marie-Cécile perguntando mais uma vez o que estava acontecendo.

A mão calosa de alguém agarrou seu braço. Will sentiu a manga da cami­sa sendo levantada, e depois a picada fina de uma agulha penetrando em sua pele. Como antes. Então ouviu o barulho de fechos sendo travados e de algum tipo de tampa, talvez um oleado, cobrindo sua prisão.

A droga se espalhava por suas veias, fria, agradável, anestesiando a dor. Era como uma névoa. Will alternava períodos conscientes com outros desa­cordado. Sentiu o carro ganhar velocidade. Começou a ficar enjoado de tanto sua cabeça rolar de um lado para o outro com as curvas. Pensou em Alice. Mais do que tudo, queria vê-la. Dizer-lhe que havia feito o melhor possível. Que não a havia abandonado.

Então começou a ter alucinações. Podia visualizar as águas agitadas e turvas do rio Eure a inundar-lhe a boca, o nariz e os pulmões. Will tentou manter o rosto de Alice visível na mente, seus olhos castanhos sérios, seu sor­riso. Se pudesse conservar consigo a imagem dela, talvez tudo ficasse bem.

Mas o medo de se afogar, de morrer naquele lugar estrangeiro que nada significava para ele, foi mais forte. Will foi tragado pela escuridão.

Em Carcassonne, Paul Authié estava em pé na varanda de seu apartamento, olhando para o rio Aude, com uma xícara de café preto na mão. Ele havia usado Shelagh O´Donnell como isca para chegar a François-Baptiste de l´Oradore, mas instintivamente rejeitava a idéia de arrumar um livro falso que ela entregaria ao rapaz. Ele perceberia que era um truque. Além disso, Authié queria que ele visse o estado dela, e soubesse que havia caído em uma cilada.

Authié pousou a xícara sobre a mesa e ajeitou as mangas da camisa bran­ca engomada para fora do paletó. A única alternativa era confrontar o próprio François-Baptiste — sozinho —, e dizer-lhe que levaria O´Donnell e o livro para Marie-Cécile no Pic de Soularac a tempo para a cerimônia.

Ele lamentava não ter encontrado o anel, embora ainda acreditasse que Giraud o havia entregue a Audric Baillard, e que Baillard iria ao Pic de Soularac por vontade própria. Authié não tinha dúvidas de que o velhote estava em algum lugar por perto, observando.

Alice Tanner era um problema mais complicado. O disco mencionado por O´Donnell dera-lhe o que pensar, mais ainda pelo fato de ele não compre­ender seu significado. Tanner estava se mostrando surpreendentemente hábil em manter-se fora do seu alcance. Conseguira fugir de Domingo e Braissart no cemitério. Haviam perdido o carro por várias horas na véspera e, quando por fim conseguiram captar o sinal, naquela mesma manhã, fora apenas para descobrir que ele estava estacionado na garagem da Hertz no aeroporto de Toulouse.

Authié fechou os dedos magros em volta do crucifixo. À meia-noite, tudo estaria terminado. Os textos hereges, e os hereges em si, teriam sido destruídos.


Ao longe, o sino da catedral começou a chamar os fiéis para a missa de sexta-feira. Authié olhou rapidamente para o relógio. Iria se confessar. Com seus pecados redimidos, em um estado de Graça, iria se ajoelhar no altar e receber a Santa Comunhão. Então estaria pronto, de corpo e alma, para cum­prir o desígnio de Deus.

Will sentiu o carro diminuir velocidade e, em seguida, sair da estrada e entrar em um caminho de terra batida.

O motorista dirigia com cuidado, esquivando-se para evitar buracos e depressões. Os dentes de Will chacoalhavam em seu crânio à medida que o carro pulava, sacudia e ia subindo a encosta aos trancos.

Por fim, pararam. O motor foi desligado.

Ele sentiu o carro balançar quando os dois homens desceram, depois ouviu o barulho das portas batendo como tiros de uma arma e o estalo do fechamento automático. Suas mãos estavam amarradas nas costas, não na frente, o que tornava tudo mais difícil, mas Will torceu os pulsos tentando afrouxar as cordas. Elas cederam bem pouco. Suas sensações começavam a voltar. A dor se estendia por toda uma faixa de seus ombros, por ter passado tanto tempo deitado de mau jeito.

De repente, o porta-malas foi aberto. Will se manteve completamente imóvel, o coração batendo com força, enquanto alguém soltava os fechos da caixa de plástico. Um dos homens o segurou pelas axilas, o outro por trás dos joelhos. Ele foi arrastado para fora do porta-malas e despejado no chão.

Mesmo drogado como estava, Will sentiu que estava a quilômetros da civilização. O sol estava fortíssimo, e havia no ar uma limpidez, um frescor que sugeria espaço e falta de ocupação humana. O silêncio era completo, a imobilidade, total. Não havia nenhum carro, ninguém. Will piscou os olhos. Tentou firmar o foco, mas o brilho era intenso demais. O ar estava exageradamente claro. O sol parecia estar queimando seus olhos, transfor­mando tudo em branco.

Sentiu novamente a picada da agulha hipodérmica no braço, e o conhe­cido abraço da droga em suas veias. Os homens o puseram de pé com violência e começaram a arrastá-lo encosta acima. O terreno era íngreme, e ele podia ouvir a respiração ofegante deles, e sentir o cheiro do suor que exalavam pelo esforço feito debaixo do sol.

Will escutou o esmigalhar de cascalho e pedras, depois pancadas de pas­sos ressoando na encosta entre seus pés que iam sendo arrastados, e por fim a maciez da grama.

Enquanto tornava a mergulhar na semiconsciência, percebeu que o assobio em seu crânio era o suspiro fantasmagórico do vento.


 

O comissário da Police Judiciaire do departamento de Haute-Pyrenées entrou na sala do inspetor Noubel em Foix e bateu a porta atrás de si.

É bom que isto seja importante, Noubel.

Obrigado por ter vindo, senhor. Eu não teria interrompido o seu almoço se achasse que o assunto podia esperar.

O comissário soltou um grunhido.

Você identificou os homens que mataram o Biau?

Cyrille Braissart e Javier Domingo — confirmou Noubel, acenando com um fax que havia chegado poucos minutos antes. — Os dois foram iden­tificados. Um logo antes do acidente em Foix na noite de segunda-feira, o outro imediatamente depois. O carro foi encontrado abandonado ontem na fronteira da Espanha com Andorra. — Noubel fez uma pausa para enxugar o suor do nariz e da testa. — Eles trabalham para o Paul Authié, senhor.

O comissário abaixou seu corpanzil sobre o canto da mesa.

Estou escutando.

O senhor está sabendo das alegações contra o Paul Authié? Que ele é membro da Noublesso Véritable!

O outro assentiu.

Eu falei com a polícia de Chartres hoje à tarde, seguindo a pista de Shelagh O´Donnell, e eles confirmaram que estão investigando a conexão en­tre essa organização e um assassinato que aconteceu no começo desta semana.

O que isso tem a ver com o Authié?

O corpo foi encontrado rápido graças a uma denúncia anônima.

Alguma prova de que foi o Authié?

Não — admitiu Noubel —, mas existem provas de que ele se encon­trou com uma jornalista, que também sumiu. A polícia de Chartres acha que as duas coisas estão ligadas.

Ao ver a expressão de ceticismo no rosto do chefe, Noubel começou a falar mais depressa.


— A escavação no Pic de Soularac era financiada por madame de l´Oradore. Está tudo muito bem escondido, mas é o dinheiro dela que está por trás. Brayling, o diretor da escavação, está insistindo na versão de que Shelagh O´Donnell desapareceu depois de ter roubado alguma coisa de lá. Mas não é isso que os amigos dela acham. — Ele fez uma pausa. — Eu tenho certeza de que o Authié está com ela, ou por ordens de madame de l´Oradore, ou então agindo por conta própria.

O ventilador da sala estava quebrado, e Noubel transpirava muito. Podia sentir rodelas de suor brotando em suas axilas.

Isso é bem pouca coisa, Noubel.

Madame de l´Oradore ficou de terça a quinta-feira em Carcassonne,senhor. Ela e o Authié se encontraram duas vezes. Acho que ela foi com ele ao Pic de Soularac.

Isso não é crime, Noubel.

Quando cheguei hoje de manhã, senhor, encontrei este recado me esperando — disse ele. — Foi aí que decidi que tínhamos indícios suficientes para pedir uma reunião ao senhor.

Noubel apertou o botão de play do correio de voz. A voz de Jeanne Giraud encheu a sala. O comissário escutou, com a expressão cada vez mais sombria.

Quem é essa? — perguntou, depois de Noubel repetir a mensagem outra vez.

Avó do Yves Biau.

E quem é Audric Baillard?

Escritor e amigo dela. Ele foi com ela ao hospital de Foix.

O comissário pôs as mãos nos quadris e abaixou a cabeça. Noubel podia ver que ele estava calculando o dano potencial caso fossem atrás de Authié e fracassassem.

E você tem cem por cento de certeza de que temos coisa suficiente ligando o Domingo e o Braissart ao Biau e ao Authié?

A descrição confere, senhor.

A descrição confere com metade da Ariège — rosnou ele.

Shelagh 0'Donnell está sumida há três dias, senhor.O comissário deu um suspiro e levantou-se da mesa.

O que você quer fazer, Noubel?

Prender o Braissart e o Domingo, senhor.O comissário aquiesceu.

— Também preciso de um mandado de busca. O Authié tem várias propriedades, inclusive uma fazenda abandonada nos Montes Sabarthès, registrada em nome da ex-mulher dele. Se a Dra. O´Donnell estiver presa aqui na região, provavelmente é lá que ela está.

O comissário sacudia a cabeça, fazendo que não.

— Talvez se o senhor desse um telefonema pessoal para o prefeito...Noubel esperou.

— Tudo bem, tudo bem. — O comissário apontou para Noubel um dedo manchado de nicotina. — Mas eu prometo uma coisa a você, Claude, se você fizer merda, eu não vou te apoiar. O Authié é um cara influente. E madame de l´Oradore... — Ele baixou os braços. — Se você não conseguir confirmar essas acusações, eles vão comer você vivo, e eu não vou poder fazer nada para impedir.

Ele se virou e andou até a porta. Logo antes de sair, parou.

Me lembre quem é esse Baillard? Eu conheço? O nome é vagamente familiar.

Ele escreve sobre os cátaros. Também é especialista no Egito Antigo.

— Não é isso...Noubel esperou.

Não, esqueci — disse o comissário. — Mas, até onde sabemos, madame Giraud pode estar fazendo uma tempestade era copo d´água.

Pode, sim, senhor, mas preciso dizer que não conseguimos localizar o Baillard. Ninguém o vê desde que ele saiu do hospital com madame Giraud na quarta à noite.

O comissário assentiu.

Eu ligo para você quando a papelada ficar pronta. Você vai estar aqui?

Na verdade, senhor, eu pensei que poderia tentar falar de novo com a tal inglesa — disse ele, cauteloso. — Ela é amiga da Shelagh O´Donnell. Tal­vez saiba alguma coisa.

Eu encontro você.

Assim que o comissário saiu, Noubel deu alguns telefonemas, depois agarrou a jaqueta e encaminhou-se para o carro. Pelos seus cálculos, tinha tempo de sobra para ir e voltar de Carcassonne antes de a assinatura do prefeito no mandado de busca secar.

Às quatro e meia, Noubel estava sentado com seu equivalente em Carcassonne. Arnaud Moureau era um velho amigo. Noubel sabia que podia falar aberta­mente. Empurrou um pedaço de papel por cima da mesa.

— A Dra. Tanner falou que ia ficar hospedada aqui.

Em minutos, eles haviam verificado se havia registro dela em algum hotel.

— Um hotel bacana logo depois dos muros da Cité, a menos de cinco minutos da rue de la Gaffe. Quer que eu dirija?


A recepcionista ficou muito nervosa ao ser interrogada por dois policiais. Foi uma testemunha sofrível, e passou a maior parte do tempo à beira do choro. Noubel foi ficando cada vez mais impaciente, até que Moureau inter­veio. Sua abordagem mais bonachona surtiu melhor efeito.

Então, Sylvie — disse, gentil. — A Dra. Tanner saiu do hotel ontem de manhã cedinho, foi isso? — A moça assentiu. — Ela disse que voltaria hoje? Eu só quero que isso fique claro.

Oui.

— E você não ouviu nada de diferente? Ela não telefonou, nem nada?Ela sacudiu a cabeça, negando.

— Ótimo. Tem mais alguma coisa que você possa nos dizer? Por exem­plo, se ela recebeu alguma visita enquanto estava hospedada aqui?

A moça hesitou.

Uma mulher veio aqui ontem, muito cedo, com um recado.Noubel não conseguiu se conter e interveio.

A que horas foi isso?

Moureau fez um gesto para ele ficar quieto.

O que é muito cedo, Sylvie?

Eu peguei às seis. Não foi muito depois disso.

A Dra. Tanner conhecia essa mulher? Elas eram amigas?

Não sei. Acho que não. Ela pareceu surpresa.

—Você está ajudando bastante, Sylvie — disse Moureau. — Pode nos di­zer por que achou isso?

— Ela estava pedindo para a Dra. Tanner ir encontrar alguém no cemité­rio. Parecia um lugar esquisito para encontrar alguém.

Encontrar quem? — perguntou Noubel. — Você ouviu algum nome?Parecendo ainda mais aterrorizada, Sylvie negou com a cabeça.

Não sei nem se ela foi.

Tudo bem. Você está indo muito bem. Alguma outra coisa?

Chegou uma carta para ela.

Pelo correio, ou em mãos?

Teve aquela história da troca de quarto — disse alguém lá do fundo.Sylvie se virou e olhou irada para um menino escondido atrás de uma monta­nha de caixas de papelão. — Maior pé no...

Que história de quarto foi essa? — interrompeu Noubel.

Eu não estava aqui — disse Sylvie, teimosa.

Mas aposto que mesmo assim você sabe tudo o que aconteceu.

A Dra. Tanner disse que alguém tinha entrado no quarto dela. Na quarta à noite. Ela pediu para trocar de quarto.

Noubel se retesou. Imediatamente, foi até os fundos.


— E causou um monte de trabalho a mais para todo mundo — dizia Moureau, suave, mantendo Sylvie ocupada.

Noubel seguiu os cheiros de comida e encontrou o menino com facilidade.

Você estava aqui na quarta à noite?O menino deu um sorriso atrevido.

Estava trabalhando no bar.

Viu alguma coisa?

Vi uma mulher sair correndo pela porta atrás de um cara. Só soube depois que era a Dra. Tanner.

Você viu o cara?

Na verdade, não. Prestei mais atenção nela.

Noubel tirou as fotos da jaqueta e as segurou na frente do rosto do menino.

Reconhece algum dos dois?

Este aqui eu já vi. Com um terno de boa qualidade. Não era turista.Chamava um pouco de atenção. Ficou zanzando pela área. Na terça-feira,talvez na quarta. Mas eu não tenho certeza.

Quando Noubel voltou ao saguão, Moureau já havia conseguido fazer Sylvie sorrir.

— O menino identificou o Domingo. Disse que ele ficou zanzando perto do hotel.

Mas isso não quer dizer que seja ele o invasor — murmurou Moureau.Noubel deslizou a fotografia pelo balcão na frente de Sylvie.

Conhece algum destes homens?

— Não — disse ela, sacudindo a cabeça —, mas... — Ela hesitou, depois apontou para a foto de Domingo. — A mulher que pediu para falar com a Dra. Tanner era parecida com ele.

Noubel trocou olhares com Moureau.

Irmã?

Vou pedir para verificarem.

Infelizmente vamos ter que pedir para você nos deixar entrar no quarto da Dra. Tanner — disse Noubel.

Eu não posso fazer isso!

Moureau passou por cima das objeções dela.

— Só vamos demorar cinco minutos. Vai ser muito mais fácil assim,Sylvie. Se tivermos que esperar para o gerente autorizar, vamos voltar com uma equipe de busca inteira. Vai ser uma confusão para todo mundo.

Sylvie pegou uma chave do gancho e os levou até o quarto de Alice, parecendo abatida e nervosa.


A janela e as cortinas estavam fechadas, e o quarto estava abafado. A cama estava feita com esmero, e uma rápida inspeção do banheiro revelou que havia toalhas limpas nos porta-toalhas e que os copos d´água haviam sido trocados.

— Ninguém veio aqui desde que a camareira limpou o quarto ontem de manhã — murmurou Noubel.

Não havia nenhum objeto pessoal no banheiro.

— Alguma coisa? — perguntou Moureau.

Noubel sacudiu a cabeça enquanto passava ao armário. Lá dentro encon­trou a mala de Alice, feita.

Parece que ela não desfez a mala depois que mudou de quarto. É óbvio que levou o passaporte, o celular, o básico — disse, correndo a mão por debaixo do colchão. Segurando o lenço entre os dedos, Noubel abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira. Lá dentro havia uma carteia de pílulas para dor de cabeça e o livro de Audric Baillard.

Moureau — disse ele, incisivo. Enquanto passava o livro para o colega,um pedacinho de papel caiu do meio das páginas e flutuou até o chão.

O que é isto?

Noubel recolheu o pedaço de papel, depois franziu o cenho enquanto o passava para Moureau.

— Algum problema? — perguntou Moureau.

— Esta é a letra do Yves Biau — disse ele. — Um telefone de Chartres.Tirou o celular do bolso para ligar, mas o telefone tocou antes de ele

terminar.

— Noubel — atendeu ele, abrupto. Moureau tinha os olhos fixos nele.— Ótimas notícias, senhor. Claro. Agora mesmo.

Desligou.

Conseguimos o mandado de busca — disse, encaminhando-se para aporta. — Mais rápido do que eu esperava.

O que você estava pensando? — disse Moureau. — Ele é um homem preocupado.


 

— Vamos nos sentar lá fora? — sugeriu Audric. — Pelo menos enquanto o calor estiver suportável.

— Ótima idéia — respondeu Alice, seguindo-o para fora da pequena casa. Tinha a sensação de estar em um sonho. Tudo parecia estar acontecendo em câmera lenta. A vastidão das montanhas, os hectares de céu, os movimen­tos lentos e deliberados de Baillard.

Alice sentiu o cansaço e a confusão dos últimos dias se esvaírem.

— Aqui está bom — disse ele com sua voz mansa, parando ao lado de um montinho de grama. Baillard sentou-se com as pernas compridas e finas estendidas na frente do corpo, como um menino.

Alice hesitou, depois sentou-se ao lado dele. Levantou os joelhos até o queixo e envolveu as pernas com os braços, depois viu que ele estava sorrindo de novo.

— O que foi? — perguntou, subitamente pouco à vontade.Audric apenas sacudiu a cabeça.

— Los reasons. — Reminiscências. — Perdoe-me, madomaisèla Tanner.Perdoe a bobeira de um velho.

Alice não sabia o que o fazia sorrir assim, só sabia que ver aquilo a deixa­va feliz.

Por favor, me chame de Alice. Madomaisèla soa tão formal.Ele inclinou a cabeça.

Está bem.

O senhor fala occitano, e não francês? — perguntou ela.

Falo os dois, sim.

Outras línguas também?Ele sorriu, modesto.

— Inglês, árabe, espanhol, hebraico. As histórias mudam de forma,mudam de caráter, adquirem cores diferentes dependendo das palavras que se usa, da língua em que se decide contá-las. Algumas vezes elas são mais sérias, outras vezes mais brincalhonas, mais melódicas, digamos. Aqui, nesta parte do que hoje chamam de França, a langue d´Oc era falada pelas pessoas a quem esta terra pertencia. A langue d´oïl, precursora do francês moderno, era a língua dos invasores. Escolhas assim dividiam as pessoas. — Ele fez um gesto com a mão. — Mas não foi isso que você veio escutar. Você quer pessoas, não teorias, não é?

Foi a vez de Alice sorrir.

— Eu li um dos seus livros, monsieur Baillard, que encontrei na casa daminha tia em Sallèles d'Aude.

Ele aquiesceu.

Lindo lugar. O Canal de Jonction. Pés de lima e pins parasols margeando o canal. — Ele fez uma pausa. — Sabia que o líder da cruzadas Arnald-Amalric, ficou com uma casa em Sallèles? E outras também, em Carcassona e Besièrs.

Eu não sabia — disse ela, sacudindo a cabeça. — No começo, assim que eu cheguei, o senhor disse que a Alaïs não morreu antes do tempo. Ela...ela sobreviveu à queda de Carcassonne?

Alice ficou surpresa ao constatar que seu coração acelerava.

Baillard assentiu.

— Alaïs foi embora de Carcassona junto com um menino, Sajhë, que era neto de uma das guardiãs da Trilogia do Labirinto. — Ele ergueu os olhos para ver se ela estava entendendo, depois continuou quando ela sinalizou que sim.

Eles estavam vindo para este lugar — continuou ele. — Na língua antiga, Los Seres quer dizer os picos da montanha, os cumes.

Por que aqui?

O Navigatairé, líder da Noublesso de los Seres, a sociedade à qual o pai de Alaïs e a avó de Sajhë haviam prestado juramento, estava esperando por eles aqui. Como Alaïs tinha medo de estar sendo perseguida, eles utilizaram um caminho indireto: foram primeiro para Fanjeaux, depois para o sul em dire­ção a Puivert e Lavelanet, e depois outra vez para oeste em direção aos Montes Sabarthès.

"Com a queda de Carcassona, havia soldados por toda parte. Eles infes­tavam nossa terra como ratos. Havia também bandidos que atacavam os refu­giados sem piedade. Alaïs e Sajhë viajavam de manhã cedo e à noite, abrigando-se do sol inclemente na parte mais quente do dia. Foi um verão de calor particularmente intenso, então quando caía a noite eles dormiam ao relento. Sobreviviam comendo nozes, bagas, frutas, qualquer coisa que conseguissem encontrar. Alaïs evitava as cidades, a menos quando tinha certeza de que en­contraria um abrigo seguro."


Como eles sabiam para onde ir? — perguntou Alice, lembrando-se da própria viagem horas antes.

Sajhë tinha um mapa, que havia recebido da...

A voz dele se partiu de emoção. Alice não soube por que, mas estendeu a mão e segurou a dele. Aquilo pareceu reconfortá-lo.

— Viajaram em um ritmo bom — continuou ele —, e chegaram a Los Seres pouco antes do dia da festa de Sant-Miquel, no final de setembro, bem quando a terra estava ficando dourada. Aqui, nas montanhas, o cheiro do outono e de terra molhada já reinava. Fumaça pairava sobre os campos onde o restolho estava sendo queimado. Aquele era um mundo novo para eles, que tinham sido criados nas sombras, becos e salões abarrotados de Carcassona.Quanta luz! Céus que pareciam subir até chegar ao paraíso. — Ele fez uma pausa, fitando a paisagem à sua frente. — Está entendendo?

Ela assentiu, fascinada pela voz dele.

— Harif, o Navigatairé, estava à sua espera. — Baillard baixou a cabeça.— Quando soube de tudo que havia acontecido, chorou pela alma do pai de Alaïs, e também por Simeon. Chorou pela perda dos livros e pela generosida­de de Esclarmonde ao permitir que Alaïs e Sajhë viajassem sem ela para garantira segurança do Livro das Palavras.

Baillard parou novamente e, por algum tempo, não disse nada. Alice não queria interrompê-lo nem apressá-lo. A história se contaria sozinha. Ele falaria quando estivesse pronto.

O rosto dele relaxou.

— Era uma época abençoada, tanto nas montanhas quanto nas planí­cies... ou pelo menos assim pareceu no começo. Apesar do horror indescritível da derrota de Besièrs, muitos carcassonenses acreditavam que logo teriam per­missão para voltar para casa. Muitos confiavam na Igreja. Pensavam que, se os hereges fossem expulsos, então teriam suas vidas de volta.

— Mas os cruzados não foram embora — disse ela.Baillard sacudiu a cabeça, negando.

— Era uma guerra por terras, não por fé — disse. — Depois que a Ciutat foi derrotada, em agosto de 1209, Simon de Montfort foi eleito viscon­de, apesar do fato de Raymond-Roger Trencavel continuar vivo. Para as men­tes modernas, é difícil entender como esse era um fato sem precedentes, como era grave a ofensa. Isso ia contra qualquer tradição e honra. As guerras eram em parte financiadas pelas taxas que uma família nobre pagava a outra. Amenos que ele fosse condenado por um crime, as terras de um seigneur jamais eram confiscadas e dadas a outra pessoa. Não podia ter havido uma indicação mais clara do desprezo que os homens do norte sentiam pelo Pays d´Oc.


— O que aconteceu com o visconde Trencavel? — perguntou Alice. —Eu vi que o nome dele é lembrado por toda a Cité.

Baillard assentiu.

— Ele merece ser lembrado. Ele morreu... foi assassinado... depois de passar três meses trancafiado nas prisões do Château Comtal, em novembro de 1209. De Montfort divulgou que ele havia morrido de mal do cerco, como a disenteria era conhecida na época. Ninguém acreditou. Houve rebeliões es­porádicas e perturbações isoladas, até de Montfort ser forçado a conceder uma pensão anual de 3 mil sols ao filho e herdeiro de dois anos de idade de Raymond-Roger, em troca da concessão legal do viscondado.

Um rosto surgiu subitamente na mente de Alice. Uma mulher devota, séria, bonita, dedicada ao marido e ao filho.

— Dama Agnès — murmurou ela.Baillard a fitou por um instante.

— Ela também é lembrada dentro dos muros da Ciutat — disse ele baixinho. — De Montfort era um católico devoto. Acreditava, e talvez fosse o único dentre todos os cruzados a pensar assim, que estava fazendo o trabalho de Deus. Ele criou um imposto para cada casa ou lar em favor da Igreja,introduziu dízimos sobre os primeiros frutos: hábitos do norte.

“A Ciutat podia ter sido derrotada, mas as fortalezas do Minervois, da Montagne Noire, dos Pireneus se recusavam a se render”. O rei de Aragão, Pedro, não queria aceitá-lo como vassalo; Raymond VI, tio do visconde Trencavel, se refugiou em Toulouse; os condes de Nevers e Saint-Pol, e outros como Guy d´Evreux, voltaram para o norte. Simon de Montfort manteve o controle de Carcassona, mas ele estava isolado.

“Mercadores, mascates, tecelãos traziam notícias de cercos e batalhas, boas e ruins”. Montréal, Preixan, Saverdun, Pamiers caíram; Cabaret resistia. Na primavera de 1210, em abril, depois de três meses de cerco, de Montfort conquistou a cidade de Bram. Ordenou a seus soldados que reunissem a guarnição derrotada e mandou cegarem seus olhos. Apenas um homem foi poupa­do, e encarregado de conduzir a procissão de mutilados pelos campos até Cabaret, um aviso claro a qualquer um que resistisse para que não esperassem clemência.

“A selvageria e as represálias aumentavam”. Em julho de 1210, de Montfort sitiou a fortaleza de Minerve, que fica em cima de uma colina. A cidade é protegida de dois lados por íngremes desfiladeiros de pedra atravessados por rios durante milhares de anos. Bem alto acima do vilarejo, de Montfort insta­lou um trébuchet gigante, conhecido como La Malvoisine, ou a má vizinha. — Ele parou e se virou para Alice. — Hoje em dia tem uma réplica na cidade. E estranho de ver. Durante seis semanas, de Montfort bombardeou o vilarejo.


Quando por fim Minerve caiu, 140 parfaits cátaros se recusaram a abjurar e foram queimados em uma única fogueira.

"Em maio de 1211, os invasores conquistaram Lavaur, depois de um mês de cerco. Os católicos a chamavam de ' o próprio trono de Satã. De certa forma, tinham razão. A cidade era sé do bispado cátaro de Toulouse, e cente­nas de parfaits e parfaites viviam ali pacífica e abertamente."

Baillard levou o copo aos lábios e bebeu.

Quase quatrocentos credentes e parfaits foram queimados, incluindo Amaury de Montreal, que havia comandado a resistência, junto com oitenta de seus cavaleiros. O cadafalso cedeu com o peso de todos eles. Os franceses foram forçados a cortar suas gargantas. Tomados pela sede de sangue, os invaso­res assolaram a cidade à procura da senhora de Lavaur, Guirande, sob cuja pro­teção os bons homes viviam. Eles a encontraram, abusaram dela. Arrastaram-na pela rua como uma criminosa comum, depois a jogaram no poço e atiraram pedras nela até ela morrer. Ela foi enterrada viva. Ou talvez tenha se afogado.

Eles sabiam como a situação estava ruim? — perguntou Alice.

Alaïs e Sajhë recebiam algumas notícias, mas com freqüência muitos meses depois do ocorrido. A guerra ainda estava concentrada nas planícies.Eles viviam aqui em Los Seres com Harif, com simplicidade, mas felizes. Jun­tavam lenha; salgavam carnes para os longos meses do inverno; aprenderam afazer pão e a isolar o telhado com palha para protegê-lo dos temporais.

A voz de Baillard estava mais suave.

Harif ensinou Sajhë a ler, depois a escrever, primeiro a langue d´Oc,depois a língua dos invasores, e também um pouco de árabe e um pouco de hebraico. — Ele sorriu. — Sajhë era um aluno rebelde, que preferia as ativida­des do corpo às da mente, mas, com a ajuda de Alaïs, ele perseverou.

Provavelmente queria provar alguma coisa para ela.

Baillard olhou de relance para Alice, mas não fez nenhum comentário.

Nada mudou até o final da Quaresma depois de Sajhë completar 13anos, quando Harif lhe disse que ele iria virar aprendiz na casa de Pierre-Rogerde Mirepoix, para começar seu treinamento como chevalier.

O que Alaïs achou disso?

Ela ficou encantada por ele. Esse sempre tinha sido o desejo de Sajhë.Em Carcassona, ele ficava olhando os écuyers encerarem as botas e polirem os capacetes de seus senhores. Escondia-se debaixo dos lices para ver seus comba­tes. A vida de um chevalier estava acima da sua condição, mas nem por isso ele havia deixado de sonhar em um dia cavalgar sob suas próprias cores. Agora,parecia que finalmente tinha uma chance de provar o seu valor.

— Ele foi, então?Baillard assentiu.


— Pierre-Roger de Mirepoix era um patrão exigente, mas justo, e tinha reputação de treinar bem seus rapazes. Foi difícil, mas Sajhë era esperto, rápi­do e esforçado. Aprendeu a acertar sua lança no mastro. Praticou com a espa­da, com o porrete, com a bola de corrente, com a adaga, aprendeu a montar com as costas retas em uma sela alta.

Durante algum tempo, Alice o observou fitar as montanhas e pensou, não pela primeira vez, como aquelas pessoas distantes, em cuja companhia Baillard passara grande parte da vida, haviam se tornado de carne e osso para ele.

E o que aconteceu com Alaïs durante esse tempo?

Enquanto Sajhë estava em Mirepoix, Harif começou a ensinar a Alaïs os ritos e rituais da Noublesso. As habilidades dela como curandeira e mulher sábia já eram conhecidas. Eram poucas as doenças, do espírito ou do corpo,que ela não soubesse curar. Harif ensinou a ela muitas coisas sobre as estrelas,sobre os padrões que formam o mundo, usando o conhecimento dos antigos místicos de sua terra. Alaïs sabia que o objetivo de Harif era maior. Sabia que ele a estava preparando para sua tarefa, e preparando Sajhë também, por isso o havia mandado embora.

“Enquanto isso, Sajhë pensava pouco no vilarejo”. De vez em quando, alguma notícia de Alaïs chegava a Mirepoix levada por pastores ou parfaits, mas ela não o visitava. Graças à irmã, Oriane, Alaïs era uma fugitiva, e sua cabeça estava a prêmio. Harif mandou dinheiro para Sajhë comprar uma cota de malha, um palafrém, uma armadura e uma espada. Ele foi sagrado cavaleiro quando tinha apenas 15 anos. — Baillard hesitou. — Pouco depois disso, ele foi para a guerra. Aqueles que tinham se aliado aos franceses esperando cle­mência mudaram de lado, incluindo o conde de Toulouse. Dessa vez, quando ele apelou para seu senhor lígio, Pedro de Aragão, Pedro assumiu as próprias responsabilidades e tomou o rumo do norte em janeiro de 1213. Junto com o conde de Foix, suas forças combinadas foram fortes o bastante para infligir danos significativos às forças depauperadas de Montfort.

"Em setembro de 1213, os dois exércitos, norte contra sul, se enfrenta­ram em Muret. Pedro era um líder corajoso e hábil estrategista, mas o ataque foi muito mal planejado e, no calor da batalha, Pedro foi morto. O sul havia perdido seu líder."

Baillard parou.

— Entre os que lutavam pela independência estava um chevalier de Carcassona. Guilhem du Mas. — Ele fez uma pausa. — Ele mostrou grande valor. Era muito querido. Os homens o seguiam.

Um tom estranho havia surgido na voz dele: admiração misturada com alguma outra coisa que Alice não conseguia identificar. Antes que pudesse pensar mais no assunto, Baillard prosseguiu.


No dia 25 de junho de 1218, o lobo foi morto.

Lobo?

Ele ergueu as mãos.

        Perdão. Nas canções da época, por exemplo na Canso de lo Crosada,

de Monfort era conhecido como "o lobo". Ele foi morto no cerco a Toulouse. Foi atingido na cabeça pela pedra de uma catapulta, dizem que manejada por uma mulher. — Alice não pôde evitar um sorriso. — Seu corpo foi levado de volta para Carcassona e enterrado à moda do norte. O coração, fígado e estô­mago foram levados para Sant-Cerni, e os ossos para Sant-Nasari, para serem sepultados debaixo de uma lápide que agora está pendurada no muro do transepto sul da basílica. — Ele fez uma pausa. — Talvez você tenha reparado nela quando visitou a Ciutat? Alice enrubesceu.

Eu... eu descobri que não conseguia entrar na catedral — admitiu.Baillard olhou rapidamente para ela, mas não disse mais nada sobre a lápide.

De Montfort foi sucedido pelo filho, Amaury, mas ele não era tão bom comandante, e logo começou a perder as terras que o pai tinha conquis­tado. Em 1224, Amaury se rendeu. A família de Montfort abriu mão das terras de Trencavel. Sajhë pôde voltar para casa. Pierre-Roger de Mirepoix relutou em deixar ele ir embora, mas Sajhë tinha...

Ele se interrompeu, depois se levantou e afastou-se um pouco dela des­cendo a encosta. Quando tornou a falar, não se virou.

— Sajhë estava com 26 anos — disse. — Alaïs era mais velha, mas ele...ele tinha esperanças. Agora via Alaïs com outros olhos, não mais como um irmão olha para uma irmã. Sabia que eles não poderiam se casar, porque Guilhem du Mas ainda estava vivo, mas, agora que havia provado seu valor,sonhava que pudesse existir algo mais entre os dois.

Alice hesitou, depois se aproximou até chegar ao lado dele. Quando pôs a mão sobre seu braço, Baillard sobressaltou-se, como se houvesse se esquecido de que ela estava ali.

O que aconteceu? — perguntou ela baixinho, sentindo-se estranha­mente ansiosa. Tinha a sensação de estar de alguma forma bisbilhotando, como se aquela história fosse íntima demais para ser compartilhada.

Ele reuniu coragem para falar com ela. — Baillard hesitou. — Harif sabia. Se Sajhë tivesse pedido a opinião dele, ele teria dado. Como ele não pediu, Harif ficou quieto.

Talvez Sajhë soubesse que não iria gostar de ouvir o que Harif tinha para dizer.

Baillard deu um meio-sorriso, triste.

— Benlèu. — Talvez. Alice esperou.


Então... — insistiu ela, quando ficou claro que ele não iria prosse­guir. — Sajhë disse a ela o que sentia?

Disse.

— E então? — perguntou Alice depressa. — O que ela falou?Baillard se virou e olhou para ela.

— Você não sabe? — perguntou, quase em um sussurro. — Reze a Deus para nunca saber o que é amar desse jeito sem esperança de um dia ser correspondida.

Por mais louco que parecesse, Alice saiu em defesa de Alaïs.

— Mas ela o amava, sim — disse com firmeza. — Como um irmão. Não era suficiente?

Baillard se virou e sorriu para ela.

— Foi com isso que ele se contentou — respondeu. — Mas suficiente?Não. Não era suficiente.

Ele se virou e começou a andar de novo em direção à casa.

— Vamos? — disse, outra vez formal. — Estou com um pouco de calor.Você, madomaisèla Tanner, deve estar cansada depois da sua longa viagem.

Alice percebeu como de repente ele havia ficado pálido, como parecia exausto, e sentiu-se culpada. Olhou para o relógio e viu que haviam conversa­do por mais tempo do que ela percebera. Era quase meio-dia.

Claro — disse depressa, oferecendo-lhe o braço. Juntos, caminharam devagar até a casa.

Me dê licença um instante — disse ele baixinho, quando já estavam de novo dentro de casa. — Preciso dormir um pouco. Talvez você também devesse descansar?

Estou mesmo cansada — reconheceu ela.

— Quando eu acordar, vou preparar comida, e depois vou terminar a história. Antes da noite cair e de nos preocuparmos com outras coisas.

Ela esperou até ele ter chegado aos fundos da casa e fechado a cortina atrás de si. Então, sentindo-se estranhamente perturbada, Alice pegou um co­bertor para fazer de travesseiro e tornou a sair.

Instalou-se debaixo das árvores. Só então percebeu que o passado havia dominado sua imaginação a tal ponto que não pensara em Shelagh ou em Will uma só vez.


 

— O que você está fazendo? — perguntou François-Baptiste, entrando no quarto do pequeno e anônimo chalé não muito longe do Pic de Soularac.

Marie-Cécile estava sentada diante da mesa, com o Livro dos Números aberto à sua frente em cima de um suporte de leitura revestido de preto. Ela não ergueu os olhos.

Estudando a disposição da câmara.François-Baptiste sentou-se ao lado da mãe.

Por algum motivo especial?

— Para me lembrar das diferenças entre este diagrama e o labirinto da caverna em si.

Ela o sentiu espiando por cima de seu ombro.

São muitas? — perguntou ele.

Algumas. Uma delas é esta — disse ela com o dedo pairando acima do livro, o esmalte de unha vermelho levemente visível através das luvas prote­toras de algodão. — O nosso altar está aqui, como no desenho. Na câmara de verdade, ele fica mais perto da parede.

Isso não quer dizer que o desenho do labirinto fica escondido?

Ela se virou para olhar para ele, surpresa com a inteligência do comentário.

Mas se os guardiães originais usavam o Livro dos Números nas suas cerimônias, como faz a Noublesso Véritable, os dois não deveriam ser iguais?

Logicamente deveriam, sim — disse ela. — Não existe tumba, essa é a variação mais óbvia, mas é interessante que o túmulo onde os esqueletos estavam deitados estivesse exatamente na mesma posição.

Você teve alguma outra notícia dos corpos? — perguntou ele.Ela sacudiu a cabeça, negando.

Então ainda não sabemos quem eles são?Ela deu de ombros.

Que importância tem isso?

— Nenhuma, acho — respondeu ele, embora ela pudesse ver que sua falta de interesse o incomodava.


No final das contas — continuou ela —, não acho que nenhuma dessas coisas tenha importância. O importante é o desenho, o caminho que o Navigatairé percorre enquanto as palavras são ditas.

Você tem certeza de que vai conseguir ler o pergaminho do Livro das Palavras?

Se ele for do mesmo período dos outros pergaminhos, tenho. Os hieróglifos são bem simples.

A ansiedade a invadiu, tão súbita, tão veloz, que ela ergueu os dedos como se a mão de alguém lhe apertasse a garganta. Naquela noite, ela pronun­ciaria as palavras esquecidas. Naquela noite, o poder do Graal seria seu. Ela iria derrotar o tempo.

— E se a Shelagh O´Donnell estiver mentindo? — disse François-Baptiste.— E se ela não estiver com o livro? Ou se o Authié também não tiver encon­trado o livro?

Os olhos de Marie-Cécile se arregalaram, chamados de volta ao presente pelo tom abrasivo, desafiador da voz de seu filho. Ela olhou para ele com desgosto.

— O Livro das Palavras está lá — disse ela.

Zangada por ter tido seu devaneio estragado, Marie-Cécile fechou o Li­vro dos Números e tornou a colocá-lo dentro da capa. Em seu lugar, ajeitou o Livro das Poções sobre o descanso.

Vistos de fora, os dois livros pareciam idênticos. As mesmas capas de madeira revestidas de couro e seguras por tiras também de couro.

A primeira página estava em branco, a não ser por um pequenino cálice de ouro no centro. O verso da página estava em branco. Na terceira página havia as palavras e imagens que também estavam inscritas no alto das paredes da câmara subterrânea da rue du Cheval Blanc.

A primeira letra de cada uma das páginas seguintes era iluminada em vermelho, azul ou amarelo, com ornamentos dourados, mas fora isso o texto era corrido, uma palavra seguindo-se à outra, sem lacunas onde terminava uma idéia e começava a outra.

Marie-Cécile virou as páginas até chegar ao pergaminho no centro do livro.

Misturados aos hieróglifos havia pequenos desenhos de plantas e símbo­los destacados em cor verde. Depois de anos de estudo e pesquisa, graças às bolsas custeadas pela fortuna da família de l´Oradore, seu avô havia percebido que nenhuma das ilustrações era relevante.

Somente os hieróglifos gravados nos dois pergaminhos do Graal tinham importância. Todo o resto — palavras, imagens, cores — estavam lá para esconder, para ornamentar, para ocultar a verdade.


— Ele está lá — disse ela, encarando François-Baptiste com um olhar feroz. Podia ver a dúvida na expressão do filho, mas ele sabiamente decidiu não dizer nada. — Vá pegar as minhas coisas — disse ela, ríspida. — Depois verifique onde o carro está.

Ele voltou instantes depois com a nécessaire quadrada dela.

Onde você quer que eu coloque?

Ali — disse ela, apontando para a penteadeira. Depois que ele tornou a sair, Marie-Cécile se aproximou do móvel e sentou-se. O lado de fora da nécessaire era de couro marrom macio, com suas iniciais gravadas em dourado.Fora um presente de seu avô.

Ela levantou a tampa. Lá dentro havia um espelho grande e vários compartimentos para pincéis, produtos de beleza, lenços de papel e uma pequena tesoura dourada. Os produtos de maquiagem estavam guardados na bandeja de cima em fileiras bem dispostas e arrumadas. Batons, sombras, tubos de rímel, lápis de olho, pó compacto. Um compartimento mais embaixo, mais profundo, continha os três escrínios de couro vermelho.

Onde eles estão? — perguntou ela sem se virar.

Não estão muito longe — respondeu François-Baptiste. Ela pôde ouvir a tensão na voz dele.

Ele está bem?

Ele caminhou na direção dela e pousou as mãos em seus ombros.

— Você está ligando para isso, maman?

Marie-Cécile encarou o próprio reflexo no espelho, depois o filho, emol­durado no espelho acima de sua cabeça como se posassem para um retrato. A voz dele era casual. Seus olhos o traíam.

— Não — respondeu ela, e viu o rosto do filho relaxar um pouco. —Estou só interessada.

Ele apertou os ombros dela, depois retirou as mãos.

— Para responder à sua pergunta, ele está vivo. Deu trabalho quando estava sendo tirado do porta-malas. Precisaram acalmá-lo um pouco.

Ela arqueou as sobrancelhas.

Não muito, espero — disse. — Se ele estiver semiconsciente, não vai ter utilidade para mim.

Para você? — perguntou ele, ríspido.

Marie-Cécile mordeu a língua. Precisava que François-Baptiste continuas­se disposto a ajudar.

— Para nós — disse ela.


 

Alice estava cochilando na sombra debaixo das árvores quando Audric reapa­receu algumas horas depois.

— Fiz comida para nós — disse ele.

Ele parecia mais disposto depois de ter dormido. Sua pele perdera a apa­rência retesada, de cera, e seus olhos tinham um brilho intenso.

Alice juntou suas coisas e o seguiu novamente para dentro da casa. Quei­jo de cabra, azeitonas, tomates, pêssegos e uma jarra de vinho estavam dispos­tos sobre a mesa.

— Por favor. Pegue o que quiser.

Assim que se sentaram, Alice começou a fazer as perguntas que havia ensaiado mentalmente. Percebeu que ele comia pouco, embora tenha bebido um pouco de vinho.

—Alaïs tentou recuperar os dois livros roubados pela irmã e pelo marido?

Reunir outra vez a Trilogia do Labirinto tornou-se a intenção de Harif assim que a ameaça de guerra começou a lançar sua sombra sobre o Pays d´Oc — disse ele. — Graças à irmã, Oriane, a cabeça de Alaïs havia sido posta a prêmio. Aquilo tornava difícil para ela fazer qualquer viagem. Nas raras ocasiões em que descia do vilarejo, ia disfarçada. Tentar viajar para o norte teria sido uma loucura. Sajhë fez vários planos de ir a Chartres. Nenhum deles deu certo.

Por causa de Alaïs?

Em parte, mas também por causa de sua avó, Esclarmonde. Ele se sentia responsável para com a Noublesso de los Seres, assim como Alaïs se sentia responsável no lugar do pai.

O que aconteceu com Esclarmonde?

Muitos bons homes foram para o norte da Itália. Esclarmonde não tinha saúde suficiente para viajar até tão longe. Em vez disso, foi levada por Gaston e pelo irmão para uma pequena comunidade na Navarra, onde ficou até morrer, alguns anos depois. Sajhë visitava a avó sempre que podia. — Ele fez uma pausa. — O fato de as duas nunca mais terem se encontrado foi uma grande tristeza para Alaïs.

E Oriane? — perguntou Alice depois de algum tempo. — Alaïs teve notícias dela também?

Muito poucas. Mais interessante foi o labirinto construído na catedral de Notre Dame, em Chartres. Ninguém sabia quem tinha mandado construir aquilo, nem o que poderia significar. Em parte, foi por isso que Oriane e Evreux foram morar naquela cidade, em vez de voltarem para as terras dele,mais ao norte.

E os livros em si tinham sido feitos em Chartres.

Na verdade, o labirinto da igreja foi construído para desviar a atenção da caverna do labirinto mais ao sul.

— Eu vi o labirinto da igreja ontem — disse Alice.Teria sido só ontem?

— Não senti nada; quero dizer, é muito bonito, muito impressionante,mas nada além disso.

Audric aquiesceu.

Oriane conseguiu o que queria. Guy d´Evreux a levou para o norte como sua mulher. Em troca, ela entregou a ele o Livro das Poções e o Livro dos Números, e jurou continuar procurando o Livro das Palavras.

Sua mulher? — Alice franziu o cenho. — Mas que fim levou...

Jehan Congost? Ele era um homem bom. Pedante, ciumento, sem senso de humor, talvez, mas um servidor leal. Oriane mandou François matá-lo. — Ele fez uma pausa. — François merecia morrer. Teve um fim horrível,mas não merecia nada melhor.

Alice sacudiu a cabeça.

Eu ia perguntar que fim tinha levado Guilhem — disse ela.

Ele ficou no Midi.

Mas ele não esperava ficar com Oriane?

Ele foi incansável em suas tentativas de expulsar os cruzados. Confor­me os anos foram passando, vários seguidores seus surgiram nas montanhas.No começo, ele ofereceu sua espada a Pierre-Roger de Mirepoix. Mais tarde,quando o filho do visconde Trencavel tentou recuperar as terras roubadas dopai, Guilhem lutou por ele.

Ele mudou de lado? — perguntou Alice, pasma.

Não, ele... — Baillard suspirou. — Não. Guilhem du Mas nunca traiu o visconde Trencavel. Ele foi um bobo, sem dúvida, mas no fim das contas não foi um traidor. Oriane o usou. Quando Carcassona caiu, ele foi preso junto com Raymond-Roger Trencavel. Ao contrário do visconde, porém, Guilhem conseguiu fugir. — Audric tomou fôlego, como se lhe custasse reconhecer aquilo. — Ele não era um traidor.

Mas Alaïs achava que fosse — disse ela, baixinho.

Foi ele quem cavou a própria cova.

É, eu sei, mas mesmo assim... viver com uma dor assim, sabendo que Alaïs pensava que ele era pior do que...

Guilhem não merece simpatia — disse Baillard, seco. — Ele traiu Alaïs, quebrou seus votos de matrimônio, humilhou a própria mulher. Mas,mesmo assim, ela... — Ele se interrompeu. — Perdão. Algumas vezes é difícil ser objetivo.

Por que isso o incomoda tanto?

Ele nunca tentou encontrar Alaïs?

Ele a amava — disse Audric com simplicidade. — Não poderia ter corrido o risco de levar os franceses até onde ela estava.

E ela também não fez nenhuma tentativa de se encontrar com ele?Audric sacudiu a cabeça devagar, negando.

Você teria feito isso, na posição dela? — perguntou, baixinho.Alice pensou por alguns instantes.

Não sei. Se ela o amava, apesar do que ele tinha feito...

Alice se mexeu na cadeira. Audric pareceu sentir a impaciência dela, por­que começou a falar mais depressa.

Durante cinco anos depois de Sajhë voltar para o vilarejo, aquela paz instável reinou — prosseguiu. — Ele, Alaïs e Harif viviam bem. Outros habi­tantes de Carcassona também moravam agora nas montanhas, incluindo a antiga criada de Alaïs, Rixende, que se instalou no vilarejo. Era uma vida simples, mas boa. — Baillard fez uma pausa.

Em 1229, tudo mudou. Um novo rei subiu ao trono da França. Sant-Louis era um homem zeloso, de fortes convicções religiosas. O fato de a here­sia ainda existir o deixava doente. Apesar dos anos de opressão e perseguição no Midi, a igreja cátara ainda concorria com a Igreja católica em autoridade e influência. Os cinco bispados cátaros, Tolosa, Albi, Carcassona, Agen e Razès,eram em muitos lugares mais respeitados, mais influentes do que os seus equi­valentes católicos.

“No início, nada disso afetou Alaïs e Sajhë”. Eles levavam praticamente a mesma vida de antes. No inverno, Sajhë viajava para a Espanha para conseguir dinheiro e armas para a financiar a resistência. Alaïs ficava nas montanhas. Ela era boa amazona, sabia manejar o arco e a espada e tinha muita coragem, e levava recados para os líderes da resistência, na Ariège e pelos Montes Sabarthès. Dava refúgio para parfaits e parfaites, e conseguia para eles comida, abrigo e informações sobre onde e quando os serviços religiosos podiam ser organizados. Muitos dos parfaits eram pregadores itinerantes, e viviam de seus próprios trabalhos manuais. Cardavam, faziam pão, fiavam lã. Eles viajavam em du­plas: um professor mais experiente e um jovem iniciado. — Audric sorriu. — Alaïs fazia praticamente a mesma coisa que Esclarmonde, sua amiga e mentora, havia feito em Carcassona.

"As excomunhões, as indulgências para os cruzados, a nova campanha para erradicar a heresia, como era chamada, poderiam ter continuado quase como antes, não fosse pelo fato de que havia um novo papa. O papa Gregório IX. Ele não estava mais disposto a esperar. Em 1233, criou a Santa Inquisição, sob seu controle direto. A tarefa da nova organização era encontrar e eliminar os hereges, onde quer que fosse e quaisquer que fossem os meios utilizados. Ele escolheu os dominicanos, os frades negros, como seus agentes."

Eu achava que a Inquisição tivesse sido criada na Espanha? Sempre se ouve falar nela nesse contexto.

É um erro comum — disse ele. — Não, a Inquisição foi fundada para acabar com os cátaros. O terror começou. Inquisidores iam de cidade em cida­de livremente, acusando, denunciando e condenando. Havia espiões por toda parte. Pessoas eram exumadas para que seus corpos, enterrados em chão sagra­do, pudessem ser queimados como hereges. Comparando confissões e meias-confissões, os inquisidores começaram a mapear o caminho do catarismo dos vilarejos às pequenas cidades, até as cidades maiores. O Pays d´Oc começou a afundar, varrido por uma maré maligna de assassinato legal. Pessoas boas,honestas foram condenadas. Por medo, vizinhos se voltavam contra outros vizinhos. Qualquer cidade mais importante tinha sua Corte Inquisitorial, de Tolosa a Carcassona. Uma vez condenados, os inquisidores entregavam suas vítimas às autoridades seculares para que fossem presas, espancadas, mutiladas ou queimadas. Eles mantinham as mãos limpas. Poucos eram inocentados.Até mesmo quem era libertado era forçado a usar uma cruz amarela na roupa,a marca dos hereges.

Alice teve uma lembrança fugidia. De correr pela floresta para escapar dos caçadores. De cair. De um pedaço de tecido, da cor de uma folha de outono, flutuando para longe no ar.

Será que eu sonhei isso?

Alice olhou para o rosto de Audric e viu tanta tristeza impressa ali que seu coração se contraiu.

— Em maio de 1234, os inquisidores chegaram à cidade de Limoux. Por má sorte, Alaïs tinha viajado até lá com Rixende. Na confusão, talvez tenham sido confundidas com parfaites, já que eram duas mulheres viajando juntas,mas o fato é que elas também foram presas e levadas para Tolosa.

Era disso que eu tinha medo.

 


— Elas não deram seus nomes verdadeiros, de modo que Sajhë só desco­briu o que havia acontecido vários dias depois. Ele logo foi atrás delas, sem ligar para a própria segurança. Mais uma vez, a sorte não esteve ao seu lado. A maioria das audiências inquisitoriais acontecia na catedral de Sant-Cernin,então ele foi procurá-las lá. Mas Alaïs e Rixende haviam sido levadas para os claustros de Sant-Etienne.

Alice soltou um arquejo, lembrando-se da mulher fantasma sendo arras­tada pelos monges de túnicas pretas.

Eu estive lá — ela conseguiu dizer.

As condições lá eram terríveis. Sujas, brutais, humilhantes. Os pri­sioneiros eram mantidos no escuro, no frio, só com os gritos dos outros prisio­neiros para conseguir ajudá-los a distinguir a noite do dia. Muitos morreram ali, esperando julgamento.

Alice tentou falar, mas sua boca estava seca demais.

Ela... — Deteve-se, incapaz de continuar.

O espírito humano pode suportar muitas coisas, mas uma vez que­brado, ele se desfaz como pó. Era isso que os inquisidores faziam. Eles quebra­vam nosso espírito, do mesmo jeito que os torturadores quebram pele e osso,até não sabermos mais quem éramos.

Conte-me o que aconteceu — pediu ela com urgência.

Sajhë chegou tarde demais — disse ele com a voz firme. — Mas Guilhem não. Ele ouviu dizer que uma curandeira, uma mulher das monta­nhas, havia sido trazida para ser interrogada, e de alguma forma adivinhou que era Alaïs, mesmo que seu nome não aparecesse no registro. Ele subornou os guardas para que o deixassem entrar; subornou ou ameaçou, não sei. Encon­trou Alaïs. Ela e Rixende estavam sendo mantidas separadas de todos os ou­tros, o que deu a ele a oportunidade que precisava para tirá-las de Sant-Etiennee de Tolosa antes que os inquisidores percebessem que elas haviam sumido.

Mas...

Alaïs sempre pensou que fora Oriane quem havia mandado prendê-la. Ela sequer chegou a ser interrogada.

Alice sentiu os olhos marejados de lágrimas.

— Guilhem a levou de volta para o vilarejo? — perguntou depressa,enxugando o rosto com as costas da mão. — Ela voltou para casa?

Baillard assentiu.

Depois de algum tempo. Ela voltou em agost, pouco antes do dia da festa da Assunção, acompanhada de Rixende. — As palavras saíam apressadas.

Guilhem não foi com elas?

Não — respondeu ele. — Eles não se encontraram de novo até... —Ele fez uma pausa. Alice pressentiu, mais do que ouviu, quando ele tomou fôlego para tornar a falar. — A filha de Alaïs nasceu seis meses depois. A mãe a batizou de Bertrande, em homenagem ao próprio pai, Bertrand Pelletier.

As palavras de Audric pareceram ficar pairando entre os dois. Mais uma peça do quebra-cabeça.

Guilhem e Alaïs — murmurou Alice para si mesma. No fundo de sua mente, podia ver a árvore genealógica estendida no chão do quarto de dormir de Grace em Sallèles d'Aude. O nome ALAÏS PELLETIER- du MAS (1193-) destacado em tinta vermelha. Quando a vira pela primeira vez, não fora capaz de ler o nome ao lado do de Alaïs, apenas o nome de Sajhë, escrito em tinta verde na linha logo abaixo e mais para o lado.

Alaïs e Guilhem — repetiu.

Uma linha de descendência direta que vem deles até mim.

Alice estava desesperada para saber o que havia acontecido naqueles três meses que Guilhem e Alaïs haviam passado juntos. Por que haviam tornado a se separar? Queria saber por que o símbolo do labirinto aparecia ao lado do nome de Alaïs e do de Sajhë.

E do meu.

Ergueu os olhos, com a ansiedade a queimá-la por dentro. Estava prestes a despejar uma fileira de perguntas quando a expressão no rosto de Audric a deteve. Por instinto, entendeu que já haviam falado o bastante sobre Guilhem.

— O que aconteceu depois disso? — perguntou ela baixinho. — Alaïs e a filha ficaram em Los Seres com Sajhë e Harif?

Pelo sorriso fugidio que surgiu por um breve instante no rosto de Audric, Alice entendeu que ele estava grato por ela ter mudado de assunto.

— Ela era uma menina linda — disse ele. — Dócil, bonita, sempre rindo, cantando. Todos a adoravam, principalmente Harif. Bertrande passava horas sentada com ele escutando suas histórias sobre a Terra Santa e sobre o avô, Bertrand Pelletier. Conforme foi ficando mais velha, passou a fazer pe­quenos serviços para ele. Quando a menina tinha seis anos, ele começou até a lhe ensinar a jogar xadrez.

Audric parou de falar. Seu rosto tornou a se obscurecer.

— Mas a mão negra da Inquisição não parava de se estender cada vez mais. Depois de terem derrotado as planícies, os cruzados finalmente volta­ram sua atenção para as fortalezas dos Pireneus e dos Sabarthès que ainda não haviam sido conquistadas. O filho de Trencavel, Raymond, voltou do exílio em 1240 com um contingente de chevaliers, e a maior parte da nobreza de Corbières reuniu-se a ele. Não foi difícil reconquistar a maioria das cidades entre Limoux e a Montagne Noire. O país inteiro se mobilizou: Saissac, Azille,Laure, os châteaux de Quéribus, Peyrepertuse, Aguilar. Mesmo assim, depois de quase um mês de combate, ele não conseguiu retomar Carcassona. Em outubro, recolheu-se para Montreal. Ninguém se apresentou para ajudar. Por fim, ele foi forçado a se retirar para Aragão. Audric fez uma pausa.

— O terror começou imediatamente. Montreal foi dizimada, Montonlieu também. Limoux e Alet se renderam. Estava claro para Alaïs, para todos nós,que o povo pagaria o preço pelo fracasso da rebelião.

Baillard de repente se calou e olhou para cima.

Você já foi a Montségur, madomaisèla Alice? — Ela negou com a cabeça. — Ê um lugar incrível. Um lugar sagrado, talvez. Ainda hoje, espíritos moram lá. A cidadela é escavada em três lados da montanha. É o templo de Deus no céu.

A montanha segura — disse ela sem pensar, depois corou ao perceber que estava citando para Baillard as próprias palavras dele.

— Muitos anos antes, antes da cruzada começar, os líderes da igreja cátara tinham pedido ao seigneur de Montségur, Raymond de Péreille, para reconstruir o castellum em ruínas e reforçar suas fortificações. Em 1243, Pierre-Roger de Mirepoix, na casa de quem Sajhë havia sido treinado, já comandava a guarnição da cidade. Com medo do que aconteceria com Bertrande e Harif,Alaïs sentiu que não podiam mais ficar em Los Seres, então Sajhë ofereceu seus serviços e eles se juntaram ao êxodo para Montségur.

Audric balançou a cabeça.

Mas, quando começaram a viajar, eles ficaram visíveis. Talvez deves­sem ter se separado. O nome de Alaïs agora fazia parte de uma lista inquisitorial.

Alaïs era cátara? — perguntou Alice de repente, percebendo que até aquele momento ainda não tinha certeza.

Ele fez uma pausa.

— Os cátaros acreditavam que o mundo que podemos ver, ouvir, chei­rar, provar e tocar foi criado pelo Diabo. Acreditavam que o Diabo havia enganado os espíritos puros, fazendo-os fugir do reino de Deus e ficarem pre­sos aqui na Terra em vestes de carne. Acreditavam que, se levassem uma vida boa o suficiente e "tivessem um bom fim", suas almas seriam libertadas da escravidão e voltariam para Deus na glória do paraíso. Se não, quatro dias depois eles reencarnariam na Terra para recomeçar o ciclo.

Alice se lembrou das palavras na Bíblia de Grace.

"O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito."

Audric aquiesceu.

— O que você precisa entender é que os bons homes eram amados pelas pessoas a quem serviam. Eles não cobravam para celebrar casamentos, batizar crianças ou enterrar os mortos. Não cobravam nenhuma taxa, não pediam nenhum dízimo. Existe uma história sobre um parfait que encontrou um agricultor ajoelhado em um canto de sua lavoura. "O que você está fazendo?", perguntou ao homem. "Estou agradecendo a Deus por ter proporcionado esta boa colheita", respondeu o agricultor. O parfait sorriu e ajudou o homem a se levantar. "Isto não é obra de Deus, mas sua. Pois foi a sua mão que cavou a terra na primavera, que cuidou dela." — Baillard ergueu os olhos para Alice. — Está entendendo?

Acho que sim — disse ela, hesitante. — Eles acreditavam que os indivíduos controlavam as próprias vidas.

Dentro das restrições e dos limites da época e do lugar onde nasciam, sim.

Mas Alaïs pensava assim também? — insistiu ela.

Alaïs era igual a eles. Ela ajudava as pessoas, punha as necessidades dos outros acima da sua. Fazia o que pensava ser certo, sem ligar para o que ditava a tradição ou os costumes. — Ele sorriu. — Como eles, ela acreditava que não haveria juízo final, acreditava que o mal que via à sua volta não podia ser criação de Deus. Mas, no fim das contas, não. Ela não era catara. Alaïs era uma mulher que acreditava no mundo que podia tocar e ver.

E Sajhë?

Audric não respondeu diretamente.

Apesar do termo cátaro hoje em dia ser de uso corrente, na época de Alaïs os devotos chamavam a si mesmos de bons homes. Os textos inquisitoriais em latim se referem a eles como albigenses ou heretici.

Então de onde vem o termo cátaro?

Bom, não podemos deixar os vencedores escreverem a nossa história em nosso lugar — disse ele. — Cátaro é um termo que eu e outros... — Ele parou, como se risse de uma piada que só ele entendia. — Existem muitas explicações diferentes. Talvez a palavra catar em, occitano, cathare em francês,tenha vindo do grego katharos, que significa "sem mácula". Quem pode saber qual era a intenção do termo?

Alice franziu o cenho, percebendo que estava deixando de entender alguma coisa, mas sem saber o quê.

Bom, mas e a religião em si? De onde ela veio? Não foi criada na França?

As origens do catarismo europeu estão no bogomilismo, uma crença dualista que prosperou na Bulgária, na Macedônia e na Dalmácia a partir do século X. Ele estava ligado a outras doutrinas religiosas: o zoroastrismo na Pérsia,por exemplo, ou o maniqueísmo. Os cátaros acreditavam em reencarnação.

Uma idéia começou a tomar forma na mente de Alice. O elo entre tudo que Audric estava dizendo e o que ela já sabia. Espere, e vou encontrar você. Seja paciente.

— No Palais des Arts de Lyon — continuou ele — existe a cópia manus­crita de um texto cátaro do Evangelho de São João, um dos raros documentos que não foram destruídos pela Inquisição. Ele está escrito em langue d´Oc, e falar essa língua na época era considerado um ato herege, passível de punição. Dentre todos os textos sagrados para os bons homes, o Evangelho de João era o mais importante. E o texto que dá mais ênfase ao esclarecimento pessoal e individual por meio do conhecimento, a gnose. Os bons homes se recusavam a venerar ídolos, cruzes ou altares, esculpidos com as pedras e árvores da criação desprezível do Diabo, e valorizavam acima de tudo a palavra de Deus.

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

Reencarnação — disse ela devagar, pensando em voz alta. — Como seria possível conciliar isso com a teologia cristã ortodoxa?

Um dos preceitos centrais da doutrina cristã é a dádiva da vida eterna para aqueles que acreditarem em Cristo e forem redimidos por seu sacrifício na cruz. A reencarnação também é uma forma de vida eterna.

O labirinto. Caminho para a vida eterna.

Audric se levantou e andou até a janela aberta. Enquanto olhava fixa­mente para as costas magras e eretas de Baillard, Alice pôde sentir nele uma determinação que não estivera ali antes.

Diga-me, madomaisèla Tanner — disse ele, virando-se de frente para ela. — Você acredita em destino? Ou é o caminho que escolhemos que nos torna quem somos?

Eu... — começou ela, depois parou. Não tinha mais certeza do que pensava. Ali, nas montanhas eternas, bem no alto das nuvens, o mundo e os valores cotidianos não pareciam ter importância. — Eu acredito nos meus sonhos — disse ela por fim.

Você acredita que pode mudar o seu destino? — perguntou ele, pro­curando uma resposta.

Alice se viu concordando com a cabeça.

Senão, de que adianta? Se só estamos percorrendo um caminho pré-estabelecido, então todas as experiências que fazem de nós quem somos... amor,dor, alegria, aprender, dividir... de nada valeriam.

E você não impediria outra pessoa de tomar as próprias decisões?

Isso iria depender das circunstâncias — disse ela devagar, agora ner­vosa. — Por quê?

Vou pedir a você para se lembrar disso - falou ele baixinho. — Só

isso. Quando chegar a hora, peço que se lembre disso. Si es atal es atal.

As palavras dele despertaram alguma coisa dentro dela. Alice tinha certe­za de tê-las ouvido antes. Sacudiu a cabeça, mas a lembrança se recusava a vir.

— O que será, será — disse ele baixinho.


— Monsieur Baillard, eu... Audric ergueu a mão.

— Benlèu — disse, andando de volta até a mesa e recuperando o fio da história como se não tivesse havido nenhuma interrupção. — Vou contar a você tudo que precisa saber, posso dar minha palavra quanto a isso.

Ela abriu a boca, depois tornou a fechá-la.

— A cidadela estava abarrotada de gente — disse ele —, mas mesmo assim aquele foi um período feliz. Pela primeira vez em muitos anos, Alaïs se sentia segura. Bertrande, a essa altura com quase dez anos, fazia sucesso com as muitas crianças que moravam dentro e ao redor da fortaleza. Harif, embora velho e frágil, também estava satisfeito. Tinha companhia de sobra: Bertrande para deixá-lo encantado, parfaits com quem discutir sobre a natureza de Deus e do mundo. Sajhë estava ao seu lado durante a maior parte do tempo. Alaïs era feliz.

Alice fechou os olhos e deixou o passado tomar vida em sua mente.

— Era uma vida boa, e poderia ter continuado não fosse um ato temerá­rio de vingança. No dia 28 de maio de 1242, Pierre-Roger de Mirepoix rece­beu a notícia de que quatro inquisidores haviam chegado à cidade de Avignonet.O resultado seria mais parfaits e credentes presos ou queimados na fogueira.Ele decidiu agir. Indo contra a opinião de seus sargentos, inclusive a de Sajhë,reuniu uma tropa de 85 cavaleiros da guarnição de Montségur, grupo ao qual se juntaram outros soldados en route.

"Andaram 50 quilômetros até Avignonet, e chegaram no dia seguinte. Pouco depois de o inquisidor Guillaume Arnaud e seus três colegas terem se recolhido para a noite, alguém dentro da casa abriu a porta que estava trancada e deixou os soldados entrarem. As portas dos quartos onde os inquisidores estavam dormindo foram arrebentadas, e os quatro e seus acompanhantes fo­ram feitos em pedaços. Sete chevaliers diferentes reivindicaram a honra de ter desferido os primeiros golpes. Dizem que Guillaume Arnaud morreu entoando o Te Deum. O que é certo é que os registros inquisitoriais foram levados embora dali e destruídos."

Sem dúvida, isso foi uma boa coisa.

Foi o derradeiro ato de provocação. O massacre provocou uma res­posta imediata. O rei decretou que Montségur deveria ser destruída de uma vez por todas. Um exército formado por barões do norte, inquisidores católicos,mercenários e colaboradores montou acampamento no sopé da montanha. O cerco começou, mas mesmo assim os homens e mulheres da cidadela ainda entravam e saíam livremente. Depois de cinco meses, a guarnição só havia perdido três homens e parecia que o cerco não iria dar em nada.

“Os cruzados contrataram um pelotão de mercenários bascos, que escalaram a montanha e acamparam a pouca distância das muralhas do castelo, exatamente quando começava o rigoroso inverno da região”. Não havia perigo iminente, mas Pierre-Roger decidiu retirar seus homens dos parapeitos no vulnerável lado oriental. O erro custou caro. Armados com informações de colaboradores locais, os mercenários conseguiram escalar a vertiginosa encosta no lado sudeste da montanha. Depois de esfaquear os sentinelas, eles se apode­raram de Roc de la Tour, um promontório de pedra que se erguia no ponto mais a leste do cume de Montségur. Nada restou aos habitantes senão ficar olhando, impotentes, enquanto as catapultas e manganelas eram içadas até o Roc. Enquanto isso, no lado leste da montanha, um potente trébuchet come­çava a danificar o barbacã oriental.

"No Natal de 1243, os franceses tomaram o barbacã. Agora estavam apenas a algumas dúzias de metros da fortaleza. Instalaram uma nova máquina de cerco. Os muros sul e leste da cidadela estavam ambos ao alcance das armas."

Enquanto falava, ele não parava de girar o anel no polegar.

Alice ficou olhando para ele e, enquanto olhava, a lembrança de outro homem, girando um anel igual àquele enquanto lhe contava histórias, surgiu em sua mente.

— Pela primeira vez — continuou Audric —, eles precisaram enfrentara possibilidade de que Montségur talvez fosse cair.

“Lá embaixo, no vale, os estandartes e flâmulas da Igreja católica e a fleur-de-lys do rei francês ainda tremulavam, embora puídos e desbotados depois de dez meses de calor, seguido de chuva e depois de neve”. O exército dos cruzados, chefiado pelo senescal de Carcassona, Hugues des Arcis, tinha entre seis e 10 mil homens. Dentro da fortaleza não havia mais de cem homens em condição de lutar.

"Alaïs queria... — Ele parou. — Houve uma reunião entre os líderes da igreja cátara, o bispo Bertrand Marty e Raymond Aiguilhèr."


— O tesouro cátaro. É verdade, então? Ele existia?Baillard fez que sim com a cabeça.

— Dois credentes, Matheus e Peter Bonnet, foram escolhidos para a tare­fa. Agasalhados contra o frio intenso do novo ano, prenderam o tesouro nas costas e saíram do castelo sob o abrigo da noite. Evitaram os sentinelas de guarda nas estradas praticáveis que conduziam da montanha até o vilarejo e rumaram para o sul, para os Montes Sabarthès.

Os olhos de Alice se arregalaram.

— Para o Pic de Soularac.Ele tornou a assentir.

Lá, o tesouro passou para a mão de outros. Os passos de Aragão e Navarra estavam interditados pela neve. Em vez disso, eles tomaram o rumo dos portos e foram de navio até a Lombardia, no norte da Itália, onde existia uma comunidade de bons homes próspera e menos perseguida.

E o que aconteceu com os irmãos Bonnet?

Matheus voltou para casa no final de janvièr. A essa altura, os sentine­las postados nas estradas já eram homens da região, de Camon sur l´Hers,perto de Mirepoix, e o deixaram passar. Matheus falou em reforços. Contou que haviam boatos de que o rei de Aragão chegaria na primavera. Mas eram apenas palavras corajosas. Àquela altura, o cerco estava fechado demais para algum reforço conseguir passar.

Baillard ergueu os olhos cor de âmbar e olhou para Alice.

— Também ouvimos boatos de que Oriane estava viajando para o sul,acompanhada do filho e do marido, para reforçar o cerco. Isso só podia signifi­car uma coisa. Que, depois de todos aqueles anos fugindo e se escondendo, ela finalmente havia descoberto que Alaïs estava viva. Ela queria o Livro das Palavras.

— Mas com certeza Alaïs não estava com o livro?Audric não respondeu.

— Em meados de fevereiro, os atacantes avançaram outra vez. No dia 1ºde março de 1244, depois de uma derradeira tentativa de tirar os bascos do Roc de la Tour, uma única corneta ecoou nas ameias da fortaleza em ruínas.— Ele engoliu em seco. — Raymond de Péreille, seigneur de Montségur, e Pierre-Roger de Mirepoix, comandante da guarnição, saíram pelo portão e se renderam para Hugues des Arcis. Era o fim da batalha. Montségur, o último bastão, havia caído.

Alice tornou a se recostar na cadeira, desejando que o fim tivesse sido outro.

— O inverno nas montanhas rochosas e no vale mais abaixo havia sido rigoroso e gelado. Os dois lados estavam exauridos. As negociações foram bre­ves. O Ato de Capitulação foi assinado no dia seguinte por Peter Amiel, arce­bispo de Narbonne.


"Seus termos eram generosos. Sem precedentes, diriam alguns. A forta­leza se tornaria propriedade da Igreja católica e da coroa francesa, mas todos os seus habitantes seriam perdoados por crimes do passado. Até mesmo os assas­sinos dos inquisidores de Avignonet receberiam indulto. Os soldados seriam libertados apenas com penas leves, uma vez seus crimes confessados aos registros inquisitoriais. Quem abjurasse suas crenças heréticas teria permissão para sair livre, punido somente pela obrigação de usar uma cruz costurada nas roupas."

E quem não abjurasse? — perguntou Alice.

Os que não renunciassem seriam queimados na fogueira como hereges.Baillard tomou mais um gole de vinho.

— Quando terminava um cerco, era costume selar o acordo entregando os reféns. Estes incluíam o irmão do bispo Bertrand, Raymond, o velho chevalier Arnald-Roger de Mirepoix e o filho pequeno de Raymond de Péreille. —Baillard fez uma pausa. — O que não era usual — disse, cauteloso — era a concessão de um período de duas semanas de graça. A liderança cátara pediu permissão para ficar em Montségur por duas semanas antes de descer da mon­tanha. O pedido foi aceito.

O coração de Alice começou a bater mais depressa.

— Por quê?Audric sorriu.

Historiadores e teólogos vêm discutindo há milhares de anos a razão pela qual os cátaros pediram esse adiamento da execução. O que precisava ser feito que já não tivesse sido feito antes? O tesouro estava em segurança. O que seria tão importante para fazer os cátaros ficarem por mais tempo naquela fortaleza de montanha, danificada e fria, depois de tudo que já tinham sofrido?

E por que eles ficaram?

Porque Alaïs estava com eles — respondeu Baillard. — Ela precisava de tempo. Oriane e seus homens estavam esperando por ela no sopé da mon­tanha. Harif estava dentro da cidadela, Sajhë também, sua filha também. Era arriscado demais. Se eles fossem capturados, os sacrifícios feitos por Simeon,por seu pai e por Esclarmonde para proteger o segredo teriam sido em vão.

Por fim, todas as peças do quebra-cabeça estavam no lugar, e Alice podia ver a imagem completa, clara, vivida e brilhante, embora mal pudesse acreditar que fosse verdade.

Alice olhou pela janela para a paisagem imutável, resistente. Era pratica­mente a mesma dos dias em que Alaïs vivera ali. O mesmo sol, a mesma chuva, o mesmo céu.

— Conte-me a verdade do Graal — pediu ela em voz baixa.


 

                                   Montségur

                                   Març 1244

Alaïs estava em pé sobre as muralhas da cidadela de Montségur, uma figura frágil e solitária com sua grossa capa de inverno. Sua beleza havia chegado com o passar dos anos. Ela era miúda, mas havia graça em seu rosto, em seu pesco­ço, no porte de seu corpo. Ela baixou os olhos para as próprias mãos. À luz da manhã que surgia, pareciam azuis, quase transparentes.

As mãos de uma velha.

Alaïs sorriu. Velha, não. Ainda era mais nova do que o pai ao morrer.

A luz era suave à medida que o sol nascente lutava para devolver ao mundo suas formas e apagar as silhuetas da noite. Alaïs fitou os picos abruptos e cobertos de neve dos Pireneus, que subiam e desciam no horizonte pálido, e as florestas de pinheiros cor de púrpura no flanco leste da montanha. Nuvens de aurora corriam acima das encostas irregulares do Pic de Sant-Bartélémy. Mais além, ela quase podia ver o Pic de Soularac.

Imaginou sua casa, simples e acolhedora, escondida nas fendas das coli­nas. Lembrou-se da fumaça saindo da chaminé em manhãs frias como aquela. Nas montanhas, a primavera demorava a chegar, e aquele inverno havia sido difícil, mas agora não faltava muito. Ela podia ver a promessa da primavera no tom rosado do céu do crepúsculo. Em Los Seres, às árvores logo começariam a florescer. Quando viesse abril, os pastos das montanhas estariam mais uma vez cobertos de delicadas flores azuis, brancas e amarelas.

Lá embaixo, Alaïs podia distinguir as construções ainda de pé que for­mavam o vilarejo de Montségur, as poucas cabanas e habitações que restavam depois de dez meses de cerco. O precário aglomerado de casas estava cercado pelos estandartes e barracas do exército francês, pontinhos de cor gastos e flâmulas ao vento, puídas nas beiradas. Eles haviam suportado o mesmo inver­no rigoroso dos moradores da cidadela.

Nas encostas ocidentais, no sopé da montanha, via-se uma paliçada de madeira. Os sitiantes a estavam erguendo havia vários dias. Na véspera, haviam cravado uma fileira de estacas pelo meio, uma espinha de madeira torta, cada pau sustentado por um montinho de aparas de madeira e palha. Ao entardecer, ela os vira instalar escadas nas extremidades.

Uma pira para queimar os hereges.

Alaïs estremeceu. Dali a algumas horas estaria tudo acabado. Não tinha medo de morrer quando chegasse sua hora, mas vira gente demais ser queima­da para ter qualquer ilusão de que a fé os pouparia da dor. Para aqueles que assim o desejavam, Alaïs havia fornecido remédios para anestesiar o sofrimen­to. A maioria escolhera partir sem ajuda deste mundo para o próximo.

As pedras arroxeadas sob seus pés estavam escorregadias por causa da neve. Alaïs traçou o desenho do labirinto com a ponta da bota no chão branco imaculado. Estava nervosa. Se o seu subterfúgio funcionasse, a busca pelo Li­vro das Palavras terminaria. Se falhasse, o preço seria a vida das pessoas que lhe haviam fornecido abrigo durante todos aqueles anos em nome do Graal — a gente de Esclarmonde, a gente de seu pai.

As conseqüências eram terríveis demais para serem concebidas.

Alaïs fechou os olhos e se deixou levar de volta através dos anos até a caverna do labirinto. Harif, Sajhë, ela própria. Lembrava-se da carícia suave do ar em seus braços nus, do tremeluzir das velas, das lindas vozes subindo em espiral pelo escuro. Lembrava-se de recordar as palavras à medida que as ia pronunciando, uma lembrança tão vivida que quase podia sentir seu gosto na língua.

Alaïs estremeceu, pensando no instante em que finalmente havia enten­dido, quando o encantamento lhe viera aos lábios como por moto próprio. Aquele único instante de êxtase, de iluminação, como se tudo que houvesse acontecido antes e tudo que ainda estava por acontecer houvesse se juntado de uma forma incomparável na hora em que o Graal se manifestara para ela.

E, por meio de sua voz e de suas mãos, para ele.

Alaïs soltou um arquejo. Ter vivido e tido experiências como aquela.

Um barulho a distraiu. Ela abriu os olhos e deixou o passado se desvane­cer. Virou-se para ver Bertrande andando em sua direção pelas ameias estrei­tas. Alaïs sorriu e ergueu a mão para lhe dar bom-dia.

Por temperamento, sua filha não era tão séria quanto Alaïs havia sido na mesma idade. Na aparência, porém, Betrande era igualzinha à mãe. O mesmo rosto em formato de coração, o mesmo olhar franco e os mesmos longos cabelos castanhos. Não fosse pelos cabelos grisalhos de Alaïs e pelas rugas em volta de seus olhos, as duas poderiam passar por irmãs.

A tensão da espera estava aparente na expressão de Bertrande.

— Sajhë diz que os soldados estão chegando — falou ela com a voz hesitante.

Alaïs fez que não com a cabeça.

Eles só vêm amanhã — disse ela com firmeza. — E daqui até lá ainda temos muito o que fazer. — Segurou as mãos frias de Bertrande entre as suas.— Estou contando com você para ajudar Sajhë e para cuidar de Rixende.Hoje à noite principalmente. Eles precisam de você.

Eu não quero perder você, mamà — disse a menina, com os lábiostrêmulos.

— Você não vai me perder — disse Alaïs sorrindo, rezando para que fosse verdade. — Logo todos nós vamos estar juntos. Você precisa ter paciên­cia. — Bertrande deu um sorriso débil. — Assim é melhor. Agora venha, filha. Vamos descer.

 

Na madrugada da quarta-feira, 16 de março, eles se reuniram junto ao Grande Portão de Montségur.

Das ameias, os membros da guarnição viram os cruzados enviados para prender os bons homes subirem o último trecho do caminho pedregoso, ainda escorregadio de gelo por ser ainda muito cedo de manhã.

Bertrande estava em pé com Sajhë e Rixende na frente do grupo. Estava tudo muito silencioso. Depois de meses de bombardeio incessante, ela ainda não havia se acostumado à ausência de barulho, agora que as manganelas e catapultas haviam se calado.

As duas últimas semanas haviam sido dias de paz. Para muitos, os últimos. A Páscoa fora celebrada. Os parfaits e algumas parfaites haviam jejuado. Ape­sar da promessa de perdão para quem abjurasse sua fé, quase metade da popu­lação da cidadela, incluindo Rixende, escolhera receber o consolament. Preferiam morrer como bons chrétiens do que viver derrotados sob a coroa francesa. As pessoas condenadas a morrer por sua fé haviam doado suas posses àquelas condenadas a viver sem quem amavam. Bertrande ajudara a distribuir presen­tes: cera, pimenta, sal, tecidos, sapatos, uma bolsa, calças, até mesmo um cha­péu de feltro.

Pierre-Roger de Mirepoix havia recebido de presente uma coberta rechea­da de moedas. Outros lhe ofereceram milho e jaquetas para ele distribuir entre seus homens. Marquesia de Lanatar dera todos os seus pertences à neta Philippa, mulher de Pierre-Roger.

Bertrande olhou em volta para os rostos silenciosos e rezou uma prece muda por sua mãe. Alais havia escolhido com cuidado as roupas de Rixende. O vestido era verde-escuro e a capa, vermelha, com as bordas e a bainha bordadas com um desenho complicado de quadrados e diamantes azuis e verdes, e flores amarelas. Sua mãe lhe explicara que era uma capa igual à que ela havia usado no dia de seu casamento na capèla Santa-Maria do Château Comtal. Alais tinha certeza de que sua irmã Oriane se lembraria, apesar de fazer tanto tempo.


Como precaução, Alais também havia fabricado uma pequena bolsa de pele de carneiro para ser carregada junto à capa vermelha, uma cópia da chemise dentro na qual cada um dos livros da Trilogia do Labirinto ficavam guarda­dos. Betrande a havia ajudado a recheá-la de tecido e folhas de pergaminho para que, pelo menos de longe, pudesse enganar. A menina não entendia de todo para que serviam todos aqueles preparativos, sabia apenas que eram im­portantes. Ficara encantada quando a haviam deixado ajudar.

Bertrande estendeu a mão e segurou a de Sajhë.

Os líderes da igreja cátara, bispo Bertrand Marty e Raymond Aguilher, ambos já velhos, estavam de pé em silêncio, vestidos com suas túnicas azuis-escuras. Durante anos, haviam ministrado seu culto de Montségur, viajando a partir da cidadela, pregando a palavra e levando conforto aos credentes dos lugarejos isolados das montanhas e planícies. Agora, estavam prontos para conduzir seu povo à fogueira.

Mamà vai ficar bem — sussurrou Bertrande, tentando reconfortar a si mesma tanto quanto Sajhë. Sentiu a mão de Rixende sobre seu ombro.

Eu queria que você não...

Eu fiz a minha escolha — disse Rixende depressa. — Escolho morrer com a minha fé.

 

E se levarem mamà? — sussurrou Bertrande. Rixende afagou seus cabelos.

Não podemos fazer nada a não ser rezar.

Quando os soldados chegaram onde eles estavam, Bertrande sentiu lá­grimas inundarem seus olhos. Rixende estendeu os pulsos para ser acorrentada. O rapaz sacudiu a cabeça. Não esperava que tantos fossem escolher a morte, então não trouxera correntes suficientes para prender todos eles.

Bertrande e Sajhë ficaram olhando calados enquanto Rixende e os ou­tros passavam pelo Grande Portão e iniciavam sua última descida pelo cami­nho íngreme e sinuoso da montanha. O vermelho da capa de Alais se destaca­va entre os discretos marrons e verdes, brilhante contra o céu cinzento.

Conduzidos pelo bispo Marty, os prisioneiros começaram a cantar. Montségur havia caído, mas eles não estavam derrotados. Betrande secou as lágrimas dos olhos com as costas da mão. Havia prometido à mãe que seria forte. Faria o possível para cumprir a promessa.

Lá embaixo, nas campinas da parte mais plana das encostas, arquibancadas haviam sido erguidas para os espectadores. Estavam lotadas. A nova aristocra­cia do Midi, barões franceses, colaboradores, legados católicos e inquisidores, convidados por Hugues des Arcis, senescal de Carcassona. Todos tinham vin­do ver a "justiça" ser feita depois de mais de trinta anos de guerra civil.


Guilhem apertou um pouco mais a capa em volta do corpo, tomando cuidado para não ser reconhecido. Depois de toda uma vida combatendo os franceses, seu rosto era bem familiar. Ele não podia se dar ao luxo de ser cap­turado. Olhou em volta.

Se as informações que havia recebido estivessem corretas, em algum lu­gar daquela multidão estava Oriane. Ele estava determinado a mantê-la longe de Alais. Mesmo depois de todo aquele tempo, o simples fato de pensar em Oriane lhe dava raiva. Ele cerrou os punhos, desejando poder agir naquele mesmo instante. Desejou não precisar se disfarçar e esperar, e simplesmente enfiar uma faca no peito dela como deveria ter feito trinta anos antes. Guilhem sabia que precisava ser paciente. Se tentasse alguma coisa agora, seria abatido antes mesmo de conseguir sacar a espada.

Correu os olhos pelas fileiras de espectadores até ver o rosto que estava procurando. Oriane estava sentada no meio da primeira fila. Não restava mais nada da dama do sul que ela havia sido um dia. Suas roupas eram caras e seguiam o estilo mais formal e elaborado do norte. Sua capa de veludo azul era debruada de ouro e tinha uma grossa gola de arminho em volta do pescoço e do capuz, combinando com suas luvas de inverno. Embora seu rosto ainda fosse atraente e bonito, havia emagrecido e era estragado pela expressão dura e amarga.

Junto com ela havia um rapaz. A semelhança era forte o suficiente para Guilhem adivinhar que aquele devia ser um de seus filhos. Louis, o mais ve­lho, que segundo ele ouvira dizer havia se unido à cruzada. O rapaz tinha a compleição e os cachos pretos de Oriane, e o perfil aquilino do pai.

Ouviu-se um grito. Guilhem virou-se para ver que a fila de prisioneiros havia chegado ao sopé da montanha e estava agora sendo conduzida em dire­ção à pira. Caminhavam depressa e com dignidade. Estavam cantando. Como um coro de anjos, pensou Guilhem ao ver a expressão de desconforto que a limpidez daquele canto provocava nos rostos dos espectadores.

O senescal de Carcassonne os esperava ao lado do arcebispo de Narbonne. A um sinal seu, uma cruz dourada foi erguida bem alto no ar e os frades negros e o clero deram um passo à frente para ocupar sua posição diante da paliçada.

Atrás deles, Guilhem podia ver uma fileira de soldados segurando tochas acesas. Eles se esforçavam para impedir que a fumaça fosse soprada na direção das arquibancadas enquanto as chamas batiam e estalavam ao vento frio e violento do norte.

Um a um, os nomes dos hereges foram anunciados. Eles se adiantavam e subiam as escadas para cima da pira. Guilhem sentiu-se anestesiado pelo hor­ror daquela cena. Detestava o fato de nada poder fazer para impedir as execu­ções. Mesmo que estivesse acompanhado por homens suficientes, sabia que os próprios condenados não desejariam ser salvos. Pela força das circunstâncias, mais do que por crença, Guilhem havia passado muito tempo na companhia dos bons homes. Admirava-os e respeitava-os, embora não pudesse dizer que os compreendia.

Os montes de aparas de madeira e palha haviam sido embebidos em piche. Alguns soldados haviam subido para dentro da fogueira e acorrentavam os parfaits e parfaites às estacas centrais.

O bispo Marty começou a rezar.

— Payre Sant, Dieu dreiturier dels bons esperits.

Aos poucos, outras vozes se juntaram à dele. O murmúrio foi ficando cada vez mais alto, até tornar-se um rugido. Nas arquibancadas, os espectado­res trocavam olhares envergonhados uns com os outros e começavam a ficar indóceis. Não fora àquilo que tinham vindo assistir.

O arcebispo fez um sinal apressado e o clero começou a cantar o salmo que havia se tornado o hino da cruzada, com suas túnicas pretas estalando ao vento. Veni Spirite Sancti, as palavras gritadas para abafar as preces cátaras.

O bispo deu um passo à frente e jogou a primeira tocha na pira. Os soldados seguiram seu exemplo. Um a um, os fachos foram atirados na foguei­ra. O fogo demorou a pegar, mas logo as faíscas e estalos se transformaram em um clamor. As chamas começaram a serpentear pela palha como cobras, cor­rendo para lá e para cá, subindo e inchando, rodopiando como as plantas aquáticas do rio.

Através da fumaça, Guilhem viu algo que fez seu sangue gelar. Uma capa vermelha, bordada de flores, e um vestido verde escuro cor de musgo. Aos empurrões, avançou até a frente da multidão.

Não conseguia — não queria — acreditar nos próprios olhos.

As lágrimas começaram a correr e ele viu a si mesmo, o homem que um dia havia sido, um jovem chevalier, arrogante, orgulhoso, confiante, ajoelhado na capèla Santa-Maria. Alais estava ao seu lado. Um casamento na época do Natal dava sorte, diziam alguns. Viu a azarola florida no altar e as velas verme­lhas tremeluzindo enquanto os dois trocavam seus votos.

Guilhem correu pelos fundos das arquibancadas, desesperado para che­gar mais perto, desesperado para provar a si mesmo que aquela não era ela. O fogo ardia com fúria. O cheiro enjoativo de carne humana queimada, surpre­endentemente doce, pairava acima dos espectadores. Os soldados recuaram. Até mesmo o clero foi obrigado a se afastar da fornalha.

O sangue chiava à medida que as solas dos pés dos condenados se partiam e os ossos escorregavam para dentro do fogo, como animais sendo assados em um espeto. As preces se tranformaram em gritos.


Guilhem estava sufocando, mas não parou. Segurando a capa por cima da boca e do nariz para se proteger da fumaça imunda, pungente, tentou che­gar perto dos muros da paliçada, mas a espiral de fumaça tampava tudo.

De repente, uma voz ecoou, límpida e precisa, de dentro da fogueira.

— Oriane!

Seria a voz de Alais? Guilhem não teve certeza. Protegendo o rosto com as mãos, cambaleou em direção ao som.

— Oriane!

Dessa vez houve um grito vindo das arquibancadas. Guilhem se virou e, através de uma fresta na fumaça, viu o rosto de Oriane contorcido de raiva. Ela estava em pé e fazia gestos frenéticos para os guardas.

Guilhem se imaginou gritando também o nome de Alais, mas não podia correr o risco de atrair atenção para si. Ele viera salvá-la. Viera ajudá-la a esca­par de Oriane, como já a havia ajudado antes.

Aqueles três meses passados com Alais depois de fugir dos inquisidores em Toulouse haviam sido simplesmente a época mais feliz de sua vida. Alais não quis ficar mais tempo, e ele não conseguiu convencê-la a mudar de idéia, nem sequer a lhe dizer por que precisava ir embora. Mas ela dissera — e Guilhem acreditara nela — que um dia, quando o horror houvesse terminado, eles ficariam juntos outra vez.

— Mon còr— sussurrou ele, quase um soluço.

Aquela promessa e a lembrança de seus dias juntos eram o que o havia sus­tentado durante aqueles anos longos e vazios. Como uma luz na escuridão. Guilhem sentiu o coração se partir.

-      Alaïs!

Na frente da capa vermelha, o pequeno embrulho branco de pele de carneiro, do tamanho de um livro, estava queimando. As mãos que o segura­vam não existiam mais. Haviam sido reduzidas a ossos, gordura que espirrava e carne carbonizada.

Ele sabia que não sobrava mais nada.

Para Guilhem, tudo virou silêncio. Não havia mais barulho, não havia mais dor, não havia mais nada a não ser um imenso espaço vazio. A montanha desapareceu, o céu, a fumaça e os gritos desapareceram. A esperança desapareceu.

Então, suas pernas não conseguiram mais sustentá-lo. Guilhem caiu de joelhos enquanto era tomado pelo desespero.


 

                     Montes Sabarthès

                     Sexta-feira, 8 de julho de 2005

O mau cheiro o fez acordar. Uma mistura de amoníaco, estrume de cabra, cobertas sujas e carne cozida fria. O fedor colava em sua garganta e fazia arder a parte interna de seu nariz, como sais de cheiro próximos demais.

Will estava deitado sobre um catre duro, não mais do que um banco, preso à parede da cabana. Conseguiu se erguer até uma posição sentada e recostou-se na parede de pedra. As arestas pontiagudas espetaram seus braços, ainda amarrados nas costas.

Ele tinha a sensação de ter lutado quatro rounds em um ringue de boxe. Seu corpo doía da cabeça aos pés nos pontos onde batera na lateral do porta-malas durante a viagem. Sua têmpora latejava no lugar onde François-Baptiste o havia golpeado com a arma. Ele podia sentir o hematoma debaixo da pele, rígido e inflamado, e o sangue em volta do ferimento.

Ele não sabia que horas eram nem em que dia estavam. Seria sexta-feira, ainda?

O dia estava amanhecendo quando saíram de Chartres; eram talvez cin­co da manhã. Quando o haviam tirado do carro, já passava do meio-dia, fazia calor e o sol ainda estava forte. Ele torceu o pescoço para tentar olhar o relógio de pulso, mas o movimento lhe provocou náusea.

Will esperou o enjôo passar. Então abriu os olhos e tentou se localizar. Parecia estar em algum tipo de cabana de pastor. Havia grades na pequena janela, que não era maior do que o tamanho de um livro. No canto mais afastado de onde ele estava havia uma estante embutida, como uma espécie de mesa, e um banquinho. Sobre a grelha ao lado havia os vestígios de um fogo apagado muito tempo antes, cinzas e aparas pretas de madeira ou papel. Uma pesada panela de metal estava pendurada em uma vara acima da grelha. Ele pôde ver gordura coagulada ao redor da borda.

Will deixou-se cair novamente sobre o colchão duro, sentindo o contato do cobertor áspero na pele machucada, e perguntou-se onde estaria Alice naquele momento.


Do lado de fora veio um ruído de passos, depois de uma chave sendo inserida em um cadeado. Will ouviu o arrastar metálico de uma corrente cain­do no chão, depois o rangido artrítico da porta sendo aberta e uma voz que ele reconheceu pela metade.

— C´est l´heure. — Está na hora.

Shelagh teve consciência do ar em seus braços e pernas descobertos e da sensa­ção de ser movida de um lugar para o outro.

Identificou a voz de Paul Authié em algum lugar em meio aos sons indis­tintos enquanto era transportada para fora da casa da fazenda. Então sentiu na pele o contato peculiar do ar subterrâneo, gelado e ligeiramente úmido, e sentiu o chão descendo. Ambos os homens que a haviam mantido presa estavam ali. Ela havia se acostumado com seu cheiro. Loção pós-barba, cigarros bara­tos, uma masculinidade ameaçadora que fazia seus músculos se contraírem.

Eles haviam amarrado de novo suas pernas e seus braços atrás das costas, forçando as articulações dos ombros. Um de seus olhos estava fechado de tão inchado. A combinação de falta de comida e luz com as drogas que eles lhe davam para mantê-la calada fazia sua cabeça girar, mas ela sabia onde estava.

Authié a havia levado de volta para a caverna. Ela sentiu a mudança na atmosfera quando eles emergiram do túnel para a câmara, sentiu a tensão nas pernas dele enquanto ele a carregava pelos degraus até a área abaulada mais abaixo, onde ela encontrara Alice inconsciente no chão.

Shelagh registrou o fato de que havia uma luz acesa em algum lugar, talvez no altar. O homem que a carregava parou. Eles haviam avançado até os fundos da câmara, além do ponto onde ela fora antes. Ele a retirou de cima dos ombros, um peso morto, e a largou. Ela pressentiu uma dor na lateral do corpo ao bater no chão, mas não conseguia sentir mais nada.

Não entendia por que eles ainda não a haviam matado.

Ele agora estava com as mãos em suas axilas, e a arrastava pelo chão. Cascalho, pedras, fragmentos de rocha pontiagudos cortavam as solas de seus pés e seus tornozelos expostos. Ela teve consciência da sensação das mãos ata­das sendo amarradas a alguma coisa fria e feita de metal, um anel ou argola enterrado no chão.

Supondo que ela ainda estivesse inconsciente, os homens conversavam em voz baixa.

Quantas bombas você armou?

Quatro.

Para explodir a que horas?

Logo depois das dez. Ele mesmo vai detonar. — Shelagh pôde ouvir o sorriso na voz do homem. — Vai sujar as mãos pela primeira vez. Um aperto no botão e bum! Todo mundo vai sair voando.

Ainda não entendo por que tivemos de arrastar essa daí até aqui em cima — reclamou o outro. — Era muito mais fácil deixar essa piranha na fazenda.

Ele não quer que ela seja identificada. Daqui a algumas horas, metade desta montanha vai desmoronar. Ela vai ser enterrada debaixo de meia tonela­da de pedra.

Por fim, o medo deu a Shelagh forças para lutar. Ela puxou as cordas que a prendiam e tentou se levantar, mas estava fraca demais e as pernas não a sustentavam. Pensou ter ouvido uma risada enquanto caía de novo no chão, mas não pôde ter certeza. Agora já não tinha certeza do que era real e do que só acontecia dentro de sua cabeça.

— Não é para ficarmos aqui com ela?O outro homem riu.

— O que ela vai fazer? Levantar e sair andando daqui? Meu Deus, olhe para ela!

A luz começou a diminuir.

Shelagh ouviu os passos dos homens ficando cada vez mais distantes, até não restar nada a não ser silêncio e escuridão.


 

— Eu quero saber a verdade — repetiu Alice. — Quero saber como o labirin­to e o Graal estão relacionados. Se é que eles estão relacionados.

A verdade sobre o Graal — disse ele. Fixou os olhos nela. — Diga-me, madomaisèla, o que você sabe sobre o Graal?

As coisas de sempre, acho — disse ela, supondo que ele não esperasse realmente que ela respondesse a sério.

— Não, de verdade. Estou interessado em saber o que você descobriu.Alice se mexeu na cadeira, pouco à vontade.

— Acho que continuo acreditando na idéia habitual de que era um cáli­ce contendo um elixir que concedia a dádiva da vida eterna.

Alice calou-se e olhou para Baillard, encabulada.

Uma dádiva? — perguntou ele, sacudindo a cabeça. — Não, uma dádiva não. — Ele suspirou. — E de onde você acha que vêm essas histórias?

Da Bíblia, imagino eu. Ou talvez dos pergaminhos do Mar Morto.Talvez de algum outro escrito cristão primitivo, não tenho certeza. Na verda­de nunca pensei no assunto deste jeito antes.

Audric assentiu.

— Essa concepção equivocada é comum. Na verdade, as primeiras ver­sões da história que você conhece vêm do século XII, apesar de existirem seme­lhanças óbvias com temas na literatura clássica e celta. E na França medieval em particular.

A lembrança do mapa que ela havia encontrado na biblioteca de Toulouse veio-lhe subitamente à cabeça.

— Como o labirinto.

Ele sorriu, mas não disse nada.

— Durante o último quarto do século XII viveu um poeta chamado Chrétien de Troyes. Sua primeira patronnesse foi Marie, uma das filhas de Eleanor da Aquitânia, que era casada com o conde de Champagne. Depois que Marie morreu, em 1181, um de seus primos, Felipe da Alsácia, conde de Flandres, virou seu patrono.


"Chrétien era muito popular na época. Havia construído sua reputação traduzindo histórias clássicas do latim e do grego, antes de se dedicar a com­por uma série de histórias cavaleirescas sobre os cavaleiros que você deve co­nhecer como Lancelote, Gawain e Percival. Esses escritos alegóricos deram origem a uma enxurrada de histórias sobre o rei Artur e seus Cavaleiros da Távola Redonda. — Ele fez uma pausa. — A história de Percival, Li contes del Graal, é a narrativa mais antiga sobre o Santo Graal de que se tem notícia."

— Mas... — Alice começou a protestar. Franziu o cenho. — Ele certa­mente não pode ter inventado essa história? Não uma coisa assim. A história não pode ter surgido do nada.

Outra vez, o mesmo meio-sorriso surgiu no rosto de Audric.

Quando lhe pediram para identificar suas fontes, Chrétien alegou que tinha lido a história do Graal em um livro que fora presente de seu patrono,Felipe. De fato, é a ele que a história do Graal é dedicada. Infelizmente, Felipe morreu no cerco a Acra em 1191, durante a Terceira Cruzada. Por isso, o poema nunca foi terminado.

O que aconteceu com Chrétien?

Não existe registro dele depois da morte de Felipe. Ele simplesmen­te sumiu.

Não é estranho, ele sendo tão famoso?

É possível que a morte dele não tenha sido registrada — disse Baillard reticente.

Alice ergueu os olhos para ele, atenta.

— Mas o senhor não acha isso?Audric não respondeu.

— Apesar da decisão de Chrétien de não terminar sua história, mesmo assim a narrativa do Santo Graal ganhou vida própria. Foram feitas adapta­ções diretas do francês antigo para o holandês médio e o galês antigo. Alguns anos depois, por volta de 1200, outro poeta, Wolfram von Eschenbach, escre­veu uma versão um tanto burlesca da história, Parzival. Segundo ele, não estava seguindo a versão de Chrétien, mas sim outra história, de autoria desconhecida.

Alice estava muito concentrada.

Como Chrétien descreve de fato o Graal?

Ele é bem vago. Apresenta o Graal como uma espécie de vasilha, mais do que um cálice, como o latim medieval gradalis, de onde vem o francês antigo gradal ou graal. Eschenbach é mais explícito. O Graal dele, o grâl, é uma pedra.

Então de onde vem a idéia de que o Santo Graal é o cálice usado por Cristo na Ultima Ceia?


Audric juntou os dedos das duas mãos.

— De outro escritor, um homem chamado Robert de Boron. Em algum momento entre o Perceval de Chrétien e 1199, ele escreveu um poema em verso, Joseph d´Arimathie. De Boron não apenas descreve o Graal como um recipiente, o cálice da Última Ceia, a que se refere como san greal, mas tam­bém diz que ele está cheio do sangue tirado da cruz. Em francês moderno, o sang real, o sangue "verdadeiro" ou "real".

Ele parou e ergueu os olhos para Alice.

Para os guardiães da Trilogia do Labirinto, essa confusão lingüística, san greal e sang réal, era um disfarce conveniente.

Mas o Santo Graal é um mito — disse ela, teimando. — Não pode ser verdade.

O Santo Graal é um mito, sem dúvida — disse ele, olhando-a nos olhos. — Uma fábula atraente. Se olhar de perto, você verá que todas essas histórias são embelezamentos do mesmo tema. O conceito medieval cristão de sacrifício e busca, que conduz à redenção e à salvação. O Santo Graal, em termos cristãos, era espiritual: uma representação simbólica da vida eterna,mais do que algo que devesse ser entendido como uma verdade literal. Por meio do sacrifício de Cristo e da graça de Deus, a humanidade viveria para sempre. — Ele sorriu. — Mas não resta dúvida de que algo como o Graal existe de fato. E essa a verdade contida nas páginas da Trilogia do Labirinto.Foi isso que os guardiães do Graal, a Noublesso de los Seres, deram a vida para manter em segredo.

Alice sacudia a cabeça, incrédula.

O senhor está dizendo que o Graal não é de forma alguma um con­ceito cristão. Que todos esses mitos e lendas foram construídos em cima de...um mal-entendido.

Um subterfúgio, mais do que um mal-entendido.

Mas, por 2 mil anos, o que se discutiu foi a existência do Santo Graal. Se agora for revelado não apenas que essas lendas sobre o Graal são verdade mas... — Alice se interrompeu. Achava difícil acreditar no que estava dizendo. — Mas que ele não é de modo algum uma relíquia cristã, não consi­go nem imaginar...

O Graal é um elixir que tem o poder de curar e de prolongar a vida deforma significativa. Mas com um objetivo. Ele foi descoberto há mais ou me­nos 4 mil anos, no Egito Antigo. E as pessoas que o desenvolveram e tomaram consciência de seu poder perceberam que o segredo precisava ser protegido daqueles que o usariam em benefício próprio, e não para o bem dos outros. O conhecimento sagrado foi registrado com hieróglifos em três folhas de papiro separadas. Um dos papiros fornecia o desenho preciso da câmara do Graal, o labirinto em si; o segundo listava os ingredientes necessários para a preparação do elixir; e o terceiro era o encantamento que operava a transformação do elixir no Graal. Os papiros foram enterrados em cavernas nos arredores da antiga cidade de Avaris.

— No Egito — disse ela depressa. — Quando eu estava pesquisan­do, tentando entender o que tinha visto aqui, percebi que o Egito aparecia muitas vezes.

Audric aquiesceu.

— Os papiros estão escritos em hieróglifos clássicos: a própria palavra hieróglifo significa "palavras de Deus" ou "fala divina". À medida que as gran­des civilizações do Egito sucumbiram à ruína e à decadência, a capacidade de ler os hieróglifos foi perdida. O conhecimento contido nos papiros foi preser­vado, passado de guardião a guardião através das gerações. Mas a capacidade de dizer o encantamento e de invocar o Graal se perdeu.

"Esses acontecimentos foram fortuitos, mas eles, por sua vez, vieram so­mar mais uma camada de segredo", continuou ele. "No século IX da era cristã, um alquimista árabe, Abu Bakr Ahmad Ibn Wahshiyah, decodificou o segre­do dos hieróglifos. Felizmente, Harif, o Navigatairé, teve consciência do peri­go e conseguiu impedir suas tentativas de compartilhar aquele conhecimento. Naquela época, os centros de aprendizado eram poucos, e a comunicação en­tre os povos era lenta e inexata. Depois disso, os papiros foram contrabandeados para Jerusalém e escondidos em câmaras subterrâneas nas planícies de Sepal.

"Do século IX ao século XIX, ninguém fez nenhum progresso significa­tivo que permitisse decifrar os hieróglifos. Ninguém. Seu significado só foi elucidado quando a expedição científica e militar de Napoleão ao norte da África, em 1799, descobriu uma inscrição detalhada na língua sagrada dos hieróglifos, no egípcio demótico corrente da época e em grego antigo. Já ou­viu falar na Pedra de Rosetta?"

Alice assentiu.

— Dali em diante, tivemos medo de que fosse apenas uma questão de tempo. Um francês, Jean-François Champollion, tornou-se obcecado por quebrar o código. Em 1822, ele conseguiu. As maravilhas dos antigos, sua magia, seus feitiços, tudo, desde inscrições funerárias até o Livro dos Mortos, tudo passou de repente a poder ser lido. — Ele fez uma pausa. — A partir daí, o fato de que dois dos livros da Trilogia do Labirinto estavam nas mãos de pessoas que podiam fazer mau uso deles se tornou motivo de medo e preocupação.

Suas palavras soaram como um aviso. Alice estremeceu. Subitamente, percebeu que o dia havia ido embora. Do lado de fora, os raios do poente haviam pintado as montanhas de vermelho, dourado e laranja.


— Se esse conhecimento era tão devastador assim caso fosse usado para o mal e não para o bem, então por que Alais ou os outros guardiães não des­truíram os livros quando tiveram oportunidade? — perguntou ela.

Sentiu Audric se retesar. Alice percebeu que havia atingido o âmago da experiência dele, da história que ele estava contando, mesmo sem enten­der como.

Se eles não fossem necessários, teria sido possível. Talvez essa pudesse ter sido uma solução.

Necessários? Como assim necessários?

Os guardiães sempre souberam que o Graal concede a vida. Você chama isso de dádiva e... — Ele prendeu a respiração. — ... eu entendo que algumas pessoas possam pensar assim. Outras podem ver a questão de outra forma. — Audric parou de falar. Estendeu a mão para pegar o copo e bebeu vários goles de vinho, antes de tornar a pousá-lo sobre a mesa com a mão pesada. — Mas a vida é dada com um objetivo.

Que objetivo? — perguntou ela depressa, com medo de que ele parasse.

Muitas vezes, durante os últimos 4 mil anos, quando houve uma necessidade forte de dar testemunho, o poder do Graal foi invocado. Conhe­cemos os grandes e longevos patriarcas da Bíblia cristã, do Talmude, do Alco­rão. Adão, Jacó, Moisés, Maomé, Matusalém. Profetas cuja obra não poderia ser cumprida no espaço de vida concedido normalmente. Todos eles viveram centenas de anos.

— Mas isso são parábolas — protestou Alice. — Alegorias.Audric sacudiu a cabeça, negando.

Eles sobreviveram por séculos justamente para poderem falar sobre o que haviam presenciado, dando testemunho sobre a verdade de seu tempo.Harif, que convenceu Abu Bakr a esconder sua obra que revelava a língua do Antigo Egito, viveu para ver a queda de Montségur.

Mas isso são quinhentos anos.

Eles viveram — repetiu Audric simplesmente. — Pense na vida de uma borboleta, Alice. Uma existência inteira, tão brilhante, mas que dura apenas um dia humano. Uma vida inteira. O tempo tem muitos significados.

Alice empurrou a cadeira para trás e afastou-se da mesa, sem saber mais o que estava sentindo, no que podia acreditar. Ela se virou.

— O símbolo do labirinto que eu vi na parede da caverna, no anel que o senhor usa: é esse o símbolo do verdadeiro Graal?

Ele aquiesceu.

— E Alaïs? Ela sabia disso?


No início, como você, ela foi cética. Não acreditava na verdade con­tida dentro das páginas da Trilogia, mas lutava para protegê-la por amor ao pai.

Ela acreditava que Harif tinha mais de quinhentos anos de idade? —insistiu Alice, sem tentar mais esconder o ceticismo na própria voz.

Não, no começo não — admitiu ele. — Mas, com o tempo, passou a ver a verdade. E quando chegou a sua hora, ela se descobriu capaz de pronun­ciar as palavras, de entender as palavras.

Alice voltou para junto da mesa e se sentou.

— Mas por que a França? Por que os papiros foram levados para lá? Porque não deixá-los onde estavam?

Audric sorriu.

— Harif levou os papiros para a Cidade Sagrada no século X da era cristã e mandou que fossem escondidos perto das planícies de Sepal. Durante quase cem anos, eles ficaram seguros, até os exércitos de Saladino avançarem sobre Jerusalém. Ele então escolheu um dos guardiães, um jovem chevalier cristão chamado Bertrand Pelletier, para levar os papiros para a França.

O pai de Alaïs.

Alice percebeu que estava sorrindo, como se acabasse de ter notícias de um velho amigo.

Harif percebeu duas coisas — continuou Audric. — Primeiro, que os papiros estariam mais seguros, menos vulneráveis, guardados entre as páginas de um livro. Segundo, que já que os boatos sobre o Graal estavam começando a circular entre as cortes européias, a melhor maneira de esconder a verdade era debaixo de uma camada de mito e fábula.

As histórias sobre os cátaros possuírem o cálice de Cristo — disse Alice, compreendendo subitamente.

Baillard assentiu.

Os seguidores de Jesus, o Nazareno não esperavam que ele morresse na cruz, mas assim foi. Sua morte e sua ressurreição ajudaram a dar origem a histórias sobre um copo ou cálice, um graal que concedia vida eterna. Não sei dizer como essas histórias foram interpretadas na época, mas o que é certo é que a crucifixão do Nazareno deu origem a uma onda de perseguições. Muitos fugiram da Terra Santa, incluindo José de Arimatéia e Maria Madalena, que foram de navio para a França. Dizem que eles levaram consigo o conhecimen­to de um antigo segredo.

Os papiros do Graal?

Ou então um tesouro, jóias tiradas do Templo de Salomão. Ou então o cálice no qual Jesus, o Nazareno havia bebido durante a Última Ceia e onde seu sangue havia sido colhido quando ele estava pendurado na cruz. Ou então pergaminhos, escritos, provas de que Cristo não tinha morrido crucificado mas ainda vivia, escondido nas montanhas do deserto por cem anos e mais, na companhia de um grupo de fiéis eleitos.

Alice ficou olhando para Audric, atônita, mas o rosto dele era um livro fechado, e ela não conseguiu ler nada ali.

Provas de que Cristo não morreu na cruz — repetiu ela, mal capaz de acreditar no que estava dizendo.

Ou outras histórias — disse ele. —Alguns diziam que Maria Madalena e José de Arimatéia haviam atracado em Narbonne, e não em Marselha. Du­rante séculos, o fato de que algo de grande valor estava escondido em algum lugar dos Pireneus foi uma crença comum.

Então não eram os cátaros que possuíam o segredo do Graal — disse ela, juntando os pedaços na cabeça —, mas sim Alais. Eles a protegeram.

Um segredo escondido atrás de outro segredo. Alice recostou-se na ca­deira, rememorando na mente a seqüência dos acontecimentos.

E agora a caverna do labirinto foi aberta.

Pela primeira vez em quase oitocentos anos, os livros podem mais uma vez ser reunidos — disse ele. — E apesar de você, Alice, não saber se deve confiar em mim ou considerar o que estou dizendo alucinações sem sentido deum velho, existem outras pessoas que não duvidam.

Alaïs acreditava na verdade do Graal.

Bem lá no fundo, além dos limites de seu pensamento consciente, Alice sabia que ele estava dizendo a verdade. Era o seu eu racional que achava aquilo difícil de acreditar.

Marie-Cécile — disse ela, desanimada.

Hoje à noite, madame de l´Oradore vai entrar na caverna do labirinto e tentar invocar o Graal.

Alice sentiu uma onda de apreensão varrer-lhe o corpo.

Mas ela não pode fazer isso — disse depressa. — Ela não tem o Livro das Palavras. Ela não tem o anel.

Receio que ela tenha entendido que o Livro das Palavras ainda deve estar dentro da câmara.

E está?

Não tenho certeza.

E o anel? Ela também não tem o anel. — Alice baixou os olhos para as mãos magras dele, espalmadas sobre a mesa.

Ela sabe que eu vou.

Mas isso é loucura — explodiu ela. — Como o senhor pode sequer pensar em chegar perto dela?


— Hoje à noite ela vai tentar invocar o Graal — disse ele com sua voz baixa, firme. — Por causa disso, ela sabe que eu vou. Eu não posso deixar isso acontecer.

Alice bateu na mesa com as mãos.

E Will? E Shelagh? O senhor não liga para eles? Se for capturado também, não vai ajudá-los.

É justamente porque eu ligo para eles... porque ligo para você, Alice que eu vou. Eu acho que Marie-Cécile pretende forçá-los a participar da cerimônia. Tem de haver cinco participantes, o Navigatairé e quatro outros.

Marie-Cécile, o filho dela, Will, Shelagh e Authié?

Não, Authié não. Outra pessoa.

       — Quem, então?Ele não respondeu.

Não sei onde Shelagh e Will estão agora, mas acho que vamos descobrir se eles os estão levando para a caverna quando a noite chegar — disse como se pensasse em voz alta.

Quem, Audric? — repetiu Alice, mais firme dessa vez.

Ele tornou a não responder. Levantou-se, andou até a janela e fechou as persianas, antes de se virar de frente para ela.

— Temos de ir.

Alice estava frustrada, nervosa, atônita, e acima de tudo assustada. Ainda assim, ao mesmo tempo, sentia que não tinha escolha.

Pensou no nome de Alaïs na árvore genealógica, separado por oitocentos anos do seu. Visualizou o símbolo do labirinto, que as conectava através tempo e do espaço.

Duas histórias em uma só.

Alice recolheu suas coisas e seguiu Audric para fora da casa, onde esvaíam-se os últimos vestígios do dia.

 

                                 Montségur

                                 Març 1244

Em seu esconderijo debaixo da citadela, Alaïs e seus três companheiros tenta­vam não prestar atenção no barulho agonizante da tortura. Mas os gritos de dor e o horror penetravam até mesmo a espessa rocha das montanhas. Os lamentos dos que morriam e também dos sobreviventes esgueiravam-se como monstros para dentro de seu refúgio.

Alaïs rezou pela alma de Rixende, para que ela retornasse a Deus, rezou por todos os seus amigos, homens e mulheres bons, rezou por aquele fim tão triste. Tudo que podia esperar era que seu plano houvesse funcionado.

Somente o tempo diria se Oriane se deixara enganar e pensava que Alaïs e o Livro das Palavras haviam sido consumidos pelas chamas.

Um risco tão grande.

Alaïs, Harif e seus guias permaneceriam em sua tumba de pedra até o cair da noite, quando a evacuação da cidadela houvesse terminado. Então, sob o abrigo da escuridão, os quatro fugitivos desceriam os caminhos escarpados da montanha e iriam para Los Seres. Com sorte, ela estaria em casa ao cair da noite seguinte.

Eles estavam violando claramente as condições da trégua e da capitula­ção. Caso fossem pegos, Alaïs não tinha dúvidas de que a punição seria rápida e brutal. A caverna não passava de uma fenda na rocha, estreita e próxima da superfície. Se os soldados fizessem uma busca cuidadosa na cidadela, eles seriam facilmente descobertos.

Ao pensar na filha, Alaïs mordeu o lábio. No escuro, sentiu Harif segurar sua mão. A pele dele era seca e empoeirada, como as areias do deserto.

Bertrande é forte — disse ele, como se soubesse o que a estava preocupando. — Como você, ei A coragem dela vai resistir. Logo vocês duas estarão juntas de novo. Não vai demorar muito.

Mas ela é tão novinha, Harif, nova demais para testemunhar essas coisas. Deve estar com tanto medo...

— Ela é corajosa, Alaïs. Sajhë também. Eles não vão nos decepcionar.Se eu soubesse que você tem razão...

No escuro, com o coração contraído de dúvida e medo pelo que estava por vir, Alaïs ficou sentada com os olhos secos, esperando o dia passar. A expectativa, o fato de não saber o que estava acontecendo lá em cima, era quase insuportável. A imagem do rosto pálido e branco de Bertrande continuava a assombrá-la.

E os gritos dos bons homes enquanto o fogo os engolia ecoaram em sua cabeça por muito tempo depois de a última vítima ter se calado.

Uma imensa nuvem de fumaça acre pairava sobre o vale, como uma nuvem de tempestade, impedindo a entrada da claridade.

Sajhë segurava a mão de Bertrande com força quando atravessaram o Grande Portão e saíram do castelo que havia sido seu lar por quase dois anos. Ele havia trancado a própria dor bem no fundo do coração, em um lugar onde os inquisidores não pudessem alcançá-la. Não choraria por Rixende agora. Não podia temer por Alaïs agora. Precisava se concentrar em proteger Bertrande e conseguir que voltassem os dois sãos e salvos para Los Seres.

As mesas dos inquisidores estavam prontas no sopé das encostas. O processo começaria imediatamente, à sombra da pira. Sajhë reconheceu o inquisidor Ferrier, homem odiado em toda a região por sua aderência rígida tanto ao espírito quanto à forma da lei eclesiástica. Desviou os olhos para a direita, onde estava o companheiro de Ferrier. O inquisidor Duranti não era menos temido.

Ele apertou com mais força a mão de Bertrande.

Quando chegaram ao terreno plano, Sajhë percebeu que estavam divi­dindo os prisioneiros. Homens velhos, membros da guarnição e rapazes eram mandados para um lado, mulheres e crianças para o outro. Ele sentiu um lampejo de medo. Bertrande teria de enfrentar os inquisidores sem ele.

Ela sentiu sua mudança de atitude e olhou para cima, assustada, para o rosto dele.

O que está acontecendo? O que eles vão fazer conosco?

Brava, eles estão interrogando os homens e mulheres em separado — disse ele. — Não se preocupe. Responda às perguntas deles. Seja corajosa e fique exatamente onde estiver até eu ir buscar você. Não vá a lugar nenhum, com mais ninguém, entendeu? Ninguém mesmo.

O que eles vão me perguntar? — indagou ela com a voz mirrada.

Como você se chama, quantos anos você tem — respondeu Sajhë, repassando mais uma vez todos os detalhes que ela precisava memorizar. — Eu sou conhecido como membro da guarnição, mas não há motivo para que eles associem você a mim. Quando perguntarem, diga que não sabe quem é seu pai. Diga que é filha de Rixende e diga que morou a vida inteira aqui em Montségur. O que quer que aconteça, não mencione Los Seres. Você conse­gue se lembrar de tudo isto?

Bertrande fez que sim com a cabeça.

— Boa menina. — Então, tentando reconfortá-la, ele acrescentou: — Minha avó costumava me pedir para passar recados para ela quando eu tinha a mesma idade que você tem agora. Ela me fazia repetir os recados várias vezes até ter certeza de que cada palavra estava perfeita.

Bertrande deu um sorriso débil.

Mamà diz que a sua memória é péssima. Parece uma peneira, diz ela.

Ela tem razão — disse ele, depois tornou a ficar sério. — Talvez eles também façam algumas perguntas sobre os bons homes e sobre as coisas em que eles acreditam. Responda o mais honestamente que puder. Assim você corre menos risco de se contradizer. Não há nada que você possa dizer a eles que eles já não tenham escutado de alguma outra pessoa. — Ele hesitou, e acrescentou mais um lembrete. — Lembre-se. Não mencione nenhuma vez Alaïs nem Harif.

Os olhos de Bertrande se encheram de lágrimas.

E se os soldados revistarem a cidadela e a encontrarem? — perguntou, a voz se erguendo com o pânico. — O que eles vão fazer se os encontrarem?

Não vão encontrá-los — respondeu ele depressa. — Lembre-se, Bertrande. Quando os inquisidores terminarem de interrogar você, fique exa­tamente onde estiver. Eu irei buscar você assim que puder.

Sajhë mal teve tempo de terminar a frase quando um guarda o empurrou pelas costas e o forçou a descer mais um pedaço do declive em direção ao vilarejo. Bertrande foi conduzida na direção oposta.

Ele foi levado até um cercado de madeira, onde viu Pierre-Roger de Mirepoix, comandante da guarnição. Ele já havia sido interrogado. Sajhë interpretou esse fato como um bom sinal, uma cortesia. Sugeria que os termos da rendição estavam sendo respeitados e que os homens da guarnição estavam sendo tratados como prisioneiros de guerra, não como criminosos.

Quando se juntou à multidão de soldados que esperavam a hora de se­rem chamados, Sajhë tirou do polegar o anel de pedra e o escondeu debaixo da roupa. Sentia-se estranhamente nu sem ele. Desde que Harif lhe dera o anel, vinte anos antes, raramente o havia tirado do dedo.

Os interrogatórios aconteciam dentro de duas barracas separadas. Frades aguardavam com cruzes amarelas para prender nas costas daqueles condena­dos por terem confraternizado com hereges, e então esses prisioneiros eram levados para uma área cercada secundária, mais abaixo, como animais em um mercado.

Estava claro que não tinham a intenção de liberar ninguém até que todos, do mais velho ao mais novo, houvessem sido interrogados. O processo levaria dias.

Quando chegou a vez de Sajhë, deixaram que ele entrasse na barraca desacompanhado. Ele parou na frente do inquisidor Ferrier e aguardou.

O rosto de cera de Ferrier não expressava nada. Ele perguntou o nome de Sajhë, sua idade, sua patente e sua cidade natal. A pena de ganso arranhava o pergaminho.

Você acredita no céu e no inferno? — perguntou, abrupto.

Acredito.

Você acredita no purgatório?

Acredito.

—Você acredita que o filho de Deus foi criado como um homem perfeito?

Eu não sou monge, sou soldado — retrucou ele, mantendo os olhos fixos no chão.

Você acredita que a alma humana só tem um corpo, e que nesse corpo e com esse corpo será ressuscitada?

Os padres dizem que é isso que acontece.

Você já ouviu alguém dizer que jurar é pecado? Se já ouviu, quem?Dessa vez Sajhë ergueu os olhos.

Não, nunca ouvi — disse, desafiador.

Vamos, sargento. Você serviu na guarnição por mais de um ano e não sabe que os heretici se recusam a jurar?

Eu sirvo a Pierre-Roger de Mirepoix, inquisidor. Não presto atenção nas palavras dos outros.

O interrogatório prosseguiu por algum tempo, mas Sajhë se manteve fiel a seu papel de simples soldado, alegando ignorar qualquer assunto relativo às escrituras ou à doutrina. Não incriminou ninguém. Afirmou não saber de nada.

No final, o inquisidor Ferrier não teve outra escolha senão soltá-lo.

Ainda era final de tarde, mas o sol já estava se pondo. O crepúsculo retornava ao vale, roubando as formas das coisas e cobrindo a tudo com som­bras pretas.

Sajhë foi se juntar a um grupo de outros soldados que já haviam sido interrogados. Cada um deles havia recebido um cobertor, um naco de pão dormido e uma caneca de vinho. Ele pôde ver que essa gentileza não havia sido estendida aos prisioneiros civis.

Conforme o dia ia terminando, Sajhë ficava mais desanimado.

Não saber se o interrogatório de Bertrande havia terminado — nem sequer em que lugar do vasto acampamento ela estava — o consumia. Enchia-o de apreensão pensar em Alaïs esperando, vendo a luz diminuir, com a ansie­dade aumentando à medida que se aproximava a hora da partida; o sentimento se tornava ainda pior já que ele era incapaz de fazer qualquer coisa para ajudar.

Inquieto e sem conseguir relaxar, Sajhë se levantou para esticar o corpo. Podia sentir a umidade e o frio penetrando em seus ossos, e tinha as pernas dormentes de tanto ficar sentado.

— Assis — rosnou um dos guardas, batendo em seu ombro com a lança. Ele estava prestes a obedecer quando percebeu uma movimentação mais em cima na montanha. Uma patrulha de revista encaminhava-se para o promontó­rio rochoso onde Alaïs, Harif e os guias estavam escondidos. As chamas de suas tochas tremeluziam, lançando sombras nos arbustos que se agitavam ao vento.

O sangue de Sajhë gelou.

Eles haviam revistado o castelo mais cedo, sem encontrar nada. Ele pen­sou que estivesse tudo terminado. Mas era óbvio que tinham a intenção de vasculhar o subterrâneo e o labirinto de caminhos que percorriam as funda­ções da cidadela. Se seguissem mais um pouco naquela direção, chegariam bem no lugar por onde Alaïs sairia. E já era quase noite.

Sajhë começou a correr em direção ao perímetro do cercado.

— Ei! — gritou o guarda. — Não ouviu o que eu disse? Arrete! Sajhë o ignorou. Sem pensar nas conseqüências, pulou por cima da cerca de madeira e começou a correr encosta acima, em direção à patrulha de revis­ta. Pôde ouvir o guarda chamando reforços. Tudo em que conseguia pensar era desviar a atenção deles de Alaïs.

A patrulha parou e olhou para ver o que estava acontecendo.

Sajhë gritou, querendo que eles passassem de espectadores a participan­tes. Um a um, eles se viraram. Ele viu a perplexidade em seus rostos se trans­formar em agressividade. Estavam entediados e com frio, loucos por uma briga.

Sajhë mal teve tempo de perceber que seu plano havia funcionado quan­do um punho fechado enterrou-se em sua barriga. Ele arquejou à procura de ar e dobrou o corpo para a frente. Dois dos soldados seguraram seus braços para trás e os socos começaram a vir de todas as direções. Cabos das armas, botas, punhos: o ataque foi inclemente. Ele sentiu a pele abaixo de seu olho se partir. Podia sentir gosto de sangue na língua e no fundo da garganta enquan­to os golpes continuavam a chover sobre ele.

Só então reconheceu seu erro de julgamento a respeito da situação. Ele havia pensado apenas em desviar a atenção de Alaïs. Uma imagem do rosto pálido de Bertrande à sua espera surgiu em sua mente no mesmo instante em que um murro atingiu-lhe o queixo e tudo escureceu.

 

Oriane havia dedicado a vida à busca pelo Livro das Palavras.

Logo depois de voltar a Chartres depois da derrota de Carcassonne, seu marido havia perdido a paciência com o fato de ela não conseguir obter o prê­mio pelo qual ele havia pagado. Nunca houvera amor entre eles, e quando o desejo que ele sentia por ela diminuiu, seu punho e seu cinto substituíram o diálogo.

Ela suportava as surras, o tempo todo inventando maneiras de se vingar dele. Conforme sua riqueza e o tamanho de suas terras cresciam, e sua influên­cia junto ao rei francês aumentava, a atenção de Evreux foi atraída para outros prêmios. Ele a deixou em paz. Livre para continuar sua busca, Oriane pagou informantes e contratou uma rede de espiões no Midi, todos à procura de informações.

Somente uma vez Oriane chegara perto de capturar Alaïs. Em maio de 1234, ela havia deixado Chartres e viajado até Toulouse. Ao chegar à catedral de Saint-Etienne, descobrira que os guardas haviam sido subornados e sua irmã havia tornado a desaparecer, como se nunca houvesse existido.

Oriane estava decidida a não tornar a cometer o mesmo erro. Dessa vez, ao escutar um boato sobre uma mulher da idade certa, com a descrição certa, Oriane havia descido até o sul com um de seus filhos, fingindo estar acompa­nhando a cruzada.

Naquela manhã, pensava ter visto o livro queimar à luz púrpura da auro­ra. Estar tão perto e ainda assim fracassar havia provocado nela uma ira tal que nem seu filho Louis nem os criados conseguiam aplacar. No decorrer da tarde, porém, Oriane se pusera a revisar sua interpretação dos acontecimentos da manhã. Se era mesmo Alaïs que tinha visto — e até isso ela já questionava —seria provável que ela fosse deixar o Livro das Palavras queimar em uma pira inquisitorial?

Oriane concluiu que não. Mandou seus criados até o acampamento em busca de informação e descobriu que Alaïs tinha uma filha, uma menina de nove ou dez anos, cujo pai era um soldado a serviço de Pierre-Roger de Mirepoix.


Oriane não acreditava que a irmã fosse ter confiado um objeto tão precioso assim a um membro da guarnição. Os soldados seriam revistados. Mas uma criança?

Oriane esperou escurecer antes de se encaminhar para a área onde as mulheres e crianças estavam presas. Subornou um dos guardas para entrar no cercado. Ninguém perguntou nada nem a deteve. Ela pôde sentir os olhares desaprovadores dos frades negros ao passar, mas a reprovação deles não a comoveu.

Seu filho, Louis, surgiu na sua frente, o rosto arrogante afogueado. Ele estava sempre tão desesperado para que ela o aprovasse sempre tão ansioso para agradar.

Oui?— lançou ela. — Qu´est-ce que tu veux?

Il y a une filie que vous de vez voir, maman.

Oriane o seguiu até o outro extremo do cercado, onde uma menina dor­mia afastada dos outros.

A semelhança física com Alaïs era notável. Não fosse a passagem dos anos, Oriane poderia estar olhando para a gêmea da irmã. A menina tinha a mesma expressão de determinação firme, a mesma compleição de Alaïs na­quela idade.

— Deixe-me sozinha — disse ela. — Ela não vai confiar em mim com você aqui.

Louis fez cara de desapontado, o que a irritou ainda mais.

— Deixe-me sozinha — repetiu ela, virando-lhe as costas. — Vá prepa­rar os cavalos. Não preciso de você aqui.

Depois que ele se foi, Oriane se agachou e cutucou a menina no braço. A criança acordou imediatamente e sentou-se, os olhos brilhando de medo.

Quem é você?

Una amiga — disse Oriane, usando a língua que havia abandonado trinta anos antes. — Uma amiga.

Bertrande não se mexeu.

Você é francesa — disse ela, obstinada, examinando as roupas e os cabelos de Oriane. — Não estava na cidadela.

Não — respondeu a mulher, tentando soar paciente —, mas eu nasci em Carcassona, igualzinho à sua mãe. Nós passamos a infância juntas no Château Comtal. Eu conheci até o seu avô, o intendente Pelletier. Tenho certeza de que Alaïs falou muito nele.

Eu tenho o mesmo nome dele — disse a menina de pronto.

Oriane disfarçou um sorriso.

Bom, Bertrande. Eu vim tirar você daqui.

A menina franziu o cenho.

Mas Sajhë me disse para ficar aqui até ele vir me buscar — disse ela, um pouco menos cautelosa. — Ele me disse para não ir com mais ninguém.

Sajhë disse isso, foi? — perguntou Oriane, sorrindo. — Bom, ele disse para mim que você sabia cuidar de si mesma, que eu deveria lhe dar alguma coisa para convencê-la a confiar em mim.

Oriane estendeu o anel que havia roubado da mão fria do pai. Como ela esperava, Bertrande o reconheceu e estendeu a mão para pegá-lo.

Sajhë deu isso a você?

Pegue. Veja você mesma.

Bertrande girou o anel, examinando-o sob todos os ângulos. Levantou-se.

Onde ele está?

Eu não sei — disse a mulher, com o cenho muito franzido. — A menos que...

O quê? — Bertrande ergueu os olhos para ela.

Você acha que ele queria que você fosse para casa?

Bertrande pensou um pouco.

Pode ser — disse, em dúvida.

É muito longe? — perguntou Oriane casualmente.

Um dia a cavalo, talvez mais nesta época.

E essa aldeia tem um nome? — perguntou ela, calma.

—Los Seres, mas Sajhë me disse para não contar para os inquisidores — respondeu Bertrande.

Noublesso de los Seres. Esse não era apenas o nome dos guardiães do Graal, mas do lugar onde o Graal podia ser encontrado. Oriane precisou morder a língua para conter uma risada.

— Para começar, vamos nos livrar disto aqui — disse, inclinando-se para a frente e tirando a cruz amarela das costas de Bertrande. — Não que­remos que ninguém descubra que somos fugitivas. Você quer trazer algu­ma coisa?

Se a menina estivesse com o livro, não haveria necessidade de ir a lugar algum. O assunto terminaria ali.

Bertrande sacudiu a cabeça, negando.

— Nada.

— Muito bem, então. Agora fique quietinha. Não queremos atrair atenção.

A menina ainda estava receosa mas, enquanto cruzavam o cercado, Oriane falou sobre Alaïs e o Château Comtal. Foi encantadora, persuasiva e atenciosa. Aos poucos, conquistou a menina.

Oriane pôs outra moeda na mão do guarda do portão, depois conduziu Bertrande para onde seu filho estava esperando nos arredores do acampamen­to, com seis soldados a cavalo e uma carroça coberta já preparada.


— Eles vêm conosco? — perguntou Bertrande, subitamente desconfiada.

Oriane sorriu enquanto erguia a menina para dentro da calèche.

— Precisamos nos proteger dos bandidos no caminho, não é? Sajhë nunca iria me perdoar se eu deixasse alguma coisa acontecer a você.

Com Bertrande instalada, ela se virou para o filho.

E eu? — perguntou ele. — Quero ir com você.

Eu preciso que você fique aqui — disse ela, agora ansiosa para partir.

Você, caso não tenha esquecido, faz parte do exército. Não pode simples­mente sumir. Vai ser mais fácil e mais rápido para todos nós se eu for sozinha.

Mas...

Faça o que eu estou dizendo — disse ela, mantendo a voz baixa para Bertrande não escutar. — Cuide de nossos interesses aqui. Dê um jeito no pai da menina como conversamos. Deixe o resto comigo.

Guilhem não conseguia pensar em mais nada a não ser encontrar Oriane. Seu objetivo ao ir até Montségur fora ajudar Alaïs e impedir Oriane de lhe fazer mal. Durante quase trinta anos, ele a havia protegido de longe.

Agora que Alaïs estava morta, ele não tinha nada a perder. Seu desejo de vingança havia crescido com o passar dos anos. Deveria ter matado Oriane quando tivera oportunidade. Não deixaria essa nova chance escapar.

Com o capuz da capa a cobrir-lhe o rosto, Guilhem atravessou o acam­pamento dos cruzados até ver o verde e prata do pavilhão de Oriane.

Vozes vinham lá de dentro. Um homem jovem dando ordens. Lembran­do-se do jovem ao lado de Oriane na arquibancada, seu filho, Guilhem che­gou perto da lateral da barraca que batia com o vento e escutou.

— Ele é um soldado da guarnição — dizia Louis d´Evreux com sua voz arrogante. — Chama-se Sajhë de Servian. Foi aquele que criou problemas mais cedo. Esses camponeses do sul... — disse com desprezo. — Mesmo quando são bem-tratados, comportam-se como animais. — Deu uma risada alta. — Ele foi levado para o cercado perto do pavilhão de Hugues des Arcis, separado dos outros prisioneiros, caso resolva dar mais trabalho.

Louis baixou a voz até Guilhem quase não conseguir escutar.

— Isto é para você — disse ele. Guilhem ouviu o tilintar de moedas. — Metade agora. Se o camponês ainda estiver vivo quando você o encontrar, dê um jeito na situação. O resto depois do serviço feito.

Guilhem esperou o soldado sair, em seguida esgueirou-se pela abertura, que não estava sendo vigiada por ninguém.

— Eu disse que não queria ser incomodado — falou Louis abruptamen­te, sem se virar. Antes de ele ter chance de gritar, a faca de Guilhem já estava em seu pescoço.


Se der um pio, eu mato você — disse ele.

Pegue o que quiser, pegue o que quiser. Não me machuque.

Guilhem olhou em volta para a barraca opulenta, cheia de tapetes ele­gantes e cobertores grossos. Oriane conseguira a riqueza e o status que sempre desejara. Ele esperava que isso não lhe houvesse trazido felicidade.

— Diga-me seu nome — pediu ele com uma voz baixa, cruel.

— Louis d´Evreux. Eu não sei quem você é, mas minha mãe vai...

Guilhem puxou a cabeça de Louis para trás.

— Não me ameace. Você mandou seus guardas embora, lembra? Não tem ninguém aqui para escutá-lo. — Apertou a lâmina com mais força na pele pálida do rapaz do norte. Evreux ficou completamente imóvel. — Melhor assim. Então. Onde está Oriane? Se não responder, eu corto a sua garganta.

Guilhem o sentiu reagir ao escutar o nome da mãe, mas o medo soltou-lhe a língua.

Ela foi ao cercado das mulheres — balbuciou ele.

Fazer o quê?

Procurar... uma menina.

Não gaste o meu tempo, nenon — disse Guilhem, dando outro safanão em seu pescoço. — Que menina é essa? O que Oriane quer com ela?

Filha de uma herege. Irmã... da minha mãe — disse ele, como se a palavra fosse um veneno em sua boca. — Minha tia. Minha mãe quis ver ela mesma a menina.

Alaïs — sussurrou Guilhem, incrédulo. — Quantos anos têm essa menina?

Ele podia sentir o cheiro do medo na pele de Evreux.

Como vou saber? Nove, dez.

E o pai? Ele também morreu?

Evreux tentou se mexer. Guilhem aumentou a pressão em seu pescoço e girou a lâmina para que a ponta fizesse pressão abaixo da orelha de Evreux, pronta para cortar.

— Ele é soldado, um dos homens de Pierre-Roger de Mirepoix.

Guilhem entendeu imediatamente.

— E você mandou um dos seus homens garantirem que ele não viva para ver o sol nascer — disse ele.

A lâmina da adaga de Guilhem reluziu ao refletir a claridade emitida pela vela.

Quem é você?

Guilhem o ignorou.

Onde está o senhor Evreux? Por que ele não está aqui?


— Meu pai morreu — disse ele. Não havia pesar em sua voz, apenas uma espécie de orgulho fanfarrão que Guilhem não conseguiu entender. — Agora sou eu o dono das propriedades dos Evreux.

Guilhem riu.

— Melhor dizendo, sua mãe é.

O rapaz se retraiu como se houvesse levado um tapa.

Diga-me, senhor Evreux, o que a sua mãe quer com a menina? — perguntou Guilhem com desprezo, enfatizando o tratamento.

Que importância tem isso? Ela é filha de hereges. Deveriam ter quei­mado todos eles.

Guilhem sentiu o arrependimento de Evreux com sua súbita perda de controle no instante em que ele pronunciou as palavras, mas era tarde demais. Guilhem flexionou o braço e arrastou a faca de uma orelha a outra, cortando a garganta do rapaz.

— Per lo Miègjorn — disse. Pelo Midi.

O sangue esguichou do corte em jatos sobre os tapetes caros. Guilhem o soltou e Evreux caiu para frente.

— Se o seu criado voltar logo, talvez você viva. Se não, é melhor rezar para Deus perdoar os seus pecados.

Guilhem cobriu a cabeça com o capuz e saiu correndo dali. Precisava encontrar Sajhë de Servian antes do homem de Evreux.

O pequeno grupo percorria aos solavancos seu caminho pedregoso na noite fria.

Oriane já estava arrependida da decisão de trazer a calèche. Teriam ido mais depressa a cavalo. As rodas de madeira batiam e ralavam nas pedras e no chão duro, congelado.

Evitaram as estradas principais para entrar e sair do vale, onde ainda havia barricadas, e durante as primeiras horas rumaram para o sul. Então, à medida que o crepúsculo invernal cedia lugar ao breu da noite, mudaram o rumo para sudeste.

Bertrande dormia, o capuz puxado sobre a cabeça para manter afastado o vento cortante que soprava por baixo dos toldos erguidos acima da carroça. Sua conversa incessante havia deixado Oriane irritada. A menina a havia bom­bardeado de perguntas sobre a vida em Carcassonne nos velhos tempos, antes da guerra.

Oriane lhe dera de comer biscoitos, pão doce e vinho com especiarias, com uma poção sonífera forte o suficiente para fazer um soldado dormir du­rante dias. Por fim, a criança parou de falar e caiu em um sono profundo.

— Acorde!

Sajhë podia ouvir alguém falando. Um homem. Perto.


Tentou se mexer. A dor varou cada canto de seu corpo. Faíscas azuis piscaram atrás de seus olhos.

— Acorde! — Dessa vez, a voz foi mais insistente.

Sajhë se retraiu quando algo frio foi encostado em seu rosto machucado, aliviando a dor da pele. Lentamente, a lembrança dos golpes desferidos em sua cabeça, em seu corpo, nele todo, foi voltando.

Será que estava morto?

Então se lembrou. Alguém havia gritado mais embaixo na encosta, ber­rando para os soldados pararem. Seus atacantes, surpreendidos, haviam recua­do. Alguém, um comandante, dava ordens em francês. Ele havia sido arrastado montanha abaixo.

Talvez não estivesse morto.

Sajhë tentou se mexer outra vez. Podia sentir algo rígido nas costas. Percebeu que seus ombros estavam repuxados com força para trás. Tentou abrir os olhos, mas descobriu que um deles se mantinha fechado, de tão inchado. Por conta disso, seus outros sentidos estavam mais aguçados. Tinha consciência do movimento dos cavalos batendo os cascos no chão. Podia ouvir o barulho do vento, o grito dos noitibós e uma solitária coruja. Eram sons que ele compreendia.

— Consegue mexer as pernas? — perguntou o homem.

Sajhë ficou surpreso ao constatar que sim, embora a dor fosse cruel. Um dos soldados havia pisado em seu tornozelo quando ele estava caído no chão.

— Você consegue montar?

Sajhë viu o homem passar por trás dele para cortar as cordas que prendiam seus braços à estaca, e percebeu que havia nele algo conhecido. Algo que ele reconhecia em sua voz, na maneira como movia a cabeça.

Sajhë se levantou com dificuldade.

— A que devo esta gentileza? — perguntou, esfregando os pulsos. De repente, Sajhë entendeu. Viu-se novamente como um menino de 11 anos, que escalava os muros do Château Comtal e percorria as ameias à procura de Alaïs.

Que escutava à janela e ouvia o riso dela flutuar na brisa. Uma voz de homem dizendo coisas, provocando.

Guilhem du Mas — disse ele devagar.

Guilhem se deteve e olhou com surpresa para Sajhë.

Já nos conhecemos, amigo?

Você não iria se lembrar — respondeu Sajhë, mal conseguindo enca­rar o outro de frente. — Diga-me, amic — falou, enfatizando a palavra —, o que você quer de mim?

Eu vim... — Guilhem estava espantado com a hostilidade do outro.

Você é Sajhë de Servian?

Que diferença faz?

Pelo bem de Alaïs, que nós dois... — Guilhem calou-se e se recompôs. — A irmã dela, Oriane, está aqui com um dos filhos. Eles fazem parte do exército dos cruzados. Oriane veio buscar o livro.

Sajhë o encarou.

— Que livro? — perguntou agressivo.

Guilhem insistiu sem lhe dar atenção.

— Oriane descobriu que vocês tinham uma filha. Ela levou a menina. Não sei para onde estão indo, mas saíram do acampamento logo depois do crepúsculo. Eu vim contar isso a você e oferecer minha ajuda. — Ele se levan­tou. — Mas, se você não quiser...

Sajhë sentiu a cor se esvair de seu rosto.

Espere! — gritou.

Se você quiser recuperar sua filha viva — continuou Guilhem, sem vacilar —, sugiro que deixe de lado sua antipatia por mim, qualquer que seja o seu motivo.

Guilhem estendeu a mão para ajudar Sajhë.

— Você sabe para onde é provável Oriane ter levado a menina?

Sajhë encarou o homem que havia passado a vida inteira odiando, e então, pelo bem de Alaïs e de sua filha, aceitou a mão estendida.

— A menina tem nome — disse. — O nome dela é Bertrande.


 

                         Pic de Soularac

                         Sexta-feira, 8 de julho de 2005.

Audric e Alice escalaram a montanha em silêncio.

Coisas demais haviam sido ditas, tornando quaisquer outras palavras desnecessárias. Audric ofegava, mas mantinha os olhos colados no chão a seus pés e não tropeçou nenhuma vez.

Não pode ser muito mais longe — disse ela, tanto para si mesma quanto para ele.

Não.

Cinco minutos depois, Alice percebeu que haviam chegado à escavação pelo lado oposto ao estacionamento. Não restava mais nenhuma barraca, mas havia vestígios da ocupação recente: pedaços de terreno marrons e ressecados, algum lixo esquecido para trás. Alice percebeu uma colher de pedreiro e um prego de barraca, que pegou e pôs no bolso.

Continuaram subindo e viraram à esquerda até chegarem à pedra grande que Alice havia tirado do lugar. Estava emborcada abaixo da entrada da câma­ra, exatamente onde havia caído. Sob a luz branca e fantasmagórica da lua, parecia a cabeça de um ídolo vencido.

Será que foi mesmo só na segunda-feira?

Baillard parou e recostou-se na pedra para recuperar o fôlego.

— Não falta muito agora — disse ela, tentando reconfortá-lo. — Sinto muito. Eu deveria ter avisado ao senhor que era tão íngreme.

Audric sorriu.

Eu me lembro — disse ele. Segurou a mão dela. Tinha a pele tão fina que parecia papel. — Quando chegarmos à caverna, você vai esperar até eu dizer que é seguro vir atrás de mim. Tem de me prometer que vai ficar escondida.

Eu ainda não acho que seja uma boa idéia o senhor entrar aí sozinho — disse ela, teimosa. — Mesmo que esteja certo, e eles só cheguem depois que escurecer, o senhor poderia ficar preso. Eu queria que me deixasse ajudá-lo, Audric. Se eu entrar com o senhor, posso ajudar a procurar o livro. Vai ser mais rápido a dois, mais fácil. Podemos entrar e sair em minutos. Depois podemos nos esconder os dois aqui fora e ver o que acontece.

Me perdoe, mas é melhor nós nos separarmos.

Eu realmente não entendo por que, Audric. Ninguém sabe que estamos aqui. Não deveria ter nenhum problema — disse ela, mesmo seu sentimento sendo totalmente diferente.

Você é muito corajosa, madomaisèla — disse ele baixinho. — Como ela. Alaïs sempre punha a segurança dos outros na frente da sua. Ela fez muitos sacrifícios pelas pessoas que amava.

Ninguém está sacrificando nada — disse Alice, incisiva. O medo a deixava nervosa. — E eu ainda não entendi por que o senhor não me deixou vir mais cedo. Poderíamos ter entrado na câmara enquanto ainda era dia, sem correr o risco de sermos surpreendidos.

Baillard agiu como se ela não tivesse dito nada.

— Você telefonou para o inspetor Noubel? — perguntou ele.

Não adianta discutir. Não agora.

Telefonei — disse ela, dando um suspiro profundo. — Eu disse o que o senhor me mandou dizer.

Ben — disse ele baixinho. — Entendo que pense que estou sendo irracional, madomaisèla, mas você vai ver. Tudo precisa acontecer na hora certa, na ordem certa. Sem isso não haverá verdade.

Verdade? — repetiu ela. — O senhor já me contou tudo que havia para contar, Audric. Tudo. Agora, minha única preocupação é tirar a Shelagh e o Will daqui inteiros.

— Tudo? — perguntou ele baixinho. — Será que isso existe?

Audric se virou e levantou os olhos para a entrada, uma pequena abertura preta na parede de pedra.

— Uma verdade pode contradizer outra — murmurou. — Hoje não é ontem. — Ele segurou o braço dela. — Vamos completar a última parte da nossa jornada? — perguntou.

Alice olhou para ele intrigada, perguntando-se o que o havia dominado. Ele estava calmo, pensativo. Uma espécie de aceitação passiva havia se apode­rado dele, enquanto ela estava muito nervosa, assustada com todas as coisas que poderiam dar errado, aterrorizada que Noubel chegasse tarde demais, com medo de que, no final das contas, Audric estivesse errado.

E se eles já estiverem mortos?

Alice afastou aquela idéia. Não podia se permitir pensar assim. Precisava continuar acreditando que tudo iria ficar bem.


Na entrada, Audric se virou e sorriu para ela, seus olhos salpicados de âmbar cintilando de ansiedade.

O que foi Audric? — perguntou ela depressa. — Alguma coisa está acontecendo... — Ela se interrompeu incapaz de encontrar a palavra que que­ria. — Alguma coisa...

Eu estou esperando há muito tempo — disse ele, manso.

Esperando? Para encontrar o livro?

Ele fez que não com a cabeça.

Pela redenção — falou.

Redenção? Mas redenção de quê? — Alice ficou pasma ao perceber que os olhos dele estavam marejados de lágrimas. Mordeu o próprio lábio para segurar o choro. — Não estou entendendo, Audric — disse ela, com a voz embargada.

Pas a pas se va luènh — disse ele. — Você viu essas palavras gravadas no alto dos degraus da câmara?

Alice olhou para ele, surpresa.

— Vi, mas como...

Ele estendeu a mão para pegar a lanterna.

— Preciso entrar.

Lutando com as próprias emoções conflitantes, Alice lhe entregou a lan­terna sem dizer mais nada. Viu-o descer pelo túnel e esperou até o último pontinho de luz ter desaparecido antes de se virar.

O canto de uma coruja próxima a sobressaltou. O menor barulho pare­cia amplificado uma centena de vezes. Havia algo de maligno naquela escuri­dão. As árvores que se erguiam acima dela, a sombra impressionante da mon­tanha em si, o modo como as pedras pareciam adquirir formas desconhecidas, ameaçadoras. Ao longe, em uma estrada em algum lugar no vale lá embaixo, ela pensou ter escutado o barulho de um carro.

Então o silêncio retornou.

Alice olhou para o relógio. Eram nove e quarenta.

As quinze para as dez, dois faróis potentes iluminaram o estacionamento no sopé do Pic de Soularac.

Paul Authié desligou o carro e desceu. Ficou surpreso ao ver que François-Baptiste não estava ali à sua espera. Authié ergueu os olhos em direção à caver­na com uma súbita onda de alarme, pensando que eles já poderiam estar den­tro da câmara.

Forçou-se a não pensar naquilo. Seus nervos estavam começando a dominá-lo. Braissart e Domingo haviam saído dali uma hora atrás. Se Marie-Cécile e o filho houvessem aparecido, ele saberia.


Sua mão tocou o detonador em seu bolso, programado para disparar as bombas e já em contagem regressiva. Ele não precisava fazer nada. Só esperar. E observar.

Authié tateou a cruz pendurada em seu pescoço e começou a rezar.

Um barulho na floresta ao redor do estacionamento chamou sua aten­ção. Authié abriu os olhos. Não conseguia ver nada. Voltou para o carro e ligou o farol alto. As árvores saltaram da escuridão em sua direção, descoradas.

Ele protegeu os olhos com a mão e tornou a olhar. Dessa vez, detectou movimentos nos arbustos cerrados.

— François-Baptiste?

Ninguém respondeu. Authié podia sentir os cabelos curtos eriçados na nuca.

— Não temos tempo para isso — gritou para a escuridão, imprimindo na voz um tom de irritação. — Se quiser o livro e o anel, saia daí para eu poder ver você.

Authié começou a se perguntar se havia avaliado mal a situação.

— Estou esperando! — gritou.

Dessa vez, escutou alguma coisa. Reprimiu um sorriso enquanto uma pessoa tomava forma entre as árvores.

— Cadê a O´Donnell?

Authié quase riu alto ao ver François-Baptiste andando em sua direção, vestido com um paletó muito acima do seu tamanho. Era uma visão patética.

Você está sozinho? — perguntou ele.

Não interessa, porra — respondeu o outro, parando na orla da flores­ta. — Cadê a Shelagh O´donnell?

Authié fez um gesto com a cabeça na direção da caverna.

Já está lá em cima esperando você, François-Baptiste. Achei bom ir adiantando as coisas. — Ele deu uma risada curta. — Não acho que ela vá te dar muito trabalho.

E o livro?

Está lá dentro também. — Ele sacudiu as mangas da camisa. — O anel também. Tudo entregue como prometido. E dentro do prazo.

François-Baptiste deu uma risada aguda.

— E embrulhado para presente também, imagino — disse, sarcástico.

— Você não espera que eu acredite que simplesmente deixou eles lá?

Authié olhou para ele com desprezo.

— O meu trabalho era recuperar o livro e o anel, e foi isso que eu fiz.

Também devolvi a sua... como podemos chamar? A sua espiã, ao mesmo tempo.

Pode dizer que foi filantropia da minha parte. — Ele estreitou os olhos. — O que madame de l´Oradore decidir fazer com a mulher é problema dela. A dúvida atravessou o rosto do rapaz.

E tudo isso por causa do seu bom coração?

Tudo pela Noublesso Véritable — disse Authié, dócil. — Ou será que você ainda não foi convidado para fazer parte dela? Imagino que não faça diferença você ser só filho dela. Vá dar uma olhada. Ou será que a sua mãe já está lá em cima se preparando?

François-Baptiste lançou-lhe um olhar irado.

Você achou que ela não tivesse me contado? — Authié deu um passo na direção do rapaz. — Acha que eu não sei o que ela faz? — Podia sentir a raiva inflando dentro dele. — Você viu a sua mãe, François-Baptiste? Viu o êxtase na cara dela quando ela diz aquelas palavras obscenas, aquelas palavras blasfemas? É uma ofensa a Deus!

Você não se atreva a falar dela desse jeito! — disse o rapaz, a mão voando para o bolso do paletó.

Authié riu.

— Isso. Ligue pra ela. Ela vai te dizer o que fazer. Vai te dizer o que pensar. Não faça nada antes de falar com ela primeiro.

Virou-lhe as costas e começou a andar de volta para o carro. Ouviu a trava de segurança se soltar segundos antes de entender do que se tratava. Sem acreditar, Authié deu meia-volta. Foi lento demais. Ouviu o estalo das balas partindo, uma, duas, em rápida sucessão.

A primeira errou feio. A segunda o atingiu na coxa. A bala varou-lhe a perna, espatifando o osso, e saiu pelo outro lado. Authié caiu no chão, aos gritos, enquanto era tomado pelo choque da dor.

François-Baptiste caminhava em sua direção, segurando a arma na fren­te do corpo com as duas mãos. Authié tentou fugir rastejando, deixando um rastro de sangue no cascalho atrás de si, mas o rapaz já estava ao seu lado.

Por um instante, seus olhos se encontraram. Então François-Baptiste tornou a atirar.

Alice sobressaltou-se

O som dos tiros ecoou pelo ar parado da montanha. Ricocheteou nas pedras e reverberou à sua volta.

Seu coração disparou. Ela não conseguia distinguir de onde tinham vin­do os tiros. Em casa, saberia que era apenas um fazendeiro abatendo coelhos ou corvos.

Não parecia uma espingarda.


Deitou-se no chão, o mais silenciosamente de que foi capaz, e espiou pela escuridão em direção a onde achava que ficava o estacionamento. Ouviu a porta de um carro bater. Então distinguiu o som de vozes humanas, as pala­vras trazidas pelo ar.

O que Audric está fazendo lá dentro?

As vozes estavam bem distantes, mas ela podia sentir sua presença na montanha. Alice ouvia o barulho ocasional de um pedregulho quando os pés deles chutavam o cascalho e as pedrinhas do caminho. O estalo de um graveto.

Alice se aproximou mais da entrada, lançando olhares desesperados na direção da caverna como se, pela simples força da sua vontade, pudesse fazer Audric se materializar na escuridão.

Por que ele não vem?

— Audric? — sussurrou. — Está vindo alguém. Audric?

Nada além de silêncio. Alice espiou para dentro do breu do túnel que se estendia à sua frente e sentiu a coragem vacilar.

Mas você precisa avisá-lo.

Rezando para não ter demorado demais, Alice se virou e desceu o túnel correndo em direção à câmara do labirinto.


 

                               Los Seres

                               Març 1244

Apesar dos ferimentos de Sajhë, viajaram depressa, saindo de Monségur e se­guindo o curso do rio para o sul. Viajavam com pouca bagagem e cavalgavam depressa, parando apenas para descansar e dar de beber aos cavalos, usando as espadas para quebrar o gelo do rio. Guilhem viu imediatamente que as habili­dades de Sajhë superavam as suas.

Conhecia um pouco do passado de Sajhë: sabia que ele levava recados dos parfaits até os vilarejos longínquos e isolados dos Pireneus, e que dava informações aos combatentes rebeldes. Era óbvio que o homem mais jovem conhecia todos os vales e cumes transitáveis, e todos os atalhos escondidos nas matas, nos desfiladeiros e nas planícies.

Ao mesmo tempo, Guilhem tinha consciência da intensa antipatia de Sajhë, embora este nada dissesse. Aquilo parecia um sol quente queimando sua nuca. Guilhem conhecia a reputação de Sajhë de homem leal, corajoso e honrado, disposto a morrer lutando por aquilo em que acreditava. Apesar da animosidade dele, Guilhem podia entender por que Alaïs havia amado aquele homem e tido um filho com ele, embora pensar nisso fosse como cravar uma faca no próprio coração.

A sorte estava do lado deles. Não houve mais nevascas durante a noite. O dia seguinte, 19 de março, amanheceu ensolarado e claro, com poucas nuvens e pouco vento.

Sajhë e Guilhem chegaram a Los Seres ao entardecer. A aldeia ficava aninhada em um pequeno vale abrigado e, apesar do frio, pairava no ar o suave cheiro da primavera. As árvores nos arredores da aldeia estavam salpicadas de brotos verdes e brancos. As primeiras flores da primavera surgiam tímidas nas sebes e margens da estrada pela qual subiam, rumo ao pequeno aglomera­do de casas. A aldeia parecia deserta, abandonada.

Os dois homens desmontaram e puxaram os cavalos pelo resto do caminho até o centro da aldeia. O barulho das ferraduras dos animais batendo no sílex e na pedra do chão duro ecoava alto no silêncio. Algumas volutas de fumaça flutuavam cautelosamente de uma ou duas das casas. Olhos espiaram descon­fiados pelas fendas e rachaduras das persianas, depois sumiram rapidamente. Era raro que desertores franceses subissem tão alto nas montanhas, mas não impossível. Geralmente eles traziam problemas.

Sajhë amarrou o cavalo ao lado do poço. Guilhem fez o mesmo, depois seguiu o outro homem, que cruzou o centro da aldeia até uma pequena habi­tação. Faltavam telhas no telhado e as persianas precisavam de conserto, mas as paredes eram sólidas. Guilhem pensou que não seria necessário muito esfor­ço para recuperar a casa.

Guilhem esperou Sajhë empurrar a porta. A madeira, inchada pela umi­dade e emperrada por falta de uso, prendeu nas dobradiças, depois se abriu o suficiente para Sajhë conseguir entrar.

Guilhem foi atrás, sentindo no rosto o impacto do ar úmido, como o de uma tumba, anestesiando seus dedos. Um monte de folhas misturadas com palha e terra estava empilhado junto à parede em frente à porta, claramente trazido pelos ventos do inverno. Havia estalactites de gelo do lado de dentro das janelas e, como uma franja irregular, na parte baixa do parapeito.

Sobre a mesa havia os restos de uma refeição. Uma velha jarra, pratos, canecas e uma faca. Uma camada de mofo cobria a superfície do vinho, como plantas verdes na superfície de um lago. Os bancos estavam arrumados com capricho junto à parede.

Esta é a casa de vocês? — perguntou Guilhem com a voz suave.

Sajhë assentiu.

Quando vocês foram embora?

Um ano atrás.

No centro do aposento, um caldeirão enferrujado estava suspenso acima de uma pilha de cinzas e madeira carbonizada, consumida havia muito tempo. Guilhem ficou olhando com pena enquanto Sajhë se inclinava e ajeitava a tampa.

Nos fundos da casa havia uma cortina rasgada. Ele a levantou para reve­lar outra mesa, com uma cadeira de cada lado. A parede estava coberta de prateleiras estreitas, quase vazias. Um velho pilão, algumas vasilhas e conchas, uns poucos jarros, tudo recoberto de poeira, eram só o que havia sobrado. Acima da prateleira, pequenos ganchos haviam sido instalados no teto baixo, e deles ainda pendiam uns poucos molhos empoeirados de ervas. Um galho petrificado de ênula e outro de folhas de mirtilo.


Para os remédios dela — disse Sajhë, pegando Guilhem de surpresa.

Ele estava imóvel, as mãos unidas na frente do corpo, sem querer interromper as recordações de Sajhë.

Todo mundo vinha vê-la, homens e mulheres. Quando estavam do­entes, ou quando seu espírito estava perturbado, para manter os filhos saudá­veis durante o inverno. Bertrande... Alaïs a deixava ajudar com as preparações e entregar pacotes nas casas

Sajhë hesitou, em seguida se calou. Guilhem tinha consciência do bolo em sua própria garganta. Ele também se lembrava das garrafas e jarros com que Alaïs havia enchido seu quarto no Château Comtal, a concentração silencio­sa com a qual ela trabalhava.

Sajhë soltou a cortina. Testou os degraus da escada, depois subiu cuida­dosamente até a plataforma superior. Ali, apodrecida de mofo e suja pelos dejetos dos animais, havia uma pilha de velhos cobertores e palha podre, tudo que restava de onde a família dormia. Um único castiçal, ainda com vestígios de cera, estava pousado ao lado da cama, com as manchas de fumaça reveladoras espalhadas como uma mancha na parede atrás.

Guilhem não suportou mais presenciar a dor de Sajhë e foi esperar do lado de fora. Não tinha o direito de se intrometer.

Algum tempo depois, Sajhë reapareceu. Tinha os olhos vermelhos, mas suas mãos estavam firmes quando ele se encaminhou decidido até Guilhem, que estava em pé no ponto mais alto da aldeia, olhando para o oeste.

— A que horas amanhece aqui? — perguntou ele quando Sajhë se aproximou.

Os dois homens tinham mais ou menos a mesma altura, embora as rugas no rosto de Guilhem e suas mechas de cabelos grisalhos traíssem o fato de que ele estava uns 15 anos mais perto do túmulo.

— O sol nasce tarde nas montanhas nesta época do ano.

Guilhem ficou alguns instantes em silêncio.

O que você quer fazer? — perguntou, respeitando o direito de Sajhë de decidir o que fariam a partir dali.

Precisamos pôr os cavalos no estábulo, depois encontrar algum lugar onde dormir. Duvido que eles cheguem aqui antes de amanhã de manhã.

Você não quer... — começou Guilhem, olhando na direção da casa.

Não — disse Sajhë depressa. — Ali não. Sei de uma mulher que pode nos dar comida e abrigo por esta noite. Amanhã temos de subir mais um pouco a montanha e montar acampamento em algum lugar perto da caverna para esperar por eles.

Você acha que Oriane não vai passar pela aldeia?

Ela vai adivinhar onde Alaïs escondeu o Livro das Palavras. Teve tem­po suficiente para estudar os dois outros livros nestes últimos trinta anos.


Guilhem lançou-lhe um olhar de soslaio.

— Ela está certa? O livro está na caverna?

Sajhë o ignorou.

— Não entendo como Oriane convenceu Bertrande a ir com ela — fa­lou. — Eu disse a ela para não sair de lá sem mim. Para esperar até eu chegar.

Guilhem não disse nada. Não havia nada que pudesse dizer para aliviar os temores de Sajhë. A raiva do homem mais jovem logo se dissipou.

— Você acha que Oriane trouxe os dois outros livros? — perguntou ele de repente.

Guilhem sacudiu a cabeça, fazendo que não.

Imagino que os livros estejam seguros nos cofres dela em algum lugar em Evreux ou Chartres. Por que ela se arriscaria a trazê-los até aqui?

Você a amava?

A pergunta pegou Guilhem desprevenido.

Eu a desejava — respondeu ele devagar. — Estava enfeitiçado, encan­tado com minha própria importância, eu...

Oriane, não — disse Sajhë, abrupto. — Alaïs.

Guilhem teve a sensação de que uma tira de ferro se apertava em volta de seu pescoço.

Alaïs — murmurou. Por um instante, ficou imerso nas próprias lem­branças, até a força do olhar intenso de Sajhë o trazer de volta ao frio presente.

Depois... — Ele vacilou. — Depois que Carcassona caiu, eu só a vi uma vez. Durante três meses, ela ficou comigo. Ela havia sido presa pelos inquisidores, e...

Eu sei! — gritou Sajhë, e em seguida sua voz pareceu desmoronar. —Eu sei tudo isso.

Sem entender a reação de Sajhë, Guilhem manteve os olhos fixos à fren­te. Para a própria surpresa, percebeu que estava sorrindo.

— Amava sim. — As palavras escaparam-lhe dos lábios. — Eu a amava mais do que o mundo. Mas só entendi como o amor é uma coisa, preciosa, como é frágil, depois que já o havia espatifado com minhas próprias mãos.

— Por isso você a deixou ir embora. Depois de Tolosa. E ela voltou para cá.

Guilhem assentiu.

— Depois daquelas semanas juntos, Deus sabe como foi difícil ficar lon­ge dela. Vê-la de novo, só mais uma vez... Eu esperava que, quando tudo isto terminasse, nós pudéssemos ficar... Mas obviamente ela encontrou você. E agora, hoje...

Guilhem não conseguiu continuar. Lágrimas inundaram seus olhos, fa­zendo-os arder com o frio. Ao seu lado, sentiu Sajhë se mexer. Por um instan­te, algo mudou na atmosfera entre os dois.


— Perdoe-me. Por ter me deixado levar por meus sentimentos na sua frente. — Ele respirou fundo. — A recompensa que Oriane prometeu pela cabeça de Alaïs era substancial, e constituía uma tentação até mesmo para quem não tivesse motivo para desejar o mal de Alaïs. Eu paguei os espiões de Oriane para que passassem informações falsas. Durante quase trinta anos, aju­dei a mantê-la segura.

Guilhem tornou a se calar, com a imagem do livro em chamas contra a capa vermelha carbonizada surgindo em sua mente como um convidado indesejado.

— Eu não sabia que a fé dela era tão forte — disse ele. — Ou que seu desejo de manter o Livro das Palavras longe de Oriane a levasse a ações tão radicais.

Olhou para Sajhë, tentando ler a verdade escrita nos olhos dele.

Eu queria que ela não tivesse escolhido morrer — disse, com simpli­cidade. — Por você, o homem que ela escolheu, e por mim, o tolo que teve o amor dela e o perdeu. — Ele hesitou. — Mas, sobretudo, pelo bem da filha dela. Saber que Alaïs...

Por que você está nos ajudando? — interrompeu Sajhë. — Por que veio até aqui?

Até Montségur?

Sajhë sacudiu a cabeça, fazendo que não.

Não, Montségur não. Aqui. Agora.

Vingança — respondeu Guilhem.


 

Alaïs acordou com um pulo, rígida e com frio. Uma delicada luz púrpura varria a paisagem cinza e verde na aurora. Uma fraca bruma branca cobria os arroios e fendas da encosta da montanha, silenciosa e parada.

Ela olhou para Harif. Ele dormia tranqüilamente, com a capa forrada de pele levantada até as orelhas. O dia e a noite passados viajando haviam sido difíceis para ele.

O silêncio pesava sobre a montanha. Apesar do frio nos ossos e do des­conforto, Alaïs estava gostando daquela solidão, depois dos meses de superpopulação e confinamento em Montségur. Tomando cuidado para não incomodar Harif, levantou-se e se espreguiçou, depois enfiou a mão em uma das sacolas penduradas na sela para partir um pedaço de pão. Estava duro como lenha. Serviu-se uma caneca do espesso vinho vermelho da montanha, que havia perdido quase todo o gosto por causa do frio. Mergulhou nele o pão para amolecê-lo, depois comeu depressa, antes de preparar a comida dos outros.

Mal se atrevia a pensar em Bertrande e em Sajhë, e em onde poderiam estar naquele momento. Ainda estariam no acampamento? Estariam juntos ou separados?

O grito de uma coruja voltando de sua caça noturna varou o ar. Alaïs sorriu, tranqüilizada pelos sons conhecidos. Animais corriam em meio à vege­tação rasteira, com movimentos repentinos de garras e dentes. Nos bosques dos vales mais abaixo, lobos uivavam denunciando sua presença. Aquilo servia para lhe lembrar que o mundo continuava o mesmo, e seus ciclos mudavam com as estações, sem ela.

Ela acordou os dois guias e lhes disse que a comida estava pronta, depois levou os cavalos até o regato e quebrou o gelo com o cabo da espada para que pudessem beber.

Então, quando a luz ficou mais forte, foi acordar Harif. Sussurrou-lhe palavras na língua dele e pousou a mão delicadamente em seu braço. Ultima­mente, ele muitas vezes acordava aflito.


Harif abriu os olhos castanhos de sobrancelhas grossas, agora embaçados pela idade.

Bertrande?

Sou eu, Alaïs — disse ela, mansamente.

Harif piscou os olhos, confuso ao se ver naquela paisagem cinzenta de montanha. Alaïs imaginou que ele estivesse sonhando de novo com Jerusalém, com as curvas e formas das mesquitas e com o chamado para a prece dos fiéis sarracenos, com suas viagens pelo oceano infinito do deserto.

Nos anos que haviam passado na companhia um do outro, Harif lhe falara sobre as especiarias aromáticas, as cores vividas e o gosto apimentado da comida, o brilho terrível do sol vermelho-sangue. Contara-lhe histórias sobre como havia usado os longos anos de sua vida. Falara-lhe sobre o Profeta e sobre a antiga cidade de Avaris, sua primeira casa. Contara-lhe histórias sobre o pai dela quando jovem, e sobre a Noublesso.

Enquanto olhava para ele, para sua pele morena acinzentada pela idade, para seus cabelos outrora pretos e agora inteiramente brancos, o coração dela se apertou. Ele era velho demais para aquele combate. Já tinha visto coisas demais, presenciado coisas demais, para que tudo terminasse de forma tão dura.

Harif havia deixado sua última viagem para tarde demais. E Alaïs sabia, embora ele nunca houvesse dito isso, que eram apenas os pensamentos sobre Los Seres e Bertrande que lhe davam forças para seguir em frente.

— Alaïs — disse ele baixinho, acostumando-se ao lugar onde estava. — Sim.

— Não vai demorar muito mais — disse ela, ajudando-o a se levantar.

— Estamos quase em casa.

Sentados encolhidos debaixo do abrigo da montanha, fora do alcance das fe­rozes garras do vento, Guilhem e Sajhë conversaram pouco.

Várias vezes Guilhem havia tentado iniciar uma conversa, mas fora derro­tado pelas respostas taciturnas de Sajhë. Por fim, desistiu de tentar e recolheu-se para seu próprio mundo particular, o que era justamente a intenção de Sajhë.

A consciência de Sajhë o atormentava. Ele havia passado uma vida intei­ra primeiro invejando Guilhem, depois o odiando, e finalmente tentando esquecê-lo. Havia tomado o lugar de Guilhem ao lado de Alaïs, mas nunca em seu coração. Ela permanecera fiel a seu primeiro amor. O sentimento havia resistido, apesar da ausência e do silêncio.

Sajhë conhecia a coragem de Guilhem, seu longo e destemido combate para expulsar os cruzados do Pays d´Oc, mas não queria se pegar gostando do outro homem, admirando-o. Tampouco queria sentir pena dele. Podia ver como ele estava sofrendo por Alaïs. Sua expressão falava de um profundo pesar, de arrependimento. Sajhë não conseguia se forçar a falar. Mas odiava a si mesmo por não fazê-lo.

Esperaram o dia inteiro, dormindo alternadamente. Quando já era qua­se noite, um bando de corvos levantou vôo subitamente mais abaixo nas en­costas, ganhando o ar como as cinzas de um fogo quase apagado. Giravam, flutuavam e grasnavam, batendo o ar frio com as asas.

— Está vindo alguém — disse Sajhë, imediatamente alerta.

Espiou de trás da grande pedra que ficava equilibrada no estreito para­peito acima da entrada da caverna, como se houvesse sido posta ali pela mão de um gigante.

Não conseguia ver nada, nenhum movimento mais embaixo. Com cui­dado, Sajhë saiu de seu esconderijo. Tudo doía, seu corpo inteiro estava enrijecido; era uma combinação dos efeitos do espancamento com falta de atividade. Suas mãos estavam dormentes, as juntas irritadas, vermelhas e ra­chadas. Seu rosto era um emaranhado de hematomas e pele cortada.

Sajhë passou o corpo para o outro lado do parapeito de pedra e pulou para o chão. Aterrissou de mau jeito. A dor subiu de seu tornozelo como uma corrente elétrica.

— Passe minha espada — pediu, levantando o braço.

Guilhem entregou-lhe a arma, depois desceu e foi até onde ele estava em pé olhando para o vale.

Ouviu-se uma saraivada de vozes distantes. Então Sajhë viu uma fina coluna de fumaça subir por entre os galhos pelados das árvores, muito tênue na luz fraca.

Olhou para o horizonte, onde a terra púrpura e o céu cada vez mais escuro se encontravam.

— Eles estão vindo pelo caminho sudeste — disse ele —, o que quer dizer que Oriane sequer passou pela aldeia. Dessa direção, não vão conseguir chegar mais perto com os cavalos. O terreno é acidentado demais. Há arreios com despenhadeiros escarpados dos dois lados. Eles vão ter de continuar a pé.

Pensar em Bertrande, tão perto, de repente foi mais do que ele conseguiu suportar.

Eu vou descer.

Não! — disse Guilhem depressa, depois baixou a voz. — Não. É arriscado demais. Se eles virem você, vai pôr em perigo a vida de Bertrande. Sabemos que Oriane vai vir até a caverna. Aqui, temos o elemento surpresa a nosso favor. Precisamos esperar ela chegar até nós. — Ele fez uma pausa.

Você não deve se culpar, meu amigo. Não poderia ter evitado isso.Siga seu plano e estará fazendo o bem da sua filha.


Sajhë sacudiu o corpo para livrar-se da mão que Guilhem havia pousado em seu braço.

— Você não tem idéia do que eu estou sentindo — disse ele, com a voz trêmula de fúria. — Como se atreve a pensar que me conhece?

Guilhem ergueu as mãos no gesto de alguém que se rende.

Desculpe.

Ela é só uma criança.

Quantos anos ela tem?

— Nove — respondeu Sajhë, ríspido.

Guilhem franziu o cenho.

— Idade suficiente para entender, então — falou, pensando em voz alta.

— Mesmo que Oriane a tenha realmente convencido a sair do acampamento, em vez de forçá-la, é provável que a esta altura Bertrande já tenha percebido que alguma coisa está errada. Ela sabia que Oriane estava no acampamento? Ela sequer sabe que tem uma tia?

Sajhë assentiu.

Ela sabe que Oriane não é amiga de Alaïs. Não teria ido com ela.

Não se soubesse quem ela era — concordou Guilhem. — Mas e se não soubesse?

Sajhë pensou por um instante, depois sacudiu a cabeça.

— Mesmo assim, não posso acreditar que ela iria embora com uma des­conhecida. Nós fomos bem claros quando dissemos para ela nos esperar...

Ele se interrompeu, percebendo que quase havia se traído, mas Guilhem estava seguindo seu próprio raciocínio. Sajhë deu um suspiro de alívio.

— Acho que conseguiremos lidar com os soldados depois de termos resgatado Bertrande — disse Guilhem. — Quanto mais penso no assunto, mais provável acho que Oriane vá deixar os homens no acampamento e conti­nuar sozinha com sua filha.

Sajhë começou a escutar.

Continue.

Oriane esperou mais de trinta anos por isto. A dissimulação para ela é tão natural quanto respirar. Não acho que ela vá correr o risco de alguma outra pessoa descobrir a localização exata da caverna. Ela não iria querer com­partilhar o segredo e, como acredita que ninguém sabe onde ela está, a não ser o filho, não vai estar esperando nenhuma resistência.

Guilhem fez uma pausa.

Oriane é... — Ele se interrompeu. — Para obter a Trilogia do Labi­rinto, Oriane mentiu, matou, traiu o pai e a irmã. Ela amaldiçoou a si mesma por causa dos livros.

Matou?


Seu primeiro marido, Jehan Congost, com certeza, embora não tenha ela mesma empunhado a faca.

François — murmurou Sajhë, baixo demais para Guilhem ouvir. Um fragmento de memória, os gritos, os cascos do cavalo se debatendo em desespero enquanto homem e animal eram tragados pelo pântano movediço.

E eu sempre acreditei que ela tivesse sido responsável pela morte de uma mulher a quem Alaïs queria muito bem — continuou Guilhem. — A esta altura já não me lembro o nome dela, mas era uma mulher sábia que morava na Ciutat. Ela ensinou tudo a Alaïs sobre medicamentos, como curar, como usar as dádivas da natureza para o bem. — Ele fez uma pausa. — Alaïs a amava.

Fora a teimosia que impedira Sajhë de revelar a própria identidade. Eram a teimosia e o ciúme que o impediam de dizer qualquer coisa sobre sua vida com Alaïs.

— Esclarmonde não morreu — disse ele, já incapaz de fingir. Guilhem ficou imóvel.

— O quê? — disse ele. — Alaïs sabe disso?

Sajhë assentiu.

— Quando ela fugiu do Château Comtal, foi com Esclarmonde e com seu neto que Alaïs buscou ajuda. Ela saiu...

O som da voz incisiva de Oriane, autoritária e fria, interrompeu a con­versa. Os dois homens, ambos guerreiros das montanhas, jogaram-se no chão. Sem fazer um só ruído, desembainharam as espadas e ocuparam suas posições junto à entrada da caverna. Sajhë se escondeu atrás de um pedaço de pedra logo abaixo da entrada, Guilhem atrás de um anel de arbustos de azarola, seus galhos pontiagudos e ameaçadores à luz do crepúsculo.

As vozes chegaram mais perto. Eles puderam ouvir as botas dos soldados, suas armaduras e fivelas batendo no sílex e nas rochas do caminho pedregoso.

Sajhë tinha a sensação de acompanhar Bertrande em cada um de seus passos. Cada instante parecia uma eternidade. O som dos passos, o eco das vozes se repetiam vezes sem conta, e mesmo assim não pareciam chegar mais perto.

Por fim, duas figuras emergiram do abrigo das árvores. Oriane e Bertrande. Como Guilhem havia intuído, elas estavam sozinhas. Sajhë pôde ver que Guilhem o encarava, alertando-o para não se mexer ainda, para es­perar até Oriane estar ao alcance das armas para poderem lhe tomar Bertrande com segurança.

Conforme as duas foram se aproximando, Sajhë cerrou os punhos para se forçar a não rugir de raiva. Na bochecha da menina havia um corte, desta­cando-se vermelho em seu rosto branco e gelado. Oriane havia atado uma corda ao pescoço de Bertrande, que descia por suas costas até as mãos amarradas pelo pulso atrás de sua cintura. Oriane segurava a outra ponta da corda. Com a mão direita, empunhava uma adaga, que usava para cutucar Bertrande nas costas e obrigá-la a avançar.

Bertrande caminhava de um jeito estranho e não parava de tropeçar. Ele apertou os olhos e viu que, debaixo das saias, seus tornozelos estavam amarra­dos um no outro. A pequena extensão de corda entre eles lhe permitia dar apenas passos bem curtos.

Sajhë se forçou a ficar parado, à espera, observando-as até chegarem à clareira que ficava logo abaixo da caverna.

— Você disse que ficava depois das árvores.

Bertrande murmurou alguma coisa, baixo demais para Sajhë poder escutar.

Para o seu próprio bem, espero que esteja dizendo a verdade — disse Oriane.

Está lá dentro — disse Bertrande. A voz dela soava firme, mas Sajhë pôde ouvir o terror ao fundo, e seu coração se contraiu.

O plano era emboscar Oriane na entrada da caverna. Ele se concentraria em pôr Bertrande fora do alcance de Oriane, e Guilhem em desarmar Oriane antes de ela ter oportunidade de usar a faca.

Sajhë olhou para Guilhem, que assentiu, avisando-lhe que estava pronto.

Mas você não pode entrar — dizia Bertrande. — E um lugar sagrado.

Ninguém pode entrar, só os Guardiães.

É mesmo? — zombou ela. — E quem vai me impedir? Você? — Uma expressão de amargura tomou conta de seu rosto. — Você se parece tanto com ela que me deixa enjoada — falou, dando um puxão na corda em volta do pescoço de Bertrande e fazendo-a gritar de dor. — Alaïs estava sempre dizendo aos outros o que fazer. Sempre se achou melhor do que todos os outros.

Não é verdade! — gritou Bertrande, corajosa, apesar da situação sem saída em que se encontrava. Sajhë rezou para que ela se calasse. Ao mesmo tempo, sabia que Alaïs ficaria orgulhosa da coragem da filha. Ele estava orgu­lhoso de sua coragem. Ela se parecia tanto com os pais.

Bertrande começou a chorar.

— Isso é errado. Você não pode entrar. Ele não vai deixar você entrar. O labirinto vai proteger o seu segredo, de você ou de qualquer outra pessoa de má intenção.

Oriane deu uma risada curta.

Isso são só histórias para assustar crianças burras como você.

Bertrande insistiu.

Eu não vou levar você mais longe.


Oriane levantou a mão e bateu na menina, projetando-a em direção à pedra. Uma bruma vermelha inundou a mente de Sajhë. Em três ou quatro passadas, ele se jogou em cima de Oriane, soltando um grito visceral do fundo do peito.

Oriane reagiu muito depressa, puxando Bertrande para fazê-la ficar de pé e segurando a faca junto a seu pescoço.

— Que decepção. Achei que meu filho fosse capaz de lidar com um assunto tão simples. Você já estava preso, ou pelo menos me disseram que estava... mas não tem importância.

Sajhë sorriu para Bertrande, tentando reconfortá-la, apesar da situação terrível em que estavam.

Largue a espada — disse Oriane, calma —, ou eu a mato.

Desculpe ter desobedecido você, Sajhë — choramingou Bertrande — mas ela estava com o seu anel. Ela me disse que você a tinha mandado me buscar.

Não era o meu anel, brava — disse Sajhë. Ele soltou a espada. A arma caiu com um ruído pesado sobre o chão duro.

Melhor assim. Agora venha até aqui para eu poder olhar para você. Aí está bom. Pare. — Ela sorriu. — Está sozinho?

Sajhë não disse nada. Oriane encostou a lâmina deitada sobre a garganta de Bertrande e deu um leve corte abaixo da orelha. Bertrande soltou um grito enquanto um filete de sangue escorria por seu pescoço, como uma fita verme­lha sobre a pele pálida.

— Solte-a, Oriane. Não é ela que você quer, sou eu.

Ao som da voz de Alaïs, a própria montanha pareceu prender a respiração.

Seria um espírito? Guilhem não saberia dizer.

De repente, ele sentiu que todo o ar havia sido sugado de seu corpo, deixando-o oco e sem peso. Não se atrevia a se mexer em seu esconderijo, por medo de afugentar a aparição. Olhou para Bertrande, tão parecida com a mãe, e em seguida para a encosta onde Alaïs estava em pé, caso fosse mesmo Alaïs.

Um capuz de pele emoldurava seu rosto, e sua capa de montar, suja por causa da viagem, arrastava-se no chão branco e cinzento. Suas mãos, aquecidas por luvas de couro, estavam unidas na frente do corpo.

— Solte-a, Oriane.

Suas palavras quebraram o encanto.

Mamà — gritou Bertrande, estendendo os braços em desespero.

Não pode ser... — disse Oriane, apertando os olhos. — Você mor­reu. Eu vi você morrer.

Sajhë se jogou na direção de Oriane e tentou agarrar Bertrande, mas não foi rápido o suficiente.

Não chegue mais perto — gritou Oriane, recuperando-se do susto.

Tornou a arrastar Bertrande em direção à entrada da caverna. — Eu juro que vou matá-la.

Mamà!

Alaïs deu outro passo à frente.

Solte-a, Oriane. Seu problema é comigo.

Não há problema nenhum, irmã. Você tem o Livro das Palavras. Eu o quero para mim. C´est pas difficile.

E quando estiver com ele?

Guilhem estava fascinado. Ainda não conseguia acreditar na prova que tinha diante dos olhos: que aquela era mesmo Alaïs, como ele havia sonhado tantas vezes em sua imaginação, quando estava desperto e quando se deitava para dormir.

Um movimento chamou sua atenção: um cintilar de aço, de capacetes. Guilhem olhou com atenção. Dois soldados chegavam de mansinho por trás de Alaïs através dos densos arbustos. Ao ouvir o barulho de uma bota batendo na pedra, olhou para sua esquerda.

— Pegue-os!

O soldado que estava mais perto de Sajhë agarrou-lhe os braços e o segu­rou com firmeza, enquanto os outros saíam de onde estavam escondidos. Rá­pida como o corisco, Alaïs sacou a espada e deu meia-volta, deslizando a lâmi­na pelo flanco do soldado mais próximo. O homem caiu. O outro se jogou sobre ela. Centelhas voaram enquanto as lâminas se chocavam, para a direita e para a esquerda.

Alaïs tinha a vantagem de estar em terreno mais elevado, mas era mais baixa e mais fraca.

Guilhem pulou de seu esconderijo e correu na direção dela, no exato instante em que ela titubeava e perdia o equilíbrio. O soldado se jogou sobre Alaïs, perfurando-lhe a parte interna do braço. Ela gritou e largou a espada, apertando o ferimento com a luva para estancar o sangue.

— Mamà!

Guilhem deu os últimos passos que o separavam do outro soldado e enfiou a espada na barriga do homem. O sangue esguichou de sua boca. Seus olhos se esbugalharam de choque, e em seguida ele desabou.

Guilhem não teve tempo de recuperar o fôlego.

— Guilhem! — gritou Alaïs. — Atrás!

Ele se virou e viu mais dois soldados subindo a encosta correndo. Com um rugido, sacou a espada e correu na direção deles. A lâmina cortou o ar enquanto ele os fazia recuar, golpeando a esmo, sem piedade, primeiro um, depois o outro.

Ele era melhor espadachim, mas estava em desvantagem numérica.

Sajhë agora estava amarrado e de joelhos. Um dos soldados ficou de guarda, com a ponta da faca no pescoço de Sajhë, enquanto o outro vinha ajudar a dominar Guilhem. Chegou perto o suficiente para Alaïs atacá-lo. Embora ela estivesse perdendo sangue depressa, conseguiu tirar uma faca do cinto e, com a força que lhe restava, mergulhou-a com força entre as pernas do atacante. O homem gritou enquanto a lâmina se enterrava no alto de sua coxa.

Cego de dor, ele brandiu sua arma. Guilhem viu Alaïs voar para trás e bater com a cabeça na pedra. Ela tentou se levantar, mas estava desorientada, titubeou, e suas pernas cederam. Ela desabou no chão, com o sangue jorrando do corte em sua testa.

Com a adaga ainda cravada na perna, o soldado se atirou em cima de Guilhem como um urso em um ringue de luta. Guilhem deu um passo para trás para sair do caminho dele, e derrapou no chão escorregadio, fazendo pe­dras deslizarem pela encosta da montanha. Aquilo deu aos dois outros a opor­tunidade de que precisavam para pular em cima dele e imobilizá-lo de bruços, com o rosto no chão.

Ele sentiu as costelas se partirem quando uma bota lhe chutou o flanco. Encolheu-se de agonia enquanto tornavam a chutá-lo. Podia sentir o gosto do próprio sangue na boca.

Alaïs não emitia um som sequer. Ela não parecia estar se mexendo.

Então ele ouviu Sajhë gritar. Guilhem levantou a cabeça no mesmo ins­tante em que o soldado golpeava Sajhë de lado com a parte plana da lâmina da espada, fazendo-o perder os sentidos.

Oriane havia desaparecido dentro da caverna levando Bertrande.

Com um rugido, Guilhem reuniu os últimos resquícios de força que lhe restavam e pôs-se de pé com violência, fazendo um dos soldados voar encosta abaixo. Agarrou a espada e a enfiou na garganta do único homem ainda de pé, enquanto Alaïs se ajoelhava com dificuldade e furava o outro na parte de trás da perna com a própria faca. O uivo de dor morreu na garganta do homem.

Guilhem percebeu que tudo agora estava em silêncio.

Por um instante, ficou apenas encarando Alaïs. Guilhem ainda estava aterrorizado; tinha medo de que, se acreditasse nas provas diante de seus olhos, ela seria tirada dele outra vez. Então estendeu a mão.

Guilhem sentiu os dedos de Alaïs enlaçarem os seus. Sentiu a pele dela, partida e machucada como a dele, fria como ele. Real.

Eu pensei...

Eu sei — disse ela depressa.

Guilhem não queria soltá-la, mas a lembrança de Bertrande o chamou de volta.


— Sajhë está ferido — disse ele, subindo a encosta em direção à entrada.

— Vá ajudá-lo. Eu vou atrás de Oriane.

Alaïs agachou-se para ver como Sajhë estava, em seguida correu imedia­tamente ao encontro de Guilhem.

Ele está só inconsciente — disse ela. — Fique você. Diga a ele o que aconteceu. Eu preciso encontrar Bertrande.

Não, é isso que ela quer. Ela vai forçar você a revelar onde escondeu o Livro, depois vai matar vocês duas. Não está vendo que eu tenho mais chances de trazer sua filha de volta viva do que você?

Nossa filha — disse ela.

Guilhem ouviu as palavras, embora não tenha conseguido entendê-las. Seu coração disparou.

— Alaïs, o que...? — ele começou a dizer, mas ela já havia passado por debaixo de seu braço e começado a correr pelo túnel rumo à escuridão.

 

                           Ariège

                           Sexta-feira, 8 de julho de 2005.

— Eles foram para a caverna — gritou Noubel, batendo o fone no gancho. — Que coisa mais estúpida...

Quem?

Audric Baillard e Alice Tanner. Eles enfiaram na cabeça que Shelagh O´Donnell está presa no Pic de Soularac e estão indo para lá. Ela disse que tinha outra pessoa lá também. Um americano, Will Franklin.

Quem é ele?

Não faço idéia — disse Noubel, agarrando sua jaqueta do gancho atrás da porta e saindo desabalado pelo corredor.

Moureau foi atrás dele.

Quem era no telefone?

A telefonista. Aparentemente eles receberam o recado da Dra. Tanner às nove horas, mas "acharam que eu não iria querer ser incomodado no meio de um interrogatório". N´importe quoi! — Noubel imitava a voz anasalada do encarregado da noite.

Os dois homens ergueram os olhos automaticamente para o relógio na parede. Eram dez e quinze.

E Braissart e Domingo? — perguntou Moureau, desviando os olhos para o corredor que levava às salas de interrogatório. O palpite de Noubel estava certo. Os dois homens haviam sido presos a pouca distância da fazenda da ex-mulher de Authié. Estavam indo para o sul em direção a Andorra.

Eles podem esperar.

Noubel escancarou a porta do estacionamento, fazendo-a bater na porta de emergência. Desceram correndo a escada de metal até o asfalto.

— Você conseguiu alguma coisa com eles?

— Nada — disse Noubel, abrindo com violência a porta do carro e atirando a jaqueta no banco de trás. — Os dois parecem um túmulo.


Eles têm mais medo do patrão do que de você — disse Moureau, batendo a porta do carona. — Alguma notícia do Authié?

Nenhuma. Ele foi à missa em Carcassonne mais cedo. Desde então, nenhum sinal dele.

E a fazenda? — sugeriu Moureau enquanto o carro se lançava pela rua principal. — A equipe de busca já voltou?

Não.

O celular de Noubel começou a tocar. Mantendo a mão direita no vo­lante, ele esticou o braço esquerdo até o banco de trás, liberando um cheiro de suor ranço da axila. Jogou a jaqueta no colo de Moureau e fez gestos frenéticos enquanto o outro vasculhava seus bolsos.

— Noubel, oui?

Seu pé pisou no freio com força, fazendo Moureau voar para frente no assento.

— Putain! Por que só estou sabendo disso agora? Tem alguém lá dentro?

— Ele escutou. — Quando foi que começou? — A ligação estava ruim e Moureau podia ouvir a conexão falhar. — Não, não! Fique aí. Me mantenha informado.

Noubel jogou o celular em cima do painel, ligou a sirene e acelerou na direção da estrada.

— A fazenda está pegando fogo — disse ele, pisando no pedal até o fundo.

Incêndio criminoso?

O vizinho mais próximo fica a meio quilômetro. Ele diz que escutou umas explosões altas, depois viu as chamas e chamou os bombeiros. Quando eles chegaram, o fogo já estava descontrolado.

Tem alguém lá dentro? — perguntou Moureau, preocupado.

Eles não sabem — respondeu Noubel, sombrio.

Shelagh alternava períodos de lucidez com outros de inconsciência.

Não tinha idéia de quanto tempo fazia desde que os homens haviam saído. Estava perdendo os sentidos um por um. Não tinha mais noção de onde estava fisicamente. Braços, pernas, corpo, cabeça: tinha a sensação de estar flutuando, sem peso. Não sentia calor nem frio, e tampouco as pedras e a sujeira sobre a qual estava deitada. Estava aninhada em seu próprio casulo. Segura. Livre.

Ela não estava sozinha. Rostos flutuavam em sua mente, pessoas do pas­sado e do presente, uma procissão de imagens silenciosas.

A luz parecia estar ficando mais forte de novo. Em algum lugar, fora de sua linha de visão, havia um trêmulo facho de luz branca, fazendo as sombras dançarem nas paredes e pelo teto rochoso da caverna. Como um caleidoscópio, as cores variavam e mudavam de forma diante de seus olhos.

Ela pensou estar vendo um homem. Muito velho. Sentiu suas mãos frias e secas sobre a testa, a pele ressecada como papel. Ouviu sua voz lhe dizer que tudo iria ficar bem. Que ela estava segura agora.

Então Shelagh ouviu outras vozes sussurrando em sua cabeça, murmu­rando, falando baixinho, acariciando-a.

Sentiu asas pretas nos ombros ninando-a carinhosamente, como uma criança. Chamando-a para casa.

Então outra voz estragou tudo.

— Vire para cá. Percebeu que o rugido estava dentro de sua cabeça: era o som do próprio sangue bombeando em seus ouvidos, grosso e pesado. O barulho das balas não parava de reverberar em sua lembrança.

Ele engoliu em seco e tentou controlar a respiração. O cheiro pungente de couro em seu nariz e sua boca estava forte demais. Revirava-lhe o estômago.

Quantos tiros ele havia escutado? Dois? Três?

Seus dois guarda-costas saíram. Will pôde ouvi-los conversando, discu­tindo com François-Baptiste talvez. Devagar, tomando cuidado para não cha­mar atenção, ele se apoiou de leve do banco traseiro do carro. À luz dos faróis, pôde ver François-Baptiste em pé ao lado do cadáver de Authié, o braço pen­dendo ao lado do corpo, ainda segurando a arma. Parecia que alguém havia derramado um balde de tinta vermelha sobre a porta e o capô do carro de Authié. Sangue, pele e fragmentos de osso. O que restava do crânio de Authié.

A náusea subiu-lhe pela garganta. Will tornou a engolir em seco. For­çou-se a continuar olhando. François-Baptiste começou a se agachar, hesitou, em seguida mudou de idéia e deu meia-volta.

Apesar de as repetidas doses da droga terem deixado seus braços e pernas dormentes, Will sentiu o corpo se retesar. Deixou-se cair mais uma vez sobre o banco, grato pelo menos por eles não o terem posto novamente na caixa claustrofóbica da mala do carro.

A porta mais próxima de sua cabeça foi aberta e Will sentiu as conheci­das mãos calosas nos braços e no pescoço, arrastando-o pelo assento e jogando-o no chão.

O ar frio da noite bateu em seu rosto e nas pernas nuas. O roupão com o qual o haviam vestido era comprido e largo, embora estivesse amarrado na cintura. Will sentia-se exposto, vulnerável. E aterrorizado.

Pôde ver o corpo de Authié caído sobre o cascalho, imóvel. Ao seu lado, escondida atrás do volante do carro, pôde ver uma luzinha vermelha piscando.


— Portez-le jus qu´à la grotte. — A voz de François-Baptiste trouxe Will de volta. — Vous nous attendez dehors. En face de l´ouverture. — Ele fez uma pausa. — Il est dix heures moins cinq maintenant. Nous allons rentrer dans quarante, peut-être cinquante minutes.

Eram quase dez horas. Will deixou a cabeça pender enquanto o homem o segurava pelas axilas. Enquanto começavam a arrastá-lo encosta acima, ele se perguntou se ainda estaria vivo às onze.

— Vire para cá — repetiu Marie-Cécile.

Uma voz ríspida, arrogante, pensou Audric. Ele afagou a testa de Shelagh com a mão mais uma vez, depois pôs-se de pé devagar. Seu alívio por tê-la encontrado viva não durou muito. Ela estava em péssimo estado. Sem socorro médico em breve, Audric tinha medo de que morresse.

— Deixe a lanterna aí — ordenou Marie-Cécile. — Venha até aqui para eu poder ver você.

Devagar, Audric se virou e saiu de trás do altar.

Ela segurava uma lamparina a óleo em uma das mãos, e na outra, uma pistola. O primeiro pensamento que ele teve foi como as duas eram parecidas. Os mesmos olhos verdes, cabelos pretos encaracolados emoldurando um rosto bonito, austero. Com a tiara e o colar de ouro, os amuletos em volta dos braços e o corpo esguio e alto vestido com a túnica branca, ela parecia uma princesa egípcia.

Veio sozinha, dama?

Eu não acho necessário ir acompanhada a todos os lugares, monsieur, além do que...

Ele baixou os olhos para a arma.

— Você não acha que eu vá dar trabalho — disse, e assentiu. — Afinal, eu sou velho, oc?— Então acrescentou: — Mas também não quer que ninguém escute.

Um esboço de sorriso cruzou os lábios dela.

— A força está no segredo.

O homem que ensinou isso a você morreu dama.

A dor faiscou nos olhos dela.

Você conheceu o meu avô?

Ouvi falar dele — respondeu Audric.

Ele me ensinou direitinho. Nunca se deve confiar em ninguém. Nun­ca se deve acreditar em ninguém.

Que maneira solitária de viver, dama.

Eu não acho.


Ela havia caminhado em volta dele, como um animal rodeando a presa, até ficar de costas para o altar e ele estar em pé no centro da câmara, perto de uma depressão no chão.

O túmulo, pensou ele. O túmulo onde os corpos haviam sido encontrados.

— Onde ela está? — perguntou Marie-Cécile.

Ele não respondeu.

— Você é muito parecida com seu avô. O temperamento, os traços, a persistência. Como ele, também, você está equivocada.

A raiva atravessou o rosto dela.

Meu avô era um grande homem. Ele honrou o Graal. Dedicou a vida à busca pelo Livro das Palavras, para entender melhor.

Entender, dama? Ou explorar?

Você não sabe nada sobre ele.

Ah, sei sim — disse ele baixinho. — As pessoas não mudam tanto assim. — Ele hesitou. — E ele estava tão perto, não estava? — continuou baixando ainda mais a voz. — Alguns quilômetros mais a oeste, e teria sido ele a encontrar a caverna. Não você.

Agora não faz diferença — disse ela, impetuosa. — Ele é nosso.

O Graal não pertence a ninguém. Não é algo que possa ser possuído, manipulado ou usado como moeda de troca.

Audric se calou. À luz da lamparina a óleo que iluminava o altar, enca­rou-a bem nos olhos.

— O Graal não o teria salvado — falou.

Do outro lado da câmara, ele a ouviu soltar um arquejo.

O elixir cura e prolonga a vida. Ele o teria mantido vivo.

O Graal não teria sido capaz de salvá-lo da doença que corroia sua carne dos ossos, dama, não mais do que dará a você o que deseja. — Ele fez uma pausa. — O Graal não virá para você.

Ela deu um passo em sua direção.

Você espera que não venha, Baillard, mas não tem certeza. Apesar de todo o seu conhecimento, de todas as suas pesquisas, você não sabe o que vai acontecer.

Você está errada.

Esta é a sua chance, Baillard. Depois de todos os seus anos escreven­do, estudando, questionando. Como eu, você dedicou à vida inteira a isto.

Quer que isto aconteça tanto quanto eu.

— E se eu me recusar a cooperar?

Ela deu uma risada incisiva.

— Ora. Você nem precisa perguntar. Você sabe que meu filho vai matá-la. Como ele vai fazer isso, e quanto tempo vai levar, só depende de você.


Apesar das precauções que havia tomado, um arrepio percorreu a espinha de Baillard. Contanto que Alice ficasse onde estava, como havia prometido, não havia por que se alarmar. Ela estava segura. Tudo estaria terminado antes de ela perceber o que estava acontecendo.

Lembranças de Alaïs — de Bertrande também — irromperam de súbito em sua mente. Sua natureza impetuosa, sua relutância em obedecer a qualquer ordem, sua coragem imprudente.

Seria Alice feita da mesma fibra?

— Está tudo pronto — disse ela. — O Livro das Poções e o Livro dos Números estão aqui. Então só falta você me dar o anel e me dizer onde o Livro das Palavras está escondido...

Audric fez força para se concentrar em Marie-Cécile, não em Alice.

— Por que você tem tanta certeza de que ele ainda está aqui na câmara?

Ela sorriu.

— Porque você está aqui, Baillard. Por que outro motivo viria até aqui? Você queria ver a cerimônia ser executada só mais uma vez antes de morrer. Vá vestir a túnica! — gritou ela, subitamente impaciente. Gesticulou com a arma para o pedaço de tecido branco no alto dos degraus. Ele sacudiu a cabeça e, por uma fração de segundo, viu dúvida na expressão dela. — Depois vai pegar o Livro para mim.

Ele percebeu que três pequenas argolas de metal haviam sido enterradas no chão da parte mais baixa da câmara. E lembrou-se de que fora Alice quem descobrira os esqueletos na cova rasa.

Baillard sorriu. Logo teria as respostas que buscava.

— Audric — sussurrou Alice, tateando túnel abaixo.

Por que ele não responde?

Sentiu o chão descer debaixo de seus pés como da outra vez. Agora, o túnel parecia mais comprido.

À sua frente, na câmara, podia ver um tênue brilho de luz amarela.

— Audric — tornou a chamar, seus temores aumentando.

Acelerou o passo, percorrendo os últimos metros correndo, até irromper na câmara e estacar.

Isto não pode estar acontecendo.

Audric estava em pé na frente dos degraus. Vestia uma comprida túni­ca branca.

Eu me lembro disto.

Alice sacudiu a cabeça para se livrar da lembrança. As mãos de Audric estavam amarradas na frente de seu corpo e ele estava preso ao chão, como um animal. No outro canto da câmara, iluminada por uma lamparina a óleo que treme luzia sobre o altar, estava Marie-Cécile de l´Oradore.

— Pode parar por aí — disse esta última.

Audric se virou, os olhos cheios de arrependimento e pesar.

— Eu sinto tanto — sussurrou ela, percebendo que havia estragado tudo.

— Mas eu queria avisar você...

Antes que Alice percebesse o que estava acontecendo, alguém a havia agarrado por trás. Ela gritou e se debateu, mas eles eram dois. Aconteceu assim antes.

Então alguém chamou seu nome. Não foi Audric. Uma onda de náusea a dominou e ela começou a cair.

— Segurem-na, seus idiotas! — gritou Marie-Cécile.


 

                               Pic de Soularac

                               Març 1244

Guilhem não conseguiu alcançar Alaïs. Ela já estava muito na sua frente.

Ele cambaleou túnel abaixo, no escuro. A dor latejava em seu flanco onde as costelas estavam partidas, impedindo-o de respirar livremente. As pa­lavras de Alaïs ecoando em sua mente e o medo que apertava seu peito o fizeram continuar.

O ar parecia estar ficando mais frio, gelado, como se a vida estivesse sendo sugada para fora da caverna. Ele não entendeu. Se a caverna do labirin­to era um lugar sagrado, por que ele se sentia em presença de tamanha malevolência?

Guilhem viu que estava em pé sobre uma plataforma de pedra natural. Alguns degraus largos e rasos bem na sua frente conduziam a uma área onde o chão era plano e liso. Uma calèlh estava acesa sobre um altar de pedra, iluminan­do um pouco o ambiente.

As duas irmãs estavam em pé uma na frente da outra, e Oriane ainda segurava a faca junto ao pescoço de Bertrande. Alaïs estava inteiramente imóvel.

Guilhem se encolheu, rezando para que Oriane não o tivesse visto. O mais silenciosamente possível, começou a se arrastar junto à parede, escondi­do pelas sombras, até chegar perto o bastante para ouvir e ver o que estava acontecendo.

Oriane jogou alguma coisa no chão na frente de Alaïs.

— Pegue — gritou ela. — Abra o labirinto. Eu sei que o Livro das Pala­vras está escondido lá dentro.

Guilhem viu os olhos de Alaïs se arregalarem de surpresa.


— Você nunca leu o Livro dos Números? Você me espanta, irmã. A expli­cação sobre a chave está lá dentro.

Alaïs hesitou.

— O anel, com o merel encaixado dentro, destranca a câmara bem no centro do labirinto.

Oriane puxou a cabeça de Bertrande para trás, de modo que a pele no pescoço da menina se esticou. A lâmina cintilou à luz da lamparina.

— Agora, irmã.

Bertrande deu um grito. O barulho pareceu varar a cabeça de Guilhem como uma faca. Ele olhou para Alaïs, que tinha o cenho franzido; seu braço ferido pendia ao lado do corpo, inútil.

— Solte-a primeiro — disse ela.

Oriane sacudiu a cabeça, negando. Seus cabelos haviam se soltado e seus olhos estavam alucinados, obcecados. Mantendo o olhar cravado em Alaïs, ela fez uma pequena incisão na garganta de Bertrande, lenta e deliberadamente.

Bertrande gritou de novo enquanto o sangue começava a escorrer por seu pescoço.

— O próximo corte será mais profundo — disse Oriane, com a voz trêmula de ódio. — Pegue o Livro.

Alaïs se agachou e pegou o anel, depois caminhou até o labirinto. Oriane foi atrás, arrastando Bertrande consigo. Alaïs podia ouvir a respiração da filha se acelerar cada vez mais e ver que ela estava perdendo a consciência, cambale­ando com os pés ainda atados.

Por um instante, Alaïs ficou ali em pé, parada, e seus pensamentos volta­ram no tempo até o instante em que vira Harif executar aquela mesma tarefa pela primeira vez.

Alaïs pressionou a mão esquerda sobre o áspero labirinto de pedra. A dor subiu por seu braço machucado. Ela não precisava de vela para ver o contorno do símbolo egípcio da vida — o ankh, como Harif lhe ensinara a chamá-lo. Então, encobrindo os gestos de modo a que Oriane não os visse, inseriu o anel em uma pequena abertura na base do círculo central do labirinto, bem em frente a seu rosto. Para o bem de Bertrande, rezou para que aquilo funcionas­se. Nada havia sido dito; nada havia sido preparado como deveria. As circuns­tâncias não poderiam ser mais diferentes da única outra vez em que ela se postara como suplicante diante do labirinto de pedra.

— Di ankh djet — murmurou ela. As palavras ancestrais tinham sabor de cinzas em sua boca. Ouviu-se um estalo nítido, como uma chave em uma fechadura. Por um instante, nada pareceu acontecer. Então, do fundo da pare­de, ouviu-se o barulho de alguma coisa se movendo, pedra contra pedra. Alaïs se afastou e, à meia-luz, Guilhem viu que um compartimento havia sido reve­lado bem no meio do labirinto. Lá dentro havia um livro.


Passe para mim — ordenou Oriane. — Ponha ali, sobre o altar.

Alaïs fez o que ela mandava, sem nunca tirar os olhos do rosto da irmã.

Agora solte-a. Você não precisa mais dela.

— Abra! — gritou Oriane. — Quero ter certeza de que você não está me enganando.

Guilhem chegou mais perto. Cintilando em dourado sobre a primeira página do livro havia um símbolo que ele nunca vira antes. Uma forma oval, mais parecida com uma lágrima, desenhada acima de uma cruz, como o cajado de um pastor.

— Continue — disse Oriane. — Quero ver tudo.

As mãos de Alaïs tremiam enquanto ela virava as páginas. Guilhem pôde ver uma mistura de desenhos e linhas estranhas, fileiras e mais fileiras de sím­bolos muito próximos uns dos outros, que cobriam a folha inteira.

— Pegue, Oriane — disse Alaïs, esforçando-se para manter a voz firme.

— Pegue o livro e devolva-me minha filha.

Guilhem viu a lâmina reluzir. Percebeu o que iria acontecer segundos antes que acontecesse: a inveja e a amargura de Oriane a levariam a destruir tudo que Alaïs amava ou valorizava.

Ele se jogou em cima de Oriane, derrubando-a de lado. Sentiu suas cos­telas partidas cederem e quase desmaiou de dor, mas já havia feito o suficiente para obrigá-la a soltar Bertrande.

A faca caiu da mão de Oriane e escorregou até desaparecer nas sombras atrás do altar. Bertrande foi jogada para frente na colisão. A menina gritou e bateu com a cabeça no canto do altar. Em seguida, ficou imóvel.

— Guilhem, pegue Bertrande! — gritou Alaïs para ele. — Ela está ferida, Sajhë está ferido. Ajude-os. Na aldeia tem um homem chamado Harif. Ele vai ajudá-lo.

Guilhem hesitou.

— Por favor, Guilhem. Salve-a!

As últimas palavras dela se perderam enquanto Oriane se levantava com esforço, com a faca na mão, e se atirava sobre Alaïs. A lâmina cortou seu braço já ferido.

Guilhem teve a sensação de estar sendo partido em dois. Não queria deixar Alaïs para enfrentar Oriane sozinha, mas podia ver Bertrande caída no chão, branca e imóvel.

— Por favor, Guilhem. Vá!

Com um último olhar para Alaïs por cima do ombro, ele segurou a filha nos braços feridos e correu tentando não olhar para o sangue escorrendo do corte. Percebeu que era aquilo que Alaïs queria que ele fizesse.


Enquanto cambaleava para fora da câmara, Guilhem ouviu um ronco, como o trovão encurralado entre as colinas. Tropeçou e concluiu que eram as próprias pernas, incapazes de sustentá-lo. Ele recomeçou a andar, subindo o resto dos degraus e chegando novamente no túnel. Escorregava nas pedras soltas, com as pernas e braços queimando de dor. Então percebeu que o chão estava se movendo, sacudindo-se. A terra sob seus pés tremia.

Suas forças estavam quase no fim. Bertrande estava imóvel em seus bra­ços e parecia mais pesada a cada passo que ele dava. O barulho ia ficando mais alto conforme ele prosseguia. Pedaços de pedra e poeira começaram a cair do teto, despencando à sua volta.

Então ele sentiu o sopro do ar frio no rosto. Com mais alguns passos, emergiu no crepúsculo cinzento.

Guilhem correu para onde Sajhë estava deitado inconsciente, mas com a res­piração regular.

Bertrande estava pálida como a morte, mas começava a gemer e a se mexer em seus braços. Ele a deitou no chão ao lado de Sajhë, depois correu para cada um dos soldados mortos e arrancou as capas de suas costas para fazer cobertas. Em seguida arrancou a própria capa do pescoço, fazendo sua fivela de prata e cobre sair voando e cair no chão. Dobrou a capa sob a cabeça de Bertrande para fazer um travesseiro.

Parou um instante para beijar a filha na testa.

— Filha — murmurou. Era o primeiro e o último beijo que ele jamais lhe daria.

De dentro da caverna veio um ruído altíssimo de algo se rachando, como o raio depois do trovão. Guilhem correu de volta para o túnel. Naquele espaço confinado, o barulho era ensurdecedor.

Percebeu que algo surgia correndo da escuridão, vindo em sua direção.

Um espírito... um rosto — balbuciava Oriane, com os olhos enlouquecidos de medo. — Um rosto no centro do labirinto.

Onde ela está? — gritou Guilhem, agarrando seu braço. — O que você fez com Alaïs?

Oriane estava coberta de sangue, as mãos, as roupas.

— Rostos no... labirinto.

Oriane tornou a gritar. Guilhem se virou de costas para ver o que havia atrás dele, mas não conseguiu ver nada. Nesse instante, Oriane mergulhou a faca em seu peito.

Ele sabia que o golpe havia sido mortal. Na mesma hora, sentiu a morte assumindo o controle de seus membros. Com os olhos enevoados, cada vez mais escuros, viu Oriane se afastar dele correndo. Sentiu também a vingança morrer dentro de si. Aquilo não tinha mais importância.

Oriane correu rumo à luz cinzenta da noite que caía, enquanto Guilhem cambaleava às cegas para dentro da câmara, desesperado para encontrar Alaïs em meio ao caos de pedras, rochedos e poeira.

Encontrou-a deitada em uma pequena depressão no solo, com os dedos enlaçados na bolsa que continha o Livro das Palavras, e o anel apertado na mão.

— Mon còr — sussurrou ele.

Os olhos dela tremeram e se abriram ao ouvir o som da voz dele. Ela sorriu, e Guilhem sentiu um aperto no coração.

Bertrande?

Ela está segura.

Sajhë?

Ele também vai viver.

Ela soltou um arquejo.

Oriane...

Eu a deixei ir. Ela está muito ferida. Não irá longe.

A última chama da lamparina que ainda ardia sobre o altar minguou e morreu. Alaïs e Guilhem, deitados nos braços um do outro, não perceberam. Não repararam na escuridão nem na paz que se abateu sobre a câmara. Ti­nham consciência apenas de si mesmos.


 

                     Pic de Soularac

                     Sexta-feira, 8 de julho de 2005

A túnica fina era uma proteção insuficiente contra o frio úmido da câmara. Alice estremeceu enquanto virava a cabeça devagar.

À sua direita estava o altar. A única luz vinha de uma lamparina antiqua­da que havia sido colocada bem no meio, e fazia sombras correrem pelas pare­des oblíquas. Era o suficiente para que se visse o símbolo do labirinto na pedra atrás do altar, grande e imponente naquele espaço confinado.

Ela sentiu que havia outras pessoas por perto. Alice olhou para baixo, à sua direita, e quase deu um grito ao ver Shelagh pela primeira vez. Sua amiga estava deitada encolhida no chão como um animal, magra, sem vida, derrota­da, com os sinais dos maus-tratos gravados na pele. Alice não conseguiu ver se ela estava respirando.

Por favor, Deus, faça com que ela ainda esteja viva.

Alice acostumou-se aos poucos com a luz bruxuleante. Virou um pouco a cabeça e viu Audric no mesmo lugar de antes. Ele ainda estava amarrado com a corda a uma argola chumbada no chão. Seus cabelos brancos formavam uma espécie de halo em volta de sua cabeça. Ele estava imóvel, como uma estátua esculpida em uma lápide.

Como se pudesse sentir seus olhos pousados nele, Audric olhou para ela e sorriu.

Esquecendo-se por um instante que ele deveria estar zangado com ela por ter entrado depois de prometer ficar do lado de fora, ela deu um sorriso débil.

Exatamente como Shelagh disse.

Então percebeu que havia alguma coisa diferente em Audric. Baixou os olhos para suas mãos, espalmadas sobre o branco da túnica.

O anel sumiu.

— Shelagh está aqui — murmurou ela entre os dentes. — Você ti­nha razão.

Ele assentiu.

— Temos de fazer alguma coisa — sibilou ela.


Oitocentos anos antes, Alaïs havia pronunciado aquelas palavras. E Audric as havia escutado.

A verdade nos libertará.

Nada havia mudado, mas mesmo assim, de repente, Alice não sentia mais medo.

Um barulho vindo do altar chamou sua atenção. A imobilidade cessou e o mundo presente retornou em uma enxurrada. E, junto com ele, o medo.

Marie-Cécile ergueu a vasilha de terracota, pequena o suficiente para caber entre suas duas mãos. Do lado da vasilha, pegou uma pequena faca com a lâmina gasta e rombuda. Ergueu os braços compridos e brancos acima da cabeça.

— Dintrar — chamou. Entrar.

François-Baptiste se adiantou, saindo da escuridão do túnel. Seus olhos varreram o espaço em volta como um farol, passando por Audric, depois por Alice, e em seguida parando em Will. Alice viu o triunfo no rosto do rapaz e entendeu que fora François-Baptiste quem havia machucado Will.

Não vou deixar você machucá-lo desta vez.

Então o olhar dele prosseguiu. Ao ver os três livros dispostos sobre o altar, ele se deteve por um instante, Alice não soube dizer se surpreso ou alivia­do, e então seus olhos se pousaram sobre o rosto da mãe.

Apesar da distância, Alice pôde sentir a tensão entre eles.

Um esboço de sorriso iluminou o rosto de Marie-Cécile enquanto ela descia do altar segurando a faca e a vasilha. Enquanto ela se movia pela câma­ra, sua túnica reluzia à luz bruxuleante das velas como um tecido feito de luar. Alice pôde sentir no ar o cheiro sutil de seu perfume, leve sob o aroma pesado do óleo que queimava na lamparina.

François-Baptiste começou a se mexer. Desceu os degraus até chegar atrás de Will.

Marie-Cécile parou na frente dele e sussurrou alguma coisa para Will, baixo demais para Alice escutar. Embora o sorriso de François-Baptiste conti­nuasse intacto, ela viu a raiva em seu rosto quando ele se inclinou para frente, levantou as mãos atadas de Will e as apresentou a Marie-Cécile.

Alice recuou quando Marie-Cécile fez uma única incisão entre o pulso e o cotovelo de Will. Ele se retraiu, e ela pôde ver o choque em seus olhos, mas ele não emitiu nenhum som.

Marie-Cécile segurou a vasilha para recolher cinco gotas de sangue.

Ela repetiu a mesma coisa com Audric, e então veio postar-se diante de Alice. Ela pôde ver a excitação no rosto de Marie-Cécile ao percorrer a parte interna do braço de Alice com a lâmina, seguindo o contorno do ferimento. Então, com a precisão de um cirurgião manejando um bisturi, Marie-Cécile inseriu a faca na pele e apertou a ponta para baixo, devagar, até a cicatriz tornar a se abrir.

A dor pegou Alice de surpresa, uma dor contínua, não uma pontada. Ela primeiro sentiu calor, e logo em seguida frio e dormência. Ficou olhando fascinada as gotas de sangue escorrerem, uma por uma, para dentro da mistura estranhamente pálida na vasilha.

Então tudo terminou. François-Baptiste a soltou e seguiu a mãe até o altar. Marie-Cécile repetiu o procedimento com o filho e em seguida se posicionou entre o altar e o labirinto.

Pôs a vasilha no centro e deslizou a faca pela própria pele, vendo o pró­prio sangue escorrer pelo braço.

A mistura de sangues.

Um clarão de compreensão percorreu Alice. O Graal pertencia a todas as crenças e a nenhuma. Cristãos, judeus, muçulmanos. Cinco guardiães, esco­lhidos por seu caráter, por seus feitos, não por sua linhagem. Todos iguais.

Alice viu Marie-Cécile estender a mão e tirar alguma coisa do meio das páginas dos livros, um de cada vez. Ela ergueu a terceira. Uma folha de papel. Não, de papel não, de papiro. Quando Marie-Cécile o ergueu em direção à luz, a trama das fibras ficou aparente. O símbolo ficou aparente.

O ankh, símbolo da vida.

Marie-Cécile ergueu a vasilha até os lábios e bebeu. Depois de esvaziá-la, tornou a pôr a vasilha no lugar com as duas mãos e percorreu a câmara com os olhos até fixá-los em Audric. Parecia a Alice que ela o estava desafiando a fazê-la parar.

Então ela retirou o anel do dedo e virou-se para o labirinto de pedra, perturbando o ar silencioso. Enquanto a lamparina tremeluzia atrás dela, fa­zendo as sombras pularem pelas paredes, Alice viu, nas sombras da pedra esca­vada, duas formas nas quais não havia reparado antes.

Escondida dentro do desenho do labirinto era possível distinguir clara­mente a sombra da forma do ankh e o contorno de um cálice.

Alice ouviu um estalo nítido, como se uma chave houvesse sido inserida em uma fechadura. Por um instante, nada aconteceu. Então, bem do fundo da parede, ouviu-se o som de alguma coisa se movendo, pedra contra pedra.

Marie-Cécile deu um passo para trás. Alice viu que uma pequena abertu­ra, pouco maior do que os livros haviam sido expostos no centro do labirinto. Um compartimento.

Palavras e expressões surgiram em sua mente, misturando as explicações de Audric com suas próprias investigações.

No centro do labirinto está a iluminação, no centro está a compreensão. Alice pensou nos peregrinos cristãos percorrendo o chemin de Jerusalém na nave da catedral de Chartres, esquadrinhando as espirais cada vez mais aperta­das do labirinto em busca de iluminação.

Ali, no labirinto do Graal, a luz estava — literalmente — no centro de tudo.

Alice viu Marie-Cécile tirar a lamparina do altar e suspendê-la acima dele. Encaixou-se perfeitamente. A chama aumentou no mesmo instante e encheu a câmara de luz.

Marie-Cécile ergueu o papiro de um dos livros sobre o altar e o inseriu em uma das fendas na parte dianteira da alcova. Um pouco da luz da lamparina se perdeu e a caverna escureceu.

Ela se virou de costas e encarou Audric, e suas palavras quebraram o encantamento.

— Você disse que eu veria alguma coisa! — gritou ela.

Ele ergueu para ela os olhos cor de âmbar. Alice desejou que ele ficasse calado, mas sabia que ele não ficaria. Por motivos que ela não compreendia, Audric estava determinado a deixar a cerimônia ir até o fim.

— O verdadeiro encantamento só é revelado quando os três papiros são dispostos um em cima do outro. Só então, no jogo de luz e sombra, é que as palavras que devem ser pronunciadas irão se revelar, em vez das que devem ser silenciadas.

Alice tremia. Entendeu que o frio estava dentro dela, como se o calor de seu corpo estivesse se esvaindo, mas não conseguia se controlar. Marie-Cécile girou os três pergaminhos entre os dedos.

Em que sentido?

Solte-me — disse Audric com sua voz calma, tranqüila. — Solte-me, e assuma sua posição no centro da câmara. Vou lhe mostrar.

Ela hesitou, depois aquiesceu para François-Baptiste.

Maman, je ne pense...

Faça o que estou mandando — disparou ela.

Em silêncio, François-Baptiste cortou a corda que prendia Audric ao chão, e em seguida recuou.

Marie-Cécile levou a mão às costas e pegou a faca.

Se você fizer alguma coisa, eu vou matá-la — disse ela, apontando para Alice enquanto Audric se aproximava lentamente da câmara. — Entendeu?

         — Gesticulou para onde François-Baptiste estava em pé ao lado de Will. — Ou então ele vai matá-la.

Entendi.

Audric lançou um olhar para Shelagh, que jazia imóvel no chão, em seguida sussurrou para Alice:


— Será que eu estou certo? — sussurrou, subitamente em dúvida. — Será que o Graal não virá para ela?

Embora Audric estivesse olhando para ela, Alice teve a sensação de que ele estava fazendo a pergunta à outra pessoa. Para alguém com quem ele já havia compartilhado aquela experiência.

Sem saber como, Alice percebeu que conhecia a resposta. Tinha certeza. Ela sorriu, dando a ele a confirmação de que ele precisava.

— Ele não virá — disse ela entre os dentes.

— O que você está esperando? — gritou Marie-Cécile.

Audric deu um passo à frente.

Você tem de pegar cada um dos três papiros e colocá-los diante da chama — disse ele.

Faça você.

Alice o viu pegar as três folhas translúcidas e arrumá-las nas mãos, depois inserir os papiros com cuidado. Por um instante, a chama que ardia na alcova murchou e pareceu se extinguir. A caverna ficou muito escura, como se as luzes houvessem sido diminuídas.

Então, à medida que seus olhos foram se ajustando à falta de luz, Alice viu que agora restava apenas um punhado de hieróglifos, iluminados em um desenho de luz e sombra que seguia as linhas do labirinto. Todas as palavras desnecessárias haviam sido ocultadas. "Di ankh djet..." As palavras estavam claras na sua mente.

— Di ankh djet — falou ela em voz alta, e em seguida disse o resto da frase, traduzindo na cabeça as palavras ancestrais conforme as pronunciava. — No início dos tempos, na terra do Egito, o mestre dos segredos dispensou palavras e escritos. Dispensou vida.

Marie-Cécile se virou para Alice.

Você está lendo as palavras — disse ela, aproximando-se de Alice e agarrando seu braço. — Como sabe o que elas significam?

Não sei. Não sei.

Alice tentou se desvencilhar, mas Marie-Cécile a puxou para frente até fazê-la encostar na ponta da faca, tão perto que Alice pôde ver as manchas marrons na lâmina gasta. Seus olhos se fecharam e ela repetiu a frase.

— Di ankh djet...

Tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo. Audric se jogou sobre Marie-Cécile.

— Maman!

Will aproveitou o lapso de concentração de François-Baptiste. Recolheu a perna e chutou-o na base das costas. Pego de surpresa, o rapaz caiu e fez a pistola disparar para o teto da caverna, emitindo um som ensurdecedor no espaço confinado. No mesmo instante, Alice ouviu a bala atingir a rocha sóli­da da montanha e ricochetear pelo espaço.

Marie-Cécile levou a mão à têmpora. Alice viu o sangue escorrer-lhe entre os dedos. Seu corpo balançou por alguns instantes, depois desabou.

— Maman!— François-Baptiste já estava em pé, correndo. A arma des­lizou pelo chão em direção ao altar.

Audric agarrou a faca de Marie-Cécile e cortou as cordas que prendiam Will com uma força surpreendente, em seguida entregou-lhe a faca.

— Solte Alice.

Ignorando-o, Will atravessou a câmara correndo até onde François-Baptiste estava ajoelhado, ninando Marie-Cécile nos braços.

— Non, maman. Ne t´en vas pas. Écoute-moi, maman, réveille-toi.

Will agarrou os ombros do paletó grande demais do rapaz e bateu com a cabeça dele no duro chão de pedra. Então correu para Alice e começou a cortar a corda que a prendia.

Ela morreu?

Não sei.

E...

Ele a beijou, um beijo rápido nos lábios, depois soltou suas mãos da corda.

François-Baptiste vai ficar desacordado tempo suficiente para sair­mos daqui — disse ele.

Will, pegue Shelagh — disse ela, apontando, aflita. — Eu vou ajudar Audric.

Will ergueu nos braços o corpo exausto de Shelagh e começou a andar em direção ao túnel.

— Os livros — disse ela com urgência. — Precisamos pegá-los antes que eles voltem a si.

Ele estava em pé olhando para os corpos inertes de Marie-Cécile e do filho.

Audric, rápido — repetiu Alice. — Precisamos sair daqui.

Eu errei ao envolver você nisso — disse ele baixinho. — Meu desejo de saber, de cumprir uma promessa que fiz um dia e não consegui manter, me deixou cego em relação a todas as outras coisas. Eu fui egoísta. Pensei demais em mim mesmo.

Audric pousou a mão sobre os Livros.

— Você perguntou por que Alaïs não destruiu o livro — disse ele de repente. — A resposta é: porque eu não deixei. Então bolamos um plano para enganar Oriane. Foi por isso que voltamos à câmara. O ciclo de morte e de sacrifício continuou. Se não fosse por isso, talvez...


Ele caminhou até onde Alice tentava recuperar os papiros de baixo da lamparina.

Ela não teria desejado isto. Vidas demais foram desperdiçadas.

Audric, podemos falar sobre isso depois — disse Alice em desespero.

Agora precisamos tirar os papiros daqui. Foi por isto que você esperou este tempo todo, Audric. Pela oportunidade de ver a Trilogia reunida mais uma vez. Não podemos deixar isso para ela.

Eu ainda não sei — disse ele, baixando a voz para um sussurro. — O que aconteceu com ela no final.

O óleo da lamparina estava quase no fim, mas a escuridão foi diminuin­do aos poucos conforme Alice retirava o primeiro, depois o segundo, e por fim o último papiro.

Peguei — disse ela, dando meia-volta. Recolheu os livros de cima do altar e os lançou para Audric.

Traga os livros. Vamos.

Quase arrastando Audric consigo, Alice percorreu a penumbra da câma­ra até o túnel. Acabavam de tropeçar na depressão do solo onde os esqueletos haviam sido encontrados quando, da escuridão atrás deles, ouviu-se um ruído alto de alguma coisa se partindo, seguido do barulho de pedras se movendo, e então de mais dois estouros, em rápida sucessão.

Alice se jogou no chão. Dessa vez não era o barulho de uma arma que se ouvia, mas um tipo diferente de som. Um rugido vindo bem lá do fundo da terra.

A adrenalina tomou conta de seu corpo. Desesperada, ela continuou em frente, rastejando, segurando os papiros com os dentes e rezando para Audric estar atrás dela. O tecido da túnica se prendia entre suas pernas, diminuindo seu ritmo. Seu braço sangrava muito, e ela não conseguia se apoiar nele, mas conseguiu chegar ao ponto onde começavam os degraus.

Alice agora tinha consciência de um ronco constante, mas não podia se dar ao luxo de se virar. Seus dedos mal haviam encontrado as letras gravadas no alto dos degraus quando uma voz ecoou.

— Pare aí mesmo. Ou eu atiro nele.

Alice congelou.

Não pode ser ela. Ela levou um tiro. Eu a vi cair.

— Vire-se. Devagar.

Lentamente, Alice se levantou. Marie-Cécile estava em pé na frente do altar, meio cambaleante. Sua túnica estava salpicada de sangue e sua tiara ha­via caído, deixando seus cabelos desarrumados e revoltos ao redor de seu rosto. Ela segurava o revólver de François-Baptiste. A arma estava apontada direto para Audric.


— Chegue perto de mim devagar, Dra. Tanner.

Alice percebeu que o chão estava cedendo. Sentiu o tremor subir vibran­do por seus pés e suas pernas, um rugido grave bem no fundo da terra, que ia ficando mais forte e mais insistente a cada segundo.

Marie-Cécile de repente pareceu escutar também. Por um instante, a confusão anuviou-lhe o rosto. Outro safanão sacudiu a câmara. Dessa vez não houve dúvidas de que havia sido uma explosão. Uma lufada de ar frio varreu a caverna. Atrás de Marie-Cécile, a lamparina começou a tremer enquanto o labirinto de pedra rachava e começava a se fragmentar.

Alice correu de volta até Audric. O chão estava se abrindo em dois, esfarelando-se sob seus pés à medida que a pedra sólida e a terra ancestral começavam a se desfazer. Detritos choviam sobre sua cabeça vindos de todas as direções, enquanto ela pulava para evitar os buracos que se abriam a toda sua volta.

— Me dê os papiros! — gritou Marie-Cécile, virando a arma na direção de Alice. — Você acha mesmo que eu vou deixá-la tirá-los de mim?

Suas palavras foram engolidas pelo barulho de pedras e rochas desaban­do a medida que a câmara implodia.

Audric se levantou e falou pela primeira vez.

— Ela? — disse. — Não, Alice não.

Marie-Cécile se virou para ver para onde Audric estava olhando.

Ela deu um grito.

Na escuridão, Alice pôde ver alguma coisa. Um brilho, um brilho bran­co, quase como um rosto. Aterrorizada, Marie-Cécile tornou a apontar a arma para Alice. Hesitou, e então puxou o gatilho. Houve tempo suficiente para Audric se jogar na frente da bala.

Tudo pareceu se mover em câmera lenta.

Alice gritou. Audric caiu de joelhos no chão. A força do tiro fez Marie-Cécile voar para trás e perder o equilíbrio. Seus dedos agarraram o ar, procu­rando apoio, desesperados, enquanto ela escorregava para dentro do imenso vão que havia se aberto no solo.

Audric estava deitado no chão, e o sangue esguichava do buraco de bala no meio de seu peito. Seu rosto estava da cor do papel, e ela podia ver as veias azuis por baixo da fina camada de pele.

— Precisamos sair daqui! — gritou ela. — Pode haver outra explosão.

Tudo pode desabar a qualquer momento.

Ele sorriu.

— Terminou Alice — disse baixinho. — A la perfin . O Graal protegeu seus segredos, com já tinha feito antes. Não deixou que ela levasse o que queria.


Alice sacudia a cabeça.

Não, a caverna estava minada, Audric — disse ela. — Pode ser que haja outra bomba. Temos de sair.

Não vai haver mais bombas — disse ele. Não havia dúvida em sua voz. — Elas eram o eco do passado.

Alice podia ver que falar lhe causava dor. Abaixou a cabeça até junto da dele. Em seu peito havia um leve chiado, e sua respiração estava entrecortada e débil. Ela tentou estancar a hemorragia, mas pôde ver que era inútil.

— Eu queria saber como ela passou seus últimos momentos. Você en­tende? Eu não consegui salvá-la. Ela ficou presa aqui dentro e eu não consegui chegar até ela. — Ele arquejou de dor. Engoliu outra lufada de ar. — Mas desta vez...

Alice finalmente aceitou o que sempre soubera, por instinto, desde o instante em que chegara a Los Seres e o vira em pé no vão da porta da casa de pedra, escondida nas dobras da montanha.

Esta é a história dele. Estas são as suas lembranças.

Pensou na árvore genealógica, compilada com tanto amor e cuidado.

— Sajhë — disse ela. — Você é Sajhë.

Por um instante, os olhos cor de âmbar de Audric cintilaram de vida. Uma expressão de prazer intenso inundou seu rosto à beira da morte.

Quando acordei, Bertrande estava ao meu lado. Alguém havia nos coberto com capas para nos proteger do frio...

Guilhem — disse Alice, sabendo que aquilo era verdade.

Houve uma trovoada terrível. Eu vi o parapeito de pedra acima da entrada desabar. A pedra grande despencou até o chão em uma profusão de pedregulhos, cascalho e poeira, encurralando-a lá dentro. Eu não consegui chegar até ela — disse ele, com a voz trêmula. — Até eles.

Então o barulho cessou. De repente, tudo ficou em silêncio, imóvel.

Eu não sabia — repetiu ele, angustiado. — Eu dera minha palavra a Alaïs de que, se alguma coisa acontecesse com ela, eu cuidaria da segurança do Livro das Palavras, mas eu não sabia. Não sabia se Oriane estava com o Livro nem onde ela estava. — A voz dele transformou-se em um sussurro. — Nada.

Então os corpos que eu encontrei eram de Guilhem e Alaïs — disse Alice; era uma afirmação, não uma pergunta.

Sajhë aquiesceu.

Encontramos o corpo de Oriane um pouco mais abaixo na colina. O Livro não estava com ela. Foi só então que eu entendi.

Os dois morreram juntos salvando o Livro. Alaïs queria que você vivesse, Sajhë. Que vivesse e cuidasse de Bertrande, que era sua filha em todos os sentidos da palavra exceto um.


Ele sorriu.

— Eu sabia que você iria entender — disse ele. As palavras escorriam de seus lábios como um suspiro. — Eu vivi tempo demais sem ela. Senti a ausência dela todos os dias. Todos os dias desejei não ter sido amaldiçoado, não ter sido forçado a viver minha vida, enquanto todos aqueles que eu amo envelhecem e morrem. Alaïs, Bertrande...

Ele se interrompeu. A dor dele fez o coração de Alice se apertar.

— Você não deve mais se sentir culpado, Sajhë. Agora que sabe o que aconteceu, precisa perdoar a si mesmo.

Alice podia senti-lo indo embora.

Faça-o continuar falando. Não o deixe dormir.

— Havia uma profecia — disse ele — que dizia que nas terras do Pays d´Oc, na nossa época, nasceria uma pessoa cujo destino seria testemunhar a tragédia que se abateu sobre este lugar. Como os que vieram antes de mim, Abraão, Matusalém, Harif, eu não desejei isso. Mas aceitei.

Sajhë tentou engolir mais ar. Alice o puxou para mais perto, ninando sua cabeça nos braços.

Quando? — ela tentou dizer. — Conte para mim.

Alaïs invocou o Graal. Aqui. Nesta mesma câmara. Eu tinha 25 anos de idade. Voltara para Los Seres pensando que minha vida estava prestes a mudar. Achava que poderia conquistar Alaïs e ser amado por ela.

Ela amava você — disse Alice, veemente.

Harif lhe ensinou a entender a antiga língua dos egípcios — continou ele, sorrindo. — Parece que algum resquício desse conhecimento ainda vive em você. Usando as habilidades que Harif havia lhe ensinado, junto com seu conhecimento dos pergaminhos, viemos até aqui. Como você, quando che­gou a hora, Alaïs soube o que dizer. O Graal veio através dela.

Como... — Alice hesitou. — O que aconteceu?

Lembro-me da sensação suave do ar sobre minha pele, do tremeluzir das velas, das lindas vozes erguendo-se no ar em espiral. As palavras pareciam escorrer de seus lábios, mal era possível escutá-las. Alaïs estava em pé na frente do altar, e Harif ao seu lado.

Deve ter havido mais gente.

Sim, mas... você vai achar estranho, mas eu quase não consigo me lembrar. Só conseguia ver Alaïs. Seu rosto compenetrado, com uma leve ruga entre os olhos onde seu cenho se franzia. Os cabelos flutuavam em suas costas como um lençol dágua. Eu não via nada a não ser ela, não tinha consciência de nada a não ser ela. Ela segurou o cálice nas mãos e pronunciou as palavras.

Seus olhos se arregalaram em um único instante de iluminação. Ela me esten­deu o cálice, e eu bebi.


As pálpebras dele se abriam e se fechavam rapidamente, como o bater das asas de uma borboleta.

Se sua vida era um fardo tão grande para você, por que continuou sem ela?

Perqué?— perguntou ele, surpreso. — Por quê? Porque era isso que Alaïs queria. Eu precisava viver para contar a história do que havia acontecido ao povo desta terra, aqui no meio destas montanhas e planícies. Para garantir que sua história não morresse. E esse o objetivo do Graal. Ajudar aqueles que dão testemunho. A história é escrita pelos vitoriosos, pelos mentirosos, pelos mais fortes e mais determinados. A verdade muitas vezes está no silêncio, nos lugares sossegados.

Alice aquiesceu.

Você fez isso, Sajhë. Prestou testemunho.

Guilhem de Tudèla escreveu um relato falso da cruzada que os fran­ceses fizeram contra nós. O título de seu relato é La Chanson de la Croisade.

Quando ele morreu, um poeta anônimo, que tinha mais simpatia pelo Pays d'Oc do que pelos franceses, completou esse relato. La Canso. A nossa história.

Apesar de tudo, Alice percebeu que estava sorrindo.

— Les mots, vivents — sussurrou ele. Palavras vivas. — Isso foi o começo.

Eu jurei a Alaïs que falaria a verdade, que escreveria a verdade, para que as gerações futuras soubessem o horror que um dia havia sido perpetrado nestas terras em seu nome. Para que fossem lembrados.

Alice aquiesceu.

Harif entendia isso. Ele havia percorrido o caminho solitário antes de mim. Viajara o mundo e vira como as palavras eram distorcidas, destruídas e transformadas em mentiras. Ele também viveu para dar testemunho. — Sajhë tomou fôlego. — Ele só viveu pouco tempo depois de Alaïs, embora tivesse mais de oitocentos anos quando morreu. Aqui, em Los Seres, com Bertrande e comigo ao seu lado.

Mas onde você viveu durante todos estes anos? Como você viveu?

Vi o verde da primavera dar lugar ao dourado do verão, o cobre do outono dar lugar ao branco do inverno, enquanto eu, sentado, esperava a luz se esvanecer. Muitas e muitas vezes perguntei a mim mesmo: por quê? Se eu soubesse como seria viver em tamanha solidão, suportar, como única testemu­nha, o ciclo interminável de nascimento, vida e morte, o que eu teria feito? Eu sobrevivi esta longa vida com um vazio no coração, um vazio que, ao longo dos anos, não parou de aumentar até se tornar maior do que o meu próprio coração.

Ela amava você, Sajhë — disse Alice baixinho. — Não da forma como você a amava, mas de verdade, profundamente.


Uma expressão de paz havia tomado conta do rosto dele.

Es Vertat. Agora eu sei.

Se...

Outro acesso de tosse o dominou. Dessa vez, pingos de sangue borbulharam nos cantos de sua boca. Alice os enxugou com a bainha da túnica. Ele se esforçou para se sentar.

— Eu pus tudo no papel para você, Alice. Meu último testamento. Está esperando por você em Los Seres. Na casa de Alaïs, onde nós vivemos, que eu agora deixo para você.

Ao longe, Alice pensou poder ouvir o barulho de sirenes varando o silên­cio da noite na montanha.

— Estão quase chegando — disse ela, controlando a própria tristeza. — Eu disse que eles viriam. Fique comigo. Por favor, não desista.

Sajhë fez que não com a cabeça.

Acabou. Minha viagem terminou. A sua está só começando.

Alice alisou seus cabelos brancos, afastando-os do rosto.

Eu não sou ela — disse baixinho. — Eu não sou Alaïs.

Ele deu um suspiro longo, suave.

— Eu sei. Mas ela vive em você... e você, nela. — Ele se calou. Alice podia ver o quanto lhe doía falar. — Eu gostaria que tivéssemos tido mais tempo, Alice. Mas ter conhecido você, ter compartilhado essas horas com você...Foi mais do que eu jamais esperei.

Sajhë se calou. Os últimos vestígios de cor se esvaíram de seu rosto, de suas mãos, até não restar mais nada.

Alice se lembrou de uma prece, dita certa vez muito tempo antes.

— Payre Sant, Dieu dreiturier dels bons esperits. — As palavras outrora conhecidas saíam com facilidade de seus lábios. — Santo Pai, Deus legítimo dos bons espíritos, permite-nos saber o que Tu sabes e amar o que Tu amas.

Contendo as lágrimas, Alice o abraçou até sua respiração ficar mais leve, mais suave. Finalmente, ela cessou por completo.

 


                           Los Seres

                           Domingo, 8 de julho de 2007

São oito horas da noite. O final de mais um dia perfeito de verão.

Alice caminha até a ampla janela e abre as persianas para deixar entrar a luz laranja enviesada. Uma leve brisa acaricia seus braços nus. Sua pele tem a cor da avelã e seus cabelos estão presos em uma única trança que lhe cai pelas costas.

O sol agora está baixo, um círculo vermelho perfeito no céu cor-de-rosa e branco. Ele lança imensas sombras negras sobre os picos próximos dos Mon­tes Sabarthès, como pedaços de tecido postos para secar. Da janela, ela pode ver o Col des Sept Frères e, atrás dele, o Pic de Saint-Bartélémy.

Faz dois anos desde o dia em que Sajhë morreu.

No início, Alice achou difícil viver com aquelas lembranças. O barulho da arma na câmara claustrofóbica; o tremor da terra; o rosto branco na escuri­dão; a expressão no rosto de Will quando ele irrompeu na câmara acompa­nhado do inspetor Noubel.

Mais do que tudo, ela era assombrada pela lembrança da luz se apagando nos olhos de Audric — de Sajhë, como havia aprendido a chamá-lo em pensa­mento. No final, foi paz que ela viu naqueles olhos, não pesar, mas isso não havia diminuído sua dor.

Porém, quanto mais Alice aprendia, mais os temores que a haviam dei­xado sem ação naqueles instantes finais começavam a se dissipar. O passado perdeu o poder de feri-la.

Ela sabe que Marie-Cécile e o filho morreram no desabamento, ambos tragados pela própria montanha durante o terremoto. Paul Authié foi encon­trado onde François-Baptiste o havia abatido, com o timer que detonaria as quatro bombas prosseguindo sua contagem implacável rumo a zero ao lado de seu corpo sem vida. Um Armagedon de sua própria lavra.

À medida que aquele verão foi se transformando em outono, e o outono em inverno, Alice começou a se recuperar, com a ajuda de Will. Era o tempo fazendo seu trabalho. O tempo, e a promessa de uma nova vida. Aos poucos, as lembranças dolorosas estão se apagando. Como velhas fotografias, lembra­das apenas pela metade, indistintas, elas vão juntando poeira em sua mente.

Alice vendeu seu apartamento na Inglaterra e, junto com o dinheiro da venda da casa de sua tia em Sallèles d'Aude, ela e Will se mudaram para Los Seres.

A casa onde Alaïs um dia vivera com Sajhë, Bertrande e Harif é agora o seu lar. Eles fizeram reformas, adaptando-a para uma vida moderna, mas o espírito do lugar permanece o mesmo.

O segredo do Graal está seguro, como havia sido a intenção de Alaïs, escondido naquele lugar entre as montanhas eternas. Os três papiros, arranca­dos de seus livros medievais, estão enterrados debaixo das pedras.

Alice entende que seu destino era terminar o que havia sido deixado inacabado oitocentos anos antes. Também entende, como Alaïs entendia, que o verdadeiro Graal é o amor transmitido de geração em geração, as pala­vras ditas pelo pai ao filho, pela mãe à filha. A verdade está em tudo à nossa volta. Nas pedras, nos rochedos, na constante mutação das estações do ano nas montanhas.

Graças às histórias compartilhadas de nosso passado, nós não morremos.

Alice não acredita ser capaz de traduzir isso em palavras. Ao contrário de Sajhë, ela não é uma contadora de histórias, uma escritora. Pergunta-se até se esse fato não está além do alcance das palavras. Pode ser chamado de Deus, pode ser chamado de fé. Talvez o Graal seja uma verdade grande demais para ser falada, ou amarrada no tempo, no espaço e no contexto por uma coisa tão volúvel quanto a linguagem.

Alice apóia as mãos no parapeito da janela e aspira os cheiros delicados da noite. Tomilho selvagem, giesta, a lembrança ondulante do calor sobre as pedras, salsa e hortelã da montanha, sálvia, os aromas de seu jardim de ervas.

Sua reputação está crescendo. O que começou como uma série de favo­res particulares, fornecendo ervas para restaurantes e vizinhos dos vilarejos próximos, tornou-se um negócio rentável. Agora, a maioria dos hotéis e lojas da região, até mesmo em lugares mais afastados como Foix e Mirepoix, ofere­cem uma linha de produtos seus, com a etiqueta característica Épice Pelletier et Filie. O nome de seus antepassados, agora incorporado como seu.

O hameau de Los Seres ainda não aparece nos mapas. É pequeno demais. Mas logo vai aparecer. Benlèu.

No escritório no andar de baixo, o teclado silenciou. Alice pode ouvir Will andando pela cozinha, tirando pratos do armário e pão da despensa. Ela logo vai descer. Ele vai abrir uma garrafa de vinho e juntos vão beber enquanto ele cozinha.


No dia seguinte, Jeanne Giraud irá visitá-los, uma mulher digna, encan­tadora, que se tornou parte de suas vidas. À tarde, irão todos ao vilarejo mais próximo depositar flores em uma estátua na praça, erguida em homenagem ao célebre historiador cátaro e membro da Resistência Audric S. Baillard. Na placa lê-se um provérbio occitano, escolhido por Alice.

"Pas a pas se va luènh."

Mais tarde, Alice irá sozinha às montanhas onde uma outra placa marca o ponto onde ele está enterrado sob as colinas, como sempre quis. A lápide diz apenas SAJHË.

O fato de ele ser lembrado já basta.

A Árvore Genealógica, primeiro presente de Sajhë para Alice, está pen­durada na parede do escritório. Alice fez três modificações. Acrescentou as datas das mortes de Alaïs e Sajhë, separadas por oitocentos anos.

Acrescentou o nome de Will ao lado do seu e a data de seu casamento.

Bem no final, onde a história ainda continua ela acrescentou uma linha:

SAJHËSSE GRACE FARMER PELLETIER, 28 de fevereiro de 2007 —.

Alice sorri e vai até o berço onde sua filha está começando a acordar. Seus dedos do pé, pálidos e imóveis, começam a estremecer à medida que ela desperta. Quando a filha abre os olhos, Alice solta um arquejo de emoção.

Ela planta um beijo na testa da filha ao mesmo tempo em que começa a murmurar uma canção de ninar na língua antiga, passada de geração em geração.

Bona nuèit, bona nuèit... Braves amics, pica mièja-nuèit Cal finir velhada E jos la flassada.

Um dia, pensa Alice, Sajhësse poderá cantá-la para um filho seu.

Segurando a filha no colo, Alice volta à janela, pensando em todas as coisas que irá lhe ensinar. Nas histórias que irá lhe contar sobre o passado, e sobre como tudo aconteceu.

Alaïs não a visita mais em sonhos. Mas ali, em pé sob a luz cada vez mais fraca, olhando para os cumes e cristas ancestrais das montanhas e vales que se estendem até além de onde seus olhos alcançam, sente a presença do passado a toda volta, envolvendo-a. Espíritos, amigos, fantasmas que estendem as mãos e sussurram sobre suas vidas, compartilhando com ela seus segredos. Eles a ligam a todos aqueles que já estiveram em pé ali antes — e todos aqueles que ainda virão — sonhando com o que a vida pode oferecer.

Ao longe, uma lua branca nasce no céu rajado, prometendo mais um lindo dia amanhã.

 

                                                                                Kate Mosse  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"